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O Bom Selvagem e a Utopia Da Plenitude Humana

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Uma leitura da identidade nos povos nativos brasileiros à luz da concepção do "bom selvagem".

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O BOM SELVAGEM E A UTOPIA DA PLENITUDE HUMANA1

Valéria Moura Venturella2

Este trabalho realiza uma leitura das obras História da Província Santa Cruz a que

vulgarmente chamamos Brasil, Ubirajara, A Expedição Montaigne e Coisas de Índio,

buscando identificar e definir as diferentes representações do povo nativo brasileiro em suas

semelhanças e diferenças ao longo das obras. O trabalho também busca confrontar essas

representações com a concepção de “bom selvagem”, conforme expressa por Jean-Jacques

Rousseau em Discurso sobre as Ciências e as Artes, Emílio e Do Contrato Social.

O suíço Jean-Jacques Rousseau, pensador de grande influência na filosofia, na

política, na literatura e na educação (ARBOUSSE-BASTIDE; MACHADO, 1978), produziu

sua obra na Europa do século XVIII, um contexto em que as pequenas comunidades

extratoras tradicionais rapidamente davam lugar a centros urbanos em que tanto a

população quanto a riqueza cresciam, sendo que a última se distribuía de maneira

marcadamente desigual entre as pessoas (JOHNSTON, 1999). Ao vivenciar essa realidade

e refletir sobre esse contexto, o autor percebeu uma contradição fundamental entre o estado

de natureza e a sociedade civilizada, e atribuiu a degenerescência da humanidade à sua

trajetória do estado natural primitivo às sociedades modernas.

O fio de sentido que percorre o trabalho de Rousseau, presente já em seu primeiro

ensaio, publicado em 1750, Discurso sobre as Ciências e as Artes (ROUSSEAU, 1978a), é

a idéia de que o ser humano é essencialmente bom e feliz quando em seu estado natural –

anterior à criação da civilização e da sociedade – mas, submetido à influência corruptora

das sociedades artificiais, marcadas pela interdependência, pela hierarquia e pela

desigualdade, ele se torna insatisfeito consigo mesmo, mesquinho e invejoso, ou seja, mau

e infeliz. “O luxo, a dissolução e a escravidão foram, em todos os tempos, o castigo dos

esforços orgulhosos que fizemos para sair da ignorância feliz na qual nos colocara a

sabedoria eterna” (op. cit., p. 341), afirma o autor para sustentar sua tese.

Para Rousseau, uma das mais gritantes evidências da falha das sociedades em

promover o bem comum é a presença das desigualdades, não as individuais – dadas pelas

características marcantes que diferem os seres humanos uns dos outros – mas as sociais,

que não apenas permitem que alguns possuam mais que outros, mas também – e em

1 Texto produzido como pré-requisito para a aprovação na disciplina Tópicos de Narrativa, ministrada pela Profa. Dra. Regina Zilbermann no Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Teoria da Literatura da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre – de março a julho de 2005.

2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Teoria da Literatura da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre e professora dos cursos de Pedagogia e Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Campus Uruguaiana.

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função dessas posses – atribuem importâncias e valores distintos a diferentes pessoas na

organização social. “Na ordem natural, sendo os homens (sic) todos iguais, sua vocação

comum é a condição de homem (sic) (ROUSSEAU, 1999, p. 14).

Ao longo de sua obra, Rousseau cultiva a representação idealizada de um ser

humano nobre e virtuoso por natureza, perfeito quando não submetido a coações sociais e

não exposto às maldades e aos vícios que emergem das relações civis. Essa representação

entrou para a tradição filosófica como “o bom selvagem”. É interessante observar que,

embora a mera menção do nome do pensador suíço nos remeta à concepção do “bom

selvagem”, Rousseau não chegou a usar essa expressão em seus escritos. O bom

selvagem – the noble savage nos termos originais – é uma criação do escritor inglês John

Dryden que, em sua obra dramática The Conquest of Granada, de 1670, assim descreve o

herói Almanzor, que luta pelos mouros contra os espanhóis que tentam conquistar Granada

(ROGERS, 2001).

Rousseau, em 1762, publicou simultaneamente Emílio, ou da Educação e Do

Contrato Social. Podemos considerar as duas obras como complementares, uma vez que

ambas advogam a retomada de valores essenciais que, em última instância, poderia

reconduzir os seres humanos à felicidade perdida no interior das sociedades, a primeira por

meio da educação dos jovens, e a segunda por meio da reorganização social.

Rousseau abre Emílio – um tratado minucioso que prescreve, passo a passo, a

formação de um jovem órfão desde seu nascimento até os 25 anos, idade em que é

considerado maduro para a vida em sociedade – afirmando que “tudo está bem quando sai

das mãos do autor das coisas, tudo degenera entre as mãos do homem (sic)” (ROUSSEAU,

1999, p. 7). Para que sua degeneração seja evitada, seu desenvolvimento é tutorado por um

sempre presente preceptor que se esforça para proporcionar ao menino um ambiente

natural, protegido das restrições sociais, e organizado de modo a fazer emergir suas mais

nobres inclinações inatas e a fazer de cada momento de sua vida um evento educativo.

Apesar de a proposta educacional presente em Emílio ser extremamente artificial,

cuidadosamente planejada e monitorada por um tutor atento a cada movimento de seu

discípulo, seu objetivo é, em última instância, autonomizante. Ao pregar um exercício

constante de auto-conhecimento – mesmo que não por meio da razão, mas da emoção e de

um envolvimento sensorial pleno com a natureza – Rousseau defende a maturação do ser

humano no sentido de atingir a crença de que a razão é seu melhor guia. A moralidade de

um ser humano educado nesses moldes, segundo o autor, não emana de leis e regras

exteriores, mas de sua consciência de si como um ser responsável por suas próprias ações,

embora colocado a conviver com outros em um grupo social. “Viver é o ofício que quero

ensinar-lhe” (op. cit., p. 14), diz o preceptor a Emílio.

Do Contrato Social inicia com a conhecida frase: “O homem nasce livre, e por toda a

parte encontra-se a ferros” (ROUSSEAU, 1978b, p. 22). Com esse trabalho, Rousseau

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pretendia, mais do que denunciar o estado de escravidão a que os seres humanos se

submetem em suas relações sociais, estabelecer fundamentos para que a humanidade

pudesse readquirir, legitimamente, no próprio seio da sociedade, a liberdade natural perdida.

Segundo o pensador, essa reconquista se tornaria possível através do

reconhecimento de uma vontade geral, de um interesse coletivo pelo bem comum, ou seja,

de um contrato social do qual todos participariam, com o qual todos se comprometeriam e

ao qual todos se submeteriam, mesmo que por ele tivessem que sacrificar suas ambições

pessoais. Esse modo de vida poderia, assim, promover a liberdade e a igualdade entre os

seres humanos. Rousseau propõe, desse modo, um pacto fundamental que, “em lugar de

destituir a igualdade natural, pelo contrário substitui por uma igualdade moral e legítima

aquilo que a natureza poderia trazer de desigualdade física entre os homens, que, podendo

ser desiguais na força ou no gênio, todos se tornam iguais por convenção e direito” (op. cit.,

p. 39).

Rousseau legou à história do pensamento humano a noção de que a sociedade –

com suas relações artificializadas e luxos supérfluos – corrompe a bondade e a felicidade

inatas de todo ser humano, e que devemos lutar, individual e socialmente, para reconquistar

a liberdade e a nobreza que nos foi tirada pelo progresso da civilização. É sob essa ótica

que as obras a seguir – e as diferentes representações do ser humano não-civilizado nelas

apresentadas – serão estudadas.

A História da Província Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil, escrita por

Pero Magalhães de Gandavo em 1575, é considerada o primeiro relato impresso em

português sobre o Brasil. Possivelmente com o objetivo de divulgar as belezas e as riquezas

da terra para possíveis colonizadores, Gandavo, ao relatar suas experiências nas terras

brasileiras, buscou oferecer uma descrição ampla e geral do Brasil – o clima, a fauna e a

flora, a gente e as oportunidades de enriquecimento – em uma linguagem acessível às

camadas populares do Portugal de então. “[...] nam busquei epitetos exquisitos, nem outra

fermosura de vocabulos de que os eloquentes Oradores costumão usar pera com artificio de

palavras engrandecerem suas obras” (GANDAVO, 1924, p. 76), adverte ele já no início do

texto.

Nessa obra, é possível percebermos o assombro europeu diante de um mundo novo,

exótico, incompreensível a seus olhos. Gandavo, apesar de reconhecer a diversidade de

nações e de línguas tradicionais ao longo da costa e de parte do sertão, tende a considerar

os nativos como um único povo indistinto: “ainda que estejam divisos, e haja entre elles

diversos nomes de nações, todavia na semelhança, condição, costumes, e ritos gentílicos,

todos sam huns: e se nalguma maneira differem nesta parte, he tam pouco, que se nam

pode fazer caso disso” (op. cit., p. 124). E é desse modo generalizante que o autor descreve

o aspecto físico, os traços de personalidade, as habitações, os ornamentos que

confeccionam e portam, os rituais e os costumes, e essas descrições são carregadas de um

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evidente tom de desaprovação e desprezo.

Os povos naturais brasileiros são representados como seres selvagens, muito

próximos aos animais, tanto que as palavras “macho” e “fêmea” são usadas no lugar de

“homem” e “mulher”. Ao contrário do que Rousseau viria a afirmar dois séculos mais tarde,

para o historiador português os nativos são impressionáveis, inconstantes, preguiçosos e

desonestos, além de dados aos vícios. Seu destemor se deve mais à impulsividade que à

bravura, e suas guerras – sem sentido aparente – mais parecem brincadeiras de crianças

em que muitos se ferem, outros tantos morrem e nenhum conflito é superado. Os nativos

são também desumanos e vingativos, e também praticantes cruéis e sanguinários de

canibalismo. É possível acreditar que a visão expressa pelo viajante português fosse

dominante entre os europeus que exploravam o novo mundo. Essa avaliação negativa, no

entanto, não impediu que os brancos estabelecessem relações – diplomáticas, comerciais,

de dominação, e até mesmo pessoais e sexuais – com os nativos.

Gandavo narra também a hospitalidade com que muitos povos recebiam os

portugueses, a estima que pareciam lhes dedicar e sua receptividade em relação aos

costumes e rituais religiosos do povo europeu. Quando a expedição de Cabral realizou sua

primeira missa cantada, por exemplo, os nativos a observaram com quietude, chegando a

acompanhar os portugueses nos gestos da cerimônia. O autor acredita que essa abertura

aos novos ritos se devia à falta de outra profissão de fé. “gente que nam tinha impedimento

de ídolos nem professava outra lei alguma que podesse contradizer a esta nossa” (op. cit.,

p. 78).

O cronista português revela também o valor econômico que os europeus viam nos

povos da terra, ao afirmar que eles podiam ser mantidos nas fazendas como escravos, o

que auxiliava os colonizadores na construção de sua fortuna na nova terra. Os que se

rebelavam contra a privação de liberdade e o trabalho forçado eram considerados hostis, e

combatidos impiedosamente. Já apenas 75 anos após o descobrimento do Brasil, Gandavo

relata a destruição de muitos nativos, mortos pelos portugueses “porque os mesmos Índios

se levantavão contra elles e lhes fazião muitas treições” (op. cit., p. 85). Os nativos rebeldes

que não sucumbiram nas lutas acabavam por ter de abandonar suas terras na costa para se

refugiar no sertão.

Ainda assim, ele revela admirar alguns aspectos do estilo de vida dos nativos, como

seus hábitos de higiene, sua solidez e a força de sua saúde, a harmonia em que vivem e o

respeito que cada nação dedica a seu líder, a quem o povo “obedece por vontade e nam por

força” (op. cit., p. 125).

Rousseau, em Do Contrato Social, afirma que “se se impõe obedecer pela força, não

se tem necessidade de obedecer por dever, e, se não se for mais forçado a obedecer, já

não se estará mais obrigado a fazê-lo” (ROUSSEAU, 1978b, p. 26). O pensador suíço

acredita que o único arranjo social sustentável se dá pela concordância voluntária de todos

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os membros da sociedade com as normas que regem seu comportamento e com a liderança

exercida pelo cabeça do grupo. Por sua vez, Daniel Munduruku, em Coisas de Índio, explica

porque o uso da força é desnecessário nas organizações sociais tradicionais. Um líder,

nesse tipo de sociedade, é respeitado por seus membros por possuir qualidades tais como a

disposição para o trabalho, a generosidade e o conhecimento profundo das tradições do

povo. Mesmo assim, afirma o autor, a autoridade do líder é limitada. Ele não tem poder

sobre as vidas individuais de seus liderados, e muitas das disputas entre pessoas ou entre

famílias não passam por seu crivo, cabendo às partes em conflito resolver o problema e

determinar a punição dos faltosos.

Enquanto Gandavo rotula essas resoluções entre partes como sede de vingança,

Johnston (1999), na conferência Introduction to Rousseau’s Emile, explica que as

comunidades primitivas geralmente encontram nas tradições preservadas nos rituais

coletivos seus modos próprios de lidar com os conflitos que emergem das relações entre

seus membros, sem necessitarem recorrer a um juiz imparcial. O autor afirma que isso se

deve ao sentimento de pertença e à compreensão mútua que une seus membros e mantém

a sociedade coesa. Essas sociedades, embora não contem com leis codificadas, educação

formal ou noções de direitos individuais, parecem garantir a normatização da vida em grupo.

Ao final de Ubirajara, o romancista brasileiro José de Alencar interpreta a visão de

Gandavo, assim como a de outros cronistas portugueses da mesma época, do seguinte

modo: “Homens cultos, filhos de uma sociedade velha e curtida por longo trato de séculos,

queriam esses forasteiros achar os indígenas (sic) de um mundo novo e segregado da

civilização universal uma perfeita conformidade de idéias e costumes” (ALENCAR, 1969, p.

145). Alencar critica, desse modo, a percepção estreita e preconceituosa expressa por

Gandavo, atribuindo-a, mais do que à estranheza, à falta de esforço, por parte dos

europeus, para tentar se deslocar de seu ponto de vista para compreender e valorizar os

povos nativos. “As coisas mais poéticas, os traços mais generosos e cavalheirescos do

caráter dos selvagens, os sentimentos mais nobres desses filhos da natureza, são

deturpados por uma linguagem imprópria”, afirma o autor (op. cit., p. 146), em pleno acordo

com o ideal de ser humano intrinsecamente bom pregado por Rousseau.

Alencar é considerado o escritor brasileiro que deu uma roupagem nacional ao

romantismo ao produzir as obras de sua chamada fase indianista O Guarani, Iracema e

Ubirajara (VERÍSSIMO, 1998). Mais do que oferecer uma visão idílica da vida que os nativos

levavam antes da chegada dos portugueses ao Brasil, o autor procurou, nesses romances

fundados no lirismo, promover não só um resgate da nobreza de nossos povos naturais,

mas a consolidação de uma identidade puramente brasileira, que Alencar acreditava estar

não nas áreas em rápido processo de urbanização da época, mas no passado histórico dos

povos originais.

Ubirajara, uma história que se passa antes da chegada dos europeus ao novo

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mundo, narra a saga de Jaguarê, um jovem caçador araguaia, que parte de sua taba em

busca de um adversário que, ao ser derrotado, possa lhe conferir o título e o prestígio de um

grande guerreiro. Ao combater e vencer Pojucã, um valoroso membro da nação Tocantim,

Jaguarê adota o nome Ubirajara – o senhor da lança.

Ubirajara, porém, não elimina Pojucã no combate, mas o captura e o leva para sua

taba como prova de seu triunfo e de sua capacidade de liderar seu povo. Ao descrever o

tratamento oferecido pelos araguaias a Pojucã após sua captura, Alencar nos oferece uma

visão alternativa à de Gandavo em História da Província Santa Cruz. Onde os olhos

europeus de Gandavo enxergavam apenas insensatez e crueldade, o romancista procura o

valor dos rituais em que se celebram e afirmam a coragem e a honra não só do vencedor,

mas especialmente do vencido.

Outro valor afirmado em Ubirajara é o amor sincero, que resiste aos percalços e à

decepção. Embora em sua tribo de origem estivesse prometido a Jandira, em sua busca por

um adversário à sua altura Jaguarê encontra Araci – a grande estrela do dia – e por ela se

apaixona. Araci, porém, é filha do líder tocantim Iraquê, e irmã de Pojucã. Está estabelecido

aqui o grande percalço que o herói Ubirajara deverá superar para chegar a seu apogeu.

Protegido pela “lei da hospitalidade” e pelo nome falso de Jurandir, Ubirajara é

recebido pelos tocantins. Escondendo o fato de que venceu e capturou Pojucã, ele é aceito

como servo do pai de Araci e se submete aos rituais de seleção do jovem que desposará a

filha do líder. Ao vencer o combate nupcial, Ubirajara se torna o esposo da jovem, e é então

chegado o momento de revelar à nação tocantim a verdade sobre a captura do irmão de

Araci, o que desencadeia a guerra entre as etnias Araguaia e Tocantim.

Ubirajara retorna, então, à sua tribo para anunciar o conflito e preparar seus

guerreiros. Ao chegar lá, porém, é informado de que os tocantins estão em guerra com os

tapuias. Quando Iraquê é cegado por um menino tapuia, os tocantins se vêem sem

liderança. Nesse momento, o herói demonstra novamente as qualidades de um grande

guerreiro, ao ser o único capaz de dobrar o arco de Iraquê, e se torna o novo líder tocantim.

A união entre os povos Araguaia e Tocantim, sob a liderança do jovem Ubirajara e de

suas duas esposas Jandira e Araci, originam a grande nação Ubirajara, que habitava a

nascente do Rio São Francisco quando da chegada dos europeus.

Representado por Alencar como um grande herói romântico – jovem, forte, corajoso

e bonito – Ubirajara é um personagem não histórico, mas lendário. “Chamei-lhe lenda”,

afirma o autor na “Advertência” ao final de Ubirajara. “Nenhum título responde melhor pela

propriedade, como pela modéstia, às tradições da pátria indígena” (ALENCAR, 1969, p.

145). Essa representação idealizada do nativo brasileiro, e de sua cultura original, alicerça

nosso nacionalismo romântico ao ressaltar valores como pureza de espírito, honra, bravura,

determinação, lealdade às tradições e espírito de comunidade, que Alencar afirmava

estarem no âmago do caráter nativo.

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Em seu crescimento, ao longo da narrativa, de um impetuoso caçador araguaia a um

sensato guerreiro e líder de dois povos, Ubirajara é um personagem utópico – mas que, na

visão de Alencar, poderia ser real – que encontra perfeitamente o “bom selvagem” de

Rousseau em todas as suas características. “Como admitir que bárbaros, quais nos

pintaram os indígenas, brutos e canibais, antes feras que homens fossem suscetíveis

desses brios nativos que realçam a dignidade do rei da criação?” (op. cit., p. 145), desafia o

escritor, em seu esforço para solidificar essa bela representação idealizada dos povos

naturais de nossa terra e, por conseguinte, de nossa própria essência.

É contra essa idealização que Antonio Callado parece, à primeira vista, se erguer

com sua obra iconoclasta, A Expedição Montaigne. Escrita em 1980, essa é uma narrativa

naturalista ácida, permeada pelo humor negro, das ridículas peripécias de Paiap, um

adolescente camaiurá resgatado do Crenaque – um arruinado reformatório para nativos

infratores localizado em Resplendor, Minas Gerais – pelo decadente e delirante jornalista

Vicentino Beirão, com o objetivo de realizar uma expedição de resgate, pelos nativos

remanescentes no solo brasileiro, das posses perdidas dos proprietários originais terra,

restabelecendo, “depois do breve intervalo de cinco séculos, o equilíbrio rompido”

(CALLADO, 1982, p. 11).

O personagem Paiap, de Callado, é um nativo que “não queria por nada deste

mundo voltar a ser índio” (op. cit., p. 13). Ele despreza o estilo de vida, os costumes, as

instituições, a arte e a sabedoria dos povos tradicionais, demonstrando admiração por tudo

o que é “dos brancos”, desde o papel higiênico até a cerveja, passando pelos apartamentos

e pelas calças de tergal. Desde menino, Paiap queria viver entre os brancos, pois acreditava

que “só fica lá no meio dos bichos e do mato quem não quer progredir na vida” (op. cit., p.

15).

Sua oportunidade surgiu quando, infectado pela tuberculose, foi levado a um

hospital, de onde fugiu – ainda doente – para a cidade. Após cometer uma série de

pequenos delitos, foi levado ao Crenaque, onde nada lhe faltava, seu lar. Ao chegar no

presídio, Paiap falava muito sobre Ipavu, a lagoa às margens da qual seu povo se

estabeleceu. Então, “[...] os brancos tinham trocado o nome dele pelo da lagoa” (op. cit., p.

13). Ipavu era seu novo nome, escolhido por seus novos companheiros brancos, em um

rebatismo e um reinício que Paiap aceitou de bom grado.

Durante sua estadia no “educandário”, a formação de Ipavu foi tutorada por Seu

Vivaldo, – uma espécie de avesso do tutor rousseauniano – que se encarregou de lhe

ensinar a se expressar em português, a apreciar cerveja, a trapacear, a roubar e,

principalmente, a odiar profundamente a condição dos nativos brasileiros, “o próprio estrume

da terra” (op. cit., p. 19). Seu Vivaldo, no entanto, havia percebido que “se a gente pegasse

índio bravo mas ainda meninote – e estava aí Ipavu, que não deixava ele mentir – a primeira

coisa que índio descobria era que ser índio era uma merda de fazer gosto” (op. cit., p. 19).

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Foi essa crença que inspirou Seu Vivaldo a se dedicar à formação de Ipavu.

Quando Vicentino Beirão invadiu o Crenaque, Ipavu concordou em segui-lo na

Expedição Montaigne na esperança de obter dinheiro com a venda das terras que

retomariam, o que lhe permitiria viver na cidade, usar roupas, freqüentar o cinema e os

botequins. Além disso, Ipavu sonhava em raptar Uiruçu – um gavião real domesticado desde

filhote e criado na aldeia como animal de estimação e como auxiliar de caça – o único

habitante de sua aldeia de quem sentia saudades.

Ao seguir viagem com Vicentino Beirão, Ipavu nunca pensa em sua família ou seus

companheiros camaiurás. Inicialmente feliz com a companhia do jornalista e fascinado com

as estradas e cidades, ele parece ter esquecido de todos, exceto de Ieropé, o pajé da

aldeia, que merece seu mais profundo desprezo. O menino o considera “um pajé muito

bunda mole e atrasadão, fumando aquele charuto de folha para soprar nos doentes e

secando umas merdas dumas ervas do mato, que tanto serviam para dor de dente como

para extrema-unção” (op. cit., p. 33).

Em Coisas de Índio, Munduruku descreve o pajé – ou xamã – como um prestigiado

líder religioso, o membro da comunidade que tem poderes de cura e de comunicação com o

sobrenatural. O xamã é preparado desde jovem para conhecer os segredos da natureza e

dos espíritos e para cuidar da saúde física e espiritual de seu povo. O pajé representado por

Callado, ao contrário, é um homem desgastado, decaído e já perdendo o juízo. Vencido

pelas tentações oferecidas pela medicina moderna – penicilina, aspirina, aralém e “elixir

paregó”, entre outros – Ieropé vem perdendo o respeito e a fé de seu povo, não consegue

preparar um aprendiz e vive atormentado pelo remorso de ter-se rendido à medicina

alopática quando se viu acuado pela morte, mesmo depois de ter veementemente negado o

mesmo tratamento a uma nativa que agonizava com uma infecção.

Sua surpreendente recuperação, no entanto, chega no momento em que, finalmente

chegando à aldeia camaiurá no meio da noite, arrastando Vicentino Beirão, esgotado mas

ainda lúcido – após longas caminhadas quase sem rumo, quase sem comida e regadas a

cachaça – Ipavu abre a gaiola de Uiruçu, retira dali a ave e em seu lugar coloca o jornalista,

inconsciente e ardendo em febre devido à malária. Ao acordar no meio da noite, Ieropé se

depara com aquele branco semi-morto, balbuciando palavras incompreensíveis dentro da

gaiola, e conclui que o gavião real havia se transformado em ser humano.

“Acorda, cambada camaiurá, acorda e obedece de novo a Ieropé, pajé de todos” (op.

cit., p. 114), grita o xamã, exibindo Vicentino a seu povo. Como que em transe, os

camaiurás montam uma fogueira e nela ritualisticamente queimam o branco para celebrar o

retorno dos poderes de seu pajé, e a recuperação de seu orgulho e de sua identidade.

Ipavu, após capturar Uiruçu, embarca com ele em uma canoa para fugir para a

cidade, mas morre enquanto eles ainda se encontram na margem do rio. Gandavo, em

História da Província Santa Cruz, explica que algumas águias são tiradas de seus ninhos

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quando ainda são pequenas e criadas para que os nativos possam fazer uso de suas penas

na confecção de adornos. Para Ipavu, porém, o gavião real é mais do que uma fonte de

penas para enfeites. A imagem de Uiruçu é como um refúgio, um elo espiritual com uma

vida mais confortável, mais saudável, mais feliz, ao qual ele recorre quando as dores no

peito não o deixam dormir, ou quando, ao longo da caminhada, sua coragem e suas forças

ameaçam o abandonar.

Esta conexão entre Ipavu e Uiruçu responde pela bela cena de fechamento da

narrativa, quando o gavião parece conduzir a canoa em que jaz o corpo morto do menino ao

Morená, o local de descanso das almas camaiurás já desprendidas de seu corpo. O lirismo

e a ironia deste final são surpreendentes. Acima do desprezo que sentia por sua própria

condição, Ipavu guardava o amor que toda criança tem por seu animal de estimação, seu

companheiro de jogos e brincadeiras infantis, seu amigo. E foi esse amigo que se

encarregou de conduzir a alma de Ipavu ao local a que sempre pertenceu.

Ipavu é representado por Callado como um anti-herói: doente, fraco, alcoólatra,

amoral, anômico. Ignorante tanto a respeito das tradições e dos costumes nativos quanto do

modo de vida nas cidades, o menino vive em um limbo, fora de sua própria condição e

também à margem da sociedade organizada, que não o reconhece como um igual e não se

interessa por seu destino. Rousseau descreve com precisão a condição em que Ipavu se

encontra. “No estado em que agora as coisas estão, um homem abandonado a si mesmo

desde o nascimento entre os outros seria o mais desfigurado de todos. Os preconceitos, a

autoridade, a necessidade, o exemplo, todas as instituições sociais em que estamos

submersos abafariam nele a natureza, e nada poriam em seu lugar” (ROUSSEAU, 1999, p.

7), explica o autor a respeito de um selvagem abandonado à própria sorte no mundo

civilizado. Qualquer resquício de sua bondade e felicidade inatas seria asfixiado pelas

pressões externas, impedindo que sua boa natureza emergisse e se manifestasse.

Permeando a obra de Callado, para além do humor e da ironia, é possível perceber

uma penetrante denúncia do modo de vida a que os povos nativos estão submetidos nos

tempos modernos. Divididos entre o tradicional e o moderno, seduzidos pelos apelos da vida

urbana, eles passam a questionar – e até mesmo a desprezar – seu modo de vida, suas

tradições, seus valores e sua identidade sem, no entanto, terem o que colocar em seu lugar.

É um equilíbrio entre esses dois mundos – o tradicional e o civilizado – que Daniel

Munduruku parece buscar com seu trabalho.

Munduruku é um filósofo, professor e escritor que viveu entre seu povo – a nação

paraense de quem ele herda o sobrenome – até os 15 anos, antes de se mudar para a zona

urbana (MUNDURUKU, 2002), e que se dedica a preservar e difundir a cultura dos povos

tradicionais brasileiros. É com esse objetivo que dá entrevistas e palestras, mantém um

domínio na worldwide web e produz obras literárias para os públicos infanto-juvenil e adulto,

entre as quais está Coisas de Índio.

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Munduruku declara, na apresentação de Coisas de Índio, que realizou esse trabalho

com o propósito de “oferecer algum tipo de material para crianças e jovens que queiram

conhecer um pouco mais sobre os povos indígenas do Brasil” (MUNDURUKU, 2004, p. 7).

Reconhecendo que as riquezas culturais nativas necessitam e merecem investigações mais

profundas, o autor se esforça para oferecer aos leitores um panorama atraente e acessível

do modo de vida, da arte, da tecnologia, da medicina, das tradições e das crenças dos

nativos brasileiros, pontuando seu livro com exemplos de manifestações artísticas e mitos

tradicionais, e cuidadosamente passando ao largo de temas mais polêmicos como a

violência, os conflitos, o tratamento de prisioneiros de guerra, o canibalismo e a poligamia.

Por acreditar que o compartilhamento de tradições pode promover a compreensão

entre os diferentes grupos de uma sociedade complexa como a brasileira, e auxiliar o

combate à discriminação e aos preconceitos, Munduruku prega que não há cultura que seja

inferior ou superior às outras. Elas são apenas diferentes. E essas diferenças devem ser

não apenas respeitadas, mas valorizadas.

Munduruku representa o nativo brasileiro como um ente dotado de um conjunto de

características culturais distintivas e particularizantes.”[...] ser índio é ter uma identidade, um

estilo de vida” (op. cit., p. 8). O autor argumenta que a palavra “índio” é pouco adequada

para designar nossos povos tradicionais, uma vez que, historicamente, marca a inferioridade

desses povos em relação aos imigrantes europeus e também por ser excessivamente geral

e não comportar a diversidade existente entre as diversas nações do território brasileiro.

Apesar de usar o termo “índio” repetidas vezes ao longo de seu livro, Munduruku propõe

que as diversas etnias sejam referidas por seus nomes, tais como Guarani, Yanomami e Ma

Kuxi.

Na representação do autor, o nativo é essencialmente amoroso, justo, honesto,

verdadeiro e desprendido de bens materiais, capaz de “olhar as coisas com o coração e não

com os olhos da ganância e da exploração” (op. cit., p. 8), e para quem a terra é um

elemento de fundamental importância, não por seu valor material, mas por assegurar a

sobrevivência física, cultural e espiritual. Para os povos nativos, a terra não é apenas um

recurso, mas também um guardião sagrado, o lugar que abriga a cultura do povo e seus

antepassados.

Em vivo contraste com o Ipavu de Callado, o nativo representado por Munduruku é

consciente e cioso de sua cultura,”o que faz com que as pessoas de um povo, de uma

sociedade, olhem e pensem o mundo e as coisas de uma determinada maneira, sempre

muito própria. A partir da cultura, as pessoas estabelecem o seu modo de agir e de se

relacionar com o mundo, com outras pessoas e com as coisas” (op. cit., p. 51).

Munduruku afirma que a cultura de um povo é “uma construção coletiva e

compartilhada. [...] Cada pessoa pertence a uma determinada cultura, e isso lhe dá

identidade. O orgulho desse ‘pertencimento’ é o que faz com que cada um defenda sua

Page 11: O Bom Selvagem e a Utopia Da Plenitude Humana

própria cultura e queira que ela sobreviva” (op. cit., p. 34). Pode-se depreender daí que a

sobrevivência do próprio povo se conecta à sobrevivência de sua cultura. À voz de

Munduruku se une a de Johnston (1999) que afirma que as pequenas e primitivas

comunidades agrícolas e extratoras são mantidas agregadas pelos rituais compartilhados

por seus membros. Esses rituais, cerimônias vivenciadas coletivamente e consideradas

essenciais pelos membros desses grupos, conferem à sociedade uma identidade e a cada

membro um sentimento de pertença, consolidados e transmitidos através das gerações.

Munduruku não deixa de reivindicar o cumprimento da legislação que protege os

povos nativos “exatamente por eles serem diferentes” (MUNDURUKU, 2004, p. 28), e um

maior apoio da sociedade brasileira às nações que hoje sofrem as mazelas da pobreza, da

fome e da doença, causadas pela perda de suas terras e de suas tradições e pelo contato

maléfico com os colonizadores da terra. Ele também denuncia a violenta repressão cultural

sofrida pelos povos tradicionais a partir do descobrimento do Brasil, que causou a extinção

de grande parte da diversidade de línguas e de tradições culturais. O autor nativo, no

entanto, afirma que mesmo as nações que tiveram sua língua, suas narrativas orais, suas

tradições e seus rituais – e, por conseguinte, sua identidade – extintos pelo processo de

aculturação sofrido ao longo dos séculos devem ser considerados parte dos povos

tradicionais brasileiros, mesmo que pouco ou nada lhes reste. Segundo o autor, eles “são as

testemunhas vivas de um processo que nunca foi justo com os indígenas brasileiros” (op.

cit., p. 71).

Esse é o outro lado do processo descrito por Gandavo como o trabalho de

catequização dos incivilizados brasileiros realizado pelos dedicados religiosos cristãos

europeus. Em diversos outros aspectos, tais como a descrição das aldeias, da arquitetura

das moradias, da dieta, da ornamentação dos corpos para as cerimônias, dos rituais de

união entre homens e mulheres, e da organização política dos povos nativos, o relato de

Munduruku se aproxima do de Gandavo, embora os ângulos pelos quais esses elementos

são apreciados sejam diametralmente opostos.

Enquanto Gandavo desaprova o modo como observa os nativos educarem suas

crianças, “viciosamente, sem nenhuma maneira de castigo” (GANDAVO, 1924, p. 129),

afirmando que os adultos oferecem às crianças apenas “aquella criação em que a natureza

foi universal a todos os autros animaes que nam participam de razão” (op. cit., p. 129),

Munduruku descreve a educação das crianças nativas de modo bastante semelhante ao

pregado por Rousseau em Emílio. Os pequenos nativos ocupam um espaço privilegiado na

sociedade, são ouvidos e amados pelos mais velhos, acalentados quando choram e jamais

punidos fisicamente. Crescem em liberdade, sem imposições ou restrições, aprendendo

enquanto brincam em contato direto com o ambiente natural e também observando e

ouvindo as histórias dos adultos. À medida que crescem, passam a colaborar na vida

produtiva e a participar da vida social da comunidade. São geralmente bem comportadas, e

Page 12: O Bom Selvagem e a Utopia Da Plenitude Humana

se tornam adultos responsáveis por si e merecedores da própria vida.

Uma das características da vida dos nativos que mais espanta Gandavo é seu

desapego em relação às riquezas materiais, e a ausência de noção de propriedade privada,

o que leva as pessoas a viverem descansadamente, “á custa de pouco trabalho”

(GANDAVO, 1924, p. 129) e a compartilharem o pouco que se satisfazem em possuir.

Munduruku explica que a economia das sociedades nativas é fundamentada na satisfação

das necessidades básicas. Como não há propriedade individual ou acumulação de riquezas

– uma vez que os recursos pertencem a todos e estão sempre disponíveis – a produção se

volta para o consumo imediato. O que Gandavo vê como preguiça, Munduruku explica como

sabedoria. Uma vez cumpridas as tarefas necessárias, os adultos dedicam tempo para a

socialização. “Brincam com os filhos, conversam com os amigos, contam a história de sua

caçada, confeccionam enfeites ou artigos utilitários, dançam, cantam, enfim, divertem-se”

(MUNDURUKU, 2004, p. 89). Embora exista uma divisão entre as tarefas que cabem aos

homens e às mulheres, todos sabem produzir os objetos de que necessitam em seu dia-a-

dia. Os materiais são encontrados no meio, e não há trabalho especializado.

Segundo Rousseau (1999), a natureza nos faz livres e independentes, uma vez que,

no estado natural, nossos desejos encontram nossa própria habilidade de satisfazê-los. As

crianças devem ser educadas, segundo o autor, para não desejarem mais do que podem

obter a partir de seu ambiente. O preceptor de Emílio preferia que ele construísse seus

próprios brinquedos e utensílios em vez de usar objetos feitos por outros. Seu objetivo, com

isso, era tornar o jovem autônomo, capaz de suprir suas necessidades e prosperar mesmo

na ausência dos confortos da civilização. Além disso, o pensador suíço pregava que os

jovens deveriam ser protegidos das tentações corruptoras oferecidas pelo mundo moderno,

que incluíam os livros. O único texto permitido ao jovem Emílio era Robinson Crusoe, de

Daniel Defoe, que narra o esforço empreendido por um homem civilizado para se adaptar e

sobreviver no ambiente natural.

As modernas sociedades, no entanto, com seus padrões artificiais de riqueza, geram

nas pessoas o desejo por bens desnecessários e o sentido de competitividade em relação a

nossos semelhantes. A civilização nos bombardeia com objetos, nos ensina a necessitá-los

e a atribuir a eles não apenas valor, mas também a capacidade de nos trazer felicidade.

Nesse processo, a importância atribuída a esses bens nos desconecta das qualidades que

nos definem como humanos: a liberdade e a autonomia (ROUSSEAU, 1999). Munduruku

ilustra essa idéia ao afirmar, em Coisas de Índio, que a chegada dos europeus aos territórios

tradicionais gera “um aumento imediato das necessidades em função do contato”

(MUNDURUKU, 2004, p. 56), necessidade essa de bens que os próprios nativos não podem

produzir.

Reconhecendo, como Rousseau, que não há retorno possível para sociedades que

saíram de sua condição natural para uma organização artificial, Munduruku propõe que os

Page 13: O Bom Selvagem e a Utopia Da Plenitude Humana

grupos nativos, para preservar sua identidade, sua cultura e sua própria existência, se

organizem em cooperativas e associações que podem ser vistas como uma leitura

contemporânea da proposta feita pelo pensador suíço em Do Contrato Social. “Encontrar

uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com

toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo a si

mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes” (ROUSSEAU, 1978b, p. 32).

Liberdade, para Rousseau, não significa a realização de todos os nossos impulsos e

vontades ou a aquisição de tudo o que julgamos necessitar, mas uma conquista progressiva

– partindo da afetividade em direção à racionalidade – de auto-consciência e da consciência

de nosso papel no mundo. Desde o nascimento, segundo o autor, devemos aprender a

merecer a vida, a assumir responsabilidade por nós mesmos e pelo quanto apreciamos

nossa existência. “Viver não é respirar, mas agir; é fazer uso de nossos órgãos, de nossos

sentidos, de nossas faculdades, de todas as partes de nós mesmos que nos dão o

sentimento de nossa existência. O homem que mais viveu não é o que contou maior número

de anos, mas aquele que mais sentiu a vida” (ROUSSEAU, 1999, p. 15).

Já do ponto de vista da organização social, é a conquista de um acordo, a busca de

uma coincidência entre o bem individual e o bem coletivo, que origina um conjunto de regras

impostas por cada indivíduo a si mesmo, com o objetivo de garantir esse bem. Nesse

sentido, as vantagens de um estado natural seriam aliadas às vantagens de uma vida social,

potencializando os benefícios de ambas à conquista da felicidade humana (ROUSSEAU,

1978c).

Rousseau não era, portanto, ingênuo a ponto de pregar um retorno da humanidade a

um estado natural, e não pretendia, em sua obra, negar os avanços propiciados pela

civilização. O que ele buscava era chamar a atenção de uma sociedade cada vez mais

fascinada por seus progressos e suas conquistas para o lado negativo de seu

desenvolvimento. O que ele afirmava é que, embora a sociedade seja perversora, e faça

emergir nas pessoas suas características mais negativas, é necessário encontrar um modo

de neutralizar seus efeitos, uma maneira de combater seu potencial desumanizador no

interior da própria sociedade.

O bom selvagem deve, então, ser entendido como uma idealização teórica, um

conceito utópico de um ser humano ainda não civilizado que representa a virtude, a nobreza

e a bondade que poderíamos portar se vivêssemos em um estado natural e não fôssemos

influenciados pelas pressões negativas da civilização. No entanto, mesmo utópico, o bom

selvagem representa uma proposta: embora não possamos retornar a um estado de

natureza, podemos ao menos buscar uma vida em sociedade baseada em valores mais

essenciais e menos superficiais, procurar vivenciar uma noção de liberdade mais espiritual e

menos material. “Renunciar à [esse tipo de] liberdade é renunciar à qualidade de homem,

aos direitos da humanidade, e até aos próprios deveres. [...] destituir-se voluntariamente de

Page 14: O Bom Selvagem e a Utopia Da Plenitude Humana

qualquer liberdade equivale a excluir a moralidade de suas ações” (ROUSSEAU, 1978b, p.

49).

Ao final de Ubirajara, Alencar nos convoca a ter olhos críticos para com os escritos

sobre os povos nativos produzidos pelos relatores portugueses do período do

descobrimento. “Os historiadores, cronistas e viajantes da primeira época, se não de todo o

período colonial, devem ser lidos à luz de uma crítica severa. É indispensável sobretudo

escoimar os fatos comprovados, das fábulas a que serviam de mote, e das apreciações a

que os sujeitavam espíritos acanhados, por demais imbuídos de uma intolerância ríspida”

(ALENCAR, 1969, p. 145). Na tentativa de elaboração de uma representação das nações

tradicionais brasileiras ao longo de nossa história, essa é uma boa recomendação, não só

para a leitura dos antigos relatores, como para a leitura de qualquer trabalho sobre o tema.

Assim como ocorre em qualquer outro grupo humano em nosso planeta, nossas

diversas etnias nativas não são constituídas por bárbaros desprovidos de características

humanas – como descreve Gandavo – do mesmo modo como não são entes sublimes livres

de imperfeições – como querem Alencar e Munduruku. São simplesmente seres humanos,

em cujo interior – tanto do ponto de vista individual como social – convivem contradições,

características boas e ruins, independentemente do conjunto de valores a partir do qual nos

disponhamos a avaliá-los. Considerando que a construção de qualquer representação da

identidade nativa deve contemplar essa realidade, essa se torna uma tarefa virtualmente

impossível.

O filósofo espanhol Fernando Savater, em O Valor de Educar, elabora uma metáfora

para descrever a unidade e a diversidade humanas a partir da botânica. Para ele, o que os

vegetais têm de mais semelhante são suas raízes, ao passo que suas diferenças residem

na anatomia de seus caules, folhas e flores. Tanto as raízes similares quanto as diversas

manifestações externas das plantas garantem sua sobrevivência e a riqueza e o equilíbrio

da flora de qualquer região. O mesmo, segundo o pensador, ocorre com os seres humanos.

Independentemente de nossa etnia, somos , em nossas profundezas, formados por “aquilo

que nos torna semelhantes, que nunca está ausente onde há homens (sic), o que nenhum

grupo, cultura ou indivíduo pode reclamar como exclusivo ou exclusivamente seu, o que

temos em comum” (SAVATER, 2000, p. 187), como o uso das linguagens, a disposição para

a racionalidade, as noções de passado, presente e futuro, a consciência da morte. Todo o

resto – as mais diversas expressões culturais, os modos de organização das comunidades,

as realizações artísticas e científicas, a educação dos jovens – isso são os diversos modos

próprios que cada grupo assume para revelar suas raízes humanas comuns a todos os

outros grupos.

Savater afirma que “o bem principal que devemos produzir e aumentar é a

humanidade compartilhada, semelhante no que é fundamental, a despeito das tribos e

privilégios com que, também muito humanamente, nos identificamos” (op. cit., p. 180).

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Nesse sentido, uma representação da identidade dos povos nativos brasileiros deve

contemplar suas características específicas – o trabalho a que Munduruku se dedica – ao

mesmo tempo em que reforça a noção de que todos os seres humanos compartilham os

traços que lhes tornam humanos, entre os quais o direito à liberdade e à busca de

felicidade, em um esforço que prima não pela afirmação da distinção, mas da similitude.

Nesse ponto, podemos retornar a Rousseau, que descreve a plenitude humana do

seguinte modo:

“um estado em que a alma pode encontrar um abrigo seguro o suficiente para ali se estabelecer e concentrar seu ser inteiro, sem a necessidade de lembrar o passado ou ansiar pelo futuro, em que o tempo lhe é nada, onde o presente decorre indefinidamente embora essa duração não seja percebida, sem sinal da passagem do tempo, e sem qualquer sentimento de privação ou contentamento, prazer ou dor, desejo ou medo, que o simples sentimento de existir, um sentimento que preenche inteiramente nossa alma, pelo tempo em que os estado dura, podemos nos considerar felizes, não com uma felicidade pobre, incompleta ou relativa como a que encontramos nos prazeres da vida, mas com uma felicidade suficiente, completa e perfeita que não deixa vazios a serem preenchidos na alma” (ROUSSEAU, 1979, p. 88-89).

Do mesmo modo que a noção do “bom selvagem”, esse estado de plenitude é

utópico, possível – pelo menos em nossas sociedades civilizadas contemporâneas –

somente no plano teórico. O menino Paiap, de Callado, só pode encontrá-la ao morrer e ser

carregado por Uiruçu ao local de repouso das almas camaiurás. A maior parte de nós, seres

humanos, jamais a alcançará.

O traço quimérico dessa plenitude, porém, assim como a utopia do Contrato Social

de Rousseau, não impede que busquemos viver e nos relacionar com os outros segundo

valores mais radicais – como quer Savater – ou seja, essencialmente humanos. A busca de

nosso enraizamento, nessa perspectiva, passa pelo reconhecimento de que compartilhamos

nossa verdadeira identidade, e que devemos buscar uma autonomia pessoal que contemple

o bem coletivo, global, de todos os povos. Não seremos verdadeiramente plenos, livres e

felizes enquanto não atingirmos esse ideal.

REFERÊNCIAS:

ALENCAR, José de. Ubirajara: lenda Tupy. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1969.

ARBOUSSE-BASTIDE, Paulo; MACHADO, Lourival Gomes. Rousseau: vida e obra. In: Os pensadores: Rousseau. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

CALLADO, Antonio. A expedição Montaigne. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

Page 16: O Bom Selvagem e a Utopia Da Plenitude Humana

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GANDAVO, Pero de Magalhães de. História da Província Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil. Rio de Janeiro: Annuário do Brasil, 1924.

JOHNSTON, Ian. Introduction to Rousseau’s Emile. Conferência proferida na Malaspina University-College, Nanaimo, Canadá, 1999. [On line]. Disponível em: «http://www.mala.bc.ca/~johnstoi/introser/rousseau.htm». Acesso em: jul. 2005.

MUNDURUKU, Daniel. Coisas de índio. São Paulo: Callis, 2003.

ROGERS, Pat. The Oxford illustrated history of English literature. Oxford: Oxford University Press, 2001.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre as ciências e as artes. In: Os pensadores: Rousseau. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978a.

_____. Do contrato social. In: Os pensadores: Rousseau. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978b.

_____. Emílio: ou, da educação. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

_____. Reveries of the solitary walker. London: Penguin, 1979.

SAVATER, Fernando. O valor de educar. São Paulo, Martins Fontes,2000.

VERÍSSIMO, José. História da literatura brasileira de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908). 5. ed. Brasília: UnB, 1998.