13
 f: A L\RA O AIDJ Q,h VIo 'Tht:. VERSO E PROSA o ritmo não é apenas o elemento1,11aisntigo e perma- nente da ling uagem,comotambémnão é difíci l que seja anterior à própria fala. Em ce rt o sentido, pode -s e di zer quea li nguagemna sce do ritmo ou, pelomenos,que todo ritmo impl ica ou pref igur a umá li nguagem.Assi m,toda as expressões verbai s são ritmo, sem exclus ão das for- mas mais abstratas ou didáclcas da prosa. Como então distinguir prosa e poema? Deste modo: o ritmo se dá es pontaneamenteem to da forma verbal , mas só no poe- ma se ma nifesta plenamen te . Se m ri tmo o há.poem~ ~ co m ritmo não há pr osa. O ritmo.é .condIçãodo poe- ma , aopass o que é inesse nc ialpara a prosa. Pe laviolên - cia da razão as palavras se desprendem do ritmo; essa vi ol ênci a racional sustenta a prosa, impedi ndo-a de cair na corrente da fala on de não vigoram as leis do di scurso e sim as de atração e repulsa. Mas esse desenraizamen - to nunca é total porque, do contrário, a linguagemse ex- tinguiria. E com el a o pr óprio pensamento.A li nguagem, por in clina ção natural. tende a ser ritmo. Como se obe- decessema uma misteriosalei de gravidade,as palavras retomam espontaneamente à poes ia . No fundo de toda prosa circula, ma is ou me nos ra refeit a pelas exigên ci as do discurso, a invi velcorr en te rí tmica. E o pens amen- to, na medidaem quli nguagem,sof re o mesmofasc í- nio. Deixar o pensamento em liberdade, divagar, é re - gressaraoritmo; as raessetransformam em corres pon- ncias, os silogismosem analogias,e a marcha intelec- tual em fluir de imagens. O prosador, porém, busca a coerência e a claridade conceptual. Por isso, resiste à corrente rítmica que fatalmente tende a se ma nifestar em imagense não emco nc eitos. A prosa é um gênero tar dio , filho da de sconfiançado pens amento ant e as tenncias naturais do idioma. A po esiapertenc e a todas as épocas: é a forma natura l de expressão dos homens. Não há po vos sem poesia, mas existem os que não têm prosa. Por tanto, pode-se dizer qu e a prosa não é uma forma de expre ssãoinere nte à so- ciedade, ao passo que é incou.~~Q.(veL~ ~2CJ~. ~J)~i.a_ .~._~~~_. soci edade ._s~m.ançõe s, mitos ou outras expre ~.sõ~s P9é- t~ Ç ~ ~ poesia ignorao progre ssoou a ev ol ução, e suas origens e seu fim se confundem com os da linguagem. A prosa, qu e é pr imordi al ment e um instrumento de cr í- tica e análise,exigeuma lent a ma turação e s6 seproduz após uma longa série de esforços tendentes a dominar a fala . Seuavançose me depelograu dedomí ni o do pe n- samento sobre as pala vr as. A prosa cresce em luta per- manent e cont ra as inclinaçõesnatu rais do idioma, e seus neros ma is perfeitos são o discurso e a demonstração; nos quais o ritmo e seu in ces sante ir e vi r ce demlugar à marcha do pens amento. Enquanto o poema se apresent a como uma ordem fe- chada, a pros a tende a semanife st arcomo uma constr u- ção aberta e linear. Va lérycomp aroua prosa co m a mar- cha e a poesia com a dança. Narr ativaqu di scurso, his- dadeira teoria de idéias ou fa~os.A figu ra geométr ica que simboliza a prosa é a linha: re ta, sinuosa,espira Ia - da, ziguezagueante ,ma s sempre para di ante e com umà. meta precisa. Daí que os arquétipos da prosa sejam o di sc ur soe a narrativa, a es peculaçãoe a história. O poe. ma, pelo co nt rário, apresenta-se como um círculo  u uma esfera - algo que se fecha sobre si mesmo,uni- verso auto-s ufic ie nt eno qual o fi m é também um pr incí- 82 83

O Arco e a Lira - Octavio Paz - PI

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: O Arco e a Lira - Octavio Paz - PI

5/13/2018 O Arco e a Lira - Octavio Paz - PI - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/o-arco-e-a-lira-octavio-paz-pi 1/13

 

f: A L\RA

OAIDJ Q,h VIo 'Tht:.VERSO E PROSA

o ritmo não é apenas o elemento1,11aisntigo e perma-nente da linguagem,como tambémnão é difícil que sejaanterior à própria fala. Em certo sentido, pode-se dizerque a linguagemnasce do ritmo ou, pelo menos,que todoritmo implica ou prefigura umá linguagem.Assim, todasas expressões verbais são ritmo, sem exclusão das for-mas mais abstratas ou didáclcas da prosa. Como entãodistinguir prosa e poema? Deste modo: o ritmo se dá

espontaneamente em toda forma verbal, mas só no poe-

ma se manifesta plenamente. Sem ritmo não há.poem~~só com ritmo não há prosa. O ritmo.é".condIçãodo poe-ma, ao passo que é inessencialpara a prosa. Pela violên-cia da razão as palavras se desprendem do ritmo; essaviolência racional sustenta a prosa, impedindo-a de cairna corrente da fala onde não vigoram as leis do discursoe sim as de atração e repulsa. Mas esse desenraizamen-

to nunca é total porque, do contrário, a linguagemse ex-tinguiria. E com ela o próprio pensamento.A linguagem,por inclinação natural. tende a ser ritmo. Como se obe-

decessema uma misteriosa lei de gravidade, as palavrasretomam espontaneamente à poesia. No fundo de toda

prosa circula, mais ou menos rarefeita pelas exigênciasdo discurso, a invisível corrente rítmica. E o pensamen-to, na medida em que é linguagem,sofre o mesmo fascí-

nio. Deixar o pensamento em liberdade, divagar, é re-gressar ao ritmo; as razões se transformamem correspon-dências, os silogismosem analogias, e a marcha intelec-

tual em fluir de imagens. O prosador, porém, busca a

coerência e a claridade conceptual. Por isso, resiste à

corrente rítmica que fatalmente tende a se manifestarem imagens e não em conceitos.

A prosa é um gênero tardio, filho da desconfiança dopensamento ante as tendências naturais do idioma. Apoesia pertence a todas as épocas: é a forma natural deexpressão dos homens. Não há povos sem poesia, masexistem os que não têm prosa. Portanto, pode-se dizerque a prosa não é uma forma de expressãoinerente à so-ciedade, ao passo que é incou.~~Q.(veL~ ~2CJ~.!~J)~i.a_.~._~~~_.

sociedade._s~m.anções, mitos ou outras expre~.sõ~sP9é-t~.Ç.~.~..poesia ignora o progresso ou a evolução, e suasorigens e seu fim se confundem com os da linguagem.A prosa, que é primordialmente um instrumento de crí-tica e análise, exige uma lenta maturação e s6 se produz

após uma longa série de esforços tendentes a dominara fala. Seuavanço semedepelo grau de domínio do pen-samento sobre as palavras. A prosa cresce em luta per-manente contra as inclinaçõesnaturais do idioma, e seusgênerosmais perfeitos são o discurso e a demonstração;nos quais o ritmo e seu incessante ir e vir cedemlugar àmarcha do pensamento.

Enquanto o poema se apresenta como uma ordem fe-chada, a prosa tende a semanifestar como uma constru-ção aberta e linear. Valéry comparou a prosa com a mar-cha e a poesia com a dança. Narrativa qu discurso, his-tória ou demonstração, a prosa é um desfile, uma ver.dadeira teoria de idéias ou fa~os.A figura geométricaque simboliza a prosa é a linha: reta, sinuosa, espiraIa-

da, ziguezagueante,mas sempre para diante e com umà.meta precisa. Daí que os arquétipos da prosa sejam odiscursoe a narrativa, a especulaçãoe a história. O poe.ma, pelo contrário, apresenta-se como um círculo puuma esfera - algo que se fecha sobre si mesmo, uni-

verso auto-suficienteno qual o fim é também um princí-

Page 2: O Arco e a Lira - Octavio Paz - PI

5/13/2018 O Arco e a Lira - Octavio Paz - PI - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/o-arco-e-a-lira-octavio-paz-pi 2/13

 

piQque volta, se repete e se recria. E essa constante re-petição e recriação não é senão o ritmo, maré que vaie que vem, que cai e se levanta. O caráter artificial da

prosa se comprova cada vez que o prosador se abando-

na ao fluir do idioma. Tão logo se volta sobre seus pas-sos, à maneira do poeta ou do músico, e se deixa se-duzir pelas forças de atração e repulsa do idioma, viola

as leis do pensamento racional e penetra no âmbito deecos e,correspondênciasdo poema. Foi is'soque ocorreucom boa parte do romance contemporâneo.O mesmo sepode afirmar de certos romancesorientais, comoOs con-tos de Genji, da Senhora Murasaki, ou o célebre roman-

ce chinês O sonho do aposento vermelho. A primeira

lembra Proust, o autor que mais longe levou a ambigüi-dade do romance, sempre oscilante entre a prosa e oritmo;, o conceito e a imagem; o segundo é uma vasta

alegoriaque dificilmentese pode chamarde romancesemque a palavra perca seu sentido habitual. Na realidade,

as únicas obras orientais que se aproximam do que cha-mamos de romance são livros que vacilam entre o apó-logo, a pornografia e a descrição de costumes, como oChin Ping Mei.

Sustentar que o ritmo é o núcleo do poema não querdizer que este seja um conjunto de metros. A existênciade uma prosa carregada de poesia e a de muitas obras

corretamente"versificadas e absolutamente prosaicas re-velam a falsidade dessa identificação.Metro e ritmo nãosão a mesmacoisa. Os ret6ricos antigos diziamque o rit-mo é o pai da métrica. Quando um metro se esvazia deconteúdo e se converte em forma inerte, mera casca so-nora, o ritmo continua engendrando novos metros...Oritmo é inseparável da frase, não é composto 56 de pa-lavras soltas nem é s6 medida e quantidade silábica,acentos e pausas: é imagem e sentido. Ritmo, imagem e

significado apr~sentam-sesimultaneamente numa unida-de indivisível e compacta: a frase poética, o verso. Ometro, pelo contrário, é medida abstrata e independen-te da imagem.A única exigência do metro é que cadaverso tenha as sílabas ~ os acentosrequeridos. Tudopodeser dito em hendecassílabos:uma fórmula de matemá-

tica, uma receita culinária, o cerco de Tróia e uma su-

cessão de palavras desconexas.Pode-seinclusive prescin-dir da palavra; basta uma fileira de sílabas ou letras. Emsi mesmo, o metro é medida vazia de sentido. O ritmo,

pelo contrário, jamais se apresenta sozinho; não é medi-da mas conteúdoqualitativo e concreto. Todo ritmo ver-

bal já contém em si a imageme constitui, real ou poten-cialmente, uma frase poética completa.

O metro nasce do ritmo e a ele retorna. No princípio,as fronteiras entre um e outro são confusas. Posterior-

mente, o metro se cristaliza em formas fixas. Instante deesplendor, mas também de paralisia. Isolado do fluxo e

do refluxo da linguagem,o verso se transforma em me-dida sonora. Ao momento de acordo segue-se outro deimobilidade; depois, sobrevém a disc6rdia e no seio dopoema se estabelece uma luta: a medida oprime a ima-gem ou.esta rompe o cárcere e regressa à fala a fim dese recriar em novos ritmos. O metro é medida que ten-de a se separar da linguagem; o ritmo jamais se separa

da fala porque é a pr6pria fala. O metro é procedimento,maneira; o ritmo é temporalidade concreta. Um hende-cassílabo de Garcilaso não é idêntico a um de Quevedo

ou G6ngora. A medida é a mesma, mas o ritmo é di-ferente. A razão dessa singularidade .'encontra-se, emcastelhano, na existência de períodos rítmicos no interiorde cada metro, entre a primeira sílaba acentuada e an-tes da última. O período rítmico forma o núcleo do ver-so e não obedece à regularidade silábica, mas à pancada

84 8S

Page 3: O Arco e a Lira - Octavio Paz - PI

5/13/2018 O Arco e a Lira - Octavio Paz - PI - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/o-arco-e-a-lira-octavio-paz-pi 3/13

 

dos acentos e à combinaçãodestes com as cesuras e as

sílabas fracas. Çada período, por sua vez, é compostopelo menos de duas cláusulas rítmicas, formadas tam-

bémpor acentostônicose cesuras.tiA representaçãoor-mal do verso", diz Tomás Navarro em seu tratado de

Métricaespanoa, "resulta de seus componentesmétri-cos e gramaticais; a função do período é essencialmenterítmica; de sua composiçãoe dimensões depende que omovimentodo verso seja lento ou rápido, grave ou leve,sereno ou conturbado." O ritmo infunde vida ao metro

e outorga-lheindividualidade.1

A distinção entre metro e ritmo proíbe chamar de

poemas um grande número de obras corretamente ver-sificadas que, por pura inércia, constam como tais nosmanuais de literatura. Obras,comoOs cantos de Maldo-

ror, Alice no País das Maravilhas ou El jardín de 10ssen-

deros que se bifurcan são poemas. Nelasa prosa se nega

a si mesma; as frases não se sucedemobedecendoa umaordem conceitual ou narrativa, mas são presididas pelasleis da imagem e do ritmo. Há um fluxo e refluxo' deimagens, acentos e pausas, sinal inequívoco da poesia.O mesmo se deve dizer do verso livre contemporâneo:

os elementosquantitativosdo metro cederam lugar à uni-dade rítmica. Em algumas ocasiões - por exemplo, na

poesia francesa contemporânea- a ênfase transferiu-sedos elementos sónoros para os visuais.Mas o ritmo per-manece; subsistem as pausas, as aliterações, as parono-

másias,o choque de ruídos, o fluxo verbal. O verso livreé uma unidade rítmica. D.H. Lawrence diz que a uni-

dade do verso livre é dada pela imagem e não pela me-dida externa. E cita os versículos de Walt Whitman,

que são como a sístole e a diástole de um peito pode-roso. E assim é: o verso livre é uma unidade e quase

sempre se pronuncia de uma s6 vez. Por isso, a ima-gem moderna se rompe nos metros antigos: não cabe hamedida tradiCionaldas quatorze ou onze sílabas, o quenão ocorria quando os metros eram a expressão naturalda fala. Quase sempre'os versos de Garcilaso, Herrera,Fray Luis ou qualquer poeta dos séculos XVI e XVII

constituem unidades por si mesmos: cada verso é tam-bém uma imagem ou uma frase completa. Entre essas

formas poéticas e a linguagemde seu tempo, havia umarelação que desapareceu. O mesmoocorre com o verso

livre contemporâneo:cada verso é uma imagem e não énecessáriosuspender a respiraçãopara dizê-los.Por isso,não raro a pontuação é desnecessária. As vírgulas e ospontos sobram; o poema é um fluxo e refluxo rítmicode palavras. Contudo, o crescente predomínio do inte-lectual e do visual sobre a respiração revela que nossoverso livre ameaça se converter, como o alexandrino eo hendecassílabo,emmedida mecânica.Isso é particular-

1 Em Linguistics and poetics, Jakobson diz que "far from being an abstract,theoretlcal scheme,"meter- ar in more expticit termes, verse design-underUes the structure of any single Une - or, in logical terminology, any

8ingle verse 'instance. .. The verse design determines the invariant featuresof the verse instances and sets up the limit of variations". Em seguida,

cita o exemplo dos camponeses sérvios que improvisam poemas com metrosfixos e os recitam sem jamais se equivocarem com a medida. :e possível

que, de fato , os versos sejam medidas inconscientes. ao menos em certoscasos (o octossflabo espanhot seria um deles). Com tudo isso, a observação

de Jakobson niio inval ida a diferença entre metro e verso concreto. A rea.lidade do primeiro é ideal. é uma pauta e, portanto, é uma medida, umaabstração. O verso concreto é único: Resuelta en polvo ya, mas siemprehermosa (Lope de Vega) é um hendecassílabo acentuado na sexta sílaba,como Y en uno de mis ojos te l1agaste (San Juan de Ia Cruz) e como De

ponderosa vana pesadumbre (Góngora). Impossível confundi.tos: cada umtem um ritmo diverso. Em suma, teríamos de considerar três realidades:o ritmo do idioma neste ou naquele lugar e em determinado momentohist6rico: os metros derivados do ritmo do idioma ou adaptados de outrossistemas de versificação: e o ritmo de cada poeta. Este último é o elementodistintivo e aquele que separa a literatura versificada da poesia propria-mente dita.

8687

Page 4: O Arco e a Lira - Octavio Paz - PI

5/13/2018 O Arco e a Lira - Octavio Paz - PI - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/o-arco-e-a-lira-octavio-paz-pi 4/13

 

mente certo no que se refere à poesia francesa contem-porânea.i

Os metros são hist6ricos, ao passo que o ritmo se con-funde com a pr6pria linguagem.Não é difícil distinguirem cada metro os elementos intelectuais e abstratos e

os mais puramente rítmicos. Nas línguas modernas osmetros são compostos por um determinado número desílabas, duração cortada por acentos tônicos e pausas.Os acentos e as pausas constituema parte mais antiga emais puramente rítmica do metro; ainda estão próximosda pancada do tambor, da cerimônia ritual e dos calca-nhares dançantes que batem no chão. O acento é dançae rito. Graças ao acento, o metro se põe de pé e é uni-dade dançante. A medida silábica implica um princípiode abstração, uma retórica e uma reflexão sobre a lin-guagem. Duração puramente linear, tende a se conver-

ter emmecânica pura. Os acentos, as pausas, as alitera-ções, os choques ou uniões inesperadas de um som comoutro constituem a parte concreta e permanente do me-tro. As linguagens oscilam entre a prosa e o poema, oritmo e o discurso. Em algumas é visível o predomíI1;iorítmico; em outras observa-seum crescimentoexcessivodos elementos analíticos e discursivos, às expensas dosrítmicos e imaginativos.A luta entre as tendências na-

turais do idioma e as exigênciasdo pensamento abstrato

exprime-se nos idiomas modernos do Ocidente atravésda dualidade dos metros: num extremo, versificação si-lábica, medida fixa; rio pólo oposto, o jogo livre dosacentos e das pausas. Línguas latinas e línguas germâni-caso As nossas tendem a fazer do ritmo medida fixa.

Não é estranha essa inclinação, pois são filhas de Roma.A importância da versificação silábica' revela o impe-

rialismo do discurso e da gramática. E esse predomínioda medida explica também que as criações poéticas mo-dernas em nossas línguas sejam rebeliões contra o siste-ma de versificação silábica. Em suas formas atenuadas

a rebelião conserva o metro, mas sublinha o valor vi-

sual da imagemou introduz elementos que rompem oualternam a medida: a expressão coloquial, o humor, afrase montada sobre dois versos, as mudanças de acen-

tos e de pausas etc. Em outros casos a revolta se apre-senta como um regresso às formas populares e espontâ-neas da poesia. E em suas tentativasmais extremaspres-cinde do metro e escolhecomomeio de expressão a pro-

sa ou o verso livre. Esgotadosos poderes de convocaçãoe evocaçãoda rima e do metro tradicionais, o poeta re-monta a corrente, em busca da linguagem original, an-terior à gramática. E encontra o núcleo primitivo: o

ritmo.O entusiasmocom que os poetas franceses acolheram

o Romantismoalemãodeve ser visto como uma rebelião

instintiva contra a versificação silábica e o que ela sig-

nifica. No alemão, como no inglês, o idioma não é umavítima da análise racional. O predomínio dos valores rít-micos facilitou a aventura do pensamento romântico.Ante o racionalismodo Séculodas Luzes, o Romantismo

esgrime uma filosofia da natureza e do homem funda.

da no princípio de analogia: ','Tudo" - diz Baudelaireem L'art romantique -, "no espiritual como no natu-ral, é significativo, recíproco, correspondente... tudoé hieroglífico. . . e o poeta é apenas o tradutor, aqueleque decifra.. ." Versificação rítmica e pensamento ana-lógico são as duas faces de uma mesma moeda. Graças

ao ritmo percebemosessa correspondênciauniversal,me-lhor dizendo: essa correspondêncianão é outra coisa se-não a 'manifestaçãodo ritmo. Voltar ao ritmo subenten.i Sobre ritmos verbais e fisiológicos.ver o ApêndicelI.

88 '89"

Page 5: O Arco e a Lira - Octavio Paz - PI

5/13/2018 O Arco e a Lira - Octavio Paz - PI - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/o-arco-e-a-lira-octavio-paz-pi 5/13

 

de uma mudança de atitude diante da realidade. E, aoinverso, adotar o princípio de analogia significa regressarao ritmo. Ao afirmar os poderes da versificaçãoacentualante os artifícios do metro fixo, o poeta romântico pro-clama o triunfo da imagemsobre o conceitoe o triunfoda analogia sobre o pensamento 16gico.

Esses nomes evocamum sistema de versificação opostoao que se poderia chamar de tradição nativa inglesa: overso branco de Milton, mais latino que inglês, e o he-roie eOllplet,recurso favorito de Pope. Sobre este últi.mo, Dryden dizia que it bounds and cireunseribes theFaney.A rima regula a fantasia, é um dique contra aenchente verbal, uma canalização do ritmo. A primeirametade de nosso século foi também uma reação Hlatina"em direção contrária ao século anterior, de Blake e do

primeiro Yeats. (Digo uprimeiro" porque esse poeta,como Juan Ram6n Jiménez, é vários poetas.) A reno.vação da poesia inglesa moderna deve-seprincipalmentea dois poetas e a um ficcionista: Ezra Pound, T.8. Eliote TamesJoyce. Apesar de suas obras serem muito di-ferentes. uma característica comum as une: todas são

uma reconquista da herança européia. Parece desneces-

sário acrescentar que se trata sobretudo da herança lati.na: poesia provençal e italiana em Poundj Dante e Bau.delaire em Eliot. Em Joyce é mais decisiva a herançagreco-Iatinae medieval: não emvão ele foi um filho re-belde da Companhia de Jesus. Para os três a volta datradição européia se inicia - e culmina - com umarevoluçãoverbal.A mais radical foi a de Joyce, cria-dor de uma linguagemque, sem deixar de ser o inglês,é também todos os idiomas europeus. Eliot e Pound usa-ram inicialmenteo verso livre rimado, à maneira de La-

forgue; em seu segundo momento regressaram a metrose estrofes fixos, e então, conforme nos conta o pr6prio

A evolução da poesia moderna em francês e em inglêsé um exemplo das relaçõesentre ritmo verbal e criaçãopoética. O francês é uma língua sem acentos tônicos eos recursos da pausa e da cesura os substituem. No in-

glêso que realmente conta é o acento. A poesia inglesatende a ser puro ritmo: dança, canção. A francesa: dis-

curso, "meditação poética". Na França o exercício dapoesia exige ir contra as tendênciasda língua. No inglês,

abandonar-se à corrente. O primeiro é o menos poéticodos idiomas modernos, o menos inesperado; o segundoabunda em expressões estranhas e cheias de surpresaverbal. Daí que a revolução poética moderna tenha sen-tidos diversos em ambos os idiomas.

e a riqueza rítmica do inglês que dá o caráter próprioao teatro elisabetano, à poesia dos Hmetafísicos"e à dosromânticos. Não obstante, com certa regularidade de

pêndulo, surgemreações de signocontrário, períodos em

que a poesia inglesa busca se inserir de novo na tradi-ção latina.1Parece ocioso citar Milton, Dryden e Pope.

1 Não é de estranhar: a história da Inglaterrae dos EstadosUnidospodeser vista como uma contínua oscilação - nostalgia e repulsa - que alterna-damente os aproxima e distancia da Europa. ou, mais exatamente, do mundolatino. Enquanto os genn8nicos, inclusive em suas épocas de maior extravio,nunca deixaram de se sentir europeus, nos ingleses é manifesta a vontadede ruptura, desde a Guerra dos Cem Anos. A Alemanha prossegue enfei.tiçada, para o bem e para o mal, pelo espectro do Sacro Império Romano-Gennânico que, mais ou menos abertamente, inspirou suas ambições dehegemonia européia. A Grã-Bretanha jamais pretendeu fazer da Europa um

império e se op~s a todas as tentativas - venham da direita ou da esquer-da, invoquemo nome de César ou deMarx- de criar uma ordem políticaque não seja a do instável "equilíbrio de poderes". A história da culturagermânic8, com maior ênfase ainda do que sua história poUtica, é umaapaixonada tentativa de consumar a fusão entre o germânico e o latino.Não é necessário citar Goethej a mesma paixão anima espíritos tão violenta.mente germânicos como Novalis e Nietzsche ou pensadores aparentementetão distanciados dessa espécie de preocupação como Marx.

90 91

Page 6: O Arco e a Lira - Octavio Paz - PI

5/13/2018 O Arco e a Lira - Octavio Paz - PI - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/o-arco-e-a-lira-octavio-paz-pi 6/13

 

Pound. o exemplo de Gautier foi determinante. Todasessas mudanças se fundamentaram em outra: a substi-tuição da linguagem "poética" - ou seja, o dialeto li-terário dos poetas do fim do século - pelo idioma detodos os dias. Não a estilizada linguagem"popular", àmaneira de Juan Ram6n Jiménez, Antonio Machado,García Lorca ou'Alberti, afinal de contas não menos ar-

tificial que o idioma da poesia "culta", mM a fala dacidade. Não a canção tradicional: a conversação, a lin-guagemdas grandes urbes do nosso século. Nisso a in-fluência francesa foi deterrninante. Contudo, as razõesque moveram os poetas ingleses foram exatamente con-trárias às. que inspiraram seus modelos. A irrupção deexpressõesprosaicas no verso - que se inicia comViç-tor Hugo e Baudelaire- e a adoção do verso livre e dopoema em pro~a foram recursoscontra a versificação si-

lábica e contra a poesia concebida como discurso rima-do. Contra o metro, contra a linguagem analítica: ten-tativa de voltar ao ritmo, chave da analogia ou cor-respondênciauniversal: Na língua inglesa a reforma teveuma significação oposta: não ceder à sedução rítmica,manter viva a consciência crítica, mesmo i1õsmomentosde maior abandono.1Num e noutro idioma os poetasprocuram substituir a falsidade da dicção "poética" pelaimagemconcreta. Mas, enquanto os franceses se rebela-ram contra a abstraçãodo verso silábico, \ os poetas de'

língua inglesa se rebelaram contra a vaguidão da poe-sia rítmica. .The waste land foi julgado um poema revolucioná-

do .por boa'parte da crítica inglesae estrangeira.Não

obstante, s6 à luz da tradição do verso inglês é possívelentender cabalmente a significação desse poema. Seutema não é simplesmentea descrição do gelado mundomoderno, mas a nostalgia de uma ordem universal cujomodelo é a ordem cristã de Roma. Daí que seu arqué-tipo poético seja uma obra que é a culminância e a ex-pressão mais plena desse mundo: A divina comédia. À

ordem cristã - que recolhe, transmuta e dá um senti-do de salvaçãopessoal aos velhos ritos de fertilidade dospagãos - Eliot opõe a realidade da sociedademoderna,tanto em suas brilhantes origens renascentistas, quantoem seu sórdido e fantasmagóricodesenlace contemporâ-neo. Assim, as citações do poema - suas fontes espiri-tuais - podem ser divididas em duas partes. Ao mun-do de salvaçãopessoal e cósmica aludem as citações deDante, Buda, Santo Agostinho,os upanixades e os mitosde vegetação. A segunda metade se subdivide, por suavez, em duas: a primeira corresponde ao nascimentodenossa idade; a segunda, à sua situação presente. Por umlado, fragmentos de Shakespeare, Spencer, Webster,MarveIl, nos quais se reflete o luminoso nascimento domundo moderno; por outro, Baudelaire, Nerval, o fol-clore urbano, a língua coloquial dos subúrbios. A vi-talidade dos primeiros se revela nos últimos como vidadesalmada.A visão de Elizabeth da Inglaterra e de LordRobert num barco engalanado com velas de seda e ban-

deiras airosas, como uma ilustração de um quadro deTiciano ou de Veronese, resolve-sena imagem da fun-cionária possuída por um galã vulgar num fim de se-mana.

A essa dualidade espiritual corresponde outra na lin-guagem. Eliot se reconhece devedor de duas correntes:os elisabetanos e os simbolista (sobretudo Laforgue).Ambas servem-lhepara expressar a situação do mundo

1 Isso explica a escassainfluência do Surrealismona Inglaterra e nosEstados,Unidos durante esse período. Em compensação,essa influência édecisiva na poesia de língua inglesa contemporAneae se inicia mais oumenospor volta de 1955. ' .

92

93

Page 7: O Arco e a Lira - Octavio Paz - PI

5/13/2018 O Arco e a Lira - Octavio Paz - PI - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/o-arco-e-a-lira-octavio-paz-pi 7/13

contemporâneo.Com efeito, o homem moderno começaa falar pela boca de Ham1et, Pr6spero e alguns her6isdeMarlowee Webster.Mas começaa falar comoum ser

sobre.humano,e s6 comBaudelaire se exprime comoumhomem caído e uma alma dividida. O que toma Bau-deIaire um poeta moderno não é tanto a ruptura com aordem cristã quanto a consciênciadessa ruptura. Moder-nidade e consciência ambígua: negação e nostalgia,

prosa e lirismo. A linguagem de Eliot recolheesta dupla herança: despojos de palavras, fragmen-tos de verdades,o esplendordo Renascimentoinglêsalia.do à miséria e à aridez da urbe moderna. Ritmos que-brados, mundo de asfalto e de ratos atravessado por re-lâmpagosde beleza caída. Nesse reino de homens ocos,ao ritmo sucede a repetição. As guerras púnicas sãotambém a primeira guerra mundial; confundidos, pre-sente e passado deslizampara uma cavidade que é umaboca que.tritura: a hist6ria. Mais tarde, essesmesmosfa-tos e essas mesmaspessoas reaparecem, desgastadas,semperfis, flutuando à deriva sobre uma água cinzenta. To-dos são aquele e aquele é nenhum. Esse caos recuperasignificaçãotão logoo situamosfrente ao universo de sal-vação representado por Dante. A consciência de culpaé também nostalgia, consciência do exílio. Dante, po-rém, não necessita provar suas afirmações, e sua pala-vra sustenta sem esforço, como o talo ao fruto, o signi-ficado espiritual: não há ruptura entre palavra e sentido.

Eliot, ao contrário, deve recorrer à citação e ao cal/age.O florentino se ap6ia em crenças vivas e compartilha-das; o inglês, conforme indica o crítico C. Brooks, tempor tema Ua reabilitação de um sistema de crenças co-nhecido mas desacreditado/lI Podemos agora compre-

J

t Vero livroT. S.Eliot:a study 01his writing by several hands, Lon-dres. 1948.

94

ender em que sentido o poema de Eliot é também umareforma poética, não sem analogias com as de Miltone Pope. B uma restauração, mas restauração de algocontra que a Inglaterra, desde o Renascimento, se rebe-lou: Roma.

Nostalgia de uma ordem espiritual, as imagens e osritmos de The waste land negam o princípio da analo-

gia. O lugar desta é ocupado pela associaçãode idéias,destruidora da unidade da consciência.A utilização sis-

temática desse processo é um dos maiores acertos deEliot. Desaparecidoo mundo de valores cristãos - cujocentro é justamente a analogia universal, ou correspon-dência entre céu, terra e inferno -, nada resta ao ho-mem,exceto a associaçãofortuita e casual de pensamen-tos e imagens. O mundo moderno perdeu o sentido e otestemunho mais cru dessa ausência de direção é o au-

tomatismo da associação de idéias, que não está regido

por nenhumritmo c6smicoou espiritual, mas pelo acaso.Todo esse caosde fragmentose ruínas se apresenta comoa antítese de um universo teol6gico,ordenado conformeos valores da Igreja romana. O homem moderno é opersonagemde Eliot. Tudo lhe é estranho e em nada elefe reconhece. B a exceção que desmente todas as ana-logias e correspondências.O homem não é árvore, nemplanta, nem ave. Está s6 em meio à criação. E quandotoca um corpo humano, não roça um céu, como queria

Novalis, mas penetra numa galeria de ecos. Nada menosromântico que esse poema. Nada menos inglês. A con-trapartida de The waste land é a Commedia e seu an-tecedente imediato, As flores do mal. Será necessárioacrescentar que o título original do livro de Baudelaireera Limbos e que The waste land representa, dentro douniverso de Eliot, segundo declaração do pr6prio autor,não o Inferno, mas o Purgat6rio?

95

 

Page 8: O Arco e a Lira - Octavio Paz - PI

5/13/2018 O Arco e a Lira - Octavio Paz - PI - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/o-arco-e-a-lira-octavio-paz-pi 8/13

Pound, il miglior fabbro,é o mestrede Eliot e aele se deve o "simultaneísmo" de The waste land, pro-

cessode queusa e abusa emseusCantos.Diante da crisemoderna, ambos os poetas volvem os olhos para o pas-sado e atualizam a história: todas as épocas são esta

época. Mas Eliot deseja efetivamente regressar e reiris-talar Cristo; Pound serve-se do passado como outra

fonna de futuro. Perdido o centro do seu mundo, lança-se a todas as aventuras.Diversamentede Eliot, é um rea-

cionário. não um conservador.Na verdade, Pound nun-ca deixou de ser norte-americanoe é o legítimo descen-dente de Whitman, ou seja, é um filho da Utopia. Porisso, valor e futuro se tomam sinônimos para ele: é va-lioso tudo aquilo que contém uma garantia de, futuro.Vale tudo aquilo que acaba de nascer e ainda brilha coma luz úmidado que estámaisalémdo presente.O Che-

King e os poemas de Amault, justamente por serem tãoantigos, são também novos: acabam de ser desenter-rados, são o desconhecido.Para Pound a história é mar-cha, não círculo. Se embarca com Odisseu não é para

regressar a 1taca,mas por sede de espaço histórico: parair além, sempre para além, para o futuro. A erudiçãode Pound é um banquete após uma expedição de con-qUista;a de Eliot, a busca de uma pauta que dê sentido

à história, fixação ao movimento. Pound acumula ascitações com um ar heróico de saqueador de túmulos;Eliot ordena-as como alguém que recolhe relíquias deum naufrágio. A obra do primeiro é urna viagem quetalveznão nos'leve a parte alguma;a de Eliot, urna bus-ca da casa ancestral.

Pound está enamorado das grandes civilizações clás-sicas ou, mais propriamente, de certos momentos que,não sem arbitrariedade, considera arquetípicos. Os Can-tos são uma atualização em termos modernos - urna

presentificação - de épocas, nomes e obras exemplares.Nosso mundo flutua sem direção; vivemos sob o impé-rio da violência, mentira, agiotagem e grosseria porque

fomos amputados do passado. Pound nos propõe umatradição: Confúcio, Malatesta, Adams, Odisseu... Averdade é que nos oferece tantas e tão diversas porqueele mesmo não tem nenhuma. Por isso, vai da poesia

provençal à chinesa, de Sófoclesa Frobenius. Sua obratoda é uma dramática busca dessa tradição que ele e seu

país perderam. Mas essa tradição não estava no pas-sado; a verdadeira tradição dos EstadosUnidos, tal cornose manifesta em Whitman, era o futuro: a livre socie-dade dos camaradas, a nova Jr.rusalémdemocrática. O

grande projeto histórico dos fundadores dessa nação foimalogrado pelos monopólios financeiros, o imperialis-

mo, o culto da ação pela ação, o ódio às idéias. Pound

se volta para a história e interroga os livros e as pe-dras das grandes civilizações. Se ele se extravia nessesgrandes cemitériosé porque lhe faz falta um guia: umatradição central. A herança puritana, conforme Eliot viumuito bem, não podia ser uma ponte: ela mesmaé ruptu-ra, dissidênciado Ocidente.Diante do desmedidode sua pátria, Pound busca uma

medida - sem se dar conta de que também ele é des-

medido.O heróidosCantosnão é o astuciosoUlisses,

sempre dono de si mesmo, nem o mestre Kung, que co-nhece o segredo da moderação, mas um ser exaltado,

tempestuoso e sarcástico, ao mesmo tempo esteta, pro-feta e clown: Pound, o poeta mascarado, encarnação do

antigo herói da tradição romântica. ~ o contráriodeurna casualidade que a obra anterior aos Cantos se am-

pare sob o título de Personae:a máscara latina. Nesselivro, que contém alguns dos mais belos poemas do sé-culo, Pound é Bertrand de Bom, Propércio, Li-Po -

96 97 

Page 9: O Arco e a Lira - Octavio Paz - PI

5/13/2018 O Arco e a Lira - Octavio Paz - PI - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/o-arco-e-a-lira-octavio-paz-pi 9/13

sem nunca deixar de ser Ezra Pound. O mesmo perso-nagem, o rosto coberto por uma sucessão não menosprodigiosa de antifaces, atravessa as páginas confusas ebrilhantes, lirismo transparente e galimatias, dos Cantos.Essa obra, como visão do mundo e da hist6ria, carecede um centro de gravidade; mas seu personagemé umafigura grave e central. :Breal, ainda que se movimentenum cenário irreal. O tema dos Cantos não é a cidadenem o bem-estar coletivo, e sim a antiga hist6ria da pai-xão, condenação e transfiguração do poeta solitário. :Bo último grande poema romântico da língua inglesa etalvez do Ocidente. A poesia de Pound não está na li-nha de Homero, VirgJ.1io,Dante e Goethe: talvez tam-pouco na de Propércio, Quevedo e Baudelaire. :npoesiaestranha, discordante e íntima ao mesmo tempo, comoa dos grandes nomes da tradição inglesa e ianque. Para

n6s, latinos, ler Pound é tão surpreendente e estimulan-te comopara ele terá sido ler Lope de Vegaou Ronsard.Os saxõessão os dissidentes do Ocidente e suas cria-

çõesmais significativassão excêntricasem relação à tra-dição central de nossa civilização,que é latino-germâni-ca. Diversamentede Pound e Eliot - dissidentesda dis-sidência,'heterodoxos em busca de uma impossível or-todoxia ~.editerrânea -, Yeats nunca se rebelou contrasua tradição. A influência de pensamentos e poéticasinusitados e estranhos não contradiz, antes sublinha, seuessencialromantismo.Mitologiairlandesa, ocultismohin-du e simbolismofrancês são influências de tonalidadese intenções semelhantes. Todas essas correntes afirmama identidade última entre o homem e a natureza; todasse proclamam herdeiras de uma tradição e de um sa-ber 'perdidos, anteriores a Cristo e a Roma; em todas,enfim, reflete-seum mesmo céu povoado de signos ques6 o poeta pode ler. A analogiaé a linguagemdo poeta.

98

Analogiaé ritmo. Yeats continua a linha de Blake. Eliotmarca o outro tempo do compasso.No primeiro triun-fam os valores rítmicos; no segundo,os conceituais.Uminventa ou ressuscita mitos, é poeta no sentido originalda palavra. O outro serve-se dos antigos mitos para re-velar a condição do homemmoderno.Concluo: a reforma poética de Pound, Eliot, Wallace

Stevens, Cummings e Marianne Moore pode ser vistacomo uma re-latinização da poesia de língua inglesa. grevelador que esses poetas fossemoriundos dos EstadosUnidos. O mesmo fenômenose produziu um pouco an-tes na América Latina: à semelhançados poetas ianques,que recordaram à poesia inglesa sua origem européia, os"modernistas" hispano-americanosrenovaram a tradiçãoeuropéia da poesia de língua espanhola, que fora que-brada ou esquecida na Espanha. A maioria dos poetas

anglo-americanos tentou .transcender a oposição entreversificaçãoacentual e regularidademétrica, ritmo e dis-curso, analogia e análise, seja pela criação de uma lin-guagempoética cosmopolita (Pound, Eliot, Stevens),sejapela americanização da vanguarda '.-européia (Cum-mings e William Carlos Williams). Os primeiros busca-ram na tradição européia um classicismo; os segundos,uma antitradição. William CarIosWilliams propôs-se areconquistar o HAmericanidiom", mito que desde a épo-ca de Whitman reaparece uma ou outra vez na literatu-

ra anglo-americana.Se a poesia de Williams é, de certomodo, um retorno a Whitman, é necessário acrescentarque se trata de um Whitman visto com os olhos da van-guarda européia. O mesmose deve dizer dos poetas quenos últimos quinze ou vinte anos seguiramo caminho deWilliams. Esse episódio paradoxal é exemplar: os poe-tas europeus, particularmente os franceses,. viram emWhitman - tanto em seu verso livre quanto em sÜa

99

 

Page 10: O Arco e a Lira - Octavio Paz - PI

5/13/2018 O Arco e a Lira - Octavio Paz - PI - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/o-arco-e-a-lira-octavio-paz-pi 10/13

exaltação do corpo - um profeta e um modelo de suarebelião contra o verso silábico regular; hoje os jovens

poetas ingleses e anglo-americanosbuscam na vanguar-da francesa (Surrealismoe Dadá) e, em grau menor, em

outras tendênctas - Expressionismo ,alemão, Futuris-mo russo e alguns poetas da América Latina e da Espa-nha - o mesmo que os europeus buscaram em Whit-

manoNo outro extremo da poesia contemporânea anglo-americana, W.H. Auden, John Berryman e Robert Lo-well também olham para a Europa,mas o que nela pro.curam - já que não uma impossívelreconciliação- é

uma origem.A origemde uma norma que, segundoeles,a própria Europa perdeu.

Depois do que foi dito, quase não é preciso se es-tender sobre a evolução da poesia francesa moderna.

Bastará mencionar alguns episódios característicos. Emprimeiro lugar, a presença do Romantismoalemão, mais

como fermento que como influência textual. Emboramuitas idéias de Baudelaire e dos simbolistas já se en-contrassem em Novalis e em outros poetas e filósofosalemães,não se trata de um empréstimoe sim de um es-tímulo. A Alemanha foi uma atmosfera espiritual. Emalguns casos, porém, houve o transplante. Nerval nãos6 traduziu e imitou Goethe e vários românticos meno-

res: uma das Quimeras ("Délfica") é diretamente iJ).spi-rada em"Mignon": Kennst du das Land, wo die Zitronen

blühn. .. A canção lírica de Goethe transforma-senumsoneto hermétic~ que é um verdadeiro templo (no sen-tido de Nerval: lugar de iniciação e de consagração). Acontribuição inglesa também foi essencial. Os alemãesderam à França uma visão do mundo e uma filosofiasimbólica;os ingleses,um mito: a imagemdo poeta comoum desterrado, em luta contra os homens e os astros.Mais t~rde Baudelaire descobriria Poe. Uma descoberta

que foi uma recriação. O infortúnio funda uma estéticana qual a l;xccção,a beleza irregular, é a verdadeira re-gra. O estranho poeta Baudelaire-Poemina, assim, as

bases éticas e metafísicasdo Ctassicismo.Em compensa-ção, excctocomoruínas ilustres ou paisagens pitorescas,a Itália e a Espanha desaparecem. A influência da Es-panha. decisiva nos séculos XVI e XVII, é inexistente

no século XIX. Lautréamont cita de passagem Zorilla(leu-o?) e Hugo proclama seu amor por nosso Roman-cero. Não d~ixa de ser singular essa indiferença, quan-do se pensa que a literatura espanhola - particularmen-te Calderón- impressionouprofundamente os românti-

cos alemãese ingleses.Suspeitoque a razão dessasatitu-des divergentes é a seguinte: enquanto os alemães e osinglesesvêem110Sarrocos espanhóisuma justificaçãode

sua própria singularidade, os poetas franceses procuram

algo que a Espanha não poderia lhes dar, mas sim a Ale-manha: um princípio poético contrário à sua tradição.

O contágio alemão, com sua ênfase na correspondên-cia entre sonho e realidade e sua insistência em ver a na-

tureza comoum livro de símbolos,não podia se circuns-crever à esfera'das idéias. Se o verbo é o duplo do cos-

mo, o campo da experiência espiritual é a linguagem.Hugo é o primeiro que 'ataca a prosódia. Ao tornar maisflexívelo alexandrino,prepara o advento do verso livre.Entretanto, devido à natureza da língua, a reforma poé-

tica não podia se reduzir a uma mudança do sistema deversificação. Essa mudança, além disso, era e é' impos-

sível. :f: possível multiplicar as cesuras no interior do

verso e praticar o en;ambement: faltarão sempre osapoios rítmicos da versificação acentu~1.O verso livre

francês distingue-se do de outros idiomas por ser umacombinaçãode diversasmedidas silábicas e não de uni-

100

(J)IJJO-...

."f1r-():I:-...

c(J)lJ

101

 

Page 11: O Arco e a Lira - Octavio Paz - PI

5/13/2018 O Arco e a Lira - Octavio Paz - PI - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/o-arco-e-a-lira-octavio-paz-pi 11/13

dades rítmicas diferentes. Por isso, Claudel recorre à as-sonância e Saint-John Perse, à rima interior e à alitera-ção. Daí que a reforma tenha consistido na intercomu-

nicação entre prosa e verso. A poesia francesa modern~nasce com a prosa romântica e seus precursores sãoRousseaue Chateaubriand.A prosa deixa de ser a servada razão e torna-se a confidente da sensibilidade. Seu

ritmo obedece às efusões do coração e aos saltos da fan-tasia. Logose converteem poema.A analogiarege o uni-verso de Aurélia; e os esboços de Aloysius Bertrand eBaudelaire desembocam na vertiginosa sucessão de vi-sões de As iluminações. A imagem arrebenta a prosacomo descrição ou narrativa. Lautréamont consuma aruína do discursoe da demonstração.Nunca foi tão com-pleta a vingança da poesia. Abria-seo caminho para li-vroscomoNadja,Le paysande Paris,Un certainPlu-

me. .. O verso se beneficia de outra maneira. O primei-ro a aceitar elementos prosaicos é Hugo; depois, commaior lucidez e sentido, Baudelaire. Não se tratava de

uma reforma'rítmica, mas da inserção de um corpo es-tranho- humor,ironia,pausareflexiva- destinado ainterrómper o trote das sífabas. O aparecimentodo pro-saísmo é um "alto", uma cesura mental; suspensão doânimo, sua função é provocar uma irregularidade. Esté-,tica da paixão, filosofia da exceção. O passo seguinte

foi a poesia popular e sobretudo o verso livre. S6 que,pelo que se disse acima, as possibilidadesdo verso livreeram limitadas. Eliot observa que nas mãos de Laforgueeste era apenas uma contração ou distorção do alexan-drino tradicional. Por um momento pareceu que não se

podia ir mais além do poema em prosa e do verso livre.O processo havia chegado a seu termo final. Mas em1897, um ano antes de sua morte, Mallarmé publica emuma revistaUn coup de dês;amaisn'abolirale hasard.

A primeira coisa que surpreende é a disposição tipo-gráfica do poema. Impressas em caracteres de diversostamanh0s e espessuras - versais, negritos, bastardi-nhos -, as palavras se reúnem ou se dispersam de umamaneira que está longe de ser arbitrária, mas que não éhabitual nem na prosa nem na poesia. Sensação de sedeparar ante um cartaz ou anúncio de propaganda. Mal-

larmécomparaessadistribuiçãoa umapartitura:La dif-férencede caracteresd'imprimerie... dicte son impor-tanceà l'emissionorale." Aomesmotempoadvertequenão ,se trata propriamente de versos - traits sonores

réguliers -, masde subdivisions prismatiquesde I'Idée.Música para o entendimento e não para o ouvido; masum entendimentoque ouve e vê com os sentidos interio-res. A idéia não é um objeto qa razão, mas uma reali-dade que o poema revela numa'série de formas fugazes,

isto é, uma ordem temporal. A idéia, sempre igual a simesma,não pode ser contempladàem sua totalidade por-que o homem é tempo, movimento perpétuo: o que ve-mos e ouvimos são as usubdivisões" da Idéia através do

prisma do poema.Nossa apreensão é parcial e sucessiva.E é, além disso, simultânea: visual (imagens suscitadaspelo texto), sonora (tipografia: recitação mental) e es-piritual (significados intuitivos, conceituais e emotivos).

Mais adiante, na mesma nota que precede o poema, o

poeta nos confia que não foi estranha à sua inspiraçãoa músicaescutadaem concertos.E para tornar mais com-

pleta sua afirmação, acrescenta que seu texto inauguraum gênero que será para o antigo verso o que é a sin-fonia em relação à música vocal.A nova forma, insinuaele, poderá servir para os temas da imaginação pura epara os do intelecto, enquanto o verso tradicional conti-nuará sendo o domínioda paixão e da fantasia. Por últi-mo, nos oferece uma observação capital: seu poema é

102 103 

Page 12: O Arco e a Lira - Octavio Paz - PI

5/13/2018 O Arco e a Lira - Octavio Paz - PI - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/o-arco-e-a-lira-octavio-paz-pi 12/13

umatentativade reuniãode porsuitesparticulii 'esetcheresà notretemps,e verslibreet le poemeen1'ose."Emboraa influênciade Mallarmétenha sido .:entral

na história da poesia moderna, dentro e fora da Fran-ça, não creio que tenham sido exploradas todas as viasque esse texto abre à poesia. Talvez nessa segunda me-tade do século, graças à invenção de instrumentos cada

vez mais perfeitos de reprodução sonora da palavra, aforma poética iniciada por Mallarmé venha a se desdo-brar em toda a sua riqueza. A poesia ocidental nasceualiada à música; depois as duas artes se separaram e,cada vez que se tentou reuni-Ias, o resultado foi a que-rela ou a absorçãoda palavra pelo som.Assim,não pen-so numa aliança entre as duas. A poesia tem sua própria

música: a palavra. E essa música, conforme Mallarmémostra, é mais vasta que a do verso e da prosa tradi-cionais. Demaneira algo sumária, mas que é testemunho

de sua lucidez, Apollinaire afirma que os dias do'livroestão contados: "La typographie termine brillamment sacamere, à l'aurore des moyens nouveaux de reproduc-

tion que sont Iecinéma et le phonographe." Não creio nofim da escritura; creio que cada vez mais o poema ten-derá a ser uma partitura. A poesia voltará a ser pala-vra pronunciada.

Un coupdedêsencerraum período,o da poesiapro-priamente simbolista, e abre outro: o da poesia contem-

porânea.DuasviaspartemdeUncoupdedês:uma vaide Appolinaire aos surrealistas; outra, de Claudel aSaint-John Perse. O ciclo ainda não se encerrou e, de

uma ou outra maneira, a poesia de Renê Char, Francis

Ponge e Yves Bonnefoyse alimenta da tensão, união eseparação, entre prosa e verso, reflexãoe canto. Apesarde sua pobreza rítmica, graças a Mallarmé a língua fran-cesadesdobrounessemeioséculoas possibilidadesvir-

tualmente contidas no Romantismo alemão. Ao mesmo

tempo, por caminho diverso do da poesia inglesa, mascom intensidade semelhante, é palayra que reflete sobresimesma,consciênciade seu canto. Enfim,a poesia fran-cesa destruiu a ilusória arquitetura da prosa e mostrouque a sintaxe se apóia num abismo. Devastaçãodo quetradicionalmente se chama de "espírito francês": aná-lise, discurso,meditaçãomoral, ironia, psicologia,e tudoo mais. A rebelião poéticamais profunda do século ope-rou-seno lugar em que o espírito discursivo se apodera-ra quase totalmente da língua, a tal ponto que esta pare-cia desprovidade poderesrítmicos.No centro de umpovoraciocinador brotou um bosque de imagens, uma nov'aordem de cavalaria, armada dos pés à cabeça com armasenvenenadas. A cem anos de distância do Romantismo

alemão, a poesia voltou a combater nas mesmasfrontei-ras. E essa rebelião foi primordialmente rebelião contra

o verso francês: contra a versificação silábica e o dis-curso poético.

O verso espanhol combina de modo mais completo queo francês e o inglês a versificaçãoacentual e a silábica.Mostra-se assim eqüidistante dos extremos desses idio-mas. redro Henríquez Drena divide o verso espanholem duas grandes correntes: a versificação regular - fun-dada em esquemasmétricos e estróficos fixos, nos quais

cada verso se compõede um determinado número de sí-labas - e a versificaçãoirregular, na qual não importatanto a medida, mas o golpe rítmico dos acentos. Assimsendo, os acentos tônicos são decisivosmesmono casodamais pura. versificação silábica e sem eles não há versoem espanhol. A liberdade rítmica se amplia em virtudedo fato de os metros espanhóis não exigirem,na realida-de, a acentuação fixa; inclusive o mais estrito, o h~n-

104 105

 

Page 13: O Arco e a Lira - Octavio Paz - PI

5/13/2018 O Arco e a Lira - Octavio Paz - PI - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/o-arco-e-a-lira-octavio-paz-pi 13/13

decassílabo,admite grande variedade de golpesrítmicos:nas sílabas quarta e oitava; na sexta; na quarta e na sé-tima; na quarta; na quinta. Acrescente-seo valor silá-bico variável das esdrúxulas e dos agudos, a dissoluçãodos ditongos, as sinalefas e demais recursos que permi-temmodificara contagemdas sílabas.Na verdade, não setrata propriamente de dois sistemas independentes, mas

deuma só corrente na qual se combateme se.separam, sealtername se fundemas ~ersificaçõessilábicase acentuaI.

A luta que a versificaçãoregular e a rítmica travamnas entranhas da língua espanhola não se expressa comooposiçãoentre a imagem e o conceito.Entre n6s a dua-!idade revela-se como tendência para a história e incli-nação pelo canto. O verso espanhol, qualquer que sejaa sua longitude, consiste numa combinação de acentos

..:.- passos de dan~ - e medidasilábica.euma unidaderia qual~éãbraça~ dois contrários: um que é dança eoutro que é narrativa linear, marcha, no sentido militarda palavra. Nosso verse.tradicional, o,octossílabo, é um

verso a cavalo, feito para trotar e pelejar, mas tambémpara dançar. A mesma dualidade se 'observanos metros

maiores, hendecassílabose alexandrino~,que serviram a

Berceoe Ercilla para narrar e a San Juan de Ia Cruz eDano para cantar. Nossosmetros oscilam entre a dança

e o galope, e nossa poesia se movimenta ~ntre dois p6:-10s: o Romancero e o Cântico espiritual. 'O verso espa-

nhol possui uma natural facilidade para contar sucessosher6icos ou cotidianos, com objetividade,precisão e so-briedade. Quando se diz que o traço distintivo de nossapoesia épica é o realismo, compreende-seque esse rea-lismo ingênuo, e portanto de natureza muito diversa domoderno, sempre intelectual e ideol6gico, coincide como caráter do ritmo espanhol? Versos viris, octossílabose alexandrinos,mostram uma irresistível vocação para a

crônica e para a narrativa. O romance nos conduz sem-

pre a narrar. Em 'pleno apogeu da "poesia pura", ar-rastado pelo ritmo do octossílabo,García Lorca retornaao aned6tico e não teme incorrer no pormenor des-critivo. Esses epis6dios e essas imagens perderam o seuvalor em combinaçõesmétricas mais irregulares. Alfon-so Reyes, ao traduzir a llíada, não tem outro remédio

senão voltar ao alexandrino. Em compensação, nossospoetas fracassam quando tentam a narrativa em versos

livres, como se nota em longas e desconjuntadas pas-sagens do Canto geralde Pablo Neruda. (Em outros ca-sos acertaplenamente,comoem "Alturas de MacchuPicchu"; esse poema não é, porém, descrição nem nar.rativa, e sim canto.) Darío fracassou também quandoquis cri~r uma espécie de hexâmetro para suas tentati-vas épicas. Não deixa de ser estranha essa característica

modal quando se pensa que nossa poesia épica medievalé irregular e que a versificação silábica inicia-secom alírica, no século XV. Seja como for, os acentos tônicos

exprimemnosso amor pela galhardia e pela elegância e,mais profundamente, pela fúria dançante. Os acentosespanh6is nos levam a concebero homem como um serextremoso e ao mesmo tempo como lugar de encontro

dos mundos inferiores e superiores. Agudos, graves, es-drúxulos, bisesdrúxulos - pancadas sobre o couro do

tambor, palmas, gritos, clarins: a poesia de língua ~s-

panhola é dança festiva e fúnebre, dança erótica e vôomístico.Quase todos os nossospoemas, inclusive osmís-

ticos, podem ser cantados e dançados, como dizem quedançavam os seus os fil6sofos pré-socráticos.Essa duaIidade explica as antíteses e contrastes fre-

qüentes em nossa poesia. Se o barroquismo é jogo dinâ-mico, cIaro-escuro,oposiçãoviolenta entre isto e aquilo,~omos barrocospor fatalidadedo idioma.Na própria

106 W7