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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
FACULDADE DE LETRAS
BACHARELADO EM LETRAS: LATIM
Isabella Brando Mendes Martins
O ARQUIVO DE EXEMPLOS DE LINGUAGEM NO
DE CONSTRUCTIONE DE PRISCIANO:
UM ESTUDO SOBRE A REPRESENTATIVIDADE LINGUSTICA DOS
EXEMPLOS LITERRIOS
Trabalho de Concluso de Curso apresentado disciplina de
TCC em Letras Bacharelado em Latim da Universidade
Federal de Juiz de Fora, como requisito parcial para obteno do
grau de Bacharel.
Orientador: Prof. Dr. Fbio da Silva Fortes
JUIZ DE FORA
2014
2
FICHA CATALOGRFICA
3
ISABELLA BRANDO MENDES MARTINS
O ARQUIVO DE EXEMPLOS DE LINGUAGEM NO
DE CONSTRUCTIONE DE PRISCIANO:
UM ESTUDO SOBRE A REPRESENTATIVIDADE LINGUSTICA NOS
EXEMPLOS LITERRIOS
Aprovado em:
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________
Prof. Dr. Fbio da Silva Fortes - Orientador
Universidade Federal de Juiz de Fora
____________________________________________
Prof. Dra. Charlene Martins Miotti
Universidade Federal de Juiz de Fora
____________________________________________
Prof. Dra. Fernanda Cunha Sousa
Universidade Federal de Juiz de Fora
4
AGRADECIMENTOS:
Agradeo, em primeiro lugar, ao meu professor e orientador Fbio Fortes por ter
me orientado em dois anos de pesquisa, que deram origem a este trabalho, e tambm por
ter me ensinado tantas coisas sobre os estudos clssicos e me motivado a seguir
pesquisando nesta rea que to grandiosa e encantadora. Sem a sua orientao este
trabalho no teria sido possvel.
Agradeo tambm a todos os meus professores de latim da Universidade Federal
de Juiz de Fora que, ao longo destes anos, me ajudaram a construir um conhecimento
slido pelo latim, grego e os estudos clssicos de modo geral e a me tornar uma pessoa
mais crtica, no apenas do mundo antigo, mas tambm do nosso presente. Em especial,
s professoras e doutoras Charlene Miotti e Fernanda Sousa por terem aceitado
participar da banca examinadora.
E, por ltimo, quero agradecer a minha famlia por ter me apoiado durante toda a
minha graduao, sem eles nada disso teria sido possvel. Tambm aos meus amigos que
sempre estiveram ao meu lado e me ajudaram bastante, seja fazendo trabalhos juntos,
seja em conversas pela cantina ou me ajudando com tradues e dvidas. Obrigada por
estarem sempre comigo e me apoiarem.
Dedico este trabalho a todos vocs que estiveram sempre a meu lado e me
ajudaram de alguma forma.
5
RESUMO:
O intento deste trabalho a anlise da segunda parte do livro XVIII
das Institutiones grammaticae, de Prisciano de Cesareia (sc. VI).
Nesta parte da sua gramtica, o autor comps um arquivo com
exemplos de citaes extradas de escritores gregos e latinos. Neste
trabalho, reunimos todas essas citaes para entender sua funo no
texto do autor, assim como delimitar um cnon literrio
representativo de sua gramtica, considerando os autores
selecionados pelo autor latino para compor seus exemplos.
Palavras-chave: Institutiones grammaticae, Prisciano, exemplos,
gramtica antiga.
6
ABSTRACT
The purpose of this study is the analysis of the second part of
Book XVIII from Institutiones grammaticae, by Priscian
Caesarensis (c. VI a.D).. In this part of his grammar, Priscianus
composed an archive with a lot of examples of quotations
extracted from Greek and Latin authors. This study aimed at
collecting all those quotations, in order to understand their
function in the grammarians text, as well as delimitating a
literary canon, considering the authors selected by the Latin
grammarian to compose his examples
Keywords: Institutiones grammaticae, Priscian, examples, ancient
grammar
7
SUMRIO
INTRODUO, p. 8
CAP. 1. Prisciano e seu contexto histrico, p. 10
CAP. 2. O arquivo de exemplos nas Institutiones Grammaticae de Prisciano
2.1.. Uma reflexo sobre a construo de um modelo de identidade lingustica p.15
2.2. As citaes latinas e a consolidao do cnon latino p.23
2.3. O grego e o latim na gramtica: algumas comparaes p.26
CONCLUSO p. 29
REFERNCIAS BIBLIOGRAFICAS p. 30
8
Introduo
As Institutiones grammaticae de Prisciano de Cesareia (sc. VI d.C.) so por
muitos estudiosos, como Weedwood, consideradas o mais extenso tratado descritivo do
latim, um conjunto monumental, em dezoito livros, que perfazem, nas edies
modernas, mais de mil pginas impressas. Escrita em Constantinopla, a obra de
Prisciano teve grande repercusso tambm no Ocidente Latino, onde se tornou uma obra
de referncia gramatical ao longo da Idade Mdia (FORTES, 2012, p. 182). No entanto,
sua poca, a obra destinava-se, provavelmente, a falantes adultos, da Universidade de
Constantinopla1, onde Prisciano lecionava a, provavelmente, falantes nativos de grego
que viviam e situaes de bilinguismo. por esse motivo que a obra se caracteriza por
uma abordagem extensiva e, em muitos casos, comparada da lngua latina,
estabelecendo relaes gramaticais com a lngua grega e evocando gramticos e autores
gregos como referncia.
Neste estudo, examinamos, especificamente, a segunda parte do livro XVIII das
Institutiones Grammaticae, conhecido por De constructione (e, doravante, assim
chamado por ns). Em nossa anlise utilizamos um corpus formado pela edio de
Martin Hertz, constante dos Grammatici Latini, de H. Keil (1885 [1961]).
Nesta parte, o autor comps um arquivo com inmeros exemplos extrados de
autores gregos e latinos. O nosso estudo reuniu todas as citaes dos autores latinos,
para que pudessem ser analisadas, com a finalidade de tentar compreender o papel que
tais citaes desempenham no texto de Prisciano, em relao com o seu projeto
gramatical, delineando, especificamente, o cnon literrio que tais citaes consagram
na obra e as consequncias desse cnon para a estipulao de uma norma lingustica
identitria.
Com efeito, partindo da premissa de que as citaes literrias em um texto
gramatical, mais que exemplificar ocorrncias de fenmenos lingusticos, representam
tambm uma seleo de um corpus de autores representativos de determinada
identidade lingustica e cultural, destacamos todas as citaes literrias gregas e latinas
1 No aludimos aqui ao conceito moderno de universidade, que, em geral, pode ser considerado um
desenvolvimento ocidental, datado da passagem da Idade Mdia para a Moderna. Antes, trata-se de instituio, cuja fundao se credita a Teodsio II, em 425, que oferecia instruo do tipo universitrio (Cameron, 2009, p. 140; Biville, 2008, p. 39; Oikonomides, 1999, p. 49), que tinha como escopo formar a elite intelectual de onde eram egressos os funcionrios imperiais. No se estranha a permanncia de uma ctedra de latim em uma regio onde jamais se deixou de ter o grego como a mais importante lngua falada, mas onde, precisamente, sob Justiniano, se elaborou o mais importante corpus jurdico da poca, o corpus iuris ciuilis.
9
do nosso corpus, organizando-as em um catlogo de citaes quantificando-as para
levantar os dados numricos daqueles autores e obras de maior recorrncia no De
constructione, para percebermos como a disperso dessas ocorrncias por autores,
gneros e pocas permite-nos delinear um conceito de lngua prestigiado por Prisciano.
Para fazermos o nosso estudo, separamos todas as citaes para que possamos
melhor analis-las de forma quantitativa. Criamos um arquivo com cada citao, a obra
e o autor citados, recorrendo tambm ao banco de dados disponveis no programa
Diogenes, para verificarmos se as citaes presentes na obra de Prisciano correspondem
s edies crticas dos respectivos textos. Com isso, verificamos que Prisciano, nesta
parte de sua gramtica, no forja nenhuma citao - as citaes conferem com as
edies. A partir de nossa anlise, foram elaborados os grficos que sero apresentados
ao longo do nosso trabalho.
Nosso objetivo era fazer um levantamento dos autores e obras escolhidos pelo
gramtico para ento tentar entender a hierarquia de cada autor citado por ele. Alm
disso, tentar entender a razo deste arquivo em sua obra. O estudo deste conjunto de
citaes ao final da extensa obra gramatical de Prisciano evidenciou muitas questes,
que iremos trabalhar ao longo do nosso trabalho, alm de traarmos o corpus das
citaes gregas e latinas, e encontrar o cnon literrio que o gramtico constri,
analisamos e comparamos as citaes entre si. Pudemos perceber ento que o gramtico
trata de forma diversa as citaes de autores gregos e latinos. Nosso estudo nos revelou
que Prisciano um gramtico muito mais original do que se pensava. Ele no apenas
copia o gramtico Apolnio Dscolo (FORTES, 2012, p.169), mas tambm cria sua
prpria forma de tratar as culturas grega e latina em sua gramtica, das quais as citaes
literrias presentes na obra so uma pequena, mas relevante, amostra.
10
1 Prisciano e seu contexto histrico
Prisciano de Cesareia foi um gramtico, professor na Universidade de
Constantinopla, onde lecionava latim. Foi autor de uma obra monumental, com grande
repercusso no Imprio Romano, tanto do ocidente, como do oriente. Porm, so
poucos os relatos sobre sua vida A hiptese mais plausvel a de que ele tenha vivido
em Constantinopla no final do sculo V e incio do VI. Para justificar esta hiptese,
toma-se, frequentemente, um panegrico no qual Prisciano se dirigia ao imperador
Anastcio I (491-518), intitulado De laudi Anastasii imperatoris. Tambm existe um
relato annimo sobre sua vida, a Vita Bernensis, presente no comentrio ao livro XVIII
de sua obra Institutiones Grammaticae, o qual relata que Prisciano teria vindo de
Cesareia Mauritnia, colnia ao norte da frica, submetida ao Imprio Romano, como
era toda a frica conhecida. Podemos assim concluir, como apresenta Ballaira:
Isso significa que P. vinha de um ambiente cultural de lngua latina. Se
excluirmos que ele fosse originrio de Cesareia Augusta, ou seja, de
Saragoa na Espanha, devemos admitir, seguindo a tradio aceita na
vida medieval, que fosse um romano de frica e que vinha de Cesareia
de Mauritania.2
(Ballaira, 1989, p. 19- traduo nossa)
Em favor desta hiptese, sabe-se que as colnias africanas sofreram profundo
processo de romanizao, e Prisciano no teria sido o nico, nem o primeiro, gramtico
oriundo dessa regio. (FORTES, 2012. p 175), dali surgiram importantes gramticos
latinos, como: Donato, Carsio e Mrio Vitorino. Tambm se encontra no prefcio
edio de Keil (GL, II ), escrito por seu editor, Martin Hertz (1981), a informao de
que Prisciano fora citado por apenas um de seus contemporneos conhecidos, o
gramtico Cassiodoro, na introduo de sua obra intitulada De orthographia: do
2 Questo significa che P. veniva da um ambiente culturale di lngua latina. Se escludiamo che
egli fosse originrio di Caesarea Augusta, ossia di Saragozza in Spagna, dobbiamo ammettere, seguendo
la tradizione accolta nella vita medievale, che fosse um Romano dAfrica e che provenisse da Cesarea di
Mauritania. (Ballaira, 1989, p. 19)
11
Prisciano gramtico, que em nossa poca foi mestre em Constantinopla. 3
No se sabe ao certo o que levou Prisciano a mudar-se da frica para a ento
capital do Imprio. Autores, como Robins, afirmam que o gramtico teria sido
convidado a lecionar na Universidade de Constantinopla. Este fato crucial para
compreendermos e analisarmos uma questo fundamental em sua obra: seu trabalho era
direcionado para estudantes mais avanados, por isso as Institutiones grammaticae so
uma obra to extensa e complexa, que trata de assuntos gramaticais de maneira bem
mais profunda, se comparada a outras gramticas latinas, como a de Donato, como por
exemplo, ao tratar dos verbos.
Conforme nos ensina Robins (1993), Constantinopla, poca de Prisciano, ainda
tinha o status de ser a Nova Roma, fundada por Constantino no sculo IV:
Quando Prisciano estava trabalhando na cidade, por volta de 500
d. C., ela ainda era muito uma continuao de Roma, a Nova
Roma, como seu fundador Constantino a tinha chamado, e no
governo manteve muito da tradio romana. (...) Os escritos
gramaticais de Prisciano apontam claramente para a necessidade
de pessoas educadas e administradores experientes, os quais eram
falantes nativos de grego, para se aprender latim e usar a lngua
latina pelo menos em datas oficiais.4
(Robins, 1993, p. 87- traduo nossa)
Outro motivo pelo qual o gramtico teria se mudado para Constantinopla o de
que, em meados do sculo V, o norte da frica sofria fortes modificaes devido ao
declnio na organizao social, por causa da entrada e acomodao de povos brbaros.
Dessa forma, houve um conflito cultural que fez com que muitos romanos se
deslocassem dali. Este fato poderia ter levado Prisciano a se exilar, alm de existirem
tambm conflitos religiosos, como menciona Fortes (2012, p. 177).
Embora possa se assumir a Cesareia Mauritnia como a ptria de Prisciano, h
estudos, porm, que evidenciam a hiptese de Prisciano ser oriundo de outras Cesareias,
3 Cf. ex Prisciano grammatico, qui nostro tempore Constantinopoli Romae doctor fuit.
4 When Priscian was working in the city, around 500 A. D., it was still very much a continuation of
Rome, the Nem Rome as its founder Constantine had called it, and in governnent retained many of the
traditional Roman (...) Pricians grammatical writings clearly point to the need for educated person and
senior administrators who were native speakery of Greek to learn Latin and to use Latin at least in their
official daties. (Robins, 1993, p. 87)
12
tal como a Cesareia Palestina, conforme comenta Fortes (2012):
A Mauritnia, por sua vez, no parecia ser um grande centro de difuso
dos estudos literrios, embora as colnias africanas como um todo em
especial Cartago tivessem absorvido fortemente a cultura latina havia
sculos. A favor da Cesareia Palestina contam dois aspectos: primeiro
que, poca de Justiniano (518-565), perodo, portanto, de atividade
profissional do gramtico, existiu uma renomada escola de direito
romano, de modo que, em Constantinopla, podia-se fazer referncia a
essa cidade sem qualquer epteto distintivo. O segunda aspecto levantado
pelo estudioso a questo lingustica, j que a leitura da obra de
Prisciano levaria a se acreditar que o autor fosse mais familiar com as
lnguas orientais tais como o aramaico, o hebraico e o srio, do que o teria
sido, de fato, com o pnico.
(Fortes, 2012, p. 174 175)
Diferentemente do norte da frica, Constantinopla, por volta do ano 500 d.C,
era considerada a Nova Roma, assim nomeada pelo seu fundador, o imperador
Constantino. A capital tinha uma relao de continuidade com Roma, e no de ruptura.
Constantinopla se tornara a guardi da civilizao clssica greco-romana, por isso a
profuso de gneros enciclopdicos, comentrios, gramticas, dicionrios e livros
didticos, como nos relata Robins (1993, p. 30 e 31).
Com o enfraquecimento do lado ocidental, a capital do oriente ficou responsvel
por: garantir a sobrevivncia do antigo imprio romano, a defesa e a propagao do
Cristianismo e a preservao das artes e culturas antigas gregas e latinas.
neste contexto que Prisciano se tornou professor de latim na Universidade de
Constantinopla e escreveu suas obras. A universidade criada na poca de Teodsio I
(379 395 d.C) formava a elite intelectual da poca. A regio tinha o grego como a
mais importante lngua falada, porm, na capital, o latim ainda era falado e escrito na
alta administrao romana e na universidade. Por isso, as disciplinas de gramtica
continuavam a ser importantes para a formao do cidado culto. Cameron (1993, p.
152) ressalta que em Constantinopla as cadeiras de ensino eram Eloquncia Latina,
dividida em oratria e gramtica, a Facundia Grega dividida em sofistas e gramticos.
As obras mais importantes de Prisciano so: De figuris numerorum (Sobre a
13
representao figurada dos nmeros), De metris fabularum Terentii (Sobre a mtrica
das peas de Terncio), Praeexercitamina (Exerccios preliminares), as Institutiones
grammaticae (em dezoito livros) e dois pequenos tratados pedaggicos: Institutio de
nomine et pronomine et uerbo (Princpios sobre o nome, o pronome e o verbo) e as
Partitiones duodecim uersuum Aeneidos principalium (Anlise mtrica dos primeiros
versos de cada canto da Eneida), sendo que as Institutiones a grande obra do
gramtico, atravs da qual ele recebe sua fama.
A obra composta por informaes do tipo Schulgrammatik e do tipo regulae,
que constroem uma descrio praticamente completa, reforada com um grande nmero
de citaes de autores literrios. As informaes do tipo Schulgrammatik so
caracterizadas pela sua forma sistemtica, definem cada estrutura e suas propriedades,
as de tipo regulae so originalmente produzidas para mostrar os mecanismos de
analogia, possuem muitos paradigmas e so menos sistematizadas, como afirma
Weedwood (2002, p. 55 e 56).
As Institutiones grammaticae so formadas por 18 livros. O livro I descreve os
sons da lngua (uox), as letras que representam os sons (litterae) e o papel que eles
desempenham nas declinaes e na composio das palavras; O livro II apresenta
alguns conceitos preliminares, como o de slaba (syllaba), o de palavra (dictio), o de
orao (oratio) e o de nome (nomen); o livro III apresenta os adjetivos, mais
especificamente, os comparativos (comparatiuum) e superlativos (superlatiuum), e
tambm os diminutivos (diminutiuum); os livros IV e V abordam os nomes, que para o
gramtico so classificados como denominativos (denominatiuum nomen), tambm
apresenta o particpio (participium), as categorias flexionais de gnero (genus), nmero
(numerus) e caso (casus); o livro VI comenta as particularidades do caso nominativo
(nominatiuus casus) e o livro VII apresenta os demais casos; os livros VIII, IX, X e XI
trabalham a categoria do verbo (uerbum), so discutidas, respectivamente, as
propriedades gerais do verbo, os princpios que regem as conjugaes, as
particularidades do pretrito perfeito e se aprofunda a discusso sobre o particpio; os
livros XII e XIII apresentam os pronomes (pronomina); o XIV apresenta as preposies
(praepositiones); o livro XV trabalha os advrbios (aduerbia) e interjeies
(interiectiones); o livro XI aborda conjunes (coniunctiones); por fim, os livros XVII e
XVIII, so conhecidos como Priscianus minor, que tratam da construo da sintaxe, e
por isso recebem o ttulo de De constructione.
A nossa pesquisa se concentra na ltima seo do livro XVIII, que perfaz cerca
14
de 100 pginas na edio de Keil. Nessa seo, o gramtico faz inmeras citaes a
autores gregos e latinos e praticamente no existem explicaes gramaticais. Este fato
nos chamou a ateno, pois no encontramos em nenhum gramtico antigo, a que
tivemos conhecimento, uma reunio de um nmero elevado de exemplos, praticamente
citados em sequncia e, aparentemente, deslocado das explicaes gramaticais. De fato,
a parte final parece no ter muita relao com o resto da obra, funciona como um
arquivo de exemplos, que totaliza 763 citaes, sendo 484 de autores latinos e 280 de
autores gregos. A difuso dos manuscritos da obra de Prisciano gigantesca, existem
mais de mil manuscritos localizados,sob a identificao das Institutiones. Isso se deve
pela repercusso que o gramtico teve ao longo da Idade Mdia. Ate o sculo IX a obra
era quase desconhecida pela latinidade ocidental, porm, a partir de 800 ela passou a ser
foco de interesse dos estudiosos da poca, como nos explica Weedwood (2002, p. 53 e
54). Por consequncia do movimento cultural da Renascena Carolngia, a obra se
tornou objeto de estudo e anlise minuciosa. no prximo captulo, apresentamos
algumas consideraes analticas sobre o arquivo de exemplos contido no livro XVIII.
Esperamos, assim, contribuir um pouco mais para a compreenso da obra desse
gramtico.
2 O arquivo de exemplos nas Institutiones grammaticae de Prisciano
15
2.1 Uma reflexo sobre a construo de um modelo de identidade lingustica
Nas ltimas cem pginas do Livro XVIII das Institutiones grammaticae,
encontramos, quase que exclusivamente, citaes literrias consecutivas, tanto de
autores latinos como gregos. Diferentemente das citaes em outras partes da obra,
nesta seo, tais citaes no so aparentemente motivadas por nenhum tpico
gramatical, ou seja, enquanto nos outros livros as citaes ilustram determinados
fenmenos gramaticais, devidamente explicados previamente, nesta parte, elas esto
coligidas sem um tratamento gramatical especfico, o que nos faz referir a elas como um
arquivo de exemplos. Os exemplos so um construto, formas de linguagem utilizadas
para desenvolver uma representao da lngua, diferente de um fragmento ou um fato da
lngua, que simplesmente um dado (Colombat, 2007, p. 71 e 72). Os exemplos so
fundamentais para a elaborao de uma gramtica. Pode-se imaginar uma gramtica
construda apenas de exemplos, porm uma gramtica sem exemplos parece impossvel.
(Colombat, 2007, p. 72) fato que nos indica a importncia dos exempla como ndices de
referncia lingustica fundamentais em uma obra gramatical.
Nos grficos e tabelas abaixo, apresentaremos os autores gregos e latinos citados
em nosso corpus, distinguindo-os, em seguida, conforme a poca em que tais textos
foram produzidos5:
5 Para definio dos perodos de cada autor, utilizamo-nos dos manuais de literatura latina: Cardoso
(2003), Conte (1999), Bowra (1950). Entendemos que as classificaes referentes aos perodos histricos
so apenas uma conveno que nos auxilia para termos um referencial em nossa pesquisa, no
informaes de carter absoluto. Uma anlise historiogrfica mais elaborada seria necessria.
16
Grfico 1: As citaes latinas
Grfico 2: Relao entre o nmero total de citaes e o perodo a qual pertencem
Autor: Nmero de citaes: Perodo:
Ccero 42 Republicano
Estcio 5 Imperial
Virgilio 48%
Lucano 6%
Terncio 23%
Salstio 7%
Ccero 9%
Estcio 1%
Horcio 2%
Tito Lvio 0%
Juvenal 3%
Prsio 1%
Solino 0%
Citaes Latinas
Imprio 62%
Repblica 38%
0%
0%
17
Horcio 10 Imperial
Juvenal 14 Imperial
Lucano 28 Imperial
Prsio 5 Imperial
Salstio 34 Republicano
Terncio 110 Republicano
Tito Lvio 3 Imperial
Virglio 231 Imperial
Tabela 1: Autores latinos/ocorrncia
Observando as citaes de perto, calculamos um total de 484 citaes, sendo os
autores citados: Virglio (70 a.C. 19 a.C.), Lucano (39 d.C. 65 d.C.), Terncio (185
159 a.C.), Salstio (87 35 a.C.), Estcio (40? 96 d), Tito Lvio (59 a.C. 17 d.C.),
Juvenal (60 d.C - 128 d.C), Prsio (34 d C.- 62 d.C), Solino (sculo III - IV), Ccero
(106 a.C. 43 a.C.) e Horcio (65 a.C. 8 a.C.), recobrindo, portanto, autores do sculo
II a.C ao sculo III d.C.
Pelo nmero elevado de citaes, pensamos, inicialmente, que Prisciano teria
citado diversos autores, porm, como pudemos perceber, ele cita apenas onze autores
latinos, o que representa um nmero bastante restrito, se compararmos com o nmero de
autores literrios latinos disponveis e conhecidos sua poca. Outro fator importante
que percebemos a relao entre os perodos histricos e os gneros selecionados pelo
gramtico. Os textos em prosa, em sua maioria, so de autores do perodo republicano, e
os textos em verso, de autores imperiais, com um predomnio numrico das citaes de
autores imperiais, como podemos ver no grfico 1. Em todo caso, preciso salientar que
todos os autores citados distam de, pelo menos, 4 sculos do perodo em que Prisciano
desenvolveu a sua obra, o que nos leva a perceber que, de fato, o gramtico no estava
ocupado com a variedade contempornea de sua lngua, mas com um registro escrito,
consolidado pela tradio literria, que, por esse motivo, definia aquele modelo de
lngua que os antigos chamavam de Latinitas (Desbordes, 1997).
Abaixo, mostramos os grficos correspondentes a levantamento quantitativo de
citaes gregas e o grfico que rene todas as citaes (gregas e latinas). Sobre a relao
entre citaes gregas e latinas, no entanto, para a formao de diferentes cnones,
comentaremos nos itens 2.2 e 2.3.
18
Grfico 3: Citaes gregas e latinas
18
25
55
19
4 7 49
8 5
5
15
16
19
2 7
1
1 1
1 2
1
2
2 2
1
1
1
1 1
1
1
1
Citaes gregas
Xenofonte
Iscrates
Demstenes
Homero
Eurpedes
Esquines
Plato
Menandro
Sfocles
Cratinos
Herdoto
Aristfanes
Tucdides
Eupolis
Lsias
Hiprides
Phroenichus
Andcides
Alexis
Pherecrates
Hiprides
Iseu
Aristmene
Teopompo
Licurgo
Frnico
19
Grfico 4: Perodo das citaes gregas
Tabela com os autores gregos mais citados:
Autor: Nmero de citaes: Perodo:
Aristfanes 16 Clssico
Demstenes 55 Clssico
Herdoto 15 Clssico
Homero 19 Homrico
Iscrates 25 Clssico
Plato 49 Clssico
Tucdides 19 Clssico
Xenofonte 18 Clssico
Clssico 91%
Homrico 9%
Perodo das citaes gregas
20
Grfico 5: Citaes latinas e gregas
No corpus analisado, as citaes so apresentadas de maneira direta, uma em
seguida da outra, quase no existem explicaes gramaticais entre elas, Prisciano faz
uma lista de citaes latinas e intercala com as citaes gregas, como podemos observar
18 25
55
19 4 7
49
8
5 5
15
16
19
2 7
1
1
1
1 2
1
2
2
2
1
1
1
1
2
1
231
1
28
110
34
42
5 10
3
14 5
2
Citaes latinas e gregas
Xenofonte Iscrates Demstenes Homero Eurpedes Esquines
Plato Menandro Sfocles Cratinos Herdoto Aristfanes
Tucdides Eupolis Lsias Hiprides Phroenichus Andcides
Alexis Pherecrates Hiprides Iseu Aristmene Teopompo
Licurgo Frnico Dinarchus Theopompus Anthiphon Deinarchus
Virglio Aeschines Lucano Terncio Salstio Ccero
Estcio Horcio Tito Lvio Juvenal Prsio Solino
21
nos exemplos extrados do nosso corpus:
Lucanus |in quarto: |quo tempore primas /|impedit ad noctem
iam lux extrema tenebras. sentio illam rem; similiter illi.
Virgilius in X: |hoc patris Anchisae manes, hoc sentit Iulus.
(Prisciano, De const., XVIII, 278 279)
Lucano, no livro quarto: o qual com o tempo, desde este
momento, a luz extrema impede at noite as primeiras trevas.
Sinto aquela coisa; similar quele. Virglio no dcimo livro: isto,
os espritos do pai de Anquises, isto, sente Jlio.
(Prisciano, De const. XVIII, 278 279 traduo nossa)
|Latini curo illam rem, ut Virgilius georgicon I: |inuidet atque
hominum queritur curare
triumphos |et primo:
| .
(Prisciano, De const., XVIII,. 278)
Trato aquela matria do latim, como em Virglio, nas Gergicas
livro I: e lamenta que tu te preocupes com os triunfos humanos. E
Xenofonte nos Memorveis livro I: Mas ento, com efeito
explicava essas coisas preocupando-os e confundindo-os.
(Prisciano, De const., XVIII,. 278- traduo nossa)
Como se observa, a partir dessas citaes, Prisciano insere o nome e a obra da
qual extrai a citao e a apresenta, sem fazer grandes comentrios, ou explicaes, seja
de ordem gramatical, estilstica ou literria. Dada a extenso dessa parte da obra (que
perfaz as ltimas 100 pginas, somos levados a pensar que se trata, verdadeiramente, de
um arquivo de recursos de linguagem variados a que poderia lanar mo o professor
(haja vista que a obra se destinava ao seu emprego escolar), ou mesmo o aluno. Esse
arquivo de exemplos prestaria a ser, no mbito da gramtica de Prisciano, no
somente um corolrio de evidncias empricas, aps longas e complexas e, por vezes,
abstratas, explicaes em torno da sintaxe do latim (desenvolvidas nos dois livros finais
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da obra, o livro XVII e XVIII), mas, tambm, uma amostra significativa de ocorrncias
gramaticais e atestadas do latim. Se comparadas com as citaes gregas, tambm
abundantes, esse arquivo de exemplos permitiria ao estudante estabelecer relaes
interessantes entre o grego e o latim.
Como podemos explicar, no entanto, que esse arquivo de exemplos esteja
confinado na parte final da obra do gramtico, configurando, de fato, uma seo sem
precedentes na tradio dos gramticos latinos? Colombat (2007, p.72) ajuda-nos a
lanar luz sobre essa questo, ao evidenciar que o acmulo de exemplos, nos textos
gramaticais latinos, poderia significar a apresentao de uma viso da lngua:
Uma outra questo que se pode colocar saber como utilizar o
exemplo para dar uma certa viso da lngua. Trata-se de uma
viso parcial, de um apanhado, de uma amostra da lngua ou de
uma viso completa? Seremos tentados a crer que h uma
correlao estreita entre: viso parcial da lngua = poucos
exemplos vs. viso completa da lngua = muitos exemplos. De
fato, no h variao correlativa entre os dois, na medida em que
ou a pertinncia do exemplo pode evitar a multiplicidade de
atestaes, ou sua seleo permite uma descrio o mais
econmica possvel.
(Colombat, 2007, p. 72)6
A partir da leitura que fazemos deste corpus, e, levando em considerao o
dilogo que o texto de Prisciano faz com a tradio gramatical latina, fizemos algumas
observaes. Diante de suas particularidades histricas (produzida em Constantinopla,
para falantes de grego, no sculo VI...), pensamos que o arquivo de exempla de
Prisciano parece oferecer ao seu pblico, que, provavelmente, no tinha o latim como
sua lngua materna, um acumulado de exemplos. Estrategicamente dispostos no final da
sua vasta obra (nas ltimas cem pginas de um texto cujas edies modernas
6 Une autre question quon peut se poser est de savoir comment utiliser lexemple pour donner une
certaine vision de la langue. Sagit-il dune vision partielle, dum aperu, dum chantillion de la langue, ou dune vision complete? On serait tent de croire quil y a une correlation troite entre: vision partielle de la langue = peu dexemples vs vision complete de la langue = beaucoup dexemples. En fait il ny a pas de variation corrlative entre les deux, dans la mesure o la pertinence de lexemple peut viter la multiplication des attestations, o sa slection permet une description aussi conomique que possible.
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ultrapassam o nmero de 1000 pginas), que representasse um repertrio significativo
se no exaustivo de ocorrncias lingusticas da lngua, segundo, porm, um nmero
limitado de gneros e autores, consagrados pela tradio e por ela legitimados como
representantes da Latinitas. Esta era, sem dvida, uma maneira de se conservar as
formas do latim, mas no todo o latim ou qualquer latim, mas aquele representado pelos
relativamente poucos autores citados. Dessa forma, o gramtico, com uma enorme
quantidade de exemplos, parece levar exausto aquele autores e conservar o latim
presente neles segundo determinada norma a Latinitas.
O ltimo livro poderia, assim, ser uma espcie de vitrine com um enorme
arquivo exposto para que se pudessem acessar formas modelares de uma lngua j no
falada naquela poca, por autores cujos textos, provavelmente, fossem difceis para os
leitores mdios. Entendemos assim que, trata-se de reunir, arquivar e expor uma
totalidade dessa lngua dentro de um repertrio limitado de autores previamente
escolhidos segundo um cnon j existente.
2.2 As citaes latinas e a consolidao do cnon latino
Quando observamos o grfico das citaes latinas (grfico 1), fica clara a
predominncia de Terncio e Virglio. Para tentar compreender o motivo da relevncia
destes dois autores na obra de Prisciano, preciso entender que ambos os autores eram
considerados, desde a Antiguidade Clssica, como os modelos da Latinitas, como
percebemos na passagem de Ccero, da Epstula a tico, em que ele se refere a
Terncio, opondo-o a Ceclio, como o grande representante do ideal de linguagem
representado pela Latinitas, tambm encontramos em Horrio esse ideal de linguagem
como vemos na citao abaixo:
Quid autem Caecilio Plautoque dabit Romanus, ademptum
Vergilio Varioque? Ego cur, adquirere pauca si possum, inuideor,
cum lingua Catonis et Enni sermonem patrium ditauerit et noua
rerum nomina protulerit? Licuit semperque licebit signatum
praesente nota producere nomen.
Por que razo, porm, o romano conceder a Ceclio e Plauto, o
que nega a Virglio e Vrio? Por que sou visto com maus olhos,
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se posso fazer algumas aquisies, quando a lngua de Cato e
nio enriqueceu o idioma ptrio e divulgou novos nomes nas
coisas? Foi lcito e sempre ser lcito pr em circulao um
vocbulo marcado com o selo do presente.
(Horcio. Ep. ad Pisones, v. 52-59, traduo de Dante Tringale)7
Do mesmo modo, Horcio, na sua Arte potica, desde aquela poca, j
referendava Virglio como um autor modelar para a lngua latina. Nesta parte da Arte
potica, Horcio comenta que os autores que eram seus contemporneos deveriam ter
tanto prestgio quanto os antigos, pois colaboravam para a atualizao da lngua
latina, pois, como ele di,z permitido colocar em circulao um vocbulo marcado
com o selo do presente. Desde o sculo I, Virglio j estava entre os autores
comentados e importantes para a prescrio da potica e, posteriormente, da gramtica.
Com efeito, como o ideal da Latinitas, representado por estes dois autores
deslocados no tempo, pressupunha uma norma, os autores j consagrados, quando
citados pelo gramtico, no levavam consigo apenas fragmentos de suas obras literrias
para o interior da explicao gramatical, mas tambm toda uma identidade produzida
por uma tradio que se manifestava na/atravs da lngua. Virglio e Terncio, por essa
razo, colaboravam, por assim dizer, para a construo de um cnon de autores
representativos, e levavam consigo um modelo de lngua a ser defendido pelo
gramtico, colaborando, por este motivo, para a estipulao de uma norma lingustica,
atravs dos usos especficos que tais autores fizeram da lngua latina. Ao citar um
nmero amplo de exemplos extrados desses dois autores, parece-nos que Prisciano quer
mostrar o maior nmero de fatos da lngua possvel.
Segundo Cant (2011, p 747), o critrio utilizado pelos gramticos latinos para a
7 At., VII, III, 10: Venio ad 'Piraeea,' in quo magis reprehendendus sum quod homo Romanus 'Piraeea' scripserim,
non 'Piraeum' (sic enim omnes nostri locuti sunt), quam quod addiderim '(in).' Non enim hoc ut oppido praeposui sed
ut loco; et tamen Dionysius noster et qui est nobiscum Nicias Cous non rebatur oppidum esse Piraeea. Sed de re
uidero. Nostrum quidem si est peccatum, in eo est quod non ut de oppido locutus sum sed ut de loco secutusque sum
non dico Caecilium, mane ut ex portu in Piraeum (malus enim auctor Latinitatis est), sed Terentium cuius fabellae
propter elegantiam sermonis putabantur a C. Laelio scribi, heri aliquot adulescentuli coiimus in Piraeum, et idem,
Mercator hoc addebat, captam e Sunio. Quod si oppida uolumus esse, tam est oppidum Sunium quam
Piraeus. Sed quoniam grammaticus es, si hoc mihi persolveris, magna me molestia liberans. (Passando
palavra Piraeea, em que, por ser cidado romano, devo mais ser repreeendido por ter escrito Piraeea e no Piraeum
(desta forma, de fato, a maioria de ns dizemos), do que por ter empregado in. De fato, no o pus diante de uma
cidade, mas de um lugar. Entretanto, tambm Dionsio e Ncias Cous que concordam conosco e no corroboram que
Piraeea seja uma cidade. Vejamos. De fato, se isso um equvoco, porque eu falo no de uma cidade, mas de um
lugar, e no digo que nisso sigo Ceclio: Mane ut ex portu in Piraeum que um mau representante da Latinitas ,
mas Terncio, cujas peas, por causa da elegncia da linguagem, se achava que eram escritas por C. Llio: heri
aliquot adulescentuli coiimus in Piraeum, assim como: Mercator hoc addebat, captam e Sunio. Pois, se queremos que
demos sejam cidades, Snio uma cidade tambm, da mesma forma que Pireu. Mas, j que s um gramtico, peo
que me resolvas esse problema por mim, me liberando de um grande enfado).
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seleo de obras era complexo, pois no havia uma motivao apenas. Juntamente com
a qualidade literria, se levava em considerao o valor moral e exemplificador, pois
estas obras tinham tambm o propsito de educar os jovens romanos no somente no
gosto literrio, mas tambm nos valores essenciais, e, por isso, alguns gneros eram
deixados de lado por causa de seu contedo pouco edificante. Nesse sentido, a pica
sempre precedia a tragdia, a comdia e a lrica, na preferncia dos grammatici, pois
aquele era considerado o gnero mais elevado, capaz de suscitar nos jovens nobres
sentimentos e de lhes oferecer altos exemplos para que fossem imitados.
No que se refere aos gregos, que nunca deixaram de ser estudados, como
veremos no prximo item, Homero era o nico absolutamente imprescindvel, os outros
dependiam do critrio do professor, que em muitos casos seguia o cnon construdo
pelos fillogos alexandrinos. Tratando-se dos autores latinos, no ltimo quarto do
sculo I a.C., tinha relevncia nio, seguido por Nvio, Lvio Andronico, cio,
Pacvio, Luclio e Terncio. Catulo, Proprcio e Ovdio foram considerados
inadequados para o uso didtico pelo seu contedo pouco exemplificador, fato que nos
permite explicar, de certa forma, a ausncia destes autores na obra de Prisciano, que
parece, portanto, referendar uma prtica de citaes de exemplos entre os gramticos
vigente, pelo menos, desde o sculo I d.C.
Ainda segundo esta pesquisadora, no sculo III, j estava estabelecido um cnon
mais ou menos fixo de autores latinos usados pelos gramticos como definidores dos
padres da lngua, a respeito de cujas obras foram escritos alguns comentrios. Assim,
a lista de leitura que devia servir de base para a formao na escola dos gramticos j
no sofria nenhuma modificao. De fato, como podemos ver ao final do sculo IV, o
manual de Arusiano Mesio aponta Virglio e Terncio como poetas favoritos,
completando o quarteto com os prosadores Ccero e Salstio. Do mesmo modo, no
sculo VI, como vemos, tambm Prisciano parece consolidar este modelo.
Sendo assim, quando analisamos os autores latinos citados por Prisciano,
percebemos a enorme quantidade de citaes de Virglio (231 citaes), o que nos
permite compreender que este poeta continuava importante para a formao cultural do
romano, mesmo sendo esta obra, como sabido, produzida em um contexto bem
diverso daquele em que circulavam os primeiros manuais de gramtica, e, ainda mais
distante da obra de Prisciano.
Constantinopla, a cidade em que Prisciano teria escrito sua gramtica era, da
parte oriental do Imprio, sua populao majoritariamente helenofnica, mas, mesmo
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assim, importava queles cidados, que se identificavam como cidados romanos,
habitantes da Nova Roma, a preservao de certo ideal identitrio, atravs do estudo
da lngua latina segundo os grandes autores da tradio potica. De fato, a proeminncia
conferida aos exemplos extrados de Virglio (231 citaes) e, em seguida, Terncio
(110 citaes), e autores como Ccero, Salstio e Tito Lvio, tambm presentes na obra
em questo, assim como Lucano, Horcio, Estcio, Juvenal e Prsio, nos leva a
concluir que Prisciano preservava o modelo j estabelecido nos estudos gramaticais de,
pelo menos, o sculo III.
Apenas um autor citado por Prisciano no aparece nesta lista cannica herdada
dos antigos gramticos: Solino. Solino foi um gramtico que viveu durante os sculos
III ou IV, mas a obra que Prisciano cita se chama De mirabilibus mundi, e uma obra de
historiografia. Apesar de esse autor apresentar apenas duas citaes no corpus, no
podemos desconsiderar sua presena no De constructione, pois, comparativamente,
Prsio, que um autor cannico, teve cinco citaes apenas. curioso o fato de
Solino ser o autor mais prximo de Prisciano na linha cronolgica e tambm ter sido um
gramtico.
2.3 O grego e o latim na gramtica: algumas comparaes
As diferenas que encontramos entre as citaes gregas e latinas nos levou a
refletir sobre alguns aspectos. Para realizarmos essa comparao, considerando as
citaes gregas e latinas na gramtica de Prisciano, primeiramente devemos
compreender um pouco o bilinguismo na cultura antiga. O primeiro ponto a se pensar
que no podemos tratar o bilinguismo no contexto antigo da mesma forma que o
tratamos hoje em dia com lnguas modernas, j que, no temos evidncias de como os
antigos utilizavam uma segunda lngua oralmente, por exemplo. Outra questo
importante era que o bilinguismo se encontrava muito no mbito intelectual, como o
caso da gramtica de Prisciano. No caso especfico do gramtico, devemos levar em
considerao que, naquele perodo, o latim no era mais uma lngua falada. Os alunos
do gramtico eram falantes de grego e o latim era uma lngua utilizada para fins
burocrticos principalmente. (Biville, 2008, Oikonomide, 1999). A primeira diferena
do bilinguismo, comparado com o bilinguismo muito comum na poca da repblica e
imprio romano, por exemplo, presente em Prisciano, justamente, o fato de no ser
mais o grego a segunda lngua, e sim o latim. Ou seja, o grego aparece como um suporte
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para os alunos que esto aprendendo o latim, como uma referncia para os falantes
nativos de grego, tendo um valor didtico na gramtica.
A primeira diferena que observamos que as citaes gregas apresentam um
nmero muito maior de autores (31 autores) em relao s citaes latinas (11 autores),
apesar de o nmero de citaes gregas ser inferior ao nmero de citaes latinas. Assim,
notamos, tambm, ao observar os grficos, que as citaes gregas esto melhor
distribudas, diferentemente do que constatamos no corpus de citaes latinas, em que
Virglio representa quase 50% das citaes. Pensamos que uma explicao possvel para
o grande nmero de autores gregos seria que o gramtico teria um maior contato com a
literatura grega, sendo tambm ele um usurio daquela lngua que, conforme dizemos,
era a mais falada na regio. Um ponto importante que refora essa hiptese a maneira
como Prisciano deixa de fazer referncias explcitas s obras gregas em seus exemplos,
principalmente nas citaes de Homero: talvez algumas dessas citaes fossem feitas de
memria. Outra evidncia a esse favor seria, exatamente, a presena de autores como
Theopompus, Antiphon e Deinarchus, cujas nicas fontes que sobreviveram ao tempo se
encontram na obra de Prisciano. Dito de outro modo, entre o repertrio de autores
gregos, no esto presentes somente aqueles mais cannicos.
De fato, quando observamos as citaes gregas, percebemos que Homero no
o autor de destaque, os autores mais citados por Prisciano so Demstenes (55 citaes)
e Plato (49 citaes), logo em seguida esto Iscrates (25), Homero (19), Tucdides
(19), Xenofonte (18), Aristfanes (16) e Herdoto (15). Ou seja, o gramtico, em se
tratando das citaes gregas, no segue o cnon tradicional dos autores citados em
gramticas (comparativamente, na obra de Apolnio Dscolo, por exemplo, Homero
representa mais de 80% do total de citaes).
Com exceo de Homero, os autores em evidncia vo do sculo V ao VI a.C., e
os gneros textuais mais destacados so oratria, retrica e filosofia, diferentemente
tambm dos principais gneros presentes nas citaes latinas, que so a poesia pica
(Virglio) e a dramaturgia (Terncio), o que nos leva a concluir que, para Prisciano, o
cnon grego privilegia a prosa, e o latino, o verso. Talvez Prisciano tentasse criar um
efeito de complementaridade entre o grego e o latim. Prosa (grega) mais poesia (latina)
perfazem uma totalidade indissocivel, do mesmo modo que a lngua grega e a latina
eram tambm consideradas lnguas irms (utraque lngua) e, por conseguinte, o Imprio
Romano, j dividido, deveria tambm ser unificado.
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4 - Concluso
Com o nosso estudo, podemos concluir que Prisciano faz diferentes escolhas
quanto s citaes gregas e latinas, seguindo aquele cnon, j consagrado, de autores
latinos, presentes nos tratados gramaticais latinos desde o sculo III d.C., e inovando em
suas escolhas de autores gregos, contradizendo at mesmo a representatividade de
autores citados por Apolnio Dscolo, autor que Prisciano elege como seu mais
importante modelo.
Nos dois casos, a reunio dessas citaes ao final de sua obra parece configurar um
arquivo de exemplos, uma espcie de amostra, bastante abrangente e variada, de
ocorrncias lingusticas de ambas as lnguas, segundo um repertrio escolhido de
autores latinos e gregos. Em nossos estudos, percebemos que Prisciano cria esse
arquivo, para que pudesse ser consultado pelos que estudavam latim pela sua obra,
uma espcie de depositrio de referncias das lnguas latina e grega. O autor parece ter a
preocupao de reunir a maior quantidade de exemplos lingusticos das duas lnguas e
exp-las em um mesmo lugar. Por outro lado, o estudo desse arquivo, que parece no
conversar com o restante da obra, pde nos trazer informaes relevantes sobre o
pensamento gramatical de Prisciano e tambm sobre modelo de lngua latina e grega o
autor privilegia, quais os autores que a representam e os gneros gramaticais mais
citados nas gramticas, e nos permite construir um modelo de identidade lingustica
perseguido pelo gramtico.
Trata-se de uma seo sem precedentes na tradio gramatical antiga, o que a
torna mais um elemento original da vasta e complexa obra de Prisciano, e que colabora
para sublinhar no somente a importncia cultural daqueles autores gregos e latinos,
mas uma identidade de lngua grega e latina. De fato, o arquivo de exemplos um
elemento nico na gramtica de Prisciano, o que nos permite concluir que o autor no
apenas segue um modelo, mas instaura um pensamento bastante original, o que o torna
especialmente relevante ao contexto da gramtica antiga.
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