17
NOVO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO EM ENGENHARIA José Roberto Cardoso Em 1990 as escolas de engenharia norte americanas receberam relatório da “Boeing” que impactou a educação em engenharia daquele país e teve eco em todo o planeta. Este relatório foi divulgado no momento em que aquela empresa identificou perda de competitividade dos Estados Unidos por deficiência na formação de seus engenheiros. O cerne desta questão não era o conteúdo, mas tocava em pontos que não estavam na pauta dos gestores acadêmicos por, assim entenderem, não fazer parte das competências que deveriam ser ensinadas nas escolas. Na visão da Boeing, os atributos do bom engenheiro são: - Boa formação nos fundamentos da ciência da engenharia: Matemática (incluindo estatística), Física e ciências da vida; Tecnologia da Informação (mais do que saber usar computadores) - Boa formação em projetos e processos de manufatura: Perspectiva de sistemas multidisciplinares -Entendimento básico do contexto no qual a engenharia é praticada: Economia (incluindo prática de negócios); História; Meio Ambiente; Necessidades dos clientes e da sociedade - Habilidade de comunicação: Escrita, oral, gráfica e comunicação em língua estrangeira - Padrões éticos elevados - Senso crítico e criativo com independência e cooperação - Adaptar-se as fortes mudanças, com agilidade e autoconfiança - Curiosidade e desejo de aprender a vida toda - Consciente da importância do trabalho em equipe Este documento norteou profunda reflexão e levou a grandes mudanças na educação em engenharia, sobretudo pela consciência de que o engenheiro deste século deve ser capaz de: conduzir atividade que aplica o conhecimento profundo de fundamentos técnicos; ser líder na criação e operação de novos produtos, processos e sistemas e entender a importância do impacto estratégico da pesquisa e do desenvolvimento tecnológico na sociedade.

NOVO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO EM ENGENHARIAsites.poli.usp.br/org/informativos/Institucional/DOCUMENTOPUC-MG.pdf · a exercer atividades fora da engenharia, apesar desta virtude ser

  • Upload
    builiem

  • View
    214

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

NOVO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO EM ENGENHARIA

José Roberto Cardoso

Em 1990 as escolas de engenharia norte americanas receberam relatório da “Boeing” que impactou a educação em engenharia daquele país e teve eco em todo o planeta. Este relatório foi divulgado no momento em que aquela empresa identificou perda de competitividade dos Estados Unidos por deficiência na formação de seus engenheiros. O cerne desta questão não era o conteúdo, mas tocava em pontos que não estavam na pauta dos gestores acadêmicos por, assim entenderem, não fazer parte das competências que deveriam ser ensinadas nas escolas. Na visão da Boeing, os atributos do bom engenheiro são: - Boa formação nos fundamentos da ciência da engenharia: Matemática (incluindo estatística), Física e ciências da vida; Tecnologia da Informação (mais do que saber usar computadores) - Boa formação em projetos e processos de manufatura: Perspectiva de sistemas multidisciplinares -Entendimento básico do contexto no qual a engenharia é praticada: Economia (incluindo prática de negócios); História; Meio Ambiente; Necessidades dos clientes e da sociedade - Habilidade de comunicação: Escrita, oral, gráfica e comunicação em língua estrangeira - Padrões éticos elevados - Senso crítico e criativo com independência e cooperação - Adaptar-se as fortes mudanças, com agilidade e autoconfiança - Curiosidade e desejo de aprender a vida toda - Consciente da importância do trabalho em equipe Este documento norteou profunda reflexão e levou a grandes mudanças na educação em engenharia, sobretudo pela consciência de que o engenheiro deste século deve ser capaz de: conduzir atividade que aplica o conhecimento profundo de fundamentos técnicos; ser líder na criação e operação de novos produtos, processos e sistemas e entender a importância do impacto estratégico da pesquisa e do desenvolvimento tecnológico na sociedade.

Estas competências são exigidas na prática da engenharia moderna e fazem parte da nova visão do perfil do engenheiro, que devido a globalização passou a assumir mais responsabilidades na sociedade moderna. O Brasil como agravante não necessita somente de mais engenheiros, necessita de um novo tipo de engenheiro para competir com os engenheiros mais talentosos de outras nações. Engenheiros brasileiros devem estar aptos a agregar mais valor ao seu trabalho que seus colegas do exterior, com visão intelectual abrangente, com capacidade de inovar, fascinado pelo empreendedorismo e com habilidades para enfrentar os grandes desafios do mundo moderno. A característica típica do trabalho do engenheiro moderno é que o trabalho não-técnico exerce, cada vez mais, um papel maior do que aquele esperado por nossos estudantes; já no inicio da carreira o engenheiro sente falta de competências não-técnicas. Tais desafios incluem: “interdisciplinaridade”, isto é, habilidade de trabalhar em áreas técnicas diferentes da sua formação; iniciativa, especialmente a de se defender para que suas ideias sejam adotadas; entendimento da diferença entre trabalho escolar em equipe e a colaboração em rede praticada nas empresas, onde profissionais, com responsabilidades distintas sobre um determinado projeto trabalham em equipe no seu próprio espaço e separadas fisicamente. A tradição da escola, também conhecida como ”Alma Mater”, exerce influência importante no comportamento dos graduandos. Diferentes tradições implicam diferentes trajetórias na carreira do engenheiro. Os estudantes oriundos das universidades, nas quais a interconexão entre os saberes é intensa, são os mais favorecidos, e se habilitam, inclusive, a exercer atividades fora da engenharia, apesar desta virtude ser apontada como distorção por muitos. No entanto, isto é subproduto da interdisciplinaridade praticada na engenharia contemporânea. Prática x Ciências da Engenharia A formação do engenheiro evoluiu bastante a partir da segunda metade do século passado. Até meados da década de 1950 o enfoque do ensino de engenharia era essencialmente prático. As turmas eram pequenas e predominava no currículo aulas de laboratório e trabalhos

em campo. Olhando fotografias de aulas daquela época é fácil identificar o foco da prática, alunos e professores sempre estão com capas ou macacões manipulando equipamentos supervisionado por um professor. A década de 1960, por sua vez, é considerada a era de ouro da educação em engenharia, o conteúdo estava equilibrado entre a prática e as ciências da engenharia, o corpo docente era constituído por um mescla de jovens pesquisadores, muitos ainda não titulados, e professores seniores. A chegada da década de 1970 levou à aposentadoria àquela parte do corpo docente familiarizado com as atividades práticas e foram imediatamente substituídos por jovens engenheiros cientistas. Com isto, o contexto da engenharia caminhou para a década de 1980 na direção das ciências da engenharia, os estudantes foram formados sob um arcabouço científico mais afeto à pesquisa que, apesar de suas virtudes, não se coadunava com o perfil exigido pelo setor produtivo. Não foi por acaso que nesta época se deu o inicio da reação das empresas à academia.

Sir Ken Robinson descreve bem “Out of Our Minds” a postura do professor do ensino superior de nossos dias. Segundo Ken Robinson o professor universitário tenta moldar o estudante à sua imagem, como fez o Criador. Sua realização se dá ao ver seu discípulo seguir seus passos, ao se dedicar à carreira acadêmica, como um ato de autoreprodução. A pesquisa é fundamental para o desenvolvimento tecnológico de um país e todos os engenheiros devem ter consciência clara disso, no entanto, esta carreira costuma ser solitária, seus valores e competências são caracterizados pelo individualismo e não pelo trabalho em equipe, como é exigido na engenharia de nossos dias.

O novo contexto da engenharia No contexto atual, a engenharia é caracterizada pelo enfoque à pesquisa científica. Os estudantes são estimulados a desenvolvê-la ainda na puberdade acadêmica. A estrutura do programa se inicia com dose concentrada de ciências básicas. Existe pouca diferença de conteúdo entre os primeiros semestres de um curso de engenharia e aqueles destinados aos alunos de física, matemática e química. O estudante de engenharia chega à escola com o desejo de poder criar com liberdade, realizar experiências que leu nos livros ou as viu nos numerosos documentários e programas de difusão científica veiculados na TV. Seu desejo é se ver dentro de uma oficina a manipular equipamentos modernos, tais como os robôs vistos nas grandes empresas e construir peças e dispositivos que ele mesmo projetou. Não é isso que encontra e grande parte deles nunca fará isso no ambiente da escola de engenharia. O único contato com a prática são as disciplinas de laboratório dirigidas, na qual um roteiro bem estabelecido deve ser seguido. A essência da prática na profissão não é aplicada na formação do engenheiro. Algumas iniciativas expontâneas dos próprios alunos, orientadas por professores que durante sua formação seguiram caminhos semelhantes, são dignas de destaque que voltaremos a falar delas. Creio que muitos professores em encontros informais com seus alunos ouviram várias vezes a célebre frase:

A felicidade maior que entrar na escola é sair dela

O novo contexto da escola engenharia contemporânea não é novidade, mas sua virtude está em resgatar a função básica das escolas que é formar engenheiros para exercer a engenharia em sua plenitude com as exigências tecnológicas deste século. Todo engenheiro deve ser capaz que realizar as quatro atividades principais de sua profissão, são elas: Concepção, Projeto, Execução e Operação ou, abreviadamente, CPEO como são citadas nas inúmeras publicações sobre a educação em engenharia moderna. A Concepção é a essência da criatividade. É o momento em que o sonho se concretiza em uma ideia, e ocorre quando estamos imbuídos na solução de um problema. Para que isto ocorra é necessário um

ambiente lúdico, onde as propostas e sugestões são colocadas em plena liberdade, sem hierarquias, para que o processo criativo seja eficiente. Citando Einstein que, embora pouco discutida, exercia a engenharia no escritório de patentes de Berna, Suiça, quando criou a Teoria da Relatividade em 1905:

Imaginação é mais importante que o conhecimento

O Projeto se refere ao arranjo inteligente de diferentes componentes, para trabalhar harmoniosamente e agregar valor a um produto ou realizar uma tarefa. Nesta etapa os conhecimentos tecnológicos são utilizados. Um bom projeto faz uso intensivo de simuladores, estabelecimento de planos de negócios e análise do ciclo de vida, quando o engenheiro avalia o impacto do seu produto em etapas anteriores à sua produção e também o seu destino quando for sucateado. O projeto não se faz apenas com o conhecimento tecnológico. Conhecimento de sistemas econômicos de outros países, conhecimento da cadeia de suprimentos, impacto ambiental e, em alguns casos, crenças religiosas, são fatores preponderantes para o sucesso do empreendimento.

Projeto não é só o que parece. Projeto é como funciona Steve Jobs

Após a Concepção e o Projeto é a hora da Execução, para dar vida ao produto ou sistema. Esta etapa é preciosa, pois mal conduzida pode levar bons planos e projetos falharem. Na execução, software e hardware devem ser integrados para agilizar a produção e dar mais confiabilidade e qualidade ao produto ou sistema. A Execução também é a etapa dos testes, verificações, validações e certificações. Uma bateria de testes deve contemplar, dentre outros, testes dimensionais, visuais, funcionalidade, confiabilidade, medidas de potência e energia, teste de qualidade de sinais e segurança. Em seu livro “Think like an engineer”, Mushtak Al-Atabi afirma:

Nunca vá direto para a Execução sem ter passado pelas etapas de

Concepção e Projeto

Nunca abandone sua criação. Após a Execução ainda há muito a fazer. O produto ou sistema produzido vai ser operado por alguém ou ser integrado em uma cadeia produtiva mais ampla. Antes de jogá-lo aos leões o produto deve ser acompanhado de um conjunto de documentos nos quais suas limitações e facilidades estejam explícitas de forma clara e concisa para auxiliar o ser humano a operá-lo. Na Operação, última etapa da criação, o desempenho deve ser acompanhado como um bebê ao dar seus primeiros passos. Um manual de operação deve ser bem redigido e claro o suficiente para o usuário, devem estar destacados os requisitos de segurança e manutenção e, o mais importante, o “check list” que deve ser cumprido antes de sua operação. A interface deve ser bem cuidada para que com simples contato visual o usuário consiga decifrar suas principais operações. Cuidar para que sejam utilizados ícones operacionais consagrados e de fácil identificação. Aos novos produtos são agregadas novas funções e, mesmo o operador mais experiente da versão anterior da mesma família de equipamentos, pode ser levado a erros irreversíveis se não for devidamene atencioso. A aeronáutica é um bom exemplo disto. Vários protótipos foram destruídos no primeiro vôo por erros de operação de equipamentos que não eram exigidos nos aviões até então pilotados pelo piloto de testes. A Boeing introduziu o check list em 1935 após o desastre com seu cargueiro militar que foi ao solo, por erro humano elementar, no primeiro vôo em sua pista de Dayton, Ohio. Os cirurgiões também aderiram a esta prática. Em uma recente cirurgia no joelho, enquanto estava deitado na sala de cirugia e com minha alma entregue ao Senhor, pude testemunhar uma reunião da equipe médica checando todos os equipamentos, material médico, conferindo dados de minha identidade e certificando-se sobre qual joelho seria operado. Após a intervenção perguntei ao cirurgião quantas cirurgias havia feito naquele dia, foram cinco e mais de mil ao longo de sua curta carreira e em todas elas o mesmo ritual é cumprido. Por fim, o Manual de Operações deve instruir o usuário sobre, dentre outros, os cuidados a ser seguido após a retirada de operações do equipamento com vista a reduzir o impacto ambiental e garantir a sustentabilidade.

O quadro a seguir, extraído “Rethinking Engineering Education 2nd. Ed.” de E.F.Crawley e colaboradores resume as ações de cada uma destas etapas cujo conteúdo mostra a forma de pensar do engenheiro contemporâneo que devem ser valorizadas nas novas estruturas curriculares dos cursos de engenharia.

CONCEPÇÃO PROJETO EXECUÇÃO 0PERAÇÃO Missão Restrições

do Projeto Projeto Básico

Projeto Executivo

Apoio à Produção

Integração de Sistemas

& Testes

Ações durante a Vida Útil

Evolução

-Estratégia de Negócios -Estratégia Tecnológica -Requisitos do Cliente -Objetivos -Concorren- tes -Planejamen- to inicial -Plano de Negócios

-Requisitos -Funções -Conceitos -Tecnologia -Arquitetura -Plataformas -Fatia do Mercado -Posiciona- mento -Regulamentos -Plano de Suprimentos -Compromissos

-Alocação de Requisitos -Modelo de Desenvolvimento -Análise do Sistema -Partição do Sistema -Especificações de Interfaces

-Componen- tes do Projeto -Verificação de Requisitos -Análise de Falhas e Contingências -Simulações -Validação do Projeto

-Produção do Hardware -Codificação do Software -Fontes -Relação de Testes -Refinamento

-Integração do Sistema -Teste do Sistema -Certificação -Implementação -Aceleração da Execução -Entrega

-Vendas & Distribuição -Operações -Logistica -Atendimento ao Cliente -Manutenção e Reparos -Reciclagem -Evoluções -Manual de Operação

-Melhoria do Sistema -Expansão da Família de Produtos -Retirada de Linha de Operação

Concepção-projeto-execução-operação da vida útil de um produto, processo ou sistema

Operação: ato ou conjunto de atos em que se combinam os meios

necessários à obtenção de determinados resultados

Dicionário Houaiss

Estudo de Caso O modelo concepção-projeto-execução-operação é responsável pelo sucesso de várias equipes de competição da Escola Politécnica da USP. Estas equipes são constituídas por estudantes de diversas habilitações, pois a interdiscipinaridade é exigida nas competições. A participação é voluntária e até 2014 não atribuia créditos ao histórico escolar do aluno. A Keep Flying é uma delas e vamos contar um pouco da sua história e de alguns de seus membros. De uma simples brincadeira com aeromodelos em 2003, uma equipe de estudantes se dedicou a levar a sério o projeto de aviões guiados para participar das competições do SAE Brasil Aerodesign, realizado anualmente em São José dos Campos com apoio da Embraer. Na primeira participação, a falta de experiência levou a construção de um protótipo superdimensionado e com fragilidades localizadas que os fizeram enxergar a grande diferença existente entre um aeromodelo e

um protótipo projetado para cumprir determinadas especificações da competição. A partir desta primeira experiência, a Keep Flying, resolveu se organizar e elaborou um plano para se tornar uma equipe competitiva. Foi o primeiro passo para conseguir o reconhecimento nacional e internacional que possui. A virtude da equipe foi aprender com erros e falhas. A importância de se aprender com os erros faz parte da história. Se você gosta de matemática e deste tipo de história já deve ter ouvido falar da conjectura de Shimura-Taneyama. A demonstração desta conjectura foi necessária para a demonstração do último Teorema de Fermat em 1994, 350 anos após seu enunciado, pelo matemático inglês Andrew Wiles. O texto escrito por Shimura, por ocasião do suicídio de Taneyama aos 31 anos, ilustra muito bem a importância do erro, disse ele:

“Embora não fosse um tipo relaxado, ele foi dotado da capacidade

especial de cometer muitos erros, a maioria na direção correta...”

Em 2004, segundo ano de sua existência, utilizaram compósitos e conseguiram 34ª. posição na classificação geral. A 13ª. posição obtida em 2005 foi uma evolução foi sensível e indicou aos seus membros que era possível chegar lá. A comparação entre os resultados obtidos no projeto e os testes realizados com o valor dimensionado da carga transportada e a apresentação oral foram determinantes para este bom desempenho. Com a chegada de 2006, a equipe introduziu testes em túnel de vento, e assumiu riscos ao dimensionar o carregamento de uma carga elevada da ordem de 12 kg, surpreendendo os demais competidores. Aquele cuidado com o projeto e a audácia no dimensionamento da carga foram os responsáveis pela conquista do 1º. lugar da competição. Com este feito, a equipe teve o direito de participar da versão 2007 da competição mundial SAE Aerodesign East, organizada pela Lockheed Martin em Fort Worth, Texas. O novo desafio passou a ser a construção de um avião competitivo para a competição internacional. A Keep Flying introduziu o conceito da engenharia simultânea, utilizou pela primeira vez o projeto paramétrico com otimização via algoritmo genético e, cheia de

coragem, viajou para os Estados Unidos. O esforço recompensou, pois obteve o 8º. lugar na classificação geral. Era possível chegar lá, pensou novamente a Keep Flying. Durante a competição americana de 2007 foi possível identificar avanços importantes que poderiam ser introduzidos. Apesar de alguns destes avanços conterem partes móveis, que são fontes potenciais de problemas e aumento de massa, a Keep Flying introduziu o uso de flaps, winglets e, sobretudo, novos materiais. Com estas inovações a equipe se manteve entre as principais do país, ao conquistar em 2008 o 2º. lugar na classificação geral, que lhe deu o direito de competir novamente na SAE Aerodesign East realizada em Marietta, Geórgia no ano seguinte. Toda a logística necessária para uma missão internacional foi disparada novamente; não só o projeto e construção da aeronave, mas também a obtenção dos recursos para viagem constituíram um desafio. Com apoios confirmados e aeronave construída a equipe chegou a Georgia com a experiência de veterana e determinada a ser partícipe relevante e não apenas mero competidor. A estratégia deu certa e a Keep Flying conseguiu o mais alto posto no pódio no SAE Aerodesign East edição de 2009. Além desta conquista a equipe também foi contemplada com o NASA System Engineering Awards pela melhor gestão de projetos. A equipe continua seu trabalho. Têm conquistado boas posições em todas as competições que participa. Sua visibilidade levou ao crescimento, a equipe atual é numerosa e construiu várias aeronaves. Destaca-se a aeronave ASA de 2010 que levantou 20 kg, a maior carga admissível pelos organizadores. Esta atividade voluntária continua atraindo estudantes de todas as habilitações da Escola Politécnica da USP. Apesar de sua importância na formação do engenheiro não atribuía créditos aos alunos engajados no projeto. Felizmente esta distorção foi corrigida na nova estrutura curricular em vigor desde 2014. Danilo Salgado, um de seus membros, ingressou na Escola Politécnica em 2005 e já no 2º. semestre se integrou à equipe. A Keep Flying tinha apenas três anos e sua recepção pelo Capitão Rodrigo Lavieri foi calorosa. Começou a estudar aeronáutica, ainda no primeiro ano. Conversou com veteranos, procurou literatura especializada e em pouco tempo dominava as ferramentas principais do projeto aeronáutico. Juntos dividiram o projeto em cinco atividades: Desempenho/mecânica do voo; estabilidade, aerodinâmica, propulsão e estruturas. Seu entusiasmo o levou a trabalhar nas três primeiras e seu esforço levou a insights importantes ao projeto.

Danilo cursava engenharia elétrica e sempre tentava associar as técnicas aeronáuticas às técnicas do eletromagnetismo que cursava ao mesmo tempo. Danilo era um dos homens do projeto e vivenciou a época áurea da equipe. Participou das duas competições internacionais. Perguntei a ele a razão do seu entusiasmo. A amizade, companheirismo, mão na massa, determinação em superar desafios foram fatores preponderantes que faziam a diferença naquele ambiente competitivo presente na Escola.

Keep Flying nos Estados Unidos

Danilo está agachado e de chapéu nesta fotografia. Junto dele os demais membros da equipe. A esquerda dois professores que os apoiaram entusiasmados desde os primeiros passos, ajudaram na obtenção de recursos financeiros, na cessão de espaços e também na orientação acadêmica deste trabalho voluntário. Saiu da equipe em 2009, pois precisava se formar. Foi convidado para trabalhar na Embraer, assim como outros da equipe, mas decidiu ficar em São Paulo. Trabalhou em grandes empresas em projetos complexos e multidisciplinares. Recentemente se mudou para outra grande companhia e trabalha em aérea estratégica na comercialização de energia. Perguntei a ele o que a Keep Flying o ajudou na vida profissional. Foi muito simples na resposta. Além de ter sido a melhor fase da minha vida, esta linha do meu currículo desperta interesse do entrevistador levando-o a indagar sobre a atividade. É nesta hora em que aproveito para destacar aqueles pontos que acho forte em minha personalidade, principalmente o

aprendizado com independência, boa comunicação escrita, oral e visual. Rodrigo Lavieri é engenheiro naval e tem 31 anos. Junto com colegas criou a Argonautas, start up dedicada à simulação e modelagem de projetos de engenharia naval e oceânica. A Argonautas presta serviço a grandes projetos de petrolíferas, principalmente à Petrobrás. Lavieri foi o Capitão da Keep Flying. Seu grande desafio era buscar patrocínio e compartilhava responsabilidades nos estudos de estabilidade e elaboração dos desenhos em CAD. Introduziu a engenharia simultânea e o projeto paramétrico com otimização via algoritmo genético. Seu entusiasmo foi marcado pela vontade de por a “mão na massa” e ver sua criação funcionando. Ingressou na equipe em 2003 e assumiu a liderança naturalmente em 2004, quando ainda cursava o segundo ano. Sua capacidade de concentração e determinação em ver a coisa bem feita são alguns dos diferenciais de Lavieri. Em tudo que se envolve se entrega na busca da perfeição, não só profissionalmente, mas também em suas atividades de lazer. Ficou especialista na fabricação artesanal de facas e cervejas. Destaca que o forte da Keep Flying é a forma de trabalho e a gestão do conhecimento, que é transmitido de geração em geração pelo cuidado extremo com a documentação. Perguntei a ele como conseguiu se destacar em engenharia aeronáutica sem ter estudado aquela especialidade. Sua resposta: “A sensação de ver seu avião voar é indescritível” afirmou-me.

A Keep Flying voando nos Estados Unidos

Gustavo Eidji Camarinha Fujiwara: Participou ativamente desde 2006. Atuava no projeto dos aviões. Seu depoimento retrata a importância desta atividade na formação do engenheiro contemporâneo e merece ser destacado. Está implícito no seu texto a prática das novas habilidades exigidas pela engenharia do século XXI. Gustavo: Os meus anos de envolvimento na competição estudantil do SAE Aero Design representando a Poli-USP e o Brasil através equipe Keep Flying foram de longe a experiência acadêmica mais enriquecedora durante a minha graduação, frutos esses que colho até hoje em minha vida profissional. Digo isso por vários motivos. Paixão: O Aero Design propicia a oportunidade de se encontrar e pôr em prática a peça fundamental para se exercer qualquer profissão com sucesso: PAIXÃO. Nenhum de nós enxergava retorno imediato algum pelas inúmeras horas que despendíamos para essa atividade. Nem monetário, nem em créditos acadêmicos, e (durante um bom tempo) nem de reconhecimento. O que nos unia era a pura e simples paixão. No meu caso pela aviação. Conhecimento Técnico e Aprendizado de Forma Independente: Muito provavelmente, este primeiro motivo seja a origem dos demais. Pessoas apaixonadas pelo que fazem não necessitam de motivação externa. Como se sabe a Poli não oferece formação em engenharia aeronáutica. O conhecimento que tínhamos dependia da nossa motivação e capacidade de se aprender por conta própria. Fazíamos dos livros nossos companheiros e dos estudos uma forma de empreender nosso tempo livre. Aprender a aprender. E por conta própria. Isso cria caráter, e dá confiança de que não existem limites para se aprender algo quando se tem paixão para ir atrás. Habilidades Interpessoais: Muitas vezes sacrificávamos muitos aspectos da vida pessoal como se ter mais tempo para a pesada carga das disciplinas dentro da sala de aula, vida pessoal, lazer, família, etc. Entretanto, muitas recompensas foram obtidas na forma de lições para a vida. Lidar com múltiplas tarefas ao mesmo tempo, tão importante em qualquer ambiente. Trabalhar em grupo. Honrar compromissos. Fazer planejamento de tempo pessoal. Interagir e se comunicar fora da área técnica (relatórios a patrocinadores, propostas de patrocínio, contato com fornecedores de materiais). Cumprir cronogramas e prazos apertados. Coordenar uma equipe. Liderar um time. Manter pessoas

motivadas. Distribuir tarefas. Saber cobrá-las. E sem paixão, seria muito mais difícil fazer tudo isso de forma harmoniosa. Amigos: Os amigos que cultivei durante esses anos são amigos que levo para a vida toda. Só nós sabemos o que passamos juntos. As noites em claro, os aprendizados, os investimentos, as viagens, as frustações, e as conquistas. Tudo o que tínhamos eram uns aos outros para contar. Varar uma noite em claro trabalhando por um mesmo objetivo, sem qualquer outro fim que não o desejo de sucesso em um projeto comum cria laços inigualáveis de amizade entre pessoas. Impacto na vida profissional: A minha experiência no Aero Design foi o que propulsionou muitas das conquistas que vieram depois em minha vida. O emprego na Embraer e a oportunidade de ter trabalhado no maior avião já fabricado no Brasil (KC-390), o início do mestrado em engenharia aeronáutica no ITA, seguido da oferta de bolsa para o mestrado também em engenharia aeroespacial na University of Illinois at Urbana-Champaign. O meu estágio de verão na NASA em um projeto de pesquisa sobre design e otimização da gerações de aeronaves comerciais futuras. E no presente momento, o meu doutorado na University of Washington em aeronáutica patrocinado por uma bolsa da NASA/Boeing/FAA. Gestão do conhecimento: Muita da inspiração que tive, tirei dos meus veteranos e colegas de equipe da Keep Flying. Devo muito a eles, e é por isso que escrevo este texto com tanto carinho. Um abraço, Gustavo Eidji Camarinha Fujiwara Os outros membros da equipe tiveram história semelhante e vários seguem carreiras profissionais ligadas à aeronáutica. Marcelo Pereira Pinto: Participou da equipe no período de 2006 a 2009 e atuava como o homem das finanças. Corria atrás de patrocinadores, verba da universidade, fornecedores, importações e foi o principal responsável pelo NASA System Engineering Awards em 2009. Atualmente trabalha na Petrobras. Gabriel Pinho Chiozzotto: Participou ativamente desde 2007 e atuava na parte projetos e aerodinâmica e desenvolvimento de modelos computacionais para simulação. Foi capitão da equipe em 2010. Hoje trabalha no DLR (centro aeroespacial alemão) em Göttingen. Vamos ler seu depoimento: Gabriel: Participar do AeroDesign na Keep Flying foi definitivamente uma das melhores decisões que tomei durante minha graduação na Poli.

Sempre fui apaixonado por aeronáutica e a Keep Flying me proporcionou aprender na prática como projetar, construir e testar um avião. É uma oportunidade única de compreender como funciona uma aeronave e as diversas áreas de projeto, desde a concepção até o primeiro voo. O trabalho em equipe realizado é de grande importância para complementar a formação de engenheiro. Hoje, trabalho com engenharia aeronáutica e a formação adquirida nos quatro anos que participei do AeroDesign está presente no meu dia a dia, auxiliando nas mais diversas atividades envolvendo desde problemas técnicos até planejamento e trabalho em equipe.

Papel do Professor Se o leitor digitar no Google o nome de Antonio Luis de Campos Mariani encontrará o Curriculum Lattes do Professor Mariani e vários outros localizadores relacionados à sua pesquisa e vida acadêmica. Além de ser um pesquisador produtivo, Mariani se dedica a diversos projetos ligados às equipes de competição e de responsabilidade social. Foi Mariani quem buscou internamente recursos e espaços para a Keep Flying, além de ajudá-los a dar os primeiros passos na sua luta vitoriosa. Conseguiu agregar outros colegas nesta tarefa, como o Prof. Alexandre Kawano. O papel do professor foi decisivo e, como disse Danilo Salgado, sem o Mariani não existiria equipe. Mariani coordena também o Poli Cidadã, o maior programa de cunho social da Escola Politécnica. Este programa já realizou mais de cem projetos de interesse de portadores de deficiência e de inserção social. Sua maior vitória, e de seus alunos, foi ver aprovado na recente mudança da estrutura curricular da Escola Politécnica da USP, seu pleito de atribuir créditos a estas atividades. Considerações Finais Este documento apresenta uma visão parcial do atual contexto da educação em engenharia. Destacam-se as novas habilidades requeridas do engenheiro que não são ensinadas nas escolas, mas que, no entanto deveriam ser estimuladas através de atividades extraclasse nas quais tais habilidades sejam praticadas. As iniciativas espontâneas dos alunos devem ser estimuladas, pois através delas os estudantes

conseguem enxergar a beleza da engenharia e praticar todas as etapas profissão, quais sejam: Concepção, Projeto, Execução e Operação. A busca de um novo ponto de equilíbrio entre a prática e a ciências da engenharia na estrutura curricular deve ser um objetivo a ser atingido, para despertar a criatividade, a liderança, a responsabilidade social e o empreendedorismo. Bibiografia