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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES JENNIFER MONTEIRO O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova religiosidade – Estudo de caso do grupo do Facebook “Conversando sobre Religião” SÃO PAULO 2014

O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

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Page 1: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES

JENNIFER MONTEIRO

O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

religiosidade – Estudo de caso do grupo do Facebook

“Conversando sobre Religião”

SÃO PAULO

2014

Page 2: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

JENNIFER MONTEIRO

O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova religiosidade – Estudo

de caso do grupo do Facebook “Conversando sobre Religião”

Monografia apresentada à Escola de Comunicações e

Artes da Universidade de São Paulo, no curso de pós-

graduação lato sensu de Gestão Integrada da

Comunicação Digital (Digicorp), para obtenção do título

de Especialista em Gestão da Comunicação Integrada

Digital, sob orientação da Profª. Elizabeth Saad Corrêa.

SÃO PAULO

2014

Page 3: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

Autorizo a reprodução total ou parcial deste trabalho por qualquer meio convencional

ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Monteiro, Jennifer

O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova religiosidade – estudo de caso

do Grupo do Facebook “Conversando sobre Religião”. Jennifer Monteiro: orientadora

Elizabeth Saad Corrêa. São Paulo – 2014. 65 fls.

Monografia (Especialização Lato Sensu) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade da

São Paulo, 2014.

1. Religião. 2. Religiosidade. 3. Comunicação. 4. Cibercultura. 5. Mídias Sociais

Page 4: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

Nome: MONTEIRO, Jennifer

Título: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova religiosidade – Estudo

de caso do grupo do Facebook “Conversando sobre religião”

Monografia apresentada à Escola de Comunicações e Artes da

Universidade de São Paulo, no curso de pós-graduação lato

sensu de Gestão Integrada da Comunicação Digital (Digicorp),

para obtenção do título de Especialista em Gestão da

Comunicação Integrada Digital, sob orientação da Profª.

Elizabeth Saad Corrêa.

Aprovado em:

Banca Examinadora:

Prof.____________________________ Instituição:____________________________

Julgamento:______________________ Assinatura:____________________________

Prof.____________________________ Instituição:____________________________

Julgamento:______________________ Assinatura:____________________________

Prof.____________________________ Instituição:____________________________

Julgamento:______________________ Assinatura:____________________________

Page 5: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

DEDICATÓRIA

A meus pais, Marlene e Agostinho (in memorian),

razão e inspiração para tudo o que sou.

Saudades.

Page 6: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

AGRADECIMENTOS

Ao meu eterno namorado, Fernando Brengel, por estar

sempre ao meu lado e me dar forças para seguir, mesmo

quando eu mesma não acreditava ser possível.

À minha orientadora, Elizabeth Saad Corrêa, por me

abrir as portas desse maravilhoso mundo da

Comunicação Digital, e por confiar em mim, não uma,

mas duas vezes!

À Escola de Comunicações e Artes da Universidade de

São Paulo, por ter me proporcionado alguns dos

melhores momentos de minha vida e por sempre fazer

com que eu me sinta em casa.

Page 7: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

RESUMO

O advento da Internet abriu um arsenal de novas possibilidades para a comunicação, inclusive

a das instituições religiosas com seus fiéis. Tudo o que antes era feito offline passa a ser feito

online, e com algumas diferenças: a oferta de informação passa a ser muito maior, e o acesso

a ela independe do tempo ou do espaço.

Face a essa transformação, as religiões estão se movendo na direção do digital, mas o fazem

com o mesmo tipo de abordagem que vinham tendo antes, como se o digital fosse uma

extensão das mídias tradicionais, mais uma ferramenta à disposição do evangelizador, do

porta-voz da “boa nova”. Mais um canal, e não um novo ambiente social.

Acontece que o digital obedece a uma outra lógica. Se antes o fiel recebia a “Palavra” filtrada

e formatada, seja nos espaços territorializados dos templos e igrejas, seja através das mídias

tradicionais, agora é ele quem chega a ela por meio de “busca” e “navegação”. E, assim, como

se apropria de conteúdos de outras áreas (cultura, política), os absorve, filtra, transforma e

ressignifica, começa a fazer o mesmo com o conteúdo religioso.

O objetivo desse estudo é entender que tipo de religião – ou religiosidade – brota nesse novo

ambiente social que é a Internet, como ela se manifesta. E como o digital está se tornando o

espaço para o exercício dessa religião – ou religiosidade.

Palavras-chave: religião, religiosidade, comunicação, cibercultura, redes sociais.

Page 8: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

ABSTRACT

The advent of Internet has opened up an arsenal of new possibilities for communication,

including to the religious institutions and their followers. Everything that was previously done

offline, now is made online, and with some differences: the provision of information becomes

much larger, and have access to it independs of time or space.

Given this transformation, religions are moving toward digital. But they do it with the same

kind of approach they used before, as if digital were an extension of traditional media, another

tool available to the evangelist, the spokesman for the "good news". Another channel, not a

new social environment.

It turns out that the digital obeys a different logic. If the religious community received the

"word", filtered and formatted, whether in the territorialized spaces of temples and churches,

whether through traditional media, now it is the community who comes to her using "search"

and "navigation". And, as it appropriates content from other areas (culture, politics), absorbs,

filters, transforms and reframes, begins to do the same with the religious content.

The aim of this study is to understand what kind of religion - or religiosity – arises in the new

social environment that is the Internet, how it manifests itself. And how the digital is

becoming a space for the exercise of that religion - or religiosity.

Keywords: religion, religiosity, communication, cyberculture, social networks.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO...................................................................................................................13

1.1. Da escolha do tema...........................................................................................................13

1.2. Do objeto de estudo..........................................................................................................14

1.3. Do problema e dos objetivos...........................................................................................15

1.4. Dos procedimentos metodológicos..................................................................................15

1.5. Dos capítulos deste trabalho............................................................................................16

2. CONTEXTUALIZANDO – RELIGIÃO E COMUNICAÇÃO.....................................18

2.1. Um pouco de História......................................................................................................18

2.2. Diferença entre religião e religiosidade..........................................................................20

2.3. Pertencimento...................................................................................................................21

2.4. Diferença entre mídia da religião e religião na mídia...................................................22

2.5. Autoridade........................................................................................................................23

3. O AMBIENTE DIGITAL E A NOVA RELIGIOSIDADE............................................25

3.1. Declínio da autoridade religiosa.....................................................................................26

3.2. Autonomia do indivíduo reforçada................................................................................29

3.3. Religião digital como terceiro espaço.............................................................................31

4. OBSERVAÇÃO DO GRUPO

DO FACEBOOK “CONVERSANDO SOBRE RELIGIÃO”.............................................33

4.1. Critérios para seleção do ambiente “macro” a ser estudado.......................................33

4.2. A escolha do ambiente específico para o estudo de caso..............................................39

4.3. O grupo “Conversando sobre Religião” .......................................................................41

4.4. Definição dos critérios de análise do Grupo “Conversando sobre Religião” ............45

4.5. Análise do Grupo “Conversando sobre Religião” .......................................................46

4.5.1. Publicação de 28 de agosto de 2014 – A busca da informação religiosa..................46

4.5.2. Publicação de 29 de agosto de 2014 – A busca da intercessão religiosa...................50

4.5.3. Publicação de 30 de agosto de 2014 – Questionando os fundamentos ....................53

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................60

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6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................................63

Page 11: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

LISTA DE FIGURAS

Figura 1

Meme da Internet: Blasphemy - A ticket to Hell has never been funnier................................27

Figura 2

Impressão de tela da página do perfil do Twitter de Deus, @Ocriador...................................27

Figura 3

Impressão de tela dos resultados de busca pela expressão “menos religião” no Facebook.....29

Figura 4

Ranking Hitwise da participação de visitas às redes sociais em fevereiro de 2014.................33

Figura 5

Ranking Comscore do número de visitantes únicos das

redes sociais em fevereiro de 2014. ........................................................................................34

Figura 6

Impressão de tela dos resultados de busca pelo termo “religião” no Facebook.......................35

Figura 7

Tabela comparativa dos tipos de Grupos admitidos pelo Facebook (público, fechado

ou secreto), disponível na Central de Ajuda da rede social......................................................38

Figura 8

Impressão de tela dos resultados de busca por Grupos no Facebook

contendo o termo “religião”.....................................................................................................40

Figura 9

Impressão de tela do cabeçalho da página do Grupo “Conversando sobre Religião” ............41

Figura 10

Impressão de tela do quadro “Sobre o Grupo”, do “Conversando sobre Religião”. ...............42

Page 12: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

Figura 11

Impressão de tela da publicação fixada no início da página do Gupo

“Conversando sobre Religião”, com as boas-vindas aos novos membros e

as regras da comunidade, publicada pelo seu moderador, P.T.A. ............................................44

Figura 12

Impressão de tela da publicação da integrante A.M. no Grupo

“Conversando sobre Religião”, de 28 de agosto de 2014, às 19h56........................................47

Figura 13

Impressão de tela da publicação da integrante R.L.no Grupo

“Conversando sobre Religião”, de 29 de agosto de 2014, às 20h21........................................50

Figura 14

Impressão de tela da publicação do integrante I.J. no Grupo

“Conversando sobre Religião”, de 30 de agosto de 2014, às 22h12........................................55

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1. INTRODUÇÃO

1.1. Da escolha do tema

Onze anos de colégio de freiras católicas. Onze anos de orações nas filas que antecediam a

entrada em classe, aulas de religião, leituras do Velho e do Novo Testamento, preparação para

a Primeira Comunhão, preparação para a Crisma, comemorações da Semana Santa, Mês de

Maio, Festa das Mães com missa, Festa dos Pais com missa, Formaturas com missa. Em todas

as situações, algumas constantes:

a autoridade estabelecida de quem conduzia esses processos – fosse a madre superiora, o

padre, a professora de religião, a catequista;

a inquestionabilidade daquilo que estava sendo dito;

o efeito erga omnes1 daquilo que estava sendo dito;

a obrigatoriedade da participação presencial nos ritos, obedecendo a tempos e modos

determinados;

a definição de espaços específicos para a prática religiosa – o pequeno altar, a capela, o

confessionário, a igreja.

Corriam os anos 1970 e início dos anos 1980, os papas eram Paulo VI (até sua morte, em

1978), João Paulo I (com seu curtíssimo pontificado de 33 dias em 1978), e João Paulo II

(entronizado em outubro de 1978).

O cenário descrito, que acontecia no âmbito da escola católica e dos relacionamentos

interpessoais, se repetia no âmbito mais amplo das mídias. Ao longo da evolução da

sociedade ocidental a Igreja Católica sempre teve um papel de destaque e soube se apropriar

das tecnologias para alcançar seus objetivos de evangelização “de cima para baixo”.

Salto de quase 30 anos e um novo componente vem romper o equilíbrio desse quadro: a

Internet, esse novo ambiente, no qual as pessoas buscam informações, relacionam-se com os

amigos e com o mundo, compram, vendem. Ou seja, fazem online tudo que faziam offline, e

de uma forma amplificada. E isso vale também para a experiência religiosa.

1 Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, expressão latina cujo significado é “que tem efeito ouvale para todos”.

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A vivência pessoal num ambiente de formação religiosa tradicional, mais especificamente

católica, em contraste com as inovações trazidas pelas tecnologias digitais, despertou nosso

interesse em pesquisar os efeitos que o encontro dessas duas realidades produz no fazer e no

sentir religioso.

Uma busca inicial demonstrou que a bibliografia sobre o assunto ainda é pequena, bastante

recente e, quando existente, vinculada à realidade de outros países. Isso nos leva a acreditar na

pertinência de levar adiante um estudo sobre o tema, que pode vir a enriquecer o debate sobre

os processos comunicacionais no âmbito das religiões, embora não se restrinja somente a ele,

podendo ser extrapolado para outras práticas sociais.

1.2. Do objeto de estudo

Dentro do tema proposto, pretendemos estudar o ambiente digital como espaço de exercício

de uma nova religiosidade. Interessa-nos especificamente entender como o ambiente digital

está se tornando um espaço de questionamento cada vez maior da religião institucionalizada

(com um crescente declínio da autoridade religiosa tradicional e das suas representações) e

para a manifestação cada vez maior de uma religiosidade pessoal, individualizada. Queremos

entender como as pessoas se apropriam de fragmentos do fazer religioso tradicional, os

manipulam e os resignificam para torná-los algo próprio, novo e único; como deixam de ser

exclusivamente receptoras da mensagem religiosa, para delas se tornarem coautoras.

Sbardelotto2 (2012, p. 135-136), evocando Rüdiger (2002), escreve:

As novas tecnologias da comunicação e informação estariam reduzindo aexperiência humana, senão a própria figura do homem – e de Deus – a dados quepodem ser armazenados, processados e disponibilizados para manipulação. Ohomem e o sagrado, por conseguinte, passam, assim, a se projetar em um ambienteem que tendem a ser reduzidos à informação, sujeitando-se, dessa forma, a todo tipode cálculo, manuseio e reconstrução. Assim, os sujeitos dessa nova realidade (…)poderiam se tornar cada vez mais instáveis, fluidos, múltiplos, difusos e abertos.

2 SBARDELOTTO, M. E o Verbo se Fez Bit – A Comunicação e a Experiência Religiosas na Internet.Aparecida: Editora Santuário, 2012.

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1.3. Do problema e dos objetivos

Definidos nosso tema e nosso objeto de estudo, vamos ao próximo passo. Cumpre agora

problematizá-los. Elegemos as seguintes perguntas-problema para serem respondidas no

desenrolar deste trabalho:

É possível falar em uma nova religiosidade incentivada pelo surgimento do ambiente

digital? Em caso positivo, o que é, e como se manifesta essa que optamos por chamar de

“nova religiosidade online”?

Quais os fatores determinantes do surgimento dessa nova religiosidade?

1.4. Dos procedimentos metodológicos

Pretendemos responder às perguntas-problema deste trabalho e alcançar os objetivos para ele

delimitados mesclando as técnicas de revisão bibliográfica e de estudo de caso, conforme

detalhado a seguir:

Revisão bibliográfica – amparada em obras e autores que tenham se dedicado a estudos

relacionados à comunicação, cibercultura, sociologia, mídia, religião e redes sociais.

[...] a revisão da literatura acompanha o trabalho acadêmico desde a sua concepçãoaté sua conclusão. Da identificação do problema e objetivos do estudo, passando porsua fundamentação teórica e conceitual, pela escolha da metodologia e da análisedos dados, a consulta à literatura pertinente se faz necessária. (STUMPF3, 2010, p.54)

Estudo de caso – optamos por essa metodologia por acreditar que seja a mais indicada

para estudar o fenômeno dessa suposta nova religiosidade que surge na ambiência digital.

Nada melhor que investigar “um fenômeno contemporâneo dentro de um contexto da vida

real” (YIN, 2001, apud DUARTE4, 2010, p. 216).

O contexto estudado será o de um Grupo do Facebook que tem a religião como tema. A

escolha do Grupo a ser estudado começou por uma busca no Facebook por grupos e páginas

que tivessem “religião” como tema principal, com o cuidado de excluir aqueles eventualmente

vinculados a qualquer instituição ou doutrina religiosa específica. Esse corte se justifica pois,

3 STUMPF, I. R. C. Pesquisa Bibliográfica. In: DUARTE, J.; BARROS, A. (Orgs). Métodos e Técnicas dePesquisa em Comunicação. São Paulo: Atlas, 2010.

4 DUARTE, M. Y. M. Estudo de Caso. In: DUARTE, J.; BARROS, A. (Orgs), 2010, op.cit., p. 216.

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como explicaremos mais à frente, não nos interessa entender como as instituições religiosas se

utilizam das mídias digitais, mas, sim, como as mídias digitais são utilizadas pelas pessoas

comuns para vivenciar sua religiosidade (ou até justificar a sua não religiosidade).

Pretendemos, partindo do caso particular e utilizando o raciocínio indutivo, fazer emergirem

princípios e generalizações que possam ser extrapolados para o todo.

1.5. Dos capítulos deste trabalho

Esclarecemos agora como pretendemos conduzir este trabalho, de modo a responder as

perguntas-problema que propusemos e atingir o objetivo final deste estudo.

Trataremos, no Capítulo 1, da contextualização de religião e comunicação do ponto de vista

histórico, resgatando sua inter-relação ao longo do tempo. Também procuraremos esclarecer

alguns conceitos-chave para esta monografia: as diferenças entre religião e religiosidade,

entre mídia da religião e religião na mídia, a noção de pertencimento e os atributos da

autoridade.

No Capítulo 2, o enfoque será o ambiente digital e a nova religiosidade que acreditamos estar

nele se manifestando. Utilizaremos como base as teses de Stewart M. Hoover, professor de

Estudos de Mídia e Professor Adjunto de Estudos Religiosos da Universidade do Colorado,

nos Estados Unidos, fundador e diretor do Centro de Mídia, Religião e Cultura. Cabe

ressaltar, inclusive, que foi no seminário “Religião Digital como Terceiro Espaço”, por ele

proferido em abril de 2013 na Umesp – Universidade Metodista de São Paulo, que

começamos a delinear com mais precisão os contornos deste trabalho.

O estudo de caso ocupará o Capítulo 3. Apresentaremos, neste ponto, os critérios que nos

levaram a escolher como foco de nossa análise uma rede social específica – Facebook, dentro

dela um “subambiente” – um Grupo e, entre os grupos, um em particular – “Conversando

sobre Religião”. Em seguida, analisaremos o Grupo escolhido e suas publicações, buscando

identificar nelas os elementos indicativos do surgimento de uma nova forma de viver o “fazer

religioso”.

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Por fim, no Capítulo 4, responderemos às perguntas-problema por nós definidas, apresentando

nossas considerações finais sobre o presente estudo.

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2. CONTEXTUALIZANDO – RELIGIÃO E COMUNICAÇÃO

2.1. Um pouco de História

Se considerarmos que a História só passa a existir com o advento da tecnologia e da

estruturação da informação, veremos que a Igreja Católica foi a primeira “máquina”

processadora de informação. Era a única que tinha acesso às tecnologias de informação da

época e que possuía estrutura e recursos organizacionais suficientes para seu processamento e

difusão. Basta lembrar que, na Idade Média, a cópia das obras era feita à mão, por religiosos

integralmente dedicados a essa tarefa. Ou seja, a Igreja escolhia o que ia ser reproduzido,

quantas cópias seriam feitas e às mãos de quem elas chegariam. A invenção da prensa, em

1440, inicialmente vista como uma ameaça a esse status, logo é absorvida, e a Bíblia passa a

ser, não só o primeiro livro impresso, mas também o mais impresso de todos os livros.

As Igrejas cristãs em geral, mas a católica em particular, ao darem a conhecer suasverdades sobre o mundo e sendo portadoras do Verbo, independentemente de suabase institucional e doutrinária, apropriaram-se dos dispositivos comunicacionaishistoricamente a seu alcance, por meio de suas várias possibilidades, para transmitirsua mensagem de fé. A própria história das Igrejas é uma história intimamenterelacionada à comunicação. (SBARDELOTTO5, 2012, p. 22, grifo nosso)

Na era da cultura de massa, rádio e televisão também passaram a ser utilizados como

instrumentos de difusão dos conteúdos da Igreja Católica e de garantir seu espaço na esfera

pública – com uma diferença: ela conta agora com a concorrência de novas denominações

religiosas, muito mais preparadas para transitar no ambiente midiático.

Enquanto as igrejas históricas – catolicismo e protestantismo – usavam os meios decomunicação de massa como instrumentos de sua mensagem, como transportadoresde seus conteúdos, as novas religiões nascem fundidas, geneticamente produzidaspela mídia, particularmente a televisão. O que significa que as segundascorrespondem ao bios midiático e as primeiras precisam aprender a ser assim parasobreviver. Ou seja, existir supõe dominar a lógica midiática. (BERGE6, 2007, p. 29)

Nenhuma tecnologia é neutra. E, assim, as tecnologias que permeiam as mídias tradicionais

trouxeram muitas mudanças no fazer religioso. Serviram, principalmente, para mediar e

5 SBARDELOTTO, M. op. cit.6 BERGE, C. Tensão entre os campos religioso e midiático. In: MELO, J. M. de; GOBBI M. C.; BRAUN, A.C..E. (Orgs.). Mídia e Religião na Sociedade do Espetáculo. São Bernardo do Campo: Universidade Metodistade São Paulo, 2007.

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amplificar o alcance da comunicação entre Igrejas e seus seguidores. Pouco influenciaram,

porém, em aspectos relacionados à autoridade, ao espaço territorializado para o fazer

religioso, à necessidade da presença física nos atos religiosos, ao modo de fazer, ao tempo de

fazer, aos ritos, entre outros. Ou seja, continuou reservada às igrejas e aos seus representantes

devidamente reconhecidos como tal, a tarefa de “levar a Palavra”; as mídias são apenas seus

instrumentos.

Na contemporaneidade, o advento da Internet abre um arsenal de novas possibilidades para a

comunicação, inclusive em relação às instituições religiosas e seus fiéis. Como já

mencionamos, tudo o que antes era feito offline, passa a ser feito online, com algumas

diferenças: a oferta de informação passa a ser muito maior, e o acesso a ela independe do

tempo ou do espaço. A hora é agora e o lugar é onde o indivíduo estiver.

Face a essa transformação, as religiões – inclusive a Católica, que usamos como exemplo no

início deste texto por conta da familiaridade com suas práticas e tradições – estão se movendo

na direção do digital. Entretanto, o fazem com o mesmo tipo de abordagem que vinham tendo

antes, como se o digital fosse uma extensão das mídias tradicionais, mais uma ferramenta à

disposição do evangelizador, do porta-voz da “boa nova”. Mais um canal, e não um novo

ambiente social.

Acontece que o digital obedece a outra lógica. Se antes o fiel recebia a “Palavra” filtrada e

formatada, seja nos espaços territorializados dos templos e igrejas, seja através das mídias

tradicionais, agora é ele quem chega a ela por “busca” e “navegação”. E, assim como se

apropria de conteúdos de outras áreas (cultura e política, por exemplo), os quais absorve,

filtra, transforma e resignifica, começa a fazer o mesmo com o conteúdo religioso: “a

construção do sentido religioso passa cada vez mais pelas mãos dos indivíduos e cada vez

menos pelas mãos das instituições” (FAUSTO NETO, 2004 apud SBARDELOTTO7, 2012, p.

91).

Assim, o objetivo desse estudo não é esmiuçar como a religião está utilizando a mídia, mas,

sim, que tipo de religião – ou religiosidade – brota nesse novo ambiente social que é a Internet

e como o digital está se tornando o “terceiro espaço” – ou third space8, segundo Hoover e

7 SBARDELOTTO, M. op. cit..8 Desenvolveremos adiante esse conceito, mais precisamente no Capítulo 3, item 3.

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Echchaibi9 (2013) – para o exercício dessa religião – ou religiosidade.

Essa mudança é tão representativa que muitos autores se referem a ela como uma “nova

Reforma”, com reflexos tão importantes quanto os da Reforma Protestante: a Reforma Digital

que é, segundo Drescher (2011, apud SBARDELOTTO10, 2012, p. 49):

guiada não tanto por teologias, dogmas e políticas […], mas sim pelas práticasespirituais digitalmente acentuadas de fiéis comuns com acesso global a cada um e atodas as formas de conhecimento religioso previamente disponível apenas a clérigos,estudiosos e outros especialistas religiosos.

2.2. Diferença entre religião e religiosidade

O estudo ao qual nos propusemos requer que se defina religião e religiosidade, uma vez que

são conceitos centrais deste trabalho, e que se confundem muitas vezes.

Religião (do latim, religare) é um conjunto de crenças, doutrinas, ritos e práticas estruturados,

organizados, reconhecidos e aceitos por um determinado grupo como instrumentos de sua

religação com Deus.

Religiosidade, por outro lado, é a forma “não institucionalizada” dessa conexão com o

sagrado. Ela tem uma forma mais vaga e difusa, não obedece rigorosamente a esta ou aquela

tradição, não se encaixa nesta ou naquela comunidade de fiéis. É mais um sentimento, uma

afetividade, um reconhecimento do mistério da transcendência.

O fato de uma pessoa não seguir - ou pertencer (destacamos esse conceito porque ele virá a

ser de grande importância neste trabalho) – a uma religião não significa que ela não tenha

religiosidade.

Muitos consideram um componente intrínseco à natureza humana essa constante busca por se

conectar ao divino, ao sagrado, ao Criador, chegando a defender a ideia de um homo

religiosus11. Outros acreditam que essa posição não passa de uma tentativa dos teólogos de,

9 HOOVER, S.; ECHCHAIBI, N. The Third Spaces of Digital Religion. In: MARANHÃO FILHO, E. M. deA. (Org.). Religiões e Religiosidades no (do) Ciberespaço. São Paulo: Fonte Editorial, 2013

10 SBARDELOTTO, M. op. cit.11 ELIADE, M. O Homo Religiosus. Publicado em 23 de agosto de 2011. Disponível em:

http://www.saopedromaceio.com.br/index.php/ciencias-da-religiao/185-o-homo-religiosus. Último acesso emsetembro de 2014.

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subrepticiamente, defender a existência de Deus, tratando a religião como algo inato, e não

cultural (ou aprendido):

Na verdade, o homem é como uma máquina de criar deuses, e se tomarmos issocomo verdadeiro, Deus e a religião são criações culturais, são invenções humanasque objetivam responder às suas necessidades, a seus questionamentos; por isso asreligiões mudam, por isso as representações de Deus ou dos deuses mudam, porquesão adaptadas ao momento histórico vivenciado por um determinado grupo.(SOUSA, B. O. 2012)12

Não é objetivo deste trabalho, no entanto, entrar nessa discussão de fundo. Basta-nos

estabelecer a diferença conceitual que adotamos entre os dois termos, que, como já dissemos,

serão cruciais no desenrolar deste trabalho.

2.3. Pertencimento

Quando falamos da diferença entre religião e religiosidade, mencionamos que o fato de uma

pessoa não seguir – ou “pertencer” – a uma religião não significa que ela não tenha

religiosidade. Deparamo-nos, então, com um conceito que necessita ser definido com

precisão: “pertencimento”: o que faz uma pessoa sentir-se parte de algo? O que é esse

sentimento de pertencimento?

[...] sonhamos com comunidade [...] com o comum e as realidades partilhadas queestão na base dela. Sonhamos com uma vida com os outros, com a segurança delugar, familiaridade e cuidado. (SILVERSTONE, 1999, apud SOUSA, M. W. 2010,p. 41)13

Em boa medida, tudo o que nos deu esse sentido de comunidade sempre vem determinado

desde o momento em que nascemos. Família, religião, etnia são os primeiros “quadros de

referência que dão aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social” (HALL, 2003,

apud DE LIBERAL, 2004)14. Agir conforme esses quadros de referência nos dá segurança e

nos faz aceitos, queridos e admirados pelo nosso grupo de origem.

12 SOUSA, B. O. Homo Religiosus: um Conceito Adequado ou Indemonstrável? A Propósito de seu Usona História das Religiões, Publicado em 2 de setembro de 2012. Disponível em:http://bertonesousa.wordpress.com/2012/09/02/homo-religiosus-um-conceito-adequado-ou-indemonstravel-a-proposito-de-seu-uso-na-historia-das-religioes/. Último acesso em setembro de 2014.

13 SOUSA, M. W O Pertencimento ao Comum Mediático: a Identidade em Tempos de Transição. RevistaSignificação. São Paulo, v. 37, n.34, 2010, p.41. Disponível em:http://www.revistas.usp.br/significacao/article/view/68112/70670. Último acesso em setembro de 2014.

14 DE LIBERAL, M. M. C. Religião, identidade e sentido de pertencimento. In: VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, Coimbra, 2004, p.13. Disponível em:http://www.ces.uc.pt/lab2004/pdfs/MarciadeLiberal.pdf . Último acesso em setembro de 2014.

Page 22: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

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Ao longo de nossa existência, podemos vir a participar de outros diferentes grupos, inclusive

vários simultaneamente, de acordo com os papéis que os rumos de nossa vida nos levem a

desempenhar e com os interesses que venhamos a desenvolver. Pertencemos porque nos

identificamos; reconhecemo-nos mutuamente enquanto membros do grupo. E, nesse

intercâmbio, nos sentimos satisfeitos, gratificados, seguros.

Ocorre que, na sociedade contemporânea, tudo vem se tornando mais fluido, inclusive esse

sentimento de pertencimento. As novas tecnologias, a avalanche de informações, o aumento

da interatividade, interconectividade e todo o horizonte de possibilidades que se abrem aos

nossos olhos, fazem com que nossas demandas fiquem mais complexas e a sua satisfação,

mais difícil. Os grupos aos quais “pertencemos” não dão conta de atendê-las, gerando

frustração e revelando uma das principais tendências da contemporaneidade, que é a crise do

pertencimento institucional.

2.4. Diferença entre mídia da religião e religião na mídia

Outra distinção que julgamos importante para delimitar exatamente nosso objeto de estudo é

aquela entre “mídia da religião”15 e “religião na mídia”16. Optamos por adotar a definição de

Helland (2000, apud PACE; GIORDAN, 2012)17, segundo a qual mídia da religião seria a

apropriação pelas religiões do ambiente da web para se comunicarem com seus fiéis – numa

continuidade daquilo que sempre fizeram antes com a imprensa, o rádio, a TV. Ou seja, a

mídia da religião é a interface de comunicação oficial da instituição religiosa. São ratificados,

nesse modelo, os tradicionais conceitos de emissor-receptor, da comunicação “de um para

muitos”18. Alguns exemplos: o site da Santa Sé19, o Portal do Santuário Nacional de

Aparecida20, o Portal da Igreja Universal do Reino de Deus21, o site da Congregação Israelita

Paulista22 e tantos outros.

15 Em inglês, religion online.16 Em inglês, online religion.17 PACE, E.; GIORDAN, G. A religião como comunicação na era digital. Revista Civitas (online), Porto

Alegre, v. 12, n.3, set-dez 2012, p.423. Disponível emhttp://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/view/13008/8671. Último acesso em setembrode 2014.

18 Em inglês, one-to-many.19 Disponível em http://w2.vatican.va/content/vatican/pt.html. Último acesso em setembro de 2014.20 Disponível em http://www.a12.com/. Último acesso em setembro de 2014. 21 Disponívem em http://www.universal.org/. Último acesso em setembro de 2014. 22 Disponível em http://www.cip.org.br/. Último acesso em setembro de 2014.

Page 23: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

23

Por outro lado, a religião na mídia surge do agrupamento espontâneo de pessoas com

interesses comuns em redes virtuais. Nesse modelo, a comunicação é de “muitos para

muitos”23, sendo que a “definição dos conteúdos e dos significados religiosos ou espirituais é

confiada à interação via computador entre os indivíduos” (PACE; GIORDAN, 2012, p. 423).

Complementam em seguida esses autores:

[...] estamos diante de uma relevante mudança sociocultural, já que um sítio destetipo oferece um espaço criativo e interativo para uma vasta (mais ou menosanônima) plateia de usuários, os quais, deste modo, dão a ideia de fazer para siuma religião sob medida. (ibidem, grifo nosso)

Encaixam-se nesse perfil todo o tipo de fóruns, grupos de discussão e comunidades facilmente

encontrados na Internet. E são agrupamentos como esses, nos quais se vivencia a religião na

mídia, sobre os quais nos concentramos neste estudo.

2.5. Autoridade

Consideramos importante dedicar uma atenção especial ao conceito de autoridade, pois

trabalharemos bastante com ele no decorrer deste trabalho. Uma das características dessa

“nova religiosidade” que nos propusemos a estudar seria justamente a perda de força das

autoridades religiosas tradicionais. Recorremos, para isso, a Max Weber que, em sua obra “Os

Três Tipos Puros de Dominação Legítima” (1922)24, estabelece serem estes o legal, o

tradicional e o carismático.

No primeiro tipo, cuja principal manifestação típica é a burocracia, a autoridade é legitimada

graças a um conjunto de normas e estatutos que assim o dizem. É decorrente da regra, e não

uma característica intrínseca das pessoas que a detêm. Como tal, ela deve ser exercida dentro

dos parâmetros estatuídos e enquanto eles assim o determinarem.

A dominação tradicional, por outro lado, origina-se nos usos e costumes da comunidade, na

ancestralidade e assenta-se na figura de seu possuidor, em quem se reconhece uma dignidade

própria, nata, e a quem se deve fidelidade. A autoridade patriarcal é seu exemplo mais

característico.

23 Em inglês, many-to-many24 Obra póstuma de Max Weber, publicada pela primeira vez em 1922.

Page 24: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

24

Já a autoridade decorrente do carisma implica em um sentimento de devoção e afeto à pessoa

que a detém, em função de seus dons, seus talentos, seu heroísmo.

O que esses três tipos de dominação têm em comum é que, para serem exercidos, eles

precisam do reconhecimento daqueles que a eles se subordinam25. Sem esse reconhecimento,

não há legitimidade; e sem ela, não há autoridade. Autoridade sem legitimidade só se sustenta

por coação.

Ressaltamos, ainda, que a tipificação apresentada ajuda a entender as origens da autoridade, o

que não necessariamente significa que elas se manifestam isoladamente, no “estado puro”

descrito por Weber. Uma liderança pode conjugar mais de uma fonte de legitimação.

25 Em inglês. “power of dominance”, conceito segundo o qual o poder que a autoridade tem de dominar e fazercom que se cumpram as suas ordens.

Page 25: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

25

3. O AMBIENTE DIGITAL E A NOVA RELIGIOSIDADE

As mudanças que o digital trouxe à mídia impactaram de maneira decisiva em diversas

instâncias do ambiente social, e não poderia ser diferente com a religião. As instituições

religiosas se aperceberam disso e, como dissemos no início do capítulo anterior, estão se

movendo – umas, mais timidamente; outras, de forma mais agressiva – em direção ao digital.

É uma questão de sobrevivência, já que não é a primeira vez que elas passam por isso – vide

sua adaptação à chegada da mídia de massa, por exemplo.

As interações entre as instituições religiosas, seus prepostos (pastores, padres e outros,

conforme a denominação a que pertençam) e os fiéis passam a acontecer cada vez mais

mediadas pela rede. Não é só isso: as interações mediadas pela rede, calcadas em temas e

interesses religiosos e que prescindem da condução e da presença (ainda que virtual) das

instituições e de seus representantes também se tornam cada vez comuns, favorecidas pela

facilidade com que hoje as pessoas podem se encontrar e criar comunidades online. O que

está resultando dessa convergência entre o digital e a religião – embora seja uma extensão do

que acontecia antes, inclusive considerando as mídias tradicionais –, é revolucionário (no

sentido de inovador) e evolucionário (no sentido de trazer um incremento às formas de

vivenciar a experiência religiosa).

Um dos aspectos determinantes desse cenário é que a mídia digital deu um espaço à expressão

individual, que a mídia tradicional nunca pode – ou ousou – dar. Com o barateamento das

tecnologias, a redução das limitações de acesso à rede e aos meios de produção, qualquer um

hoje pode conectar-se, criar seu perfil numa rede social, produzir conteúdo e publicar. Seja

através de um texto, uma foto ou um vídeo filmado com o próprio celular, abriu-se ao

indivíduo um campo infinito para a manifestação da diversidade, da dúvida, da discordância –

que foram sempre ignorados pelos grandes grupos de mídia, apegados a estereótipos,

conceitos enraizados e a patrocinadores.

Nesse novo ambiente, instituições – sejam governos, sejam religiões – têm dificuldade para

exercer seu poder de controle, pois o digital tem seus próprios patronos. Também contribui

para isso a ubiquidade do digital: como manter enquadrado nas convenções aquilo que está

presente ao mesmo tempo em todos os lugares, que não conhece os limites espaciais nem

Page 26: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

26

temporais?

A lógica da formação das redes facilita a expressão de práticas que antes eram periféricas. É

nesse contexto que consideramos possível falar de uma “nova religiosidade”, marcada por

duas fortes tendências:

o declínio da autoridade religiosa e das instituições; e

o surgimento de uma maior autonomia do indivíduo nas questões relacionadas à fé e à

espiritualidade.

3.1. Declínio da autoridade religiosa

Em seu seminário “Religião Digital como Terceiro Espaço”26, Stewart Hoover (2013) citou

um pesquisador brasileiro radicado na Inglaterra, Paulo Fernando de Moraes Farias, do

Departamento de Estudos Africanos e Antropologia da Universidade de Birmingham, ao dizer

que “a religião é aquilo que tem o poder de determinar o significado dos seus signos”27. Fez

isso para, em seguida, apresentar um dos sintomas do declínio pelo qual passa a autoridade

religiosa: “a perda do controle sobre seus próprios símbolos”28.

São inúmeros os exemplos na cultura contemporânea da apropriação dos símbolos religiosos

para manipulação, reinterpretação e atribuição de novos significados. De um videoclipe da

cantora Madonna ao best-seller “Código da Vinci”29; da enorme profusão de “memes”30 que

circulam na Internet (fig. 1)31 aos perfis bem-humorados nas redes sociais (fig. 2)32, as

manifestações dessa dificuldade em manter a sacralidade dos símbolos é patente.

26 Evento realizado na Umesp – Universidade Medodista de São Paulo, em São Bernardo do Campo, SP, nosdias 8, 9, 22, 23 e 24 de abril de 2013.

27 Informação oral fornecida por Hoover, no Seminário Religião Digital como Terceiro Espaço. São Bernardodo Campo, abr. 2013.

28 Ibid, abr. 2013.29 BROWN, D. O Código da Vinci. São Paulo: Editora Arqueiro, 2004.30 Segundo a Wikipedia, meme é, para a memória, o equivalente daquilo que os genes são para a genética - a

sua menor fração. Uma unidade de informação que se propaga e multiplica facilmente de indivíduo paraindivíduo, como um vírus. Ou seja, no ambiente digital, meme é tudo aquilo que é copiado, reproduzido eimitado e que se espalha com rapidez pela rede.

31 Disponível em http://youpix.virgula.uol.com.br/comportamento/os-hereges-da-internet/. Último acesso emsetembro de 2014.

32 Disponível em https://twitter.com/ocriador. Último acesso em setembro de 2014.

Page 27: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

27

Figura 1 - Meme da Internet: Blasphemy – Um ticket para o inferno nuncafoi tão divertido.

Figura 2 - Impressão de tela da página do perfil do Twitter de Deus, @OCriador.

Page 28: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

28

Outro aspecto a destacar é a impossibilidade de manter circunscritos às próprias

denominações assuntos que estas prefeririam tratar privadamente (intento que, até a bem

pouco tempo, era facilmente alcançado). Exemplos não faltam: os escândalos de pedofilia

envolvendo sacerdotes da Igreja Católica e que acabaram por levar o atual Papa, Francisco, a

formular um pedido de desculpas33; o dossiê Vatileaks, vazamento de documentos secretos do

Vaticano orquestrado pelo mordomo do Papa Bento XVI, e que teria motivado a sua renúncia

ao trono de São Pedro34. Isso apenas para mencionar casos de grande repercussão

internacional, sabendo que não podemos ignorar que isso acontece a cada dia, em proporções

não tão “espetaculares”, na esfera das inter-relações entre as denominações religiosas e a

sociedade.

A mídia, com seus poderes amplificados pelo advento da tecnologia digital, tudo vê, tudo

sabe e tudo compartilha. Essa nova lógica de como a mídia enquadra a realidade influencia

diretamente na forma como são vistos e partilhados, não só a religião, mas todos os outros

aspectos de nossa vida social. A autoridade é fragilizada por essa exposição sem a proteção do

véu benevolente da tradição; fica difícil fazer declarações como se estas viessem de uma

entidade superior depois disso. Talvez seja por essa razão que estejamos vendo um florescer

de lideranças religiosas cuja autoridade baseia-se cada vez mais no carisma (do grego

khárisma, atos, graça, favor, benefício, através do latim charísma, àtis, dom da natureza,

graça divina)35 do que na tradição. Como para as denominações cristãs o carisma é um dom,

uma graça concedida por Deus através do Espírito Santo36, o líder carismático conta com um

trunfo poderoso diante de eventuais situações desfavoráveis causadas pela superexposição na

mídia.

33 PARÓQUIA CRISTO REI (Jequié/BA). Papa Francisco pede perdão por sacerdotes envolvidos em casosde pedofilia. Jequié, Publicado em 11 de abril de 2014. Disponível emhttp://www.paroquiadecristorei.com.br/noticias/papa-francisco-pede-perdao-por-sacerdotes-envolvidos-em-casos-de-pedofilia-283/. Último acesso em setembro de 2014.

34 FEBBRO, E. A história secreta da renúncia de Bento XVI. Disponível emhttp://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/A-historia-secreta-da-renuncia-de-Bento-XVI-/6/27404. Último acesso em setembro de 2014.

35 Conforme a Wikipedia. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Carisma. Último acesso em setembro de2014.

36 O Deus único das denominações cristãs manifesta-se em três pessoas distintas; o Pai, o Filho e o EspíritoSanto – a que se dá o nome de Santíssima Trindade.

Page 29: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

29

3.2. Autonomia do indivíduo reforçada

No mesmo seminário a que nos referimos anteriormente37, Stewart Hoover apontou uma

tendência entre os indivíduos: uma menor preocupação com as exigências da igreja

organizada e uma maior atenção com a essência da religiosidade (em suas palavras, referindo-

se às denominações católicas e protestantes, “com o Corpo de Cristo”38). A confirmação dessa

ideia, encontramos numa busca rápida na rede social Facebook (fig. 3): a expressão “mais

Jesus e menos religião” parece ter virado palavra de ordem entre muitos (além de ser o título

de um livro de Jack Felton e Stephen Arterburn39).

37 Seminário Religião Digital como Terceiro Espaço, realizado na Umesp – Universidade Medodista de SãoPaulo, em São Bernardo do Campo, SP, nos dias 8, 9, 22, 23 e 24 de abril de 2013.

38 Informação fornecida por Hoover, S., no Seminário Religião Digital como Terceiro Espaço. São Bernardo doCampo, abr. 2013. Tradução nossa.

39 FELTON, J.; ARTERBURN, S. Mais Jesus, Menos Religião. São Paulo: Editora Mundo Cristão, 2002.

Figura 3 - Impressão de tela dos resultados de busca pela expressão “menos religião”no Facebook.

Page 30: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

30

Voltamos aqui à questão já tratada no Capítulo 2, da distinção entre religião e religiosidade,

esta no sentido de relação com Deus, com o sagrado. É importante ressaltar que o indivíduo,

ao afastar-se da primeira, não está, necessariamente, abdicando da segunda. No Brasil, essa

tendência encontra terreno fértil, tanto pela reconhecida religiosidade do brasileiro, como na

sua simpatia pelo sincretismo. Como disse Frei Leonardo Boff (2014), “o povo brasileiro é

espritual (sic) e místico goste ou não goste a intelectualidade secularizada [...]”40, para depois

citar o antropólogo Roberto da Matta (1984)41:

No caminho para Deus posso juntar muita coisa. Nele, posso ser católico eumbandista, devoto de Ogum e de São Jorge. A linguagem religiosa de nosso pais é,pois, uma linguagem de relação e da ligação. Um idioma que busca o meio-termo, omeio caminho, a possibilidade de salvar todo o mundo e de em todos os locaisencontrar alguma coisa boa e digna.42

No âmbito do digital, essa “vocação” é exacerbada, pois ele fortalece o questionamento e

enfraquece a tradição, assim as instituições vão abrindo espaço para uma religiosidade

individual, fluida, interativa, que vai assumindo formas diferentes, criando novas

comunidades e redes, numa constante evolução. O indivíduo deixa de ser apenas

“consumidor”, para também gerar o conteúdo religioso. Numa mescla desses dois papéis,

torna-se prosumer, para usar o termo cunhado por Alvin Toffler em seu livro “A Terceira

Onda”43.

Apropriando-nos dos conceitos de Publicidade, é possível dizer também que há uma inversão

no sentido do consumo religioso – o cenário está mais favorável ao pull (o “consumidor” vai

atrás do produto religioso, através da busca e da navegação, e escolhe aquele que melhor lhe

convém) do que ao push (pelo qual as instituições “empurram” os seus princípios e dogmas

para o “consumidor”).

Encerramos esse tema citando novamente o Frei Leonardo Boff (2014)44:

40 BOFF, L. O povo brasileiro: um povo místico e religioso. Publicado em 16 de março de 2014. Disponívelem http://leonardoboff.wordpress.com/2014/03/16/o-povo-brasileiro-um-povo-mistico-e-religioso/. Últimoacesso em setembro de 2014.

41 Apud BOFF L., op.cit., mar 2014.42 Segundo BOFF, o trecho pertence à obra O que faz o brasil Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1984, p. 117.43 TOFFLER, A. A Terceira Onda. São Paulo: Editora Record, 1980.44 BOFF, L., opc. cit. mar 2014.

Page 31: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

31

O futuro religioso do Brasil não será, provavelmente, o seu passado católico. Será,possivelmente, a criação sincrética original de uma nova espiritualidade ecumênicaque conviverá com as diferenças (a tradição evangélica em ascenso, opentecostalismo, o kardecismo e outras religiões orientais) mas na unidade damesma percepção do Divino e do Sagrado que impregna o cosmos, a históriahumana e a vida de cada pessoa.

3.3. Religião digital como terceiro espaço

Cabe agora delimitar: o que é essa nova religiosidade? Como definí-la? Hoover e Echchaibi

(2013, p. 267) falam da religião digital como terceiro espaço, usando um conceito cunhado

por Soja45, em sua área de atuação, o planejamento urbano:

‘Seu terceiro espaço’ [o de Edward Soja] é a esfera onde as noções de espaço físico(o primeiro espaço) e o conceitual (o segundo espaço) são reunidas numaexperiência vivida. [...] Talvez a forma mais direta de conectar o nosso trabalho com o de Soja seja a deentender que os nossos 'terceiros espaços' são uma elaboração da categoria de Sojade 'segundo espaço' (o conceitual), onde o registro do segundo espaço contémaspirações para a construção de espaços que se articulam com os espaços reais,materiais; bem como tem iterações do espaço conceitual; mas não está limitado pornenhum deles. Eles quase concebem - e pretendem agir como se - novasestruturações de espaço e prática pudessem emergir desse trabalho conceitual (e –insistimos – interativo).46 (tradução nossa)

Para estes autores, a noção de terceiro espaço encerra a ideia de um “meio caminho”47, na

nossa tradução livre, entre vários elementos: entre o público e o privado; entre o institucional

e o individual; entre a autoridade e a autonomia do indivíduo, entre os enquadramentos das

mídias tradicionais e o prosumo individual. Para eles, os limites da religião digital são fluidos,

e estão sempre “em negociação” entre as partes. Há revolução e evolução, mas não disrupção.

Longe de ser meros eventos tecnológicos, os terceiros espaços religiosos no mundodigital são diferentes não porque são algo radicalmente novo, mas porque elesconstroem, do encontro ambivalente do velho e do novo, formas de sociabilizar enegociar diferentes pólos da identidade cultural. Como zonas de contato (...) essesespaços não são apenas lugares onde indivíduos marginais brincam com suaindividualidade periférica, mas sim locais onde as pessoas usam as capacidades

45 Geógrafo político pós-moderno e urbanista na faculdade na UCLA, onde é Professor de PlanejamentoUrbano, e da Escola de Economia de Londres.

46 Original em ingles: “His 'third space' [o de Edward Soja] is the realm where purely physical (the first space)and conceptual (the second space) notions of space are brought together in lived experience. (…) Perhaps themost direct way of connecting our work to Soja's would be to suggest that our 'third spaces' are anelaboration of Soja's category of 'second space' (the conceptual) where the register of second space containsaspirations to construct spaces that are articulated to lived, material spaces as well as conceptual iterations ofspace, but are not constrained by either. They almost conceive of, and intend to act as if, new structuractionsof space and practice can emerge from this conceptual (and – we would emphasize – interactive) work.”

47 Em inglês, in-between-ness. HOOVER, S.; ECHCHAIBI, N. op. cit. p. 269.

Page 32: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

32

técnicas do digital para imaginar configurações sociais e culturais para alémdaquelas binárias existentes, do físico contra o virtual , e do real em relação àexperiência religiosa proximal.48 (idem, p. 275, tradução nossa).

Fechamos este capítulo com essa citação, e reforçando que, nessa nova religiosidade a que

nos referimos, as instâncias online e offline se movem com fluidez e convivem, sendo que

uma influencia a outra. Não há ruptura. É, como já dissemos, um espaço de negociação.

48 Original em inglês: “Far from being mere technological events, religious third spaces in the digital realm aredifferent not because they are radically new, but because they build from ambivalent encounter of old andnew forms of sociality and negotiate differing poles of cultural identity. As a “contact zone” (…) these spacesare not simply places where marginal subjects toy around with their peripheral individuality, but rather aresites where individuals use the technical capacities of the digital to imagine social and cultural configurationsbeyond existing binaries of the physical versus the virtual and the real versus the proximal religiousexperience.

Page 33: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

33

4. OBSERVAÇÃO DO GRUPO DO FACEBOOK “CONVERSANDO SOBRE

RELIGIÃO”

Encerrada a etapa de apresentação do referencial teórico que embasa nosso trabalho,

passaremos, neste capítulo, ao estudo de caso propriamente dito, detalhando os critérios de

nossa escolha e desenvolvendo toda a análise daquilo que obeservamos.

4.1. Critérios para seleção do ambiente “macro” a ser estudado

Considerando que vários institutos de pesquisa – Comscore e Hitwise, por exemplo –

concordam que o Facebook é a rede social mais visitada no Brasil, a escolha dessa rede para

nosso estudo de caso foi natural. Segundo a Hitwise, ferramenta de inteligência em marketing

digital da Serasa Experian, o Facebook atingiu 69% de participação de visitas em fevereiro de

2014 (fig. 4), uma alta de 3,97 pontos percentuais em relação ao mesmo período de 201349.

49 SERASA EXPERIAN. Facebook é líder há dois anos entre redes sociais no Brasil, de acordo comHitwise. Publicado em 20 de fevereiro de 2014, disponível emhttp://noticias.serasaexperian.com.br/facebook-e-lider-ha-dois-anos-entre-redes-sociais-no-brasil-de-acordo-com-hitwise/. Último acesso em setembro de 2014.

Figura 4 - Ranking Hitwise da participação de visitas às redes sociais em fevereiro de 2014.

Page 34: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

34

A Comscore, empresa americana líder de análise de Internet, por seu lado, em seu estudo

“Brazil Digital Future in Focus 2014”, apresentado em maio de 2014, com as principais

tendências do uso da internet no país, aponta o Facebook disparado na frente do segundo

colocado, o Linkedin, em número de visitantes únicos (fig. 5)50: são 65,957 milhões de

visitantes únicos do primeiro colocado, contra 11,841 do segundo51.

Além desses dados, corrobora a escolha do Facebook uma rápida busca pelo termo “religião”

nessa rede social. Embora a página não contabilize o número de resultados dessa busca, a

simples observação indica que a rede é um terreno fértil para o estudo desse tema (fig. 6).

50 Chamamos atenção para um problema na representação do total de visitantes únicos do Facebook naimagem: a barra do gráfico se sobrepôs ao número (65,957), escondendo o algarismo “6” (o que resulta que onúmero de visitantes únicos parece ser 5,957, dado que obviamente não corresponde à realidade). Preferimos,porém, não editar o gráfico, mantendo a forma como a Comscore publicou a informação, e fazendo essaressalva aqui.

51 COMSCORE. Estudo da comScore: Brazil Digital Future in Focus 2014 está disponível Publicado em 29de maio de 2014, disponível em https://www.comscore.com/por/Insights/Press-Releases/2014/5/Estudo-da-comScore-Brazil-Digital-Future-in-Focus-2014-esta-disponivel. Último acesso em setembro de 2014.

Figura 5 - Ranking Comscore do número de visitantes únicos das redes sociais em fevereiro de2014.

Page 35: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

35

Figura 6 - Impressão de tela dos resultados de busca pelotermo “religião” no Facebook.

Page 36: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

36

Definido o ambiente do Facebook para nosso estudo de caso, foi preciso restringir mais nosso

foco. Deparamo-nos, então, com uma outra questão: qual “subambiente” dentro da rede seria

objeto de nossa análise? Alguns caminhos se apresentaram:

observação de Perfis Pessoais;

observação de Páginas (também chamadas Fanpages); ou

observação de Grupos.

Nossa escolha acabou recaindo sobre a terceira das opções elencadas, e cumpre agora

explicitar o porquê disso. Antes de tudo, consideramos importante deixar claro como o

próprio Facebook define cada uma dessas opções, para então justificar seu descarte ou

seleção. Consultando a “Central de Ajuda” da rede social, é possível encontrar as seguintes

definições:

O que é o perfil?O perfil é um conjunto de fotos, histórias e experiências que contam a sua história.Seu perfil também abrange a sua Linha do Tempo.”52

O que é uma Página do Facebook?Páginas servem para empresas, marcas e organizações compartilharem suas históriase se conectarem com as pessoas. Assim como os perfis, você pode personalizar asPáginas publicando histórias, promovendo eventos, adicionando aplicativos e muitomais. As pessoas que curtirem sua página e os amigos delas poderão receberatualizações em seus Feeds de notícias.”53

O que são Grupos do Facebook?Os grupos do Facebook facilitam a conexão com grupos específicos de pessoas,como familiares, colegas de equipe ou de trabalho. Grupos são espaços privadosonde você pode compartilhar atualizações, fotos ou documentos, além de enviarmensagens a outros membros do grupo. Você também pode selecionar uma das trêsopções de privacidade para cada grupo criado.”54

Por definição, o Perfil destina-se a pessoas físicas – embora muitas empresas se apropriem da

ferramenta para usufruir da maior liberdade que ela proporciona em relação à Página – esta,

sim, destinada às pessoas jurídicas (e seus desdobramentos e variações como é o caso das

marcas, grupos de interesse etc.). Enquanto o Perfil permite funcionalidades como adicionar

amigos, enviar mensagens privadas, convidar pessoas para eventos, comentar publicações de

terceiros, entre outros, a Página tem esses recursos limitados, para evitar a prática de spam.

52 Disponível em: https://www.facebook.com/help/133986550032744?sr=1&query=PERFIL&sid=0UcXQXOm8uQpxQYvn) . Último acesso em setembro de 2014.

53 Disponível em: https://www.facebook.com/help/174987089221178?sr=3&query=P%C3%81GINA&sid=0X34ld7rI3lRLHWUV. Último acesso em setembro de 2014.

54 Disponível em: https://www.facebook.com/help/284236078342160?sr=1&query=GRUPO&sid=0zj7NL8GOxaCxwIsL . Último acesso em setembro de 2014.

Page 37: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

37

Ao invés de adicionar amigos, a Página tem que “convencer” as pessoas a “curti-la”.

Com relação à questão das configurações de privacidade também há diferenças – o Perfil

permite que o usuário escolha as informações que quer deixar visíveis e para quais tipos de

pessoas: todos (conteúdo público), somente amigos, somente um determinado perfil de

amigos (“melhores amigos”, “amigos do trabalho” ou “amigos da escola”, por exemplo). Já a

Página do Facebook é um espaço público por excelência. Seu conteúdo – publicações

(inclusive de terceiros) e comentários – é acessível a qualquer pessoa.

Nesse sentido, considerando o escopo deste trabalho, a Página apresentaria uma vantagem

como objeto de estudo, por permitir, por padrão, acesso sem restrições ao conteúdo publicado;

o que não aconteceria com o Perfil (nossa opção inicial), cujo conteúdo viria filtrado pela

existência ou não do vínculo de amizade entre o observador e o titular do Perfil, bem como

pelos critérios específicos de cada titular para permitir acesso às suas informações ou

conteúdos.

Por outro lado, a Página apresenta alguns inconvenientes. Primeiro, seria necessário descartar

todas aquelas cuja titularidade pertencesse a qualquer denominação religiosa – o que

chegamos a fazer. Porém, o que caracteriza a Página é que a maioria dos temas de discussão

propostos parte do seu titular. Embora seja possível, são poucas as publicações de iniciativa

de terceiros. Julgamos que a análise ficaria engessada por esse viés.

É nesse contexto que passamos a analisar a opção dos Grupos. Esta funcionalidade, ainda que

tenha recursos de privacidade que a Página não tem – como configuração pública, secreta ou

fechada (fig. 7) – a partir do momento que alguém entra em um Grupo, seja ele de qual tipo

for, todas a publicações ficam visíveis. Ou seja, o observador, uma vez que tenha solicitado

inscrição num Grupo e tenha sido aceito pelos seus “moderadores” (que podem ser seu

criador ou administradores por ele nomeados), teria acesso total a todo o conteúdo publicado,

sem nenhum filtro.

Page 38: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

38

Outro fator interessante é que o Grupo, por se formar em torno de um interesse comum,

pressupõe o interesse no debate sobre ele. E mais: a proposição dos temas desse debate é mais

“democrátca”, pois isso não somente é facultado a todos os membros, como também é

incentivado, servindo até mesmo como um termômetro da atividade e relevância do Grupo.

Cria-se, assim, um ambiente de maior participação e interatividade, o que muito contribui

para o trabalho do observador.

Pesados todos esses fatores, definimos que o foco de nosso estudo de caso seria um Grupo do

Facebook. Mas qual? É o que veremos a seguir.

Figura 7 - Tabela comparativa dos tipos de Grupos admitidos pelo Facebook (público,fechado ou secreto), disponível na Central de Ajuda da rede social.

Page 39: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

39

4.2. A escolha do ambiente específico para o estudo de caso

Como exposto anteriormente, ao escolher o foco de nosso estudo de caso, efetuamos os

seguintes recortes:

optamos pelo Facebook, por se tratar da rede social líder no Brasil;

optamos por analisar um Grupo, por permitir acesso irrestrito aos conteúdos postados,

além de ter uma natureza que incentiva maior participação e interatividade entre os membros,

já que todos podem publicar e propor temas para discussão.

Restava definir o alvo específico de nosso estudo de caso. Novamente, o mecanismo de busca

do Facebook nos auxiliou no levantamento das possibilidades (fig. 8) que se mostraram

bastante numerosas.

Estabelecemos alguns critérios para a seleção, sendo que o grupo:

deveria ser “independente”, ou seja, não poderia ser ligado a nenhuma denominação

religiosa – nem de forma oficial, nem por desejo espontâneo de fiéis ou simpatizantes – nem a

nenhuma linha de pensamento específica (por exemplo, o ateísmo);

deveria ter um número relevante de membros;

deveria ser ativo, ou seja, ter publicações de conteúdo frequentes e recentes, cujos

autores, preferencialmente, fossem, não somente os moderadores, mas todos os perfis de

membros;

deveria ter um bom nível de participação e interatividade, ou seja, que a cada debate

proposto fosse possível perceber o engajamento dos membros com comentários e “curtidas”.

Page 40: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

40

Figura 8 - Impressão de tela dos resultados de busca porGrupos no Facebook contendo o termo “religião”.

Page 41: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

41

Considerando todos esses quesitos, após solicitarmos inscrição em vários Grupos e neles

sermos aceitos, de modo a fazer uma análise prévia de seu conteúdo, a escolha final recaiu

sobre o “Conversando sobre Religião”.

4.3. O Grupo “Conversando sobre Religião”

Como dissemos, nosso processo de escolha do foco de nosso estudo de caso se deu em etapas:

primeiro definimos o ambiente “macro”, o Facebook; depois o “subambiente”, Grupos; e, por

fim, entre estes, o grupo “Conversando sobre Religião”, que passamos a descrever agora.

O Grupo “Conversando sobre Religião” é do tipo “fechado”, ou seja, ele é visível nos

resultados de busca, qualquer pessoa que se interessar pode solicitar inscrição, mas somente

os membros podem ver o conteúdo nele publicado pelos integrantes. É importante ressaltar

que essas características podem ser alteradas a qualquer momento, a critério dos

administradores do Grupo. O que descrevemos aqui é o que verificamos no período de nossa

observação. É um dos grupos com maior número de membros entre todos os que pudemos

observar nos resultados de busca, sendo mais de 16.000 integrantes em 2 de setembro de

2014, número este que cresce diariamente, comprovando o dinamismo do Grupo.

Ao entrar no Grupo, qualquer pessoa (integrante ou não) pode ver no alto um cabeçalho (fig.

9) em que símbolos de diversas vertentes religiosas são colocados lado a lado. São eles (da

esquerda para a direita): cristianismo, judaísmo, hinduísmo, agnosticismo/ateísmo, islamismo,

wicca, druidismo, kemetismo (reconstrucionismo egípcio) e candomblé.

Figura 9 - Impressão de tela do cabeçalho da página do Grupo “Conversando sobreReligião”.

Page 42: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

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Numa publicação datada de 6 de maio de 2014, um dos moderadores do Grupo, J. P. A.,

informa que a nova apresentação do Grupo trata-se de uma ilustração elaborada por um outro

membro, que utiliza o pseudônimo alusivo à deusa grega dos infernos, Hékatus (e que no

momento deste estudo já não é integrante do “Conversando sobre Religião”). Em um

comentário posterior, quando questionado por outro membro sobre a ausência de determinado

símbolo, o moderador desculpa-se: “infelizmente o Hekátos não conseguiu pôr um símbolo de

cada religião, N., por pura falta de espaço na imagem, mesmo. Mas acredito que ela aqui nos

comentários já valha! (sic)”.

Além do cabeçalho, outro elemento padrão da página é o “Sobre o Grupo”, que fica abaixo do

cabeçalho, do lado direito da página. Nele, um breve resumo do propósito do Grupo (fig. 10),

com destaque para o seguinte trecho: “Nesse grupo conversaremos saudavelmente sobre as

tantas religiões que existem no mundo. Tentaremos ser o mais completo (sic) possível. Tudo

com muito respeito e bom senso, para não haver problemas de intolerância e afins”.

Figura 10 - Impressão de tela do quadro“Sobre o Grupo”, do “Conversando sobre

Religião”.

Page 43: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

43

Por fim, julgamos importante apresentar também um elemento que, embora não seja padrão

obrigatório em todas as páginas de Grupo, é um recurso que os administradores têm para

destacar algo e que foi adotado no “Conversando sobre Religião”: a publicação fixada. Trata-

se de uma publicação como qualquer outra, que os administradores optam por fixar na parte

superior do Grupo, ou seja, ela não fica sujeita ao deslocamento pela ordem cronológica: “as

publicações fixadas permanecem no início até serem removidas ou desafixadas”55. Esse tipo

de recurso é usado para chamar atenção para um evento próximo, para um tema de discussão

específico ou, como no caso observado, para dar as boas-vindas e apresentar as “normas da

casa” aos novos membros, e as relembrar aos antigos, uma vez que sempre será a primeira

publicação a ser visualizada por quem acessar o Grupo.

Na publicação fixada no topo da linha do tempo do “Conversando sobre Religião”56, o

administrador J. P. A. recepciona os novos integrantes e elenca alguns princípios que regem o

Grupo (fig.11), dos quais destacamos:

– O nome que o grupo foi batizado não é por acaso (sic): quaisquer postagens decunho religioso que inspirem reflexão sobre as religiões serão válidas e encorajadas,pois o intuito do grupo é exatamente esse: o de conversarmos sobre pontos queconcordamos, ou não, sobre as diversas religiões que existem; – Logicamente não será tolerada qualquer ofensa que seja de forma direta a religiãoou indivíduo (sic), seja sua moral, pensamento, ideologia...”

55 CENTRAL DE AJUDA DO FACEBOOK. Disponível em:https://www.facebook.com/help/www/399494523452700. Último acesso em setembro de 2014.

56 Disponível em: https://www.facebook.com/groups/forum.religiao/permalink/132774690226126/. Últimoacesso em setembro de 2014.

Page 44: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

44

Pudemos observar que os administradores têm uma presença bastante ativa na moderação dos

debates, sem cercear a livre manifestação dos membros, mas atuando firmemente quando

Figura 11 - Impressão de tela da publicação fixada no início da página do Gupo“Conversando sobre Religião”, com as boas-vindas aos novos membros e as regras

da comunidade, publicada pelo seu moderador, P.T.A.

Page 45: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

45

compreendem que houve excessos por algum membro ou que algum dos princípios do Grupo

tenha sido desrespeitado. Com isso conseguem manter um ambiente de discussão e interação

bastante saudável e rico, principalmente se compararmos com outros Grupos que analisamos

quando da etapa de seleção do foco de nosso estudo de caso. Essa característica também foi

determinante na escolha do “Conversando sobre Religião” para o presente trabalho.

Assim, com base no que foi descrito, consideramos os critérios que havíamos definido para

escolher o Grupo que seria objeto de nosso estudo – “independência” com relação a quaisquer

denominações religiosas, número significativo de membros, participação ativa e constante dos

membros na proposição de temas, engajamento dos integrantes nas conversas – foram

plenamente satisfeitos pelo “Conversando sobre Religião”.

4.4. Definição dos critérios de análise do Grupo “Conversando sobre Religião”

Nosso estudo de caso compreendeu um período de três dias – 28, 29 e 30 de agosto de 2014 –

no qual acompanhamos as publicações do Grupo “Conversando sobre Religião” e as

interações delas decorrentes. Infelizmente, o Facebook não dispõe de uma ferramenta que

permita sabermos o número exato de postagens que o Grupo recebe a cada dia, porém, pela

nossa observação, é possível afirmar que ela gira em torno de cinco novas postagens/dia. Com

base nisso, selecionamos três destas publicações, uma para cada dia, para uma análise mais

aprofundada à luz do nosso referencial teórico.

O critério para definir a data da publicação foi o da “postagem” original (proposição do tema

pelo seu autor), e não das interações que dela decorreram. Por outro lado, o critério para

encerramento da coleta de dados é até um dia após o período selecionado (para haver tempo

da postagem do dia 30 receber comentários, e considerando que eles acontecem em maior

intensidade nas 24 horas subsequentes à publicação), abarcando aí todas as interações havidas

até esse momento. Portanto, interações posteriores ao dia 31 de agosto de 2014, ainda que

referentes às publicações originais efetuadas no prazo definido, foram desconsideradas.

Tomamos o cuidado de selecionar publicações de temas e autorias diferentes, para tentar

aproveitar ao máximo a riqueza das discussões que tiveram lugar nesse ambiente digital. Dito

isso, passamos ao estudo de caso propriamente dito.

Page 46: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

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4.5. Análise do Grupo “Conversando sobre Religião”

Procedemos agora à apresentação das publicações selecionadas para este estudo de caso e sua

análise.

4.5.1. Publicação de 28 de agosto de 201457 – A busca da informação religiosa

A primeira publicação que analisaremos foi ao ar em 28 de agosto de 2014, às 19h56 (fig.12),

e é de autoria da integrante A. M. Ela reporta ter “sentido a presença de alguém” que não

estava fisicamente em seu quarto, e pergunta aos membros do Grupo se alguém sabe do que

se trata.

Esse tipo de publicação, em que o integrante do Grupo expõe suas dúvidas sobre diversos

aspectos do tema “religião” e solicita a opinião dos demais membros é uma constante no

“Conversando sobre Religião”, sendo bastante popular. Durante o período de observação a

publicação teve um bom índice de engajamento, tendo recebido dois “curtir” e trinta

comentários, de dezesseis pessoas diferentes (alguns interagiram mais de uma vez). Muitos

comentários também, por sua vez, receberam “curtidas” (33 no total) dos membros do Grupo.

É importante destacar que a dúvida não é dirigida a alguém em específico, um “especialista”

no assunto, mas a todos do Grupo, independentemente da religião que professam, e mesmo

àqueles que não professam nenhuma. Também não é dirigida pessoalmente a um padre, um

pastor, um rabino, um líder espiritual, uma autoridade religiosa. Nem mesmo é encaminhada

através de sites institucionais; Perfis, Páginas ou Grupos do Facebook vinculados a alguma

denominação religiosa, que reproduzem os “'discursos validados' pela doutrina, que 'liga os

indivíduos a certos tipos de enunciação e lhes proíbe, consequentemente, todos os outros'”

(FOUCAULT, 1970)58. Tampouco é dirigida a uma tradicional comunidade religiosa,

composta por “fiéis”, “irmãos” e “irmãs” que pertencem a uma mesma denominação

religiosa, compartilham da mesma doutrina e reproduzem “construções discursivas […]

moldadas e condicionadas” (SBARDELOTTO, 2012, p. 222) pelo sistema religioso do qual

fazem parte. A dúvida foi encaminhada a pessoas comuns, que fazem parte de uma

comunidade digital e que não têm, necessariamente, nenhuma relação no ambiente offline.

57 Disponível em: https://www.facebook.com/groups/forum.religiao/permalink/156279751208953/ . Últimoacesso em setembro de 2014.

58 Apud Sbardelotto, M. 2012, op. cit. p. 216.

Page 47: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

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Figura 12 - Impressão de tela da publicação da integrante A.M. no Grupo “Conversando sobreReligião”, de 28 de agosto de 2014, às 19h56.

Page 48: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

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Observando as interações decorrentes da publicação, identificamos várias manifestações de

acolhimento da integrante que encaminhou a dúvida: “já senti isso”; “nao precisa ter medo”

(sic); “eu tambem tive uma experiencia parecida” (sic); “isso acontece direto comigo, relaxa

rs” (sic); “tive a sensacao q estava flutuando no ceu” (sic); “tbm ja tive experiências desse

tipo” (sic); “eu sinto a presença de alguém o tempo todo”; “já senti um espírito me

abraçando”.

As interações consideradas “ofensivas”, como “liga pra policia” e uma que parece ter

recomendado um psiquiatra (provavelmente foi apagada por um dos administradores ou pelo

autor, que depois se justificou “não, eu não disse para procurar um psiquiatra de maneira

sádica, eu disse seriamente. Se sentiu ofendida (sic), desculpe”) – são repreendidas pela

moderação do Grupo através de um dos seus representantes, J. P. A., com base nas normas de

conduta explicitadas na publicação fixada, que já mencionamos anteriormente (fig. 11):

– Logicamente não será tolerada (sic) qualquer ofensa que seja de forma direta areligião ou indivíduo (sic), seja sua moral, pensamento, ideologia...- Pedimos a todos que utilizem o bom senso na hora de suas publicações, o grupo foicriado para que possamos conversar sobre religião e assuntos interligados, postagensexclusivas para piadas ou “zoeiras” não serão aceitas; (sic).

Em ambas as situações, reconhecemos segurança, familiaridade e cuidado, elementos que,

como já mencionamos, são buscados ao fazer parte, pertencer a uma comunidade. Ou seja, a

sensação de pertencimento é reforçada e incentiva os membros a continuar buscando as

respostas acerca de questões ligadas às religiões e à religiosidade no Grupo “Conversando

sobre Religião”.

Sobre a questão levantada, propriamente dita, cada membro que participa da “conversa”,

expõe sua visão, de acordo com suas crenças: “provavelmente um espírito que estava lhe

visitando” (sic); “manda rezar uma missa .e (o espírito de) um ente muito querido seu” (sic);

“pode ter sido um sonho”, “algum espirito que te quer bem olha vc e te protege” (sic);

“primeiro tente analisar possibilidades prováveis, e racionais (…) se não houver

possibilidades físicas, ai pode pensar que foi um espírito ou algo do tipo (sic)”; “eh alguém

que ama muito vc e quer seu bem tente senpre manter bons pessamentos tentar de algum

mudo entrar em contato” (sic).

Em nenhum momento foi citada nominalmente esta ou aquela religião. A menção à palavra

Page 49: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

49

“missa” num dos comentários sugere um rito católico; o que é contraditório, pois o

catolicismo não admite que espíritos de pessoas falecidas venham “visitar” os vivos. Isso não

chega a se constituir numa novidade, considerando que, como dissemos anteriormente, com o

surgimento da Internet as pessoas passam a fazer online tudo que faziam offline; e

considerando o sincretismo religioso atribuído ao povo brasileiro. Ou seja, se offline as

pessoas já tinham a tendência a absorver influências de outras religiões, a tendência é que isso

continue acontecendo online. O que diferencia esse novo momento é que isso tende a ser

amplificado.

A citação constante do termo “espírito” não permite inferir se os integrantes que o utilizaram

estão ligados a alguma linha religiosa específica, pois várias admitem sua existência

(Espiritismo, Umbanda, Esoterismo são alguns exemplos, mas não nos alongaremos nessa

questão, pois ela foge ao escopo desse trabalho). Assim como a negação de aspectos místicos

da experiência (“um sonho”) também não permite concluir se quem emitiu esse tipo de

opinião segue alguma linha religiosa que não admite essa possibilidade, ou se simplesmente

não segue religião nenhuma.

Dito isso, fica a cargo da autora da publicação se apropriar de todos esses conteúdos, analisá-

los, confrontá-los com outras fontes – “to lendo a respeito de religião e talvez isso esteja

mexendo com a minha cabeça” (sic) – e deles tirar a sua própria conclusão. Ou seja, o “fazer

religioso” representado pela frequência à catequese dos católicos, à escola dominical dos

protestantes, aos aconselhamentos espirituais das mais diversas denominações, desloca-se

para o ambiente digital, dentro de uma comunidade independente, formada por leigos.

Reconhecemos, portanto, na análise deste caso:

o enfraquecimento da autoridade religiosa institucionalizada (padres, catequistas, pastores

etc.), em seu papel de “levar a Palavra”; e o fortalecimento da “rede” como fonte das

informações e orientações sobre o “fazer religioso”;

a substituição da comunidade religiosa tradicional (encontradas nas paróquias, templos

etc.), por uma comunidade digital independente, que passa a atender a necessidade de

pertencimento de seus membros; e

a busca de uma religiosidade única e individual, construída a partir de fragmentos de

várias religiões e religiosidades.

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4.5.2. Publicação de 29 de agosto de 201459 – A busca da intercessão religiosa

Passamos agora à análise da publicação que foi ao ar em 29 de agosto de 2014, às 20h21

(fig.13). Foi enviada pela integrante R. A., que diz: “minha tia esta agora em uma cirurgia no

coração (…) queria pedir para que todos, independente da religião, mandasse pensamentos

positivos” (sic).

59 Disponível em https://www.facebook.com/groups/forum.religiao/permalink/156778381159090/. Últimoacesso em setembro de 2014.

Figura 13 - Impressão de tela da publicação daintegrante R.L.no Grupo “Conversando sobreReligião”, de 29 de agosto de 2014, às 20h21.

Page 51: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

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Estamos, aqui, diante de outro tipo de publicação, onde o autor busca a “intercessão” dos

demais integrantes do Grupo para uma causa difícil. Bastante usual e popular no

“Conversando sobre Religião”, despertou um bom nível de engajamento dos integrantes, com

37 “curtidas” e dezenove comentários (que envolveram dezessete pessoas diferentes, inclusive

a autora), muitos destes também merecedores da chancela “curtir” (31 no total) dos membros

do Grupo.

A intercessão é “pedir em favor do outro”. Na religião católica, por exemplo, os fiéis

solicitam a intercessão dos anjos, santos e beatos de sua devoção junto a Deus –

tradicionalmente, a invocação é seguida do pedido “rogai por nós, que recorremos a vós”.

Dependendo da intenção da oração, a invocação pode ser feita ao santo “padroeiro” daquela

causa – Santa Rita, padroeira das causas impossíveis; Santo Expedito, padroeiro das causas

urgentes; São Francisco, protetor dos animais; entre outros (a Igreja Católica possui mais dez

mil santos e beatos). Seja numa oração individual, seja num bilhetinho colocado aos pés da

estátua de um santo na igreja, para que seu pedido chegue a Deus, o fiel solicita a mediação

de um terceiro, mas esse terceiro possui características especiais, como o fato de ter sido

oficialmente reconhecido pela Igreja. No caso de um santo, este foi inscrito no cânone dos

santos pela Santa Sé (daí a expressão “canonização”) após longo processo de análise dos seus

“méritos” pela Congregação para as Causas dos Santos, o que equivale a dizer que aquela

pessoa levou uma vida virtuosa, é um modelo a ser seguido, está “no céu”; e a prescrever o

seu culto. No caso de um “beato”, trata-se de um reconhecimento, também pela Santa Sé, de

que aquela pessoa, por suas qualidades, se encontra no céu, e permitindo seu culto (e não

prescrevendo seu culto). A beatificação é considerada um passo anterior à canonização.

A intercessão junto a Deus também pode ser pedida ao líder religioso ou aos fiéis da mesma

comunidade, em várias situações. Recorrendo mais uma vez ao catolicismo, o pedido de

intercessão pode ser feito, por exemplo, informalmente, numa conversa, ou dentro do rito da

missa, no “Oremos” – momento em que o celebrante convida os presentes a fazer

mentalmente seu pedido a Deus. Após uma pausa, ele eleva as mãos e “profere a oração,

oficialmente, em nome de toda a Igreja. Nesse ato de levantar as mãos o celebrante está

assumindo e elevando a Deus todas as intenções dos fiéis. Após a oração todos respondem

AMÉM, para dizer que aquela oração também é sua”60.

60 SINTONIA DE JESUS'S BLOG. Missa passo a passo – Oremos, Primeira Leitura, Salmo, SegundaLeitura. Publicado em 12 de maio de 2009. Diponível emhttp://sintoniadejesus.wordpress.com/2009/05/12/missa-passo-a-passo/. Último acesso em setembro de 2014.

Page 52: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

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Nesse caso, o fiel solicita a mediação da comunidade religiosa a que ele pertence, seja na

figura de seu líder, seja na de seus membros. No caso do líder religioso – no catolicismo, um

padre – estamos diante de alguém que passou por um longo período de preparação e só depois

disso foi oficialmente “autorizado” pela Igreja a exercer tal função. Ou seja, a sua autoridade

passa pelo reconhecimento da instituição à qual ele está ligado. Já no caso da comunidade

formada pelos demais fiés, estão todos unidos pela mesma fé e recebem esse mandato do

próprio Evangelho: “Também vos digo que, se dois de vós concordarem na terra acerca de

qualquer coisa que pedirem, isso lhes será feito por meu Pai, que está nos céus. Porque, onde

estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles” (Mateus 18:19-

20)61.

O pedido de intercessão, objeto dessa publicação analisada, feito por R. L. aos integrantes do

“Conversando sobre Religião”, abdica de todas essas formalidades. Na verdade, a autora evita

até mesmo qualificá-lo como tal, uma vez que se diz “sem religião” – ela pede que mandem

“pensamentos positivos”. A solicitação é dirigida a um grupo heterogêneo – “todos,

independente da religião” – e que não compartilha, necessariamente, muito mais coisas do que

aquele ambiente digital. A exemplo do que vimos ao analisar a publicação anterior (item

4.5.1.), aspectos como “autoridade religiosa”, “reconhecimento institucional”, “discursos

validados”, são não são levados em consideração.

Quando passamos à análise das interações provocadas pela publicação, chama atenção a

diversidade de manifestações de religiosidade que chegam em resposta a esse pedido de

“pensamentos positivos” da autora, naturalmente interpretados como um pedido de

intercessão: “deus vai passa na frente” (sic); “que os orixás abrace sua tia” (sic); “confie em

DEUS ele er fiel” (sic); “que Oxaguiã Te Conforte Minha Querida, Assim como a toda sua

família. & Que Obaluayê Dê a Cura a Ela... Muita Luz” (sic); “porque para Deus nada é

impossível. Lc 1:37”; “que Deus em toda sua bondade derrame bençãos em forma de luz e

que toda esta bondade de Deus seja como um bálsamo curador para sua tia muita paz e luz pra

vc e sua familia” (sic); “paz de jah pra ela e pra vc” (sic); “q lucifer tenha piedade da alma

dela”; “deus sera seu medico amem” (sic); “que Jah ilumine”.

Embora nenhuma religião seja citada nominalmente, é possível distinguir elementos que

sugerem ligação com as tradições do catolicismo, do protestantismo, do candomblé, do

61 Edição consultada: https://www.bibliaonline.com.br/acf/mt/18/19-20. Último acesso em setembro de 2014.

Page 53: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

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espiritismo, do satanismo e do rastafári. Todas as manifestações são bem recebidas pela

autora R. L., que revela, inclusive, não pertencer a nenhuma religião:

Gente, minha tia já está no quarto. Houve problemas na cirurgia mas no finalocorreu tudo bem, o pior já foi! Obrigada a todos pelas mensagens, de verdade, nãopertenço a nenhuma religião mas respeito cada uma delas e procuro sempre entende-las.. Pessoas boas e de bom coração existem em qualquer religião e eu vi isso atravésdos comentários. Obrigada novamente e muita luz a todos! (sic).

A observação dessa publicação nos leva a algumas constatações:

a mediação entre o indivíduo e Deus adquire uma fluidez maior: liberta-se da rigidez dos

ritos e da autoridade estabelecida, desloca-se do âmbito “formal” e “institucional” (offline ou

online) para o das relações sem cerimônia e casuais de uma comunidade digital independente;

alguém que se diz sem religião pede a pessoas de religiões e religiosidades diferentes

que enviem pensamentos positivos, e é atendido com a invocação do divino segundo as

diferentes interpretações dos respondentes. É como se peças de quebra-cabeças diferentes

fossem misturadas, se encaixassem e ainda resultassem numa nova imagem, perfeita e com

sentido próprio. Apropriando-nos de uma terminologia da música, foi feito um mashup62 com

esses elementos e o resultado foi algo novo, único e com sentido religioso não só para a

autora da publicação como para os demais membros do Grupo;

com o engajamento dos membros do Grupo na publicação, o acolhimento do pedido feito

pela sua autora e a tolerância à diversidade que permeou as interações, a comunidade digital

mais uma vez saiu fortalecida em relação às comunidades religiosas tradicionais. Nas palavras

da autora, R.L.: “pessoas boas e de bom coração existem em qualquer religião e eu vi isso

através dos comentários”.

4.5.3. Publicação de 30 de agosto de 201463 – Questionando os fundamentos

A terceira publicação do Grupo “Conversando sobre Religião” objeto de nossa análise foi ao

ar em 30 de agosto de 2014, às 22h12, e foi enviada pelo integrante I.J. (fig. 14). Neste caso, o

autor não busca orientação, nem faz um pedido – sua participação tem uma característica

questionadora, revelando seu ceticismo com os dogmas religiosos ao propor a seguinte

62 De acordo com Wikipédia, “um mashup é uma canção ou composição criada a partir da mistura de duas oumais canções pré-existentes, normalmente pela transposição do vocal de uma canção em cima do instrumental deoutra, de forma a se combinarem”.63 Disponível em https://www.facebook.com/groups/forum.religiao/permalink/157288447774750/. Último

acesso em setembro de 2014.

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questão para os demais membros do Grupo:

Suponhamos que eu acredite em fadas (e apenas um símbolo), e que faço delasminha base para a minha religião (sic). Crio uma espécie de livro sagrado, quecontém as façanhas que elas fizeram, juntamente da maneira de como elas criaram ouniverso e tudo o que nele contem (sic). […]Com o passar do tempo ganho vários adeptos, e esta minha religião, ganha grandesproporções (sic). […]Você, usando de suas crenças, ou falta dela, teria como, ou pode provar que elas nãoexistam (sic)? […] lembrando que grande parte das religiões seguem somente o que os seusrespectivos livros sagrados dizem, logo dizer que seu Deus (seja ele qual for) e overdadeiro e único, baseado apenas nisso não seria presunção demais (sic)?

A publicação recebeu cinco “curtidas” e 29 comentários, postados por 11 integrantes

(inclusive o próprio autor). Os comentários, por sua vez, receberam no total cinquenta

“curtidas”.

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Figura 14 - Impressão de tela da publicação do integrante I.J. no Grupo “Conversando sobreReligião”, de 30 de agosto de 2014, às 22h12

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Ao propor essa discussão, o autor tocou num dos temas mais caros à maioria das religiões:

seu livro sagrado – por exemplo, a Bíblia para os cristãos, o Alcorão para os muçulmanos, a

Torá para os judeus. Entre eles, um ponto em comum: a ideia de que teriam sido escritos por

inspiração divina, e que seus autores seriam santos, profetas, pessoas iluminadas.

Um caso recente ocorrido na Justiça brasileira corrobora – de uma maneira infeliz, sem

dúvida – a importância desse símbolo: o juiz Eugênio Rosa de Araújo, titular da 17ª Vara

Federal do Rio de Janeiro negou provimento a um pedido do Ministério Público Federal de

exclusão de vídeos do YouTube com manifestações da denominação evangélica Igreja

Universal do Reino de Deus que discriminariam e ofenderiam a Umbanda e o Candomblé64.

Para embasar a sua decisão, uma das alegações do magistrado foi justamente a de que as

crenças afro-brasileiras não poderiam ser consideradas religiões, pois não teriam um livro

sagrado: “No caso, ambas manifestações de religiosidade não contêm os traços necessários de

uma religião a saber, um texto base (corão, bíblia etc) ausência de estrutura hierárquica e

ausência de um Deus a ser venerado” (grifo nosso)65.

Mais tarde, diante da repercussão negativa junto à mídia e à opinião pública, o juiz reviu os

fundamentos de sua decisão – sem voltar atrás, no entanto, no indeferimento da liminar:

O forte apoio dado pela mídia e pela sociedade civil, demonstra, por si só, e deforma inquestionável, a crença no culto de tais religiões, daí porque faço a devidaadequação argumentativa para registrar a percepção deste Juízo de se tratarem oscultos afro-brasileiros de religiões, eis que suas liturgias, deidade e texto base sãoelementos que podem se cristalizar, de forma nem sempre homogênea. (grifonosso)66

Ainda que nem todas as religiões tenham a sua Bíblia, seu Alcorão ou sua Torá, fica clara a

força do livro sagrado como símbolo. Na hipótese que o autor desenvolve em sua publicação

no Grupo “Conversando sobre Religião”, a desconstrução desse símbolo começa quando ele

introduz a questão dizendo “suponhamos que eu acredite em fadas” (grifo nosso) – levando a

uma associação imediata com algo fantasioso, ou “contos da carochinha” –, embora logo em

seguida tente amenizar a colocação, justificando: “e apenas um símbolo” (sic). A partir daí,

são colocados em xeque, de uma vez só, vários aspectos dessas religiões:

64 Disponível em: http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI201113,21048-Juiz+diz+que+culto+afrobrasileiro+nao+e+religiao. Último acesso em setembro de 2014.

65 Disponível em: http://www.migalhas.com.br/arquivos/2014/5/art20140519-06.pdf . Último acesso emsetembro de 2014.

66 Disponível em: http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI201287,41046-Juiz+do+Rio+reconsidera+decisao+e+reconhece+cultos+afrobrasileiros. Último acesso em setembro de2014.

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a origem do texto – que seria a inspiração divina;

o papel do livro sagrado como revelação de uma verdade que une uma comunidade

religiosa;

como consequência, a própria existência de algo que possa ser considerado dogma67;

por fim, a própria ideia do deus verdadeiro e único.

Mais tarde, ao longo das trocas de mensagens que se sucedem, o autor I.J. volta a se

manifestar, ao ser questionado por um outro membro: “não possuo nenhuma religião, sou

ateu”.

Os comentários que a publicação suscitou podem ser subdivididos da seguinte forma:

a) Ratificação dos fundamentos da religião (a começar por seu livro sagrado):

Seria presunção realmente, mas isso só se não houvesse comprovação de nada do q olivro diz.. o que não ocorre..(sic). […] Mas se vc se interessasse mesmo em sabermais sobre ela (a Bíblia) veria claramente grande parte que se comprova por fatos.Se vc tiver coragem de questionar, a bíblia terá coragem de responder.” (grifonosso)“[...] porque há fatos sobre a existencia de Deus que não podem ser paupados,comprovados cientificamente e nem todas as coisas da bíblia podem sercomprovadas então temos liberdade pra anular a existencia de Deus e tudos os fatoshistóricos que compravam diversas histórias da biblia? so pq nossa mente é taolimitada p entender certos fatos? seria tolice […] (sic)

A integrante G.S., autora dos comentários cujos trechos reproduzimos acima, embora não se

declare seguidora desta ou daquela religião, dá indícios de pertencer a alguma denominação

cristã – ela menciona textualmente “a bíblia” (sic) cinco vezes nas suas duas interações e,

numa outra vez, refere-se a ela como “o livro”. É interessante notar que, dos 29 comentários

que a publicação do membro I.J. gerou, dois foram da integrante G.S. Porém, estes foram os

únicos que assumiram a postura de ratificar os dogmas da religião, recebendo três “curtir”.

Estes, porém, não significam necessariamente uma concordância irrestrita com as colocações

de G.S., pois foram dados por pessoas que assumiram, em seus próprios comentários, posturas

diferentes das expressadas por ela.

b) Negação dos fundamentos da religião e apoio à tese do autor, alguns usando um tom

bem-humorado, e até debochado:

67 Segundo a Wikipedia, dogma é o “ponto fundamental e indiscutível de uma crença”.

Page 58: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

58

você não teria religião alguma, ou divindade nenhuma se não lhe fosseincutido essa ideia, na forma de um livro ou em forma de cultura;

escreva o livro e comece a sua religião!;

sempre pensei assim tbm, a respeito da bíblia cristã por exemplo. Escreve olivro, eu compro e ainda te sigo (sic);

já tem uma seguidora;

não existiria religião se alguém não a inventasse, escrevendo bíblias e tal(sic).

c) Conciliação de diferentes conceitos de religiosidade, sem necessariamente apegar-se a

esta ou aquela religião:

você tem que se lembrar que é muito mais do que apenas escrever algumashistórias, você tem que contar (…) todos os valores morais e ensinamentos que vocêqueira passar para as pessoas;

eu tbm cheguei a ser assim, sem crença nenhuma, dúvidei de tudo e de todasas religiões (sic). Mas ‘toda religião tem seu lado bom’. Não podemos saber quemestá além de nós, mas acredito que há algo além de nós. Por isso adotei a bruxaria(grifo nosso);

seguir ou não um livro sagrado, ou desde livro formular uma religião (sic),não faz diferença, é um direito de cada um, ser Ateu ou Religioso são direitosindividuais, ninguém precisaria provar nada para ninguém. O ponto é querer que osoutros sigam as suas ideias na força, ou simplesmente ficar se metendo na vidaalheia por isso […] Detalhe não tenho religião, mas tenho religiosidade (sic) (grifonosso);

As religiões em si não são más (grifo nosso), o problema sempre foi esempre será o homem! Crer num deus e numa punição eterna, caso seja mal (sic), énecessário para algumas pessoas! E todos nós temos a necessidade de nos apegar àalgo (sic)! Até o ateu tem essa necessidade, ele se apega à não existência de Deus equer provar à todo custo q ele não existe (sic). Assim somos nós!

Alguns pontos chamam a atenção nesse último grupo de comentários, já que eles:

não atribuem às religiões um conceito negativo (“toda religião tem seu lado bom”);

demonstram tolerância com as diferentes formas de viver a religião e a religiosidade

(“seguir – ou não um livro sagrado, ou desde livro (sic) formular uma religião, não faz

diferença”);

colocam o indivíduo no centro dos problemas de cunho religioso (“o ponto é querer que

os outros sigam as suas ideias na força”; “o problema sempre foi e sempre será o homem!”).

Ao longo dos debates resultantes da publicação outro aspecto que acaba vindo à tona e sendo

questionado é o da autoridade religiosa, sempre vista negativamente quando citada. Isso

Page 59: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

59

ocorreu no contexto dos comentários que tipificamos como de “negação” ou de “conciliação”.

Não houve menção a esse aspecto nos comentários de “ratificação”.

isso, meu amigo, já não é pelos fieis (ao menos, espero que não) e sim oslíderes. A tão famosa jihad por exemplo, era para ser interpretada como uma guerraespiritual, que aconteceria apenas dentro de cada individuo, mas veja aí o queaconteceu (sic). (grifo nosso)

Vemos muito na Tv aberta, pastores, padres, e outros que utilizam da palavrade uma divindade para "controlar" de alguma forma os seguidores. As pessoasrealmente necessitam daquilo? Ou e somente uma má utilização da religiosidade?(sic)

existe o uso da má fé dos sacerdotes para com os adeptos das crenças, pois seacredita que os sacerdotes, por dominarem a doutrina com excelencia estejam 'emmais sintonia' com o divino, e ainda utilizam de manipulação para agregar mais areligião, e claro, ao $eu E$pírito (sic)”(grifo nosso).

E podem ver que a maioria desses pastores e padres utilizam do antigotestamento para conseguirem manipular seu povo! (sic)

Ao cabo da análise dessa publicação, reconhecemos, portanto:

mais uma vez foi a comunidade digital independente – e não as comunidades religiosas

tradicionais – o fórum que as pessoas buscaram para debater as questões relativas à sua

própria religiosidade (ou “não religiosidade”);

a maioria dos participantes da “conversa” têm ideias próprias sobre religião e

religiosidade, que passam longe da aceitação incondicional de dogmas;

percebe-se em todo o desenrolar do debate, desde sua proposição e passando por todos os

seus desdobramentos, um movimento de busca das respostas que as religiões tradicionais não

estão conseguindo dar. Em outras palavras, uma busca de algo a que valha a pena pertencer;

a autoridade religiosa é muito mal avaliada e sai bem enfraquecida da discussão. Merece

destaque a predominância de conceitos (utilizados de forma explícita ou não) como “má-fé”,

“controle” e “manipulação” para descrevê-la.

“Estou me sentindo em casa aqui nesse grupo”, diz um dos integrantes no andamento dos

debates da publicação que acabamos de analisar. Ao que uma outra integrante responde: “tbm

gostei do grupo”. Para eles, o “Conversando sobre Religião” já é uma comunidade da qual

vale a pena pertencer.

Page 60: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

60

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Cumpre agora apresentar nossas conclusões a respeito do estudo que nos propusemos a fazer.

Para tanto, gostaríamos de retomar aquele cenário descrito no início deste trabalho, quando

nos referimos à nossa experiência numa instituição de ensino de tradição católica.

Mencionamos, então, algumas constantes e passaremos a cotejá-las com aquilo que

observamos ao longo de desenvolvimento desta monografia.

1) A autoridade estabelecida de quem conduzia esses processos – fosse a madre

superiora, o padre, a professora de religião, a catequista.

Como vimos, essa autoridade (seja das instituições religiosas, seja de seus prepostos) perdeu

muito de sua força, e já não é mais exercida sem sofrer muitos questionamentos. Deixou,

inclusive, de ser a única referência que os indivíduos buscam para tratar de temas

relacionados à religião e à religiosidade. Vimos a demonstração disso na análise das

publicações e nas interações dos membros do Grupo “Conversando sobre Religião” em várias

situações, desde aquela em que a integrante procura orientação religiosa no Grupo, até nos

comentários mais duros, associando à liderança religiosa conceitos como manipulação e má-

fé.

2) A inquestionabilidade daquilo que estava sendo dito.

Nada mais é intocável. Nem os dogmas, nem os símbolos religiosos. A religião perdeu o

controle sobre seus próprios símbolos, que passaram a ser não só questionados, mas

manipulados, reinterpretados e resignificados. Também tivemos amostras disso, mais

fortemente na publicação do dia 30 de agosto, que colocou em pauta a credibilidade dos livros

base das religiões, entre outros fundamentos.

3) O efeito erga omnes daquilo que estava sendo dito.

Hoje, nada vale para tudo e para todos. As pessoas estão cada vez mais em busca de uma

religiosidade própria, individual, desatrelada dos fundamentos desta ou daquela religião. Elas

ainda buscam o transcendente, mas ele assume diferentes contornos de acordo com as

conveniências e preferências de cada um. Essa tendência, que já era forte no offline, adquiriu

uma amplitude muito maior no online. Os conteúdos estão ao alcance de um clique; formar

comunidades em rede é simples e rápido; e é fácil encontrar dentro dessas comunidades

pessoas que pensem como você, por mais “fora da caixa” que você pense. Gostos e interesses

Page 61: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

61

são partilhados, gerando pertencimento, novos discursos e ação. Como dito num dos

comentários do “Conversando sobre Religião”: “ser Ateu ou Religioso são direitos

individuais, ninguém precisaria provar nada para ninguém. O ponto é querer que os outros

sigam as suas ideias na força”68.

4) A obrigatoriedade da participação presencial nos ritos, obedecendo a tempos e modos

determinados.

Assim como os dogmas e os símbolos são questionados e transformados, o mesmo acontece

com os ritos. Eles tornam-se abertos, perdem formalidade, incorporam fragmentos de outras

religiões e religiosidades e são cada vez mais midiatizados. O ambiente digital do

“Conversando sobre Religião” serviu para que alguém pedisse a intercessão da comunidade

para uma causa; e para que os demais membros a dessem. Um rito, um “fazer religioso”

aconteceu, e não foi necessária a presença física de ninguém.

5) Definição de espaços específicos para a prática religiosa – o pequeno altar, a capela, o

confessionário, a Igreja.

Como dissemos antes, o digital acabou com os limites impostos pelo tempo e o espaço.

Assistir a uma cerimônia celta, por exemplo, que acontece a milhares de quilômetros de

distância não é problema. Basta ter um computador ou um celular ao alcance. Para pedir a

intercessão da comunidade por uma causa importante o indivíduo tampouco necessita se

deslocar até a Igreja onde essas pessoas se reúnem – a sua comunidade está ali, do outro lado

das telas, mas muito mais próxima que qualquer outra.

Diante destas constatações, voltamos às nossas perguntas-problema:

É possível falar em uma nova religiosidade incentivada pelo surgimento do ambiente

digital? Em caso positivo, o que é, e como se manifesta essa que optamos por chamar de

“nova religiosidade online”?

Quais os fatores determinantes do surgimento dessa nova religiosidade?

Considerando o referencial teórico no qual mergulhamos e a observação do estudo de caso do

Grupo do Facebook “Conversando sobre Religião”, concluímos que sim, é possível pensar no

surgimento de uma nova religiosidade no ambiente digital. Acreditamos que se trata de um

processo em andamento, mas que não pode ser ignorado. Não representa uma disrupção, mas

68 Comentário feito à postagem de 30/08/2014, a terceira do corpus de análise.

Page 62: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

62

uma revolução e uma evolução, como dito anteriormente. A procura pelo transcendente

continua acontecendo, mas agora pode se fazer pelo mecanismo de busca do Facebook, do

Google e de outras ferramentas online. As informações que a rede devolve a cada busca, as

comunidades a que ela nos apresenta são absorvidas, filtradas, interpretadas e reenquadradas

de modo a atender nossas demandas individuais.

Um ponto muito importante é que a mediação digital favorece o florescimento de uma grande

diversidade religiosa, na contramão da tendência conservadora que observamos na sociedade.

Especificamente no “Conversando sobre Religião” isso é perceptível, mas é preciso ressaltar

que muito disso se deve à atuação firme e presente dos moderadores do Grupo. Essa não é

uma realidade que possa ser extrapolada para fora desse contexto, principalmente se levarmos

em conta as manifestações de intolerância (não só a religiosa, mas também a religiosa), que

presenciamos ou que chegam ao nosso conhecimento diariamente.

Interessante também é como o digital pode atender à necessidade de pertencimento que as

pessoas originalmente buscavam nas comunidades religiosas tradicionais. O acolhimento e o

reconhecimento disso por parte dos integrantes do “Conversando sobre Religião” são

exemplos, a ponto das pessoas apresentarem aos demais membros do Grupo suas dúvidas,

seus questionamentos, e até declararem que “se sentem em casa” no Grupo.

De um lado temos: mais acesso à informação, facilidade para criar comunidades e gerar

conteúdos novos e próprios. De outro, um vácuo deixado pela crise da autoridade das

instituições engessadas, que não souberam responder às novas demandas dos fiéis, nem lidar

com a fluidez da sociedade contemporânea. Concluímos serem esses os principais fatores

desencadeadores dessa nova religiosidade que as pessoas estão construindo para si no

ambiente digital.

Até onde isso chegará, ainda é cedo para dizer. As pessoas continuarão a se mover nesse

“terceiro espaço”; o offline e o online continuarão a se influenciar mutuamente. De qualquer

forma, desde já é possível sentir uma migração do conceito de ter uma religião para o de ser

religioso, o que, sem dúvida é positivo, na medida em que o ter pode significar apenas um

rótulo, enquanto o ser conduz à prática.

Page 63: O ambiente digital como espaço de exercício de uma nova

63

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Nestas referências bibliográficas limitamo-nos a elencar as obras relacionadas ao tema da

comunicação, da religião e da cibercultura. As demais fontes de informação e pesquisa não

diretamente relacionadas a esses temas foram incluídas nas notas de rodapé ao longo do

trabalho. As URLs (endereços eletrônicos) informadas foram acessados por diversas vezes ao

longo do desenvolvimento dessa monografia, sendo que os últimos acessos aconteceram em

setembro de 2014.

BERNARDO, K. Os Hereges da Internet. Publicado em 24 de novembro de 2011.

Disponível em: http://youpix.virgula.uol.com.br/comportamento/os-hereges-da-internet/. Último acesso

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2014. Disponível em http://leonardoboff.wordpress.com/2014/03/16/o-povo-brasileiro-um-povo-mistico-e-

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SINTONIA DE JESUS'S BLOG. Missa passo a passo – Oremos, Primeira Leitura, Salmo,

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Segunda Leitura. Publicado em 12 de maio de 2009. Diponível em:

http://sintoniadejesus.wordpress.com/2009/05/12/missa-passo-a-passo/. Último acesso em setembro de

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