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NOTAS SOBRE O IMAGINÁRIO E O CONTROLE DAS INSTITUIÇÕES JURÍDICAS SOBRE O CORPO NO DIREITO BRASILEIRO Paloma Abreu Monteiro ([email protected]) (http://lattes.cnpq.br/8252395287420427) O ensaio que ora se apresenta pretende provocar questionamentos em torno das relações estabelecidas entre as representações imagéticas do corpo e o universo jurídico, incitando a urgente necessidade de promover diálogos a respeito do contexto social contemporâneo da iconolatria especialmente no que tange ao corpo e como ela é/se manifesta nas instituições jurídicas, isto é, no Direito 1 . Importante aclarar que, ao falar do corpo no Direito, pretende-se deixar claro que a relação a ser observada se dá nos contornos das expressões corporais de dentro para fora, isto é, a transformação na imagem suportada e exposta no/pelo corpo e, a partir de então, como o Direito as significa, como as constrói sob a forma de signos sociais e lhe atribui valores distintos, assim estabelecendo conexões de pertença e o seu oposto, fundamental também na discussão do acesso à justiça. Ao falar em expressões corporais sob a ótica do Direito brasileiro, este trabalho pretende lançar uma especial análise às tatuagens e às vestimentas mas não somente , isto é, como o ato de tatuar-se e/ou vestir-se de determinada maneira está inserido nas questões do ser e dever-ser de uma imagem jurídica tal. Em um primeiro momento, deve-se pensar isoladamente em cada instituto, na lógica da assunção de que existem de fato. Portanto, a interrogação se constrói sobre a forma não mais sobre a existência , culminando para as consequências de tais significações no espaço jurídico e social: é a percepção do Direito enquanto elemento de aprisionamento do 1 O uso de letra maiúscula tem a função de promover a diferenciação de sentido de tal palavra, de modo que, quando em letra maiúscula, refere-se, aqui, à instituição social; quando em letra minúscula, trabalha-se o sentido de, resumidamente, “prerrogativas e poderes do previstos em lei”.

Notas Sobre o Imaginário e o Controle Das Instituições Jurídicas Sobre o Corpo No Direito Brasileiro - Paloma Monteiro

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Corpo & Direito

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  • NOTAS SOBRE O IMAGINRIO E O CONTROLE DAS INSTITUIES

    JURDICAS SOBRE O CORPO NO DIREITO BRASILEIRO

    Paloma Abreu Monteiro

    ([email protected])

    (http://lattes.cnpq.br/8252395287420427)

    O ensaio que ora se apresenta pretende provocar questionamentos em

    torno das relaes estabelecidas entre as representaes imagticas do corpo

    e o universo jurdico, incitando a urgente necessidade de promover dilogos a

    respeito do contexto social contemporneo da iconolatria especialmente no

    que tange ao corpo e como ela /se manifesta nas instituies jurdicas, isto

    , no Direito1.

    Importante aclarar que, ao falar do corpo no Direito, pretende-se deixar

    claro que a relao a ser observada se d nos contornos das expresses

    corporais de dentro para fora, isto , a transformao na imagem suportada e

    exposta no/pelo corpo e, a partir de ento, como o Direito as significa, como as

    constri sob a forma de signos sociais e lhe atribui valores distintos, assim

    estabelecendo conexes de pertena e o seu oposto, fundamental tambm na

    discusso do acesso justia.

    Ao falar em expresses corporais sob a tica do Direito brasileiro, este

    trabalho pretende lanar uma especial anlise s tatuagens e s vestimentas

    mas no somente , isto , como o ato de tatuar-se e/ou vestir-se de

    determinada maneira est inserido nas questes do ser e dever-ser de uma

    imagem jurdica tal.

    Em um primeiro momento, deve-se pensar isoladamente em cada

    instituto, na lgica da assuno de que existem de fato. Portanto, a

    interrogao se constri sobre a forma no mais sobre a existncia ,

    culminando para as consequncias de tais significaes no espao jurdico e

    social: a percepo do Direito enquanto elemento de aprisionamento do

    1 O uso de letra maiscula tem a funo de promover a diferenciao de sentido de tal palavra, de modo

    que, quando em letra maiscula, refere-se, aqui, instituio social; quando em letra minscula, trabalha-se o sentido de, resumidamente, prerrogativas e poderes do previstos em lei.

  • corpo e o convite a pensar nas formas que se vale para a efetivao dos

    modelos corporais desejados nesse locus e suas consequncias sociais.

    Dito isso, pensemos na relao entre o comportamento humano que

    promove diferentes formas de expresso e de desenvolvimento da

    personalidade em si mesmo, por meio do prprio corpo, e como as instituies

    jurdicas recebem os produtos dessas manifestaes sustentadas pelo corpo

    de acordo com seus prprios parmetros valorativos. o ser e o dever-ser, a

    pertena e a segregao: com base no contexto histrico-social

    experimentado, observar o confronto entre o que o Direito pretende tutelar e

    como essa pretenso se desdobra de fato na sociedade, na promoo do

    acesso justia, a partir da percepo imagtica da instituio sobre o corpo.

    O QUE DIZ O CORPO...

    Para compreender o espao ocupado pelo corpo na comunicao

    humana preciso ter em mente que a essncia das comunicaes encontra-

    se, basicamente, em duas formas de linguagem: a verbal e a no-verbal.

    O corpo ocupa, portanto, um lugar de destaque na linguagem no-

    verbal. Ele traduz tudo aquilo que no verbalizado, funcionando como uma

    unidade nica capaz de classificar, incluir e excluir, rejeitar e transformar, exibir

    e esconder, fundamental na percepo humana.

    Nas lies do linguista suo Ferdinand Saussure, a linguagem um

    produto que assimilado passivamente pelo indivduo (...) e o raciocnio

    aparece simplesmente para efeito de classificao (SAUSSURE, 1916). o

    que experimenta tambm a linguagem corporal.

    preciso entender o corpo como um suporte de signos sociais ao

    gerar pensamentos2 e impresses diversas. O signo social um signo de

    participao atravs do qual o indivduo manifesta a sua identidade e pertena

    em um grupo e, ao mesmo tempo, reivindica e institui essa participao,

    exprimindo a organizao da sociedade e as relaes interindividuais. O

    2

    Todo pensamento igualmente social, pois o signo produto da tradio e determina um programa de conduta para o futuro que tem por sujeito ltimo a totalidade das mentes no fim da histria (SILVEIRA, 1985, p. 23-29).

  • indivduo , ele prprio, o veculo e a substncia do signo: , ao mesmo tempo,

    o significante e o significado.

    De acordo com Peirce (1974), quando um signo se torna uma

    conveno, passa a ser um smbolo; se caracterizado por ser um mediador de

    participao humana, o consideramos um smbolo social ou um cdigo cultural.

    Ensina o socilogo e antroplogo francs David Le Breton:

    Do corpo nascem e se propagam as significaes que fundamentam a existncia individual e coletiva; ele o eixo da relao com o mundo, o lugar e o tempo nos quais a existncia toma forma atravs da fisionomia singular de um ator. Atravs do corpo, o homem apropria-se da substncia de sua vida traduzindo-a para os outros, servindo-se dos sistemas simblicos que compartilha com os membros da comunidade (LE BRETON, 2007, p.07).

    Importante perceber que, ao se falar em expresses corporais, no se

    deve limitar o pensamento a gestos, expresses faciais e movimentos

    realizados com o corpo, mas ir alm: o corpo por si s j constitui mensagem.

    Consequentemente, tudo aquilo que nele est representado, sejam suas

    formas, vestes, acessrios e transformaes so tambm percebidos como

    comunicao. Ou seja, o corpo, mesmo quase imvel, j constitui mensagem e

    expresso, seja por suas formas, tons e apresentao.

    A posio destacada que se d ao corpo e suas formas de expresso

    prpria do modelo especialmente ocidental de experimentar a presena

    humana no mundo. Em uma espcie de hierarquizao sensorial, o mundo

    ocidental submete todos os demais sentidos ao imprio da viso. O filsofo e

    terico cultural francs Paul Virilio classifica tal comportamento ao que ele

    chama de hipertrofia da viso, que pode ser compreendida atravs da atual

    multiplicao industrial de imagens, tal como um processo inflacionado, que por

    vezes acaba precarizando a percepo (VIRILIO, 1994).

    Outro pesquisador especializado em comunicao e semitica, o

    brasileiro Norval Baitello Jr., tambm trabalha tal questo (em suas palavras,

    imagens que nos cercam, imagens que nos cegam):

    Vivemos a cultura da imagem e a crise da visibilidade. O que falar de uma era imagtica? Definitivamente vivemos a era da iconofagia imagens devoram imagens. Transformamos o corpo em alimento do mundo das imagens. (...) Nos tornamos observador da observao (BAITELLO JR., 2006, pp. 12).

  • A partir de ento, resta claro que no apenas gestos e olhares

    representam as expresses corporais que constituem a comunicao de que o

    corpo capaz, mas o prprio corpo em si apto a desempenhar tal funo.

    Como uma tela, o corpo constitui um espao que suporta inmeras formas de

    modificaes, sejam elas permanentes ou transitrias, voluntrias ou impostas.

    Pois o corpo, mesmo remexido e revirado pelo avesso, minuciosamente perscrutado em seu exterior e interior, recortado e transformado em partes que vo viver em outros corpos, ou em receptculo de muitos e mltiplos objetos/materiais que nele se incorporam, ou ainda sofrendo todo o tipo de mutilao/interveno desejada ou imposta, parece guardar a possibilidade de ser um territrio de preservao do humano factvel que esconde uma rstia de mistrio sobre sua existncia (SOARES, 2006, p. 02).

    Entender que o corpo na contemporaneidade mais do que o arauto

    da personalidade que o prprio indivduo supe construir fundamental para

    aclarar o olhar a ser colocado sobre as transformaes desempenhadas no

    prprio corpo. trabalhar todo um corpo que, na concepo contempornea,

    no est pronto, de modo que se faz urgente modific-lo para que a noo do

    eu se edifique perante si mesmo e a sociedade em que se encontra.

    Nesse sentido, explica Le Breton no prefcio da obra Nu & Vestido,

    da tambm antroploga Miriam Goldemberg:

    O corpo ocidental est em plena metamorfose. No se trata mais de aceit-lo tal como ele , mas sim de corrigi-lo, transform-lo e reconstru-lo. O indivduo contemporneo busca em seu corpo uma verdade sobre si mesmo que a sociedade no consegue mais lhe proporcionar. Na falta de realizar-se em sua prpria existncia, este indivduo procura hoje realizar-se atravs do seu corpo. Ao mud-lo, ele busca transformar a sua relao com o mundo, multiplicando os seus personagens sociais (LE BRETON in. GOLDEMBERG; [et al.], 2002, prefcio).

    Existe, porm, o momento em que a construo do ser e estar do

    indivduo encontra obstculos condicionados ao prprio locus social que ele

    deseja ocupar. Esses obstculos apresentam-se ora em moldes imperativos

    negativos, ora positivos sob a forma de normas de conduta, padres

    estticos, vestimentas especficas, linguagens prprias e muitas outras. A

    questo : e quando esse tipo da barreira se encontra em ordem de promoo

    e manuteno da justia sob uma guarda de ordem pblica (tutela da

    coletividade)?

  • Superando as discusses acerca da necessidade ou no de impor

    limites a tais transformaes, at mesmo pela adoo da conscincia de que o

    carter de autonomia3 presente na essncia de todo ser humano surge da sua

    prpria razo de ser anterior a qualquer ordem jurdica, principalmente ,

    parte-se agora para a observao de como o Direito percebe e influencia tais

    expresses; quais so essas expresses mais significativas na produo

    cultural do corpo nesse ambiente poltico especfico; e relacion-las ao acesso

    justia.

    ...E O QUE O DIREITO TEM DESEJADO OUVIR

    A relao entre o Direito e o corpo-imagem dialoga intensamente com

    a sua natureza de instncia de controle social que, ao longo de toda sua

    histria, promoveu e propagou determinados perfis imagticos rgidos, tanto

    para seus operadores, quanto para seus tutelados.

    O lado pelo qual se observa tal relao , aqui, manifesto, quase

    intuitivo: intrnseco ao modelo social construdo no Brasil no Ocidente... , o

    Direito revela-se indispensvel na promoo salutar do desenvolvimento da

    sociedade. No entanto, incita-se a pensar que, sendo sua existncia justificada

    unicamente para promover controle social e acesso justia a essa prpria

    sociedade em que se insere, em que momento a rigidez imagtica quanto a um

    modelo corporal especfico (como deve expressar-se) se prope a viabilizar tal

    fim?

    O interessante dessa abordagem que a percepo de tais padres se

    perfaz nitidamente aos olhos da sociedade, embora se instrumentalize de uma

    maneira muito velada. Isto , embora no existam imperativos textualizados,

    codificados exprimindo explicitamente quais so esses padres ou at mesmo

    diante de negativas das prprias instituies jurdicas ainda que com relao

    vestimenta seja mais comum encontrar normas e portarias que, por exemplo,

    probem o uso de bermudas no interior do frum ou ainda prevejam o uso de

    toga pelos magistrados em determinadas situaes , habita no consciente

    3 A concepo acerca da autonomia das vontades se relaciona diretamente com o surgimento das

    teorias liberais do sculo XIX, na compreenso de que o indivduo o soberano de si: seu corpo e sua mente no so objetos alienveis ao Estado ou qualquer outra instituio de poder quando se percebe a natureza da autodeterminao coexistindo com a autorresponsabilidade.

  • coletivo a imagem do terno, das roupas sociais, do tabu das tatuagens

    diretamente ligada ao Direito.

    Pensando na prtica das tatuagens, cuja interveno na prpria pele

    de maneira permanente e dolorosa nasce simplesmente do arbtrio do

    indivduo, aqui sero brevemente expostas algumas interpretaes a respeito

    das suas possveis significaes em dois pontos de vista: do sujeito que

    carrega tal marca e dos olhares de terceiros a essa forma de expresso,

    buscando relacion-los com o imaginrio social e jurdico.

    Sendo uma prtica que integra a Histria da humanidade, com diversas

    pesquisas arqueolgicas que registraram seus vestgios em stios periodizados

    por volta de 700 mil a.C. e sua presena em rituais diversos de povos nativos

    da Polinsia, Filipinas, Indonsia e Nova Zelndia, assume-se que a insero

    da tatuagem na cultura ocidental se deu a partir do momento em que as

    grandes expedies martimas se encarregavam de, num segundo plano,

    realizar um enorme trfico de culturas e prticas sociais, integrando e

    expandindo costumes em uma troca/imposio de diferentes hbitos.

    A partir de ento, a tatuagem fora recebida, em especial a partir do

    sculo XIX, como arte extica, depois como prpria dos setores

    marginalizados poca (marinheiros, soldados, presidirios, meretrizes...), e

    por volta de 1967, tribos urbanas roqueiros, motoqueiros, hippies e, de

    maneira mais radical, os punks e os skins foram apropriando-se desse

    imaginrio, adotando a tatuagem como uma marca corporal atravs da qual

    ostentavam publicamente sua vontade de romperem com as regras sociais e

    de situarem-se deliberadamente margem da prpria sociedade (PREZ,

    2005, pp. 180), para enfim assumir, na contemporaneidade, um novo contexto

    social.

    Importante ainda observar a prtica da tatuagem enquanto marca

    punitiva no sistema prisional. Na Grcia clssica, os criminosos eram tatuados

    ou marcados por um instrumento de ferro em brasa que geravam marcas

    permanentes, chamadas de stigma. Tal marcao, sempre em locais visveis,

    tinha como objetivo sinalizar eternamente a condio de criminoso, bem como

    de informar seu delito, sendo, portanto, uma marca de degradao, de

    sinalizao de que aquele indivduo, ao cometer um delito, transformara-se em

  • um eterno criminoso, e no apenas em algum que um dia cometeu um crime

    (SARANDY, 2006).

    Na Rssia, at o governo de Catarina, a Grande, as marcaes

    corporais com inteno de classificar os detentos no sistema penal se faziam

    em grande escala, aumentando e facilitando o controle oficial e tambm

    tecendo diferentes status no ambiente carcerrio. De uma forma geral, recrutas

    e desertores tambm eram sujeitados s marcaes corporais, de modo que os

    alvos seriam todos aqueles que resistiam, de alguma forma, ao poder

    controlador do Estado (SARANDY, 2006).

    Ocorre que, em um dado momento, os prprios condenados passaram

    a realizar em si mesmos as tatuagens: elas atuavam de forma a criar

    identidades que organizavam a prpria hierarquizao elaborada pelos

    detentos no ambiente prisional, e tambm como uma forma de resistncia ao

    controle que sofriam. Isto , fazendo uso do mtodo antes utilizado por seus

    algozes, estes indivduos invertiam a negatividade de sua estigmatizao (ou

    mesmo se valiam dela), utilizando-a para seus prprios interesses - no mais

    se tratava de alienao social, mas de orgulho e pertencimento corporativo

    (SCHRADER, 2000).

    Dessa forma, entre tantos enquadramentos sociais, um ponto

    compartilhado: a busca pela individualizao, pelo exerccio da autonomia

    tambm se exerce atravs da prpria pele. A noo da posse de si, sendo a

    pele um lugar de afirmao dessa posse, traduz, sob a forma de

    automarcao, que o corpo espao de confronto entre controle externo e

    autocontrole, em que o indivduo emite a mensagem de que seu corpo no

    alienvel ao Estado, ainda que, contemporaneamente, o ato de tatuar-se possa

    vir tambm acompanhado de outras motivaes, como arte, esttica, crenas

    religiosas e afins (lembrando sempre que anterior relao de transformao

    entre tica e esttica encontra-se a noo da posse de si).

    O carter de resistncia, ento, continua, mas no mais diante de um

    sistema punitivo penal ou centralizado. No contexto histrico-social que

    estamos inseridos, em meio a diversas liberdades polticas e econmicas, as

    instncias de controle possuem novas e variadas faces, sendo elas no apenas

    o Estado, mas o prprio mercado, instituies de poder pblicas e privadas, e

  • categorias elitizadas da sociedade, seja por exercerem influncia social,

    poltica ou econmica.

    Assumindo a prtica da tatuagem como portadora de tal carter, uma

    possvel relao a ser feita com a ambigidade presente no imaginrio social

    quando inserida ou rejeitada no espao jurdico torna-se fcil: essa no-

    identificao da tatuagem visvel com a imagem do Direito se d justamente

    por ela representar uma resistncia s instncias sociais controladoras

    presentes em nossa sociedade, como se demonstrasse, na pele, um desejo de

    autonomia contrrio a um discurso valorativo de dominao ou sujeio a

    certos regramentos propostos por esses institutos. Segundo a interpretao de

    Le Breton acerca dos estudos de Jean-Marie Brohm4, toda a ordem poltica vai

    de encontro ordem corporal. A anlise leva crtica do sistema poltico

    identificado com o capitalismo que impe a dominao moral e material sobre

    os usos sociais do corpo e favorece a alienao. No se trata mais de uma

    marginalizao em termos de criminalidade, mas sim em termos de excluso

    social ou de manter uma prtica de incluso prpria, rgida e que em nada

    dialoga com a efetivao da jurisdio de fato.

    Observemos, agora, como a vestimenta se coloca no contexto de

    expresso individual e social, e ento refletir a respeito do seu produto cultural

    nas relaes polticas.

    Se j demonstrado o carter comunicacional que o corpo possui, sendo

    ele o locus mais importante do indivduo no sentido de ser, ao mesmo tempo,

    meio e mensagem, tudo aquilo que colocado sobre ele tambm passa a

    possuir tal carter, de modo que configura uma maneira extremamente

    expressiva do indivduo falar o que /deseja ser e, ainda, como terceiros o

    identificam. [...] temos corpos e somos corpos, ou seja, o corpo configura-se

    no entorno do eu e simultaneamente inseparvel e inconfundvel com o

    mesmo. [...] Os corpos humanos so corpos vestidos (CASTRO, 2007, p.14).

    4 BROHM, Jean-Marie. Corps et politique. Paris: Delarge, 1975. Sociologie politque du sport. Paris:

    Delarge, 1976. J-M. Brohm moderador da revista Quel corps?, dentre os quais um dos objetivos pensar a corporeidade e suas ligaes com o poltico. Quel corps? deixou de ser publicada em 1997, aps a derradeira diretriz de J-M. Brohm intitulada Autodissolution.

  • A experincia da vestimenta est impregnada na prpria experincia

    humana. Mesmo nativos indgenas de regies isoladas do Brasil, se no fazem

    uso do que a sociedade contempornea dos homens brancos entende como

    roupa, seus adereos, pinturas e penas so suas formas de revestir o corpo,

    transmitindo mensagens da mesma maneira que as demais comunidades

    humanas fazem com tecidos, couros e linhas.

    Na contemporaneidade, essa experincia se relaciona fortemente com

    a crena na subjetividade revelada na imagem, na vestimenta. Nesse sentido,

    vestir-se constitui, ao mesmo tempo, um ato individual e social cujo objetivo a

    construo de um estilo, de um modo nico com o fim de se apresentar aos

    demais integrantes da sociedade. Modo esse que ser definido com base em

    experimentaes subjetivas, objetivamente inscritas na experincia social

    (CASTRO, 2007).

    Como bem compreendeu Humberto Eco, no texto O hbito fala pelo

    monge:

    A linguagem do vesturio, tal como a linguagem verbal, no serve apenas para transmitir certos significados, mediante certas formas significativas. Ela serve tambm para identificar posies ideolgicas, segundo os significados transmitidos, e as formas significativas que foram escolhidas para transmiti-los (ECO, 1989, p.13).

    Compreender a importncia que a vestimenta possui no contexto social

    leva ao questionamento acerca das mltiplas funes que ela detm e o

    porqu, relacionando-a a questes estticas e hierrquicas.

    Na sociedade contempornea, refm da imagem como capital, a

    funo mais aparente da vestimenta a de classificar, em especial

    estabelecendo juzos de valor como poderoso, rico, competente versus

    humilde, pobre, incapaz (ou seja, poder econmico lado a lado com

    capacidade e influncia, numa interpretao carente de profundidade).

    Dependendo da sua forma, a vestimenta atua como um classificador de

    indivduos, de modo que a observao da maneira como determinada pessoa

    se veste gera uma interpretao da sua pertena, colocando-a em diferentes

    signos da sociedade, como grupo social, profisso, poder econmico, dentre

    outras categorias. A vestimenta diferencia, identifica, agrupa e desagrega.

  • "O traje manifesta o pertencer a uma sociedade caracterizada: clero,

    exrcito, marinha, magistratura, etc.. Tir-lo , de certa forma, renegar essa

    relao" (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1991).

    A partir de ento, faz-se extremamente importante pensar o que

    pretende qualquer tipo de padronizao das vestimentas.

    A padronizao possui um carter no s de classificar indivduos -

    conferindo-lhes diferentes status e nveis hierrquicos -, mas tambm

    configura-se como um meio eficaz de exercer controle e domesticar corpos e

    aes.

    Variando o meio e a funo, variam as vestimentas-padro. Enquanto

    existem vestes que, j de incio, so identificadas como uniformes por suas

    formas, como os macaces dos metalrgicos, as fardas dos militares e os

    jalecos dos mdicos o so, por assim dizer, existem aquelas vestimentas que,

    embora no sejam classificadas como uniforme no sentido literal5, exercem

    exatamente as mesmas funes: para o indivduo que as utiliza, sua pretenso

    em demonstrar que pertence a um certo grupo e que detm certos

    poderes/atribuies aos demais (sua representao imagtica); para a

    instituio por trs dessa representao, o domnio que deseja exercer.

    No que se refere ao Direito, no possvel furtar-se ao que constitui

    sua vestimenta padro: as imagens do terno6, gravata, toga e afins ocupa um

    espao dominante na sua percepo social.

    Ao se vestir de acordo com o perfil das pessoas que exercem a mesma profisso, o advogado estar se valendo de sinais que identificam sua funo e correspondendo s possveis expectativas dos clientes. No imaginrio do cidado comum e dos advogados, o modo de se vestir um ponto muito forte na constituio da sua imagem como profissional respeitvel. Faz-se relevante pensar as inmeras leituras que podemos fazer partindo do uso do traje um ato to banal, mas que

    5 Uniforme [Do lat. uniforme.] Substantivo masculino. 6. Farda ou vesturio confeccionado segundo

    modelo oficial e comum, para uma corporao, classe, grupo de funcionrios, etc. (Novo Dicionrio Aurlio - Sculo XXI). 6

    Importante esclarecer que, neste trabalho, ao fazer referncia ao termo terno, preciso que estenda sua interpretao ao equivalente no vesturio feminino: na ausncia de uma veste especfica e nica, tal qual o terno para os homens, embora existam os populares tailleurs, deseja-se que brote no imaginrio do leitor toda aquela vestimenta formal padronizada usada em larga escala pelas mulheres, como calas sociais, camisas de boto, sapatos fechados (muitas vezes com salto alto, contrariando a funcionalidade do caminhar) e saias cinturadas mais longas, por exemplo. Trata-se da palavra terno numa espcie de vis lato sensu.

  • carrega mensagens sobre relaes de poder entre diferentes indivduos e categorias sociais. O uso predominante ou exclusivo do traje formal a exemplo acaba revelando o controle, embora de modo muito sutil, que vivemos sobre o que j determinado como certo (ALEXANDRE, 2005, p.12).

    Constantemente, tais referncias sociais vem acompanhadas de outras

    interpretaes: a associao feita entre o terno e o meio jurdico anda lado a

    lado com noes de status privilegiado, competncia, seriedade e demais

    juzos de valor nessa mesma linha - e se no geram essas interpretaes,

    fatalmente so as leituras que os indivduos no uso de tais vestimentas

    desejam ter.

    Ora, se o ato de vestir-se to prprio do ser humano, to originrio

    e necessrio na constituio de suas relaes sociais, qual seria ento o vis

    de aprisionamento do corpo responsvel pelas indagaes feitas no incio

    deste ensaio? No seria oriundo do prprio homem, portanto presente de forma

    inseparvel daquilo que ele constri no caso, o Direito?

    PELA RECONSTRUO DO VER

    Acontece que a reflexo, aqui, aponta no para a extino de

    referncias sociais edificadas nas formas de vestir-se ou trabalhar a prpria

    pele nas instituies jurdicas algo da ordem do impossvel ou improvvel ,

    mas sim na forma como elas se perfizeram e se perpetuam no plano do

    imaginrio e do real no Direito brasileiro.

    Para sustentar uma imagem que eleve um grupo de indivduos a um

    status de manuteno de superioridade, so necessrios certos vetores de

    efetivao. Para traz-los a um nvel de promoo de igualdades, outros.

    Redundante dizer que tais vetores so opostos entre si.

    Uma vestimenta padronizada cujos vieses de representao imagtica

    sejam o de produzir noes de formalidade e privilgios, cujo dilogo assim se

    viabiliza por conta do contexto econmico e do prprio monoplio do saber

    jurdico7 experimentados no Brasil, certamente a figura do terno, toga e afins

    7

    A respeito do monoplio do saber jurdico, importante e interessante ler a obra Direito, Poltica e Magistratura do jurista argentino Carlos Maria Crcova (1996, Editora LTr).

  • no deveriam suscitar a referncia mais coerente, mais imediata e irrefletida de

    Direito como ocorre na sociedade.

    O desafio consiste em ressignificar tais camadas de sentido

    internalizadas pela prtica social nas instituies jurdicas para que enfim se

    possa ver e promover seu fim: o acesso justia. afastar a opacidade do

    Direito, desconstruindo por completo seus instrumentos de aprisionamento que

    obstaculizam esse acesso, essa efetividade na jurisdio (toda a rigidez

    fortemente focada na imagem; a vestimenta padronizada em carter de

    superioridade frente ao cidado comum; a linguagem codificada,

    propositalmente mantida terminologicamente difcil e tcnica; e outros tantos).

    Discutir tais relaes polticas no espao em questo urgente. O

    dever-ser da imagem jurdica que est sedimentado no imaginrio social est

    diretamente relacionado com a realidade vivenciada pela sociedade na

    efetivao e conhecimento de seus direitos e deveres uma noo

    empobrecida e opaca. A imagem que se tem produto e produz: a

    manuteno de relaes desproporcionais assumiu um vis que se tem como

    prprio do Direito, mas no deveria, de modo que refora na sua insistente

    existncia um distanciamento incompatvel com a razo de ser do mesmo.

    Essa a funo destas notas. Chamar a ateno para o que realmente

    deve ser inserido na produo cultural e poltica de corpos e Direito,

    consequentemente na [re]construo de uma imagem que se aproxime do

    propsito da instituio jurdica, e no mais afastar, em uma espcie de

    cercadinho infantil cujas regras so ditadas pela vaidade, manuteno da

    desigualdade e falsas crenas de superioridade. O Direito para ser

    instrumentalizado por alguns atravs da formao especializada, do estudo,

    da pesquisa acadmica, da tica profissional, do dilogo , de modo a ser

    viabilizado para todos.

    Referncias bibliogrficas:

    *Artigos:

    ECO, Umberto. O hbito fala pelo monge. In: Psicologia do Vestir. 3 ed.

    Lisboa: Assrio e Alvim, 1989, p. 3-20.

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    *Teses:

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    na constituio da aparncia do advogado. 78 f. Tese. (Especializao em

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    SARANDY, Andra Barbosa Osrio. O gnero da tatuagem: continuidades e

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    *Livros:

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    CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionrio de Smbolos - Mitos,

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    Traduo de Snia M.S. Fuhrmann. Petrpolis: Vozes, 2007.

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    SOARES, Carmen Lcia (org.). Corpo e Histria. 3 ed. So Paulo: Autores

    Associados, 2006.

    VIRILIO, Paul. A mquina da viso. 1 Ed. Rio de Janeiro: Jos Olimpio,

    1994.

    *Captulo de livro:

    SCHRADER, A. M.. Branding the other/tattooing the SeLO: inscription

    among convicts in Russia and the Soviet Union. In: CAPLAN, Jane (ed.).

    Written on the Body: the tattoo in european and american history. New Jersey:

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    Bibliografia

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    Paulo. Sociologias (UFRGS). Rio Grande do Sul, v. 6, p. 136-161, 2005.

    SOBRE A AUTORA

    Possui graduao em Direito pela Universidade Federal Fluminense (2012). Tem experincia na

    rea de Direito, com interesse em Antropologia Jurdica. Recm admitida no Programa de Ps-

    Graduao sticto sensu em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense.