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O Direito Administrativo distingue dois tipos de impugnação de actos administrativos: A impugnação administrativa, realizada por via de recurso hierárquico; e a impugnação contenciosa, recorrendo ao Tribunal para obter sentença de impugnação desse acto. Até à Reforma do CPTA em 2003, o centro de gravidade do acto administrativo residia numa tripla definitividade (material, horizontal e vertical) e executoriedade. Isto significava que, para ser impugnado contenciosamente, o acto administrativo teria de correr previamente as instâncias administrativas, isto é, chegar ao superior hierárquico máximo, cujo acto seria o único passível de impugnação contenciosa dado ser definitivo e executório. Isto implicava que os actos praticados por subalternos não poderiam ser susceptíveis de impugnação contenciosa pois careciam de definitividade vertical. Nas palavras de MARCELO REBELO DE SOUSA, o recurso hierárquico necessário seria um instituto confirmador da legitimidade democrática acrescida do superior hierárquico máximo, tendo este o poder de supervisão e substituição sobre o acto administrativo praticado pelo subalterno e sujeito a revisão por aquele. Antes da Reforma de 2003, VASCO PEREIRA DA SILVA, "orgulhosamente só", pugnava pela inconstitucionalidade do recurso hierárquico necessário, pois obstava ao livre acesso à tutela da justiça (268º/4 CRP, que surgiu em virtude da revisão constitucional de 1989 e tranferiu o pendor do acto administrativo da definitividade e executoriedade para o acto administrativo lesivo de direitos e interesses legalmente protegidos). Este entendimento, ainda que só, veio a ser sufragado pelo legislador no CPTA pós-2003, merecendo críticas de doutrina relevante como FREITAS DO AMARAL e VIEIRA DE ANDRADE, e ainda da jurisprudência, que alertaram para um possível bloqueio do sistema judicial pela elevada afluência aos tribunais. A alteração ao CPTA implicou fundamentalmente que o particular deixa de não necessitar de impugnar previamente o acto administrativo para desbloquear a impugnação contenciosa. Isto efectiva não só a defesa dos interesses e direitos legalmente protegidos como revela um caminho mais alemão do legislador português, em direcção a uma Administração mais subjectiva. Ainda assim, coloca-se ainda hoje a pergunta se existe ou não recurso hierárquico necessário. Alguma doutrina (MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, VIEIRA DE ANDRADE, MARCELO REBELO DE SOUSA) defende que sim, dizendo que a reforma do CPTA não teve alcance suficiente para afectar as normas do recurso hierárquico necessário, devendo fazer-se uma interpretação actualista e admitir-se esta figura quando resulte de uma "opção consciente e deliberada do legislador".

Notas sobre recurso hierárquico

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Breves notas sobre o recurso hierárquico necessário e facultativo, com referência a posições doutrinárias.(extracto da resolução de um caso prático na cadeira de Direito Administrativo II na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa)

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O Direito Administrativo distingue dois tipos de impugnao de actos administrativos: A impugnao administrativa, realizada por via de recurso hierrquico; e a impugnao contenciosa, recorrendo ao Tribunal para obter sentena de impugnao desse acto.

At Reforma do CPTA em 2003, o centro de gravidade do acto administrativo residia numa tripla definitividade (material, horizontal e vertical) e executoriedade. Isto significava que, para ser impugnado contenciosamente, o acto administrativo teria de correr previamente as instncias administrativas, isto , chegar ao superior hierrquico mximo, cujo acto seria o nico passvel de impugnao contenciosa dado ser definitivo e executrio. Isto implicava que os actos praticados por subalternos no poderiam ser susceptveis de impugnao contenciosa pois careciam de definitividade vertical.

Nas palavras de MARCELO REBELO DE SOUSA, o recurso hierrquico necessrio seria um instituto confirmador da legitimidade democrtica acrescida do superior hierrquico mximo, tendo este o poder de superviso e substituio sobre o acto administrativo praticado pelo subalterno e sujeito a reviso por aquele.

Antes da Reforma de 2003, VASCO PEREIRA DA SILVA, "orgulhosamente s", pugnava pela inconstitucionalidade do recurso hierrquico necessrio, pois obstava ao livre acesso tutela da justia (268/4 CRP, que surgiu em virtude da reviso constitucional de 1989 e tranferiu o pendor do acto administrativo da definitividade e executoriedade para o acto administrativo lesivo de direitos e interesses legalmente protegidos). Este entendimento, ainda que s, veio a ser sufragado pelo legislador no CPTA ps-2003, merecendo crticas de doutrina relevante como FREITAS DO AMARAL e VIEIRA DE ANDRADE, e ainda da jurisprudncia, que alertaram para um possvel bloqueio do sistema judicial pela elevada afluncia aos tribunais.

A alterao ao CPTA implicou fundamentalmente que o particular deixa de no necessitar de impugnar previamente o acto administrativo para desbloquear a impugnao contenciosa. Isto efectiva no s a defesa dos interesses e direitos legalmente protegidos como revela um caminho mais alemo do legislador portugus, em direco a uma Administrao mais subjectiva.

Ainda assim, coloca-se ainda hoje a pergunta se existe ou no recurso hierrquico necessrio. Alguma doutrina (MRIO AROSO DE ALMEIDA, VIEIRA DE ANDRADE, MARCELO REBELO DE SOUSA) defende que sim, dizendo que a reforma do CPTA no teve alcance suficiente para afectar as normas do recurso hierrquico necessrio, devendo fazer-se uma interpretao actualista e admitir-se esta figura quando resulte de uma "opo consciente e deliberada do legislador". Outra doutrina (VASCO PEREIRA DA SILVA) aponta que o recurso hierrquico necessrio j se encontra "morto" no ordenamento jurdico administrativo, pois a sua finalidade seria essencialmente desbloquear a tutela contenciosa e, sendo que esta j livre, ento a sua existncia deixou de fazer sentido.

Apesar do entendimento altrusta de VASCO PEREIRA DA SILVA de que todas as impugnaes administrativas passaram a ser facultativas em face das novas garantias constitucionais e das disposies do CPA, a generalidade da doutrina e a jurisprudncia tendem a entender que, de facto, algumas situaes especiais, como no forar a Administrao a ir a juzo defender os seus interesses ou aces to pouco complexas que no justificam tutela contenciosa, o recurso hierrquico necessrio uma figura ainda "viva".

Assim, necessrio pesar o entendimento que se pretende sufragar nesta questo. Entendendo-se que um acto administrativo lesivo dos direitos e interesses do particular ou dos particulares e seguindo a posio da maioria da doutrina, temos que a impugnao administrativa prvia pode ser possvel; caso se partilhe do entendimento da doutrina solitria de VASCO PEREIRA DA SILVA, ento esta situao j ser manifestamente inconstitucional por coarctar as garantias constitucionais-administrativas dos particulares no livre acesso justia.

Paulo Simes RamosDireito Administrativo II