24
Traduzido do inglês por Cristina Rodriguez e Artur Guerra O AJUSTE DE CONTAS Jacob Soll The Reckoning Financial Accountability and the Rise and Fall of Nations

O AJUSTE DE CONTAS - static.fnac-static.com · Traduzido do inglês por Cristina Rodriguez e Artur Guerra O AJUSTE DE CONTAS ... contabilidade na cerâmica Wedgwood :: 158 9 :: Dívidas

  • Upload
    lediep

  • View
    213

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Traduzido do inglês por Cristina Rodriguez e Artur Guerra

O AJUSTE DE CONTAS

Jacob Soll

The ReckoningFinancial Accountability and the Rise and Fall of Nations

Índice

Prefácio :: Ajuste de contas: o marquês de Pombal e o problema

da responsabilização financeira :: 9Introdução :: 15

1 :: Breve história dos primórdios da contabilidade, da política

e da responsabilização :: 25

2 :: Em nome de Deus e do lucro: os livros segundo São Mateus :: 41

3 :: A magnificência dos Médicis: uma história de ensinamentos :: 57

4 :: O matemático, o cortesão e o imperador do mundo :: 79

5 :: A auditoria holandesa :: 104

6 :: O contabilista e o Rei Sol :: 124

7 :: O primeiro resgate financeiro :: 140

8 :: “Fama e lucro”: contabilidade na cerâmica Wedgwood :: 158

9 :: Dívidas grandes, números grandes e a revolução francesa :: 175

10 :: “O preço da liberdade” :: 193

11 :: Nos carris :: 214

12 :: O dilema de Dickens :: 228

13 :: Dia do julgamento :: 240

Conclusão :: 259

Agradecimentos :: 263

Notas :: 267

15

Introdução

Em setembro de 2008, precisamente quando eu estava a acabar um livro

sobre o francês Jean-Baptiste Colbert, o famoso ministro das Finanças

do rei Luís XIV, descobri uma coisa extraordinária: Colbert encomen-

dou livros de contabilidade em miniatura e com caligrafia dourada para

que o Rei Sol os transportasse no bolso do casaco. Duas vezes por ano,

com início em 1661, Luís XIV recebia as novas contas dos seus gastos,

da sua receita e do seu património. Era a primeira vez que um monarca

desta envergadura revelava um tal interesse pela contabilidade. Foi este,

ao que parece, o ponto de partida da política moderna e da responsa-

bilização*: um rei que trazia consigo o livro de contas de modo a que

pudesse estar a qualquer momento a par dos teres e haveres do seu reino.

Fiquei igualmente admirado ao descobrir a curta existência que esta

experiência teve. Pois assim que Colbert morreu, em 1683, Luís XIV –

constantemente no vermelho devido à sua predileção por guerras dispen-

diosas e palácios como Versalhes – desligou-se dos livros de contas. Em

vez de os considerar ferramentas de sucesso administrativo, Luís XIV

acabou por vê-los como ilustrações dos seus erros como rei. Ele criara

um sistema de contabilidade e de responsabilização e agora destruía a

administração central do seu reino. Isto fez com que fosse impossível

unificar a contabilidade de cada ministério num registo central e trans-

parente, como Colbert fizera, e de qualquer um dos ministros poder cri-

ticar, muito menos compreender, a gestão financeira do rei. Se uma boa

* Accountability é um termo da língua inglesa sem tradução exata para português. É um conceito da esfera ética da governação e da administração. Tem vários significados, entre os quais responsabilização, obrigação de prestar contas, transparência. É a obrigação de uma pessoa ou entidade prestar contas perante outra. Decidimos, assim, optar pelo termo responsabilização ao longo do livro, na certeza, porém, de que será sempre incompleto. (N. dos T.)

16

O AJUSTE DE CONTAS

contabilidade significava enfrentar a verdade quando as notícias eram

más, o rei, aparentemente, preferia agora a ignorância. Quando pronun-

ciou as suas famosas palavras, “l’Etat c’est moi”, queria mesmo que fosse

esse o significado. Um estado funcional deixava assim de interferir na

sua vontade pessoal. No seu leito de morte, em 1715, Luís XIV admi-

tiu que efetivamente levara a França à bancarrota com os seus gastos.

Em vez de ser uma relíquia de uma época já passada, a história da

ascensão e do declínio de Luís XIV pareceu-me demasiado familiar à

medida que ia digerindo a parábola dos livros de contas dourados do Rei

Sol. Nessa mesma semana de setembro, aconteceu uma história espan-

tosamente paralela durante o colapso do Lehman Brothers Bank. Um

monumento do capitalismo americano e mundial, o Lehman era agora

repentinamente exposto quase como uma miragem. Tal como Luís XIV

garantira o poder através da rejeição de uma boa contabilidade durante

a sua governação, assim fizeram os bancos de investimento norte-ame-

ricanos construindo riquezas imensas ao mesmo tempo que destruíam

as suas próprias instituições, adulterando os livros de contas através da

comercialização de muitas hipotecas imobiliárias de risco sobrevalori-

zadas e de swaps* com risco de incumprimento de crédito. Um sistema

financeiro, que fora considerado saudável tanto por contabilistas como

por reguladores, revelava-se agora disfuncional na conceção.

Tal como Luís XIV tinha preferido não saber, ao que parece Wall

Street e os seus reguladores tinham escolhido negligenciar todo o sis-

tema financeiro ameaçadoramente podre. O presidente da Reserva

Federal de Nova Iorque, Timothy Geithner, devia ter pelo menos um

conhecimento aprofundado dos mercados financeiros; no entanto, pare-

ceu não saber, ou não saber totalmente, o que estava a acontecer ape-

nas a alguns quarteirões do seu gabinete. A Securities and Exchange

Commission (Comissão de Valores Mobiliários), cuja responsabilidade

é supervisionar as boas contas das empresas, foi também apanhada des-

prevenida, tal como as quatro grandes firmas de auditoria: Deloitte,

* Os swaps são contratos de cobertura de risco, através dos quais se tenta proteger os financiamentos da variação da taxa de juro, permitindo a troca (swap ) de uma taxa variável por uma fixa (e vice-versa) (N. do R. T.)

17

INTRODUÇÃO

Ernst & Young, KPMG e Price WaterhouseCoopers. Ninguém, ao

que parecia, tinha efetivamente feito a auditoria dos livros de contabili-

dade dos bancos. Escapou-lhes o facto mal escondido de que o Lehman

Brothers praticou fraude contabilística para manipular as suas contas

e parecer solvente.1

Pouco depois do Lehman Brothers ter colapsado, em setembro de

2008, outros bancos de investimentos norte-americanos começaram a

cair, e o sistema financeiro mundial ficou sob ameaça de ruir. Em outu-

bro, a administração Bush saiu em socorro dos bancos para poder ati-

rar uma boia ao sistema financeiro. Foi assim que surgiu o programa

Troubled Asset Relief (TARP), que concedeu fundos em massa aos ban-

cos com problemas e colocou a economia capitalista norte-americana

num sistema governamental de suporte vital. Em 2009, Barack Obama

foi eleito presidente, promovendo Geithner a secretário do Tesouro.

No entanto, apesar das promessas de Obama de uma nova era de res-

ponsabilização nas contas, manteve-se a sensação de impunidade em

Wall Street. Os 350 mil milhões de dólares de recapitalização dos bancos

norte-americanos conseguiram impedir o caos financeiro que amea çava

desgastar a economia mundial. Porém, o dinheiro não implicava com-

promissos. Nunca se fizeram auditorias para ver como é que os bancos

o gastavam. A economia norte-americana oscilara, mas os banqueiros,

pelo menos, tinham evitado a averiguação das contas.

Seis anos depois, não são só os bancos a estarem ameaçados pela

crise financeira criada pela má gestão das contas. As nações líderes – os

Estados Unidos, os países europeus e a China – encontram-se perante

as suas potenciais maiores crises de contabilidade e responsabiliza-

ção nas contas. Dos bancos opacos e das dívidas soberanas da Grécia,

Portugal, Espanha e Itália, ao financiamento de municipalidades em

todo o mundo, parece haver pouca certeza nos balanços e nos relató-

rios de níveis de dívida e obrigações ao nível das pensões. A confiança

nos auditores privados e nos reguladores públicos também é cada vez

menor. No preciso momento em que mais precisamos de auditorias cui-

dadosas que confirmem os balanços, a SEC mantém-se lamentavelmente

subfinanciada, e a regulação governamental limitou a capacidade das

18

O AJUSTE DE CONTAS

Quatro Grandes empresas de auditoria de fazerem auditorias agressi-

vas às grandes firmas.

O protesto tem sido pouco ou nulo relativamente à responsabiliza-

ção financeira, quer pública quer privada. Ouvem-se queixas acerca da

impunidade dos bancos, por um lado, ou uma versão qualquer de indig-

nação relativamente à interferência governamental quanto à liberdade

de Wall Street, por outro. No entanto, não tem havido qualquer dis-

cussão séria acerca do que é exatamente a responsabilização financeira,

como é que funciona, de onde é que vem e porque é que as sociedades

modernas se encontram mergulhadas em crises não só de responsabi-

lização financeira, mas também política, à medida que os governos e

os cidadãos parecem incapazes ou sem vontade de exigir prestação de

contas quer às empresas quer a si próprios.

O Ajuste de Contas pretende intervir olhando retroativamente para

setecentos anos de história de responsabilização financeira, para com-

preender porque é que esta é tão difícil de alcançar. A contabilidade está

na base da construção dos negócios, dos estados e dos impérios. Ajudou

os líderes a elaborar as suas políticas e a medir o seu poder. Contudo,

quando praticada mal ou de forma negligenciada, a contabilidade tem

contribuído para séculos de destruição, como vimos muito claramente

na crise financeira de 2008. Desde a Itália renascentista, do império

espanhol e da França de Luís XIV até à república holandesa, ao império

britânico e aos Estados Unidos iniciais, a contabilidade eficaz e a res-

ponsabilização política fizeram a diferença entre a ascensão e a queda

da sociedade. As boas práticas contabilísticas deram azo muitas vezes

aos níveis de confiança necessários para fundar governos estáveis e socie-

dades capitalistas vitais, e as más práticas e consequente falta de res-

ponsabilização têm levado ao caos financeiro, aos crimes económicos, à

instabilidade civil e pior até. Tudo isto é tão verdade nas nossas dívidas

atuais de vários biliões de dólares e nos gigantescos escândalos finan-

ceiros como foi na Florença dos Médicis, na Era de Ouro da Holanda,

no auge do império britânico e, é claro, na Wall Street de 1929. Ao que

parece, o capitalismo e os governos prosperaram sem crises maciças

apenas durante diferentes e até limitados períodos de tempo quando a

19

INTRODUÇÃO

responsabilização financeira funcionou. Há quase um milénio que se

sabia como fazer boa contabilidade, mas muitas instituições e regimes

financeiros simplesmente escolheram não a fazer. As sociedades que

tiveram sucesso foram não só as que enriqueceram em contabilidade

e cultura comercial, como também as que conseguiram construir um

enquadramento sólido, moral e cultural, de modo a gerir o facto de os

seres humanos terem geralmente o hábito de ignorar, falsificar e falhar

na contabilidade. Este livro pretende examinar porque é que uma lição

tão simples tem sido aprendida tão raramente.

As primeiras sociedades capitalistas de sucesso desenvolveram siste-

mas de contabilidade e correspondente responsabilização financeira e

política. Em 1340, a República de Génova manteve um grande registo

no gabinete governamental central. Registava as finanças da cidade-

-estado através de livros de contabilidade por partidas dobradas. Esta

prática trouxe consigo uma forma fundamentalmente diferente de pensar

a legitimidade política: os livros com balanço significavam não só bons

negócios como também uma boa governação. A qualquer momento, a

república marítima sabia o estado das suas finanças e podia até fazer

planos para dificuldades futuras. Os genoveses, os venezianos, os flo-

rentinos, e outras repúblicas mercantis, ou pelo menos as suas classes

governamentais, podiam esperar um certo nível de responsabilização.

Isto foi o início da governação moderna como idealmente a imagina-

mos: semirracional, bem ordenada e geralmente contabilizada.2

E, no entanto, por mais sucesso que tenham tido, as sociedades e os

governos responsáveis mostraram ser difíceis de manter. No século

XVI, com o declínio das repúblicas italianas e a ascensão das gran-

des monarquias, o interesse pela contabilidade desvaneceu-se. Apesar

de os comerciantes estarem cada vez mais familiarizados com a prá-

tica da contabilidade por partidas dobradas, esta acabou por desapa-

recer como ferramenta administrativa fora da Suíça e da Holanda,

bastiões do republicanismo num mundo de monarquias. No auge do

Renascimento e da revolução científica que dele emergiu, entre 1480

e 1700, os reis interessaram-se verdadeiramente pela contabilidade.

O rei Eduardo VII, de Inglaterra, o rei Filipe II de Espanha, Isabel I,

20

O AJUSTE DE CONTAS

os grandes imperadores austríacos, Luís XIV e os reis alemães, suecos

e portugueses examinaram contas e mantiveram tesoureiros e livros

contabilísticos. No entanto, nenhum conseguiu, ou em última aná-

lise desejou, criar o tipo de sistema contabilístico estável, centralizado,

de partidas dobradas, tão cuidadosamente controlado pelos genove-

ses do século XIV e outras repúblicas do norte de Itália. Na verdade,

manter livros razão em bom estado implicava que o rei respondesse à

lógica dos livros de balanço. Por mais que tentassem reformar as suas

administrações, os monarcas acabavam por se ver a prestar contas a

Deus e não a contabilistas. Este conflito inerente entre monarquia e

responsabilização financeira ajudou a causar séculos de crise finan-

ceira europeia.

Os monarcas consideravam que as práticas transparentes de contabi-

lidade eram perigosas e, na verdade, podiam sê-lo. Em 1781, oito anos

antes da Revolução Francesa, o ministro das Finanças de Luís XVI, o

conde de Vergennes, descobriu que o seu país se abatia sob o peso das

dívidas da Guerra da Independência Americana. Contudo, estas dívi-

das, avisava ele, nunca poderiam ser reveladas, pois a exposição pública

das contas reais iria certamente minar a religião mais crítica da monar-

quia: o secretismo. Afinal, Vergennes sabia pouco de finanças – a França

estava nesta altura perto de uma bancarrota – mas estava certo acerca

da monarquia. Abrir os livros era abrir as portas à responsabilização.

Quando as contas reais e a profundidade das dificuldades financeiras da

coroa foram discutidas pela primeira vez durante os debates políticos da

década de 1780, Luís XVI perdeu parte do seu mistério real. Por isso,

e por uma série de razões relacionadas, perderia mais tarde a cabeça.

No entanto, mesmo com o aparecimento de governos nominalmente

abertos e eleitos, no século XIX, a responsabilização ainda era muitas

vezes inatingível. Durante o século XIX, quando a Inglaterra gover-

nava o seu império e estava no centro do mundo financeiro, a corrup-

ção e a irresponsabilidade contaminaram a administração financeira.

Quando a América do século XIX cuidadosamente concebia mecanis-

mos de contabilidade financeira, também ela foi mergulhada em frau-

des financeiras e contabilísticas constantes, em escândalos e em crises

21

INTRODUÇÃO

dos “robber barons”* da Era de Ouro. Nunca houve um modelo perfeito

de um estado continuadamente contabilístico. A contabilidade finan-

ceira, tanto empresarial como governamental, ainda permanece fugi-

dia mesmo nas sociedades democráticas.

Ameaçados como estamos agora pela atual crise financeira, este

parece ser o tempo certo para examinar a história da responsabiliza-

ção financeira. Estranhamente, poucos historiadores escolheram fazê-

-lo. Examinaram a história financeira das nações ao mesmo tempo que

quase não reconheceram o papel central da contabilidade e da respon-

sabilização na ascensão e queda de grandes nações. Seria natural colo-

car a contabilidade por partidas dobradas – uma verdadeira invenção

ocidental – no centro da história económica europeia e norte-ameri-

cana. O estudo da contabilidade e da responsabilização permite-nos

compreender como é que as instituições e as sociedades tiveram sucesso

e falharam a nível mais básico. Reconhecemos que o Banco Médicis, o

domínio holandês do comércio e o império britânico foram sucessos,

no entanto, é claro, já não existem. Por isso, se cada uma destas insti-

tuições conheceu o enorme sucesso, também conheceu o declínio e a

queda, e a responsabilização teve um papel central em cada uma des-

tas histórias. Vista pelas lentes da história da responsabilização finan-

ceira, então, a história do capitalismo não é simplesmente uma história

de ascensão nem um ciclo de expansões e contrações. Pelo contrário,

o capitalismo e a moderna governação têm uma fraqueza inerente: em

momentos cruciais, a contabilidade e os mecanismos de responsabili-

zação quebram, juntando-se às crises políticas e financeiras, se não as

criam até. O sucesso de uma sociedade, pelo menos financeiramente,

é, em grande parte, o domínio da contabilidade, da responsabilização

e a luta consequente para as gerir com sucesso.

Sem a contabilidade por partidas dobradas não poderiam existir nem

o capitalismo moderno nem o estado moderno, pois é a ferramenta

essencial no cálculo dos ganhos e das perdas, a base da gestão financeira.

* “Robber Barons” é uma expressão utilizada para classificar de forma pejorativa os principais capitalista ou mag-natas que surgiram no séc. XIX. (N. do R. T.)

22

O AJUSTE DE CONTAS

As partidas dobradas surgiram na Toscana e no norte de Itália por volta

de 1300. Até então, as grandes sociedades antigas e medievais sobre-

viveram sem elas. Com efeito, o advento da contabilidade por parti-

das dobradas marca o começo da história do capitalismo e da política

moderna. Então, o que é exatamente a contabilidade por partidas dobra-

das? A contabilidade por partidas simples, como fazer o balanço de um

livro de cheques, controla apenas o que entra e sai de uma única conta.

A contabilidade por partidas dobradas, por contraste, é um método de

controlo minucioso e de cálculo rigoroso de débitos, créditos e de valor

patrimonial. Separa os créditos dos débitos com uma linha vertical a

meio da página. Por cada crédito que entra em conta, tem de haver um

débito. Coloca-se o rendimento e as despesas em cada coluna e vai-se

somando. Os créditos têm de ser iguais aos débitos. Por exemplo, de

cada vez que uma cabra é vendida, o lucro vai para a esquerda, e a mer-

cadoria vendida vai para a direita. Depois compara-se os ganhos e as

perdas, ou seja, faz-se o balanço. Assim que este fica apurado, a tran-

sação está concluída e os dois lados são atravessados por uma linha.

Os ganhos e as perdas são do conhecimento de todos os tempos.3

O método das partidas dobradas para o capitalismo pode também

ser conhecido como aquilo que os contabilistas chamam a equação fun-

damental da contabilidade: os ativos controlados por uma organização

são sempre exatamente iguais aos créditos (passivos) devido aos seus

credores e proprietários. Isto permite aos negócios e governos saber os

seus ativos e passivos, a fim de prevenir e detetar o roubo. Estas medi-

das de desempenho – riqueza e rendimento e, acima de tudo, lucro –

fazem da contabilidade por partidas dobradas uma ferramenta para o

planeamento financeiro, gestão e responsabilização.4

Os fundadores do pensamento económico moderno – desde Adam

Smith a Karl Marx – consideravam a contabilidade por partidas dobra-

das essencial para o desenvolvimento de economias de sucesso e do capi-

talismo moderno. Em 1923, Max Weber, o sociólogo alemão pioneiro

e teórico do capitalismo, escreveu que a empresa moderna está ligada à

contabilidade “que determina a sua capacidade de geração de rendimen-

tos através do cálculo segundo os métodos da moderna contabilidade e

23

INTRODUÇÃO

atingindo um equilíbrio”. Weber considerava a contabilidade como um

dos muitos elementos culturais necessários ao crescimento do capita-

lismo complexo, colocando-a inequivocamente entre as características

fundamentais da ética do protestantismo, que ele acreditava ter per-

mitido aos primeiros norte-americanos dominar a cultura capitalista.5

O influente economista alemão Werner Sombart foi ainda mais direto:

“Não conseguimos imaginar o que seria o capitalismo sem a contabili-

dade por partidas dobradas: os dois fenómenos estão tão intimamente

ligados como a forma e o conteúdo.” O austríaco-americano Joseph

Schumpeter, economista, cientista, político e criador do termo “destrui-

ção criativa”, não só achava a contabilidade fulcral para o capitalismo

como até lamentava que os economistas não lhe tivessem devotado mais

atenção: só através da compreensão histórica das práticas contabilísti-

cas, escreveu ele, é que se pode formular uma teoria económica efetiva.”6

Estes pensadores encaravam a contabilidade como um ingrediente

para o sucesso económico e a chave para compreender a história econó-

mica. Contudo, aquilo que eles não viram, foi a forma como a estabili-

dade política se baseia em culturas de responsabilização, que assentam

em sistemas contabilísticos por partidas dobradas. Estes sistemas eram

importantes não só para calcular o lucro, mas também porque implica-

vam um conceito central do balanço, que podia ser usado para julgar e

responsabilizar uma administração política. Na Itália medieval, as con-

tas equilibradas não só espelhavam o aspeto divino do julgamento de

Deus e o registo dos pecados como também acabaram por representar

negócios sólidos e boa governação. Claro, uma coisa é ter um conjunto

de valores; o desafio de conseguir assegurá-los e manter uma respon-

sabilização financeira foi e é uma luta constante. O que este livro mos-

tra é que a responsabilização financeira funcionava melhor quando a

contabilidade era vista não simplesmente como parte de uma transa-

ção financeira, mas também como parte de um enquadramento moral

e cultural. Desde a Idade Média até ao início do século XX, as socieda-

des que conseguiram aproveitar a contabilidade e as tradições a longo

prazo de responsabilização e confiança financeiras fizeram-no graças a

um compromisso totalmente cultural: as cidades-estado republicanas

24

O AJUSTE DE CONTAS

de Itália, como Florença e Génova, a Holanda na sua Era de Ouro e

a Grã-Bretanha e a América dos séculos XVIII e XIX, todas integra-

ram a contabilidade no seu currículo educacional, no seu pensamento

religioso e moral, na arte, na filosofia e na teoria política. A contabili-

dade tornou-se o tema dos trabalhos teológicos e políticos, dos grandes

quadros, das teorias sociais e científicas e dos romances, desde Dante e

os Mestres Holandeses a Auguste Comte, Thomas Malthus, Charles

Dickens, Charles Darwin, Henry David Thoreau, Louisa May Alcott

e Max Weber. Num ciclo virtuoso, a elevação da matemática prática,

centrada no negócio, até às esferas do pensamento nobre e humano,

permitiu a estas sociedades maximizarem o seu uso da contabilidade,

mas também construírem culturas complexas de responsabilização e

de consciência das dificuldades colocadas por uma cultura assim. Com

esta cultura de responsabilização surgiram o capitalismo e o governo

representativo.

O jogo delicado entre contabilidade e responsabilização pode decidir

o destino de uma empresa ou mesmo de uma nação. A história finan-

ceira, portanto, não trata apenas de crises cíclicas ou de tendências em

números. É também uma história sobre indivíduos e sociedades que

se tornaram adeptas do domínio do jogo entre contabilidade e vida

cultural, mas que muitas vezes perdem esta capacidade e dão consigo

em crises financeiras inesperadas, evitáveis e por vezes cataclísmicas.

Nesta longa história, contabilidade e responsabilização financeira sur-

gem simultaneamente como mundanas e ao mesmo tempo difíceis de

controlar. O que é notável é que as lições básicas de contabilidade ita-

liana medieval – que são essenciais à riqueza e à estabilidade política,

mas incrivelmente difíceis, frágeis e até perigosas – ainda são hoje tão

pertinentes como eram há setecentos anos.

25

CAPÍTULO 1

Breve história dos primórdios

da contabilidade, da política

e da responsabilização

As decisões do [Livro do Juízo Final] como as do Julgamento Final são inalteráveis.Richard Fitznigel, bispo de Ely, 1179

O imperador Augusto é hoje famoso pelos seus edifícios e pelas suas

estátuas e é também a personagem abertamente modesta e paternal que

se encontra nas histórias antigas e no romance de Robert Graves, Eu Cláudio. Afirmava ter encontrado Roma como uma cidade de tijolos e

tê-la deixado como uma brilhante cidade de mármore. Mas a chave para

o poder de Augusto pode encontrar-se no seu próprio relato do seu reino,

o Res gestae divi Augusti, “Os Atos do Divino Augusto” (cerca de 14 a.C.).

Nele, ele descreve edifícios, exércitos e façanhas. Também inclui mui-

tos números. Na realidade, ele mediu o seu sucesso através deles, van-

gloriando-se de ter pago aos soldados romanos vitoriosos 170 milhões

de sestércios dos seus próprios cofres. Os números financeiros, os sím-

bolos das grandes realizações de Augusto, foram tirados de registos de

livros de contabilidade rudimentares. O verdadeiro fundador da dinas-

tia Júlio-Claudiana e pai do império romano combinava a contabilidade

e a transparência dos números com legitimidade política e sucesso1.

Como é típico na história da contabilidade, ninguém se apercebeu.

Augusto, o contabilista imperial, não é uma história que alguém conte.

E de todos os príncipes e reis que se seguiram e emularam o pai do

império romano, nenhum copiou alguma vez a forma exata do Res ges-tae. Mesmo que tivessem conhecido ou compreendido os números das

26

O AJUSTE DE CONTAS

suas contas, muito poucos os teriam publicado como medidas do seu

poderio real.

Augusto vinha de um mundo em que as contas eram acessíveis e

até preponderantes e no qual um homem com a educação romana de

Augusto como pater famílias e patrício não sentia qualquer vergonha

em mostrar que sabia como usá-las. No entanto, apesar do uso que

Augusto deu à contabilidade como ferramenta de gestão e legitimação,

seriam necessários 1700 anos para os líderes legitimarem o seu poder e

ações políticas através da publicação de números financeiros dos livros

de contabilidade. Demorou mais de um milénio para que aquilo que

parecia ser uma boa prática para Augusto e que é agora uma prática

comum se afirmasse. A contabilidade desenvolveu-se lentamente nas

antigas Mesopotâmia, Grécia e Roma até os italianos medievais a terem

transformado numa contabilidade por partidas dobradas, uma ferra-

menta poderosa do lucro para os empreendimentos capitalistas e para

a administração governamental.

Durante milhares de anos, o mundo antigo esteve mergulhado em con-

tas, mas quase não havia inovação e poucos usaram as ferramentas à

sua disposição como Augusto fez. A contabilidade por partidas sim-

ples existiu na antiga Mesopotâmia, em Israel, Egito, Grécia e Roma.

Os gregos, os egípcios ptolemaicos e os árabes alcançaram níveis esplen-

dorosos de civilização e dominaram os números na geometria e na astro-

nomia, mas não chegaram a criar a contabilidade por partidas dobradas,

tão essencial para o cálculo exato dos lucros e das perdas.2

As finanças antigas estavam limitadas às contas de aprovisionamento,

isto é, ao inventário básico. Max Weber defendia que isto se devia à sepa-

ração do negócio e da casa, à falta de conceito de lucro e de avaliação

do ativo total de uma empresa durante o período, por exemplo, de um

ano. No entanto, apesar da ausência de uma compreensão moderna de

capital e de lucro, houve uma cultura e uma mentalidade contabilística

com lugar destacado na vida pública da Antiguidade.3

Em qualquer lugar onde se mantivessem registos, faziam-se cálculos

ou contas rudimentares. Na Mesopotâmia, os contratos, os armazéns e

27

CAPÍTULO 1

os registos de comércio, tudo entrava para os cálculos das contas, mui-

tas vezes do inventário das padarias. A contabilidade era utilizada para

fazer inventários, mas também para calcular os excedentes de cereal, a

própria semente da civilização, que trouxe consigo as aldeias sedentárias,

a agricultura e os mercados. Em 3500 a.C., os sumérios criaram placas

de argila para fazer as contas, e que representavam os bens que saíam

ou entravam. Estes símbolos em breve deram lugar a tábuas de argila

finas com contas escritas de inventário básico e que se tornaram obje-

tos comuns dos assírios e sumérios. O Código de Hamurábi, conjunto

de leis babilónicas (cerca de 1772 a.C.), é famoso não só pela sua regu-

lação de “olho por olho, dente por dente” (contabilidade na sua forma

mais rudimentar), mas também pelas suas regras contabilísticas bási-

cas e pelas regulações de auditorias estatais nas transações mercantis.

A Lei 105 estipula que qualquer agente que não tenha selado e assinado

a receção de dinheiro não pode registar a transação no seu livro de con-

tas. O estado mantinha um inventário das reservas monetárias, que os

escribas assentavam na Casa Prateada do Tesouro, e até mantinham

registo dos cereais e lojas de pão através de contas de inventário básicas.4

A partir da altura em que o estado se envolveu nas contas e na audi-

toria, os números e a moral misturaram-se com a política. Na Atenas

Antiga, a contabilidade era vista como ligada à responsabilização polí-

tica. Desde o início que havia no coração do governo democrático um

sistema complexo de contabilidade e auditoria públicas. O tesouro

ateniense era considerado sagrado e guardado em Delos sob o olhar

atento dos seus tesoureiros. Os cidadãos humildes e os escravos eram

educados e empregados como guarda-livros. A maioria dos atenien-

ses preferia escravos públicos como controladores e auditores porque

podiam ser torturados e os homens livres não. Havia funcionários supe-

riores e inspetores de livros de contas que vigiavam as contas públicas.

Ao contrário das oligarquias – em que os poderosos em número redu-

zido governavam e não havia sistemas de responsabilização financeira –,

a Atenas democrática tinha sistemas de responsabilização. As contas

de todos os funcionários públicos atenienses eram sujeitas a audito-

rias de acordo com a filosofia política basicamente democrata. Até os

28

O AJUSTE DE CONTAS

membros do Areópago senatorial (o supremo tribunal de apelações),

bem como sacerdotes e sacerdotisas, tinham de fazer a contabilidade

total dos fundos, e não só das contas da sua profissão oficial mas tam-

bém das ofertas. Nenhum cidadão de Atenas podia sair para o estran-

geiro, consagrar propriedade a um deus, ou fazer um testamento sem

antes apresentar uma completa prestação pública de contas ao estado.

Os logistae – os funcionários de contabilidade pública descritos por

Aristóteles no último livro do seu estudo da Constituição Ateniense

– faziam auditorias aos livros dos funcionários públicos e magistrados

da cidade. Antes de ouvirem qualquer caso de corrupção, estes fun-

cionários de contas faziam uma auditoria pública aos livros do fun-

cionário em questão.5

No entanto, mesmo com este sistema de responsabilização na manu-

tenção de contas, a corrupção grassava e os atenienses lutavam pelo con-

ceito de responsabilização. O venerado general e estadista Aristides

(530-468 a.C.) queixava-se dizendo que era considerado uma má prá-

tica os logistae fazerem auditorias rigorosas. Era esperado e tolerado um

certo nível de fraude e as auditorias agressivas eram vistas como amea-

çadoras para o status quo. O historiador Políbio fez notar que mesmo

que o estado tivesse dez auditores e outros tantos selos oficiais e tes-

temunhas públicas, não se poderia garantir a honestidade de alguém.

Os espertos, queria ele dizer, podiam sempre falsificar os livros.6

Honesta ou não, a contabilidade floresceu como a base da econo-

mia doméstica romana. Aristóteles tinha um conceito para a gestão

das finanças públicas, uma casa ou propriedade, a que ele chamou

Oikonomia, a raiz do termo “economia”. Oikonomia não queria dizer

gestão financeira com jeito para o lucro no moderno sentido de eco-

nomia, mas sim uma boa administração na governação e nos lares.

Os romanos adotaram o conceito de Aristóteles e a contabilidade come-

çou nas casas particulares, onde o pater famílias era encarregado pelo

estado de manter os livros de contas da casa, que podiam ser audita-

dos por cobradores de impostos. O chefe da casa tinha um livro de des-

pesas (um registo diário de todos os documentos), que depois iria dar

entrada mensalmente num registo de rendimentos e despesas, muitas

29

CAPÍTULO 1

vezes registando receitas futuras bem como empréstimos e dívidas

extraordinários. Os banqueiros mantinham os mesmos livros básicos

de partidas simples. Os banqueiros e por vezes os cidadãos tinham de

fazer a contabilidade dos seus livros a fim de serem auditados pelo pre-

tor, um magistrado da cidade ou da província.7

A república romana e o império romano inicial eram geridos por

um grupo de auditores chamados quaestores oerarii, funcionários que

supervisionavam os cofres públicos. Na sua História Natural, Plínio

declara que em 49 a.C., o ano em que César atravessou o Rubicão, o

tesouro romano continha 17 410 libras de ouro, 22 070 libras de prata

e, em moeda, 6 135 400 sestércios. Os contabilistas do tesouro comu-

nicavam com os contabilistas da moeda e seus assistentes para garantir

que havia numerário suficiente para pagar as despesas estatais e prin-

cipalmente militares.8

Os questores de Roma guardavam as chaves do tesouro público no

Templo de Saturno, agora o local sagrado mais antigo de Roma, que

também continha as tábuas romanas da lei. Os escribas que trabalha-

vam no tesouro também mantinham registos mensais de entradas e

saídas de dinheiro com os nomes, as datas e o tipo de cada transação.

Havia registos separados para dívidas e para contas correntes dos ques-

tores militares e provinciais. O arquivo central da contabilidade – o

tabularium – era controlado por um superintendente e dotado de pes-

soal como supervisores, escribas, contabilistas e caixeiros.9

Tal como em Atenas, a contabilidade estatal em Roma era pouco cri-

teriosa e a fraude era vulgar. No seu Filípicas (44-43 a.C.), Cícero quei-

xou-se de más contas nos seus ataques a Marco António, conhecido pelas

suas dívidas e negócios financeiros sombrios. Acusou Marco António

de ter viciado os seus livros de contas e, ao fazê-lo, ter “esbanjado incon-

táveis somas de dinheiro” roubado a César e de até ter forjado contas e

assinaturas. Apesar de Cícero ter denunciado a sua contabilidade ludi-

briada, o vice-cônsul Marco António não foi para a prisão. Quando vol-

tou ao poder mais tarde, nesse mesmo ano, integrando o triunvirato com

Lépido e Octávio, o futuro imperador Augusto, Marco António perse-

guiu Cícero e mandou que lhe cortassem a cabeça e as mãos, exibidas

30

O AJUSTE DE CONTAS

depois no Fórum. Isto demonstra dramaticamente uma máxima cons-

tante: os poderosos não respondem bem àqueles que pedem que os seus

livros sejam abertos.10

No entanto, a contabilidade falsificada tem uma forma de retorno per-

seguindo aqueles que a praticam. Augusto, por sua vez, matou Marco

António (cujas capacidades de organização militar se assemelhavam à

sua contabilidade), assumiu o poder, tornou-se imperador e trouxe ordem

ao império caótico e aos novos livros de contas imperiais. Ao contrá-

rio do seu rival, Augusto manteve uma boa contabilidade – o rationa-rium. Com efeito, Tácito, historiador romano, diz que Augusto tinha

os livros sempre à mão, mesmo quando já era imperador (27-14 a.C.).

Continham um sumário das condições financeiras do império, esta-

tísticas acerca dos projetos militares e de construção, e as quantias de

dinheiro nos cofres com os impostos das províncias.11

Augusto usou até informações destas contas pessoais para escrever o

seu Res gestae divi Augusti, que foi gravado em paredes inteiras dos edi-

fícios públicos e publicado em pedras por todo o império. Mesmo com

ganhos anuais de 500 milhões de sestércios, Augusto tinha o cuidado

de anotar que a maior parte das suas realizações – edifícios, exércitos

e, mais importante ainda, os pagamentos pessoais feitos aos soldados

– eram pagos dos seus próprios cofres. Também revelou como é que

contabilizava a sua fortuna pessoal, pagando às cidades pelos bens usa-

dos pelos seus soldados, e revelou as somas para fazer propaganda à sua

largueza. Augusto pensou ativamente como gerir o império, usando os

seus próprios livros de contas como ferramenta para idealizar e planear

projetos, bem como para propaganda.12

Tornou-se uma tradição publicar dados dos livros contabilísticos

imperiais. Embora o imperador Tibério não tenha continuado a tradi-

ção, Calígula, apesar de tudo, publicou o estado geral das contas impe-

riais. Nero (37-68 d.C.), conhecido pelo seu interesse particular pelo

ouro, nomeou alguns senadores pretorianos para gerirem o tesouro do

Templo de Saturno. Há ampla evidência de que o gabinete que Augusto

criou, na secretaria financeira do império, continuou a trabalhar pelo

menos até ao reinado de Diocleciano (244-311 d.C.).13

31

CAPÍTULO 1

Embora este sistema contabilístico servisse como ferramenta central

para a administração imperial, e até para a sua legitimidade, mesmo

assim tinha grandes falhas. Os livros eram mantidos e as contas audi-

tadas, no entanto a fraude era uma coisa esperada (e sistematica-

mente tolerada, em especial no que dizia respeito às figuras de chefia).

Ao mesmo tempo, as práticas económicas do império romano não se

focavam no lucro nem nos ganhos futuros, a principal função da conta-

bilidade por partidas dobradas. O mar Mediterrâneo sustentava o impé-

rio romano através da navegação e do comércio, no entanto, não havia

um conceito ou sistema global através do qual se teorizassem todas as

práticas de comércio. Em vez disso, os empréstimos eram feitos num

modelo de penhora, retardando o desenvolvimento de uma cultura de

crédito. A riqueza nos palácios e o ouro acumulado adquiriam prece-

dência sobre a ideia de riqueza como capital de investimento para o

lucro. Apesar de uma série de trabalhos práticos e teóricos, nunca sur-

giu um conceito económico para os negócios.14

O gabinete central dos questores ia mudando periodicamente, refle-

tindo os interesses dos imperadores. Com o declínio do império, as

contas públicas foram ficando cada vez mais sob a alçada pessoal do

imperador, de modo a que, como Edward Gibbon fez notar, toda a gente

tivesse inculcada a noção de que todos os “pagamentos fluíam da gene-

rosidade do monarca” e não do estado. Os últimos imperadores consi-

deravam o tesouro sagrado, e no tempo de Constantino (325 d.C.) e na

sua nova capital romana do Bósforo, o chefe do tesouro era um conde

aristocrata em vez de um funcionário burocrático profissional.15

Com a queda de Roma, em 476 d.C., o estado foi passando para o

feudo pessoal de imperadores, reis e senhores, o que significava que

não podia ser auditado, pois estas nobres personagens suplantavam o

estado burocrático e só respondiam perante Deus. Mas mesmo com

o desmoronar do Império do Ocidente, a sua herdeira, a Igreja Católica e

os seus imensos mosteiros, continuou a administrar terras, bens e paga-

mentos através de contabilidade básica e de auditoria. E com a invasão

de Godos, Francos e Viquingues, os novos reis, desde Carlos Magno

32

O AJUSTE DE CONTAS

(742-814 d.C.) e o imperador Oto (912-973 d.C.) até Guilherme, o

Conquistador (1028-1087 d.C.), preocuparam-se novamente em esta-

belecer regras legislativas para melhor extrair a riqueza e administrar

as suas terras conquistadas. Um dos grandes paradoxos do feudalismo

– o sistema de constante mudança de senhores, vassalos e servos que

surgiu da fusão dos reinos e condados germânicos e antigos sistemas

estatais romanos – é que a posse pessoal de terra pública acabou por

trazer uma subida lenta, mas consistente, de burocracia e contabili-

dade. A espinha dorsal da Idade Média não foi só o cristianismo nas-

cido dos padres da Igreja e a sua tradição monástica, mas também o

conceito de imposto e propriedade consagrado nas Leis Capitulares de

Carlos Magno, o seu registo administrativo. A contabilidade manteve-

-se a ferramenta central da governação, mas para os mosteiros ricos,

para os reis e senhores franceses não haveria revelações financeiras

augustinianas.

Na viragem do milénio, o comércio aumentou, tal como a escrita, os

registos, as transações legais e a importância da contabilidade. Quando

Guilherme, o Conquistador, invadiu a Inglaterra, em 1066, foi-lhe dada

uma nova oportunidade. Ao submeter todo o país de uma só vez, pôde

escrever todos os documentos feudais desde o início, dando a si mesmo o

domínio do país inteiro sem as complicações inevitáveis do modelo feu-

dal mais convencional: as heranças e casamentos dinásticos que com o

tempo iam dividindo a posse da terra, deixando miscelâneas de territó-

rios em disputa. A conquista normanda da Inglaterra, com a sua opor-

tunidade de centralizar o seu próprio sistema administrativo, trouxe

a proliferação de novos contratos feudais da terra, necessitando tanto

de governantes seculares como de eclesiásticos para manter os registos

financeiros mais claros. O Domesday Book (1086), o registo pessoal de

Guilherme ou levantamento dos direitos de propriedade, privilégios

legais, obrigações e direitos eclesiásticos, também determinou quais os

impostos que Guilherme podia cobrar à luz dos anteriores acordos reais.

O seu título, que significa “Dia do Juízo Final”, equiparava muito cla-

ramente as auditorias com o Juízo Final de Deus, afirmando que nin-

guém lhe podia escapar.16

33

CAPÍTULO 1

No século XIII, com o recrudescimento do comércio e dos fluxos

financeiros, os estados e donos das terras dedicaram mais atenção aos

livros de contas e proliferaram os registos escritos à mão: cartas e decre-

tos, certificados, missivas, despachos, relatórios financeiros, inspeções

financeiras e contratos de renda, registos legais, anuários, crónicas, car-

tulários (títulos de propriedade feudais e eclesiásticos), registos (legais

ou administrativos, muitas vezes exarados por cortes e parlamentos),

e obras doutas e literárias. Todos estes bocadinhos de papelada esta-

vam relacionados com a manutenção de livros contabilísticos. A lei, a

propriedade e os impostos exigiam contabilidade e registos – a base de

qualquer rede de informação estatal – onde fossem registados, coligidos

e guardados. Em Inglaterra, o exchequer, ou tesoureiro real da receita,

começou a manter contas de forma altamente detalhada – a que se cha-

mava rolos de tubo, devido à forma de rolo do pergaminho – que regis-

tavam a receita, as despesas e as multas. Eram usadas de início mais

para a cobrança real das receitas do que para extrair lucro do investi-

mento ou do trabalho.17

Os documentos estatais eram guardados não só nas chancelarias e

sedes de municípios mas também em casas legais e parlamentares, onde

eram mais abertas à consulta por parte de advogados, e nas coleções

particulares de magistrados, ministros e príncipes. As casas senhoriais,

pontos centrais do senhorio feudal e da economia medieval, tornaram-

-se centros de contabilidade. Embora os senhores feudais não tivessem

qualquer conceito de lucro, administravam os seus feudos de forma a

produzir excedentes. Era um privilégio ter uma escrita contabilística,

pois o pergaminho era caro e, quando era feita em qualquer tipo de

escala, o registo também o era. Os escribas experientes eram poucos e o

seu ensino era caro. Muitas contas eram feitas simplesmente para gerir

as despesas de cada dia e não se conservavam registos de longo prazo.18

Em Inglaterra, os oficiais da justiça, as entidades de custódia ou os

gestores legais da terra aprendiam contabilidade por partidas simples,

o que implicava registar todas as cartas de quitação, escrever correta-

mente os cabeçalhos para transações e propriedade (tal como cavalos),

e fazer cálculos básicos. De início, o oficial da justiça teria de fazer uma

34

O AJUSTE DE CONTAS

declaração de dívidas em atraso; tinha de dar entrada das receitas, bem

como de outras formas de riqueza. Depois fazia uma lista de despesas

em materiais em falta na propriedade e em custos laborais.19

A auditoria era central no trabalho de notários e xerifes, que veri-

ficavam as contas dos funcionários governamentais, em especial dos

cobradores de impostos e dos tesoureiros. A palavra “auditar” provém

de um tempo em que os governantes e os senhores ouviam mais do que

viam as suas contas. Deriva da palavra auditio, uma audição, em que o

soberano ou senhor verificava as contas à medida que iam sendo ver-

balmente apresentadas. No século XIII, os funcionários que faziam

auditorias eram chamados Auditores comptorum scaccarii, Auditores

das Contas do Tesouro. As despesas estatais inglesas e as receitas fis-

cais foram ficando cada vez mais sob escrutínio parlamentar. Poder-

-se-á dizer que as constituições de governo misto tinham práticas de

auditoria internas, pois as finanças estatais tinham de ser verificadas

pelos diferentes ramos do governo. Contudo, as despesas do rei e os ren-

dimentos pessoais, que podiam ser enormes, permaneciam muitas vezes

secretos. Embora ele apresentasse ao Parlamento contas rudimentares

das suas despesas, isto era um acontecimento raro, e não havia um sis-

tema de auditoria efetivo. Eduardo III (reinou entre 1327 e 1377) afir-

mou aquilo que outros reis continuariam a insistir até ao século XIX:

os reis só prestam contas a Deus.20

Todos estes livros de contas e rolos imploravam a pergunta: pelo

menos trabalhavam bem? Certamente que um bom e diligente conta-

bilista, que mantivesse os seus registos diários, devia ter sido capaz de

chegar a um certo nível de domínio das contas. Era o que acontecia na

administração do dinheiro e no inventário, mas mesmo aqui não podia

ser exato. Sem os números árabes e, portanto, sem frações, havia erros

internos construídos com o sistema numeral romano. Por mais dili-

gente que um contabilista fosse, a quantidade de X, de L e de I tornava

um número como DCCCXCIII (893) muito pesado e não deixava espaço

para as frações. Era necessário haver novos números e um novo método

de contabilidade financeira para fazer florescer o comércio complexo e

o desenvolvimento.21