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Moacyr Ayres Novaes Filho A RAZÃO EM EXERCÍCIO Estudos sobre a filosofia de Agostinho Discurso Editorial São Paulo, 2007 SUMÁRIO PARTE I CAP. 1 GRAMÁTÍCA E FILOSOFIA (O DE MAGISTRO)..............................27 CAP. 2 FÉ E RAZÃO..............................93 CAP. 3 OS NOMES DE DEUS.......................129 CAP. 4 INTERIORIDADE NA COSMOLOGÍA AGOSTÍNIANA.167 PARTE II CAP. 5 ETERNIDADE (CONFISSÕES XI, 1-16)....................211 CAP. 6 0 TEMPO COMO ENIGMA...............253 CAP. 7 LÍVRE-ARBÍTRIO E LIBERDADE NA CONDIÇÃO HUMANA..............287 CONCLUSÃO..................................................327 BIBLIOGRAFÍA..............................................343

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Moacyr Ayres Novaes Filho

A RAZÃO EM EXERCÍCIO

Estudos sobre a filosofia de Agostinho

Discurso Editorial

São Paulo, 2007

SUMÁRIO

PARTE I

CAP. 1 GRAMÁTÍCA E FILOSOFIA(O DE MAGISTRO)..............................27

CAP. 2 FÉ E RAZÃO..............................93

CAP. 3 OS NOMES DE DEUS.......................129

CAP. 4 INTERIORIDADENA COSMOLOGÍA AGOSTÍNIANA.167

PARTE II

CAP. 5 ETERNIDADE(CONFISSÕES XI, 1-16)....................211

CAP. 6 0 TEMPO COMO ENIGMA...............253

CAP. 7 LÍVRE-ARBÍTRIO E LIBERDADE NA CONDIÇÃO HUMANA..............287

CONCLUSÃO..................................................327

BIBLIOGRAFÍA..............................................343

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INTERIORIDADE

NA COSMOLOGIA AGOSTINIANA

A filosofia agostiniana, apoiada no impulso recíproco da fé e da razão, reconhece no mundo sinais de Deus como absoluto e presente, superior e interior. Por isso, porque a teologia é uma tarefa de dupla face, o mundo tem de ser de-cifrado também de modo duplo. O itinerário até Deus é, de uma parte, ascendente e, de outra, interiorizante. Mas a ri-gor, como veremos, isso consiste em um único itinerário. O desafio de invocar, louvar e compreender Deus resulta numa cosmologia introspectiva: os degraus da hierarquia do mundo são tanto ascendentes, quanto interiorizantes. A es-tratégia pendular, segundo a qual a experiência da finitude deve ser um signo de Deus, visa a combinar a caracterização de Deus como absoluto (pátria) com a compreensão de sua presença (caminho). O pêndulo entre um e outro aspecto exige e permite a compreensão de que a natureza e a identi-dade do homem só pode ser verdadeiramente encontrada alhures, isto é, em Deus.

Mas o que significa uma cosmologia introspectiva? Veremos que se trata de interpretar o lugar do espírito huma-no na hierarquia do mundo. A introspecção concerne à alma

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na exata medida em que as almas humanas são o núcleo do universo criado. Sinal disso é a importância da confissão: introspectiva por excelência, não é uma atividade restrita a conteúdos privados, a lembranças pessoais. Seu papel é in-vestigar o homem, mas também o mundo, e reconhecer uma ordenação voltada para Deus. A alma humana exibirá sua centralidade quando for compreendida fundamentalmente como esforço, como procura, como vontade.

Na segunda parte, procuraremos mostrar as conseqüências deste movimento em dois terrenos mais precisos. Esta exposição geral da cosmologia agostiniana aponta para a "filosofia moral" agostiniana, e para um capítulo particular da sua "filosofia natural". Veremos que a ordenação do finito para o infinito, remissão para Deus da natureza das coisas e da identidade do homem (vale dizer, de sua vontade) permitirá dissolver um aparente conflito no plano ético entre a onisciência divina e a liberdade humana, e, no plano físico, permitirá mostrar a harmonização entre eternidade e tempo.

Introdução: o papel investigador da confissão. O começo das Confissões enuncia um problema de dupla face: como compreendera natureza divina? A duplicação, como dissemos nas primeiras páginas do capítulo 3, deve-se em primeiro lugar ao paradoxo de a natureza divina ser absoluta e presente; em segundo lugar, é preciso questionar como e por que o homem reconhece essa presença absoluta. Naquele capítulo, tratava-se de apresentar a natureza divina para assinalar que o paradoxo era aparente: o absoluto não se enfraquece em razão de sua presença e atividade; pelo contrário, elas são um traço importante da sua transcendência. Agora é necessário que detenhamos a atenção sobre a in-

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vocação de Deus, procura da presença do absoluto no "ho-mem interior".

Na verdade, o fato de a teologia agostiniana por vezes se valer de dois "nomes" para Deus resulta de uma estratégia cujo nome é exatamente confissão. Com efeito, não é Deus que se duplica; é o modo humano de compreendê-lo que tem de ser múltiplo para realizar um exercício de aproximação. No esforço confessional, pelo qual o homem tem de percorrer e expor a sua finitude, contam tanto as possibilidades como a vontade humanas; isto é, a confissão combina o re-conhecimento da debilidade ao reconhecimento de um vigor de superação. Além disso, a miséria humana, para sair dos estreitos limites de sua finitude, tem de contar com a misericórdia divina. Ora, isso implica que Deus seja caracterizado também de maneira ambígua: de um lado, confissão significa louvar a infinidade divina (como se constata já na primeira frase das Confissões)', movimento que tende a descrever Deus como absolutamente apartado de tudo o que é deste mundo; por outro, a confissão é também uma deprecação, um pedido de misericórdia que não pode deixar de supor um Deus atento e presente. Se a interrogação sobre a natureza divina pôde parecer de algum modo "desinteressada", talvez agora, no enten-dimento da confissão como exercício do espírito, se torne patente por que Agostinho se afasta do platonismo, que en-

i Veja-se também en. Ps. 144, 13: "pois não se diz apenas confissão de pecados, mas também de louvor"; "confessio enfim non peccatorum tantum dicitur, sed et laudis." Cf. Courcelle, P. Recherches sur les Confessions de saint Augustin. Paris: De Boccard, 1950, p. 13-20.

Identidade
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Veremos que a ordenação do finito para o infinito, remissão para Deus da natureza das coisas e da identidade do homem (vale dizer, de sua vontade) permitirá dissolver um aparente conflito no plano ético entre a onisciência divina e a liberdade humana, e, no plano físico, permitirá mostrar a harmonização entre eternidade e tempo.
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tendia como uma especulação da razão finita demasiado con-fiante em si mesma. Assinalamos na Introdução a importân-cia que Agostinho atribuía, nos exercícios filosóficos, ao re-conhecimento da dependência humana. Por isso, condenou, naquilo que conhecia como platonismo, a soberba, a expec-tativa de que o homem, concentrado na alma, se bastasse a si mesmo. "O princípio de todo pecado é a soberba" (Eclesiásti-co X 15) ;̀ "maldito aquele que deposita sua esperança no ho-mem" (Jeremias XVII 5; Cf. doctr. chr. I xxii 20): por isso, o homem deverá eleger a alma, sabendo entretanto que sua es-perança deve estar depositada antes no Deus mesmo que o transcende, em particular, na mediação assegurada por ele. Segundo o mesmo Mediador: "quem encontrar sua própria alma, vai perdê-la; e quem a perder por minha causa a en-contrará." (Evangelho segundo Mateus X 39)".

Na verdade, é preciso esclarecer por que essa escolha não exprime um privilégio puro e simples: a alma será inves-tigada não apesar de suas debilidades, mas também em ra-zão delas.

"A ciência das coisas terrestres e celestes costuma merecer grande estima do gênero humano; certa-mente, neste último são melhores aqueles que, a esta ciência, preferem conhecer a si mesmos, e o espírito que conhece de si ao menos a própria falta de firme-za é mais digno de louvor do que aquele que, sem dar atenção a ela, escruta os caminhos das estrelas para ainda vir a conhecê-los, ou do que quem já os conhece ignorando o caminho pelo qual tem aces-so à sua própria salvação e firmeza." (trin. IV, prooemium, 1).2

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As limitações da linguagem humana, salientadas pela discussão da inefabilidade divina, resultam também em uma limitação do papel da confissão. A quem se comunicam essas palavras? Decerto não à onisciência divina (Cf. mag. I 2; Mt. VI 8), mas, se aos homens, quais podem ser suas pretensões? A confissão não informa, mas incita: quando confessa a gran-deza infinita de Deus, não pretende preencher o abismo en-tre a grandeza divina e a pequenez humana com o adjetivo "infinita"; sem pretender dar conta da distância, ela antes si-naliza que sequer o sentido dessa distância nos é dado perfei-tamente. Deus é dito "sumamente louvável": da mesma for-ma, "sumamente""` indica que o louvor, embora necessário, nunca se cumprirá exaustivamente; não se tem a pretensão de tornar digno da excelência divina o adjetivo laudabilis; ao contrário, o advérbio "sumamente" tem o valor de chamar a atenção para a inadequação entre a linguagem humana e a realidade divina.

2 "scientiam terrestrium caelestiumque rerum magni aestimare solet genus humanum. in quo profecto meliores sunt qui huic scientiae praeponunt posse semetipsos, laudabiliorque est animus cui nota est uel infirmitas sua quam qui ea non respecta uias siderum scrutatur etiam cogniturus aut qui iam cognitas tenet ignorans ipse qua ingrediatur ab salutem ac firmitatem suam". Salus contém uma ambigüidade da qual Agostinho tira proveito: quer dizer `saúde', portanto oposta à "falta de firmeza", enfermidade; mas também, no vocabulário cristão, `salvação'. Mohrmann (p. 331-2), a próposito de ambigüidades propositais com a palavra salus, cita dois sermões de Agostinho: sermo Denis 16, 7 (salutem) e sermo Denis 23, 3. (Cf. Mohrmann, Das Wortspiel in den augustinischen Sermones, in id., Etudes sur le latin des chrétiens, v. I, p. 323-49). De modo semelhante, note-se no trecho que citamos a ambivalência de `caminho'.

Doença
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Salus contém uma ambigüidade da qual Agostinho tira proveito: quer dizer `saúde', portanto oposta à "falta de firmeza", enfermidade; mas também, no vocabulário cristão, `salvação'
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Quando, por outro lado, a confissão se volta para a pe-quenez humana, a intenção é ir além da constatação: é pre-ciso confessar prospectivamente, esperando que o conhe-cimento da finitude seja um meio para rompê-la. Na verdade, conhecer a finitude é sobretudo experimentá-la: "Mas é uma recompensa que, ao explicar indouto o que pode a alma, eu experimente seguro o que posso eu mesmo." (an. quant. XXXIII 7O)'

Trata-se portanto de um exercício: manejar problemas, ensaiar soluções, testar os limites entre o que dizemos e o que de fato sabemos serão um modo de deixar vir à tona, lado a lado, conjugados, a finitude humana e o socorro divino (mi-séria e misericórdia), semelhança e dessemelhança. Embora a linguagem não possa ensinar conteúdos positivos, é preciso ainda assim utilizá-la. De que modo Deus é bom? Isso é ine-fável, "não podemos dizer, mas não nos é permitido calar". (en. Ps. CII 8)". Confessar é pois recusar humildemente o si-lêncio, exercer a finitude aspirando ir além dela.

Aspiração de repouso.

Retomando o início das Confissões, mais exatamente, o projeto confessional que ali ganha impulso, vemos que Agos-tinho formula como anelo de sua empresa o repouso em Deus: "nosso coração é inquieto, até que se aquiete em ti" (conf. I i 1)"'. A quietude como horizonte da trajetória hu-mana, em particular, da orientação do exercício do livre arbí-trio não se enquadra apenas em uma trajetória psicológica; o movimento da vontade deve ser pensado como pertinente à sua natureza humana (embora sobrecarregada pelo pecado), como a esperada conversão ao princípio ordenador que tudo dispôs "com medida, número e peso" ("in mensura et numero

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etpondere." (Cf. Sabedoria XI 21). Por isso, o termo do mo-vimento é não simplesmente a quietude (donec requiescat), mas é o próprio Deus (in te). Se antes tentamos caracterizar Deus como o absoluto que, em sua mesma transcendência, é o princípio do mundo, agora é possível abordá-lo segundo essa presença. Como Deus é absoluto e presente para o ho-mem? Onde se localiza essa presença absoluta?

Em outra passagem freqüentemente citada, Agostinho descreve Deus mediante um jogo de palavras, de difícil tra-dução: "interior intimo meo et superior summo meo." (conf. III vi 11).3 Existe aqui um paradoxo gramatical significativo: o antigo professor de retórica emprega comparativos de supe-rioridade (interior e superior) sobre os respectivos superlati-vos (intimo e summo). O paradoxo trata justamente de assi-nalar, na estranheza da gramática, a inefabilidade do Deus absoluto que é procurado.

Além disso, todavia; é preciso considerar que essa des-crição pode ser desmembrada, exprimindo itinerários relativa-mente distintos na procura de Deus. A sucessão "summum-su-perior summo" assinala um sentido da procura de Deus na consideração do mundo exterior. O olhar deve sempre se diri-gir mais e mais para cima: liberto da mera consideração do corpóreo e da matéria, trata agora de investigar o que está aci-ma disso, transcendente. Ao longo desse caminho ascendente, o espírito que indaga vai encontrando as imagens dos corpos, a alma (anima) que vivifica os animais, a memória, o espírito (animus) que distingue o homem dos outros seres animados

3 A tradutora Maria L. Amarante encontrou uma solução, "desenvolven-do" a concisão do latim: "Tu estavas mais dentro de mim do que a mi-nha parte mais Intima. E eras superior a tudo o que eu tinha de mais elevado." Agostinho, Confusões. S. Paulo: Paulinas, 1984, 4a ed., p. 68.

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etc. Atingido o ponto máximo dessa elevação (summum meum), ainda não será Deus, que está acima (superior) disso.

Mas nos interessa também a singularidade da outra des-crição: "interior intimo meo" — interior ao meu íntimo. For-mula-se aqui um programa agostiniano da procura de Deus: a partir do conhecimento de si, o homem pode chegar ao conhecimento de Deus. É preciso que o homem faça o esforço de conhecer a si mesmo, para então atingir algum conhe-cimento do princípio que o transcende. Convém, então, per-correr esse itinerário, que conduz à introspecção (investigação do homem interior), e depois à sua transformação em conhe-cimento de Deus. Em outras palavras, como a "psicologia", estudo da alma, reconduz à teologia?

De fato, segundo a famosa divisa agostiniana: "Deus e a alma desejo conhecer" (soliloquia I ii 7)"" — são precisamente estes os dois alvos de nosso interesse legítimo: Deus e a alma. Mas aquela divisa mostra ainda, além do binômio Deus-alma, o desejo de conhecer: "desejo conhecer". É esse desejo que preside as duas investigações — psicologia e teologia —, pois radica na inquietude original da constituição metafísica do homem. A psicologia, como capítulo especial de interrogação do homem sobre si mesmo, deverá mostrar em que medida a sua constituição metafísica (entre Deus e o nada, entre Deus e o restante das criaturas, entre Deus e o corpo) é geradora de uma inquietude cujo apaziguamento só será possível através dela mesma, psicologia, filosofia do homem interior, e fundamentalmente, através da teologia, empresa humana de procura de Deus como absoluto e presente. Na verdade, a teologia \é reencontrada no termo da confissão do homem interior, porque esta conduz a uma supressão, já prevista de certo modo no faie de o verdadeiro dinamismo se situar não no homem mas na Trindade divina.

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Corpo, alma, Deus.

O primeiro passo consiste em situar a ̀ psicologia' agostiniana no interior da 'cosmologia'. Qual é, portanto, a situação cosmológica da vontade humana? Pretendemos mostrar que esta situação é privilegiada, mais precisamente, que a vontade desfruta de centralidade. Mas esta centralidade, na verdade a centralidade cosmológica do espírito humano, e por isso da vontade, comporta uma ambigüidade. De uma parte, à medida que tem vontade, o homem é imagem de Deus, e não apenas vestígio como o restante das criaturas; entretanto, a vontade humana é apenas imagem, isto é, é uma vontade finita. Nessa ambigüidade radica a dupla possibilidade de beatitude e pecado, porquanto apenas a seres dotados de von-tade concerne a diferença entre o bem e o mal, apenas para criaturas livres é possível escolher o bem, mas por serem von-tades finitas é também possível não escolher o bem, e nesta medida escolher mal.4

A apresentação da centralidade da vontade deverá ser feita a partir do horizonte delineado no segundo capítulo, a saber, a partir da relação entre fé e razão. O lugar cosmológico das naturezas espirituais, as únicas dotadas de vontade, é um problema decorrente da discussão sobre fé e razão, na medida em que é um campo privilegiado de embate da compreensão agostiniana de racionalidade com as concepções de seus interlocutores mais importantes. Por sua vez, a análise das naturezas espirituais do ponto de vista do livre arbítrio da vontade é estratégica para combater teses adversárias par-

o Por que podemos substantivar o bem, ao passo que não há o mal, mas apenas escolhas mal feitas, será assunto do sétimo capítulo.

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ticulares, mas implica sobretudo articular uma cosmologia cuja racionalidade exibe as limitações e a "imaturidade" do conjunto dos adversários.

É notável que Agostinho esteja sempre empenhado em encontrar a solução verdadeiramente racional para os problemas que se apresentam. A razão precisa ser defendida não porque os interlocutores incorram em fideísmo, mas sim porque apostam numa perspectiva errada para divisar a racionalidade do mundo, porque preservam mal a racionalidade ao contrapô-la à autoridade e à fé. Conforme afirmamos no Capítulo 02, Agostinho recorre às Escrituras segundo um procedimento `axiomático', procedimento decisivo para entendermos a conduta de Agos-tinho face aos problemas da filosofias, e particularmente sua resposta ao espinhoso problema da relação entre livre arbítrio e presciência divina. A questão em torno da qual este pro-cedimento foi inicialmente esclarecido é a relação entre fé e razão; ora, na compreensão agostiniana deste binômio inte-ressa destacar que apenas a um espírito amadurecido é dado compreender que a fé é racional, e que consiste num estágio indispensável e fundamental para o amadurecimento da mes-ma razão. O "animus religiosus" sabe o valor e o alcance da fé, e sabe portanto recorrer à autoridade das Escrituras para en-frentar os problemas com que a razão depara. Assim, se o segundo capítulo foi capaz de apontar a importância do espírito religioso como aquele momento maduro de uma razão que pode enfim se dedicar a investigar a densidade dos dados da revelação, submetendo-se e investi-

s possível ler as Confissões, por éxemplo, tomando como "Leitmotiv" as citações dos Salmos: v. Knauer, G. N. Psalmenzitate in Augustins Konfessionen. Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1955.

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Bando a verdade daquilo que lhe é, afinal, incompreensível, caberá agora desenvolver o que é o animus religiosus. Em par-ticular, será indispensável salientar seu caráter fundamental-mente dinâmico, sua possibilidade de amadurecimento. Será proveitoso, do ponto de vista de Agostinho, fazê-lo no campo cosmológico, porquanto a ordem universal situa como núcleo justamente as naturezas espirituais. Com efeito, a ordem universal deve ser pensada como ordem di-nâmica, e o dinamismo do espírito, sua vontade, deve ser re-conhecido como modelo de todos os outros movimentos. Em outros termos, é possível que a compreensão de por que a si-tuação do espírito religioso é privilegiada se realize não mais apenas do ponto de vista de sua própria experiência e trajetó-ria, particularmente no jogo entre fé e razão, mas também em virtude de uma racionalidade que governa todo o mundo das criaturas. Trata-se de mostrar que ele é igualmente nú-cleo e modelo desta racionalidade. "(...) nele [no homem] culmina a criação, na medida em que em seu espírito — dife-rentemente dos seres desprovidos de razão — o todo se espelha, é reconhecido como ordem legal e dotada de finalidade."6

Sabemos que a leitura axiomática das Escrituras não quer dizer que Agostinho proponha que o assentimento suprima a investigação. Trata-se de enfrentar as objeções à verdadeira fé cristã também no terreno da exegese': exatamente

6 "in ihm kulminiert die Schöpfang insofern, ais in seinem Geiste — zum Unterschiede von den vernunfilosen Wesen — sich das Ganze spiegelt, ais gesetzliche, zweckvolle Ordnung erkannt wird." Mausbach, Die Ethik des heiligen Augustinus. Freiburg in Breisgau: Herdersche, 1909, vol. I, p. 155.

7 "Verdadeira fé cristã" porque Agostinho combatia outras confissões pre-sumidamente cristãs: os maniqueus, por exemplo.

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porque as Escrituras são a expressão da Verdade, é preciso que a alma racional finita se detenha sobre elas para tentar entrever ali, na verdade de suas sentenças temporais, um signo da Verdade suprema. Ora, nas Escrituras Agostinho encontrará material para desenvolver sua polêmica com os maniqueus, importantes adversários: do nosso ponto de vista, importantes em virtude do racionalismo infantil que professavam, temendo toda e qualquer autoridade como ameaça à razão; ao racionalismo, dissemos no capítulo 2, se somava o 'materialismo', isto é, uma tal compreensão do mundo, que atribuía natureza exclusivamente corpórea ao mundo e, segundo eles, aos seus dois princípios.

Comecemos a exposição pela tríplice "distribuição das naturezas", proposta na epistola XVIII, dirigida a Celestino, a quem Agostinho também confiava a leitura prévia de textos seus contra os Maniqueus (cf. ep. XVIII 1).

Deus natureza imutável ser supremo beatitas

naturezas naturezas mutáveis seres beate ou espirituais segundo o tempo medianos misere

naturezas naturezas mutáveis seres nem beate corporais segundo tempo e lugar ínfimos nem misere

A distribuição pode ser comentada em quatro passos. Primeiro, a distribuição se faz segundo a mutabilidade: há aquelas naturezas que mudam conforme o lugar e o tempo — as naturezas corporais; aquelas que mudam apenas no tempo — as naturezas espirituais, cdmo a alma racional do homem; e aquela que não muda nem conforme o lugar, nem conforme o tempo — Deus.

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Em segundo lugar, é possível traçar uma linha demar-catória entre, de um lado, as duas primeiras — corpo e alma — e, de outro, Deus, separando as naturezas mutáveis da natu-reza imutável. As criaturas são mutáveis; imutável, o Criador.

Esta segunda divisão, ainda que decisiva, pode dar lu-gar momentaneamente a outra, novamente tríplice, baseada agora no fato de que o ser concerne a todas as três naturezas. Isto permite separá-las, e também considerá-las segundo uma escala. Com efeito, do ponto de vista do ser, as naturezas se distribuem segundo uma escala: aquela natureza que é de modo supremo, aquelas que são de modo ínfimo, e aquelas que são de modo mediano. É notável que tal escala só com-porte, na verdade, um grau: a alma, entre dois extremos — o ser supremo e os seres ínfimos. A alma é descrita como tão-somente inferior ao ser supremo, e superior as seres ínfimos.

Ora, a situação da alma racional é definida até aqui ape-nas como ponto médio, aquilo que é menos que o supremo e mais do que o ínfimo. Vejamos o quarto passo da carta. Im-porta-nos comentar a cosmologia agostiniana como hierar-quia, traço que já pode ser identificado na escala dos seres (summe, medie, infime), mas também como hierarquia dinâ-mica: neste quadro a vontade da alma racional e seu livre arbí-trio poderão ser adequadamente caracterizados. Com efeito, o "supremo ser é a própria beatitude"vii", isto é, a hierarquia dos seres coincide ou converge em seu ápice com uma hierar-quia de ordem moral. Isto se traduz no extremo superior como coincidência, no outro, no dos seres de mínimo grau, como completa alteridade: ao ínfimo não concerne a beatitude, isto é, nem pode ser feliz (beatum) nem miserável (miserum). Finalmente, o que corresponde à alma, natureza mediana?

Se antes a medianidade era uma situação apenas, ago-ra, acrescentada a dimensão moral, a medianidade é também dinamismo. O mediano não apenas está situado entre o su-

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premo e o ínfimo: ele ou se inclina para o ínfimo, que lhe é inferior, ou se converte para o supremo8. No primeiro caso, vive miseravelmente (misere); no segundo, vive segundo a beatitude (beate). Advirta-se que o dinamismo está presente na alternativa entre dois movimentos, inclinação ou conver-são, mas especialmente no fato de ele ter de se mover em uma ou outra direção. A terceira virtual possibilidade, voltar-se para si mesmo, equivalente a não se mover, redunda também em miséria: "Quem crê em Cristo não ama o ínfimo, não se ensoberbece no mediano, e desse modo se prepara para ade-rir ao supremo".'X

Nos breves termos da epistola XVIII é possível ao me-nos entrever a ambigüidade da alma racional como imagem do Criador. Vimos que Agostinho logo após a primeira tríplice distribuição trata de situar a alma humana entre as criaturas; mas o último movimento, que glosa os graus de ser segundo o ponto de vista moral, permite traçar outra linha demarcatória, agora separando, de um lado, as criaturas cor-porais, e de outro a alma e Deus. Se antes a divisão concernia à diferença entre criaturas e Criador, agora o critério é estar

e Cf. De spiritu et littera xxxiii 58: "liberum arbitrium naturaliter adtributum a creatore animae rationali illa media uis est, quae uel intendi ad fidem uel inclinari ad infidelitatem potest". "O livro arbítrio por na-tureza atribuído à alma racional pelo criador é a força média que pode ou ser tencionada para a fé ou ser inclinada para a infidelidade". Como traduzir adequadamente o contraste entre intendi, que faz alusão à intentio (v. cap. 6), e inclinari, que faz alusão à queda? Cf. en. Ps. VII 19: "qui ergo deserit eum a quo factus est, et inclinatur in id unde factus est, id est in nihilum, in hoc pec ato tenebratur". "Quem deixar aquele pelo qual foi feito e se inclinar para aquilo a partir do qual foi feito, isto é, para o nada, por causa deste pecado ficará nas trevas" (grifos nossos).

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ou não no campo moral, ter ou não relação com a beatitude. Deus é a beatitude, a alma racional pode viver segundo a beatitude; as naturezas corporais simplesmente são alheias a isso, nem podem ser felizes nem deixar de sê-lo.

Primado da forma e primado do espírito Permaneçamos ainda um pouco no exame da hierar-

quia cosmológica como hierarquia fundamentalmente dinâ-mica (moral). Esta concepção pode ser encontrada na leitura agostiniana das Escrituras. Ao comentar o Gênesis, tendo no horizonte a necessidade de expor uma providência universal e única, Agostinho tem de, primeiro, assinalar a natureza incorpórea, imaterial e atemporal de Deus e do ato mesmo da criação. Figuram assim no primeiro plano da exegese os comentários do Princípio e da Luz.' Mas importa salientar aqui que a criação, presidida por uma providência una, parece significar para Agostinho a duplicação da operação divina. Deus faz a partir do nada, e ordena o que fez.

Assim, a ambigüidade da natureza humana pode ser projetada em um quadro mais geral, vale dizer, no ato criador segundo o início do livro do Gênesis. A exegese agostiniana dos primeiros versículos discrimina duas operações na cria-ção: a produção das criaturas como algo outro do que Deus mesmo, e a sua ordenação. As criaturas são produzidas a par-tir do nada e são, como produtos extraídos do nada, inteira-

9 Cf. Gênesis I i 1 e 3: "in principio fecit deus caelum et terram (...) dixit deus: fiat lux. et facia est lux." "No princípio, Deus criou o céu e a terra. (...) Deus disse: `Haja luz' e houve luz." (texto latino conforme Gn. litt. i 3; tradução: Bíblia de Jerusalém).

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mente apartadas do Criador; comportam porém certa ordem, certa organização. Dessemelhantes como criaturas, guardam semelhança com o Criador pelo fato de serem ordenadas.

Esta é contudo uma semelhança estática, e por isso mesmo pobre. O ato criador tem uma dinâmica (de produção e ordenação) que as criaturas palidamente imitam ao serem ordenadas e assim permanecerem. A permanência na ordem é o máximo de semelhança que podem atingir (cf. Gn. litt. I viii 14). Outra será a situação das naturezas espirituais. Por quê? Aqui entra em jogo o binômio forma e matéria.

A dinâmica do ato criador estabelece o primado da forma sobre a matéria. Toda criatura é um composto de ma-téria e forma, mesmo as almas dos homens. Para entendê-lo é preciso discriminar cuidadosamente o sentido de matéria e forma em Agostinho. Matéria quer dizer tão-somente a existência dependente, ser algo diferente de Deus e excluído do nada. O ato criador (imaterial) resulta, num primeiro pla-no, em matéria informe: a criação gera matéria, toda criatura é matéria.

A forma significa o grau de ordem atribuído à matéria, a posse de algum vestígio de Deus. Enquanto a matéria informe significa a dessemelhança, ser, mas não ser perfeitamente, apenas a partir do ser perfeito, a forma é a conversão desta matéria para o ser perfeito, isto é, o grau de semelhança que a matéria formada pode ter com o criador. Esta semelhança com Deus vem a ser o modo como a criatura, formada, encontra seu lugar na hierarquia da criação. (cf. Gn. litt. I ii 4 — v 11; IV xvii 29 — xviii 36)

Toda criatura é pois matéria e forma: matéria porque existe como criatura, e forma porque está inscrita na ordem universal. Por isso, corpo e'matéria não podem ser identifi-cados, confundidos um com o outro. Todo corpo já comporta além da matéria alguma forma, é um conjunto de matéria

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e forma. Tampouco o espírito deve ser identificado com a forma: ele também é composto de forma e matéria — matéria incorpórea, bem entendido, mas matéria, no sentido em que seu ser é derivado, extraído por Deus do nada. Sendo assim, espírito e corpo são criaturas, compostos de matéria e forma.10

De onde provém, portanto, a associação privilegiada entre corpo e matéria? Há uma diferença decisiva entre corpo e espírito. O corpo é estático como a matéria, ao passo que o espírito é dinâmico como a forma. O primado da forma sobre a matéria resulta, assim, no primado do espírito sobre o corpo, porque cada um, corpo e espírito, se assemelha a uma de suas duas dimensões metafísicas. O corpo tem forma, mas é estático como a matéria. O espírito criado tem matéria, mas acompanha o dinamismo criador da forma, em razão da possibilidade de se mover — ou rumo às naturezas corporais, ou rumo ao Princípio criador.

Voltemos à ep. xviii. Para toda criatura, corpórea ou espiritual, o "ser" não é idêntico a "viver", tampouco a viver beate (segundo ou rumo à beatitude). "Ser" significa apenas ser mais do que nada, tão-somente matéria; todas as criatu-ras recebem ainda forma, de sorte que vivem, permanecem no ser ordenadamente. Agora, as naturezas corporais, dotadas já de forma, são e vivem, mas a elas não concerne `viver beate'. Apenas as naturezas espirituais podem ser e viver beate, isto é, conforme àquele movimento de ordenação. É da natureza de cada criatura corporal ser o que é e se manter as-

i° Gn. litt. V v 13.: "segundo uma ordem causal primeiro foi feita a maté-ria informe e formável, tanto espiritual quanto corporal, da qual foi feito o que deveria ser feito". "causali ordine prius facta est informis formabilisque materies, et spiritalis et corporalis, de qua fieret, quod faciendum esset':

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sim; é da natureza da alma racional não se manter, sua natu-reza dita que se mova, que melhore, que se aproxime sempre de seu Criador.

Vontade e peso

Podemos dizer que a vontade ocupa lugar privilegiado na cosmologia agostiniana porque é ela o que distingue as naturezas espirituais, é ela que impulsiona o movimento, ou como inclinação para o inferior, ou como conversão para Deus. Se a ordem universal é dotada de dinamismo originá-rio, porquanto constitui o movimento de conformação das criaturas não mais como mera matéria informe, mas já segun-do certa semelhança corn o criador, as criaturas dotadas de dinamismo são ainda mais semelhantes, à medida que seu dinamismo consiste justamente em poder acompanhar o im-pulso de conversão à ordem.

Esta caracterização da alma racional vem a corroborar e completar aquele movimento de purificação, apresentado no primeiro capítulo. Agora, aquilo que fora apresentado so-bretudo na ordem do conhecimento (da Lógica, como assi-nalamos na Introdução) pode ser visto na ordem do ser (da Física), assinalando igualmente o domínio da moral (da Éti-ca)." No plano da Física, a vontade da alma racional, ima-gem de Deus, pode ser descrita como seu peso natural; seu

II É notável como estes dois glanos, do conhecimento e do ser, bem como imediatamente o plano da moral, se entrecruzam no texto breve, e por isso mesmo denso, da famosa quaestio de ideis (diu. qu. xlvi 1-2). Texto e tradução podem ser encontrados nos Cadernos de Trabalho CEPAME II(1993) 6-11.

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peso a desloca, seu movimento é ou movimento em direção ao centro, à origem, ou é um movimento contrário ao peso natural. "Pois o corpo é levado pelo peso assim como o espí-rito é levado pelo amor, onde quer que seja levado".

Traduzir, entretanto, a vontade como peso, no intuito de inscrever o movimento da alma racional num cenário cos-mológico, não deve nos levar a tomar a metáfora contraria-mente à intenção de Agostinho. Não se trata de assimilar o movimento voluntário do espírito aos movimentos corpó-reos. "O mundo físico é comparado ao espiritual, não o in-verso"» Com efeito, qualificar a vontade como peso permi-te assinalar que as criaturas corpóreas, ao `tenderem' ao seu lugar natural, realizam um movimento que se assemelha ao dinamismo das naturezas espirituais, estas sim se movendo voluntariamente rumo ao Princípio.

Assim, ainda que a metáfora remeta à dimensão física, não podemos perder de vista sua dimensão moral. A Sabedo-ria divina, criadora em sua bondade, tem uma imagem no amor da alma racional, e apenas vestígios nos pesos dos cor-pos. O livre arbítrio da vontade não é apenas um entre ou-tros movimentos; é justamente através dele, na verdade, que o homem é mais do que vestígio, através dele o homem é imagem de Deus. Se a ordem universal é dinâmica, a quali-dade dos movimentos pode diferenciar as criaturas. O ho-mem move-se fisicamente, tal como um animal ou uma pe-dra, mas seu principal movimento, ou seu principal impulso de movimento, não é este. "0 meu peso é o meu amor" (conf.

12 "Die physische Welt steht im Gleichnis zur geistigen, nicht umgekehrt", Bernhart, em nota ao Livro XIII das Confissões: Confessiones-Bekenn-tnisse, Munique: Kôsel, 1955, p. 912-3.

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XIII ix 10)X'. Isto quer dizer que o fundamental é o movi-mento moral, o amor. As criaturas, derivadamente, têm peso, mas apenas peso involuntário; o homem tem o privilégio de se mover segundo a sua vontade, isto é, a sua vontade já é o seu movimento.

Hierarquias Considerando mais de perto a ordem estabelecida na criação, o espírito humano pode divisar uma hierarquia mais complexa do que a dicotomia entre naturezas corporais e naturezas espirituais. No estudo desta hierarquia se adensa o sentido do dinamismo espiritual, traduzido fundamentalmente como vontade. Não se trata de negar aquela dicotomia, mas sim de examinar degraus internos que proporcionam como que apoio ao progresso do espírito. Quando tratamos da relação entre razão e fé, insistimos na caracterização da fé como momento maduro do espírito, alma dotada de razão. Este amadurecimento é resultado do dinamismo próprio às naturezas espirituais, dinamismo que pode ser encontrado no exame racional do universo criado. Assim, mais do que um dinamismo inscrito nas naturezas corporais, nelas o espírito racional divisa o seu próprio dinamismo. A multiplicação e a classificação das operações da alma foram objeto de diversas obras de Agostinho, comportando em alguns casos um detalhado escalonamento. Assim, o De animae quantitate (xxxiii 70-79) distingue entre animatio, sensus, ars, uirtus, tranquillitas, ingressio e contemplatio; o De doctrina christiana (II vii 9-11), entre timor, pietas, scientia, fortitudo, consilium, purgatio condis e sapientia.13

Interessa-nos aqui, entretanto, uma divisão que, embora mais econômica, propicia um tratamento elucidativo da

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situação da vontade humana do ponto de vista cosmológico. Voltada para Deus, cabe à alma tentar conhecê-lo. Admitin-do desde logo que Deus é o princípio de todas as coisas, cabe à alma procurar nelas os vestígios do Criador, vestígios que serão apoio para seu impulso em direção a ele. Trata-se de de-cifrar, segundo os termos da Epístola aos Romanos 1, 19-21, nas coisas visíveis, os signos das coisas invisíveis de Deus.

Precisamente na `prova da existência de Deus' desen-volvida no II Livro do De libero arbitrio, Agostinho expõe uma hierarquia prospectiva, isto é, uma hierarquia segundo a qual os degraus inferiores remetem a degraus superiores. Assim, retoma a escala corpo/alma/Deus, e o dinamismo ali embutido.

Manejando recortes diferentes, Agostinho toma agora como ponto de partida a distinção entre ser/viver/inteligir, distinção que espelha a diferença entre corpos inanimados, corpos animados e seres racionais. Essa distinção dá ocasião a um exame inicialmente retrospectivo: é a natureza espiritual, dotada de inteligência, que examinará as naturezas que lhe são inferiores. Uma vez que ela também é e vive, o fato de inte- ligir lhe dá superioridade e condições de abranger as demais.

Em linhas gerais, num sinuoso diálogo com Evódio, Agostinho distingue dois níveis nas almas irracionais — os sen- tidos externos e um sentido interno — e três níveis na ativida- de da alma do homem: os sentidos externos, o sentido inter- no e a razão. Além disso, a análise de cada nível faz com que o espírito racional dirija sua atenção para um nível superior. A inteligência é capaz de ordenar hierarquicamente sua expe-

13 E. Gilson propõe uma análise destas classificações, como complemen-tares entre si. v. Gilson, E. Introduction à l'étude de saint Augustin. Pa-ris: Vrin, 2a ed., 4a tir., 1987, p. 160.

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riência, de forma que já nos degraus mais baixos o espírito encontra remissão a degraus superiores.

Em primeiro lugar, já o corpo significa para os homens uma primeira operação da inteligência, pois os sentidos ex-ternos, ao se voltarem para o mundo, informam segundo os diferentes domínios da sensibilidade, e este exercício da sen-sibilidade implica mais do que a presença do mundo corpó-reo. A experiência com o corpo é signo de um sentido 'inte-rior', e também signo da atividade da razão. Por quê?

Em primeiro lugar, porque ao ver, ou ouvir, se reali-zam duas operações: o contato com uma informação sensí-vel, somado a uma reação positiva ou negativa a essa infor-mação. Mesmo entre os animais irracionais o ato de ver, por exemplo, implica também um julgamento sobre o que foi visto, julgamento que se exprime como apetite ou rejeição. Sendo assim, até mesmo no, tocante às almas irracionais, é cabível distinguir entre os sentidos externos, e um sentido in-terno, interior a eles, que realiza este julgamento.

Em segundo lugar, a experiência com o corpo propor-ciona à razão uma remissão prospectiva, para além do corpó-reo, porque ela pode distinguir três planos: o sensível, o exer-cício do sentido e a pura existência do sentido; ou um `objeto' visto, a visão em ato de tal objeto, e a mera capacidade de ver, em ato ou não.

Ora, nem a reação (apetite ou rejeição), nem a distin-ção tríplice entre o conteúdo (ou `objeto'), o sentido em ato e sua mera existência (como capacidade) pertencem à sensibi-lidade. Para tanto, é necessária a vigência de outra(s) instân-cia(s). No primeiro caso, o sentido interno; no segundo, um degrau ainda superior: a razão.

Os animais, como dissemos, reagem ao mundo sensí-vel: essa reação já configura uma instância anterior, ou in-terior, que julga o conteúdo sensível. Nos homens, deve ha-

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ver igualmente um sentido interior que ordena a reação à sensibilidade. Além disso, a multiplicidade mesma dos senti-dos atesta seu exercício diferenciado, segundo domínios próprios. Cabe à visão ver, à audição escutar, e assim por di-ante. Mas não cabe à visão saber que é ela quem vê, e que é a audição que escuta, e assim por diante. Deve haver pois no espírito racional uma operação destacada da mera sensibili-dade, de forma a discriminar, distribuir e ordenar os conteú-dos sensíveis.

Importa-nos aqui sublinhar dois elementos no interior da discussão entre Agostinho e Evódio. Em primeiro lugar, o exame da atividade anímica indica níveis diferenciados: não pertence à atividade dos sentidos externos perceberem a si mesmos [sentire se] como sentidos externos; isto pertence ou ao sentido interno, quando se trata do mero apetite ou rejei-ção, ou à razão. Analogamente, o sentido interno não se per-cebe como sentido interno; percebe os sentidos externos, mas não conhece senão indiretamente sua própria operação. Fi-nalmente, a razão, que conhece os sentidos externos, o senti-do interno, e conhece a si mesma.

Ora, estas discriminações trazem consigo uma nítida subordinação entre as diferentes atividades; mas, além disso, é importante notar o modo como Agostinho caracteriza esta subordinação.

Interioridade

O segundo elemento que tencionamos sublinhar é o fato de a superioridade da razão vis a vis os sentidos externos e o sentido interno consistir na sua capacidade de pensar a si mesma, de voltar-se para si. Esta capacidade acrescenta um elemento à dinâmica cosmológica: o vetor interiorizante.

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A progressão da hierarquia, além de ascendente, pode ser apresentada também como interiorizante. Com efeito, sob uma linguagem espacial, opondo exterior a interior, Agosti-nho mostra que um degrau é tanto melhor, mais refinado, quanto mais ele corresponde ao verdadeiro ser, à pura identi-dade, limite onde já não há diferença, contraste algum. Ora, é sob esse critério que o espírito humano, ao investigar o mundo e ser levado ao seu criador, encontra a si mesmo como momento privilegiado desta trajetória: ao pensar a si mesmo, pensa aquele que pensa, e encontra uma imagem, ainda que imperfeita, da identidade.

A dimensão interior desta dinâmica cosmológica será importante também para o melhor entendimento de por que o pecado consiste em perversão, e por que a conversão, como subordinação à vontade de Deus, não ofende a autenticidade da vontade como vontade livre. Mais adiante, no sétimo ca-pítulo, voltaremos expressamente ao problema do pecado e do livre arbítrio. O que se impõe agora sublinhar é o interesse que Agostinho pode encontrar no exame do conjunto da criação. Se nele está impressa a sabedoria divina, o princípio ordenador, nele se começará a busca. A partir daí, a atenção volta-se para o homem interior, lugar privilegiado do reco-nhecimento da presença divina. "Reconhecimento", bem en-tendido, pois não se deve esperar que o homem apreenda completamente o que é Deus: as pretensões do esforço con-fessional são de certo modo inalcançáveis.

Com efeito, o primeiro capítulo das Confissões apresen-ta uma tensão entre a invocação e o conhecimento divino: o problema consiste na aparente circularidade entre uma e ou-tro. Para invocar corretamente, tenho de conhecer o que in-voco; mas não posso deixar de invocar para conhecer. Portan-to, o que vem antes, invocar ou conhecer? O interesse dessa discussão repousa, para este capítulo, em que a solução14 de

INTER IOR IDADE NA COSMOLOGIA AGOSTI N IANA 191

Agostinho, convertendo a aparente circularidade em expres-são de um esforço incessante, dirige a atenção sempre para o interior, isto é, da fé ao que é dado exteriormente a teologia conduz à in-vocação e à inte-lecção.15

De fato, o caráter incessante do labor humano em di-reção a Deus não compromete a orientação precisa dessa busca. O jogo entre as possibilidades e a vontade se dá num diálogo entre a fé e a inteligência, e explica essa trajetória re-corrente na obra de Agostinho; mais do que recorrente, essa trajetória da natureza ao Criador, cujo estágio mais notável é o homem, consiste no plano geral de textos importantes como o décimo livro das Confissões, ou o conjunto dos livros Sobre a Trindade (De Trinitate)16

Para Agostinho, a vontade não é mitigada pela consta-tação das possibilidades, como poderia fazer crer a modéstia na investigação da trindade divina: "pois me lembro não ape-nas da vontade, mas também da minha própria infirmeza" (trin. V i 1)X"; antes, a vontade incita a que as possibilidades

14 Solução construída, como tantas outras vezes, mediante a mescla sutil de textos escriturísticos. Nessa passagem em particular, o trabalho de Agostinho praticamente se resume a "costurar" textos de modo a de-sembocar na solução.

15 "0 texto bíblico apenas admoesta a que se obtenha o entendimento interiormente". — "Der Bibeltext ermahnt nur, das Verstehen inwendig vorzunehmen". Mayer, C. P., Die Zeichen in der geistigen Entwicklung und in der Theologie Augustins (Die Antimanichaische Epoche). Würzburg: Augustinus-Verlag, 1974, p. 44. 0 recurso à composição "etimológica" das palavras é do próprio Agostinho, explicitamente em conf. I i 1, ou mais discretamente em trin. XV i 1-2.

1' Para uma visão de conjunto da obra, e do desenvolvimento de uma estratégia bem definida, Agostinho oferece uma sinopse no começo do último livro: trin. XV iii 5.

Identidade
Highlight
Ora, é sob esse critério que o espírito humano, ao investigar o mundo e ser levado ao seu criador, encontra a si mesmo como momento privilegiado desta trajetória: ao pensar a si mesmo, pensa aquele que pensa, e encontra uma imagem, ainda que imperfeita, da identidade.
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sejam sempre testadas, exigidas, como que vasculhando solu-ções imprevistas. Para isso, como dissemos, é importante o diálogo entre a fé e a inteligência; sem ele, o esforço humano perde um impulso decisivo.

Isso garante que a investigação não seja errática, mas se aprofunde: a fé dá o sentido da busca, que o intelecto preenche parcialmente: sempre mais e mais para o alto, procurando indí-cios daquele que criou o mundo e sua beleza, sempre mais e mais para o íntimo, procurando a imagem do criador no espírito humano. Assim, o "material" para a busca dessa inteligência é, a princípio, o mundo das criaturas. Nele Agostinho seleciona o homem, mais precisamente, o homem interior, para então finalmente nada mais restar senão o mesmo Criador. Esclarece-dor desse roteiro é o sermão de "Comentário do Salmo XLI", em particular os parágrafos sétimo e oitavo (en. Ps. XLI 7-8)17.

Ali, para responder ao desafio "onde está o teu Deus?" (Cf. Salmo XLI 4), Agostinho segue a indicação da Epístola aos Romanos: "as coisas invisíveis de Deus, inteligíveis, são vis-tas através daquelas que foram feitas (en. Ps. XLI 7; cf. Epísto-la aos Romanos I 20)".X"' Mas por que o olhar sobre o mundo, cujo propósito é se refinar para contemplar Deus, resulta na investigação do homem? Por que Deus se localiza preferen-cialmente no homem ("onde está o teu Deus?")?

Aqui, aquilo que acima fora caracterizado como situação mediana (cf. ep. cxviii), será desenvolvido. A alma racional é a alma daquele que olha, daquele "que procura tais coisas" (cf. en. Ps. XLI 7). A posição do homem no topo da escala da criação se justifica então pela capacidade de olhar e reconhecer,

17 A interpelação da criação, resumida no sermão de Comentário do Salmo XLI, é desenvolvida minuciosamente no início do décimo livro das Confissões.

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na beleza inscrita no mundo, em coisas que "nem são terrenas, já são celestiais" (ibid.), a atividade de um artífice supremo.18 Entretanto, devemos olhar mais de perto a posição destacada do homem como objeto de sua própria consideração, para entender melhor o significado da primazia da interioridade.

"Não há abuso nenhum em supor que toda a cri-ação se contém no próprio homem (...) porque ele se compõe de espírito, de alma e de corpo". (exp. prop. Rm. LIII).xi'

A reunião das três "naturezas" no homem sinaliza por que o homem será objeto privilegiado de estudo, porquanto mostra que a oposição exterior/interior não tem caráter espacial, mas sim se subordina à oposição alteridade/identidade. Com efeito, a procura do Criador, simples e indiviso, se refina se o objeto de consideração já não é tão distante daquele que olha; a "reflexão" será então um grau superior de semelhança com a absoluta identidade de Deus consigo mesmo."

18 "De onde consideraste [os corpos]? Que se apresente o próprio considerados. Pois aquele que considera tudo isso, discrimina, distin-gue e, de certo modo, estima na balança da sabedoria, é o espírito". unde consideraste [corpora]? ipse considerator appareat. ipse enfim considerator istorum omnium, discriminator, distinctor et quodammodo appensor in libra sapientiae, animus est.". Io. eu. tr. XX 12.

i9 "(...) l'Être, identité et ressemblance parfaite; le néant, altérité et dissem-,ance totale". (Gilson, E., Notes sur l'être et le temps chez saint Au-gustin, Recherches augustiniennes 2, p. 205-23. Paris: Etudes Augus-tiniennes, 1962, p. 215). Mas a participação e o grau de afastamento com respeito ao Nada se explicam em termos de grau de semelhança, cujo ponto supremo é a identidade perfeita do Verbo com Deus (cf. Gilson, op. cit. p. 215-6). v. Gn. litt. inp. XVI 58. uera rel. 26, 66.

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Quando a atenção se volta para o homem como criatura privilegiada, não se trata a princípio do homem "interior": o homem tem corpo e alma, e o corpo não pertence ao `homem interior'. Mas o corpo mesmo já não é apenas alteridade, é também o homem mesmo. Se exploramos a gradação sugerida pelo comparativo "interior", vemos que o corpo do homem não é ainda o "intimo" (superlativo de intus), mas é já mais próximo dele do que o mundo "exterior"; isto é, com-parativamente, o mundo é objeto inferior de consideração, porque sua alteridade (exterioridade) com respeito àquele que o examina é maior do que a alteridade do corpo. Este não é ainda o íntimo, mas já é aquele mesmo que os considera. "Volto para mim mesmo, e perscruto quem sou, este que pro-cura tais coisas: descubro que tenho corpo e alma". (en. Ps. XLI 7, grifos nossos).

Primazia do homem interior.

Examinando o homem segundo esse itinerário, Agostinho se debruça sobre o homem interior, aquele sem o qual os sentidos do corpo são apenas "janelas da mente", que de-pendem da atividade do espírito, pois "está no interior aquele que vê através delas; quando afastado de todo pensamento, em vão elas mostram" (ibid.)" . Com efeito, "em virtude da transcendência absoluta da alma com respeito ao corpo, santo Agostinho não pode admitir que o sensível seja recebido, do objeto, na alma; a sensação e a imagem são imediatamente, pois, produtos diretos do pensamento"20.

20 "... en vertu de la transcendance absolue de l'dme par rapport au corps, saint Augustin ne peut admettre que le sensible soit reçu de l'objet dans

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Todavia, a atividade humana não será suficiente. A inflexão para o homem interior é conseqüência, como dissemos, da tensão entre a vontade e as possibilidades humanas. É preciso agora acrescentar que, ao falar em possibilidades, Agostinho não se refere apenas às limitações do homem: ali estão incluídas também as condições positivas para decifrar a inteligibilidade do mundo e a presença do absoluto como "in-terior intimo meo". Ao se dirigir ao homem interior, a confzs-sdo encontra também a marca do socorro divino, iluminação a ser conquistada ou reconhecida. Isto é, ao perguntar o que posso, pergunto também pela presença que assegura o encontro daquilo que busco. Por isso, a vontade de conhecer a alma, e Deus, do qual ela é imagem, se funda também nas possibilidades humanas, "pois o mesmo Deus que procuramos nos ajudará — assim espero — para que nosso trabalho não seja infrutífero" (trin. XV ii Como então se traduz o esforço em interiorização? Ocorre que, ao caracterizar o esforço de procura como procura de uma imagem, está suposto o sentido da busca: o mundo em geral como conjunto de "indícios" dá lugar ao espírito humano como "imagem". Com isso, progride a "interiorização". A medida que diminui a dessemelhança, aumenta a semelhança. A primazia do homem interior justifica-se, então, por ora, no fato de a consideração do corpo pelo espírito e a reflexão do espírito sobre si mesmo aprofundarem a coincidência, símile da perfeita identidade de Deus consigo mesmo.

l'âme; la sensation et l'image sont donc immédiatement des produits directs de la pensée." Gilson, E., Introduction à l'étude de saint Augustin. Paris: Vrin, 1987, 2a ed., 4a tir., p. 113. "l'âme augustinienne (...) est agente As la sensation". id. ibid. p. 114 (n. 2 à p. 113).

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"[A alma] chama a si mesma de volta das coisas exteriores para as interiores, das inferiores para as su-periores, e diz: "Louva o Senhor, minha alma" (Salmo CXLV 1). (...) a alma racional, constituída em certo lugar médio, recebe a lei de aderir ao superior e co-mandar o inferior. Não pode comandar o inferior, a menos que seja comandada pelo que é melhor. Atra-Ida pelo inferior, abandonou então o melhor. Não pode comandar o que comandava, porque não quer ser comandada por aquele que a comandava." (en. Ps. CXLV 5, grifos nossos)" '̀" .̀

A orientação para a origem realiza-se, pois, num pri-meiro plano, como atenção ao homem interior. A resposta ao apelo do absoluto começa não pela teologia, mas pela "psi-cologia", porquanto a mediania do homem entre Deus e as demais criaturas se exprime perfeitamente na mediania do espírito entre o corpo e Deus. Para reconhecer a iluminação divina, será preciso modificar o olhar: assim, segundo o Co-mentário do Salmo XLI:

.. o espírito mesmo, para se conhecer, se vê. Decer-to, para que se veja, não procura a ajuda dos olhos corporais; na verdade, de todos os sentidos do corpo (como se fossem obstáculos e ruídos) se retrai junto a si, para que se veja em si, para que se conheça junto a si" (en. Ps. XLI 7)X'X

A introspecção é, na verdade, desse ponto de vista, uma preparação. O homem aproxima-se de si mesmo, porque de outro modo não poderia pretender se aproximar de Deus: "Pois se tu mesmo estás longe de ti, de onde podes te aproxi-mar de Deus?" (Io. eu. tr. XXIII 10)m. Antes de procurar Deus

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é preciso procurar o que, no homem, é mais próximo de Deus. A excelência do homem face ao restante dos animais ganha assim uma interpretação que generaliza essa primazia por sobre o conjunto da criação divina: a mente é melhor do que o corpo "porque decerto não no corpo, mas sim na mente mesma é que o homem foi feito à imagem de Deus" (ibid.).x"

E por que apenas o homem, a mente ou espírito, é ima-gem de Deus, por que esse estatuto diferenciado? Já nos refe-rimos a este problema acima, ao comentar a vontade como peso do homem. Queremos agora salientar um aspecto deste privilégio que concerne diretamente ao tema da interiorida-de. Por que não simplesmente, como o restante da criação, indício, vestígio? Porque sua atividade tende a reunir a mul-tiplicidade, a dispersão. De fato, como se comunicam a me-mória e o pensamento? Este comanda àquela imagens de que necessita, conforme sua atenção varia de uma coisa a outra, e esta lhe mostra as imagens que permaneceram escondidas até que uma mudança "intensional" se produzisse nele. É claro que há variação da atenção, mas agora o relevante é que não há a mediação de signos: a comunicação é interna, como que imediata.

Naquele plano do qual o espírito humano é apenas imagem, essa comunicação é perfeita. Entre as duas primei-ras pessoas da Trindade se dá também uma relação de imediação, mas com a diferença e a vantagem de que, ali, tudo pertence a um regime de interioridade total:

"O Pai não recebe do exterior o que mostra ao Filho; tudo se passa no interior, pois não haveria ne-nhuma criatura no exterior se o Pai não a tivesse fei-to mediante o Filho." (ibid. 11, grifos nossos)".

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A rigor, mesmo o ver, o mostrar, o fazer e o criar, em Deus são uma e a mesma coisa. É essa interioridade integral o anelo da introspecção.

Os degraus da alma Podemos pensar agora uma outra razão, talvez mais precisa, para a primazia do homem interior. Ele não é apenas o termo de uma introspecção, o "íntimo" superlativo além do qual só o absoluto pode ser encontrado. O homem interior reúne em si as fases anteriores do caminho: de certo modo, no espírito o homem se apropria daquilo que aparece como exterior, e nessa medida o interioriza. Dizer que o homem "se compõe de espírito, de alma e de corpo" (exp. prop. Rm. LIII), significa dizer que ele pode apreender como seu aquilo que antes era apenas alteridade. Pois a reunião das três "naturezas" no homem faculta a experiência de cada uma delas como própria, e, na verdade, como dependente da atividade da alma humana. Tal é, nos parece, o sentido da minuciosa apresentação, no De animae quantitate, de sete degraus ou "operações" ("actus") da alma, que progridem, ou ascendem, da mera animação vegetativa do corpo até a contemplação de Deus. A alma humana realiza uma série de operações que exprimem, em conjunto, o seu papel mediano, fio condutor da natureza humana entre o nada e o princípio criador. Para explicar isso, talvez seja útil a reprodução esquemática das alternativas de exposição propostas por Agostinho, ao encerrar a explicação em separado de cada "actus" da alma, em an. quant. )OOWV 79.

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I II III

1) animatio de corpore pulchre de alio 2) sensus per corpus pulchre per aliud 3) ars circa corpus pulchre circa aliud 4) uirtus ad seipsam pulchre ad pulchrum 5) tranquillitas in seipsa pulchre in pulchro 6) ingressio ad Deum pulchre ad pulchritudinem 7) contemplatio apud Deum pulchre apud pulchritudinem

O modo de sucessão destes sete degraus (coluna I) pode ser interpretado de várias maneiras. Agostinho propõe algu-mas delas, apresentando a natureza daquela diferenciação pro-gressiva, isto é, esclarecendo os diferentes critérios em torno dos quais um degrau é superior a outro.

O primeiro desses critérios (coluna II), relativo ao "ob-jeto" do actus da alma, simplesmente estampa o que. já men-cionamos: uma progressão que começa pelo corpo (1-3), se volta para ela mesma, alma (4-5), e daí vai até Deus (6-7)"""`.

Em segundo lugar, ainda conforme aquele roteiro, o primeiro grupo (1-3) se distingue de todas as outras operações (4-7), porquanto a alma ascende de uma relação de alteridade, exterioridade, para o regime da interioridade, da coincidência consigo mesma e então com sua origem. (coluna III)

Na verdade, ao animar o corpo (1), e então lhe dar sen-sibilidade (2), o espírito como que experimenta o "exterior"; a princípio, essa experiência diz respeito ao homem "exterior", mas já entre os primeiros degraus a diferenciação se dá em razão de uma maior ou menor "interioridade". Com efeito, parece fundamental aqui o fato de, já entre os primeiros está-gios, haver certa interiorização, porque eles tendem à con-centração: de corpore, per corpere, circa corpus (II). Além dis-so, as três primeiras vinculam a alma ao corpo, a outra coisa (aliud, III), ao passo que na uirtus a alma se volta para si mes-

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ma (ad seipsam, II; pulcher ad pulchrum, III) e, ainda mais intimamente, a tranquillitas já se dá nela mesma (in seipsa; pulcher in pulchro). De toda forma, distribuída simultanea-mente em sete atividades, a alma exibe em si mesma o itine-rário que pode reconduzir o homem à sua origem. Voltar-se para o homem, significa, portanto, encontrar tanto um limite, ainda que provisório, da interioridade, quanto uma exposição privilegiada, concentrada nesse último estágio, dos vários degraus em que uma natureza pode estar mais ou menos distante do criador. Voltemos ao De libero arbítrio II, onde a análise dos últimos degraus de atividade da alma racional é mais detalhada. O sentido interno exerce um julgamento acerca daquilo que percebe mediante os sentidos externos, mas isto não configura um juízo sobre si mesmo. O sentido interno `sente' os sentidos externos em atividade, mas nada sabe de si mesmo. A razão, contudo, julga a si mesma: não apenas opera sobre os sentidos (externos e interno), mas também opera sobre si mesma. Em outras palavras, há um princípio judicativo21, se-gundo o qual os diferentes degraus na hierarquia contêm um juízo sobre as atividades anímicas que lhes são inferiores. Ora, o espírito racional, ao ser capaz de divisar a vigência de um princípio judicativo, fazendo com que níveis anímicos sejam signos da atividade subordinantes de outros, deve ser conseqüente, voltando para si o mesmo princípio. Isto é, a superioridade do espírito reside também em sua ca-

21 Ch. Boyer, em artigo sobre a `prova da existência de Deus', é quem propõe examinar as hierarquias agostinianas como estruturadas segundo um princípio ideológico ouludicativo. v. Boyer, Ch., 'La preuve de Dieu augustinienne', Archives de Philosophie VII, c. 2 (1930) 105-141 (357-393).

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pacidade de auto-conhecimento. É isso justamente o que vem indicar a necessidade de voltar para a alma a mesma pergun-ta: sob que ponto de vista, ou regra, deve ser julgada a ativi-dade da razão?22.

Momento de uma `prova da existência de Deus', a análise da superioridade da razão dá ocasião a uma indagação sobre a mesma razão, de forma a orientá-la ainda mais para o alto. Trata-se de mostrar que as múltiplas razões finitas e particulares têm de compartilhar regras universais. No domínio do conhecimento, Agostinho examina as verdades matemáticas; no domínio moral, examina os princípios morais, lumina uirtutum. Assim, o espírito racional, ao examinar as matemáticas e a moral logra qualificar sua finitude como subordinada a Deus. Em razão da própria finitude, descobre que tem de ir além de si mesmo, tem de buscar a identidade alhures. Por ora, não se trata de comentar o paradoxo de a identidade estar alhures; trata-se de assinalar o fato de a identidade, já do ponto de vista cosmológico, estar extraposta. Ao fazer o itinerário das naturezas, e descobrir que é a um só tempo excelente e finito, o espírito humano está em condições de reconhecer a presença asseguradora da transcendência.

Do homem interior de volta ao ̀ interior ao íntimo"

A introspecção não esgota o sentido da interiorização. O olhar sobre o universo das criaturas prefigura este movimento, na medida em que ali já se buscava uma regra,

22 "la règle du monde n'est en vérité saisie par nous qu'en tant qu'elle est la règle de notre pensée." (Boyer, op. cit. p. 127).

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já se apontava para um juízo ordenador, mas sobretudo por-que ali também o exame agostiniano da experiência humana

podia decifrar a presença do mediador. É preciso lembrar que

a crítica ao platonismo exige encontrar no "livro do mundo"

mais do que um princípio supremo: também deve ser desde

logo reconhecido o princípio íntimo, ou melhor, "interior

ao íntimo".

O movimento de interiorização é, a um só tempo, procura da sede da semelhança, isto é, procura de um lugar privilegiado para a conversão à origem, e também confirmação do papel humano na conversão mediante a auto-acusação. Conhecer-se a si mesmo é descobrir os meios de desimpedir o próprio peso, encontrar o movimento natural, o movimento ditado pelo Princípio criador e formador (Cf. cont V x 18). Reside, pois, nesta ambigüidade o privilégio do espírito como objeto da filosofia agostiniana: nele se exerce a accusatio e nele se encontra a imagem da sabedoria divina.

"Não vás para fora, volta para ti mesmo. No ho-mem interior habita a verdade. E se descobrires que tua natureza é mutável, transcende também a ti mesmo. Mas lembra-te de que, ao te transcende-res, transcendes a alma que raciocina: por isso, tende para lá onde arde a própria luz da razão." uera rel.

XXXIX 72"xi"

Exatamente porque a introspecção é uma exigência na procura do conhecimento de Deus, é preciso procurar o que é "interior ao íntimo". O fato de a verdade habitar o homem interior não quer dizer que ele encontre em si mesmo o seu fundamento; antes, a presença da verdade transcendente é que sustenta o homem interior. Agostinho não supõe que o homem seja divino, que seja capaz de obter de si, autonomamen-

INTERIORIDADE NA COSMOLOGIA AGOSTINIANA 203

te, os meios para conhecer a verdade, o supremo bem. Será na reflexão sobre a presença divina no interior do homem que a noção de quietude, repouso, ganhará um sentido propriamente agostiniano. O sentido dessa aspiração ao repouso, à quietude, mostra por que a concepção de ascese antes afasta do que aproxima Agostinho do "platonismo"; em outras palavras, mostra que sua interpretação dá conteúdo conceitual à acusação de que o platonismo não divisou o "caminho".

Que o platonismo, isto é, o `platonismo milanês'~3, tenha conduzido Agostinho até aqui, isto é, à afirmação de um princípio absoluto, e mesmo à valorização do espírito sobre a matéria, e da interioridade, não há o que protestar. Todo o problema está na conjugação desse princípio absoluto com a mesma interioridade: o que implica redimensionar tanto a importância do "exercício espiritual" que é a introspecção, quanto o significado do adjetivo absoluto na teologia. No terceiro capítulo, tentamos descrever a importância de certo dinamismo no âmbito do absoluto; neste capítulo, tentamos apontar elementos concernentes ao primeiro problema, isto é, ao valor e alcance do exame da interioridade. Como já dissemos, a posição média do homem é a posição média da alma, da vontade da alma, posição que consiste num movimento entre o nada, de onde foi feita, e Deus, pelo qual foi feita. Mas é preciso ter sempre em conta que o privilégio conferido à alma, como "objeto" do desejo de sa-ber, não significa o seu puro e simples elogio: de certo modo, se dará o contrário, isto é, a alma será objeto privilegiado de investigação porque nela, mais do que no corpo, o homem depara com a radicalidade de sua finitude e de sua condição decaída. Novamente recorremos a Gilson: o homem, embo-

23 Cf. Courcelle, P. op. cit.

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ra seja o primum cognitum, nem por isso é o primum reale, "pois, ao contrário, ele não se torna inteligível para si a não ser que encontre sua razão suficiente em um transcendente que o explica".24 A experiência da finitude é que exibirá os limites da atividade humana, e por que motivos ela deve ter como ane-lo a quietude, e a passividade. Na verdade, antes da passivi-dade, caberá ao homem descobrir sua irrecorrível dependên-cia, seja no plano cognitivo, seja no plano da vontade. Por isso, não basta a tranqüilidade no íntimo: é preciso ainda es-perar pela contemplação do que é interior ao íntimo (respec-tivamente quinto e sétimo "degraus" da alma, segundo o De animae quantitate). Sendo assim, o "paradoxo gramatical" de interior intimo deve ser novamente considerado: ele indicava a inefabilidade e a presença divina; agora, vemos que significa também que só Deus pode romper o limite dado pela miséria humana. O "íntimo" é o superlativo de "intus", vale dizer, nada pode ser interior a ele; esse é o grau máximo de identidade que o espírito humano pode buscar. Mas se "procura uma verdade imutável, substância sem defeito [defectus]", deve reconhecer que ele mesmo não é tal, pois "erra [deficit], acerta [proficit]; sabe, ignora; lembra, esquece; ora quer uma coisa, ora não quer." (en. Ps. XLI 7)X. Portanto, a coincidência do espírito interrogador consigo mesmo ainda não exprime a

24 "ce primum cognitum n'est pas même le primum reale, car il ne devient au contraire intelligible pour soi quït la condition de trouver sa raison suffisante dans un transcendantqui l'explique." Gilson, E., L'avenir de la métaphysique augustinienne, Mélanges Augustiniens (Publiés à l'occa-sion du Quinzieme Centenaire de Saint Augustin). Paris: Librairie Marcel Rivière, 1931, p. 376.

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identidade perfeita: é preciso então, "paradoxalmente", en-contrar algo que seja "interior ao íntimo".

Talvez se pudesse suspeitar que Deus poderia ser esse íntimo, uma vez que é ele o último elo da interiorização. Mas é decisivo que se destaque o homem como íntimo, porquanto é nele que se dá a interioridade máxima da coincidência consigo mesmo, ainda que esse núcleo de coincidência seja passível de transformação. Ele carecerá por isso de alguma "alteridade", mas não exterior, e sim interior: é apenas do ponto de vista do ser absoluto, imutável, que a identidade do homem consigo mesmo admite uma interioridade, um grau maior de perfeição.

De fato, mesmo que o homem pareça ter aqui uma parte ativa, clamans de profundo, isso consiste ainda em um

esforço preparatório. "O homem pôde ser capaz de sua pró- pria queda; não é capaz de sua própria ressurreição (reergui- mento)" (en. Ps. CXXIX 1)"'. Cabe a Deus a misericórdia, a audição dos males, e a libertação: "e a não ser que seja reno-

vado e sanado por Deus, (...) [o homem] está sempre nas pro- fundezas" (ibid.)"'"". Por outro lado, a preparação é sempre

confessional, no sentido de obter a salvação, e o afastamento da finitude, pelo reconhecimento da mesma finitude: preci- samos conhecer nossa profundeza, para então lograr audiên- cia divina. "Cada um de nós, pois, deve ver em quanta pro- fundeza se encontra, donde clame pelo Senhor". (ibid. 5). °"

O auto-conhecimento deve nos levar, portanto, a uma trajetória cujo oriente é o repouso. Ao comentar os "degraus da alma", Agostinho expõe o roteiro que nos leva do exterior ao interior. Mas é preciso ver como esse roteiro vem expresso também segundo outro eixo, a saber, segundo a alternância entre o movimento e o repouso. O fato de os trabalhos da uirtus (v acima, coluna I, 4) darem lugar à tranquillitas (5)

só não significa a consecução final de um movimento moral

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justamente porque a tranquillitas é apenas a preparação para um último movimento, ingressio (6), cujo termo é finalmente a contemplatio (7), morada definitiva, não mais um degrau.

Assim, é importante salientar que o repouso humano se revela, afinal, negativamente: ele é a supressão de atividades não mais porque o homem por si logre esse estágio, mas por-que confessa que a verdadeira atividade, que o reúne ao abso-luto, é obra desse mesmo absoluto. O trabalho confessional é apenas "amor do amor divino" (v. cap. 5), movimento de submissão à iniciativa divina, que se expressa trinitariamente.

A perspectiva trinitária, esboçada no capítulo prece-dente, será retomada na segunda parte. Por ora basta chamar a atenção neste contexto para a importância da segunda pessoa da Trindade para Agostinho: nela se exprime a mediação entre o absoluto e os homens. "Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o atrair". (Evangelho segundo João VI 44).xxix

Na segunda parte, tentaremos indicar como Agostinho realizou, no enfrentamento de desafios específicos, este pro-grama filosófico que acreditamos poder atribuir à sua obra. O pêndulo entre finito e infinito, entre experiência fracassa-da e reconhecimento da presença do absoluto, estará em jogo segundo dois problemas fundamentais: o contraste e a apro-ximação entre eternidade e tempo, e o suposto dilema, na verdade uma harmonia, entre onipotência divina e liberdade humana. Nos dois terrenos; o exercício da finitude deverá ser signo do infinito que paradoxalmente lhe dá sustentação.

INTERIORIDADE NA COSMOLOGIA AGOSTINIANA 207

"initium omnis peccati superbia est". "maledictus qui spem suam ponit in homine." Quanto ao texto do Eclesiástico, seguimos a tradução de Oscar P. Leme para a "citação" de Agostinho (Cf. ciu. XIV 13). "qui inuenerit animam suam, perdet illam; et qui perdiderit eam propter me, inueniet earn". Cf. s. CCCXLIV 6.

• ualde, ou nimis; conforme Agostinho cite o Salmos XLVII 2, XCV 4 ou CXLIV 3. "sed hoc mercedis est, quod dum, quid ualeat anima, indoctus expedio, quid ipse ualeam, securus experior."

"non possumus dicere, et non permittimur tacere." vi "inquietum est cor nostrum, donec requiescat in te".

• "deum et animam scire cupid'.

• "summum illud est ipsa beatitas". ep. XVIII 2.

'x "qui Christo credit, non diligit infimum, non superbit in medio atque ita summo inhaerere fit idoneus". ep. XVIII 2.

x ciu. XI 28: "ita enim corpus pondere, sicut animus amore fertur, quocumque fertur".

xi "pondus meum amor meus."

x" "memor enim sum non solam uoluntatis uerum etiam infirmitatis meae".

xi" "inuisibilia dei per ea quae facta sunt intellecta conspiciuntur". xiv "sed omnem creaturam in ipso homine sine ulla calumnia cogitemus

(...) quia homo constat spiritu et anima et corpore." Exposição de Algu-mas Proposições da Epístola aos Romanos, 53. Tradução do título e do texto, apud Pépin, Santo Agostinho e o Ocidente, in Châtelet, F., Histó-ria da Filosofia (Idéias, Doutrinas). Rio de Janeiro: Zahar, 1974. V. 2, A filosofia medieval, p. 82. "redeo ad meipsum, et quis sim etiam ipse qui talia quaero, perscrutor: inuenio me habere corpus et animam".

xvi "oculi (...) fenestrae sunt mentis; interior est qui per has uidet; quando cogitatione aliqua absens est, frustra patent".

xv'i "deus quippe ipse quem quaerimus adiuuabit, ut spero, ne sit infructuosus labor nosier".

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""ii "reuocat se [animal ab exterioribus ad interiora, ab inferioribus ad su-periora, et dixit: "lauda, anima mea, dominum" (...) in medio quodam loco rationalis anima constituta, legem accepit, haerere superiora, regere inferiorem. regere non potest inferiorem, nisi regatur a meliore. trahitur ab inferiore, deseruit ergo meliorem. non potest regere quod regebat, quia regi noluit a quo regebatur."

x'x "animus ipse ut norit se, uidet se. nec utique ut uideat se, corporalium oculorum quaerit auxilium; immo uero ab omnibus corporis sensibus, tamquam impedientibus et perstrepentibus abstrahit se ad se, ut uideat se in se, ut nouerit se apud se."

xx "si enim tu ipse a te longe es, deo propinquare unde potes?" "a" "quia utique non in corpore, sed in ipsa mente factus est homo ad ima-

ginem Dei". Cf. Gn I 26. O" "pater quae demonstrat filio, non accipit extrinsecus; intus totum agitur,

quia nihil creaturarum esset extrinsecus, nisi hoc pater fecisset per filium."

"`i1 "quid anima in corpore ualeret, quid in seipsa, quid apud deum" an. quant. XXXIII 70.

7iv "poli foras ire, in te ipsum redi. in interiore homine habitat ueritas. et si tuam naturam mutabilem inueneris, transcende et te ipsum. sed memento, cum te transcendia, ratiocinantem animam te transcendere. illuc ergo tende, unde ipsum lumen rationis accenditur." "aliquam quaerit incommutabilem ueritatem, sine defectu substantiam. non est talis ipse animus: deficit, proficit; nouit, ignorat; meminit, obliuiscitur; modo illud uult, modo non uult."

xx"i "idoneus potuit esse homo ad casum suum; non est idoneus ad resurrectionem suam".

x`vii "et nisi renouetur et reparetur (sc. homo) a deo (...) semper in profun-do est."

miii"debet itaque unusquisque nostrum uidere in quo profundo sit, de quo clamet ad dominum."

"x "nemo potest uenire ad me, nisi pater qui misit me, traxerit eum".

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LIVRE-ARBÍTRIO E LIBERDADE

NA CONDIÇÃO HUMANA

Física e moral

O enfrentamento do suposto dilema entre a presciên-cia divina e o livre arbítrio da vontade humana implica, na-turalmente, uma caracterização precisa da vontade. Mas a vontade humana não foi objeto de consideração, para Agos-tinho, apenas nesse contexto. Na verdade, em pelo menos dois outros domínios encontramos explicações sobre a natu-reza da vontade que podem vir a elucidar a resposta agosti-niana àquele desafio.

Em um deles, a vontade não é tema preponderante, mas pode ser recortada de um quadro geral, se o considerar-mos sob certa ótica: a cosmologia agostiniana. No quarto capítulo, tentamos explicar este lugar central da vontade. Agora é preciso mencionar um segundo terreno, no qual a vontade será então centralmente questionada: o problema da origem do mal. Uma vez que o mal será atribuído por Agos-tinho ao homem, e à sua vontade, caberá desenvolver por que

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precisamente sobre ela, privilegiada do ponto de vista cosmo-lógico, pesará esta responsabilidade, a possibilidade mesma de corrupção da ordem universal.

Nos marcos de uma cosmologia que inclui a concepção de uma providência universal e boa, vem a ser formulada a pergunta sobre a origem do mal, e mais especificamente então sobre a responsabilidade humana. Se o mal é atribuído ao homem, como causa primeira, será necessária uma cosmologia que a um só tempo preserve a universalidade e a bondade da providência, e permita situar a vontade humana como sua integrante curiosamente privilegiada.

Além disso, o problema da origem do mal é relevante também à luz da questão discutida no segundo capítulo: fé e razão. Ainda que a relação entre fé e razão suscite textos espe-cíficos, cartas, sermões, tratados etc., a realização ou apresen-tação daquela maturidade suposta para o exercício da fé, como momento avançado da racionalidade do espírito, é afir-mada em polêmicas nas quais a razão e a fé não estão diretamente em tela. Uma polêmica em particular tornará viva a racionalidade madura agostiniana, contra a sedução juvenil do nacionalismo maniqueísta: o problema da causa do mal.

Se podemos dizer, pois, que o horizonte do problema da vontade é ainda a relação entre razão e fé, bem como o confronto entre a filosofia/teologia cristã e uma seqüência de escolas filosóficas, que vai do maniqueísmo ao platonismo, será o problema da causa do mal o engate temático concreto dos textos. Tal como testemunha o sétimo livro das Confissões, o primeiro desafio para aprofundar a compreensão da natureza incorpórea de Deus é a explicação racional da origem do mal.

O problema do mal constitui um desafio à racionalidade do mundo. Como conceber racionalmente um mundo regido por um Deus todo-poderoso e bom, e não obstante contendo mal, isto é, imperfeição, sofrimento e erro? Se Deus

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é todo-poderoso, o mal não pode escapar à sua providência, ao seu alcance. Mas se Deus é igualmente bom, não pode ser ele mesmo a causa do mal. Padecem entrar em contradição a onipotência e a infinita bondade de Deus, se o mal é um fato irrecorrível do mundo.

A primeira solução que atrai Agostinho é a solução maniqueísta, a saber, que o mal não provém de Deus, mas sim de um princípio do mal, em conflito com Deus, princípio do bem. Com efeito, para explicar a origem do mundo, e a `coexistência' nele de bem e mal, os Maniqueus o concebem como fruto da iniciativa divina, isto é, do princípio do bem, contra os príncipes do mal. Deus e Cristo (pois o maniqueus eram cristãos) estariam empenhados em combater o mal mediante a mistura de criaturas boas à população do reino das trevas.'

Entretanto, o preço desta solução consiste em limitar o poder divino: a Providência divina não seria única, mas sim concorrente com outro princípio. O mundo seria primordi-almente constituído por duas naturezas, a boa, que é Deus, e outra, má, "que Deus não teria feito" (nat. b. xli)'. Isso implica que o Ser não é único, nem onipotente.

Para preservar a onipotência divina e a unicidade da Providência2, do ponto de vista agostiniano, é preciso que o

Uma exposição da doutrina maniqueísta, com longas citações de textos maniqueus, encontra-se no de natura boni. Consultem-se também Puech, H.-C., Sur le Manichéisme et autres essais. Paris: Flammarion, 1979, e Rudolph, K, Gnosis, The Nature & History of Gnosticism, tradução editada por R. McL. Wilson. San Francisco: Harper & Row, 1980.

2 Encontra-se uma boa análise dos vários desafios de Agostinho no campo da providência no verbete Providence do DTC. Rascol, A., "La providence selon saint Augustin", Dictionnaire de Théologie Catholique. Paris: Letouzey et Ané, 1936, v. XIII 1, cols. 961-984.

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mal não esteja fora do mundo das criaturas, é preciso que es-teja de algum modo ao alcance da Providência. Ou, é preciso encontrar outra articulação entre o princípio bom e as natu-rezas corpóreas, de sorte a que a diferença entre o Princípio e a multiplicidade do mundo não seja descrito como conflito, embate.

O primeiro passo da solução agostiniana prende-se à dimensão metafísica do mal. O mal não é um princípio subs-tancial, ou uma natureza entre outras, mas deve ser visto an-tes como conseqüência da finitude de todas as naturezas, de todos os seres, pelo fato de serem criaturas. Todas estão or-denadas, em graus que se aproximam da perfeição divina. O grau de "ser" e de (im)perfeição constitui sua ordenação no mundo segundo um gênero determinado. Como vimos, fundamentalmente dessemelhantes de Deus, porque diferem metafisicamente de seu Criador, as criaturas são também se-melhantes a ele, vestígios dele. O mal vem a ser explicado neste nível em razão da dessemelhança: cada ser, à medida que não é idêntico ao Criador, carece de perfeição. Esta fa-lha, ou carência, é o mal, ou finitude irrecorrível de cada cria-tura, sua impossibilidade metafísica de ser plenamente (o que está reservado apenas ao Criador).

O que cumpre aqui assinalar é a dessubstancialização do mal: não se conta entre as criaturas. Todas elas são bens, quanto à sua natureza, seu único mal é a imperfeição.'

Esta resposta todavia limita o problema ao mal como finitude, mal metafísico4. Mas como responder ao problema

Cf. nat. b. e ciu. XII iv-v. 4 `Mal metafísico' é uma expressão tomada de empréstimo ao vocabulário

leibniziano. Cf. Jolivet, R., Le problème du mal chez s. Augustin. Archives de Philosophie VII, c. 2 (1930) 1-104 (253-356)]. Note-se po-

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da miséria humana, do sofrimento, do erro, do pecado? O que os torna possíveis, sem que sejam assimilados e neu-tralizados no espetáculo de degraus, tonalidades e contrastes da natureza? Com efeito, segundo uma apresentação metafí-sica, o mal não parece propriamente mau: as imperfeições das criaturas são apenas sombras e contrastes que contribuem para a beleza do todo. É claro que não é cabível considerar o mal moral também deste modo.

Porém, a carência metafísica significa também que toda criatura só é, só se realiza, nesta imitação do ser supremo. A hierarquia dos seres envolve ainda uma finalidade, pois cada ser é destinado a ser signo e louvor do seu criador. Cada ser é vocacionado em direção à origem: não há caos, há sim uma diferenciação que remete sempre ao seu princípio.

Com isso, já no plano metafísico é possível reconhecer a articulação entre o dinamismo da hierarquia cosmológica e a caracterização do mal. Cada ser ou degrau inferior aponta para um degrau superior, que deve ser sua causa e regra de ser. Assim, o mal não está positivamente no mundo, não é uma criatura: toda criatura é um bem. O mal é uma ausência, uma falta de perfeição. Os graus de perfeição, ou imperfeição, são um modo de participação na perfeição divina; cada criatura volta-se para o Criador naturalmente, isto é, na medida mesma em que participa do ser através de sua existência precária.

Por isso, esta estruturação hierárquica não é estetizante. O mal moral também pode ser pensado a partir dela. Na ver-dade, cada degrau declara mediante sua imperfeição que ele

rem que deve ser usada à luz da advertência de G. Bardy na nota 18 ao vol. 35 da Bibliothèque Augustinienne: diferenças de grau e defeitos são coisas diferentes.

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mesmo não é sua própria causa nem sua regra de ser. Cada degrau, deste modo, é também signo de uma causa que lhe é superior, assinala que é preciso procurar sua causa alhures, acima. Ora, os degraus têm então de conduzir, segundo im-perfeições cada vez menores, até a perfeição. A idéia mesma de que cada ser está ordenado no nível a que pertence remete ao princípio de ordenação, que ele mesmo não pode conter.

Com isto, não só foram criadas por Deus, mas tam-bém ordenadas de forma a voltarem para o Criador: sua fini-tude tem significação, anuncia uma causa primeira e uma re-gra segundo a qual a hierarquia é estruturada. Este novo sentido indica-nos o caráter dinâmico da hierarquia.

0 livre-arbítrio da vontade Dada a dessubstancialização do mal e o caráter dinâ-

mico da ordem cosmológica, é possível abordar a resposta da causa do mal como o livre-arbítrio do homem. Por que o li-vre-arbítrio é causa do mal? Porque ele não se move na dire-ção ditada por sua natureza. Enquanto as demais criaturas se inscrevem necessariamente na ordem e correspondem ao "movimento realizado pelo Criador, o livre-arbítrio tem a possibilidade de se inscrever ou não, voluntariamente, isto é, de fazer ou não num movimento que espelhe a bondade e sabedoria do Criador.

Trata-se então de entender esta ausência de movimen-to, pelo qual o livre-arbítrio é causa do mal, e o alcance desta solução cosmológica no que concerne à afirmação do livre-arbítrio como resposta ao fatalismo e ao determinismo. Ao dessubstancializar o mal mediante uma cosmologia dinâ-mica, Agostinho destaca as vontades humanas como causas primeiras, ainda que de algum modo subordinadas à vonta-

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de divina. Na verdade, excluído o mal metafísico, que não é propriamente mal, é preciso examinar o mal como pecado, o ato moral contrário à natureza, ou como castigo pelo peca-do, o sofrimento, a miséria humana. Interessa-nos sobretudo o pecado.

Se a finitude dos diferentes degraus remete a degraus superiores, o homem está localizado no ponto supremo des-ta hierarquia, porque reúne as naturezas superiores, isto é, além de corpo, tem também vida, e inteligência. No exame de sua inteligência, ou de seu espírito, é capaz ainda de lo-calizar degraus, todos eles igualmente deparando com a ne-cessidade de buscar fundamento em alguma instância supe-rior. É pois seguindo o mesmo vetor, que leva ao homem como topo da criação, que o homem tem de constatar ele também sua finitude, e o imperativo de se voltar para uma instância transcendente.

Que movimento, então, gera o mal? Na verdade, este quase movimento é a renúncia ao impulso, ou vocação natu-ral, de procurar e se dirigir ao Criador. O mal consiste em a vontade voltar as costas ao rumo que deveria tomar segundo a sua natureza. Se o impulso correto pode ser qualificado como conversão, analogamente o mal será caracterizado como perversão da vontade, isto é, não apenas um movimento diferente, mas uma ausência de movimento, que ofende, que contraria a natureza dela mesma, vontade.

Com base nesta cosmologia dinâmica e interiorizante, pela qual a vontade humana desempenha um papel nuclear na ordem universal e ao mesmo tempo reconhece a necessi-dade de aspirar à transcendência, Agostinho poderá funda-mentar tanto a primazia do espírito religioso, como a crítica àqueles que, de maneiras variadas, vêem na onisciência divi-na um obstáculo à liberdade da vontade. O caminho para a dissolução deste erro está aberto pelo esclarecimento de que

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a identidade e autenticidade da vontade estão postas não mais na expressão da vontade finita de cada homem, mas sim na vontade de Deus.

Concomitantemente, não será porque o homem é autor do mal, que Deus seja também responsabilizado. A dessubstancialização do mal já indicara que o mal não é nada, positivamente. Deus é responsável por tudo o que é. Agora, do ponto de vista dinâmico, o mal continua sendo ausência, isto é, ausência de conversão, contrariedade da natureza, e por isso mesmo contrário a Deus.

Deste modo, ao examinar os diferentes fatalismos, e as doutrinas daqueles seus adversários que para isso negam a onisciência divina, Agostinho poderá preservar uma estrita ordenação causal, bem como a responsabilidade moral dos homens, sem imputar a Deus os males do mundo.

"Na verdade, com aqueles que chamam pelo nome de destino não a disposição dos astros, tal como está quando algo é concebido, nasce ou é ini-ciado, mas sim a conexão e série de todas as causas, pela qual ocorre tudo quanto ocorre, com eles não devemos discutir ou nos empenharmos em contro-vérsia verbal, uma vez que atribuem a própria ordem das causas e certa conexão à vontade e ao poder do Deus supremo, que acreditamos, do modo melhor e mais verdadeiro, saber de todas as coisas antes que aconteçam, bem como nada deixar desordenado, Deus do qual provêm todos os poderes, ainda que dele não provenham as vontades de todos." De ciuitate dei V viii."

A ordem do mundo significa primeiro uma estrutura hierárquica, cujo princípio de organização deverá conter a

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razão por que esta estrutura é também um itinerário. Ora, trata-se de uma estrutura dinâmica, uma estrutura onde im-pera o movimento, um estender-se rumo ao Criador. Numa tal estrutura, a vontade desempenha um papel nuclear, e o imperativo de percorrer a estrutura, tomá-la como itinerário para alcançar o princípio, é constitutivo dela mesma como núcleo da ordem universal, como amor no qual se espelham os pesos das criaturas sem vontade.

Contra Cícero A `história da filosofia' que encontramos esboçada no

início do VIII Livro do De ciuitate dei mostra exatamente que Agostinho concebia a compreensão da natureza divina como lugar de um progressivo refinamento. É cabível entender que este refinamento concerne, em primeiro lugar, à autocom-preensão do espírito. Acreditamos tê-lo mostrado, ao menos no sentido em que o espírito humano é tanto mais maduro quanto melhor compreende sua situação a um só tempo pri-vilegiada, nuclear, e por isso mesmo submetida ao Deus que é ainda "interior ao íntimo".

A procura de um princípio incorpóreo é a expressão, no plano físico, do impulso filosófico compartilhado e apro-fundado pelo cristianismo, o impulso de procurar a verdade além do que é aparente ou presente. Enquanto no plano ló-gico a fé é expressão excelente deste impulso, conduzindo a razão a procurar uma verdade não presente, seja ao divisar Deus como natureza incorpórea e transcendente, seja ao sub-meter sua atividade finita ao testemunho da autoridade, no plano Pico, o cristianismo agostiniano será ainda filosófico por entender que esta dinâmica do espírito (tão radicalmente direcionada ao Princípio, que deposita nele a sua própria

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identidade) se confunde com sua situação por natureza pri-vilegiada e nuclear no universo da Criação.

Será com base nesta compreensão agostiniana da situação do cristianismo na história da filosofia, e do espírito religioso no núcleo da criação, que poderemos examinar o argumento de Agostinho contra Cícero, na Cidade de Deus (Livro V, capítulo ix). O argumento parte de uma tomada de posição: não há dilema. Nos capítulos anteriores, tentamos inicialmente reconstruir a situação a partir da qual Agostinho pode adotar essa estratégia axiomática, como espírito religioso; procuramos igualmente inscrever o espírito humano na cosmologia; pretendemos agora apresentar a contra-argumentação à luz fundamentalmente desta cosmologia.

A análise da argumentação de Cícero exibe uma contra-posição entre a presciência divina e o livre-arbítrio da vonta-de. Se há contraposição, Cícero pensa dever escolher um dos termos da disjunção: ou a presciência ou o livre-arbítrio. Opta então por suprimir a presciência divina, movido pelo propó-sito de preservar a liberdade da vontade, sem a qual a moral perderia sentido, sem a qual

"cai por terra toda a vida humana. Em vão se fazem leis, em vão se recorre a repreensões, louvores, vitu-périos e exortações. Sem justiça alguma os bons rece-bem prêmios, e os maus, suplícios""' (ciu. V ix 1; tra-dução de Oscar Paes Leme.).

Agostinho reconstrói a argumentação de Cícero para expor, na cadeia argumentativa, um elo frágil. Na verdade, o encadeamento proposto por Cícero pode ser apresentado de dois modos, isto é, em dois sentidos: ou partindo da afirma-ção da presciência para chegar à negação do livre-arbítrio, ou

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partindo da afirmação deste pra negar que Deus tenha ciên-cia de todos os futuros.

Entre os dois extremos, a cadeia comporta ainda três elos: 1) a ordem certa das coisas, 2) a ordem certa das causas, e 3) o destino.

Se há presciência, há uma ordem certa das coisas: se Deus sabe- o que vai ocorrer, então tudo ocorrerá numa or-dem certa, sem variação. Mas se tudo ocorre numa ordem certa, a série causal também é certa: uma vez que nada ocorre sem causa, a seqüência das coisas implica uma seqüência de causas, uma seqüência, ou ordem, certa. Agora, se a ordem das causas é certa, sem comportar mudança, então há desti-no: tudo está destinado a ser como é, porque Deus sabe como tudo sucederá, numa cascata inexorável de causas e efeitos. O Destino exclui, naturalmente, a liberdade da vontade: ha-vendo destino, não há livre-arbítrio, os homens não são res-ponsáveis por aquilo que fazem ou que ocorre no mundo.

Inversamente, o argumento pode escalar da afirmação da vigência da vontade humana até a negação da presciência dos futuros. Se há vontade, se os homens têm escolha, então não há destino. Se não há destino, não há uma ordem certas das causas, os elos causais não estão ainda determinados. Mas se os elos de causa e efeito não estão determinados, as coisas também não sucedem umas às outras numa ordem certa. Ora, se não há ordem certa das coisas, não é possível conhecê-la de antemão: Deus não pode conhecer de antemão aquilo que não é certo, aquilo que ainda está para ser decidido. Se-gundo o argumento de Cícero, tal como reconstruído por Agostinho, a liberdade humana exclui a presciência divina.

Para Agostinho, negar que Deus conheça os futuros sig-nifica negar a presciência, a onisciência, e portanto significa negar Deus. Não há Deus, senão um Deus onisciente. Para

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não incorrer neste resultado sacrílego, o espírito religioso pre-cisa diagnosticar o erro argumentativo nesta seqüência: Pres-ciência, ordem certa das coisas, ordem certa das causas, desti-no e livre-arbítrio.

Para Cícero, os primeiros elos levam a negar o último, ou o último leva a negar os primeiros. O ponto nevrálgico parece estar então na articulação entre a primeira série e o úl-timo elemento. De fato, Agostinho concentra seu argumen-to na passagem:

ordem certa das causas / destino // livre-arbítrio da vontade.

O estudo da sua cosmologia talvez nos permita com-preender por que o destino não deve ser interposto entre a ordem das causas e o livre arbítrio. A vontade, na verdade, é uma das causas. E não apenas uma das causas, mas uma cau-sa primeira. Assim, de que Deus conheça tudo de uma vez (semel) não se segue (non est consequens) que o arbítrio da von-tade seja vão.

Para desenvolver sua resposta, Agostinho recorre a uma concepção de causalidade de Cícero que bastaria para des-montar seu falso dilema. A tese, defendida por Cícero, de que tudo deve ser antecedido por uma causa eficiente também levaria a negar o livre-arbítrio da vontade. Sua estratégia con-siste em mostrar que Cícero, mesmo negando a presciência, também precisou compatibilizar a ordem do mundo com a vontade humana. Ao afirmar que "nada ocorre sem causa", Cícero poderia ter aberto o flanco para novamente desembo-car na afirmação do Destino; sua solução consiste em classi-ficar as causas, de tal sorte que a vontade humana também figuraria entre elas, ao lado de causas `fatais'.

O interesse de Agostinho em voltar a Cícero, mostran-do que já sua concepção de causa deveria levar a admitir a

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harmonia entre presciência e liberdade, reside na possibilida-de de glosar a classificação ciceroniana segundo seu próprio vocabulário conceitual.

Cícero propõe distribuir as causas em três classes. Cau-sas fortuitas, causas naturais e causas voluntárias. Com isso, a vontade humana estaria preservada, seria independente das causas fortuitas. (ciu. V ix; DK 206). Agostinho reinterpreta essa classificação de Cícero. As causas ditas fortuitas são, na verdade, causas ocultas, cuja origem remonta à vontade divi-na, ou a outras vontades, isto é, a vontades de alguma natu-reza espiritual. As causas naturais devem ser simplesmente remetidas a Deus, "autor e criador de toda natureza"» Quan-to às causas voluntárias, a solução agostiniana consiste em re-tomar a idéia de que a vontade reside na natureza espiritual e racional dos homens. Os animais não têm propriamente von-tade, isto é, seus movimentos anímicos não são livres, não são inaugurais. Apenas as almas humanas são propriamente espi-rituais, spiritus vitae.

O que pretendemos sublinhar aqui é que, preservando as vontades humanas como causas eficientes autênticas, não há por que contrapô-las à presciência divina: como vontades boas, são previstas como causas, positivamente. Se Deus as prevê como boas, não as esvazia, mas as conhece em sua positividade. Se são más, não podem ser remetidas a Deus, porque vontades más carecem de positividade, são contra a natureza, e por isso Deus não é por elas responsável.

"Portanto, não se aniquila a nossa vontade por-que Deus tem presciência do que virá a ser em nossa vontade. Com efeito, quem disto tem presciência, não tem presciência de um nada."°

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O que significa dizer que as vontades livres são vonta-des livres justamente porque Deus as conhece como tais, des-de a sua eternidade?

Em primeiro lugar, significa que elas, na sua mera exis-tência/positividade, fazem parte da ordem universal (causal), e da forma como são, isto é, livres. Mas talvez também seja possível dizer que sua pertença à ordem é privilegiada, ou ainda, de primeira grandeza, vale dizer, a ordem do mundo é tal, que as vontades dos homens nela se inscrevem como causas eficientes primárias, ou ainda, como seu ponto mais elevado — acima e interior a elas, apenas Deus, o amor de Deus pelo mundo.

Igualmente no que concerne ao pecado:

"E não é porque Deus tinha presciência de que viria a pecar, que um homem deixa de pecar; ao con-trário, não se duvida que ele peca, quando peca, por-que aquele cuja presciência não pode falhar tinha presciência de que não o destino, a fortuna ou al-guma outra coisa, mas sim que ele mesmo viria a pe-car. O qual, se não quisesse, com certeza não pecaria; mas se não quisesse pecar, também disto ele teria presciência."°'

Com isso, Agostinho entende dissolver o dilema pre-suntivo entre a presciência divina e a liberdade humana.

"Donde, longe de nós negar, para querermos li-vremente, a presciência daquele por cuja ajuda somos ou seremos livres".°"

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Talvez aqui tenhamos introduzido um novo problema: a vinculação da liberdade a uma ajuda divina. Talvez Agosti-nho se desloque aqui do campo de uma cosmologia racional, no qual debatia com Cícero, e introduza um elemento com-preensível apenas do ponto de vista da graça, como veremos a seguir.

Liberdade Até aqui apresentamos a afirmação agostiniana do li-

vre-arbítrio, do ponto de vista da submissão humana à trans-cendência, quer na forma da expressão piedosa da razão como fé, quer na apresentação de uma cosmologia cujo núcleo são as naturezas espirituais, moldadas à imagem do Criador, isto é, dotadas de vontade livre e de vocação para reencontrá-lo. Porém, é preciso caracterizar melhor esta submissão à trans-cendência; a própria trajetória intelectual de Agostinho é re-sultado de uma apresentação mais refinada, ou ao menos mais explícita, dos fundamentos últimos desta submissão necessá-ria. Trata-se de expor, a radicalidade da concepção agostinia-na da responsabilidade moral e da insuficiência humanas, su-bordinadas ambas à transcendência.

A concepção do espírito religioso como momento ma-duro, no interior do qual a razão reconhece sua carência e a necessidade de recorrer e se subordinar à transcendência, en-contra seu fundamento naquela cosmologia dinâmica, cujo centro são as naturezas espirituais, os homens, dotados de li-vre-arbítrio. Mas este dinamismo também pode ser chamado de inquietude, inquietude dirigida ao repouso no Criador, um retorno à origem criadora.

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Em princípio, a alma é inquieta porque é criatura, isto é, não é a unidade, está fora da unidade pelo fato mesmo de ser criatura e não o Criador; este é o mal metafísico, que só é mal à medida que desta situação a alma deve se afastar, voca-cionada a retornar à sua origem ("é inquieto o meu coração até que se aquiete em ti""'", conf. I i 1). Mas não se trata ainda de miséria, e sim de um impulso próprio à criatura, no qua-dro metafísico em que, ao criar o mundo, Deus criou a dife-rença, e também a possibilidade de retorno.

Entretanto, a inquietude é outra, se considerada do ponto de vista da peregrinação, isto é, da condição humana após o pecado original e a queda. Aqui, o mal é propriamen-te mal, mal físico e moral, miséria e pecado. Esse movimento de retorno não concerne apenas à dinâmica das criaturas, or-denadas para o Criador: é também movimento de recupera-ção de uma condição perdida. Carência e a inquietude hu-manas vinham sendo apresentadas em termos estritamente cosmológicos. Mas é preciso ir além disso: a necessidade de o espírito religioso se submeter à autoridade, de a razão se com-binar com a fé, e de a inquietude humana aspirar ao repouso no Criador, têm de ser estudadas também segundo outra con-dição humana, a condição do pecado.

Na verdade, a fé é um socorro necessário à razão decaí-da. O sermão XLIII, ao qual já fizemos alusão, começa justa-mente assinalando a dupla dependência humana: dependên-cia do Criador para ser, e dependência do Mediador e da Graça para restaurar sua natureza: "assim como tivemos ne-cessidade do criador para sermos, assim também do salvador para que venhamos a reviver." (s. XLIII 1).'x

Para ir além do quadro cosmológico, exporemos inicial-mente as razões pelas quais Agostinho retomou em termos diferentes o problema do livre-arbítrio na fase mais madura de sua obra. A partir daí tentaremos assinalar o que as novas

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polêmicas permitiram acrescentar à solução para o problema da compatibilidade entre livre-arbítrio e presciência divina.

Até aqui o mal foi considerado à luz da cosmologia. Um estudo cosmológico do mal proporciona uma caracteri-zação que, embora condizente com a filosofia agostiniana, carece ainda de indicar precisamente a condição do homem após a queda, isto é, não mais no quadro intocado da cria-ção, mas já segundo a condição herdada após o pecado ori-ginal, isto é, após Adão haver corrompido a natureza huma-na. Isto permite ver sob outra luz as distinções entre os diferentes tipos de mal. Vimos que Agostinho investiga o mal não só como finitude metafísica, mas sobretudo e propria-mente como mal moral. Entretanto, o mesmo mal moral comporta ainda uma distinção, entre mal praticado e mal sofrido. O mal praticado é o pecado propriamente; o mal so-frido, a miséria humana, é o castigo para este pecado. De sorte que ambos só podem ser pensados do ponto de vista da con-dição humana após a queda.

"Pois o mal é designado duplamente: um é o que o homem faz, outro é o que sofre: o que faz, é pecado; o que sofre, pena.

„X

"tudo o que se diz mau, ou é pecado, ou é pena do pecado"xi

Com efeito, não é do pecado em geral que se trata, isto é, do pecado de Adão ou de qualquer um de seus descenden-tes, no uso do livre-arbítrio, mas já do pecado naquela con-dição segundo a qual os herdeiros do pecado de Adão têm necessidade de pecar, herdeiros cujo livre-arbítrio, embora li-vre, carece ser libertado para ser capaz de não pecar. Não se fala da vontade má em geral, mas da vontade tal como des-crita por Paulo de Tarso na Epístola aos Romanos (VII 14-ss.)

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e na Epístola aos Gálatas (V 17), isto é, vontade que vive o conflito do espírito consigo mesmo, ou do espírito contra a carne. Segundo Paulo:

"o querer o bem está ao meu alcance, não porém o praticá-lo." (Rm VII 18).

Comentário de Agostinho:

"O livre arbítrio, portanto, era perfeito no primei-ro homem, mas em nós, antes da graça, o arbítrio não é livre para que não pequemos, mas apenas para que não queiramos pecar. É a graça que faz com que não apenas queiramos agir retamente, mas também possamos, não com nossas forças, mas com o auxílio do libertador, o qual nos concede a paz na perfeita ressurreição, paz pela qual se obtém a vontade boa perfeita." Expositio quarundam propositionum ex epistula ad Romanos 12X"

A importância da explicitação destes problemas e pres-supostos agostinianos está na possibilidade que então se ofe-rece de desenvolver e aprofundar tópicos decisivos para a compreensão da posição de Agostinho face aos diversos dile-mas e obstáculos antepostos à afirmação da presciência divi-na e do livre-arbítrio humano. Em primeiro lugar, é preciso aprofundar a compreensão da teodicéia agostiniana, levando em conta uma nova condição do homem, e não apenas sua situação cosmológica como vontade em geral. A nova condi-ção significa uma condição justamente da vontade, cindida, não mais meramente finita no sentido metafísico. A finitude metafísica já exige o reconhecimento da dependência, mas

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ainda não da dependência particular da vontade quanto ao socorro da graça.

Sendo assim, a insuficiência humana, inicialmente apresentada do ponto de vista metafísico, deve também ser vista como insuficiência moral. A crítica ao platonismo, à sua pretensão de elevação independente, ou aos seus demônios mediadores, foi situada na finitude humana, na necessidade de a mediação ter de ser iniciativa e movimento de Deus. Este ponto de vista é, porém, limitado, porque a insuficiência hu-mana só é adequadamente caracterizada se levarmos em con-ta a necessidade da graça. Não se trata apenas da finitude me-tafísica do homem; trata-se também, e sobretudo, da condição de pecado, da situação corrompida do que fora, antes do pe-cado original, uma natureza não apenas dotada de livre-arbí-trio, o que nunca deixa de ser, mas também dotada de liber-dade, esta sim perdida em decorrência do pecado original.

A cosmologia mostra por que é naturalmente livre o arbítrio da vontade, do espírito. Nessa medida, mostra tam-bém como é possível o pecado: como foi possível o pecado original, e como a vontade, mesmo decaída, tem diante de si duas escolhas, e por isso pode pecar. Porém, ainda não está esclarecida a insuficiência da vontade para realizar uma das alternativas possíveis, isto é, a de não pecar: insuficiência que implica a necessidade de pecar, e a impossibilidade de não pe-car — sem que a alternativa entre pecar e não pecar desapare-ça do ponto de vista da natureza.

Uma mesma natureza (espiritual, dotada de vontade) permanece, e com a mesma exigência, moral, cosmológica e epistemológica de se converter à unidade, à origem; após a queda, porém, tal natureza, sem desaparecer, está atingida, ofendida, corrompida, e carece da cura pela graça transcen-dente divina.

Doença
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Uma mesma natureza (espiritual, dotada de vontade) permanece, e com a mesma exigência, moral, cosmológica e epistemológica de se converter à unidade, à origem; após a queda, porém, tal natureza, sem desaparecer, está atingida, ofendida, corrompida, e carece da cura pela graça transcendente divina.
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"Pois a natureza do homem foi criada originaria-mente sem culpa e sem nenhum vício; mas essa na-tureza do homem, na qual cada um nasce de Adão, carece desde agora de médico, porque não é sã. (nat. et gr. iii 3).X"'

Sendo a discussão anterior de natureza cosmológica, figuravam como principais interlocutores aqueles que deba-tiam a teodicéia do ponto de vista da origem do mal e da or-denação racional do mundo. Agora, a teodicéia é deslocada para o terreno mais restrito da vontades.

Com efeito, se o mal não é uma substância, se nada tem de propriamente positivo, se não é então uma criatura de Deus, se, na verdade, reside na vontade do homem, por que esta vontade pode ser má? Se a natureza humana não é ela mes-ma má, contrariamente à hipótese dualista, como vem nela se alojar o mal? Não é por sua vez um contra-senso que, para responder ao maniqueísmo, o mal seja novamente imputado ao homem, contaminando, viciando a natureza humana?

Não, porque, assim como ao maniqueísmo foi con-testada a existência de uma natureza humana má, é decisivo agora mostrar que também não é possível, sem mais, invocar uma natureza humana boa; isto é, do ponto de vista da dis-cussão do mal, não está em jogo uma natureza humana, nem boa nem má. Em outras palavras, no terreno em que a ques-

5 A limitação da argumentação sem a teoria da graça é uma limitação ape-nas expositiva; a concepção da graça já estava contida nos textos pré-pelagianos. É o que explica Agostinho nas Retractationes, ao rever o iní-cio de lib. arb. III, texto brandido contra ele mesmo pelos pelagianos. Naquele contexto se tratava da necessidade no plano cosmológico, isto é, da natureza mesma da vontade.

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tão está posta, no terreno da explicação dos males metafísi-co, físico e moral, é preciso levar em conta a condição huma-na posterior à queda, condição na qual a natureza está cor-rompida, viciada: não é essencialmente má, mas também não está intacta.

A passagem da discussão geral sobre a inserção das na-turezas espirituais, como criaturas boas na ordem universal, para o problema da herança do pecado e da necessidade da graça, corresponde a uma mudança de interlocutores: da crí-tica aos maniqueus Agostinho passa a enfrentar o pelagianismo. A cosmologia respondia ao maniqueísmo, entre outros, mas deixava em aberto a resposta ao pelagianismo.

O início deste capítulo apontou uma explicação para o mal metafísico, isto é, para a existência do finito, e sua rela-ção com o infinito transcendente. A cosmologia terá assina-lado também o lugar do mal propriamente dito, o mal mo-ral. Porém esta caracterização do mal é ainda parcial, porque não abrange o conflito entre a carne e o espírito, isto é, do espírito consigo mesmo, entre a caritas, o amor de Deus, re-alização de sua natureza dinâmica, ou cupiditas, amor sober-bo de si mesmo, negando sua própria dinâmica.

O pecado é importante para fazer a crítica aos pelagianos, após a crítica aos maniqueus. Estes não percebiam que o mal não está na natureza, porque o atribuíam a um princípio exterior, substantivo; para eles, foi preciso contrapor uma cosmologia que alojasse o mal no movimento do espírito huma-

6 É um conflito do espírito consigo mesmo, porque a `carne' não é o corpo. A natureza corpórea não traz por si mesma nenhum mal: a carne significa antes a submissão voluntária do espírito aos desejos do corpo. v. en. Ps. 141, 18, onde Agostinho combate a idéia de que o corpo seria uma prisão para o espírito; na verdade, a prisão é a carne, corrupção do corpo.

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"Pois a natureza do homem foi criada originariamente sem culpa e sem nenhum vício; mas essa natureza do homem, na qual cada um nasce de Adão, carece desde agora de médico, porque não é sã.
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no. A questão agora é mostrar, contra os pelagianos, que isso não acarreta contaminar a obra de Deus, isto é, não acarreta negar o bem que são a criação e a vontade. Localizar o mal na vontade não implica condenar novamente a natureza de uma criatura, e a fortiori não implica condenar Deus.

Trata-se, pois, de desenvolver a teodicéia preservando a natureza humana, não ao afirmar a higidez absoluta da condição humana, mas ao distinguir entre natureza e condição, a saber, ao mostrar que a natureza permanece intocada, no plano da transcendência, enquanto a condição humana é viciada, e viciada pelo pecado original.

Na verdade, a formulação do problema do mal, ao menos nas Confissões, mas também no De libero arbitrio, já contém o problema do pecado original. Nossa estratégia não faz violência, entretanto, ao texto de Agostinho, à medida que é ele mesmo quem anuncia o problema em toda a sua den-sidade, para então recuar para uma caracterização inicial-mente cosmológica, acentuando com isso o lugar paradoxal-mente privilegiado da alma. Com efeito, Agostinho indica que o mal não pode estar na natureza, no mal metafísico, res-tando apenas os males praticados e sofridos. O pano de fundo é a cisão da vontade, mas a questão de base é uma teodicéia: por isso, antes de discutir a vontade era preciso apresentar uma cosmologia.

A teoria da graça não é um complemento, muito menos um ajuste de emergência em vista da interpretação pelagiana, mas sim a contraparte moral (central) daquele princípio cos-mológico (causal e judicativo) que remetia necessariamente à transcendência. A novidade está em integrar, antes reconhe-cer, caracterizar e integrar, o mal físico e o mal moral.

A noção de condição permite desvincular a necessidade (do pecado) da natureza humana. Na verdade, permite tam-bém afirmar a possibilidade de reparo desta condição; por-

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tanto, da supressão da mesma necessidade. Faz sentido, to-davia, falar em necessidade, ainda que removível, porque a cura está além dos limites próprios do paciente. Trata-se de uma necessidade, salvo se removida por uma potência trans-cendente. Há uma condição que, abandonada a si mesma, parece necessária. Mas por ser condição, pode ser removida, não está na natureza.

Mas é possível ir além. A resposta aos pelagianos mos-tra que não apenas a necessidade não está na natureza, como é a natureza o que se contrapõe diretamente à necessidade. Em suma, o problema é o fato de a resposta aos maniqueus parecer conduzir ao pelagianismo. De fato, a dessubstancialização do mal implica igualmente afirmar que toda natureza é boa, portanto também as naturezas espirituais e a vontade humana. É preciso mostrar, então, que a crítica ao maniqueísmo embora desvincule o mal da substância da vontade não implica se comprometer com a independência da vontade humana para o bem. Ao criticar o maniqueísmo não é preciso incorrer em pelagianismo.

Necessidade e/ou vontade Para compreender a resposta de Agostinho, precisamos

acompanhar antes de mais nada como a noção mesma de necessidade é desdobrada. Podemos dizer que a necessidade pode ser compreendida de três modos; em princípio, é possí-vel distinguir claramente entre dois sentidos da necessidade, mas um terceiro sentido, decisivo do ponto de vista moral, parece turvar a clareza dessa distinção.

Antes mesmo de enfrentar os pelagianos, Agostinho teve de discutir a relação entre vontade e necessidade. No iní-cio do III Livro do De libero arbitrio, Evódio o questiona so-

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Faz sentido, todavia, falar em necessidade, ainda que removível, porque a cura está além dos limites próprios do paciente. Trata-se de uma necessidade, salvo se removida por uma potência transcendente. Há uma condição que, abandonada a si mesma, parece necessária. Mas por ser condição, pode ser removida, não está na natureza.
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bre a possibilidade do pecado. Se a vontade humana é um bem dado por Deus, se é um privilégio dos homens como imagem de Deus, então os movimentos da vontade devem pertencer à sua natureza. Se pertencem à natureza, ocorrem necessariamente. A alma racional escolhe, e escolhe em razão de sua natureza.

Como é possível, então, culpá-la, se o que se chama pecado advém de um movimento natural, e necessário?? Nes-te contexto, Agostinho concorda que a necessidade é contrá-ria à vontade, mas em um sentido bem preciso: a vontade não seria vontade se fosse submetida a uma tal necessidade. "Pois se este movimento [a saber, pecaminoso] existe por natureza ou por necessidade, de modo algum pode ser culpável.""'"

A resposta consiste, nesse caso, em desvincular vonta-de e necessidade. O movimento pecaminoso da vontade é próprio dela, mas não é natural. Vimos que a dinâmica espi-ritual é orientada: não se trata de mero movimento, mas sim de movimento de retorno ao Criador. É este o movimento natural. Mover-se na direção contrária, ou — mais precisamen-te — furtar-se ao movimento natural é que consiste em peca-do. O mal não é substância porque tem como origem a von-tade, ou melhor, uma ausência de vontade: à medida que, estagnada na soberba, não realiza o movimento para o qual é vocacionada, a vontade se perverte e origina o mal.

Neste quadro, portanto, Agostinho admite a identida-de entre natureza e necessidade; neste quadro, a necessidade exclui a vontade: onde há necessidade não há vontade. Argu-mento semelhante Agostinho vem a utilizar contra os estói-cos, a propósito do modo como eles (de acordo com a recons-trução agostiniana) tentaram afastar o perigo da necessidade.

Cf. lib. arb. III i 2.

LIVRE-ARBÍTRIO E LIBERDADE NA CONDIÇÃO HUMANA 311

O Livro V, capítulo x, da Cidade de Deus mostra que a necessidade pode ou não ser pertinente à vontade. No terre-no daquilo que não está em nosso poder, como a morte, é claro que tal necessidade se oporia à liberdade.

"Com efeito, se nossa necessidade é aquela que não está em nosso poder, e ainda que não queiramos acontece o que ela pode, tal como a necessidade da morte, então é claro que as nossas vontades, segundo as quais se vive retamente ou mal, não estão sob tal necessidade. Pois fazemos muitas coisas que, se não quiséssemos, de modo algum faríamos: a estas per-tence em primeiro lugar o próprio querer, pois se queremos, existe, se não queremos, não existe". (De ciuitate dei V x — DK 208)."

Se quero, há querer; se não quero, não há querer. Neste plano, é absurdo falar em `não querer querer, mas querer'. Não pode haver um querer contrário à vontade, nada pode ser causa do próprio querer senão ele mesmo. Por isso é livre o arbítrio da vontade.

Este sentido de necessidade, portanto, é alheio ao li-vre-arbítrio da vontade. A vigência de tal necessidade exclui por princípio o querer da vontade, pois implica dizer que algo não está em poder da vontade, não está ao seu alcance. Só podemos reconhecer a diferença entre a possibilidade ou im-possibilidade de realizar alguma coisa se isto está ou não ao nosso alcance; mas para saber se está ao alcance, é preciso querer e não conseguir. Assim, o querer é um pressuposto da distinção entre ter ou não o poder para algo. O querer tem de estar ao alcance da vontade: é justamente ele o que permi-te que a vontade conheça seus limites.

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De fato, para mostrar a excelência das naturezas espi-rituais, Agostinho assinala precisamente a coincidência da alma humana consigo mesma, seja como razão, seja como vontade. Assim é que, ao percorrer o itinerário das criaturas em busca de Deus, o espírito estará no ponto culminante, na medida em que interroga as criaturas ate interrogar "aquele mesmo que interroga". (cf. en Ps. XLI 7). Assim é que na es-cala entre sentidos externos, sentido interno e razão, apenas esta conhece a regra que a situa, a regra que preside sua pri-mazia. Embora ainda precise procurar a transcendência, a alma racional já pode localizar na sua especial identidade con-sigo mesma o privilégio de ser imagem de Deus.

Ora, assim também a vontade é vontade livre j ustamen-te porque há originariamente uma identidade da vontade consigo mesma. Há um domínio em que a necessidade não pode atingir a liberdade da vontade; se falamos da necessida-de de morrer, morrer ou não morrer está fora de nosso po-der. Mas há um domínio em que a vontade é exercida sem impedimentos, por sua própria natureza.

É importante assinalar ainda que esta desvinculação entre necessidade e vontade permite a introdução do segundo sentido da necessidade que aqui nos interessa, este sim per-tinente à vontade, ao seu livre-arbítrio, mas pertinente de modo afirmativo. A vontade é necessariamente livre.

Esta necessidade identitária não impede, mas sim fun-damenta a vontade. Aquilo que pertence à natureza, ocorre necessariamente; mas isto não é um obstáculo à vontade, por-que diz respeito à sua identidade. A vontade necessariamente quer; a vontade é originária, natural e necessariamente livre. A fim de esclarecer este novo sentido, praticamente oposto ao primeiro, no tocante ajo livre-arbítrio da vontade, Agosti-nho o situa no mesmo plano de certa necessidade que vigora também para Deus, sem submetê-lo.

LIVRE-ARBÍTRIO E LIBERDADE NA CONDIÇÃO HUMANA 313

"Mas caso se defina a necessidade segundo a qual dizemos ser necessário que algo seja assim ou aconte-ça assim, não sei por que a temeríamos, como se nos tomasse a liberdade." (ciu. V x; DK 208)"`''

Esta necessidade não ameaça a liberdade, assim co-mo há certa necessidade em Deus, e isso não diminui sua onipotência.

"Pois também não submetemos a vida e a presci-ência de Deus à necessidade, se dissermos ser neces-sário que Deus sempre viva e conheça previamente todas as coisas, assim como o seu poder também não diminui, quando se diz que não pode morrer nem er-rar." (id. ibid., grifos nossos)."

Isto é, há uma necessidade que concerne até mesmo a Deus, sem limitar seu poder, sua potestas. Por quê? Porque, se pudesse morrer ou se enganar, aí sim seria menor o seu po-der. Ser onipotente quer dizer não poder morrer nem se en-ganar. "Assim, por isto não pode certas coisas: porque é oni-potente." (id. ibid.).xviii

Agora passamos à aplicação sobre o homem do mesmo princípio, isto é, Agostinho mostra que há um sentido im-portante em que a necessidade concerne ao livre-arbítrio, mas concerne positivamente. É necessário que a vontade tenha livre-arbítrio, pois é da sua natureza querer por si mesma. Esta necessidade não suprime a liberdade, assim como a an-terior não limitou a onipotência divina. Assim, dando conti-nuidade ao trecho que acabamos de citar, Agostinho estabe-lece a comparação:

Identidade
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Embora ainda precise procurar a transcendência, a alma racional já pode localizar na sua especial identidade consigo mesma o privilégio de ser imagem de Deus.
Identidade
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Ora, assim também a vontade é vontade livre j ustamente porque há originariamente uma identidade da vontade consigo mesma. Há um domínio em que a necessidade não pode atingir a liberdade da vontade; se falamos da necessidade de morrer, morrer ou não morrer está fora de nosso poder. Mas há um domínio em que a vontade é exercida sem impedimentos, por sua própria natureza.
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"Do mesmo modo, também quando dizemos ser necessário que, quando queremos, queiramos com li-vre-arbítrio; e sem dúvida o dizemos, e não por isso sujeitamos o livre-arbítrio à necessidade que suprime a liberdade." (id. ibid. DK 208-209)xix

Até aqui, de acordo com esses dois sentidos da neces-sidade, o pecado não é necessário. Seja porque está no do-mínio da vontade, em seu poder, diferentemente da senec-tude e da morte, seja porque é contrário à natureza mesma da vontade. Porém, como explicar então a necessidade de pecar? Não ficam aqui novamente embaralhados os dados do problema?

Agostinho entende que há sim uma necessidade à qual a vontade está submetida, necessidade que se contrapõe à sua liberdade. Mas este é um terceiro sentido da necessidade, sentido que a polêmica contra o pelagianismo explicitará. Os pelagianos defendem a natureza humana de tal necessidade de pecar; Agostinho não entende que a natureza humana seja pecaminosa, mas sim que o homem carece do socorro da graça. A eles, Agostinho contrapõe a exigência da graça, ou a alternativa entre a necessidade do pecado e a cura pela graça. O que falta fundamentalmente aos pelagianos é reconhecer o papel da graça, papel que escamoteiam ao discutirem o problema fazendo o elogio da natureza humana: "os inimigos da graça escondem-se no louvor da natureza". c. ep. Pel. II i 1.xx

LIVRE-ARBÍTRIO E LIBERDADE NA CONDIÇÃO HUMANA 315

Pelágio Os pelagianos querem mostrar que a necessidade de

pecar, afirmada por Agostinho, como herança do pecado ori-ginal, dissolveria a própria noção de pecado. Como querem preservar a noção de pecado, não aceitam a necessidade. Para eles, ou bem há necessidade de pecar, e não há pecado, ou há a dupla possibilidade de pecar ou não; ou bem há bipolaridade da vontade, ou não há. Se não há, não há pecado; para haver, tem de haver bipolaridade, e está excluída a necessidade de pecar.

A estratégia pelagiana, com vistas a mostrar que a vontade humana tem de ser independente, consiste em apon-tar uma alternativa sob diferentes roupagens, entre a necessi-dade que suprime a vontade, de um lado, e a possibilidade de a vontade não pecar, de outro. As alternativas contêm sem- pre um termo que afirma a inevitabilidade do pecado e o descaracteriza como pecado, confrontada com uma expres-são da liberdade da vontade, única pela qual a culpabilidade estaria preservada.

Caso seja necessário pecar, o pecado estaria excluído e/ ou descaracterizado, porque tal necessidade suprimiria o li-vre-arbítrio. A necessidade de pecar aniquilaria a vontade, seu livre-arbítrio, e por isso mesmo não haveria mais como atri-buir pecado a uma ação ou decisão humana.

Agostinho, contrariamente, nega que a necessidade de pecar suprima a vontade. Antes tal necessidade é expressão do livre-arbítrio de uma vontade não obstante existente, per-sistente. A necessidade de pecar exprime a incapacidade doen-tia, isto é, segundo uma condição e não segundo a natureza, incapacidade de realizar uma de suas opções reais possíveis, a saber, pecar ou não pecar.

Doença
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Agostinho, contrariamente, nega que a necessidade de pecar suprima a vontade. Antes tal necessidade é expressão do livre-arbítrio de uma vontade não obstante existente, persistente. A necessidade de pecar exprime a incapacidade doentia, isto é, segundo uma condição e não segundo a natureza, incapacidade de realizar uma de suas opções reais possíveis, a saber, pecar ou não pecar
Doença
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Os pelagianos defendem a natureza humana de tal necessidade de pecar; Agostinho não entende que a natureza humana seja pecaminosa, mas sim que o homem carece do socorro da graça. A eles, Agostinho contrapõe a exigência da graça, ou a alternativa entre a necessidade do pecado e a cura pela graça. O que falta fundamentalmente aos pelagianos é reconhecer o papel da graça,
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A concepção pelagiana, já confrontada com as respos-tas de Agostinho, pode ser estudada segundo as alternativas formuladas nas definitiones pelagianas de Celéstio (cf. De perfectione iustitiae hominis).

O primeiro argumento' do pelagiano Celéstio concer-ne à inevitabilidade do pecado. Se Agostinho afirma que o pecado é necessário, dizem os pelagianos que isto o descarac-terizaria como pecado. Não seria justo considerar pecado o que não pode ser evitado. Ou pode ser evitado, ou não pode. Se não pode, se é necessário, então não é pecado.

Agostinho responde que pode sim ser evitado, desde que a natureza seja restaurada (sanetur9) pela graça. A necessidade de pecar advém de a natureza estar atingida pelo vício. Não deixa, contudo, de ser capaz de evitar o pecado, assim como a cegueira não significa que o olho não seja, do ponto de vista de sua natureza, capaz de ver. A cegueira do espírito (sua inca-pacidade de evitar o pecado) é a concupiscência da carne, a concupiscência da carne contra o espírito. Por causa da con-cupiscência, o homem, espírito, não logra fazer o que quer.

"Fazer" significa aqui não ainda agir, mas tão-somente querer o bem; a natureza do espírito quer querer bem, mas não consegue. A concupiscência da carne a impede de querer o bem que a natureza quer querer. No plano do livre-arbí-trio, há possibilidade; não no plano da liberdade. O livre ar-bítrio tem a possibilidade natural de não pecar. Porém, agra-vada pelo pecado original, sua natureza perde a liberdade e carece da graça para ser desimpedida.

Não retomamos aqui todos os argumentos de Celéstio examinados por Agostinho em de perfectione iustitiae hominis. Destacamos apenas aquilo que permite sublinhar o que nos pareceu o aspecto central da polêmica.

9 perf. iust. II 1; p. 4, l. 18.

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No entanto, isto pareceria paradoxal, porque a capaci-dade de não pecar não está mais ao alcance da vontade; para-doxal, pois se trata aqui justamente da identidade da vonta-de. Como então a vontade não está ao seu próprio alcance? Dissemos acima que a necessidade não atinge a vontade, por-que é da identidade da vontade o querer livremente. Naque-les termos, seria paradoxal que o querer não estivesse ao al-cance da vontade. Entretanto, esta identidade será abalada. Se no plano da natureza há identidade da vontade, imago dei, identidade perfeita na condição adâmica, na condição huma-na após a queda, a vontade se verá confrontada consigo mes-ma. O que era paradoxal tornou-se a condição real dos her-deiros de Adão.

Assim, para responder à alternativa pelagiana entre ne-cessidade e vontade, e agora sim afirmando uma certa neces-sidade sob a qual se encontra a vontade humana, Agostinho remete à Epístola aos Romanos (Rm vii 14-ss.), onde Paulo mostra a fratura da vontade. Aqui já não está em discussão a natureza humana intacta, mas sim a corrupção da vontade e o conflito consigo mesma, até que a graça venha sanar a na-tureza. O conflito da vontade é paralisante porque a concu-piscência, a inclinação do espírito para a carne significa a so-berba de ficar em si mesmo, depositar no homem a esperança, negando o imperativo de depositar sua esperança em Deus. (cf. s. CLIII vi,8 — vii,9.). A seguir, esta paralisia pode ser co-mentada a partir da necessidade de pecar gerada pelo pecado de Adão.

O desafio subseqüente dos pelagianos explicita a no-ção de necessidade. Ora, o pecado concerne à vontade ou à necessidade? Analogamente à primeira ratiocinatio de Celéstio, se é necessário, não é pecado; só é pecado se pode ser evitado. A resposta agostiniana vai buscar nas Escrituras, nos Salmos, o sentido adequado desta necessidade que ata a von-

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tade, ou mais precisamente, desta necessidade da qual apenas Deus pode libertar o homem: "arranca-me de minhas neces-sidades", Salmo 25 (24), 17, ou "Puseste minha alma a salvo das necessidades", Salmo 31 (30), 8'. Não está mais em jogo aquela primeira necessidade, a necessidade da morte, expres-são da finitude; tampouco se trata aqui da necessidade acar-retada, positivamente, pela identidade originária. Agora, a necessidade é resultado da miséria dos peregrinos. Não é sua natureza que os leva a pecar: pecam porque estão exilados dela. O livre-arbítrio que têm precisa ser desatado dos nós em que ele mesmo, pelo pecado original, se enredou.

No início deste capítulo, afirmamos que Agostinho ca-racteriza o pecado de modo negativo. O pecado consiste na perversão de não realizar o movimento de retorno ao Cria-dor. Cada ato humano ou é um ato moral de retorno ao cria-dor, cumprindo a vocação da natureza espiritual, ou não é. O pecado original, por sua vez, tem a peculiaridade de imo-bilizar completamente a vontade: ele não consiste apenas em uma ausência de movimento. Adão pecou ao pretender não mais precisar se mover em direção a Deus, ambicionando a posse do fruto da árvore do saber. A soberba, "início de todo pecado" (Eclesiástico 10, 15' ), imobilizou a vontade quando deu ouvidos à promessa da serpente (Gênesis 3, 5), a promessa de o homem vir a se tornar divino10

A pretensão de se alçar à condição divina significa uma imobilização voluntária, da qual ele mesmo, por seu próprio arbítrio, não pode mais sair. "Pudemos deformar a imagem de Deus em nós, não podemos reformar."'°"" A natureza hu-

10 A soberba paralisante e a atenção à promessa da serpente são comenta-das por Agostinho em Gn. litt. XI xv (sobre Eclesiástico 10, 15) e XXX

(sobre o diálogo entre Eva e a serpente).

LIVRE-ARBÍTRIO E LIBERDADE NA CONDIÇÃO HUMANA 319

mana, tal como criada, é boa; por isso, Adão não tinha ne-cessidade de pecar, seu livre-arbítrio (sua natureza espiritual) podia ser plenamente exercido. Mas, uma vez que pecou es-colhendo não mais se mover em direção a Deus, perdeu por si mesmo a liberdade. A natureza humana perverteu seu mo-vimento em paralisia, "pois, vencida a vontade pelo vício em que tombou, careceu de liberdade a natureza". (De perfectione iustitiae hominis iv 9).'°"°

O único remédio para a necessidade em que tombou é a graça divina. A graça restitui ao livre-arbítrio, à natureza, a sua liberdade. Aquele movimento natural de retorno ao Criador pode, com a graça, se realizar. Se a miséria humana, o conflito do espírito consigo mesmo, é um castigo pelo pecado original, a graça será não uma recompensa, mas a libertação propiciada ao livre-arbítrio pela misericórdia divina: "O Deus justo condenou o homem, o Deus misericordioso liberta o homem." s. XLIII 1.'°"

A discussão sobre a graça, único remédio contra a ne-cessidade de pecar, é o lugar de aprofundamento, ou melhor, de exposição das raízes da solução agostiniana — talvez de sua situação. O importante é a radicalidade desta matriz. Aqui se apresenta com nitidez a idéia de uma identidade transcenden-te, cujo abandono e afronta constituiu o pecado original. O pecado original não é meramente uma transgressão. O or-gulho que reveste marca a transgressão como perversão do pri-vilégio da vontade, ao negar a transcendência (cujo sentido vem a ser restabelecido pela graça).

Assim como há duas inquietudes — aquela comandada pela vocação de retorno ao Criador, e aquela que surge do conflito do espírito consigo mesmo — há, concomitantemen-te, duas dependências: aquela que exprime meramente o fato de o homem não ser seu próprio fundamento, e aquela que diz respeito já à necessidade da graça.

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É na natureza que repousa a garantia contra a necessi-dade. A natureza, agora preservada apenas no plano da trans-cendência, é o repositório da liberdade. Por ser natureza, é a garantia última da identidade. Se a cisão paulina marca o li-vre-arbítrio, deixando ao menos entrever a diferença entre a condição e a natureza (cisão versus identidade), a teoria da graça vai definitivamente dar contornos mais precisos aos ter-mos da questão.

De que modo, então, o livre-arbítrio da vontade hu-mana está preservado, não apenas a despeito, mas também e sobretudo por causa da presciência divina? Em linhas gerais, porque a presciência divina, como expressão da onisciência e onipotência divinas, é depositária da natureza do homem. Se o livre-arbítrio já devia seu ser finito ao ser infinito de Deus, se a transcendência é o fim a que aspiram, em graus variados de perfeição, todas as criaturas, e se esta aspiração, do ponto de vista humano, se realiza justamente no exercício da vonta-de livre, porquanto é de um Deus transcendente e criador que provêm todos os seres e para onde devem voltar, então a con-sideração da condição humana posterior ao pecado original permitirá entender em toda a sua radicalidade esta extraposi-ção da natureza do homem: não nele, mas fora dele, em Deus. Isto é, a natureza está fora, mas apenas na medida em que Deus está acima do homem; mas como fundamento, origem, é interior. O homem, peregrino, é que está longe de si mes-mo. "E eis que estavas dentro e eu, fora." (conf. X xxvii 38)I'

11 "et ecce intus eras et ego foris...". "Ainda que se subordine ao todo, sacri-fique aparentemente o seu eu, ele [o homem] alcança com isso de fato a completude mais elevada e mais feliz de sua pessoa". "Auch wenn er sich dem Ganzen unterordnet, sein Ich scheinbar opfert, erreicht er dadurch

L IVRE-ARBÍTR IO E L IBERDADE NA CONDIÇÃO HUMANA 321

No plano cosmológico isto já era compreensível medi-ante a vocação de toda criatura para procurar o repouso no retorno ao Criador. Mas sobretudo no plano moral, a inquietude especificamente humana encontrará uma explica-ção diferenciada: a cisão paulina, como conflito entre o espí-rito e a carne, traduz a corrupção da natureza humana, e su-blinha a necessidade de reconhecer a transcendência como fundamento desta natureza, e (após a queda) depositária desta natureza.

"Nenhuma coisa guarda a integridade de sua na-tureza a não ser que esteja preservada (salua) em seu gênero próprio. Ora, toda saúde (salvação; salus) pro-vém daquele do qual provém todo bem; mas todo bem provém de Deus: então toda salvação provém de Deus." uera rel. xviii 36.xxvi

Se considerarmos agora a tripartição da filosofia em Lógica, Física e Ética, talvez possamos dizer que a teoria da graça deverá finalmente fundamentar o método e a cosmolo-gia. De fato, a teoria da graça explica o processo, a trajetória de cada homem, desde o uso imaturo da razão até a fé obtida pela graça. A relação entre fé e razão corresponde à trajetória em um sentido mais denso — na perspectiva da graça, isto é, desde a condição adâmica, pelo pecado e pela Lei, até a con-

tatsächlich die höchste und beglückendste Vollendung seiner Person". (Mausbach, J., Die Ethik des heiligen Augustinus. Freiburg-i-B.: Herdersche, 1909, v. I, p. 156)

Disserta Final
Highlight
"Nenhuma coisa guarda a integridade de sua natureza a não ser que esteja preservada (salua) em seu gênero próprio. Ora, toda saúde (salvação; salus) provém daquele do qual provém todo bem; mas todo bem provém de Deus: então toda salvação provém de Deus." uera rel. xviii 36.xxvi
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templação, depois da graça do Cristo.12 Também concerne diretamente à cosmologia, porque a graça é que vem a res-taurar a natureza humana. Isto é, a teoria da graça permite explicar por que a miséria e o mal moral não pertencem po-sitivamente ao universo criado pela Providência, permite qua-lificar os males, distinguindo o mal metafísico, evitando estetizar a miséria e o mal moral (punição e pecado). Assim, nem a natureza humana é má, nem é o mundo na sua condi-ção atual expressão dessa natureza originária e essencialmen- te boa.

Finalmente, se a liberdade é autodeterminação, se a li-berdade é o exercício pleno da identidade, ela só pode estar posta ali onde a natureza está preservada, lá onde a memória encontra o que perdera exatamente em razão do orgulho de querer se alçar à natureza de Deus. Sendo assim, não é con-traditório que a liberdade consista em submissão: o que cabe ao homem é reconhecer, além de sua finitude e de sua misé-ria, que sua identidade está preservada e assegurada por Deus:

"Eis a nossa liberdade, nos submetermos a esta verdade: e ela é o nosso Deus que nos liberta da morte, isto é, da condição do pecado." lib. arb. II xiii 37.xxvii

12 Esta imbricação da relação entre fé e razão com a importância da graça é tema do Sermão XLIII, ao qual recorremos neste e no segundo capítulos.

LIVRE-ARBÍTRIO E LIBERDADE NA CONDIÇÃO HUMANA 323

"quam non fecerit deus".

"qui uero non astrorum constitutionem, sicuti est cum quidque concipitur uel nascitur uel inchoatur, sed omnium conexionem seriemque causarum, qua fit omne quod fit, fati nomine appellant: non multum cum eis de uerbi controuersia laborandum atque certandum est, quando quidem ipsum causarum ordinem et quandam conexionem dei summi tribuunt uoluntati et potestati, qui optime et ueracissime creditur et cuncta scire antequam fiant et nihil inordinatum relinquere; a quo sunt omnes potentates, quamuis ab illo non lint omnium uoluntates." DK 201. Para facilitar a localização das citações, indicaremos neste capítulo a paginação da 4a edição Dombart-Kalb (DK) da Cidade de Deus.

"omnis humana uita subuertitur, frustra leges dantur, frustra obiurga-tiones laudes, uituperationes exhortationes adhibentur, negue ulla iustitia bonis praemia et malls supplicia constituta sunt." DK 204.

iv "auctor omnis conditorque naturae." ciu. V ix; DK 206. v "non ergo propterea nihil est in nostra uoluntate, quia deus praesciuit

quid futurum esset in nostra uoluntate. non enim, qui hoc praesciuit, nihil praesciuit." ciu. V x. DK 209.

vi "neque enim ideo non peccat homo, quia deus ilium peccaturum esse praesciuit; immo ideo non dubitatur ipsum peccare, cum peccat, quia ille, cuius praescientia falli non potest, non fatum, non fortunam, non aliquid aliud, sed ipsum peccaturum esse praesciuit. qui si nolit, utique non peccat; sed si peccare noluerit, etiam hoc ille praesciuit." id. ib.; DK 210.

vii" "uncle absit a nobis eius negare praescientiam, ut libere uelimus, quo adiuuante sumus liberi uel erimus." ciu. V x; DK 209.

viii "inquietum est cor meum donec requiescat in te". conf. I i 1.

'x "sicut creatore opus habebamus ut essemus, sic saluarore ut reuiuisce-remus." s. XLIII 1.

x c. Adim. XXVI: "dupliciter enim appellatur maluco: Anum quod homo facit, alterum quod patitur; quod facit, peccarum est; quod patitur, poena." cf. Jolivet, p. 43.

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324 MOACYR NOVAES

xi Gn. litt. inp. I: "omne quod dicitur malum aut peccatum esse aut poenam peccati". cf Jolivet, p. 43.

x" exp. prop. Rm. 12. "liberum ergo arbitrium perfecte fuit in primo homine, in nobis autem ante gratiam non est liberum arbitrium, ut non peccemus, sed tantum ut peccare nolimus. gratia uero efficit, ut non tantum uelimus recte facere, sed etiam possimus, non uiribus nostris, sed liberatoris auxilio, qui nobis etiam perfectam pacem in resurrectione tribuet, quae pax perfecta bonam uoluntatem consequitur."

"natura quippe hominis primitus inculpara et sine ullo uitio creata est; natura uero ista hominis, qua unusquisque ex Adam nascitur, iam me-dico indiget, quia sana non est." xiv id. 3: "si enim natura uel necessitate iste motus existit, culpabilis esse nullo pacto potest."

xv "si enim necessitas nostra illa dicenda est, quae non est in nostra potes-tate, sed etiamsi nolimus efficit quod potest, sicut est necessitas mortis: manifestam est uoluntates nostras, quibus recte uel perperam uiuitur, sub tali necessitate non esse. multa enim facimus, quae si nollemus, non utique faceremus. quo primitus pertinet ipsum uelle; nam si uolumus, est, si nolumus, non est".

xv' "si autem ilia definitur esse necessitas, secundum quam dicimus necesse esse ut ita sit aliquid uel ita fiat, nescio cur eam timeamus, ne nobis libertarem auferat uoluntatis."

xvii "negue enim et uitam dei et praescientiam dei sub necessitate poni-mus, si dicamus necesse esse deum semper uiuere et cuncta praescire; sicut nec potestas eius minuitur, cum dicitur mori fallique non posse." (grifos nossos).

xv1" "uncle propterea quaedam non potest, quia omnipotens est." xix "sic etiam cum dicimus necesse esse, ut, cum uolumus, libero uelimus

arbitrio: et uerum procul dublo dicimus, et non ideo ipsum liberum arbitrium necessitati subicimus, quae adimit libertarem."

xx "lateant inimici gratiae in laude naturae". xxi "de necessitatibus mei educ me". "saluam fecisti de necessitatibus ani-

mam meam." citações dos Salmos conforme o texto do de perfectione iustitiae hominis iV 9.

LIVRE-ARBÍTRIO E LIBERDADE NA CONDIÇÃO HUMANA 325

xxii "initium omnis peccati superbia", na Versão citada por Agostinho.

"imaginem in nobis dei deformare potuimus, reformare non possu-mus." s. XLIII 4.

xxiv "uicta enim uitio in quod cecidit uoluntate caruit libertate natura." xxv "iustus deus damnauit hominem, misericors deus liberat hominem." xxvi "nulla autem res obtinet integritatem naturae suae, nisi in suo genere

salua sit. ab eo est autem omnis salus, a quo est omne bonum, et omne bonum ex deo. salus igitur omnis ex deo."

xxvii "haec est libertas nostra, cum isti subdimur ueritati; et ipse est deus noster qui nos liberat a morte, id est a conditione peccati."

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C O N C L U S Ã O

É um grande livro a beleza da criatura: olha a beleza superior e a inferior, atenta, lê! Deus, para que o conheças, não fez letras com tinta: diante de teus olhos pôs as coisas mes-mas que fez. E procuras uma voz maior? Clamam para ti o céu e a terra: Deus me fez.'

Na introdução destes estudos, dissemos que há unida-de na filosofia de Agostinho, embora não haja um sistema filosófico agostiniano. Tal unidade manifesta-se na concep-ção da filosofia como studium sapientiae, permanente exercí-cio da razão e do livre-arbítrio, cujo termo será uma comple-xa afirmação da razão e da liberdade, combinada à sua negação parcial na condição de peregrinação. Depois de per-correr diferentes exercícios, podemos tentar outro modo de apresentar a unidade da filosofia agostiniana, de modo a arti-cular as diversas temáticas abordadas. Trata-se agora de real-çar a noção de itinerário, ou trajetória da razão, mediante a qual Agostinho pode trazer à luz uma exigência fundamental para a filosofia cristã, como forma mais acabada da filosofia. Esta exigência aparece ao longo dos exercícios, quando se compreende a subordinação da diversidade de temas da filo-sofia a dois temas principais: Deus e a alma racional.

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3 2 8 M O A C Y R N O V A E S

Com efeito, Agostinho afirmou, na juventude, que de-sejava conhecer unicamente "Deus e a alma", e nada além disso". Esta fórmula dos Solilóquios veio a ser uma verdadeira divisa de sua filosofia. De fato, depois dos diálogos iniciais, datados do período de Cassicíaco, dois temas continuaram presidindo sua obra ao longo de mais de quarenta anos: Deus e a alma humana. Neste livro, essa preponderância aparece ao longo dos diferentes capítulos, à medida que temas e exercícios diversos conduziam a atenção do filósofo para um princípio transcendente, através de um olhar para si mesmo. Mas a busca da transcendência e a investigação interior não impediram que também recomendasse: "olha o céu e a terra, os ornamentos do céu, a fecundidade da terra, o vôo das aves, o nado dos peixes, a força das sementes, a ordem dos tempos".'

Por que olhar para o mundo, se o que interessa são Deus e a alma? A resposta é simples: porque o olhar sobre o mundo pode levar o homem a olhar para si mesmo, para a sua alma, e, a partir daí, finalmente, para Deus, criador do mundo. É esse em princípio o roteiro percorrido naturalmen-te pelo homem para conhecer Deus. Com isso, Agostinho pretendia simplesmente interpretar uma passagem das Escri-turas citada amiúde em sua obra: "as coisas invisíveis de Deus (...) são vistas, inteligivelmente, através das coisas que foram feitas" (Epístola aos Romanos 1, 20).1 O olhar sobre o mundo sensível transforma-se em olhar inteligível, e este aspira a con-

i "inuisibilia enfim dei (...) per ea, quae facta sunt, intellecta conspiciuntur".

Cf. uera rel. 52, 101. Consulte-se o estudo de Madec sobre a importân-cia desta frase da Epistola aos Romanos na obra de Agostinho: Madec, G., Connaissance de Dieu et action de grâces. Essai sur les citations de l'Ep. aux Romains, I, 18-25 dans l'ceuvre de saint Augustin. Recherches augustiniennes II (1962) 273-309. Paris: Etudes augustiniennes, 1962.

CONCLUSÃO 329

templar finalmente o Deus invisível. Sendo assim, fica asse-gurada a primazia de Deus e da alma.

Esta resposta é simples e correta. Agostinho adotou ex-pressamente este itinerário, ao mesmo tempo interiorizante e ascendente, em muitas de suas obras. O mundo é um livro, que deve ser lido interiormente e conduzir a atenção para o alto: "olha os feitos, e procura quem os fez"."' Mas como ler o livro do mundo? Se esta metáfora não é exclusivamente agos-tiniana2, ainda assim é possível distinguir um perfil próprio da interpretação que Agostinho propõe para esse lugar co-mum. De seus textos ressalta o imperativo de ler e decifrar o livro do mundo. Sua crítica aos "filósofos deste mundo" (cf. Io. eu. tr. ii 4, entre outros), em particular ao platonismo, pode ser estudada à luz deste imperativo, ou melhor, à luz do modo como se realiza este esforço. A filosofia agostiniana, in-terpretando o cristianismo, elabora concomitantemente uma forma própria de ler o livro do mundo.

Em primeiro lugar, é preciso tentar ler o mundo; mas é preciso também, e principalmente, ler corretamente, porque a leitura do livro do mundo é uma decifração. A língua em que está escrito não pode ser entendida imediatamente. Não por acaso, Agostinho associa o texto da Epístola aos Romanos (Rm 1, 20) citado acima à Primeira Epístola aos Coríntios (1 Cor 13, 12): "agora vemos através de um espelho, obscuramente".

2 Cf. Curtius, E. R., Literatura Européia e Idade Média Latina. S. Paulo: Edusp, 1996, 2a ed., em especial o cap. XVI, "O liVro como símbolo" (7: O LiVro da Natureza, p. 395-ss.).

3 "uidemus nunc per speculum in aenigmate". Sobre a interpretação de aenigmate como `obscuramente', cf. trin. XV, viii 14 — ix 16 e Mayer, C. P., Die Zeichen in der geistigen Entwicklung und in der Theologie des jungen Augustinus. Würzburg: Augustinus-Verlag, 1969, p. 346-ss.

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Dado o primeiro passo, vale dizer, uma vez que o mundo é olhado como um sistema de signos a ser decodificado, resta ainda saber como decodificá-lo, e fundamentalmente para qual significado ele aponta. Segundo Agostinho, apenas a fi-losofia do cristianismo, depois de tantos outros esforços, foi capaz de apreender não apenas que o mundo tem significação, mas também de apreender qual é o verdadeiro e único significado deste livro do mundo.4

O cristianismo não foi a única nem a primeira tentati-va de identificar no mundo ao menos um sinal da verdade. Outras filosofias também se empenharam nesta tarefa. Algu-mas com menor, outras com maior sucesso. Das formas mais rudimentares de idolatria até o refinamento do neoplatonis-mo, é possível constatar um empenho em auscultar a voz com que falam os elementos do universo. O que distingue o cris-tianismo e assinala seu lugar de excelência consiste numa peculiar atenção àquilo que diz essa voz das criaturas (cf. en. Ps. 144, 13), ou uma particular compreensão dessa "eloqüên-cia das coisas" (ciu. XI xviii).

O que distingue o cristianismo, segundo Agostinho, pode ser apontado, genericamente, no itinerário de ascensão das criaturas até Deus. O fato de este itinerário não ser exclu-sivamente cristão — uma vez que também no platonismo é possível assinalar um movimento semelhante, do mundo sensível ao mundo inteligível — exige compreender qual a especificidade do cristianismo. O que faz com que a acepção cristã seja distinta das outras? Para compreender isso, pode-mos recorrer a um importante elemento da filosofia agos-tiniana. Trata-se de uma metáfora, em torno da qual será

4 No primeiro capítulo, discutimos essa diferença entre signo, significação e significado.

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possível apresentar a crítica de Agostinho ao platonismo, isto é, àquela filosofia que esteve mais próxima da sua concepção do cristianismo.

Agostinho situava o cristianismo face ao platonismo segundo a metáfora da pátria e do caminhos Do ponto de vista da ascensão facultada pela leitura do mundo, o plato-nismo logrou ver no mundo finito um itinerário ascendente em direção a Deus. Desse modo, o platonismo divisou a pá-tria da qual os homens estão exilados, proclamada pela voz do mundo. Os filósofos platônicos perceberam o espetáculo maravilhoso do mundo, e não estacionaram em idolatria, não se detiveram na identificação de deuses por toda parte. An-tes, souberam (ao menos parcialmente) decifrar a mensagem dos seres finitos: a ordem, a medida e a beleza presentes em sua finitude provêm de um ser infinito, fonte de toda ordem, fonte de toda medida, fonte de toda beleza.6

Entretanto, o erro do platonismo, o que o separa radi-calmente do cristianismo, foi não haver reconhecido no ser infinito, termo final da ascensão, também o fundamento e garantia única da mesma ascensão. Nos termos da metáfora: os seguidores de Platão viram uma pátria, mas não identifi-caram a pátria com o caminho que leva até ela. O caminho, bem entendido, não é simplesmente aquele itinerário ascen-

Um estudo sobre a importância desta metáfora em Agostinho encon-tra-se em Holte, R. Béatitude et Sagesse. Saint Augustin et le problème de la fin de l'homme dans la philosophie ancienne. Paris: Études Augus-tiniennes, 1962, cap. XIII. Consulte-se também, Madec, G. La patrie et la voie (le Christ dans la Vie et la pensée de saint Augustin). Paris: Desclée, 1989. Collec. "Jésus et Jésus-Christ", n. 36.

6 V. ep. 118, na qual Agostinho expõe a Dióscoro as Vantagens do plato-nismo, se comparado ao estoicismo e ao epicurismo.

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dente, já indicado na Epístola aos Romanos (Rm 1, 18-ss.), do sensível ao inteligível. Agora, trata-se das condições para per-correr este itinerário, isto é, a metáfora do caminho diz respeito à mediação entre o finito e o infinito. Os platônicos viram o itinerário, mas não teriam compreendido adequadamente as condições para percorrê-lo. Nos termos da metáfora, não aceitaram que a mesma pátria fosse o caminho, que o infinito e absoluto fosse também a própria mediação. Sintoma disso foi a procura, por neoplatônicos como Porfírio, de demônios mediadores, metade humanos, metade divinos. (cf. ciu. X xxxii e conf. X xlii 67 — xliii 70)7.

Nesta referência sumária à crítica agostiniana da ascese platônica, queremos apenas destacar um de seus aspectos, a saber, a exigência de que a verdadeira ascese reconheça que o seu termo, o Deus absoluto, é igualmente o caminho, a me-diação indispensável para que o homem finito chegue ao Deus infinito. Agora é cabível perguntar de que modo a filosofia agostiniana acredita ser fiel a esta exigência. De que modo Agostinho é capaz de decifrar o livro do mundo, encontran-do ali signos de uma pátria que é ao mesmo tempo caminho?

7 Madec aponta cons. eu. i, conf. Vii, ciu. x, trin. iV como "un ensemble impressionnant sur la doctrine du Verbe incarné et l'attitude qu'elle déter-mine chezAugustin à l'égard du néoplatonisme." (Madec, G., Connaissan-ce de Dieu et action de grâces. Essai sur les citations de l'Ép. aux Romains, I, 18-25 dans l'ceuvre de saint Augustin. Recherches augus-tiniennes II (1962) 273-309, p. 286-7). Camelot estuda comparatiVa-mente trin. iV e cons. eu. i. Camelot, Th. A l'éternel par le temporel (De Trinitate, IV, xviii, 24), Revue des Etudes Augustiniennes 2 (1956) 163-172.)

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Apresentamos ao longo destes estudos a resposta de Agostinho segundo diversos pontos de vista, organizados, porém, em torno de uma estratégia básica, uma dupla estra-tégia filosófica. Trata-se, em primeiro lugar, de discernir, mes-mo na finitude do mundo, signos que apontem para o alto, para um Deus apartado, absoluto; em segundo lugar, trata-se de discernir signos que apontem também para o interior, para um Deus presente como fundamento e mediação. Esta in-quirição agostiniana da finitude parece nítida e explicitamen-te desenvolvida num `diálogo de juventude', o diálogo Do mestre (De magistro).

O De magistro tem a reputação de apresentar uma mi-nuciosa e pioneira análise da linguagem, talvez mesmo uma teoria da linguagem. Nosso estudo deste diálogo pretendeu sublinhar um movimento fundamental para o pensamento de Agostinho: nele podemos reconhecer que a metáfora da pátria e do caminho ganha densidade. Exatamente porque discute o valor das palavras, da linguagem e dos signos em geral, este diálogo nos ofereceu uma primeira aproximação ao modo como Agostinho concebia a decifração do livro do mundo. Sendo assim, fizemos um exame do De magistro, no intuito de delinear um modelo da estratégia filosófica agosti-niana. Foi este o primeiro passo para apresentar o modo como Agostinho explora a experiência com a finitude, obtendo ele-mentos para conhecer "Deus e a alma". Deus, como absoluto e mediador; a alma, como excelente dentre as criaturas e por isso mesmo consciente de que precisa ir além de si mesma.

Mas isso sugeriu certas ambigüidades. Em primeiro lu-gar, a linguagem acerca da natureza divina será ambígua, na medida em que Deus é duplamente caracterizado: aparta-do do mundo e mediador. Por sua vez o homem, ou pro-priamente a alma humana, e objeto de uma "psicologia" igualmente ambígua: privilegiado entre as criaturas porque é

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consciente de sua própria insuficiência. Essas ambigüidades, retomadas nos nossos diferentes capítulos, proporcionam um movimento pendular e paradoxal: ora a análise sublinha um aspecto, ora sublinha o outro, como que hesitando. Mas Agostinho ocupava-se voluntariamente com paradoxos e enigmas. Na discussão de temas gerais, bem como de temas específicos, a vocação dos exercícios filosóficos é explorar o atrito propiciado pela estranheza, pela contraposição.

Na primeira parte deste livro, ocupamo-nos de temas gerais, onde ambigüidades e conflitos foram explorados, par-ticularmente com vistas ao enfrentamento dos temas apre-sentados na segunda parte. Assim, após a apresentação do diálogo Do mestre, onde a análise da linguagem oferece um paradigma do que chamamos de movimento pendular, apre-sentamos um quadro geral, mediante os temas da razão e da fé, dos nomes de Deus, e da cosmologia. Esses temas servi-ram de base para o exame específico de outros conceitos: eter-nidade, tempo e liberdade.

Tentemos agora uma aproximação mais precisa, no in-tento tanto de sugerir a articulação e o encadeamento possí-veis dos exercícios da razão aqui estudados, como de assina-lar uma conseqüência da noção de mediação descendente. Qual o resultado, ainda em linhas gerais, do estudo da signi-ficação presumida em toda experiência? Com que proveito se estudam as ambigüidades e paradoxos propiciados pelo tempo, pelo jogo entre razão e fé, pela liberdade? De que modo o atrito produzido a partir destes enigmas pode pro-porcionar alguma luz? Nossa intenção foi mostrar que a es-tratégia de Agostinho consiste em exibir uma exigência. Com efeito, os paradoxos são significativos à medida que, a partir do mundo e do homem' apontam para Deus. Porém, mais especificamente, o que está em jogo é a exigência — que se torna nítida em cada exercício com a finitude — de que não

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só o olhar se dirija para Deus, mas que reconheça, ainda uma vez de modo paradoxal, que ali ("fora", "além") encontra-se autêntica identidade da razão. Assim, a razão que investiga deverá reconhecer que está fora dela o fundamento mesmo da racionalidade. Analogamente, o livre arbítrio deverá en-contrar a liberdade (autonomia) numa lei que lhe é exterior, e por isso aparentemente alheia a ele (heteronomia).

Retomemos pois, sumariamente, uma temática central para os estudos agostinianos. Parece haver um conflito entre o livre arbítrio da vontade humana e a presciência divina. Deste conflito surgiria um dilema entre afirmar um ou ou-tro. Afirmar o livre arbítrio implicaria negar a presciência; em contrapartida, a afirmação da presciência esvaziaria de senti-do a afirmação do livre arbítrio. Agostinho, entretanto, en-tende que não há conflito, e por isso não há dilema: é possí-vel afirmar os dois. E não só é possível como também consiste em imperativo para o espírito religioso afirmar piedosamente os dois termos deste suposto dilema.

Como explicar o aparente paradoxo da reunião entre liberdade e onisciência divina? A idéia fundamental para a dissolução do conflito aparente entre livre-arbítrio e onisci-ência pode ser estudada como confluência dos três domínios da filosofia, conforme a tripartição estóica que Agostinho empregou em diversas ocasiões: filosofia racional, natural e moral, ou Lógica, Física e Ética8.

Compreender esta resposta de Agostinho, que se recu-sa a aceitar a existência de um dilema, defendendo os dois termos da alternativa, significa compreender tanto o signifi-

8 Cf. ciu. VIII e ep. 118, 3, 19: "nosti enim, quicquid propter adipiscendam sapientiam quaeritur, aut de moribus aut de natura aut de ratione habere quaestionem" (grifos nossos)

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Gado daqueles termos supostamente em conflito, quanto um método filosófico que assume, axiomaticamente (porque amparado nas Escrituras) seja que a vontade possui livre ar-bítrio, seja que Deus é presciente (onisciente). Este recurso axiomático às Escrituras foi explicado desde o início destes estudos. Primeiro, uma vez que apresentamos o valor das pa-lavras segundo sua "utilidade", a saber, tão-somente um valor admonitório, que serve para exortar o espírito a que procure o significado, a que procure a verdade de um texto no qual só lhe é possível, inicialmente, crer. As palavras servem para incitar o espírito a procurar a inteligência daquilo em que tem fé racional. Sendo assim, discutimos esse método também ao estudar a articulação entre razão e fé, de modo a apontar o papel estratégico da axiomática agostiniana na legitimação do cristianismo como filosofia.

Neste plano, que reúne mais explicitamente "lógica" e "física", já foi possível indicar o elemento central da solução agostiniana: o espírito torna-se religioso à medida que ama-durece e se torna cada vez mais espírito, está cada vez mais próximo da realização de sua natureza. Mas a realização da sua natureza é, paradoxalmente, o reconhecimento de que ela está extraposta. Depois de buscá-la em si mesmo, o espírito

mann, 1980, p. 75-96, Beierwaltes, W, Platonismus und Idealismus. Frankfurt a. M.: V. Klostermann, 1972, e Madec, G., "Platonisme" des Pères. Catholicisme — hier, aujourd'hui, demain (Encyclopédie publiée sous le patronage de l'Institut catholique de Lille). Paris: Letouzey et Ané, 1988. V. XI, coll.491-507.

25 "... a estabilidade (stabilitas) do Ser não quer dizer paralisia" ("... die Festigkeit (stabilitas) des Seins nicht Starrheit meint." Beierwaltes, W., Identität t und Differenz. Frankfurt a. M.: Klostermann, 1980, p. 34.)

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descobre que sua identidade está fora, alhures, mas não alheia. Está fora, seja porque o pecado a rompeu, seja porque ela está preservada, salva, em um plano transcendente. Mas este é apenas um aspecto da solução: neste plano, a razão descobre que seu fundamento está além dela. Sem tornar-se com isso irracional, a fé — e apenas a fé — permitirá que a razão busque sua identidade numa razão transcendente. A consciência de que não pode contar apenas consigo faz com que a razão hu-mana tenha na fé um estímulo, de sorte a procurar além da inteligência parcial dos conteúdos da fé; mas essa remissão além da razão será ela também racional, em vista do que Agos-tinho chamou de "grande razão".

Entretanto, de que modo uma razão finita e dependen-te pode aspirar a conhecer a razão que a transcende? Com efeito, a tarefa de depositar em Deus a identidade última da natureza humana exige que seja possível algum discurso so-bre Deus. Estudamos então o paradoxo contido no impera-tivo de a razão humana se dedicar a um conteúdo que a ul-trapassa: Deus. Como é possível nomear ou dirigir-se para Deus? Tentamos aqui apresentar o problema "teológico" fun-damental para as Confissões de tal forma, que a inefabilidade divina — decorrente das limitações do homem — e o caráter absoluto de Deus não obstassem sua atividade nem sua pre-sença no mundo. Tratava-se de mostrar como essa atividade e essa presença são decisivas para fundar a atividade humana, especialmente o exercício mesmo de confessar a grandeza divina e a pequenez humana. A aspiração ao repouso é então o reconhecimento de uma dependência originária do homem, por força da qual seus trabalhos se mostrarão sempre apenas uma cooperação com a iniciativa divina, cooperação por isso mesmo assimétrica.

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"Afim de que eu contemple o deleite do Senhor. Eis o que amo, eis por que quero habitar a casa do Se-nhor por todos os dias da minha vida. Há ali um grande espetáculo, contemplar o deleite do Senhor ele mesmo. ... Ele ascende, nós somos elevados... Afastai do espírito todo conteúdo, negai tudo o que se apresentar ao vosso pensamento; tomai consciên-cia da insuficiência do vosso coração e, tão logo se ofereça a vós uma representação pensável, dizei: não é isso; se fosse isso, ainda não me teria vindo à men-te" (en. Ps. XXVI, s. ii 8)9.

Isso traz um sentido especial à expressão interior inti-mo, porquanto explica também o que é a memória resgatada por estes exercícios. Eles não significam apenas a constatação de algo superior, mas da presença de algo superior. Por outro lado, devemos ter o cuidado de não tentar reduzir a psicologia agostiniana a um esquema. O exame do homem interior, ain-da que obedeça a um programa filosófico preciso, é marcado sempre por aquilo que Grabmann chamou de psicologia em-pírica, isto é, a exploração da riqueza psicológica humana:

9 ""ut contempler delectationem domini". ecce quod amo, ecce quare uolo habitare in domo domini per omnes dies uitae meae. habet ibi magnum spectaculum, delectationem ipsius domini contemplari. (...) ille adscendit, nos leuamur (...) totum ab animo reicite, quidquid occurrerit negate; cognoscite infirmitatem cordis uestri, et guia uel occurrit quod cogitare possetis, dicite: non est illud; non enfim si illud esset, mihi iam occurrisset." A tradução do último trecho citado é de Maria José de Almeida, reproduzida de Pépin, J., "Santo Agostinho e o Ocidente", in Châtelet, E, História da Filosofia (Idéias, Doutrinas). Rio de Janeiro: Zahar, 1974. V. 2, A filosofia medieVal, p. 86.

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"A psicologia metafísica de Agostinho, seu esqua-drinhamento da essência da alma, tem como pressu-posto uma rica e correta observação das funções e manifestações da vida da alma. Na obra de Agosti-nho, abriga-se um núcleo de psicologia empírica." (grifos do autor)'°

Isso quer dizer, afinal de contas, que as linhas gerais da análise psicológica agostiniana e da descoberta da presença da iluminação divina são tão-somente a tradução de uma rica análise de conteúdo que as precede. Como nos adverte tam-bém Gilson, "toda substituição do real por conceitos abstra-tos, e da investigação da experiência concreta por uma análi-se geométrica, repugna ao agostinismo autêntico."" Por isso, o movimento que procuramos descrever — pelo qual a procu-ra de compreender a natureza divina se desdobra na confissão como interpelação do homem interior — será examinado no seu exercício mesmo, isto é, na meditação confessional sobre as Escrituras.

Serão as Escrituras o material fundamental para o exa-me da duplicidade na descrição da grandeza de Deus e da pe-

10 "Augustins metaphysische Psychologie, seine Ergründung des Wesens der Seele, hat zur Voraussetzung eine reiche und richtige Beobachtung der Funktionen und Erscheinungen des Seelenlebens. In Augustins Schriften ist eine Fülle empirischer Psychologie geborgen." M. Grabmann, Die Grundgedanken des heiligen Augustinus über Seele und Gott. Colônia: J.P.Bachem, 1929, 2a ed. reelaborada, p. 21.

11 "toute substitution de concepts abstraits au réel et d'une analyse géométrique à l'investigation de l'expérience concrète repugne à l'essence même de l'augustinisme authentique." Gilson, E. L'avenir de la métaphysique augustinienne, p. 374-5.

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quenez do homem. Agora, aquele como eternidade atempo-ral e criadora; e este encontrando no tempo a experiência de sua finitude (dessemelhança) e ocasião de aspirar à eternida-de (semelhança). Desse modo, poderemos entender a distân-cia bem como a mediação, no plano da filosofia natural, en-tre a eternidade e o tempo, e, no plano da filosofia moral, entre a vontade onipotente de Deus e a vontade finita do homem. Como imagem da identidade perfeita, a vontade é autêntica, causa primeira; mas também como imagem, im-perfeita, finita, tem de saber que não repousa nela o seu fun-damento último. Trata-se de um deslocamento em direção à plena identidade, deslocamento originário ditado pelo ato mesmo da Criação.

Este movimento já estava anunciado desde o início; agora é possível compreendê-lo do ponto de vista da ordena-ção dinâmica, isto é, como dinamismo próprio à hierarquia. O espírito maduro reconhece sua condição `excêntrica'. Sen-do assim, foi preciso investigar os fundamentos cosmológicos e morais do movimento de busca da identidade na transcen-dência. Estudamos, para tanto, como Agostinho concebe o livre arbítrio da vontade, de sorte que não está em conflito com a presciência divina, e até mesmo carece dela. Procuran-do acompanhar certa linha argumentativa ao longo da qual a concepção agostiniana da liberdade vai se tornando mais cla-ra, foi possível assinalar dois momentos sucessivos básicos. Em primeiro lugar, a defesa geral da existência do livre arbí-trio e de seu papel privilegiado na ordem universal. A partir daí, examinamos um segundo grande movimento, no qual estudos específicos enfrentam o tema da mediação descen-dente, de sorte que vai se revelando a presença da liberdade, quer na relação entre eternidade e tempo, quer na explicação da diferença entre o livre-arbítrio e a liberdade.

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Em suma, o exercício da razão, indissociável da vonta-de racional, implica uma trajetória ascendente e interiorizan-te, cuja garantia vem a ser descoberta na transcendência, como mediação descendente. A descoberta de tal dependên-cia vem de par com a inspeção da fratura da vontade, patolo-gia da natureza na condição humana decaída. Daí resulta que a razão deve afirmar-se no mesmo movimento em que entrevê sua própria integridade e identidade para além dela mesma. O fundamental aqui, nos parece, é novamente um paradoxo que deverá alimentar continuamente o studium sapientiae. Embora aquela extraposição da identidade pareça resultar na supressão da atividade humana, o reconhecimento da liberdade no plano da transcendência deverá ser concomitante com a reafirmação e exercício do livre-arbítrio e da razão finita.

"est quidam magnus liber ipsa species creaturae: superiorem et inferio-rem contuere, attende, lege. non deus, unde eum cognosceres, de atramento litteras fecit: ante oculos tuos posuit haec ipsa quae fecit. quid quaeris maiorem cocem? clamat ad te caelum et terra: deus me fecit." s. LXVIII 6. (grifos nossos). sol. i 7: A. "deum et animam scire cupio. `Deus e alma desejo conhecer. R. nihilne plus? Nada mais? A. nihil omnino." Nada, absolutamente." iii' "intende caelum et terram, ornamenta caeli, fecunditatem terrae, uolatus auium, natatus piscium, uim seminum, ordinem temporum. intende facta, et quaere factorem." s. 126, 3. s. 126, 3; texto latino à nota iii, acima.