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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA FACULDADE DE LETRAS BACHARELADO EM LETRAS: LATIM Isabella Brandão Mendes Martins O ARQUIVO DE EXEMPLOS DE LINGUAGEM NO DE CONSTRUCTIONE DE PRISCIANO: UM ESTUDO SOBRE A REPRESENTATIVIDADE LINGUÍSTICA DOS EXEMPLOS LITERÁRIOS Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à disciplina de TCC em Letras – Bacharelado em Latim da Universidade Federal de Juiz de Fora, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel. Orientador: Prof. Dr. Fábio da Silva Fortes JUIZ DE FORA 2014

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

    FACULDADE DE LETRAS

    BACHARELADO EM LETRAS: LATIM

    Isabella Brando Mendes Martins

    O ARQUIVO DE EXEMPLOS DE LINGUAGEM NO

    DE CONSTRUCTIONE DE PRISCIANO:

    UM ESTUDO SOBRE A REPRESENTATIVIDADE LINGUSTICA DOS

    EXEMPLOS LITERRIOS

    Trabalho de Concluso de Curso apresentado disciplina de

    TCC em Letras Bacharelado em Latim da Universidade

    Federal de Juiz de Fora, como requisito parcial para obteno do

    grau de Bacharel.

    Orientador: Prof. Dr. Fbio da Silva Fortes

    JUIZ DE FORA

    2014

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    FICHA CATALOGRFICA

  • 3

    ISABELLA BRANDO MENDES MARTINS

    O ARQUIVO DE EXEMPLOS DE LINGUAGEM NO

    DE CONSTRUCTIONE DE PRISCIANO:

    UM ESTUDO SOBRE A REPRESENTATIVIDADE LINGUSTICA NOS

    EXEMPLOS LITERRIOS

    Aprovado em:

    BANCA EXAMINADORA

    ____________________________________________

    Prof. Dr. Fbio da Silva Fortes - Orientador

    Universidade Federal de Juiz de Fora

    ____________________________________________

    Prof. Dra. Charlene Martins Miotti

    Universidade Federal de Juiz de Fora

    ____________________________________________

    Prof. Dra. Fernanda Cunha Sousa

    Universidade Federal de Juiz de Fora

  • 4

    AGRADECIMENTOS:

    Agradeo, em primeiro lugar, ao meu professor e orientador Fbio Fortes por ter

    me orientado em dois anos de pesquisa, que deram origem a este trabalho, e tambm por

    ter me ensinado tantas coisas sobre os estudos clssicos e me motivado a seguir

    pesquisando nesta rea que to grandiosa e encantadora. Sem a sua orientao este

    trabalho no teria sido possvel.

    Agradeo tambm a todos os meus professores de latim da Universidade Federal

    de Juiz de Fora que, ao longo destes anos, me ajudaram a construir um conhecimento

    slido pelo latim, grego e os estudos clssicos de modo geral e a me tornar uma pessoa

    mais crtica, no apenas do mundo antigo, mas tambm do nosso presente. Em especial,

    s professoras e doutoras Charlene Miotti e Fernanda Sousa por terem aceitado

    participar da banca examinadora.

    E, por ltimo, quero agradecer a minha famlia por ter me apoiado durante toda a

    minha graduao, sem eles nada disso teria sido possvel. Tambm aos meus amigos que

    sempre estiveram ao meu lado e me ajudaram bastante, seja fazendo trabalhos juntos,

    seja em conversas pela cantina ou me ajudando com tradues e dvidas. Obrigada por

    estarem sempre comigo e me apoiarem.

    Dedico este trabalho a todos vocs que estiveram sempre a meu lado e me

    ajudaram de alguma forma.

  • 5

    RESUMO:

    O intento deste trabalho a anlise da segunda parte do livro XVIII

    das Institutiones grammaticae, de Prisciano de Cesareia (sc. VI).

    Nesta parte da sua gramtica, o autor comps um arquivo com

    exemplos de citaes extradas de escritores gregos e latinos. Neste

    trabalho, reunimos todas essas citaes para entender sua funo no

    texto do autor, assim como delimitar um cnon literrio

    representativo de sua gramtica, considerando os autores

    selecionados pelo autor latino para compor seus exemplos.

    Palavras-chave: Institutiones grammaticae, Prisciano, exemplos,

    gramtica antiga.

  • 6

    ABSTRACT

    The purpose of this study is the analysis of the second part of

    Book XVIII from Institutiones grammaticae, by Priscian

    Caesarensis (c. VI a.D).. In this part of his grammar, Priscianus

    composed an archive with a lot of examples of quotations

    extracted from Greek and Latin authors. This study aimed at

    collecting all those quotations, in order to understand their

    function in the grammarians text, as well as delimitating a

    literary canon, considering the authors selected by the Latin

    grammarian to compose his examples

    Keywords: Institutiones grammaticae, Priscian, examples, ancient

    grammar

  • 7

    SUMRIO

    INTRODUO, p. 8

    CAP. 1. Prisciano e seu contexto histrico, p. 10

    CAP. 2. O arquivo de exemplos nas Institutiones Grammaticae de Prisciano

    2.1.. Uma reflexo sobre a construo de um modelo de identidade lingustica p.15

    2.2. As citaes latinas e a consolidao do cnon latino p.23

    2.3. O grego e o latim na gramtica: algumas comparaes p.26

    CONCLUSO p. 29

    REFERNCIAS BIBLIOGRAFICAS p. 30

  • 8

    Introduo

    As Institutiones grammaticae de Prisciano de Cesareia (sc. VI d.C.) so por

    muitos estudiosos, como Weedwood, consideradas o mais extenso tratado descritivo do

    latim, um conjunto monumental, em dezoito livros, que perfazem, nas edies

    modernas, mais de mil pginas impressas. Escrita em Constantinopla, a obra de

    Prisciano teve grande repercusso tambm no Ocidente Latino, onde se tornou uma obra

    de referncia gramatical ao longo da Idade Mdia (FORTES, 2012, p. 182). No entanto,

    sua poca, a obra destinava-se, provavelmente, a falantes adultos, da Universidade de

    Constantinopla1, onde Prisciano lecionava a, provavelmente, falantes nativos de grego

    que viviam e situaes de bilinguismo. por esse motivo que a obra se caracteriza por

    uma abordagem extensiva e, em muitos casos, comparada da lngua latina,

    estabelecendo relaes gramaticais com a lngua grega e evocando gramticos e autores

    gregos como referncia.

    Neste estudo, examinamos, especificamente, a segunda parte do livro XVIII das

    Institutiones Grammaticae, conhecido por De constructione (e, doravante, assim

    chamado por ns). Em nossa anlise utilizamos um corpus formado pela edio de

    Martin Hertz, constante dos Grammatici Latini, de H. Keil (1885 [1961]).

    Nesta parte, o autor comps um arquivo com inmeros exemplos extrados de

    autores gregos e latinos. O nosso estudo reuniu todas as citaes dos autores latinos,

    para que pudessem ser analisadas, com a finalidade de tentar compreender o papel que

    tais citaes desempenham no texto de Prisciano, em relao com o seu projeto

    gramatical, delineando, especificamente, o cnon literrio que tais citaes consagram

    na obra e as consequncias desse cnon para a estipulao de uma norma lingustica

    identitria.

    Com efeito, partindo da premissa de que as citaes literrias em um texto

    gramatical, mais que exemplificar ocorrncias de fenmenos lingusticos, representam

    tambm uma seleo de um corpus de autores representativos de determinada

    identidade lingustica e cultural, destacamos todas as citaes literrias gregas e latinas

    1 No aludimos aqui ao conceito moderno de universidade, que, em geral, pode ser considerado um

    desenvolvimento ocidental, datado da passagem da Idade Mdia para a Moderna. Antes, trata-se de instituio, cuja fundao se credita a Teodsio II, em 425, que oferecia instruo do tipo universitrio (Cameron, 2009, p. 140; Biville, 2008, p. 39; Oikonomides, 1999, p. 49), que tinha como escopo formar a elite intelectual de onde eram egressos os funcionrios imperiais. No se estranha a permanncia de uma ctedra de latim em uma regio onde jamais se deixou de ter o grego como a mais importante lngua falada, mas onde, precisamente, sob Justiniano, se elaborou o mais importante corpus jurdico da poca, o corpus iuris ciuilis.

  • 9

    do nosso corpus, organizando-as em um catlogo de citaes quantificando-as para

    levantar os dados numricos daqueles autores e obras de maior recorrncia no De

    constructione, para percebermos como a disperso dessas ocorrncias por autores,

    gneros e pocas permite-nos delinear um conceito de lngua prestigiado por Prisciano.

    Para fazermos o nosso estudo, separamos todas as citaes para que possamos

    melhor analis-las de forma quantitativa. Criamos um arquivo com cada citao, a obra

    e o autor citados, recorrendo tambm ao banco de dados disponveis no programa

    Diogenes, para verificarmos se as citaes presentes na obra de Prisciano correspondem

    s edies crticas dos respectivos textos. Com isso, verificamos que Prisciano, nesta

    parte de sua gramtica, no forja nenhuma citao - as citaes conferem com as

    edies. A partir de nossa anlise, foram elaborados os grficos que sero apresentados

    ao longo do nosso trabalho.

    Nosso objetivo era fazer um levantamento dos autores e obras escolhidos pelo

    gramtico para ento tentar entender a hierarquia de cada autor citado por ele. Alm

    disso, tentar entender a razo deste arquivo em sua obra. O estudo deste conjunto de

    citaes ao final da extensa obra gramatical de Prisciano evidenciou muitas questes,

    que iremos trabalhar ao longo do nosso trabalho, alm de traarmos o corpus das

    citaes gregas e latinas, e encontrar o cnon literrio que o gramtico constri,

    analisamos e comparamos as citaes entre si. Pudemos perceber ento que o gramtico

    trata de forma diversa as citaes de autores gregos e latinos. Nosso estudo nos revelou

    que Prisciano um gramtico muito mais original do que se pensava. Ele no apenas

    copia o gramtico Apolnio Dscolo (FORTES, 2012, p.169), mas tambm cria sua

    prpria forma de tratar as culturas grega e latina em sua gramtica, das quais as citaes

    literrias presentes na obra so uma pequena, mas relevante, amostra.

  • 10

    1 Prisciano e seu contexto histrico

    Prisciano de Cesareia foi um gramtico, professor na Universidade de

    Constantinopla, onde lecionava latim. Foi autor de uma obra monumental, com grande

    repercusso no Imprio Romano, tanto do ocidente, como do oriente. Porm, so

    poucos os relatos sobre sua vida A hiptese mais plausvel a de que ele tenha vivido

    em Constantinopla no final do sculo V e incio do VI. Para justificar esta hiptese,

    toma-se, frequentemente, um panegrico no qual Prisciano se dirigia ao imperador

    Anastcio I (491-518), intitulado De laudi Anastasii imperatoris. Tambm existe um

    relato annimo sobre sua vida, a Vita Bernensis, presente no comentrio ao livro XVIII

    de sua obra Institutiones Grammaticae, o qual relata que Prisciano teria vindo de

    Cesareia Mauritnia, colnia ao norte da frica, submetida ao Imprio Romano, como

    era toda a frica conhecida. Podemos assim concluir, como apresenta Ballaira:

    Isso significa que P. vinha de um ambiente cultural de lngua latina. Se

    excluirmos que ele fosse originrio de Cesareia Augusta, ou seja, de

    Saragoa na Espanha, devemos admitir, seguindo a tradio aceita na

    vida medieval, que fosse um romano de frica e que vinha de Cesareia

    de Mauritania.2

    (Ballaira, 1989, p. 19- traduo nossa)

    Em favor desta hiptese, sabe-se que as colnias africanas sofreram profundo

    processo de romanizao, e Prisciano no teria sido o nico, nem o primeiro, gramtico

    oriundo dessa regio. (FORTES, 2012. p 175), dali surgiram importantes gramticos

    latinos, como: Donato, Carsio e Mrio Vitorino. Tambm se encontra no prefcio

    edio de Keil (GL, II ), escrito por seu editor, Martin Hertz (1981), a informao de

    que Prisciano fora citado por apenas um de seus contemporneos conhecidos, o

    gramtico Cassiodoro, na introduo de sua obra intitulada De orthographia: do

    2 Questo significa che P. veniva da um ambiente culturale di lngua latina. Se escludiamo che

    egli fosse originrio di Caesarea Augusta, ossia di Saragozza in Spagna, dobbiamo ammettere, seguendo

    la tradizione accolta nella vita medievale, che fosse um Romano dAfrica e che provenisse da Cesarea di

    Mauritania. (Ballaira, 1989, p. 19)

  • 11

    Prisciano gramtico, que em nossa poca foi mestre em Constantinopla. 3

    No se sabe ao certo o que levou Prisciano a mudar-se da frica para a ento

    capital do Imprio. Autores, como Robins, afirmam que o gramtico teria sido

    convidado a lecionar na Universidade de Constantinopla. Este fato crucial para

    compreendermos e analisarmos uma questo fundamental em sua obra: seu trabalho era

    direcionado para estudantes mais avanados, por isso as Institutiones grammaticae so

    uma obra to extensa e complexa, que trata de assuntos gramaticais de maneira bem

    mais profunda, se comparada a outras gramticas latinas, como a de Donato, como por

    exemplo, ao tratar dos verbos.

    Conforme nos ensina Robins (1993), Constantinopla, poca de Prisciano, ainda

    tinha o status de ser a Nova Roma, fundada por Constantino no sculo IV:

    Quando Prisciano estava trabalhando na cidade, por volta de 500

    d. C., ela ainda era muito uma continuao de Roma, a Nova

    Roma, como seu fundador Constantino a tinha chamado, e no

    governo manteve muito da tradio romana. (...) Os escritos

    gramaticais de Prisciano apontam claramente para a necessidade

    de pessoas educadas e administradores experientes, os quais eram

    falantes nativos de grego, para se aprender latim e usar a lngua

    latina pelo menos em datas oficiais.4

    (Robins, 1993, p. 87- traduo nossa)

    Outro motivo pelo qual o gramtico teria se mudado para Constantinopla o de

    que, em meados do sculo V, o norte da frica sofria fortes modificaes devido ao

    declnio na organizao social, por causa da entrada e acomodao de povos brbaros.

    Dessa forma, houve um conflito cultural que fez com que muitos romanos se

    deslocassem dali. Este fato poderia ter levado Prisciano a se exilar, alm de existirem

    tambm conflitos religiosos, como menciona Fortes (2012, p. 177).

    Embora possa se assumir a Cesareia Mauritnia como a ptria de Prisciano, h

    estudos, porm, que evidenciam a hiptese de Prisciano ser oriundo de outras Cesareias,

    3 Cf. ex Prisciano grammatico, qui nostro tempore Constantinopoli Romae doctor fuit.

    4 When Priscian was working in the city, around 500 A. D., it was still very much a continuation of

    Rome, the Nem Rome as its founder Constantine had called it, and in governnent retained many of the

    traditional Roman (...) Pricians grammatical writings clearly point to the need for educated person and

    senior administrators who were native speakery of Greek to learn Latin and to use Latin at least in their

    official daties. (Robins, 1993, p. 87)

  • 12

    tal como a Cesareia Palestina, conforme comenta Fortes (2012):

    A Mauritnia, por sua vez, no parecia ser um grande centro de difuso

    dos estudos literrios, embora as colnias africanas como um todo em

    especial Cartago tivessem absorvido fortemente a cultura latina havia

    sculos. A favor da Cesareia Palestina contam dois aspectos: primeiro

    que, poca de Justiniano (518-565), perodo, portanto, de atividade

    profissional do gramtico, existiu uma renomada escola de direito

    romano, de modo que, em Constantinopla, podia-se fazer referncia a

    essa cidade sem qualquer epteto distintivo. O segunda aspecto levantado

    pelo estudioso a questo lingustica, j que a leitura da obra de

    Prisciano levaria a se acreditar que o autor fosse mais familiar com as

    lnguas orientais tais como o aramaico, o hebraico e o srio, do que o teria

    sido, de fato, com o pnico.

    (Fortes, 2012, p. 174 175)

    Diferentemente do norte da frica, Constantinopla, por volta do ano 500 d.C,

    era considerada a Nova Roma, assim nomeada pelo seu fundador, o imperador

    Constantino. A capital tinha uma relao de continuidade com Roma, e no de ruptura.

    Constantinopla se tornara a guardi da civilizao clssica greco-romana, por isso a

    profuso de gneros enciclopdicos, comentrios, gramticas, dicionrios e livros

    didticos, como nos relata Robins (1993, p. 30 e 31).

    Com o enfraquecimento do lado ocidental, a capital do oriente ficou responsvel

    por: garantir a sobrevivncia do antigo imprio romano, a defesa e a propagao do

    Cristianismo e a preservao das artes e culturas antigas gregas e latinas.

    neste contexto que Prisciano se tornou professor de latim na Universidade de

    Constantinopla e escreveu suas obras. A universidade criada na poca de Teodsio I

    (379 395 d.C) formava a elite intelectual da poca. A regio tinha o grego como a

    mais importante lngua falada, porm, na capital, o latim ainda era falado e escrito na

    alta administrao romana e na universidade. Por isso, as disciplinas de gramtica

    continuavam a ser importantes para a formao do cidado culto. Cameron (1993, p.

    152) ressalta que em Constantinopla as cadeiras de ensino eram Eloquncia Latina,

    dividida em oratria e gramtica, a Facundia Grega dividida em sofistas e gramticos.

    As obras mais importantes de Prisciano so: De figuris numerorum (Sobre a

  • 13

    representao figurada dos nmeros), De metris fabularum Terentii (Sobre a mtrica

    das peas de Terncio), Praeexercitamina (Exerccios preliminares), as Institutiones

    grammaticae (em dezoito livros) e dois pequenos tratados pedaggicos: Institutio de

    nomine et pronomine et uerbo (Princpios sobre o nome, o pronome e o verbo) e as

    Partitiones duodecim uersuum Aeneidos principalium (Anlise mtrica dos primeiros

    versos de cada canto da Eneida), sendo que as Institutiones a grande obra do

    gramtico, atravs da qual ele recebe sua fama.

    A obra composta por informaes do tipo Schulgrammatik e do tipo regulae,

    que constroem uma descrio praticamente completa, reforada com um grande nmero

    de citaes de autores literrios. As informaes do tipo Schulgrammatik so

    caracterizadas pela sua forma sistemtica, definem cada estrutura e suas propriedades,

    as de tipo regulae so originalmente produzidas para mostrar os mecanismos de

    analogia, possuem muitos paradigmas e so menos sistematizadas, como afirma

    Weedwood (2002, p. 55 e 56).

    As Institutiones grammaticae so formadas por 18 livros. O livro I descreve os

    sons da lngua (uox), as letras que representam os sons (litterae) e o papel que eles

    desempenham nas declinaes e na composio das palavras; O livro II apresenta

    alguns conceitos preliminares, como o de slaba (syllaba), o de palavra (dictio), o de

    orao (oratio) e o de nome (nomen); o livro III apresenta os adjetivos, mais

    especificamente, os comparativos (comparatiuum) e superlativos (superlatiuum), e

    tambm os diminutivos (diminutiuum); os livros IV e V abordam os nomes, que para o

    gramtico so classificados como denominativos (denominatiuum nomen), tambm

    apresenta o particpio (participium), as categorias flexionais de gnero (genus), nmero

    (numerus) e caso (casus); o livro VI comenta as particularidades do caso nominativo

    (nominatiuus casus) e o livro VII apresenta os demais casos; os livros VIII, IX, X e XI

    trabalham a categoria do verbo (uerbum), so discutidas, respectivamente, as

    propriedades gerais do verbo, os princpios que regem as conjugaes, as

    particularidades do pretrito perfeito e se aprofunda a discusso sobre o particpio; os

    livros XII e XIII apresentam os pronomes (pronomina); o XIV apresenta as preposies

    (praepositiones); o livro XV trabalha os advrbios (aduerbia) e interjeies

    (interiectiones); o livro XI aborda conjunes (coniunctiones); por fim, os livros XVII e

    XVIII, so conhecidos como Priscianus minor, que tratam da construo da sintaxe, e

    por isso recebem o ttulo de De constructione.

    A nossa pesquisa se concentra na ltima seo do livro XVIII, que perfaz cerca

  • 14

    de 100 pginas na edio de Keil. Nessa seo, o gramtico faz inmeras citaes a

    autores gregos e latinos e praticamente no existem explicaes gramaticais. Este fato

    nos chamou a ateno, pois no encontramos em nenhum gramtico antigo, a que

    tivemos conhecimento, uma reunio de um nmero elevado de exemplos, praticamente

    citados em sequncia e, aparentemente, deslocado das explicaes gramaticais. De fato,

    a parte final parece no ter muita relao com o resto da obra, funciona como um

    arquivo de exemplos, que totaliza 763 citaes, sendo 484 de autores latinos e 280 de

    autores gregos. A difuso dos manuscritos da obra de Prisciano gigantesca, existem

    mais de mil manuscritos localizados,sob a identificao das Institutiones. Isso se deve

    pela repercusso que o gramtico teve ao longo da Idade Mdia. Ate o sculo IX a obra

    era quase desconhecida pela latinidade ocidental, porm, a partir de 800 ela passou a ser

    foco de interesse dos estudiosos da poca, como nos explica Weedwood (2002, p. 53 e

    54). Por consequncia do movimento cultural da Renascena Carolngia, a obra se

    tornou objeto de estudo e anlise minuciosa. no prximo captulo, apresentamos

    algumas consideraes analticas sobre o arquivo de exemplos contido no livro XVIII.

    Esperamos, assim, contribuir um pouco mais para a compreenso da obra desse

    gramtico.

    2 O arquivo de exemplos nas Institutiones grammaticae de Prisciano

  • 15

    2.1 Uma reflexo sobre a construo de um modelo de identidade lingustica

    Nas ltimas cem pginas do Livro XVIII das Institutiones grammaticae,

    encontramos, quase que exclusivamente, citaes literrias consecutivas, tanto de

    autores latinos como gregos. Diferentemente das citaes em outras partes da obra,

    nesta seo, tais citaes no so aparentemente motivadas por nenhum tpico

    gramatical, ou seja, enquanto nos outros livros as citaes ilustram determinados

    fenmenos gramaticais, devidamente explicados previamente, nesta parte, elas esto

    coligidas sem um tratamento gramatical especfico, o que nos faz referir a elas como um

    arquivo de exemplos. Os exemplos so um construto, formas de linguagem utilizadas

    para desenvolver uma representao da lngua, diferente de um fragmento ou um fato da

    lngua, que simplesmente um dado (Colombat, 2007, p. 71 e 72). Os exemplos so

    fundamentais para a elaborao de uma gramtica. Pode-se imaginar uma gramtica

    construda apenas de exemplos, porm uma gramtica sem exemplos parece impossvel.

    (Colombat, 2007, p. 72) fato que nos indica a importncia dos exempla como ndices de

    referncia lingustica fundamentais em uma obra gramatical.

    Nos grficos e tabelas abaixo, apresentaremos os autores gregos e latinos citados

    em nosso corpus, distinguindo-os, em seguida, conforme a poca em que tais textos

    foram produzidos5:

    5 Para definio dos perodos de cada autor, utilizamo-nos dos manuais de literatura latina: Cardoso

    (2003), Conte (1999), Bowra (1950). Entendemos que as classificaes referentes aos perodos histricos

    so apenas uma conveno que nos auxilia para termos um referencial em nossa pesquisa, no

    informaes de carter absoluto. Uma anlise historiogrfica mais elaborada seria necessria.

  • 16

    Grfico 1: As citaes latinas

    Grfico 2: Relao entre o nmero total de citaes e o perodo a qual pertencem

    Autor: Nmero de citaes: Perodo:

    Ccero 42 Republicano

    Estcio 5 Imperial

    Virgilio 48%

    Lucano 6%

    Terncio 23%

    Salstio 7%

    Ccero 9%

    Estcio 1%

    Horcio 2%

    Tito Lvio 0%

    Juvenal 3%

    Prsio 1%

    Solino 0%

    Citaes Latinas

    Imprio 62%

    Repblica 38%

    0%

    0%

  • 17

    Horcio 10 Imperial

    Juvenal 14 Imperial

    Lucano 28 Imperial

    Prsio 5 Imperial

    Salstio 34 Republicano

    Terncio 110 Republicano

    Tito Lvio 3 Imperial

    Virglio 231 Imperial

    Tabela 1: Autores latinos/ocorrncia

    Observando as citaes de perto, calculamos um total de 484 citaes, sendo os

    autores citados: Virglio (70 a.C. 19 a.C.), Lucano (39 d.C. 65 d.C.), Terncio (185

    159 a.C.), Salstio (87 35 a.C.), Estcio (40? 96 d), Tito Lvio (59 a.C. 17 d.C.),

    Juvenal (60 d.C - 128 d.C), Prsio (34 d C.- 62 d.C), Solino (sculo III - IV), Ccero

    (106 a.C. 43 a.C.) e Horcio (65 a.C. 8 a.C.), recobrindo, portanto, autores do sculo

    II a.C ao sculo III d.C.

    Pelo nmero elevado de citaes, pensamos, inicialmente, que Prisciano teria

    citado diversos autores, porm, como pudemos perceber, ele cita apenas onze autores

    latinos, o que representa um nmero bastante restrito, se compararmos com o nmero de

    autores literrios latinos disponveis e conhecidos sua poca. Outro fator importante

    que percebemos a relao entre os perodos histricos e os gneros selecionados pelo

    gramtico. Os textos em prosa, em sua maioria, so de autores do perodo republicano, e

    os textos em verso, de autores imperiais, com um predomnio numrico das citaes de

    autores imperiais, como podemos ver no grfico 1. Em todo caso, preciso salientar que

    todos os autores citados distam de, pelo menos, 4 sculos do perodo em que Prisciano

    desenvolveu a sua obra, o que nos leva a perceber que, de fato, o gramtico no estava

    ocupado com a variedade contempornea de sua lngua, mas com um registro escrito,

    consolidado pela tradio literria, que, por esse motivo, definia aquele modelo de

    lngua que os antigos chamavam de Latinitas (Desbordes, 1997).

    Abaixo, mostramos os grficos correspondentes a levantamento quantitativo de

    citaes gregas e o grfico que rene todas as citaes (gregas e latinas). Sobre a relao

    entre citaes gregas e latinas, no entanto, para a formao de diferentes cnones,

    comentaremos nos itens 2.2 e 2.3.

  • 18

    Grfico 3: Citaes gregas e latinas

    18

    25

    55

    19

    4 7 49

    8 5

    5

    15

    16

    19

    2 7

    1

    1 1

    1 2

    1

    2

    2 2

    1

    1

    1

    1 1

    1

    1

    1

    Citaes gregas

    Xenofonte

    Iscrates

    Demstenes

    Homero

    Eurpedes

    Esquines

    Plato

    Menandro

    Sfocles

    Cratinos

    Herdoto

    Aristfanes

    Tucdides

    Eupolis

    Lsias

    Hiprides

    Phroenichus

    Andcides

    Alexis

    Pherecrates

    Hiprides

    Iseu

    Aristmene

    Teopompo

    Licurgo

    Frnico

  • 19

    Grfico 4: Perodo das citaes gregas

    Tabela com os autores gregos mais citados:

    Autor: Nmero de citaes: Perodo:

    Aristfanes 16 Clssico

    Demstenes 55 Clssico

    Herdoto 15 Clssico

    Homero 19 Homrico

    Iscrates 25 Clssico

    Plato 49 Clssico

    Tucdides 19 Clssico

    Xenofonte 18 Clssico

    Clssico 91%

    Homrico 9%

    Perodo das citaes gregas

  • 20

    Grfico 5: Citaes latinas e gregas

    No corpus analisado, as citaes so apresentadas de maneira direta, uma em

    seguida da outra, quase no existem explicaes gramaticais entre elas, Prisciano faz

    uma lista de citaes latinas e intercala com as citaes gregas, como podemos observar

    18 25

    55

    19 4 7

    49

    8

    5 5

    15

    16

    19

    2 7

    1

    1

    1

    1 2

    1

    2

    2

    2

    1

    1

    1

    1

    2

    1

    231

    1

    28

    110

    34

    42

    5 10

    3

    14 5

    2

    Citaes latinas e gregas

    Xenofonte Iscrates Demstenes Homero Eurpedes Esquines

    Plato Menandro Sfocles Cratinos Herdoto Aristfanes

    Tucdides Eupolis Lsias Hiprides Phroenichus Andcides

    Alexis Pherecrates Hiprides Iseu Aristmene Teopompo

    Licurgo Frnico Dinarchus Theopompus Anthiphon Deinarchus

    Virglio Aeschines Lucano Terncio Salstio Ccero

    Estcio Horcio Tito Lvio Juvenal Prsio Solino

  • 21

    nos exemplos extrados do nosso corpus:

    Lucanus |in quarto: |quo tempore primas /|impedit ad noctem

    iam lux extrema tenebras. sentio illam rem; similiter illi.

    Virgilius in X: |hoc patris Anchisae manes, hoc sentit Iulus.

    (Prisciano, De const., XVIII, 278 279)

    Lucano, no livro quarto: o qual com o tempo, desde este

    momento, a luz extrema impede at noite as primeiras trevas.

    Sinto aquela coisa; similar quele. Virglio no dcimo livro: isto,

    os espritos do pai de Anquises, isto, sente Jlio.

    (Prisciano, De const. XVIII, 278 279 traduo nossa)

    |Latini curo illam rem, ut Virgilius georgicon I: |inuidet atque

    hominum queritur curare

    triumphos |et primo:

    | .

    (Prisciano, De const., XVIII,. 278)

    Trato aquela matria do latim, como em Virglio, nas Gergicas

    livro I: e lamenta que tu te preocupes com os triunfos humanos. E

    Xenofonte nos Memorveis livro I: Mas ento, com efeito

    explicava essas coisas preocupando-os e confundindo-os.

    (Prisciano, De const., XVIII,. 278- traduo nossa)

    Como se observa, a partir dessas citaes, Prisciano insere o nome e a obra da

    qual extrai a citao e a apresenta, sem fazer grandes comentrios, ou explicaes, seja

    de ordem gramatical, estilstica ou literria. Dada a extenso dessa parte da obra (que

    perfaz as ltimas 100 pginas, somos levados a pensar que se trata, verdadeiramente, de

    um arquivo de recursos de linguagem variados a que poderia lanar mo o professor

    (haja vista que a obra se destinava ao seu emprego escolar), ou mesmo o aluno. Esse

    arquivo de exemplos prestaria a ser, no mbito da gramtica de Prisciano, no

    somente um corolrio de evidncias empricas, aps longas e complexas e, por vezes,

    abstratas, explicaes em torno da sintaxe do latim (desenvolvidas nos dois livros finais

  • 22

    da obra, o livro XVII e XVIII), mas, tambm, uma amostra significativa de ocorrncias

    gramaticais e atestadas do latim. Se comparadas com as citaes gregas, tambm

    abundantes, esse arquivo de exemplos permitiria ao estudante estabelecer relaes

    interessantes entre o grego e o latim.

    Como podemos explicar, no entanto, que esse arquivo de exemplos esteja

    confinado na parte final da obra do gramtico, configurando, de fato, uma seo sem

    precedentes na tradio dos gramticos latinos? Colombat (2007, p.72) ajuda-nos a

    lanar luz sobre essa questo, ao evidenciar que o acmulo de exemplos, nos textos

    gramaticais latinos, poderia significar a apresentao de uma viso da lngua:

    Uma outra questo que se pode colocar saber como utilizar o

    exemplo para dar uma certa viso da lngua. Trata-se de uma

    viso parcial, de um apanhado, de uma amostra da lngua ou de

    uma viso completa? Seremos tentados a crer que h uma

    correlao estreita entre: viso parcial da lngua = poucos

    exemplos vs. viso completa da lngua = muitos exemplos. De

    fato, no h variao correlativa entre os dois, na medida em que

    ou a pertinncia do exemplo pode evitar a multiplicidade de

    atestaes, ou sua seleo permite uma descrio o mais

    econmica possvel.

    (Colombat, 2007, p. 72)6

    A partir da leitura que fazemos deste corpus, e, levando em considerao o

    dilogo que o texto de Prisciano faz com a tradio gramatical latina, fizemos algumas

    observaes. Diante de suas particularidades histricas (produzida em Constantinopla,

    para falantes de grego, no sculo VI...), pensamos que o arquivo de exempla de

    Prisciano parece oferecer ao seu pblico, que, provavelmente, no tinha o latim como

    sua lngua materna, um acumulado de exemplos. Estrategicamente dispostos no final da

    sua vasta obra (nas ltimas cem pginas de um texto cujas edies modernas

    6 Une autre question quon peut se poser est de savoir comment utiliser lexemple pour donner une

    certaine vision de la langue. Sagit-il dune vision partielle, dum aperu, dum chantillion de la langue, ou dune vision complete? On serait tent de croire quil y a une correlation troite entre: vision partielle de la langue = peu dexemples vs vision complete de la langue = beaucoup dexemples. En fait il ny a pas de variation corrlative entre les deux, dans la mesure o la pertinence de lexemple peut viter la multiplication des attestations, o sa slection permet une description aussi conomique que possible.

  • 23

    ultrapassam o nmero de 1000 pginas), que representasse um repertrio significativo

    se no exaustivo de ocorrncias lingusticas da lngua, segundo, porm, um nmero

    limitado de gneros e autores, consagrados pela tradio e por ela legitimados como

    representantes da Latinitas. Esta era, sem dvida, uma maneira de se conservar as

    formas do latim, mas no todo o latim ou qualquer latim, mas aquele representado pelos

    relativamente poucos autores citados. Dessa forma, o gramtico, com uma enorme

    quantidade de exemplos, parece levar exausto aquele autores e conservar o latim

    presente neles segundo determinada norma a Latinitas.

    O ltimo livro poderia, assim, ser uma espcie de vitrine com um enorme

    arquivo exposto para que se pudessem acessar formas modelares de uma lngua j no

    falada naquela poca, por autores cujos textos, provavelmente, fossem difceis para os

    leitores mdios. Entendemos assim que, trata-se de reunir, arquivar e expor uma

    totalidade dessa lngua dentro de um repertrio limitado de autores previamente

    escolhidos segundo um cnon j existente.

    2.2 As citaes latinas e a consolidao do cnon latino

    Quando observamos o grfico das citaes latinas (grfico 1), fica clara a

    predominncia de Terncio e Virglio. Para tentar compreender o motivo da relevncia

    destes dois autores na obra de Prisciano, preciso entender que ambos os autores eram

    considerados, desde a Antiguidade Clssica, como os modelos da Latinitas, como

    percebemos na passagem de Ccero, da Epstula a tico, em que ele se refere a

    Terncio, opondo-o a Ceclio, como o grande representante do ideal de linguagem

    representado pela Latinitas, tambm encontramos em Horrio esse ideal de linguagem

    como vemos na citao abaixo:

    Quid autem Caecilio Plautoque dabit Romanus, ademptum

    Vergilio Varioque? Ego cur, adquirere pauca si possum, inuideor,

    cum lingua Catonis et Enni sermonem patrium ditauerit et noua

    rerum nomina protulerit? Licuit semperque licebit signatum

    praesente nota producere nomen.

    Por que razo, porm, o romano conceder a Ceclio e Plauto, o

    que nega a Virglio e Vrio? Por que sou visto com maus olhos,

  • 24

    se posso fazer algumas aquisies, quando a lngua de Cato e

    nio enriqueceu o idioma ptrio e divulgou novos nomes nas

    coisas? Foi lcito e sempre ser lcito pr em circulao um

    vocbulo marcado com o selo do presente.

    (Horcio. Ep. ad Pisones, v. 52-59, traduo de Dante Tringale)7

    Do mesmo modo, Horcio, na sua Arte potica, desde aquela poca, j

    referendava Virglio como um autor modelar para a lngua latina. Nesta parte da Arte

    potica, Horcio comenta que os autores que eram seus contemporneos deveriam ter

    tanto prestgio quanto os antigos, pois colaboravam para a atualizao da lngua

    latina, pois, como ele di,z permitido colocar em circulao um vocbulo marcado

    com o selo do presente. Desde o sculo I, Virglio j estava entre os autores

    comentados e importantes para a prescrio da potica e, posteriormente, da gramtica.

    Com efeito, como o ideal da Latinitas, representado por estes dois autores

    deslocados no tempo, pressupunha uma norma, os autores j consagrados, quando

    citados pelo gramtico, no levavam consigo apenas fragmentos de suas obras literrias

    para o interior da explicao gramatical, mas tambm toda uma identidade produzida

    por uma tradio que se manifestava na/atravs da lngua. Virglio e Terncio, por essa

    razo, colaboravam, por assim dizer, para a construo de um cnon de autores

    representativos, e levavam consigo um modelo de lngua a ser defendido pelo

    gramtico, colaborando, por este motivo, para a estipulao de uma norma lingustica,

    atravs dos usos especficos que tais autores fizeram da lngua latina. Ao citar um

    nmero amplo de exemplos extrados desses dois autores, parece-nos que Prisciano quer

    mostrar o maior nmero de fatos da lngua possvel.

    Segundo Cant (2011, p 747), o critrio utilizado pelos gramticos latinos para a

    7 At., VII, III, 10: Venio ad 'Piraeea,' in quo magis reprehendendus sum quod homo Romanus 'Piraeea' scripserim,

    non 'Piraeum' (sic enim omnes nostri locuti sunt), quam quod addiderim '(in).' Non enim hoc ut oppido praeposui sed

    ut loco; et tamen Dionysius noster et qui est nobiscum Nicias Cous non rebatur oppidum esse Piraeea. Sed de re

    uidero. Nostrum quidem si est peccatum, in eo est quod non ut de oppido locutus sum sed ut de loco secutusque sum

    non dico Caecilium, mane ut ex portu in Piraeum (malus enim auctor Latinitatis est), sed Terentium cuius fabellae

    propter elegantiam sermonis putabantur a C. Laelio scribi, heri aliquot adulescentuli coiimus in Piraeum, et idem,

    Mercator hoc addebat, captam e Sunio. Quod si oppida uolumus esse, tam est oppidum Sunium quam

    Piraeus. Sed quoniam grammaticus es, si hoc mihi persolveris, magna me molestia liberans. (Passando

    palavra Piraeea, em que, por ser cidado romano, devo mais ser repreeendido por ter escrito Piraeea e no Piraeum

    (desta forma, de fato, a maioria de ns dizemos), do que por ter empregado in. De fato, no o pus diante de uma

    cidade, mas de um lugar. Entretanto, tambm Dionsio e Ncias Cous que concordam conosco e no corroboram que

    Piraeea seja uma cidade. Vejamos. De fato, se isso um equvoco, porque eu falo no de uma cidade, mas de um

    lugar, e no digo que nisso sigo Ceclio: Mane ut ex portu in Piraeum que um mau representante da Latinitas ,

    mas Terncio, cujas peas, por causa da elegncia da linguagem, se achava que eram escritas por C. Llio: heri

    aliquot adulescentuli coiimus in Piraeum, assim como: Mercator hoc addebat, captam e Sunio. Pois, se queremos que

    demos sejam cidades, Snio uma cidade tambm, da mesma forma que Pireu. Mas, j que s um gramtico, peo

    que me resolvas esse problema por mim, me liberando de um grande enfado).

  • 25

    seleo de obras era complexo, pois no havia uma motivao apenas. Juntamente com

    a qualidade literria, se levava em considerao o valor moral e exemplificador, pois

    estas obras tinham tambm o propsito de educar os jovens romanos no somente no

    gosto literrio, mas tambm nos valores essenciais, e, por isso, alguns gneros eram

    deixados de lado por causa de seu contedo pouco edificante. Nesse sentido, a pica

    sempre precedia a tragdia, a comdia e a lrica, na preferncia dos grammatici, pois

    aquele era considerado o gnero mais elevado, capaz de suscitar nos jovens nobres

    sentimentos e de lhes oferecer altos exemplos para que fossem imitados.

    No que se refere aos gregos, que nunca deixaram de ser estudados, como

    veremos no prximo item, Homero era o nico absolutamente imprescindvel, os outros

    dependiam do critrio do professor, que em muitos casos seguia o cnon construdo

    pelos fillogos alexandrinos. Tratando-se dos autores latinos, no ltimo quarto do

    sculo I a.C., tinha relevncia nio, seguido por Nvio, Lvio Andronico, cio,

    Pacvio, Luclio e Terncio. Catulo, Proprcio e Ovdio foram considerados

    inadequados para o uso didtico pelo seu contedo pouco exemplificador, fato que nos

    permite explicar, de certa forma, a ausncia destes autores na obra de Prisciano, que

    parece, portanto, referendar uma prtica de citaes de exemplos entre os gramticos

    vigente, pelo menos, desde o sculo I d.C.

    Ainda segundo esta pesquisadora, no sculo III, j estava estabelecido um cnon

    mais ou menos fixo de autores latinos usados pelos gramticos como definidores dos

    padres da lngua, a respeito de cujas obras foram escritos alguns comentrios. Assim,

    a lista de leitura que devia servir de base para a formao na escola dos gramticos j

    no sofria nenhuma modificao. De fato, como podemos ver ao final do sculo IV, o

    manual de Arusiano Mesio aponta Virglio e Terncio como poetas favoritos,

    completando o quarteto com os prosadores Ccero e Salstio. Do mesmo modo, no

    sculo VI, como vemos, tambm Prisciano parece consolidar este modelo.

    Sendo assim, quando analisamos os autores latinos citados por Prisciano,

    percebemos a enorme quantidade de citaes de Virglio (231 citaes), o que nos

    permite compreender que este poeta continuava importante para a formao cultural do

    romano, mesmo sendo esta obra, como sabido, produzida em um contexto bem

    diverso daquele em que circulavam os primeiros manuais de gramtica, e, ainda mais

    distante da obra de Prisciano.

    Constantinopla, a cidade em que Prisciano teria escrito sua gramtica era, da

    parte oriental do Imprio, sua populao majoritariamente helenofnica, mas, mesmo

  • 26

    assim, importava queles cidados, que se identificavam como cidados romanos,

    habitantes da Nova Roma, a preservao de certo ideal identitrio, atravs do estudo

    da lngua latina segundo os grandes autores da tradio potica. De fato, a proeminncia

    conferida aos exemplos extrados de Virglio (231 citaes) e, em seguida, Terncio

    (110 citaes), e autores como Ccero, Salstio e Tito Lvio, tambm presentes na obra

    em questo, assim como Lucano, Horcio, Estcio, Juvenal e Prsio, nos leva a

    concluir que Prisciano preservava o modelo j estabelecido nos estudos gramaticais de,

    pelo menos, o sculo III.

    Apenas um autor citado por Prisciano no aparece nesta lista cannica herdada

    dos antigos gramticos: Solino. Solino foi um gramtico que viveu durante os sculos

    III ou IV, mas a obra que Prisciano cita se chama De mirabilibus mundi, e uma obra de

    historiografia. Apesar de esse autor apresentar apenas duas citaes no corpus, no

    podemos desconsiderar sua presena no De constructione, pois, comparativamente,

    Prsio, que um autor cannico, teve cinco citaes apenas. curioso o fato de

    Solino ser o autor mais prximo de Prisciano na linha cronolgica e tambm ter sido um

    gramtico.

    2.3 O grego e o latim na gramtica: algumas comparaes

    As diferenas que encontramos entre as citaes gregas e latinas nos levou a

    refletir sobre alguns aspectos. Para realizarmos essa comparao, considerando as

    citaes gregas e latinas na gramtica de Prisciano, primeiramente devemos

    compreender um pouco o bilinguismo na cultura antiga. O primeiro ponto a se pensar

    que no podemos tratar o bilinguismo no contexto antigo da mesma forma que o

    tratamos hoje em dia com lnguas modernas, j que, no temos evidncias de como os

    antigos utilizavam uma segunda lngua oralmente, por exemplo. Outra questo

    importante era que o bilinguismo se encontrava muito no mbito intelectual, como o

    caso da gramtica de Prisciano. No caso especfico do gramtico, devemos levar em

    considerao que, naquele perodo, o latim no era mais uma lngua falada. Os alunos

    do gramtico eram falantes de grego e o latim era uma lngua utilizada para fins

    burocrticos principalmente. (Biville, 2008, Oikonomide, 1999). A primeira diferena

    do bilinguismo, comparado com o bilinguismo muito comum na poca da repblica e

    imprio romano, por exemplo, presente em Prisciano, justamente, o fato de no ser

    mais o grego a segunda lngua, e sim o latim. Ou seja, o grego aparece como um suporte

  • 27

    para os alunos que esto aprendendo o latim, como uma referncia para os falantes

    nativos de grego, tendo um valor didtico na gramtica.

    A primeira diferena que observamos que as citaes gregas apresentam um

    nmero muito maior de autores (31 autores) em relao s citaes latinas (11 autores),

    apesar de o nmero de citaes gregas ser inferior ao nmero de citaes latinas. Assim,

    notamos, tambm, ao observar os grficos, que as citaes gregas esto melhor

    distribudas, diferentemente do que constatamos no corpus de citaes latinas, em que

    Virglio representa quase 50% das citaes. Pensamos que uma explicao possvel para

    o grande nmero de autores gregos seria que o gramtico teria um maior contato com a

    literatura grega, sendo tambm ele um usurio daquela lngua que, conforme dizemos,

    era a mais falada na regio. Um ponto importante que refora essa hiptese a maneira

    como Prisciano deixa de fazer referncias explcitas s obras gregas em seus exemplos,

    principalmente nas citaes de Homero: talvez algumas dessas citaes fossem feitas de

    memria. Outra evidncia a esse favor seria, exatamente, a presena de autores como

    Theopompus, Antiphon e Deinarchus, cujas nicas fontes que sobreviveram ao tempo se

    encontram na obra de Prisciano. Dito de outro modo, entre o repertrio de autores

    gregos, no esto presentes somente aqueles mais cannicos.

    De fato, quando observamos as citaes gregas, percebemos que Homero no

    o autor de destaque, os autores mais citados por Prisciano so Demstenes (55 citaes)

    e Plato (49 citaes), logo em seguida esto Iscrates (25), Homero (19), Tucdides

    (19), Xenofonte (18), Aristfanes (16) e Herdoto (15). Ou seja, o gramtico, em se

    tratando das citaes gregas, no segue o cnon tradicional dos autores citados em

    gramticas (comparativamente, na obra de Apolnio Dscolo, por exemplo, Homero

    representa mais de 80% do total de citaes).

    Com exceo de Homero, os autores em evidncia vo do sculo V ao VI a.C., e

    os gneros textuais mais destacados so oratria, retrica e filosofia, diferentemente

    tambm dos principais gneros presentes nas citaes latinas, que so a poesia pica

    (Virglio) e a dramaturgia (Terncio), o que nos leva a concluir que, para Prisciano, o

    cnon grego privilegia a prosa, e o latino, o verso. Talvez Prisciano tentasse criar um

    efeito de complementaridade entre o grego e o latim. Prosa (grega) mais poesia (latina)

    perfazem uma totalidade indissocivel, do mesmo modo que a lngua grega e a latina

    eram tambm consideradas lnguas irms (utraque lngua) e, por conseguinte, o Imprio

    Romano, j dividido, deveria tambm ser unificado.

  • 28

  • 29

    4 - Concluso

    Com o nosso estudo, podemos concluir que Prisciano faz diferentes escolhas

    quanto s citaes gregas e latinas, seguindo aquele cnon, j consagrado, de autores

    latinos, presentes nos tratados gramaticais latinos desde o sculo III d.C., e inovando em

    suas escolhas de autores gregos, contradizendo at mesmo a representatividade de

    autores citados por Apolnio Dscolo, autor que Prisciano elege como seu mais

    importante modelo.

    Nos dois casos, a reunio dessas citaes ao final de sua obra parece configurar um

    arquivo de exemplos, uma espcie de amostra, bastante abrangente e variada, de

    ocorrncias lingusticas de ambas as lnguas, segundo um repertrio escolhido de

    autores latinos e gregos. Em nossos estudos, percebemos que Prisciano cria esse

    arquivo, para que pudesse ser consultado pelos que estudavam latim pela sua obra,

    uma espcie de depositrio de referncias das lnguas latina e grega. O autor parece ter a

    preocupao de reunir a maior quantidade de exemplos lingusticos das duas lnguas e

    exp-las em um mesmo lugar. Por outro lado, o estudo desse arquivo, que parece no

    conversar com o restante da obra, pde nos trazer informaes relevantes sobre o

    pensamento gramatical de Prisciano e tambm sobre modelo de lngua latina e grega o

    autor privilegia, quais os autores que a representam e os gneros gramaticais mais

    citados nas gramticas, e nos permite construir um modelo de identidade lingustica

    perseguido pelo gramtico.

    Trata-se de uma seo sem precedentes na tradio gramatical antiga, o que a

    torna mais um elemento original da vasta e complexa obra de Prisciano, e que colabora

    para sublinhar no somente a importncia cultural daqueles autores gregos e latinos,

    mas uma identidade de lngua grega e latina. De fato, o arquivo de exemplos um

    elemento nico na gramtica de Prisciano, o que nos permite concluir que o autor no

    apenas segue um modelo, mas instaura um pensamento bastante original, o que o torna

    especialmente relevante ao contexto da gramtica antiga.

  • 30

    5- Referncias Bibliogrficas:

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