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Artigo O campo econômico * Pierre Bourdieu O conjunto da pesquisa desenvolvida há alguns anos a respei- to da produção e da comercialização de casas próprias ti- nha como finalidade colocar à prova os pressupostos teóricos, antropológicos, principalmente, sobre os quais repousa a orto- doxia econômica 1 . E isto no quadro de uma confrontação empírica em relação a um objeto preciso, rigorosamente construído, ao invés de por meio de um destes questionamen- tos prejudiciais, tão ineficazes quanto estéreis, que apenas re- forçam os crentes em suas convicções. Sendo a Ciência Econô- mica, de fato, o produto de um campo altamente diversifica- do, não há crítica a seus pressupostos ou suas insuficiências que ela mesma não tenha expressado 2 . Parecida com a hidra de Lerna, ela tem tantas cabeças diferentes, que sempre se pode achar uma que já levantou, mais ou menos bem, a ques- tão que se tenta lhe colocar, e sempre uma – não necessaria- mente a mesma –, da qual se podem tomar emprestados ele- mentos para respondê-la. Seus contestadores são assim con- denados a aparecer como ignorantes ou injustos. * Artigo publicado na revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales, nº 119, setembro de 1997, p. 48-66. Tradução de Suzana Cardoso e Cécile Raud-Mattedi. A publicação foi autorizada pela referida revista, pelo que agradecemos. 1 P. Bourdieu et al. L’économie de la maison, Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 81-82, mars 1990, p. 1-96. 2 Pode-se ter uma idéia da diferenciação do campo da Ciência Econômica, lendo, neste número, o artigo de Frédéric Lebaron dedicado ao único campo francês.

O campo econômico - FILOSÓFICA BIBLIOTECA...18 p. 15 – 57 N• 6 – abril de 2005 filogênese do que a ortodoxia econômica reúne, por uma formidá- vel abstração, sob o nome

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    O campo econômico*

    Pierre Bourdieu

    O conjunto da pesquisa desenvolvida há alguns anos a respei-to da produção e da comercialização de casas próprias ti-nha como finalidade colocar à prova os pressupostos teóricos,antropológicos, principalmente, sobre os quais repousa a orto-doxia econômica1. E isto no quadro de uma confrontaçãoempírica em relação a um objeto preciso, rigorosamenteconstruído, ao invés de por meio de um destes questionamen-tos prejudiciais, tão ineficazes quanto estéreis, que apenas re-forçam os crentes em suas convicções. Sendo a Ciência Econô-mica, de fato, o produto de um campo altamente diversifica-do, não há crítica a seus pressupostos ou suas insuficiênciasque ela mesma não tenha expressado2. Parecida com a hidrade Lerna, ela tem tantas cabeças diferentes, que sempre sepode achar uma que já levantou, mais ou menos bem, a ques-tão que se tenta lhe colocar, e sempre uma – não necessaria-mente a mesma –, da qual se podem tomar emprestados ele-mentos para respondê-la. Seus contestadores são assim con-denados a aparecer como ignorantes ou injustos.

    * Artigo publicado na revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales, nº 119,setembro de 1997, p. 48-66. Tradução de Suzana Cardoso e Cécile Raud-Mattedi.A publicação foi autorizada pela referida revista, pelo que agradecemos.

    1 P. Bourdieu et al. L’économie de la maison, Actes de la Recherche en SciencesSociales, 81-82, mars 1990, p. 1-96.

    2 Pode-se ter uma idéia da diferenciação do campo da Ciência Econômica, lendo,neste número, o artigo de Frédéric Lebaron dedicado ao único campo francês.

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    É por isso que me ocorreu, então, que seria preciso criar ascondições experimentais de um verdadeiro exame crítico, nãosomente de um ou outro aspecto da teoria econômica (como ateoria dos contratos, a teoria das antecipações racionais ou a teo-ria da racionalidade limitada), mas dos princípios mesmos daconstrução econômica, tais como a representação do agente e daação, das preferências ou das necessidades, enfim, de tudo o queconstitui a visão antropológica à qual, muitas vezes sem o saber,a maior parte dos economistas adere em sua prática.

    Mas o cuidado com a discrição, que me conduziu a recusaros manifestos teóricos, e a prudência epistemológica, que melevou a evitar as generalizações prematuras, talvez tenham feitocom que os ganhos empíricos e as interrogações teóricas trazidaspor estas pesquisas ficassem despercebidos. Assim, nem semprea descrição rigorosa da relação entre compradores e vendedores,e do roteiro quase invariável segundo o qual se desenrolam anegociação e a conclusão de contratos de venda foi vista comoencerrando um desmentido da filosofia individualista da Microe-conomia do agente como teoria das escolhas individuais, opera-das por agentes intercambiáveis e livres de qualquer pressão es-trutural, e suscetíveis de serem interpretados dentro da lógicapuramente aditiva e mecânica da agregação3. Não se viu tampoucoque as pressões estruturais que pesam sobre os agentes econô-micos, sejam eles simples consumidores, sejam responsáveis deunidades de produção mais ou menos amplas, não se reduzem àsnecessidades inscritas, num dado momento do tempo, nas dis-ponibilidades econômicas imediatas ou na instantaneidade dasinterações: assim, além do fato de que a marca e o domínio docampo estão inscritos nas disposições dos agentes, é toda a es-trutura do campo dos construtores de casas próprias que pesasobre as decisões dos responsáveis, quer se trate de determinaros preços, quer se trate das estratégias publicitárias4. Mas a prin-

    3 P. Bourdieu, com S. Bouhedja e C. Givry, Un contrat sous contrainte, loc. cit., p. 34-51.4 P. Bourdieu, com S. Bouhedja, R. Christin e C. Givry, Un placement de père de

    famille. La maison individuelle, spécificité du produit et logique du champ deproduction, loc. cit., p. 6-33.

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    cipal contribuição destas pesquisas despojadas de toda a apare-lhagem técnica do discurso econômico (a ponto talvez de parece-rem ingênuas àqueles que somente avançam armados de abstra-ções econômicas), é que elas mostram que tudo o que a ortodo-xia econômica considera como um puro dado, a oferta, a deman-da, o mercado, é o produto de uma construção social, é um tipode artefato histórico, do qual somente a história pode dar conta.E que uma verdadeira teoria econômica só pode se construir rom-pendo com o preconceito antigenético, para se afirmar como umaciência histórica. Isto implicaria que ela se empenhasse, prioritaria-mente, a submeter à crítica histórica suas categorias e seus con-ceitos que, em grande parte emprestados sem exame do discursocomum, são protegidos de tal crítica pelo amparo da formalização.

    Revelou-se, de fato, que o mercado das casas próprias (como,provavelmente, em graus diferentes, todo mercado) é o produtode uma dupla construção social, para a qual o Estado contribui demaneira decisiva: a construção da demanda, através da produçãodas disposições individuais e, mais precisamente, dos sistemasde preferências individuais – em matéria de propriedade ou delocação, notadamente5 – e, também, através da atribuição dosrecursos necessários, isto é, das ajudas do Estado à construçãoou à habitação definidas pelas leis e regulamentações, das quaisse pode também descrever a gênese6; e a construção da oferta,através da política do Estado (ou dos bancos), em termos de crédi-to aos construtores, o qual contribui, com a natureza dos meios deprodução utilizados, para definir as condições de acesso ao mer-cado e, mais precisamente, a posição na estrutura do campo, ex-tremamente espalhado, dos construtores de casas e, portanto, aspressões estruturais que pesam sobre as escolhas de cada umdeles, em matéria de produção e de publicidade7. E se se vai atéo fim do trabalho de reconstrução histórica da ontogênese e da

    5 P. Bourdieu e M. de Saint-Martin, Le sens de la propriété. La genèse sociale dessystèmes de préférence, loc. cit., p. 52-64.

    6 P. Bourdieu e R. Christin, La construction du marché. Le champ administratif et laproduction de la “politique du logement”, loc. cit., p. 65-85.

    7 P. Bourdieu, com S. Bouhedja, R. Christin e C. Givry, loc. cit.

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    filogênese do que a ortodoxia econômica reúne, por uma formidá-vel abstração, sob o nome quase indefinível de mercado, descobre-se, ainda, que a demanda se especifica e se define completamenteapenas em relação a um estado particular da oferta e também dascondições sociais, jurídicas notadamente (regulamentações em ma-téria de construção; alvarás, etc.), que permitem satisfazê-la8.

    Quanto ao “sujeito” das ações econômicas, é difícil não ver,sobretudo a propósito da compra de um produto tão carregadode significado quanto uma casa, que ele não tem nada da puraconsciência sem passado da teoria, e que a decisão econômicanão é a de um agente econômico isolado, mas a de um coletivo,grupo, família ou empresa, funcionando à maneira de um campo.No mais, além de serem profundamente enraizadas no passado,sob a forma de disposições ou de rotinas, através da história in-corporada dos agentes responsáveis por elas, as estratégias eco-nômicas são, na maioria das vezes, integradas num sistema com-plexo de estratégias de reprodução, estando, portanto, plenas dahistória de tudo ao que visam perpetuar.

    Nada autoriza a fazer abstração da gênese das disposiçõeseconômicas do agente econômico e, mais especialmente, de suaspreferências, de seus gostos, de suas necessidades ou de suasaptidões (ao cálculo, à poupança, etc.), tampouco da gênese dopróprio campo econômico, isto é, da história do processo de dife-renciação e de autonomização que conduziu à constituição destejogo específico, do campo econômico como cosmo obedecendo asuas próprias leis9. Foi somente muito progressivamente que aesfera das trocas de mercado se separou dos outros âmbitos daexistência e que se afirmou seu nomos específico (“negócios sãonegócios”); que as transações econômicas cessaram de ser conce-bidas com base no modelo das trocas domésticas – comandadas,

    8 P. Bourdieu, Droit et passe-droit. Le champ des pouvoirs territoriaux et la mise enoeuvre des règlements, loc. cit., p. 86-96.

    9 Se preciso repetir aqui coisas já ditas alhures, é que este texto pode, por seu objeto,ter leitores pouco familiarizados com minhas análises, as quais nem sempre foramvistas como se aplicando, e de maneira muito especial, ao objeto da Economia.

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    portanto, pelas obrigações sociais ou familiares – e que o cálculodos lucros individuais – portanto o interesse econômico – impôs-se como princípio de visão dominante, senão exclusivo (contra orecalque da disposição calculista).

    A história das origens, na qual as disposições capitalistasse inventam, ao mesmo tempo em que se institui o campo noqual elas se efetuam, e, sobretudo, a observação das situações(muitas vezes coloniais) nas quais agentes dotados de disposi-ções ajustadas a uma ordem pré-capitalista são brutalmente ar-remessados num mundo capitalista permitem afirmar que as dis-posições econômicas exigidas pelo campo econômico, tal comonós o conhecemos, não têm nada de natural e de universal, massão produto de toda uma história coletiva, que deve ser semprereproduzida nas histórias individuais. Ignorar, como atesta a aná-lise estatística das variações das práticas econômicas em termosde crédito, de poupança ou de investimento conforme o volumedos recursos econômicos e culturais possuídos, que há condiçõeseconômicas e culturais de acesso às condutas que a teoria econô-mica considera como racionais, é instituir as disposições produ-zidas em condições econômicas e sociais particulares como me-dida e norma universal de toda conduta econômica, e fazer daordem econômica do mercado o fim exclusivo, o telos, de todo oprocesso de desenvolvimento histórico10. Mais amplamente,querer conhecer e reconhecer apenas a lógica do cinismo racio-nal, é se privar de compreender as condutas econômicas maisfundamentais, a começar pelo próprio trabalho11.

    10 Sobre as condições econômicas do acesso ao cálculo econômico, poder-se-á verP. Bourdieu. Travail et travailleurs en Algérie. Paris-La Haye: Mouton, 1963 (comA. Darbel, J. P. Rivet, C. Seibel) e Algérie 60. Structures économiques et structurestemporelles. Paris: Ed. de Minuit, 1977, e sobre as condições culturais, poder-se-á ler uma descrição da emergência progressiva da market culture, teoria socialespontânea que descreve as relações sociais “[...] exclusivamente em termos demercadoria e de trocas, enquanto elas continuavam a implicar muito mais” in W.Reddy. The rise of market culture, the textile trades and french society, 1750-1900. Cambridge: Cambridge University Press, 1984.

    11 Sobre a dupla verdade do trabalho, ver P. Bourdieu, Méditations pascaliennes.Paris: Ed. du Seuil, 1997, p. 241-244.

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    O mercado como mito inteligente

    Como muito comentarista já notou, a noção de mercado quasenunca é definida, e menos ainda discutida. Assim, DouglasNorth observa: “it is a peculiar fact that the literature oneconomics [...] contains so little discussion of the central institutionthat underlies neo-classical economics – the market”1. Na verdade,esta acusação ritual não faz muito sentido, na medida em que, coma revolução marginalista, o mercado cessa de ser algo concretopara se tornar um conceito abstrato sem referência empírica, umaficção matemática remetendo ao mecanismo abstrato de formaçãodos preços descrito pela teoria da troca (ao custo da colocaçãoentre parênteses, consciente e explicitamente reivindicada, das ins-tituições jurídicas e estadistas). A noção encontra sua expressãocompleta em Walras, com as noções de mercado perfeito, caracteri-zado pela concorrência e a informação perfeitas, e de equilíbriogeral num universo de mercados interconectados. Definição nãoisenta de problemas, como qualquer um pode se convencer ao con-sultar o manual de referência das “industrial organization theorists”:The notion of market is by no means simple. Obviously, we do notwant to restrict ourselves to the homogeneous good case. If we positthat two goods belong to the same market if and only if they areperfect substitutes, then virtually all markets would be served by asingle firm – firms produce goods that are at least slightly differencia-ted (either physically or in terms of location, availability, consumerinformation, or some other factor). But most firms actually do notenjoy pure monopoly power. An increase in price leads consumers tosubstitute somewhat toward a small number of alternative goods.Therefore the definition of market should not be too narrow. Thedefinition should not be too broad either. Any good is a potentialsubstitute for another, if only in an infinitesimal way. However the marketshould not be the entire economy. In particular, it should entail partialequilibrium analysis. It should allow a single description of the main

    1 D. North. Markets and other allocations Systems. In: History: the challengeof Karl Polanyi, Journal of European Economic History, 1977, 6, p. 703-716;pode-se lembrar as duas transgressões, sempre citadas, desta lei do silêncio:Marshall. Principles of Economics, 1890 – com o capítulo “On Markets” – eJoan Robinson, artigo Market da Encyclopedia Britannica – retomado inCollected Economic Papers. (NT: As citações estão em inglês no texto origi-nal; neste sentido, decidimos mantê-las no mesmo idioma).

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    interactions among firms. It is also important to realize that the ‘right’definition of a market depends on the use to which it will be put2.Decidindo ignorar a “dificuldade empírica” que consiste em definir omercado, o autor supõe que o mercado “involves either a homogeneousgood or a group of differentiated products that are fairly goodsubstitutes (or complements) for at least one good in the group andhave limited interaction with the rest of the economy”. Vê-se como,para salvar o mercado como mecanismo puro de encontro entre aoferta e a demanda, é-se conduzido a deixar a construção do mercadoao arbítrio de uma decisão ad hoc, sem justificação teórica e sem valida-ção empírica (fora, talvez, as medidas de elasticidade destinadas a fazeraparecer uma ruptura na cadeia dos substitutos). Na verdade, as condi-ções que devem ser preenchidas para que todo equilíbrio de mercadoseja um optimum (a qualidade do produto é bem definida, a informaçãoé simétrica, os compradores e os vendedores são numerosos o bastan-te para excluir qualquer cartel monopolista) quase nunca são realiza-das, e os raros mercados em conformidade ao modelo são artefatossociais repousando sobre condições de viabilidade extremamente ex-cepcionais, tais como redes de regulações públicas ou de organiza-ções. Devido a sua ambigüidade, ou a sua polissemia, a noção de mer-cado permite evocar, alternativamente ou simultaneamente, o sentidoabstrato, matemático, com todos os efeitos de ciência associados, outal ou qual dos sentidos concretos, mais ou menos próximos da experi-ência comum, como o lugar onde ocorrem trocas – marketplace –, oacordo sobre os termos da transação numa troca – concluir um merca-do –, os escoamentos de um produto – conquista de mercado –, oconjunto das transações abertas a um bem – o mercado do petróleo –, o mecanismo econômico característico das “economias de mercado”.Ela se encontra, assim, predisposta a desempenhar o papel de “mitointeligente”, disponível para todos os usos ideológicos fundados sobreo deslizamento semântico. Assim, os membros da Escola de Chicago, emais especialmente Milton Friedman3, fundamentaram seus esforçospara reabilitar o mercado (notadamente contra os intelectuais, presu-midamente hostis4) na identificação do mercado com a liberdade, fa-zendo da liberdade econômica a condição da liberdade política.

    2 J. Tirole. The theory of industrial organization. Cambridge: The MIT Press,1988, p. 12.

    3 M. Friedman. Capitalism and freedom. Chicago: Chicago University Press, 1962.4 G. Stigler. The intellectual and the marketplace. Cambridge: Harvard

    University Press, 1963 (1984), espec. p. 143-158.

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    O campo econômico se distingue dos outros campos pelofato de que as sanções são especialmente brutais e que as condu-tas podem se atribuir publicamente como fim a busca aberta damaximização do lucro material individual. Mas a emergência deum tal universo não implica de modo algum a extensão a todasas esferas da existência da lógica de troca mercantil que, atravésdo commercialization effect e do pricing, fundamentalmente ex-cluída pela lógica da troca de dádivas, tende a reduzir qualquercoisa ao estado de mercadoria comprável e a destruir todos osvalores. (Assim, como Richard Titmus bem o mostrou, em The giftrelationship, as trocas de sangue destinado à transfusão são maiseficazes quando se fundamentam na dádiva do que quando obe-decem a uma lógica estritamente comercial, e o fato de se tratarcomo mercadorias “bens” como o sangue ou órgãos humanosnão é sem conseqüências morais, podendo contribuir para favo-recer o declínio do altruísmo e da solidariedade.)12 Dimensõesinteiras da existência humana e, em particular, as esferas da famí-lia, da arte ou da literatura, da ciência e mesmo, numa certa me-dida, da burocracia permanecem, pelo menos em grande parte,estranhas à busca da maximização dos lucros materiais. E, nopróprio campo econômico, a lógica do mercado nunca conseguiusuplantar completamente os fatores não econômicos na produ-ção ou no consumo (por exemplo, na economia da casa, os aspec-tos simbólicos, que permanecem muito importantes, podem serexplorados economicamente). As trocas nunca são completamen-te reduzidas a sua dimensão econômica, e, como lembravaDurkheim, os contratos têm sempre cláusulas não contratuais.

    O interesse econômico (ao qual se reduz comumente todotipo de interesse) é apenas a forma específica que reveste o illusio, oinvestimento no jogo econômico, quando o campo é apreendidopor agentes dotados das disposições adequadas, porque adquiridasem e por uma experiência precoce e prolongada das necessidadesdo campo (como as crianças de uma pequena escola da Inglaterra

    12 R. M. Titmus. The gift relationship. From human blood to social policy. NewYork: Pantheon, 1971.

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    13 Certos defensores da teoria das antecipações racionais sugerem que a melhorutilização da informação disponível, tendo em vista o objetivo que se trata demaximizar, é obtida progressivamente ao termo de uma aprendizagem por tenta-tivas e erros. A teoria das disposições (do habitus) permite fundamentar a exis-tência de antecipações razoáveis na ausência mesma de qualquer cálculo racional.

    14 Esperando que seja produzida uma formalização obedecendo a estes princípios,pode-se pedir à análise das correspondências, cujos fundamentos teóricos sãomuito parecidos, para fornecer uma representação dos campos. (cf. P. Bourdieu etM. de Saint Martin. Le patronat. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 20-21, mars-avril 1978, p. 3-82, introduction).

    que constituíram, há alguns anos, uma sociedade de seguros contraas punições)13. As disposições econômicas mais fundamentais, comonecessidades, preferências e propensões – ao trabalho, à poupança,ao investimento, etc. – não são exógenas, isto é, dependentes deuma natureza humana universal, mas endógenas e dependentes deuma história, que é aquela mesma do cosmo econômico onde elassão exigidas e recompensadas. Quer dizer, contra a distinção canônicados fins e dos meios, o campo econômico impõe a todos (em grausdiferentes, conforme suas capacidades econômicas) os fins (o enri-quecimento individual) e os meios “razoáveis” de atingi-los.

    A estrutura do campo

    Para romper com o paradigma dominante, que se esforça paraatingir o concreto pela combinação de duas abstrações – a teoria doequilíbrio geral e a teoria do agente racional –, é preciso, assumindoa historicidade constitutiva dos agentes e de seu espaço de açãonuma visão racionalista ampliada, tentar construir uma definiçãorealista da racionalidade econômica como encontro entre disposi-ções socialmente constituídas (numa relação a um campo) e as estru-turas, elas mesmas socialmente constituídas, deste campo.

    Os agentes criam o espaço, isto é, o campo econômico, quesó existe pelos agentes que se encontram nele e que deformam oespaço na sua vizinhança, conferindo-lhe uma certa estrutura.Dito de outro modo, é na relação entre as diferentes “fontes decampo”, isto é, entre as diferentes empresas de produção, que seengendram o campo e as relações de força que o caracterizam14.

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    Mais concretamente, são os agentes, isto é, as empresas, defini-das pelo volume e a estrutura do capital específico que possuem,que determinam a estrutura do campo e, assim, o estado dasforças que se exercem sobre o conjunto (comumente chamado “se-tor” ou “ramo”) das empresas engajadas na produção de bens se-melhantes. As empresas exercem efeitos potenciais que variam emsua intensidade, lei de decréscimo e direção. Elas controlam umaparte do campo (fatia do mercado), tanto maior quanto seu capitalfor mais importante. Quanto aos consumidores, seu comportamentose reduziria inteiramente ao efeito do campo, se eles não tivessemuma certa interação com ele (em função de sua inércia, totalmentemínima). O peso associado a um agente depende de todos os ou-tros pontos e das relações entre todos os pontos, isto é, de todo oespaço compreendido como uma constelação relacional.

    Mesmo que se insista aqui sobre as constantes, não se ignora que ocapital, sob suas diferentes espécies, varia conforme a particularida-de de cada subcampo, isto é, conforme a história deste campo, con-forme o estado de desenvolvimento (e, em particular, o grau de con-centração) da indústria considerada e conforme a particularidade doproduto15. No fim do imenso estudo que realizou sobre as práticasde fixação dos preços (pricing) de diversas indústrias americanas16,Hamilton relacionava o caráter idiossincrático dos diferentes ramos(isto é, dos diferentes campos) à particularidade das histórias de suaemergência, cada uma sendo caracterizada por seu modo de funcio-namento próprio, suas tradições específicas, sua maneira particularde chegar às decisões de definição dos preços17.

    A força ligada a um agente depende de seus diferentes re-cursos, por vezes chamados strategic market assets, fatores dife-renciais de sucesso (ou de fracasso) que podem lhe assegurar umavantagem na concorrência, isto é, mais precisamente, do volume

    15 O campo econômico é constituído de um conjunto de subcampos, correspondendoao que se entende geralmente por “setores” ou “ramos” da indústria.

    16 W. H. Hamilton. Price and price policies. New York: Mac-Graw Hill, 1938.17 M. R. Tool. Contributions to an institutional theory of price determination. In: G.

    M. Hodgson, E. Screpanti. Rethinking Economics, markets, technology and economicevolution. European Association for Evolutionary Political Economy, 1991, p. 29-30.

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    e da estrutura do capital que ele possui, sob suas diferentes for-mas: capital financeiro, atual ou potencial, capital cultural (nãoconfundir com o “capital humano”), capital tecnológico, capitaljurídico, capital organizacional (incluindo o capital de informa-ção e conhecimento sobre o campo), capital comercial e capitalsimbólico. O capital financeiro é o domínio direto ou indireto(por intermédio do acesso aos bancos) de recursos financeirosque são a condição principal (com o tempo) da acumulação e daconservação de todas as outras espécies de capital. O capital tecno-lógico é o portifólio de recursos científicos (potencial de pesqui-sa) ou técnicos diferenciais (procedimentos, atitudes, rotinas ecompetências únicas e coerentes, capazes de diminuir a despesaem mão-de-obra ou em capital, ou de aumentar o rendimento)susceptíveis de serem implementados na concepção e na fabrica-ção dos produtos. O capital comercial (equipe de venda) derivado controle de redes de distribuição (armazenagem e transporte)e de serviços de marketing e pós-venda. O capital simbólico resi-de no controle de recursos simbólicos baseados sobre o conheci-mento e o reconhecimento, como a imagem da marca (goodwillinvestment), a fidelidade à marca (brand loyalty), etc.18; poder quefunciona como uma forma de crédito, ele supõe a confiança ou acrença dos que lhe estão submetidos porque estão dispostos aatribuir crédito (é este poder simbólico que invocam Keynes, quan-do afirma que uma injeção de dinheiro funciona se os agentescrêem que ela funciona, e a teoria das bolhas especulativas).

    A estrutura da distribuição do capital e a estrutura da dis-tribuição dos custos, ela mesma ligada principalmente ao tama-nho e ao grau de integração vertical, determinam a estrutura docampo, isto é, as relações de força entre as firmas, o controle deuma parte muito importante do capital (da energia global) confe-

    18 O capital financeiro, o capital técnico e o capital comercial existem ao mesmo temposob a forma objetivada (equipamentos, instrumentos, etc.) e sob a forma incorporada(competência, habilidades, etc.). Pode-se ver uma antecipação da distinção entre osdois estados do capital, objetivado e incorporado, em Veblen, que acusa a teoriaortodoxa do capital de superestimar os ativos tangíveis em detrimento dos intangí-veis. (Th. Veblen. The instinct of workmanship. New York: Augustus Kelley, 1964).

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    rindo um poder sobre o campo, e portanto, sobre os pequenosdetentores de capital. Ela comanda também o direito de entradano campo e a distribuição das chances de lucro. As diferentesespécies de capital não agem somente de maneira indireta, atra-vés dos preços; elas exercem um efeito estrutural, porque a ado-ção de uma nova técnica, o controle de uma parte maior do mer-cado, etc., modificam as posições relativas e as performances detodas as espécies de capital detidas pelas outras firmas.

    À visão interacionista, que não conhece nenhuma outra for-ma de eficácia social que não seja a “influência” diretamenteexercida por uma firma (ou uma pessoa encarregada de representá-la) sobre uma outra, através de uma forma qualquer de “interven-ção”, é preciso opor uma visão estrutural, que leve em conta osefeitos de campo, isto é, as pressões que, através da estrutura docampo – tal como a define a distribuição desigual do capital, istoé, das armas (ou dos recursos) específicas – se exercem continua-mente, fora qualquer intervenção ou manipulação direta, sobre oconjunto dos agentes engajados no mesmo campo, restringindotanto mais seu espaço de possibilidades (ou seja, o leque das op-ções que lhes são abertas), quanto mais mal colocados forem nestadistribuição. É por meio do peso que detêm nesta estrutura, maisdo que pelas intervenções diretas que podem também operar (atra-vés, notadamente, das redes de participação cruzada nos conse-lhos de administração – interlocking directorates –, que são umaexpressão mais ou menos deformada daquelas intervenções)19,que as firmas dominantes exercem sua pressão sobre as firmasdominadas e sobre suas estratégias. É sua posição na estrutura(portanto, a estrutura) que faz com que elas definam as regularida-des e, às vezes, a regra do jogo e os próprios limites do jogo; quefaz com que elas modifiquem, apenas pela sua existência e tam-bém por sua ação (uma decisão de investimento ou uma modifica-ção dos preços, por exemplo), todo o ambiente das outras empre-sas e o sistema das pressões que pesam sobre elas ou o espaço das

    19 B. Minth, M. Schwarz. The power structure of american business. Chicago: TheUniversity of Chicago Press, 1985.

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    possibilidades que se oferecem a elas, limitando e delimitando oespaço dos deslocamentos táticos e estratégicos possíveis. As deci-sões (dos dominantes, como dos dominados) são somente esco-lhas entre possíveis definidos (em seus limites) pela estrutura docampo. As “intervenções”, quando ocorrem, devem sua existênciae eficácia à estrutura das relações objetivas no seio do campo entreaqueles que as operam e aqueles que lhe estão submetidos.

    Exemplo típico destes efeitos estruturais, irredutíveis a inter-venções intencionais e pontuais de agentes singulares, o campointernacional do capital financeiro deve provavelmente sua apa-rência de fatalidade (ao menos, numa certa visão jornalística dos“mercados financeiros”) ao fato de que não precisa intervir direta-mente junto aos governos nacionais para lhes impor e menos ain-da lhes proibir uma política. O poder estrutural que ele exerce seconcretiza através dos efeitos não necessariamente desejados quepode ter, sobre os custos da política destes governos, uma modifi-cação dos prêmios de risco sobre as taxas de juros nacionais ou dastaxas de câmbio; custos que variam – conforme a posição dos paí-ses implicados na estrutura da distribuição do capital e na hierar-quia do poder – desde o racionamento do crédito, ao qual podemser submetidos os países pobres, até a “impunidade” dos paísesricos que, sobretudo quando sua moeda serve de moeda internacio-nal de reserva, são capazes, como os EUA, de escapar das conseqü-ências de uma política de déficit orçamentário e comercial.

    A estrutura do campo e a distribuição desigual dos recursos(economias de escala, vantagens tecnológicas, etc.) contribuem paraassegurar a reprodução do campo, através das “barreiras à entra-da”, resultantes da desvantagem permanente que os novos queentram devem enfrentar, ou do custo de exploração que eles de-vem quitar. Estas tendências imanentes à estrutura do campo (comoaquelas que fazem com que o campo favoreça os agentes que têmmais capital), e que vêm reforçar a ação de todo tipo de “institui-ções visando a reduzir a incerteza” (uncertainty-reducing institutions),conforme a expressão de Jan Kregel20 – como contratos salariais,

    20 J. A. Kregel. Economic methodology in the face of uncertainty. Economic Journal,86, 1976, p. 209-225.

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    contratos de dívida, preços administrados, acordos comerciais –ou dos “mecanismos que fornecem informação sobre as ações po-tenciais dos outros agentes econômicos”, fazem com que o campotenha uma duração e um futuro previsível e calculável. As regulari-dades inscritas na estrutura do campo e nos jogos recorrentes quese desenrolam nele fazem com que os agentes adquiram receitas,habilidades e disposições transmissíveis, que são a base de anteci-pações práticas pelo menos rudimentarmente fundamentadas.

    Pelo fato de o campo econômico ter como particularidadeautorizar e favorecer a visão calculadora e as disposições estra-tégicas que a acompanham, não é preciso escolher entre umavisão puramente estrutural e uma visão estratégica: as estraté-gias mais conscientemente elaboradas só podem se exercer noslimites e nas direções que lhes são atribuídos pelas pressõesestruturais e pelo conhecimento, desigualmente distribuído,destas pressões (o capital de informação que está asseguradoaos ocupantes de uma posição dominante – através, notada-mente, da participação em conselhos de administração ou, nocaso dos bancos, através dos dados fornecidos pelos solicitantesde crédito – é, por exemplo, um dos recursos que permitemescolher as melhores estratégias de gestão do capital). A teorianeoclássica, que se recusa a levar em conta os efeitos de estru-tura e, a fortiori, as relações objetivas de poder, poderá explicaras vantagens conferidas aos mais ricos em capital pelo fato deque, estando mais diversificados e tendo uma maior experiên-cia e uma melhor reputação (portanto, mais a perder), eles ofe-recem as garantias que permitem lhes fornecer capital a um menorcusto, e isto, por simples razões de cálculo econômico. E istoconduzirá, provavelmente, a se argumentar que tal teoria dáconta de maneira mais rigorosa da realidade das práticas eco-nômicas, invocando-se, com certos teóricos, o papel “discipli-nar” do mercado como instância capaz de assegurar a coorde-nação ótima das preferências (os indivíduos estando obrigadosa submeter suas escolhas à lógica da maximização dos lucros,sob pena de serem eliminados – como os gerentes que não de-fendem bem os interesses dos acionários no momento das to-madas de controles das firmas) ou, mais simplesmente, o efeito

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    do preço – ligado ao fato de que, assim que um produtor au-menta sua produção, ou sua capacidade de produção, ele pro-duz um efeito de preço que afeta os outros produtores.

    Na verdade, contrariamente à representação comum, que,para retomar conceitos altamente aproximativos freqüentementeutilizados pelos economistas, associa o “estruturalismo”, con-cebido como uma forma de “holismo”, à adesão a um determinis-mo radical21, levar em conta a estrutura do campo e seus efei-tos não leva de modo algum a anular a liberdade de jogo dosagentes. Pelo contrário, construir o campo de produção comotal é restaurar, na sua total responsabilidade de price makers, osprodutores que a teoria ortodoxa – submetendo-os sem condi-ções ao poder determinante do mercado, princípio da dinâmicae da forma mesma da produção – reduz, assim como os consu-midores, ao papel insignificante de price takers22.

    Abandonar a noção, tipicamente escolástica, de equilíbrio (demercado ou de jogo) em favor da noção de campo é abandonar alógica abstrata do price taking, isto é, da determinação automáti-ca, mecânica e instantânea do preço em mercados entregues auma concorrência sem pressão, para se situar no ponto de vistado price making, isto é, do poder (diferencial) de determinar ospreços de compra (dos materiais, do trabalho, etc.) e os preços devenda (portanto, os lucros), poder que, em certas empresas mui-to grandes, é delegado a especialistas particularmente formadospara este fim, os price setters. É reintroduzir, ao mesmo tempo, a

    21 Sem consideração do “princípio do determinismo estratificado”, proposto por P.Weiss, que afirma a “determinação – determinacy – no conjunto – in the gross - adespeito de uma indeterminação – indeterminacy – demonstrável no detalhe – inthe small –”. (P. A. Weiss. The living system: determinism stratified. In: A. Koestler,J. R. Smythies (Eds). Beyond Reductionism: new perspectives in the life sciences.London: Hutchinson, 1969, p. 3-42).

    22 Como R. H. Coase bem mostrou, a hipótese, operacionalizada tacitamente pelateoria ortodoxa, dos custos de transação nulos (zero transaction costs) é o quepermite instantaneizar os atos de troca: “Another consequence of the assumptionof zero transaction costs, not usually noticed, is that, when there are no costs ofmaking transactions, it costs nothing to speed them up, so that eternity can beexperienced in split second” (R. H. Coase. The firm, the market and the law.Chicago: The University of Chicago Press, 1988, p. 15).

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    estrutura da relação de forças constitutiva do campo de produçãoque contribui, em grande parte, para determinar os preços aodeterminar as chances diferenciais de influenciar o pricing e que,mais geralmente, comanda as tendências imanentes aos meca-nismos do campo e, ao mesmo tempo, as margens de liberdadedeixadas às estratégias dos agentes23.

    A teoria do campo se opõe, assim, à visão atomicista e meca-nicista que superestima o efeito do preço, este deus ex machina, eque, como a física newtoniana, reduz os agentes (acionistas, ge-rentes ou empresas) a pontos materiais intercambiáveis, cujaspreferências, inscritas numa função de utilidade exógena ou até,na variante mais extrema, imutável, determinam as ações demaneira mecânica (a noção de “agente representativo”, que fazdesaparecer todas as diferenças entre os agentes e suas preferên-cias, sendo um artifício cômodo para construir modelos capazesde produzir previsões análogas às da mecânica clássica). Ela seopõe também, mas de outra maneira, à visão interacionista, quea ambigüidade fundamental da representação do agente comoátomo calculador permite fazê-la coabitar com a visão mecanicista,e segundo qual a ordem econômica e social se reduz a uma mul-tidão de indivíduos interagindo, na maioria das vezes de manei-ra contratual. Graças a uma série de postulados com graves con-seqüências, notadamente o que consiste em assumir que as fir-mas sejam tratadas como decision makers isolados que maximizamseus lucros24, a teoria moderna da organização industrial trans-fere para o nível de um coletivo como a firma (a qual se verá quefunciona, ela própria, como um campo) o modelo (cujo irrealismose reivindica, sem se extrair daí nenhuma inferência) da decisãoindividual como resultado de um cálculo consciente e conscien-temente orientado para a maximização do lucro (da firma). Ela seautoriza, assim, a reduzir a estrutura da relação de forças, que é

    23 Substituir mercado por campo é retornar à estrutura social específica (oposta emtudo à noção a histórica de mercado), pela qual são efetuadas praticamente acoordenação e a agregação das opções individuais.

    24 J. Tirole, op. cit., p. 4.

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    constitutiva do campo, a um conjunto de interações desprovidasde qualquer transcendência em relação àqueles que nelas estãoengajados, no momento, e suscetíveis de serem descritas na lin-guagem da teoria dos jogos. Perfeitamente congruente nos seuspostulados fundamentais com a filosofia intelectualista, que estátambém no fundamento da teoria neomarginalista, esta teoriamatemática, da qual se esquece que ela se construiu explicita-mente e expressamente contra a lógica da prática, –, na base depostulados desprovidos de qualquer fundamento antropológico,como o que quer que o sistema das preferências seja já constituí-do e transitivo25 – reduz tacitamente os efeitos dos quais o cam-po econômico é o lugar a um jogo de antecipações recíprocas.

    É assim que vários sociólogos, como Mark Granovetter, quecrêem escapar da representação do agente econômico comomônada egoísta fechada na “busca estreita de seu interesse” ecomo “ator atomizado tomando decisões fora de qualquer pres-são social”, apenas se desgrudam da visão benthamiana e do “in-dividualismo metodológico” para cair na visão interacionista, que,ignorando a pressão estrutural do campo, só quer (ou pode) co-nhecer o efeito da antecipação consciente e calculada que cadaagente teria dos efeitos de sua ação sobre os outros agentes (aqui-lo que um teórico do interacionismo como Anselm Strauss evoca-va sob o nome de awareness context26, fazendo assim desapare-cer todos os efeitos de estrutura e todas as relações objetivas depoder – um pouco como se se quisesse estudar as estratégias demutual deterrence, esquecendo-se que elas podem se instaurarapenas entre detentores da arma atômica); ou o efeito, pensado

    25 Os trabalhos clássicos de Amos Tversky e Daniel Kahnemann colocaram às claras asfalhas e os erros que cometem os agentes, em matéria de teoria das probabilidadese de estatística (A. Tversky e D. Kahnemann. Availability, A heuristic for judgingfrequency and probality. Cognitive Psychology, 2, 1973, p. 207-232; e, também, S.Sutherland. Irrationality, the ennemy within. London: Constable, 1972). O pressu-posto intelectualista que apóia estas pesquisas arrisca levar a ignorar que a lógica dasdisposições faz com que os agentes sejam capazes de responder na prática a situa-ções, colocando problemas de antecipação das probabilidades que não podem resol-ver abstratamente (Cf. P. Bourdieu. Le sens pratique. Paris: Ed. de Minuit, 1980).

    26 A. Strauss. Continual permutations of action. New York: Aldine de Gruyter, 1993.

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    como “influência”, que os social networks, os outros agentes ounormas sociais, exerceriam sobre ele27.

    Assim, não é óbvio que o que se costuma chamar de “a tradição deHarvard” (isto é, a economia industrial fundada por Joe Bain e seusassociados) não merece mais que o olhar um pouco condescendenteque os “teóricos da organização industrial” lhe concedem. Talvez, defato, fosse melhor avançar na boa direção com loose theories, queenfatizam a análise empírica de setores industriais, do que se engajar,com todas as aparências do rigor, numa via sem saída, na preocupa-ção de apresentar “uma análise elegante e geral”. Eu me refiro aqui aJean Tirole, que escreve: “The first wave, associated with the names ofJoe Bain and Edward Mason and sometimes called the ‘Harvardtradition’ was empirical in nature. It developed the famous ‘structure-conduct-performance paradigm’ according to which market structure(the number of sellers in the market, the degree of productdifferenciation, the cost structure, the degree of vertical integrationwith suppliers and so on) determines conduct (which consists of price,research and development, investment, advertising, and so forth) andconduct yields market performance (efficiency, ratio of price to mar-ginal cost, product variety, innovation rate, profits and distribution).This paradigm, although plausible, often rested on loose theories,and it emphasized empirical studies on industries.” 28

    27 Cf. M. Granovetter. Economic institutions as social constructions: a frameworkfor analysis. Acta Sociologica, 1992, 35, p. 3-11. Encontraremos neste artigo umaforma transformada da alternativa do “individualismo” e do “holismo”, que impe-ra na ortodoxia econômica (e sociológica) sob a forma da oposição, emprestada deDennis Wrong (D. Wrong. The oversocialized conception of man in ModernSociology, American Sociological Review, 26, 1961, p. 183-196), entre aundersocialized view, cara à ortodoxia econômica, e a oversocialized view, quesupõe que os agentes são “tão sensíveis (sensitive) à opinião dos outros que sesubmetem automaticamente às normas comumentemente admitidas de compor-tamento” ou que interiorizaram tão profundamente as normas ou as obrigações,que não são mais afetados pelas relações atuais (é assim que se compreende, àsvezes, de maneira completamente errada, a noção de habitus). Autoriza-se, as-sim, a concluir que, finalmente, as over e as under se reúnem para ver os agentescomo mônadas fechadas às “influências” dos concrete ongoing systems of socialrelations e dos social networks. É assim que o “situacionalismo” ou o interacionismometodológico não passam de uma falsa superação da alternativa, ela tambémfalsa, do individualismo e do holismo.

    28 J. Tirole, op. cit., p. 2-3. O autor expõe, um pouco mais adiante, indicações sobreos custos e lucros associados às diferentes categorias de produtos (teóricos e

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    Edward Mason tem, de fato, o mérito de estabelecer os fundamentosde uma verdadeira análise estrutural (em oposição à estratégica ouinteracionista) do funcionamento de um campo econômico: primei-ramente, ele coloca que somente uma análise capaz de levar em contaa estrutura de cada empresa, princípio da disposição para reagir àestrutura particular do campo, assim como a estrutura da cada setor(industry), ambas ignoradas pelos adeptos da teoria dos jogos (da qualele expõe, ao mesmo tempo, uma crítica antecipada: “Elaboratespeculations on the probable behavior of A on the assumption that Bwill act in a certain way, seems particularly fruitless”), pode dar contade todas as diferenças entre as firmas, em termos de práticas compe-titivas, notadamente nas suas políticas de preço, de produção e deinvestimento29. Ele se esforça, em seguida, para estabelecer, ao mes-mo tempo teórica e empiricamente, os fatores que determinam aforça relativa da empresa no campo, o tamanho absoluto, o númerode empresas, a diferenciação do produto. Reduzindo a estrutura docampo ao espaço das possibilidades tal como aparece aos agentes,ele quer finalmente desenhar uma “tipologia” das “situações” defini-das pelo conjunto das “considerações que o vendedor leva em contana determinação de suas políticas e de suas práticas” (“The structureof a seller’s market includes all those considerations which he takes intoaccount in determining his business policies and practices”)30.

    O campo econômico como campo de lutas

    O campo de forças é também um campo de lutas destina-das a conservar ou a transformar o campo de forças, um campode ação socialmente construído onde se afrontam agentes dota-dos de recursos diferentes. Os fins das ações que as firmas engajam

    empíricos, notadamente) sobre o mercado da Ciência Econômica, que permitecompreender os destinos comparados da “tradição de Harvard” e da nova “teoriada organização industrial” que ele defende: “Until the 1970s, economic theorists(with a few exceptions) pretty much ignored industrial organization, which didnot lend itself to elegant and general analysis the way the theory of competitivegeneral equilibrium analysis did. Since then, a fair number of top theorists havebecome interested in industrial organization”.

    29 E. S. Mason. Price and production policies of large-scale enterprise. The AmericanEconomic Review, XXIX, 1, supplement, March, 1939, p. 61-74 (notadamente, p. 64).

    30 E. S. Mason, loc. cit., p. 68 (sou eu quem grifa para marcar a oscilação entre alinguagem da estrutura e da pressão estrutural, e a linguagem da consciência eda escolha intencional).

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    nele e sua eficácia dependem, primeiramente, de sua posição nocampo de forças, isto é, de sua posição na estrutura da distribui-ção do capital sob todas as suas formas. Longe de estarem diantede um universo sem gravidade nem pressões, onde poderiamdesenvolver livremente suas estratégias, os agentes estão diantede um espaço de possibilidades que dependem muito estreita-mente da posição que ocupam no campo. Uma parte de liberda-de é deixada para jogo – no sentido da arte de jogar, em relaçãoao jogo, no sentido de cartas na mão, de portifólio de recursos –, eela é provavelmente maior do que em outros campos, devido aograu particularmente elevado em que, para além mesmo da teo-ria econômica, utilizada sobretudo como instrumento de legitima-ção, os meios e os fins da ação, portanto, as estratégias, são explici-tados31, notadamente sob a forma de “teorias leigas” da açãoestratégica (management), expressamente produzidas com vistasa assistir os agentes e, em particular, os dirigentes, nas suas deci-sões, e explicitamente ensinadas nas escolas onde se formam es-tes dirigentes, como as grandes business schools32.

    Este tipo de cinismo instituído, em tudo oposto à denega-ção e à sublimação que se impõem no seio dos universos de pro-dução simbólica, faz com que a fronteira esteja, neste caso, me-nos marcada entre a representação leiga e a descrição científica:assim, há tratado de marketing que fala de product marketbattlefield33. Num campo onde os preços são, ao mesmo tempo,alvos e armas, as estratégias têm espontaneamente, tanto para

    31 Max Weber observa que a troca mercantil é absolutamente excepcional, na medidaem que ela representa a mais instrumental e calculista de todas as formas de ação,este “arquétipo da ação racional” constituindo “uma abominação para qualquer siste-ma de ética fraternal” (M. Weber. Economie et société. Paris: Plon, 1971, p. 633).

    32 A teoria do management, literatura de business school para business school, preen-che uma função absolutamente parecida com a dos textos dos juristas dos sécu-los XVI e XVII, que contribuem para fazer o Estado, sob a aparência de descrevê-lo: concebida para o uso dos gerentes, atuais ou potenciais, ela oscila continua-mente entre o positivo e o normativo, e está baseada, fundamentalmente, sobreuma superestimação da parte deixada às estratégias conscientes – em relação àspressões estruturais e às disposições dos dirigentes.

    33 Ph. Kotler. Marketing management, analysis, planning, implementation, andcontrol. Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1988 (1967), p. 239.

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    os que as produzem como para os outros, uma transparência queelas nunca alcançam em universos como os campos literário, ar-tístico ou científico, onde as sanções permanecem em grande partesimbólicas, isto é, são ao mesmo tempo vagas e sujeitas a varia-ções subjetivas. E, de fato, como atesta o trabalho que deve reali-zar a lógica do dom para mascarar o que se chama, às vezes, de“verdade dos preços” (por exemplo, retira-se sempre cuidado-samente a etiqueta afixada sobre os presentes), o preço em di-nheiro tem um tipo de objetividade e de universalidade brutais,que não deixam muito espaço para a apreciação subjetiva (mes-mo se podemos dizer, por exemplo, que “é caro para o que é”ou que “vale bem seu preço”). Resulta disto que as estratégiasde blefe, conscientes ou inconscientes, como as da pura preten-são, têm menos chances de sucesso nos campos econômicos,onde elas têm também seu lugar, mas antes como estratégiasde dissuasão (ou, mais raramente, de sedução).

    As estratégias dependem, primeiro, da forma da estruturado campo ou, se se preferir, da configuração particular dos po-deres que o caracteriza, através do grau de concentração, isto é,da distribuição das fatias de mercado entre um número mais oumenos grande de empresas – com os dois casos-limite que sãoa concorrência perfeita e o monopólio. A se acreditar em AlfredD. Chandler, a economia dos grandes países industriais conhe-ceu, entre 1830 e 1960, um processo de concentração (notada-mente através de um movimento de fusões) que fez desapare-cer progressivamente o universo de pequenas empresas concor-rentes, ao qual se referiam os economistas clássicos:

    O relatório Mac Lane e outras fontes nos mostram uma indústriamanufatureira americana composta de um grande número de pequenasunidades de produção, empregando menos de cinqüenta pessoas cadauma, e baseadas na utilização dos recursos de energia tradicionais [...]. Asdecisões de investimento, tanto em longo prazo como em curto prazo,estavam tomadas por centenas de pequenos produtores reagindo aossinais do mercado, conforme o esquema descrito por Adam Smith34.

    34 A. D. Chandler. La main visible des managers. Trad. F. Langer. Paris: Economica,1988, p. 70-72.

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    Doravante, ao termo de uma evolução marcada, notadamen-te, por uma longa série de fusões, e por uma transformação pro-funda da estrutura das empresas, observa-se que, na maior partedos campos setoriais, a luta se circunscreve a um pequeno núme-ro de potentes empresas concorrentes que, longe de se ajusta-rem passivamente a uma “situação de mercado”, são capazes detransformar ativamente esta situação.

    Estes campos se organizam de maneira relativamenteinvariante em torno da oposição principal entre aqueles que sãochamados, às vezes, de first movers ou de market leaders e oschallengers35. A empresa dominante tem, comumente, a iniciativaem termos de mudança de preços, de introdução de novos produ-tos e de ações de distribuição e de promoção: ela é capaz de impora representação mais favorável para seus interesses da maneiraconveniente de jogar e das regras do jogo, e, portanto, da partici-pação no jogo e da perpetuação do jogo. Ela constitui um pontode referência obrigatório para seus concorrentes que, façam o quefizerem, são intimados a tomar posição em relação a ela, ativa oupassivamente. As ameaças que pesam sem cessar sobre ela – querse trate da aparição de produtos novos capazes de suplantar osseus, quer da elevação excessiva de seus custos, capaz de ameaçarseus lucros – a obrigam a uma vigilância constante (notadamente,nos casos de dominação dividida, na qual a coordenação destina-da a limitar a concorrência se impõe). Contra estas ameaças, a em-presa dominante pode conduzir duas estratégias bem diferentes:trabalhar para o melhoramento da posição global do campo, ten-tando aumentar a demanda global; ou defender ou melhorar suasposições adquiridas no campo (suas fatias de mercado).

    Os dominantes têm uma ligação estreita com o estado glo-bal do campo, definido, notadamente, pelas possibilidades mé-

    35 Se bem que esta visão venha sendo, às vezes, contestada, já há alguns anos, emnome do fato de que, desde a crise, as hierarquias são constantemente desorga-nizadas e de que as fusões-aquisições permitem aos pequenos comprar os gran-des, ou de competir eficazmente com eles, observa-se uma relativamente grandeestabilidade das 200 maiores empresas mundiais.

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    dias de lucro que ele oferece e que, em relação com outros cam-pos, definem a atração que ele exerce. Eles têm interesse em tra-balhar para o crescimento da demanda, da qual tiram um benefí-cio particularmente importante, uma vez que é proporcional àsua fatia de mercado, tentando suscitar novos usuários, novosusos ou uma utilização mais intensiva dos produtos que ofere-cem (agindo eventualmente sobre os poderes políticos). Mas,sobretudo, eles devem defender sua posição contra os challengerspela inovação permanente (novos produtos, novos serviços, etc.)e por quedas de preços. Em razão de todas as vantagens de quedispõem na competição (em primeiro lugar, as economias deescala ligadas a seu tamanho), eles podem abaixar seus custose, paralelamente, seus preços, sem diminuir suas margens, tor-nando muito difícil a chegada de novos concorrentes e elimi-nando os mais desprovidos. Em resumo, pelo fato da contribui-ção determinante que trazem à estrutura do campo (e à deter-minação dos preços pela qual ela se exprime), estrutura cujosefeitos se manifestam sob a forma de barreiras na entrada ou depressões econômicas, os first-movers dispõem de vantagens de-cisivas, tanto com relação aos concorrentes já instalados quan-to com relação aos novos em potencial36.

    As forças do campo orientam os dominantes em direção aestratégias que têm por finalidade redobrar sua dominação. Éassim que o capital simbólico do qual eles dispõem, pelo fato desua preeminência e também de sua anterioridade, lhes permiterecorrer com sucesso a estratégias destinadas a intimidar seusconcorrentes, como a que consiste em emitir sinais visando adissuadi-los de atacar (por exemplo, organizando vazamentosrelativos a uma baixa de preço ou à criação de uma nova fábrica).Estratégias que podem ser puro blefe, mas que seu capital sim-bólico torna plausíveis, e portanto, eficazes. Pode também acon-tecer que, confiantes na sua força e conscientes de que têm osmeios de sustentar uma longa ofensiva, e que, conseqüentemen-

    36 A. D. Chandler. Scale and scope, the dynamics of industrial capitalism.Cambridge: Harvard University Press, 1990, p. 598-599.

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    te, o tempo joga a seu favor, eles escolham abster-se de todaréplica e deixar seus oponentes engajar-se em ataques custosos econdenados ao fracasso. De maneira geral, as empresas hegemô-nicas têm a capacidade de impor o ritmo das transformações nosdiferentes âmbitos, produção, marketing, pesquisa, etc., e o usodiferencial do tempo é uma das principais vias de seu poder.

    As empresas que ocupam uma posição secundária numcampo podem, seja atacar a empresa dominante (e os outrosconcorrentes), seja evitar o conflito. Os challengers podem fazerataques frontais, tentando, por exemplo, baixar seus custos eseus preços, notadamente graças a uma inovação tecnológica,ou ataques laterais, tentando preencher as lacunas da ação daempresa dominante e ocupar nichos ao preço de uma especiali-zação de sua produção, ou voltando contra ela suas própriasestratégias. Parece que a posição relativa na estrutura da distri-buição do capital e, portanto, no campo, desempenha um papelmuito importante: observou-se, de fato, que, enquanto as maio-res firmas realizam grandes lucros graças às economias de esca-la e as pequenas podem obter lucros elevados especializando-se para se dedicar a um segmento restrito do mercado, as em-presas de porte intermediário têm freqüentemente lucros fra-cos, porque, grandes demais para obter os benefícios de umaprodução bem direcionada, elas são pequenas demais para sebeneficiarem das economias de escala das maiores.

    Visto que as forças do campo tendem a reforçar as posiçõesdominantes, podemos nos perguntar como verdadeiras transfor-mações das relações de força no seio do campo são possíveis. Naverdade, o capital tecnológico desempenha um papel determinan-te, e podemos citar um certo número de casos nas quais empre-sas dominantes foram suplantadas na ocorrência de uma muta-ção tecnológica, que favorece, graças a uma redução dos custos,concorrentes menores. Mas, na verdade, o capital tecnológicosomente é eficiente se for associado a outras espécies de capital.Assim, explica-se, provavelmente, que os challengers vitoriosos sãomuito raramente pequenas empresas nascentes e que, quandonão nascem da fusão entre empresas já estabelecidas, eles pro-vêm de outras nações ou, sobretudo, de outros subcampos. As re-

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    voluções cabem, na verdade, na maioria das vezes, a grandes quepodem, se diversificando, aproveitar-se de suas competênciastecnológicas para se apresentar com uma oferta competitiva emnovos campos. Assim, as mudanças no interior do campo sãofreqüentemente ligadas a mudanças nas relações com o exteriordo campo. Às passagens de fronteira juntam-se as redefinições dasfronteiras entre os campos: certos campos podem tornar-se seg-mentados em setores mais restritos, a indústria aeronáutica divi-dindo-se, por exemplo, em produtores de aviões comerciais, mili-tares e de turismo; ou, ao contrário, as mudanças tecnológicaspodem fragilizar as fronteiras entre indústrias até aqui separadas:por exemplo, a informática, as telecomunicações e a automação deescritório tendem a se confundir sempre mais, de tal maneira queempresas que, até agora, estavam somente presentes num dos trêssubcampos tendem cada vez mais a se encontrar em concorrênciano novo espaço de relações que está se constituindo. Neste caso,pode acontecer que uma só empresa entre em competição, nãosomente com outras empresas de seu campo, mas, também, comempresas que pertencem a diversos outros campos. Vemos de pas-sagem que, nos campos econômicos, como em qualquer outra ca-tegoria de campo, as fronteiras do campo são um objeto de confli-tos no próprio seio do campo (através, notadamente, da questãodos substitutos possíveis e das concorrências que eles introduzem);e que somente a análise empírica pode, em cada caso, determiná-las. (Não é raro que os campos sejam dotados de uma existênciaquase institucionalizada, sob a forma de ramos de atividade dota-dos de organizações profissionais funcionando, ao mesmo tempo,como clubes de dirigentes de indústria, grupos de defesa das fron-teiras vigentes, e portanto, dos princípios de exclusão que assubtendem, e como instâncias de representação diante dos pode-res públicos, dos sindicatos e das outras instâncias análogas e do-tadas de órgãos permanentes de ação e de expressão.)

    Mas, entre todas as trocas com o exterior do campo, asmais importantes são as que se estabelecem com o Estado. Acompetição entre as empresas assume freqüentemente a formade uma competição para o poder sobre o poder do Estado, –notadamente, sobre o poder de regulamentação e sobre os direi-

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    tos de propriedade37 – e para as vantagens asseguradas pelasdiferentes intervenções do Estado, tarifas preferenciais, paten-tes, regulamentos, créditos para pesquisa-desenvolvimento, com-pras públicas de equipamento, ajudas para a criação de emprego,inovação, modernização, exportação, habitação, etc. Em suas ten-tativas para modificar a seu favor as “regras do jogo” em vigor evalorizar assim algumas de suas propriedades suscetíveis de fun-cionar como capital no novo estado do campo, as empresas do-minadas podem utilizar seu capital social para exercer pressõessobre o Estado e obter dele uma modificação do jogo a seu fa-vor38. Assim, o que se chama mercado é apenas, em última ins-tância, uma construção social, uma estrutura de relações específi-cas, para a qual os diferentes agentes engajados no campo con-tribuem em diversos graus, através das modificações que elesconseguem lhe impor, usando poderes detidos pelo Estado, quesão capazes de controlar e orientar.

    Com efeito, o Estado não é somente o regulador encarrega-do de manter a ordem e a confiança, e de regular os mercados,nem o árbitro encarregado de “controlar” as empresas e suasinterações, como é visto tradicionalmente39. Como conseguimosmostrar a respeito do campo de produção de casas próprias, ele

    37 Cf. J. Campbell, L. Lindberg. Property rights and the organization of economicaction by the State. American Sociological Review, 55, 1990, p. 634-647.

    38 Neil Fligstein mostrou que não se pode entender a transformação da direção dasfirmas sem se dissecar, por um longo período de tempo, o estado das relaçõesque elas vêm tecendo com o Estado, e isto, no caso mais favorável à teoria liberal,os EUA, onde o Estado é de fato um agente decisivo na estruturação das indús-trias e dos mercados (cf. N. Fligstein. The transformation of corporate control.Cambridge: Harvard University Press, 1990).

    39 O Estado está longe de ser o único mecanismo de coordenação da oferta e dademanda. Se o papel do Estado é evidente no caso da casa, outras instituiçõesou outros agentes podem também intervir, como as redes de interconhecimentopara a venda do crack (Ph. Bourgois, Searching for respect: selling crack in ElBarrio. Cambridge: Cambridge University Press, 1996), as “comunidades” for-madas pelos freqüentadores de leilões (C. Smith. Auctions. Berkeley: Universityof California Press, 1990) ou agentes expressamente encarregados de relacio-nar a oferta e a demanda (como o matchmaker na economia pugilística) (L.Wacquant. A flesh peddler at work: power, pain, and profit in the prizefightingeconomy. Theory and Society, 27, no prelo).

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    contribui, às vezes de maneira extremamente decisiva, para a cons-trução da demanda e da oferta, ambas as formas de intervençãooperando sob a influência direta ou indireta das partes mais direta-mente interessadas (viu-se, de fato, como, pela intermediação, nota-damente de comissões, banqueiros, altos funcionários, empresá-rios industriais e responsáveis políticos locais podem reservar-seum mercado, seja aquele do crédito aos indivíduos e às empresaspara os bancos, seja aquele das casas para os empresários).

    Outros fatores externos capazes de contribuir para umatransformação das relações de força no campo: as transformaçõesdas fontes de abastecimento (por exemplo, as grandes descober-tas petrolíferas do começo do século XX) e as mudanças na de-manda determinadas por mudanças na demografia (como a que-da da natalidade ou o aumento da expectativa de vida) ou nosestilos de vida (o crescimento do trabalho das mulheres, por exem-plo, que acarreta a queda de certos produtos e cria novos merca-dos, como por exemplo, os dos produtos congelados e dos fornosde microondas). Na verdade, estes fatores externos exercem seusefeitos sobre as relações de força no seio do campo somente atra-vés da lógica destas relações de força, isto é, na medida em queeles asseguram uma vantagem aos challengers, permitindo-lhes seimplantarem em nichos, mercados especializados nos quais os firstmovers, concentrados na produção estandardizada de massa, malconseguem satisfazer exigências muito particulares, como aquelasde uma categoria de consumidores ou de um mercado regional, eque poderão constituir entradas para desenvolvimentos ulteriores.

    A empresa como campo

    É claro que as decisões, em termos de preço ou em qualqueroutro domínio, não dependem de um ator único, mito que masca-ra os jogos e os desafios de poder no seio da empresa funcionandocomo um campo ou, mais precisamente, no seio do campo do po-der próprio a cada firma. Dito de outro modo, se se entra na “caixapreta” que constitui a empresa, não é para encontrar nela indiví-duos, mas, mais uma vez, uma estrutura, a do campo da empresa,que dispõe de uma autonomia relativa em relação às pressões as-

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    sociadas à posição no campo das empresas. Se o campo englobadorafeta sua estrutura, o campo englobado, como relação de forças, eespaço específico de jogo e de lutas, define os termos e os objeti-vos mesmos da luta, conferindo-lhes uma idiossincrasia que ostorna quase ininteligíveis, à primeira vista, quando olhados de fora.

    As estratégias das empresas (em termo de preço, notada-mente) não dependem somente da posição que elas ocupam naestrutura do campo. Elas dependem, também, da estrutura dasposições de poder constitutivas do governo interno da firma ou,mais exatamente, das disposições (socialmente constituídas) dosdirigentes agindo sob a pressão do campo do poder no seio dafirma e do campo da firma em toda sua totalidade (que se podecaracterizar através de índices, tais como a composição hierár-quica da mão-de-obra, o capital escolar e, particularmente, cien-tífico do quadro executivo, o grau de diferenciação burocrática, opeso dos sindicatos, etc.). O sistema de pressões e de solicitaçõesque está inscrito na posição no seio do campo, e que leva asempresas dominantes a agirem sobre o campo no sentido maisfavorável a sua perpetuação, nada tem de fatalidade ou até deum tipo de instinto infalível que orientaria as empresas e seusdirigentes em direção às escolhas mais favoráveis à conservaçãodas vantagens adquiridas. Cita-se, assim, freqüentemente, o exem-plo de Henry Ford que, depois que seu brilhante sucesso na pro-dução e na distribuição fez dele o produtor de automóveis maisbaratos do mundo, destruiu as capacidades competitivas de suaempresa, após a Primeira Guerra Mundial, demitindo quase to-dos os seus gerentes mais experientes e competentes, os quaisestiveram na origem do sucesso de seus concorrentes.

    No entanto, embora disponha de uma relativa autonomiacom relação às forças do campo, a estrutura do campo do poderno seio da firma é, ela própria, estreitamente relacionada com aposição da firma no campo, por meio, notadamente, da corres-pondência entre, de um lado, o volume (ele mesmo ligado à ante-rioridade da empresa e à sua posição no ciclo de vida, portanto,grosso modo, ao seu tamanho e à sua integração) e a estrutura docapital da firma (notadamente, o peso relativo do capital finan-ceiro, do capital comercial e do capital técnico) e, de outro, a

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    estrutura da distribuição do capital entre os diferentes dirigentesda firma, proprietários – owners – e “funcionários” – managers –e, no meio destes últimos, entre os detentores de diferentes es-pécies de capital cultural, com dominância financeira, técnica oucomercial, isto é, no caso da França, entre os grandes organismosou as grandes escolas (ENA, X ou HEC), de onde eles saíram40.

    Se se pode, indiscutivelmente, discernir tendências, no lon-go período, da evolução das relações de força entre os principaisagentes do campo do poder na empresa, com notadamente aproeminência, no princípio, dos empreendedores dominando asnovas tecnologias e capazes de juntar os fundos necessários paraimplementá-las, seguida da intervenção cada vez mais inevitáveldos banqueiros e das instituições financeiras, e, depois, da ascen-são dos gerentes41, resta que, assim como é preciso analisar aforma particular que assume em cada campo a configuração dadistribuição dos poderes entre as empresas, da mesma forma, épreciso analisar, em cada empresa e a cada momento, a formaque assume a configuração dos poderes no seio do campo dopoder sobre a empresa, e obter, assim, os meios de compreendera lógica das lutas nas quais se determinam os fins da empresa42.É claro, com efeito, que estes fins são alvos de lutas e que é pre-

    40 Foi possível estabelecer, no caso do grande patronato francês, a existência deuma homologia estreita entre o espaço das empresas e o espaço de seus dirigen-tes caracterizados pelo volume e a estrutura de seu capital (cf. P. Bourdieu e M.de Saint Martin. Le patronat, op. cit.).

    41 Cf. N. Fligstein. The transformation of corporate control, op. cit., que descrevecomo a direção da firma passa, sucessivamente, sob o poder dos dirigentes dasdivisões da produção, do marketing, e depois das finanças; e também N. Fligsteine L Markowitz. The finance conception of the corporation and the causes of thereorganization of large american corporations, 1979-1988. In: W. J. Wilson (Ed.).Sociology and Social Policy. Beverly Hills, Sage: 1993, e N. Fligstein e K. Dauber.Structural Change in Corporate Organization. Annual Review of Sociology, 15,1989, p. 73-96; ou, ainda, The intraorganizational power struggle: the rise of financepresidents in large corporations. American Sociological Review, 52, 1987, p. 44-58.

    42 Foi possível observar como as relações de força entre os detentores das diferen-tes competências associadas às diferentes formações (ENA, X, HEC) e, portanto,entre as funções administrativa, técnica, comercial, correspondentes, e a concor-rência ou as rivalidades que os opõem no seio do campo do poder sobre aempresa podem determinar as decisões mais importantes desta.

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    ciso substituir os cálculos racionais de um “decisor” esclarecidopela luta política entre agentes que tendem a identificar seus in-teresses específicos (ligados a sua posição na empresa) com osinteresses da empresa, e cujo poder se mede, provavelmente, porsua capacidade em identificar, para o melhor ou para o pior (comomostra o exemplo de Henry Ford), os interesses da empresa comseus interesses na empresa.

    A estrutura e a concorrência

    Levar em conta a estrutura do campo, é dizer que a concor-rência para o acesso à troca com clientes somente pode ser en-tendida como uma competição orientada pela referência consci-ente e explícita aos concorrentes diretos ou, pelo menos, aos maisperigosos entre eles, conforme a fórmula de Harrison White: “Osprodutores se observam uns aos outros dentro de um mercado”43.Ou, mais explicitamente, ainda, como em Max Weber: “Os doisparceiros potenciais orientam suas ofertas, indistintamente, emfunção da ação potencial de muitos outros concorrentes reais eimaginários, e não somente da ação potencial dos parceiros datroca” – e, em particular, da ação de regateio, “a forma mais con-seqüente da ação de mercado”, e do “compromisso de interes-ses”, que o encerra. Max Weber descreve aqui uma forma de cál-culo racional, mas totalmente diferente na sua lógica daquele daortodoxia econômica: não agentes que fazem suas escolhas apartir da informação fornecida pelos preços (supostamente deequilíbrio), mas agentes que levam em conta as ações e reaçõesde seus concorrentes e “orientam-se em relação a elas”, sendo,portanto, dotados de uma informação a seu respeito e capazesde agir contra ou com eles. Mas, se ele tem o mérito de substituira relação com o conjunto dos produtores pela única transação com ocliente, ele a reduz a uma interação consciente e pensada entreconcorrentes investindo no mesmo objeto. Da mesma forma, se

    43 H. White. Where do markets come from? American Journal of Sociology, 87(3),1981, p. 517-547.

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    Harrison White vê no mercado uma “estrutura social auto-repro-dutora” (self-reproducting social structure), ele procura o princípiodas estratégias dos produtores, não nas pressões inerentes a suaposição estrutural, mas na observação e decifração dos sinais quesão emitidos pelo comportamento dos outros produtores: “Marketsare self-reproducing structures among specific cliques of firms andother actors who evolve roles from observations of each other’sbehavior”44. Os produtores, armados do conhecimento do custode produção, tentam maximizar sua renda, determinando o bomvolume de produção “na base das posições observadas de todosos produtores” e procuram um nicho no mercado.

    É preciso substituir a competição entre um número peque-no de agentes em interação estratégica para o acesso (de umaparte dos agentes) à troca com uma categoria particular de clien-tes pelo encontro entre produtores ocupando posições diferentesna estrutura do capital específico (sob suas diferentes formas) eclientes ocupando, no espaço social, posições homólogas àque-las que ocupam estes produtores no campo. O que se chamacomumente de nichos não é outra coisa do que esta parcela daclientela que a afinidade estrutural atribui às diferentes empre-sas, e, particularmente, às empresas secundárias: como consegui-mos mostrar a respeito dos bens culturais, que, do lado da produ-ção como do consumo, distribuem-se num espaço de duas dimen-sões, definidas pelo capital econômico e pelo cultural, é provávelque se possa observar, em cada campo, uma homologia entre oespaço dos produtores (e dos produtos) e o espaço dos clientesdistribuídos segundo princípios de diferenciação pertinentes. Istoquer dizer, de passagem, que as pressões, às vezes mortais, que osprodutores dominantes fazem sobre seus concorrentes atuais oupotenciais se exercem somente pela mediação do campo: destamaneira, a competição não é nada mais que um “conflito indireto”(no sentido de Simmel), que não está dirigido contra o concorren-te. No campo econômico como alhures, a luta não precisa se inspi-rar na intenção de destruir para produzir efeitos devastadores.

    44 Ibid.

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    O homo economicus, tal como o concebe (de maneira tácitaou explícita) a ortodoxia econômica, é uma espécie de monstroantropológico: este prático com cabeça de teórico encarna a for-ma por excelência da scholastic fallacy, erro intelectualista ouintelectualocêntrico, muito comum nas Ciências Sociais (notada-mente em Lingüística e em Etnologia), pelo qual o cientista colo-ca na cabeça dos agentes que ele estuda, lares ou suas donas,empresas ou empresários, etc., as considerações e as construçõesteóricas que teve que elaborar para dar conta de suas práticas45.

    Gary Becker, autor das tentativas mais ousadas para exportarpara todas as Ciências Sociais o modelo do mercado e a tecnologia,supostamente mais potente e mais eficiente, da empresa neoclássi-ca, tem o mérito de declarar, com toda clareza, o que está mascara-do, às vezes, nos pressupostos implícitos da rotina científica:

    The economic approach [...] now assumes that individuals maximizetheir utility from basic preferences that do not change rapidly overtime and that the behavior of different individuals is coordinated byexplicit or implicit markets [...]. The economic approach is not restrictedto material goods and wants or to markets with monetary transactions,and conceptually does not distinguish between major or minor decisionsor between ‘emotional’ and other decisions. Indeed [...] the economicapproach provides a framework applicable to all human behavior –to all types of decisions and to persons for all walks of life46.

    Nada mais escapa à explicação pelo agente maximizador:nem as estruturas organizacionais, as empresas e os contratos(com Oliver Williamson), nem os parlamentos e as municipalidades,nem o casamento (concebido como troca econômica de serviçosde produção e reprodução), o lar, as relações entre pais e filhos(com James Coleman) ou o Estado. Este modo de explicação uni-

    45 P. Bourdieu. Méditations pascaliennes, op. cit.46 G. S. Becker. A treatise on the family, Cambridge: Harvard University Press,

    1981, p. IX; e também The economic approach to human behavior. Chicago:The University of Chicago Press, 1976.

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    versal, por um princípio de explicação ele mesmo universal (aspreferências individuais são exógenas, ordenadas e estáveis, eportanto, sem gênese nem futuro contingentes), não conhece maislimites. Gary Becker não reconhece nem mesmo aqueles que Paretofoi obrigado a estabelecer no texto fundador no qual identifica aracionalidade das condutas econômicas com a racionalidade pura,ao distinguir as condutas propriamente econômicas, que são oresultado de “raciocínios lógicos” apoiados sobre a experiência,das condutas “determinadas pelo uso”, como o fato de levantarseu chapéu ao entrar num salão47.

    O conceito de habitus tem por função inicial romper com afilosofia cartesiana da consciência e desprender-se, ao mesmotempo, da alternativa ruinosa entre o mecanismo e o finalismo,isto é, entre a determinação por causas e a determinação porrazões; ou, ainda, entre o individualismo dito metodológico e oque se chama às vezes (nos “individualistas”) de holismo, oposi-ção apenas parcialmente sábia, que é somente a forma eufemisadada alternativa – talvez a mais potente da ordem política – entre oindividualismo ou o liberalismo, que considera o indivíduo comoúltima unidade elementar autônoma, e o coletivismo ou o socia-lismo, visto como concedendo a primazia ao coletivo.

    O agente social, na medida em que é dotado de um habitus,é um individual coletivo ou um coletivo individualizado, pelo fatoda incorporação. O individual, o subjetivo, é social, coletivo. Ohabitus é subjetividade socializada, transcendental histórico, cujascategorias de percepção e de apreciação (os sistemas de preferên-cia) são o produto da história coletiva e individual. A razão (ou aracionalidade) é bounded, limitada, não somente, como o crê HerbertSimon, porque o espírito humano é genericamente limitado (oque não é uma descoberta), mas porque é socialmente estruturado,

    47 V. Pareto. Manuel d’Économie Politique. Genève: Droz, 1964, p. 41. Vê-se depassagem que, diferentemente do individualismo metodológico, que só conhecea alternativa da escolha consciente e deliberada, satisfazendo certas condiçõesde eficácia e coerência, e da “norma social”, cuja eficiência passa também poruma escolha, Pareto teve pelo menos o mérito de reconhecer um outro princípioda ação: uso, tradição ou hábito.

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    e, por conseqüência, confinado48. Estes limites são aqueles ine-rentes a todo walk of life, como diz Becker, na medida em que estáassociado a uma posição no espaço social. Se existe uma proprie-dade universal, é a de que os agentes não são universais, porquesuas propriedades e, particularmente, suas preferências e seus gos-tos são o produto de sua localização e seus deslocamentos noespaço social, portanto, da história coletiva e individual.

    No entanto, o habitus nada tem de um princípio mecânico deação ou, mais exatamente, de reação (à maneira de um arco reflexo).Ele é espontaneidade condicionada e limitada. Ele é este princípio au-tônomo que faz com que a ação não seja simplesmente uma reaçãoimediata a uma realidade bruta, mas uma réplica “inteligente” a umaspecto ativamente selecionado do real: ligado a uma história cheiade um futuro provável, ele é a inércia, rastro de sua trajetória passa-da, que os agentes opõem às forças imediatas do campo, e que fazcom que suas estratégias não possam ser deduzidas diretamentenem da posição nem da situação imediatas. Ele produz uma réplica,cujo princípio não está inscrito no estímulo e que, sem ser absoluta-mente imprevisível, não pode ser prevista a partir apenas do conhe-cimento da situação; ele é uma resposta a um aspecto da realidadeque se distingue por uma apreensão seletiva, partidária e parcial(sem ser para tanto “subjetiva”, no sentido estrito) de certos estímu-los, por uma atenção pela face particular das coisas, da qual se podedizer, indiferentemente, que ela “suscita o interesse” ou que o inte-resse a suscita; ele é uma ação que se pode, sem contradição, cha-mar ao mesmo tempo de determinada e espontânea, já que é deter-minada por estímulos condicionais e convencionais, que existem comotais apenas para um agente disposto e apto a percebê-los.

    48 Além de Veblen, que já defendia a idéia de que o agente econômico não é “um pacotede desejos” (a bundle of desires), mas “uma estrutura coerente de propensões ehábitos” (a coherent structure of propensities and habits) (Th. Veblen. Why is Economicsnot an Evolucionary Science?, The Quarterly Journal of Economics, July 1898, p. 390),James S. Duesenberry observou também que o princípio da decisão de consumo nãodeve ser procurado do lado da planificação racional, mas, antes, do lado da aprendiza-gem e da formação dos costumes, e estabeleceu que o consumo dependia tanto darenda passada, quanto da renda atual (J. S. Duesenberry, Income, Saving and theTheory of Consumer Behavior, Cambridge, Harvard University Press, 1949).

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    O habitus introduz entre o estímulo e a reação uma tela detempo na medida em que, proveniente de uma história, ele é rela-tivamente constante e durável, e portanto, relativamente livre dahistória. Produto das experiências passadas, e de toda uma acumu-lação coletiva e individual, ele somente pode ser compreendidoadequadamente por uma análise genética que se aplica, ao mesmotempo, à história coletiva – por exemplo, a história dos gostos, daqual Sidney Mintz deu um exemplo, mostrando como o gosto poraçúcar, no início produto de luxo exótico reservado às classes privi-legiadas, tornou-se um elemento indispensável da alimentaçãocomum das classes populares49 – e à história individual – como naanálise das condições econômicas e sociais da gênese dos gostosindividuais em matéria de alimentação, de decoração, de vestuárioe, também, de canções, de teatro, de música ou de cinema, etc.50

    O conceito de habitus permite também escapar à alternati-va do finalismo – que define a ação como sendo determinadapela referência consciente a um fim deliberadamente posto e que,conseqüentemente, concebe todo comportamento como produ-to de um cálculo puramente instrumental, para não dizer cínico –e do mecanismo – para o qual a ação se reduz a uma pura reaçãoa causas indiferenciadas. Os economistas ortodoxos e os filóso-fos que defendem a teoria da ação racional oscilam entre estasduas teorias da ação logicamente incompatíveis: de um lado, um

    49 S. Mintz, Sweetness and Power, The Sugar in Modern History, New York,Viking Penguin, 1985.

    50 P. Bourdieu, La Distinction: Critique sociale du jugement de goût, op. cit., e L.Levine, High Brow/Low Brow: The Emergence of Cultural Hierarchy in America,Cambridge, Harvard University Press, 1988. Como se vê no caso da análise dosdeterminantes econômicos e sociais das preferências para a compra ou a locaçãode uma casa, o abandono da definição a-histórica das preferências não condena,de modo algum, a um relativismo, próprio a interditar todo conhecimento racio-nal, de gostos entregues ao puro e simples arbítrio social (como o deixa crer avelha fórmula invocada por Gary Becker, de gustibus non est disputandum). Somoslevados, ao contrário, a estabelecer empiricamente as relações estatísticas ne-cessárias que se estabelecem entre os gostos, nos diferentes terrenos da práti-ca, e as condições econômicas e sociais de sua formação, isto é, a posição presen-te e passada (trajetória) dos agentes na estrutura da distribuição do capital econô-mico e do capital cultural (ou, se se prefere, o estado no momento considerado,e a evolução no tempo do volume e da estrutura de seu capital).

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    decisionismo finalista, segundo o qual o agente é uma pura cons-ciência racional agindo em pleno conhecimento de causa, o prin-cípio da ação sendo uma razão ou uma decisão racional determi-nada por uma avaliação racional das possibilidades; de outro,um fisicalismo que faz dele uma partícula sem inércia, mecanica-mente conduzida pela força das causas (igualmente conhecidasapenas pelo cientista), e reagindo instantaneamente a uma com-binação de forças. Mas eles têm pouca dificuldade para conciliaro inconciliável, porque os dois ramos da alternativa se resumema uma só: nos dois casos, sacrificando à scholastic fallacy, projeta-se o sujeito sábio, dotado de um conhecimento perfeito dascausas e das possibilidades no agente agindo, do qual se supõeque seja racionalmente inclinado a estabelecer como fins as pos-sibilidades que lhe impõem as causas (o fato de que seja empleno conhecimento de causa que os economistas adiram, emnome do