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Jornal do Comércio - Porto Alegre JC Jornal da Lei 9 DIA DO ADVOGADO Terça-feira, 7 de agosto de 2012 AJURIS Legislação deve refletir os valores da sociedade MINISTÉRIO PÚBLICO Nova lei ainda é muito tímida, acredita subprocurador-geral Jessica Gustafson [email protected] O atual Código Penal nasceu em 1940, época de regime dita- torial no País. Passadas mais de sete décadas, o novo anteprojeto está sendo criado em um am- biente democrático. Essas duas afirmações já garantem mudan- ças cabais na reforma do texto. De acordo com o vice-diretor da Escola Superior de Magistra- tura da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris), Ronaldo Barão, o Código tam- bém foi baseado no dispositivo italiano de 1930, conhecido como Código Rocco, provindo de um regime fascista. “O cenário atual é o oposto. O Senado Federal criou uma comissão técnica de juristas, presidida pelo minis- tro Gilson Dipp, na qual todas as reuniões foram abertas ao público. A sociedade toda está envolvida e está sendo ouvida”, avalia. Além de modernizar o conteú- do, a reforma tem como objetivo integrar as leis que não estavam no atual Código Penal. “Este anteprojeto traz para dentro do Código toda a legislação extra- vagante. Temos dezenas de leis penais esparsas no País. Estará lá toda a legislação ambiental, nos aspectos penais, e os crimes eleitorais”, explica Barão. O magistrado cita também como uma mudança importante o fim da lei de contravenções, que são os delitos menores. A proposta prevê que alguns podem virar crimes, como é o caso dos jogos de azar. Outro ponto de adapta- ção é sobre os pequenos furtos. Essa situação deixa de ser crime, se quem furtou este objeto de pe- queno valor acabar se arrepen- dendo e devolvendo o pertence para a vítima. Contudo, a pessoa lesada deve concordar em não levar o caso a juízo. “A legislação sempre deve re- fletir os valores da sociedade. No Brasil, nós temos uma expressão que é ‘tem lei que não pega’. A lei que não pega, certamente, é aquela que está descolada destes valores”, acredita Barão. A adap- tação das leis para o pensamento vigente da sociedade muitas vezes gera polêmica, pois a co- letividade não é homogênea. O anteprojeto tem passado por di- versas rejeições, principalmente de cunho religioso, sobre alguns aspectos. Esse é o caso do aborto e da ortotanásia. O aborto já era permitido legalmente em alguns casos, como estupro, risco para a mãe e anencefalia. De acordo com Barão, as três possibilidades con- tinuam, agora com o acréscimo de mais uma situação. Até a 12ª semana de gravidez, a gestante pode interromper a gestação quando o médico ou psicólogo entendem que deve ser feito dessa maneira. É necessário um parecer técnico e o consentimento da própria grávida. O mesmo acontece com a ortotanásia, que é o desligamen- to dos aparelhos médicos que mantêm uma pessoa viva. “Hoje, quem pratica a ortotanásia está praticando um homicídio. Com a proposta da comissão, ela deixa de ser considerada crime quando a doença é grave e irreversível, atestada por dois médicos e com o consentimento do paciente ou da família”, explica. Segundo o magistrado, essa prática já é vis- ta atualmente nos hospitais, e o que os juristas estão propondo é a adaptação do que já é realizado para a lei. Barão, da Escola Superior de Magistratura, ressalta a importância de o debate ser realizado junto ao público ANTONIO PAZ/JC Camila Freitas, especial para o JC [email protected] A atualização do Código Pe- nal, que apresenta um antepro- jeto organizado em mais de 500 artigos, abordando cerca de 130 leis que salientam temas penais de forma autônoma, promete mudanças significativas e é vista com grandes expectativas pelos brasileiros. Entretanto, para Marcelo Dornelles, subprocurador-geral da Justiça para Assuntos Ins- titucionais do Ministério Pú- blico, a novidade pode frustrar algumas projeções referentes à redução de crimes. “As pessoas têm em vista que se a crimina- lidade reduzir, a impunidade também poderá diminuir. A questão passa ao largo disso, pois não é a alteração de leis que modifica o crime. É, cer- tamente, uma questão social”, comenta Dornelles. Na prática, a proposta prevê mudanças polêmicas, como a transformação da ex- ploração dos jogos de azar em crime, maior rigor na punição aos motoristas embriagados, criminalização por precon- ceito de gênero e ampliação das possibilidades do aborto legal. Uma medida importante diz respeito à descriminalização do consumo, porte e cultivo de drogas para uso pessoal. As críticas favoráveis à legalização não consideram a medida como um abuso. Entretanto, Dornel- les sugere refletir sobre o caso. “Ao passo que se permite o uso de drogas, amplia-se o consumo e a circulação, reduzindo a pos- sibilidade de investigações de tráfico. O abuso será tolerado, assim como ocorre com o álcool e o cigarro”, prevê. A questão que tange o as- sunto é referente à saúde e à segurança, não somente à Justiça.“As iniciativas pre- vistas são importantes, mas entrarão em vigor e não serão notadas em curto prazo. A lei ainda é muito tímida. Acredito que duas ou três coisas vão me- xer na rotina do brasileiro, mas o novo Código Penal não tem o condão de ser mais funcional”, contrapõe o subprocurador- -geral às críticas positivas. Vale destacar, também, a criminalização da pessoa ju- rídica. Assim, as empresas que participarem de casos de corrupção contra a administra- ção pública serão penalizadas mediante as novas premissas da lei. Apesar da morosidade no julgamento, a proposta visa a romper com o fenômeno trivial, no qual a pessoa jurídica se vale de funcionários ou “laranjas”, normalmente responsabiliza- dos pelo crime, saindo ilesa. Contudo, o novo Código Penal propõe maior efetividade e cla- reza na aplicação, mas ainda enfrentará a aceitação popular e a oposição de algumas ban- cadas. Para Dornelles, “duas ou três coisas” vão alterar a rona do brasileiro GOVERNO DO ESTADO DO RIO GRANDE/JC

Nova lei ainda é muito tímida,acredita subprocurador-geral

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Reportagem especial sobre novo CP Brasileiro

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Jornal do Comércio - Porto Alegre JC Jornal da Lei 9DIA DO ADVOGADO

Terça-feira, 7 de agosto de 2012

AJURIS

Legislação deve refletir os valores da sociedade

MINISTÉRIO PÚBLICO

Nova lei ainda é muito tímida, acredita subprocurador-geral

Jessica [email protected]

O atual Código Penal nasceu em 1940, época de regime dita-torial no País. Passadas mais de sete décadas, o novo anteprojeto está sendo criado em um am-biente democrático. Essas duas afirmações já garantem mudan-ças cabais na reforma do texto. De acordo com o vice-diretor da Escola Superior de Magistra-tura da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris), Ronaldo Barão, o Código tam-bém foi baseado no dispositivo italiano de 1930, conhecido como Código Rocco, provindo de um regime fascista. “O cenário atual é o oposto. O Senado Federal criou uma comissão técnica de juristas, presidida pelo minis-tro Gilson Dipp, na qual todas as reuniões foram abertas ao público. A sociedade toda está envolvida e está sendo ouvida”, avalia.

Além de modernizar o conteú-do, a reforma tem como objetivo integrar as leis que não estavam no atual Código Penal. “Este anteprojeto traz para dentro do Código toda a legislação extra-vagante. Temos dezenas de leis penais esparsas no País. Estará lá toda a legislação ambiental, nos aspectos penais, e os crimes

eleitorais”, explica Barão. O magistrado cita também como uma mudança importante o fim da lei de contravenções, que são os delitos menores. A proposta prevê que alguns podem virar crimes, como é o caso dos jogos de azar. Outro ponto de adapta-

ção é sobre os pequenos furtos. Essa situação deixa de ser crime, se quem furtou este objeto de pe-queno valor acabar se arrepen-dendo e devolvendo o pertence para a vítima. Contudo, a pessoa lesada deve concordar em não levar o caso a juízo.

“A legislação sempre deve re-fletir os valores da sociedade. No Brasil, nós temos uma expressão que é ‘tem lei que não pega’. A lei que não pega, certamente, é aquela que está descolada destes valores”, acredita Barão. A adap-tação das leis para o pensamento

vigente da sociedade muitas vezes gera polêmica, pois a co-letividade não é homogênea. O anteprojeto tem passado por di-versas rejeições, principalmente de cunho religioso, sobre alguns aspectos. Esse é o caso do aborto e da ortotanásia. O aborto já era permitido legalmente em alguns casos, como estupro, risco para a mãe e anencefalia. De acordo com Barão, as três possibilidades con-tinuam, agora com o acréscimo de mais uma situação. Até a 12ª semana de gravidez, a gestante pode interromper a gestação quando o médico ou psicólogo entendem que deve ser feito dessa maneira. É necessário um parecer técnico e o consentimento da própria grávida.

O mesmo acontece com a ortotanásia, que é o desligamen-to dos aparelhos médicos que mantêm uma pessoa viva. “Hoje, quem pratica a ortotanásia está praticando um homicídio. Com a proposta da comissão, ela deixa de ser considerada crime quando a doença é grave e irreversível, atestada por dois médicos e com o consentimento do paciente ou da família”, explica. Segundo o magistrado, essa prática já é vis-ta atualmente nos hospitais, e o que os juristas estão propondo é a adaptação do que já é realizado para a lei.

Barão, da Escola Superior de Magistratura, ressalta a importância de o debate ser realizado junto ao público

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Camila Freitas, especial para o [email protected]

A atualização do Código Pe-nal, que apresenta um antepro-jeto organizado em mais de 500 artigos, abordando cerca de 130 leis que salientam temas penais de forma autônoma, promete mudanças significativas e é vista com grandes expectativas pelos brasileiros.

Entretanto, para Marcelo Dornelles, subprocurador-geral da Justiça para Assuntos Ins-titucionais do Ministério Pú-blico, a novidade pode frustrar algumas projeções referentes à redução de crimes. “As pessoas têm em vista que se a crimina-lidade reduzir, a impunidade também poderá diminuir. A questão passa ao largo disso, pois não é a alteração de leis que modifica o crime. É, cer-tamente, uma questão social”, comenta Dornelles.

Na prática, a proposta prevê mudanças polêmicas,

como a transformação da ex-ploração dos jogos de azar em crime, maior rigor na punição aos motoristas embriagados, criminalização por precon-ceito de gênero e ampliação das possibilidades do aborto legal.

Uma medida importante diz respeito à descriminalização do consumo, porte e cultivo de drogas para uso pessoal. As críticas favoráveis à legalização não consideram a medida como um abuso. Entretanto, Dornel-les sugere refletir sobre o caso. “Ao passo que se permite o uso de drogas, amplia-se o consumo e a circulação, reduzindo a pos-sibilidade de investigações de tráfico. O abuso será tolerado, assim como ocorre com o álcool e o cigarro”, prevê.

A questão que tange o as-sunto é referente à saúde e à segurança, não somente à Justiça.“As iniciativas pre-vistas são importantes, mas entrarão em vigor e não serão

notadas em curto prazo. A lei ainda é muito tímida. Acredito que duas ou três coisas vão me-xer na rotina do brasileiro, mas o novo Código Penal não tem o condão de ser mais funcional”, contrapõe o subprocurador--geral às críticas positivas.

Vale destacar, também, a criminalização da pessoa ju-rídica. Assim, as empresas que participarem de casos de corrupção contra a administra-ção pública serão penalizadas mediante as novas premissas da lei.

Apesar da morosidade no julgamento, a proposta visa a romper com o fenômeno trivial, no qual a pessoa jurídica se vale de funcionários ou “laranjas”, normalmente responsabiliza-dos pelo crime, saindo ilesa. Contudo, o novo Código Penal propõe maior efetividade e cla-reza na aplicação, mas ainda enfrentará a aceitação popular e a oposição de algumas ban-cadas.

Para Dornelles, “duas ou três coisas” vão alterar a rotina do brasileiro

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