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O ALFARRABISTA - fnac-static.comMoisés era o quarto filho, dos cinco nascidos no seio de uma família humilde de lavradores e pastores de uma aldeia transmon-tana. O pai toda a vida

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O ALFARRABISTA

LHA, meu filho, hoje vais levar o almoço ao teu pai, que anda

com o gado na Fonte da Purga e está à tua espera junto da

figueira do poço onde bebem as ovelhas. Depois, no regresso, vens

pela horta e trazes uma couve para cozermos com batatas, para a

ceia. Não te demores, vai num pé e vem no outro. Moisés, obedien-

te, fez o que a mãe lhe mandou: pegou na cesta, com uma tigela de

couves cozidas e um naco de toucinho dentro, e foi levar o almoço

ao pai. Nesse dia não havia aulas, a professora Lídia tinha ido à vila

registar o terceiro filho, que tinha nascido na semana anterior.

Tarefas como esta, ou ir deitar a água aos lameiros, no intervalo

das aulas, foi o que Moisés fez até concluir o ensino primário. Já

depois, dos catorze aos vinte anos, foi o pastor da casa, assumindo

responsabilidades maiores que as suas posses, ao tomar conta de

um rebanho de cento e cinquenta ovelhas.

No Norte do País, o Inverno era inclemente e rigoroso, com noi-

tes e dias seguidos de forte temporal, e com bátegas de chuva pu-

xada por ventos agrestes, que metia medo a um santo, quanto mais

a um rapazinho de catorze anos, que pastoreava cento e cinquenta

ovelhas por montes e vales, cobertos de nevoeiro, onde os lobos

eram uma presença constante, na floresta ao lado, onde criavam os

lobachos, e nem sempre os destemidos cães davam conta da sua

presença. Ou, então, quando davam já uma ovelha estava com as

goelas mordidas, debatendo-se contra a morte.

Depois, para além dessas dificuldades, os locais de abrigo, nos

dias de intempérie, eram velhos troncos de árvores e reentrâncias

de fragas, abrigadas do vento, quando os agasalhos não passavam

de uma camisa de popelina, com remendos sobrepostos, e calças de

O

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burel e um casaco andrajoso a cheirar a leite e a lã, e sapatos com

rasto de borracha, por onde entrava e saía a água da chuva com a

mesma facilidade. Valendo-lhes a grossa manta de lã churra, com

que se agasalhava e escondia a penúria das vestes.

Em oposição a estes rigores do Inverno o Verão era um autêntico

forno, com temperaturas diurnas que facilmente atingiam quarenta

graus centígrados, não permitindo, por isso, que o pastoreio se fizes-

se durante o dia, mas somente de noite, do pôr ao nascer do Sol,

porque os animais, acossados pelas moscas e o calor, não comiam.

Mas as noites nem sempre eram de luar límpido e sereno. Ha-

vendo algumas, escuras como breu, que só deixavam lobrigar um

palmo à frente do nariz quando os relâmpagos riscavam o céu, para

em seguida se ouvir o estampido dos trovões, que não assustava os

lobos, mas, pelo contrário, propiciava o momento ideal para faze-

rem a caçada. Numa lógica perfeita da sobrevivência, segundo as

leis ditadas pela mãe-natureza.

Moisés era o quarto filho, dos cinco nascidos no seio de uma

família humilde de lavradores e pastores de uma aldeia transmon-

tana. O pai toda a vida foi pastor e a mãe uma dona de casa e hábil

tecedeira de linho e de lã. Concluída a quarta classe, passou a ser

ele o responsável pelo rebanho da casa. O pai estava a ficar velho e

era necessário assegurar a continuidade do pastor da casa. Mas a

vida de pastor, num cenário como o da região transmontana, não

alimentava grandes ambições aos jovens que tinham que a abraçar.

Que eram, normalmente, pastores filhos de pastores. Foi assim com

Moisés, que encostado a um cajado passou a assumir sozinho o

pastoreio do rebanho, trauteando as quadras que o pai lhe ensinou:

Que maravilha é ser pastor,

Guardar no campo o seu gado.

Como fez Nosso Senhor,

Antes de ser crucificado.

E também o S. João,

Com certeza foi pastor,

Traz cajado e surrão,

Carrega um cordeiro com amor.

G EN TE D E TR Á S - O S - MO N TES 23

Ó pastor guarda o gado,

Não te deixes adormecer.

Porque não sabes de que lado,

O lobo pode aparecer.

Sonhos e projectos espalhou-os por montes e vales, quantas ve-

zes com receio dos lobos e das medonhas tempestades. Ou, então, a

pensar nalguma jovem da sua idade, quando se deleitava com o

namoro das perdizes e o cantar dos perdigões, a ecoar nos montes

em seu redor, no mês de Fevereiro, enquanto se afeiçoava às ove-

lhas e aos cães.

Moisés sabia que os lobos atacavam e comiam as ovelhas, mas

também sabia que não havia memória de terem comido o pastor, e

isso ajudava-o a ultrapassar o medo. Nos primeiros dias de pastor

criou uma empatia especial com uma ovelha, a “cornexa”, a primei-

ra que lhe ajudou a comer a merenda e quando chamava por ela, ela

corria para ele, a balir, à espera do bocadinho de pão ou da bolota

que tinha na mão, para lhe dar. Quando se referia a ela dizia: a

minha “cornexa” é a ovelha mais esperta que tenho. A ela só lhe

falta falar. Daí que, quando os lobos atacavam o rebanho a primeira

coisa que fazia era chamar por ela, porque nem queria pensar no

desgosto que teria se um dia desse com os despojos dela numa

carrasqueira, no meio do monte.

Estes e outros medos foram o constante da sua vida, até ao dia

em que foi chamado para cumprir o serviço militar na Capital,

como soldado raso. Porque foi a partir daí que começou a pensar no

não regresso às ovelhas, novamente entregues ao pai, com a pro-

vecta idade de setenta e cinco anos. Claro, que estava seguro das

dificuldades a vencer, e sabia que as saídas para arranjar emprego

não abundavam. Tanto mais, que os estudos também não ajudavam,

resumiam-se ao ensino primário, e os livros que lera, para além dos

de leitura obrigatória na escola primária, contavam-se pelos dedos

de uma mão e ainda sobravam dedos.

Porém, animava-o a ambição e a força de vencer, mesmo numa

cidade como Lisboa, cheia de oportunidades, é verdade, mas difícil

para quem, como ele, chegava aos vinte e três anos com a experiên-

cia de guardar ovelhas e fazer guardas à porta de armas de um

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quartel. Embora, disposto a arranjar trabalho, fosse onde fosse, até

num cemitério!

Na altura, o País encontrava-se envolvido em três frentes de

guerra, no Ultramar. Moisés foi dos poucos jovens da sua geração

que não foi mobilizado para ir para lá, combater. Por isso, nos

trinta meses de serviço militar obrigatório que cumpriu, em contac-

to com a cidade, foi-se dando conta do ambiente citadino e lançan-

do pontes para a hora da passagem à disponibilidade.

Findo o serviço militar, aos vinte e três anos de idade, o seu

primeiro emprego foi numa Papelaria, auferindo o vencimento

mensal de novecentos escudos. Ordenado pequeno, é certo, mas

poupado como era, e sem vícios, chegava-lhe para pagar o quarto,

comer numa taberna de bairro, e vestir-se e calçar-se, embora

modestamente. Depois, também sabia que o caminho se fazia ca-

minhando. Durante dois meses foi tirar o curso de dactilografia na

Escola Profissional de Comércio, no Largo do Calvário, e assim se

foi preparando profissionalmente para novas etapas da vida. No ano

seguinte foi frequentar o ensino liceal, e em cinco anos conclui o

Curso Geral dos Liceus. Enquanto isso, foi mudando de emprego,

melhorando a condição económica e namorando com uma colega,

com quem viria a casar.

E era assim que Moisés ia levando a carta a Garcia, como se

costuma dizer. Só que a vida, como é sabido, é cheia de surpresas,

algumas tão subtis, que ninguém as pode imaginar antes de se

cumprir o “fado” para que se nasceu.

Foi assim com ele. Um dia, recomendado pelo pai, foi ao encon-

tro de um conterrâneo, jornalista influente, coleccionador de livros

antigos que adquiria em leilões da especialidade, organizados por

um seu amigo e proprietário das poucas casas do género existentes

na capital. E foi graças a essa velha amizade que um dia, estavam

eles em amena cavaqueira na Brasileira do Chiado, o alfarrabista

lhe disse: sabe, doutor, já me sinto cansado de andar tantos anos em

volta de livros e leilões, sem ter ninguém para me ajudar. Por isso,

estou a pensar arranjar um empregado de confiança, disposto que

estou a pagar bem a alguém interessado e com competência para

me ajudar. Por acaso, o meu amigo não conhece ninguém capaz,

que me queira indicar?

G EN TE D E TR Á S - O S - MO N TES 25

E foi então que o jornalista se lembrou de Moisés e lhe disse:

tem graça, isso que me pede, porque tenho um conterrâneo que

ainda a semana passada me pediu para lhe arranjar uma colocação

melhor que a que tem, e garanto-lhe que é pessoa capaz de servir

para o que pretende. Quanto a honestidade, esteja descansado que

eu sou seu fiador.

E diz-lhe o alfarrabista: ó homem mande-o amanhã falar comi-

go, isso de ser seu conhecido, deixa-me descansado. Além do mais,

como sabe, não tenho filhos homens e a minha filha pouco ou nada

se interessa por livros ou pela actividade leiloeira. Quem sabe se

um dia não fica dono da Livraria e a organizar os leilões. Repare

bem, que até isso dava jeito ao meu amigo.

Estava longe de mim ver o assunto por esse prisma, mas não

deixa de ter razão. Como sabe, delego em si a compra de livros por

não poder assistir aos leilões. Amanhã, mando o rapaz ir ter consi-

go. Quem sabe se não se junta a fome com a vontade de comer.

Então, estamos entendidos. Lá o espero, respondeu-lhe o livreiro.

Despediram-se, e cada um foi à sua vida. No dia seguinte, Moi-

sés foi falar com o alfarrabista e aí teve início o virar de uma pági-

na da sua vida. E que viragem!

O conterrâneo deu-lhe o número do telefone para marcar a en-

trevista, e pô-lo ao corrente da conversa que ambos tiveram. E logo

aí, conhecendo-o, deu-lhe um conselho útil: não te esqueças que se

lhe inspirares confiança e te empenhares no que vais fazer, um dia

a Livraria pode ser tua, e olha que é a Suíça em Lisboa! Digo-te

isto, porque conheço bem o negócio e o meio. Esforça-te, e porta-te

como deve ser, porque ele é pessoa acessível e amiga do seu amigo.

No dia seguinte, Moisés foi falar com o alfarrabista. Chegou, e

apresentou-se: eu chamo-me Moisés e venho da parte do doutor

Reis, meu conterrâneo e nosso amigo comum. Não há dúvidas, de

que a primeira impressão pode ser determinante para um bom

relacionamento. Foi o que aconteceu com eles: uma empatia perfei-

ta. O alfarrabista olhou para ele e disse-lhe: faça favor de se sentar

e de ficar à vontade, já sei o que o traz por cá.

Ontem, eu e o nosso amigo comum, como bem disse, casual-

mente falámos em si a propósito da necessidade que tenho de ar-

ranjar um colaborador para me ajudar aqui, na Livraria, e a organi-

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zar leilões de livros. E, para o pôr mais à vontade, acrescentou:

saiba que esta Casa faz isso há mais de um século. Só comigo, já lá

vão sessenta anos. Vim para cá quando era jovem, e acabei por

casar com a filha do patrão.

Mas não foi, certamente, para ouvir falar disto que o meu amigo

cá veio. Por isso, voltando ao nosso assunto, eu preciso de um

colaborador que me ajude, aqui na Livraria. Sei que o senhor Moi-

sés está empregado, e o lugar poderá interessar-lhe, ou não. Contu-

do, recordo-lhe que o que pretendo é alguém capaz de me ajudar a

preparar leilões e que, se aceitar, lhe direi em que consiste isso.

E acrescentou: o pregoeiro, até ver, continuo a ser eu, dado tratar-se

de um desempenho que requer experiência e traquejo para lidar

com os clientes, mas futuramente, caso aceite o lugar, poderá ser o

senhor Moisés, mas disso falaremos a seu tempo. Também não sei

quanto ganha no seu emprego, mas estou disposto a pagar-lhe um

ordenado mensal de cinco contos e os almoços diários no restauran-

te “O India”, aqui próximo, que frequento há mais de cinquenta

anos. Quanto a informações a seu respeito, bastam-me as que me

deu o nosso amigo, doutor Reis. E concluiu: não precisa de respon-

der agora, se aceita ou não o lugar. Vá para casa, pense no assunto

e diga-me depois alguma coisa. Se aceitar a proposta pode apresen-

tar-se aqui às oito horas da manhã, logo que esteja desvinculado do

seu actual emprego.

Moisés ouviu tudo em silêncio. A proposta que acabara de lhe

ser apresentada era tão clara e transparente que não lhe levantou a

mais pequena dúvida. Levantou-se e disse ao alfarrabista: em boa

verdade, estou impressionado com a sua franqueza e com as condi-

ções que acabou de me oferecer. Por isso, a minha decisão está

tomada: no primeiro dia do mês que vem, às oito horas da manhã

estarei aqui, pronto a assumir as minhas funções, com a certeza de

que não o deixarei desiludido, nem mal visto o meu conterrâneo.

Tenho como certo, que nos vamos entender e não defraudarei as

expectativas de ambos.

Dito isto, Moisés despediu-se e partiu a caminho de casa a pen-

sar no que acabara de lhe acontecer. As tarefas a desempenhar não

o assustavam, o vencimento proposto era o dobro do que auferia no

emprego que tinha, sem contar com o almoço.

G EN TE D E TR Á S - O S - MO N TES 27

É um facto, que até hoje ainda ninguém nasceu ensinado. Ele

confiava nas suas capacidades e não regatearia esforços para de-

sempenhar eficazmente o lugar. Quando chegou a casa deu conhe-

cimento da decisão tomada à mulher e telefonou ao seu conterrâ-

neo, a agradecer-lhe e a informá-lo dos detalhes da proposta e da

boa impressão com que ficara do seu novo patrão.

Este, sabendo que o fraco dele eram as mulheres, e sendo igual a

ele, no que diz respeito a rabos de saia, deu-lhe os parabéns e avi-

sou-o dos cuidados a ter com as mulheres que entrassem na Livra-

ria, para não colidir com interesses instalados.

No dia e hora combinados, Moisés apresentou-se na Livraria.

Nesse dia, o patrão ensinou-o a recolher os elementos nos livros a

leiloar, para elaborarem os verbetes do próximo leilão: anotar o

número da edição, o nome do autor, a data e formato dos livros e o

seu estado de conservação. E recomendou-lhe também que anotas-

se se os livros estavam encadernados ou em brochura, e se eram

nacionais ou estrangeiros.

E, por fim, disse-lhe: para consultas sobre obras mais raras e an-

tigas consulte o Dicionário Pallau, que está aqui, na prateleira ao

lado. Se tiver dúvidas pergunte-me, porque há coisas que não vêm

nos livros e só eu sei.

Preparado o primeiro catálogo e feito o primeiro leilão, Moisés

estava apto a fazer a maioria dos verbetes para catalogação dos

leilões seguintes. Educado como era, tratava com elevação os clien-

tes e com cuidado as facturas e os recibos. O que antes levava cinco

horas por noite, para leiloar cento e vinte lotes de livros, passou a

demorar apenas três. E a entrega dos livros aos clientes, passou a ser

feita em quarenta e oito horas, após terminarem os leilões.

Patrão e clientes estavam satisfeitos. No ano seguinte, o patrão

deixou-o só na Livraria a tomar conta dos negócios e foi, pela

primeira vez, com a esposa e a filha passar uns dias a Paris. Quan-

do regressou encontrou tudo na ponta da unha (bem feito): a sua

ausência não fora notada, nem por clientes nem por amigos, ele

tinha sido igual a si próprio: esmerado.

Mas havia de ser três anos mais tarde que lhe estava reservada a

maior surpresa da vida, quando o patrão, a seguir ao almoço, lhe

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disse: ó homem, você nasceu para ser alfarrabista! Nunca pensei

que se fizesse um entendido nesta “arte dos alfarrábios”, como se

fez, que parece que nasceu no meio de livros e de pessoas entendi-

das neles, com alguns clientes difíceis de aturar, com quem você

sabe lidar com educação e profissionalismo.

A este propósito, apraz-me dizer-lhe que não me chegou até hoje

a mais pequena queixa, fosse de quem fosse, a seu respeito e eu

também a não tenho. Ou, melhor dizendo: a única coisa que me

chegou, e não foi uma queixa, bem pelo contrário, foi da “duquesa

do Ribeirão”, minha amiga de longa data, que me confessou que

você se portou muito bem com ela na cama...

Aqui, Moisés ficou embasbacado e, não esperando ouvir tal coi-

sa, pediu ao patrão: por favor, não diga nada disso à minha mulher,

olhe que foi ela que me facilitou as coisas, quando um dia lhe fui

entregar livros a casa. E o senhor desculpe, mas nisso eu não sou

capaz de dizer que não a uma mulher!

E diz-lhe o patrão: ó homem de Deus, não tenho por hábito falar dessas coisas, seja a quem for. E depois, se foi como diz, fez você muito bem. Esses favores, muitas vezes, são actos de verdadeira caridade!…

E para o deixar descansado, confidenciou-lhe: se quer que lhe diga, também não fui nenhum santo, quando tinha a sua idade, e sei bem como isso acontece. Por isso, não lhe falei no assunto, quando ela me contou.

Moisés ficou descansado, e disse para o patrão: mas já agora, que estamos em maré de confidências, deixe que lhe diga uma coisa: olhe que ela, com os seus cinquenta anos, ainda é uma mu-lher apetecível, e que dá luta…

E respondeu-lhe o patrão:

– Cinquenta anos?! Ela disse-lhe que só tem cinquenta anos? Ponha-lhe mais dez em cima, e ficará ainda mais surpreendido.

– Não me diga que a “duquesa” já tem sessenta anos! Mas ela

disse-me que só tinha cinquenta.

– Sabe, meu amigo, as mulheres nunca querem ser velhas! E so-

bre a idade, nunca dizem a verdade. Mentem sempre! Fez sessenta

anos, no passado dia quinze de Maio.

– Nem quero acreditar em tal coisa! Olhe que não parece ter es-

sa idade. Digo-lho eu, que percebo do assunto...

G EN TE D E TR Á S - O S - MO N TES 29

E confidenciou-lhe o patrão:

– Conheci-a na intimidade primeiro que o meu amigo... Tinha

ela trinta e cinco anos, e o marido setenta, por isso, já vê. Mas

deixemos esses “pecadilhos”, este é o seu tempo, o meu já foi.

Aproveite enquanto puder, desde que respeite a família e saiba

fazer “essas coisas” tão bem feitas, como trata os livros e os clien-

tes, porque hoje o que tenho para lhe propor é a venda da Livraria.

Ontem, em casa, falámos nisto e todos acordámos em lhe fazer a

seguinte proposta, depois de concluirmos o leilão que temos em

mão: vendo-lhe a Livraria e o recheio, tal como está, por dez mil

contos. Perguntará qual a razão, e eu respondo-lhe: os setenta e

cinco anos aproximam-se e ainda queria gozar um pouco mais a

vida, enquanto a saúde mo permitir.

Além disso, tenho uns patacos amealhados e rendimentos dos

apartamentos que já conhece. Depois, a tudo isso acresce o facto de

a minha filha não se interessar por livros nem por leilões, e a minha

esposa, tendo menos vinte anos do que eu, ainda se interessa me-

nos. Por isso, a Livraria se não houver quem lhe valha, acaba,

quando eu acabar, e pensar nisso angustia-me. Foi aqui que passei a

maior parte da minha vida, e a ela devo tudo o que tenho, Inclusive,

bons amigos que ao longo dos anos me confiaram os seus valores.

Ora, vejo com agrado que também o podem fazer a si, e isso pesou

na minha decisão. Se não tiver dinheiro, o que acredito, paga-me

em dois anos, sem encargos nem papéis de Notário. Não lhe vão

faltar clientes, estou certo disso, e vai ganhar dinheiro com o negó-

cio. Vá para casa, fale com a família, e depois diga-me o que se lhe

oferecer sobre o assunto.

Pela segunda vez, nesse dia, o patrão surpreendia Moisés. En-

quanto durou a conversa do patrão, a apresentar a proposta e a

expor o seu pensamento, recordou o que o doutor Reis lhe tinha

dito: um dia, a Livraria pode ser tua! Fez contas à vida, e respondeu

ao patrão: esta é uma oferta irrecusável, que vai modificar a minha

vida, e permitir o que nunca pensei: ser patrão de mim mesmo.

Quanto às condições de pagamento, em boa verdade as minhas

economias são poucas, mas como posso recusar tão generosa oferta?

O senhor é uma pessoa a quem estarei sempre grato, quer pela

confiança demonstrada ao longo destes anos, quer agora, pela oferta

30 J O Ã O D E D EU S R O D R IG UES

da venda da Livraria por um preço aceitável. Depois, penso que já

me sinto à vontade no mercado dos livros antigos e acho-me capaz

de tomar conta do negócio. Por isso, sem precisar de falar com a

esposa, posso, desde já, dar-lhe a minha palavra: aceito a proposta.

Tenho quinhentos contos disponíveis, que posso entregar amanhã, e

dinheiro para a escritura também o arranjo. Portanto, podemos mar-

cá-la para quando quiser, nas condições expostas e acordadas.

E respondeu-lhe o patrão: vou usar uma expressão grata aos

transmontanos, que o nosso amigo, doutor Reis, usa com frequên-

cia e eu adoptei: palavra dada, bois vendidos! O negócio está feito,

meu amigo. Apertaram a mão, e “selaram” o negócio.

Moisés, ao jantar, contou o sucedido à família. O filho mais ve-

lho disse que queria estudar e não queria ir para a Livraria. Era o

que ele queria, porque ia estragar arranjinhos mantidos em segredo.

No dia seguinte deu conhecimento do negócio ao conterrâneo, e

este disse-lhe: parabéns, rapaz, saiu-te a sorte grande! Agora, porta-

-te bem e vê se és menos mulherengo, porque dinheiro não te vai

faltar. Se tiveres juízo, vais ser um dos homens mais ricos da nossa

aldeia, tenho a certeza disso!

Um mês depois, Moisés estava a tomar conta da sua Livraria, já

com a escritura feita e a oferta do primeiro leilão da biblioteca de

um conhecido bibliógrafo, antigo cliente da casa. Foi o seu primei-

ro leilão, e deixou de lucro metade dos custos envolvidos na com-

pra da Livraria. Passado um ano, feitos cinco leilões, tinha a dívida

liquidada e um saldo positivo no banco, apreciável.

Moisés passou a dedicar todo o tempo e empenho à Livraria e

aos clientes. Continuou a ir almoçar ao mesmo restaurante e os

clientes tinham por ele estima e consideração. Em contacto com

eles aprendeu que o segredo era a alma do negócio, e que a inveja

tinha os braços compridos. Por isso, ninguém soube da soma en-

volvida na compra da Livraria, e se alguém o abordava sobre isso

desculpava-se, com qualquer coisa, e não lho revelava.

Pela sua Livraria, a comprar e vender livros e manuscritos, e

mapas e gravuras antigas, continuaram a passar as mais altas indi-

vidualidades do País: académicos, ministros, banqueiros, advoga-

dos famosos, homens de negócios. E todos continuaram a confiar-

G EN TE D E TR Á S - O S - MO N TES 31

-lhe as suas ofertas para aquisição de obras nos leilões, quando não

podiam estar presentes.

A par disso, os homens mais ricos da capital, senão do País, fo-

ram seus clientes e as encomendas do estrangeiro aumentaram. Pelas

suas mãos passaram raridades bibliográficas, como a primeira edição

dos Lusíadas, de 1572, e edições raríssimas, nacionais e estrangeiras,

manuscritos e incunábulos valiosos. Obras raras, que muitas vezes

acabavam em Universidades estrangeiras, porque as Entidades nacio-

nais, como a Torre do Tombo ou a Biblioteca Nacional, raramente

compareciam nos leilões para as adquirirem, fazendo uso da opção

que tinham, sobre todos os licitadores, contribuindo, por omissão,

para que se delapidasse o Património Nacional e para o enriqueci-

mento de Bibliotecas estrangeiras, e Fundações particulares.

Moisés, agora já não era o rapazinho pobre e humilde, filho de

pastores, com uma vida de subsistência. Aquele que pastoreou

ovelhas por vales e serras de Trás-os-Montes, e atiçou os cães aos

lobos, seus irmãos. Que tiritou de frio no Inverno, e se benzeu

quando os relâmpagos riscavam o céu, e chamava por uma ovelha e

ela corria para ele, a balir.

O rapazinho que nunca se esqueceu da manhã em que sentado

numa fraga, no meio dos montes, pensou pedir namoro à jovem do

lavrador mais rico da aldeia, para concluir: mas para quê, se ela se

ri de mim e me diz que não. Ainda se eu fosse filho de lavradores

ricos, como o pai dela, agora, assim.

Os anos passaram. O livreiro-alfarrabista, fruto do seu trabalho,

conseguiu amealhar uma pequena fortuna. Mandou construir uma

boa moradia, comprou imóveis, os seus carros eram de boa marca.

Passou a trajar bem, em casa nada faltava. Enfim, era, o que se

podia dizer, um pequeno burguês.

Mas, como se diz, ninguém é perfeito e há sempre um “mas”.

O dele eram as mulheres, que crescia à medida dos seus teres e

haveres. Tornou-se um mulherengo, quase doentio, que quando via

um rabo de saia perdia a cabeça. Qualquer mulher, nova ou velha,

mais ou menos bonita, desde que fosse na sua conversa, era uma

conquista, um troféu. Todas lhe serviam. Numa relação que trazia

consigo constavam mais de duzentas anotações, com a indicação do

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primeiro nome, idade e local de encontros amorosos. E pensava só

parar, quando atingisse as quinhentas.

Julgava-se um Don Juan, um engatador. Embora, nesta sua face-

ta também houvesse fracassos. Do seu curriculum fazia parte um

engate engraçado, que o deixou embasbacado, quando uma noite

passava no carro pela Avenida da Liberdade e viu uma “loira” de

mini-saia e perna bem torneada, que estava no engate. Como viaja-

va só, fez-lhe sinal de luzes e “ela” aproximou-se do carro e entrou.

Acto contínuo, colocou-lhe a mão nas pernas e arrancou, com

receio que alguém conhecido passasse e o reconhecesse.

Já iam no Saldanha, a caminho de um hotel, quando a loira lhe

diz: você é um homem bonito, e tem ar de machão, sabia?!…

E respondeu-lhe ele: ó querida, tu ainda não viste nada, mas agora

não me distraias que vou a conduzir. Mas, entretanto, ia avançando

com a mão. E tanto avançou, que apalpou o que não imaginava...

Ficou possesso. Parou imediatamente o carro, saiu dele verme-

lho como um pimentão, abriu a porta e diz para a “loira”: ó seu

filho da puta, desanda já daqui antes que eu perca a cabeça. Você

não é da fruta que eu gosto, seu mariconso dos infernos.

Era um travesti, dos primeiros que apareceram na Rua Alexan-

dre Herculano, e desses, de facto ele não gostava, mesmo nada!

Bem pelo contrário, esses, costumava dizer que não sabiam fazer

amor com uma mulher, como deve ser... Até se sentiu doente.

A partir dessa noite, passou a ter mais cuidado. Quando abria a

porta do carro a uma mulher desconhecida, não lhe punha logo a

mão nas pernas… Contudo, em casa não dava mau viver à família. Não fosse o

facto de ser tão mulherengo, podia dizer-se que era um bom marido

e chefe de família. De tal maneira, que a esposa nem por sombras

sonhava nas suas conquistas e no quanto elas lhe custavam.

A confiança nele era tanta, que lhe dava espaço para dar asas à

sua fantasia e fazer as maiores extravagâncias. Como, por exemplo,

dizer-lhe que ia ao Porto assistir a um leilão, e ficar numa pensão

em Coimbra, com a namorada do momento.

Valia-lhe o facto de não se prender a nenhuma mulher: uma vez,

para mim, é quanto basta... Dizia ele a um amigo, a quem relatava

essas facadas no matrimónio, e ele o aconselhava a ter cuidado com

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as mulheres... Ao que ele respondia: sabes lá tu como é bom fazer

amor com várias mulheres. Elas são todas diferentes, até no “furco

de gato” (na vulva). Depois, à minha Maria não falta nada em casa,

e tenho a certeza de que se um dia souber, não se importa! Nunca

faltei ao respeito à família, e quanto a dinheiro não sei, nem lhe

pergunto, quando e onde o gasta.

Mas esse amigo, prevendo que um dia aquilo ia dar para o torto, respondia-lhe: não te esqueças do ditado que diz que tudo está bem, quando acaba bem. Pensa que ninguém gosta de ser traído, e muito menos no amor. E perguntava-lhe: tu gostavas que a tua mulher te andasse a “enfeitar” (trair) com outro homem, sem tu saberes! E se soubesses, o que fazias?

Mas ele, com sorriso matreiro, a gozar com o amigo, respondia--lhe: ora, lá estás tu com as tuas moralidades. As mulheres, meu amigo, desde que não lhes falte em casa, não se importam…

Não te fies nisso, quando menos esperares cai-te a sopa no mel… Mas esses conselhos, a ele, entravam-lhe por um ouvido e saíam-lhe pelo outro.

Infelizmente, o amigo havia de ter razão. Essa vida, de Don Juan,

durou até ao dia em que ele deixou esquecida em casa a Agenda pessoal. A esposa abriu-a, e foi um choque emocional para ela. Nela constava uma relação, pormenorizada, das suas infidelidades…

Nesse dia, quando chegou a casa, encontrou a família num pranto. Confrontado com os factos, pediu desculpa aos filhos e perdão à mulher. Mas ela sentiu-se tão atraiçoada, que não lhe perdoou. Na lista constavam amigas suas, incluindo a esposa do homem que lhe abriu as portas da fortuna e tanto o ajudara, depois de ter ficado viúva… A partir desse dia, desencadearam um processo de separa-ção. Divorciaram-se e dividiram os bens. Os filhos, já adultos, apoia-ram mais a mãe, e aqui começou a sua decadência, física e moral.

Depois ele, ao tal amigo, a carpir, qual Madalena arrependida,

confessava com profunda tristeza: bem me dizias tu, para ter cuida-

do com as facadas no matrimónio, porque podiam ser a minha

desgraça. Mas eu não te dei ouvidos, e hoje choro pela minha

Maria e torço a orelha e não deita sangue. Agora, sentia-se um homem só. Contudo, sem perder o seu jeito

peculiar de um Don Juan de trazer por casa, sem deixar de pensar

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nas mulheres, mantendo a sua teoria de que elas eram a melhor

coisa que Deus tinha deixado no Mundo. E já canastrão (velho),

dizia: e há tanta mulher bonita por aí, cada vez mais desnudadas...

E conformava-se, dizendo: mas que se lixe o mundo, eu fiz a minha

perna, lá isso fiz! Quanto ao resto, paciência, o que lá vai, lá vai.

E como o bom aço corta até à cota, desejava o impossível: voltar a

ter vinte e cinco anos. Entretanto, nos negócios dos alfarrábios apareceram outros in-

tervenientes e novas casas leiloeiras. Moisés, só, velho e desmora-

lizado, por fim doente, passou a ter um papel secundário, naquilo

em que outrora fora o expoente máximo na capital e no País.

E assim foi claudicando, dia após dia, um transmontano, junto

ao rio que viu Ulisses e ouviu as Sereias cantar, em noites de Lua

Cheia, sem ter ninguém que o amarrasse ao mastro de um navio.