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O Cânone Mínimo

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Ao término da comemoração dos 250 anos de nas­cimento do maior clássico da literatura alemã, Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), nada mais bem-vindo ao mercado livresco brasileiro do que a publica­ção de uma obra que discute com precisão e argúcia um dos conceitos basilares para a compreensão da época goethiana (Goerhezeit) e a própria poética do autor: o Bildungsroman - "romance de formação".

O eixo norteador deste belo e denso trabalho de Wilma Patrícia Maas pode ser sintetizado pelo subtítulo escolhido pela autora: O Bildungsroman na história da literatura. A pesquisa da professora estabelece, de for­ma minuciosa, a criação do termo e suas definições, discute a genealogia do Bildungsroman e sua constitui­ção como signo literário, para concentrar a análise na obra Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe, paradigma por excelência e cânone mínimo do "romance de formação". A própria constituição do Bildungsroman como gênero l i terário acabado é problematizado a partir da constatação da historicidade que envolve a criação do termo e sua vinculação ao romance de Goethe em contraposição à sua trajetória dinâmica ao longo da história literária, quando o ter­mo se desvincula das circunstâncias de origem para ser atribuído a outras obras da tradição literária.

Através de sua investigação, a princípio histórico-literária, mas de forte vocação teórico-crítica, a autora trabalha com um tema inédito na bibliografia em lín­gua portuguesa e oferece ao leitor brasileiro acesso a um universo cultural pouco visitado pela crítica, relacio­nando a complexa constituição do Bildungsroman a fe­nômenos próprios da história social. Para compreen­são do componente ideológico presente à constituição do conceito, não se pode esquecer de que a Alemanha do fim do século XVIII não representava uma unidade política e que a unidade espiritual da nação se materia­lizava na poesia e na filosofia. O Bildungsroman dese­ja-se expressão de uma incipiente literatura nacional que, atrelada à concepção de Bildung vigente à época, pretende-se a voz de uma classe social para quem o aperfeiçoamento e a educação do indivíduo plasmam

O CÂNONE MÍNIMO: O BILDUNGSROMAN

NA HISTÓRIA DA LITERATURA

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O CÂNONE MÍNIMO: O BILDUNGSROMAN

NA HISTÓRIA DA LITERATURA

WILMA PATRÍCIA MARZARI DINARDO MAAS

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Maas, Wilrna Patrícia Marzari Dinardo O cânone mínimo : o Bildungsroman na história da literatura / Wilma

Patrícia Marzari Dinardo Maas. - São Paulo: Editora UNESP, 2000.

Bibliografia. ISBN 85-7139-309-5

1. Bildungsroman - história e crítica 2. Literatura alemã - história e

crítica I. Título.

00-2623 CDD-833.0906

Índice para catálogo sistemático: 1. Bildungsroman : Século XVIII : Literatura alemã :

História e crítica 833.0906

Este livro é publicado pelo Projeto Edição de Textos de Docentes e Pós-Graduados da UNESP -

Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da UNESP (PROPP)/ Fundação Editora da UNESP (FEU)

Editora afiliada:

SUMÁRIO

Introdução 9

A historiografia como método 10

O Bildungsroman (romance de formação) 12

A trajetória do gênero 15

1 O estabelecimento do conceito 19

O que é o Bildungsroman 19

O conceito histórico de Bildung 25

A representação da educação (Erziehung) em

Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister 30

Formação individual e formação para o Estado 31

A formação universal (allgemeine Bildung) 33

2 A constituição do paradigma literário 41

A criação do termo 41

O projeto pedagógico 44

As definições de Bildungsroman 46

As definições "reprodutivas" do Bildungsroman 52

O gênero "flexível" 62

A genealogia 64

As confissões e o Emílio de Rousseau 65

O romance picaresco 70

A literatura pietista 73

O romance de aventura e de viagens 77

3 A história da obra na constituição do signo literário Bildungsroman 83

As primeiras críticas a Os anos de aprendizado

de Wilhelm Meister 84

A correspondência privada 84

Os conceitos estéticos de Schiller e o 'Meister' de Goethe 85

O 'rompimento' 101

O Meister como representante das virtudes burguesas -

Christian Gottfried Körenr 102

As primeiras críticas na imprensa 110

A crítica primeiro-romântica a Os anos de aprendizado de

Wilhelm Meister — Friedrich Schlegel e Novalis 113

A concepção poética de Friedrich Schlegel 114

A poesia romântica moderna como pressuposto teórico para a crítica do Meister 118

A resenha de Friedrich Schlegel sobre Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister 121

Meister como "Candide contra a poesia" 127

4 Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister

como paradigma do Bildungsroman 133

O desejo pela formação universal: o teatro 136

As relações com a aristocracia (Natalie como formadora) 139

As concepções pedagógicas 142

Wilhelm Meister e Werner, o bom burguês 147

O mestre-aprendiz 152

O destino das personagens 159

As intervenções da Sociedade da Torre 164

O destino de Wilhelm Meister 172

Os anos de peregrinação - da formação universal à inserção na sociedade 182

5 A moral e a fábula 191

O herói sem autonomia 191

A moral e a fábula 194

6 A tradição consciente 209

Dois casos exemplares: o Felix Krull de Thomas Mann

e O tambor de Günter Grass 215

O discurso da paródia 216

A formação do pícaro 230

Formação feminista e formação proletária: o Bildungsroman no Brasil 242

As resenhas nos jornais 254

Conclusão 261

Referências bibliográficas 265

INTRODUÇÃO

Os estudos literários vivenciam hoje a ressaca do período pós-estruturalista, da redescoberta do leitor e do público como atribuidores de significação e de sentido histórico à obra literária. O legado da Estética da Recepção, pontuado pela morte de Hans Robert Jauss em abril de 1997, permitiu que se vislumbrasse um recorte, uma fissura entre a mimese e o real histórico, legitimando uma relação que o imanentismo textual havia banido da aborda­gem à literatura.

Entretanto, ao mesmo tempo em que o retorno à historicidade da literatura reordenou práticas e reorientou concepções sobre o próprio caráter do fenômeno literário, instalou, no atual pano­rama da pesquisa em literatura, um problema de fundo teórico e disciplinar.

No Brasil, a tradição da crítica literária, estabelecida já no sé­culo XIX, privilegiou antes aspectos sociais e sociológicos do que os exclusivamente estéticos. Antonio Candido é certamente o exem­plo mais ilustre e ilustrativo de uma produção crítica que contribui simultanemamente para a formação do caráter nacional.

A pesquisa em literatura que vem sendo realizada hoje, em boa parte da América e Europa, não se confunde, entretanto, com a crítica engajada, com a abordagem sociológica ou marxista. É antes o legado burguês da historiografia que conduz a atividade do estudioso e do crítico. A obra literária passa a ser considerada a partir de suas relações dentro da própria tradição literária, das relações com o universo das obras e dos gêneros que a precederam e daqueles que lhe são contemporâneos. "História da obra" e "his­tória do gênero" são conceitos atuantes e iluminadores em um contexto que pretende localizar a obra literária a partir de suas relações com a história cultural.

A definição da área de atuação do estudioso e do crítico de literatura torna-se cada vez mais fluida, imbricando-se de viés às práticas do historiador, do bibliófilo, do bibliotecário. Vivenciamos ao mesmo tempo um ensaio e uma retomada daquele ideal alme­jado pelo primeiro-romântico Friedrich Schlegel, a instância em que "filosofia e poesia", "arte e ciência deveriam tornar-se uma só", instituindo dessa maneira uma "pan-filosofia" e uma "pan-poesia", mesclando crítica e arte, arte e ofício.

O estudioso de literatura vê-se então circundado, em pleno triedro dos saberes, pela falta de especificidade de seu mister, pela generosa amplitude de seu objeto, pela dificuldade de classificação de sua prática. As conseqüências teóricas dessa indefinição refle­tem-se, a um tempo, em uma espécie de mal-estar nos círculos acadêmico-literários, acompanhado do esforço empreendido em reorganizar o espaço do conhecimento no qual se possam desen­volver as relações entre o fenômeno literário e o mundo empírico. A medida dessa reorganização é a tarefa interdisciplinar.

A HISTORIOGRAFIA COMO MÉTODO

No século XIX, como resultado do chamado "positivismo his­tórico" que se afirmara já na virada do século, o estudo de litera­tura nas universidades alemãs orientava-se pela existência das "grandes obras" e "grandes autores", por modelos canônicos que projetavam sua sombra sobre toda a produção posterior. "His-

tória da literatura" significava então uma coleção paradoxalmen­te atemporal e a-histórica, de grandes nomes e obras exemplares, acompanhados da súmula biográfica do autor. A figura autoral e biográfica predominante é então Goethe, ao mesmo tempo cânone e medida para a produção literária posterior.

É possível afirmar que esse estado de coisas não se tenha al­terado muito, mesmo ante a avalanche formalista e estruturalista do século XX. Embora conceitos como "morte do autor" e "crí­tica imanentista" não sejam com certeza estranhos ao instrumental dos estudos e da historiografia literária alemã, a perspectiva his-tórico-biográfica manteve-se produtiva, sem ter nunca desapare­cido de todo. No fim da década de 1960, a Universidade de Konstanz procedia a uma reforma geral de currículos, a qual plei­teava, no campo dos estudos literários (em alemão, "ciência da literatura" - Literaturwissenschaft), o acolhimento de uma pers­pectiva dinâmica para o estudo de obras, gêneros e períodos, em sintonia com as transformações sociais.

A chamada "Estética da Recepção", tendência teórico-estética da qual Hans Robert Jauss foi um dos articuladores, nasceu no calor das reformas universitárias. Jauss e seus colegas de Konstanz passaram a demandar uma historiografia literária que, em sintonia com a história, recuperasse as diversas leituras de uma mesma obra ao longo de sua existência cronológica. Isso significa que a obra de arte deveria ser entendida não somente a partir de sua imanência ou de sua constituição estética, mas também por meio de sua "atua­ção e de seus efeitos" (Wirkung) sobre o público de uma época. Interpretar a obra literária significa, para a Escola de Konstanz, recuperar as diversas interpretações construídas ao longo de sua existência histórica, abandonando-se assim a busca de um sentido único, de uma verdade determinante da obra de arte literária. Foi grande a repercussão dos estudos da Escola de Konstanz. No ambiente da crítica literária alemã, que sempre tivera grande afi­nidade com a história e com a biografia, a Estética da Recepção foi o elemento catalisador de um movimento em direção às ori­gens dos fenômenos literários em si, de uma investigação dos elementos empíricos constitutivos dos gêneros acolhidos pela historiografia literária tradicional.

Muitos dos trabalhos teóricos e teses acadêmicas a partir do fim dos anos 70, na Alemanha, tiveram por objeto o século XVIII literário e as formas e gêneros ali cristalizados. A autobiografia, a literatura de viagens, a literatura religiosa e o romance burguês passam a ser estudados para além de sua constituição formal, sob a perspectiva de sua relação com outras obras e gêneros entre si e com a realidade histórica. É preciso acrescentar que esse tipo de abordagem ao fenômeno literário não ficou restrito ao âmbito da Escola de Konstanz, na Alemanha. A Estética da Recepção viu-se em sintonia com trabalhos como os de Robert Darnton, na Ingla­terra, com os historiadores da História Nova, na França, com o reader-response criticism, nos Estados Unidos.

No Brasil, os textos e os fundamentos da Estética da Recepção foram divulgados especialmente por Regina Zilbermann e Luís Costa Lima, na década de 1980. Pode-se dizer que, entre nós, os funda­mentos da Estética da Recepção foram absorvidos sobretudo via uma retomada dos estudos historiográficos, como se poderá veri­ficar por meio do visível crescimento desses estudos também no mercado editorial.

Esta abordagem ao Bildungsroman pretende ser uma abor­dagem historiográfica. Embora muitos dos fundamentos da Esté­tica da Recepção veiculados por Jauss sejam passíveis de discussão, como, por exemplo, a hipótese de reconstrução do horizonte de expectativa da obra de arte, não se pode negar a produtividade dos pressupostos por ela estabelecidos, sobretudo no que se re­fere à dinâmica dos processos de produção e recepção da obra de arte pelo público.

O BILDUNGSROMAN (ROMANCE DE FORMAÇÃO)

As historiografias literárias originaram-se, sem exceção, do projeto romântico de construção de uma identidade nacional. Na Alemanha dos últimos trinta anos do século XVIII, Friedrich Schlegel, em sua obra sobre a história da arte e da literatura an­tigas, faz da história pela primeira vez uma categoria determinante na reflexão sobre o Belo. Schlegel é também o responsável pelo

estabelecimento de uma divisão da então incipiente literatura ale­mã em quatro gerações, que viria antecipar a divisão hoje consi­derada canônica: Iluminismo (Aufklärung), Pré-Romantismo (Sturm und Drang), Classicismo e Romantismo. A historiografia literária alemã nasce, portanto, com o propósito de atribuir uma identidade nacional à produção literária, submetendo a categoria estética à categoria ideológica.

As circunstâncias de origem do Bildungsroman são contem­porâneas desse esforço pela atribuição de um caráter nacional à literatura de expressão alemã. Trata-se de uma forma literária de cunho eminentemente realista, com raízes fortemente vincadas nas circunstâncias históricas, culturais e literárias dos últimos trinta anos do século XVIII europeu. Compreendido pela crítica como um fenômeno "tipicamente alemão", capaz de expressar o "espí­rito alemão" em seu mais alto grau, o Bildungsroman firmou-se como um conceito produtivo em quase todas as literaturas na­cionais de origem européia, tendo sido assimilado também nas literaturas mais jovens, como as americanas.

Sob o aspecto morfológico, é relativamente fácil a compre­ensão do termo Bildungsroman. Por um processo de justaposição, unem-se dois radicais - (Bildung- formação - e Roman - roman­ce) que correspondem a dois conceitos fundadores do patrimônio das instituições burguesas.

Cada um dos dois termos, entretanto, encontra-se atrelado a um complexo entrelaçamento de significados, apreensíveis ape­nas por meio de uma investigação de caráter diacrônico. Bildung e Roman são dois termos que entraram para o vocabulário acadê­mico na segunda metade do século XVIII. A formação do jovem de família burguesa, seu desejo de aperfeiçoamento como indiví­duo, mas também como classe, coincidem historicamente com a "cidadania" do gênero romance. Na Alemanha, é apenas no fim do seculo XVIII, quando nomes como Goethe passaram a se dedi­car ao gênero, que o romance deixa de ser considerado literatura trivial e de má qualidade.

Criado pelo professor de Filologia Clássica Karl Morgenstern em 1810, o termo Bildungsroman emerge para o discurso acadê­mico por meio da obra do filósofo idealista Wilhelm Dilthey Das

Leben Scbleiermachers [A vida de Schleiermacher], de 1870 (pois a repercussão dos trabalhos de Morgenstern foi reduzida, não ul­trapassando o âmbito da Universidade de Dorpat,1 no Báltico):

Eu gostaria de chamar Bildungsromane aos romances que com­põem a escola do Wilhelm Meister ... A obra de Goethe mostra o aperfeiçoamento humano em diferentes graus, formas, fases da vida. (Dilthey, apud Martini, 1961, p.44)

Essa breve definição, ao mesmo tempo em que estabelece a circulação do termo Bildungsroman para o discurso acadêmico mais amplo, articula a relação imediata entre o termo e o romance de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1795-1796). Dilthey relaciona ainda o romance de Goethe ao ideal de aperfei­çoamento humano. Tal articulação, construída sobre as bases idea­listas do espírito de época e do entrelaçamento entre vida e obra, tornou-se peça chave para a tradição crítica do Bildungsroman, influenciando as abordagens e definições que se seguiram.

A linha que conjuga o Bildungsroman a um espírito de época é, sem dúvida, a principal dicção que irá orientar sua tradição crítica. Ao longo deste livro, o Bildungsroman será abordado como uma instituição atrelada a megaconceitos em circulação na história cul­tural do século XVIII, como a educação e formação das diferentes classes sociais, ao lado do estabelecimento do romance como gêne­ro literário "digno". Trata-se, portanto, de uma instituição social-literária, composta, por um lado, pelo conceito histórico da Bildung burguesa, fundamental para o funcionamento da sociedade absolu­tista tardia na Alemanha do final do século XVIII, e, por outro, pela grande instituição literária do mundo moderno, o romance.

Renato Janine Ribeiro (1994) considerou Os anos de apren­dizado de Wilhelm Meister em si mesmo uma obra constitutiva do mundo burguês. Certamente, encontram-se no romance de Goethe motivos temáticos e estruturais peculiares a uma trajetória de de­senvolvimento da personalidade, em sintonia com uma época em que a transformação do homem pela cultura passou a ser tônica

1 Atual Tartu, na República báltica da Estônia.

dominante. A educação e a formação do jovem burguês passaram a ser, nos inícios da época moderna, a ferramenta para a tran­sição de uma cultura do mérito herdado para a cultura do mérito pessoal adquirido.

Bildung (formação), Erziehung (educação) e Ausbildung (for­mação especializada) são instâncias que permeiam a trajetória do protagonista Wilhelm Meister. Ciente de que uma formação uni­versal e dirigida ao indivíduo é prerrogativa exclusiva da aristo­cracia, Meister busca ocupações que possam intermediar o abis­mo entre o utilitarismo e servilismo burguês e a autonomia e independência da aristocracia. A dedicação ao teatro parece-lhe, em um primeiro momento, o sucedâneo ideal para que se torne uma "pessoa pública", capaz de agir e empreender, ao passo que ao burguês só restaria a consciência de seus limites. O prota­gonista Wilhelm Meister é, portanto, um aspirante à ascensão social, a um título de nobreza que lhe chega a ser oferecido, já ao final do livro, pela união com a aristocrata Natalie. Entretanto, a trajetória de Wilhelm Meister continua ainda ao longo do ter­ceiro livro da "série" (pois Goethe escreveu uma trilogia). Em Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister, livro que veio a pú­blico em 1829 (segunda edição), cerca de trinta anos depois de Os anos de aprendizado, o protagonista irá finalmente abraçar uma profissão burguesa e prática: torna-se cirurgião, espe­cializando assim uma formação que desejava, no princípio, uni­versal. A Bildung transforma-se na Ausbildung. Entre Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1795-1796) e Os anos de peregrinação (1829), Goethe compreendeu a transformação do projeto burguês idealista em uma inteligência política, e, sobre­tudo, econômica, produto da técnica e da Revolução Industrial que se avizinhava.

A TRAJETÓRIA DO GÊNERO

A dinâmica do Bildungsroman como gênero literário assenta-se, portanto, em um movimento que se estende a partir das con­dições de produção e de origem bastante demarcadas, em direção

à sua expansão. Acompanha-se aqui a história do Bildungsroman compreendido como uma instituição social-literária, isto é, como projeção coletiva dos ideais da burguesia alemã, em sua origem, focalizando o processo de apropriação sofrido pelo gênero ao lon­go de seus quase duzentos anos de existência.

Acompanhar a trajetória do gênero Bildunsgroman ao longo da história literária significa acompanhar a evolução, involução e estabilização da própria historiografia; como também os processos de assimilação e deglutição dos paradigmas universalmente acei­tos como "cânone ocidental" pelas literaturas mais jovens das Américas.

É assim, por exemplo, que a crítica literária no Brasil se dis­põe a reconhecer a existência de um Bildungsroman brasileiro, transfigurado e antropologizado por um viés antieurocêntrico que viu no idealismo burguês e masculino do romance de Goethe um exemplo de chauvinismo literário; é assim também que, dentro da produção literária em língua alemã, o romance de Günther Grass, O tambor (1959), pode ser considerado um exemplo "ra­dical e vertiginoso" do romance de formação tradicional da épo­ca goethiana.

Este livro pretende ter empreendido uma investigação que se baliza pelo reconhecimento da historicidade do Bildungsroman. Ao lado do mapeamento da crítica dirigida ao gênero e à obra considerada seu paradigma, procurou-se delimitar as inflexões históricas e literárias que possibilitaram sua gênese e desenvolvi­mento. Assim, as condições em que se deu a criação do termo Bildungsroman, o projeto pedagógico que se delineia durante a Aufklärung,2 a vertente de uma literatura educativa, bem como o conceito temporal da Bildung no âmbito da sociedade e cultura alemãs da segunda metade do século XVIII atuam como núcleos formadores do discurso, como projeções constituintes do Bildungs­roman como instituição literária e cultural.

2 "Ilustração" ou "Iluminismo". Ao longo deste trabalho, pretende-se manter o original alemão, dado que o termo já se encontra incorporado ao vocabulário das ciências humanas.

Concorrem para o estabelecimento dessa "historiografia construtivista" a análise dos discursos teóricos, as resenhas pu­blicadas ou não, ensaios, artigos, assim como correspondência, anotações particulares, menções em diários pessoais. Paralela­mente, considera-se também "discurso" sobre o Bildungsroman as relações intraliterárias, identificadas por meio da alusão/cita­ção direta, da paráfrase e da paródia, processo que se poderia chamar, enfim, de uma relação de tradição consciente ante o paradigma do Bildungsroman.

O acompanhamento da trajetória do gênero Bildungsroman mostra-se então como uma verdadeira "história dos problemas", pela qual se conjugam e se reorganizam informações e interpre­tações legadas pela tradição crítica e literária. A história do Bild­ungsroman encontra-se inapelavelmente marcada, a um tempo, pela figura autoral de Goethe, cuja sombra se projeta ao longo da história da produção literária em língua alemã por mais de du­zentos anos. Por outro lado, o Bildungsroman desvenda-se como instituição social, como um mecanismo de legitimação de uma burguesia incipiente, que quis ver refletidos seus ideais em um veículo literário (o romance) que apenas começara a se firmar. É assim que, na Alemanha, o Bildungsroman mostrou-se a contra­partida estética de acontecimentos que, na França, se davam no plano político.

I O ESTABELECIMENTO DO CONCEITO

O QUE É BILDUNGSROMAN

"Bildungsroman": "novel of self-cultivation", "roman des en-fances", romance de formação. As traduções, em sua maior parte aproximativas, procuram resguardar o sentido de uma forma nar­rativa considerada pela historiografia literária como um fenôme­no "tipicamente alemão". No Brasil, tem a preferência o termo original, incorporado ao léxico literário brasileiro conforme Massaud Moisés, em seu Dicionário de termos literários, de 1978.

A primeira manifestação do termo Bildungsroman data pos­sivelmente de 1810, ano em que o professor de filologia clássica Karl Morgenstern emprega o termo pela primeira vez em uma conferência na Universidade de Dorpat.

A definição inaugural do Bildungsroman por Morgenstern entende sob o termo aquela forma de romance que "representa a formação do protagonista em seu início e trajetória até alcançar um determinado grau de perfectibilidade". Uma tal representação deverá promover também "a formação do leitor, de uma maneira mais ampla do que qualquer outro tipo de romance".

Encontram-se aí o núcleo e o germe de uma concepção ideali­zada da Bildung burguesa, que deverá imperar por quase duzentos anos. Por intermédio do filósofo Wilhelm Dilthey, que aperfeiçoa e amplia a definição de Morgenstern, essa representação idealista da Bildung permitirá a caracterização de um "espírito nacional alemão", de uma singularidade intelectual e nacional que se deseja ver refle­tida na produção literária.

Morgenstern, o criador do termo Bildungsroman, associa-o ao romance de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1795-1796), criando assim o que a historiografia literária reco­nheceria como o paradigma do gênero.

A história de vida do jovem Wilhelm Meister, sua trajetória desde o lar burguês em direção à busca por uma formação universal e pelo aperfeiçoamento de suas qualidades inatas, sua relação com as várias esferas da sociedade da época até sua inserção na aristocra­cia, por meio de um casamento interclasses (mésalliance), foram vistos com Morgenstern como o percurso exemplar, como a traje­tória arquetípica a ser cumprida pelos filhos da incipiente burgue­sia alemã em busca de legitimação e reconhecimento político.

A grande questão que permeia as quase seiscentas páginas do romance de Goethe é justamente a medida das possibilidades de aperfeiçoamento e formação que restam ao burguês, em compara­ção com o nobre. Provavelmente o mais conhecido documento li­terário da história do Bildungsroman, a carta de Wilhelm Meister a Werner ilustra bem o desejo burguês pela formação universal, pelo conhecimento que ultrapassa os limites estreitos da educação para o trabalho e para a perpetuação do capital herdado:

Deixa que eu te diga em uma só palavra: aperfeiçoar-me,1 a partir do que realmente sou, tem sido meu desejo e minha intenção

1 No original, ausbilden, verbo que tem o sentido mais prático de um desen­volvimento de habilidades determinadas. É curioso que o verbo utilizado aí tenha sido ausbilden, em lugar de bilden, uma vez que este expressa um conteúdo mais amplo, dirigido mais ao "saber viver" do que propriamente ao desenvolvimento de qualidades específicas. A interpretação de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister como Bildungsroman constrói-se toda sobre o sentido universal de bilden, de uma formação para a vida que ultra-

desde a mais primeira juventude ... Fosse eu um nobre, estaria en­tão nossa disputa encerrada; já que sou apenas um burguês, resta-me seguir meu próprio caminho, e eu espero que me possas com­preender. Ignoro o que se passa em outras tetras, mas, na Alemanha, só ao nobre é possível uma formação universal, e, permita-me di­zer, individual ... O nobre deve criar e empreender, ao passo que o burguês deve servir e trabalhar segundo as regras.

... Se, na vida cotidiana, o nobre não conhece limites ... pode ele então apresentar-se perante seus pares com a consciência tranqüila. Ele pode seguir adiante, ao passo que ao burguês nada se ajusta melhor do que a pura e tranqüila consciência do limite que lhe está traçado. (Goethe, 1962, p.291)2

Esclarece-se assim o recorte sobre o qual o romance de Goethe

opera: a rígida divisão em classes nos Estados alemães, e o papel

reservado à incipiente burguesia alemã em um contexto de abso­

lutismo tardio.

É assim que a idéia de um Bildungsroman, de uma forma lite­

rária que correspondesse aos anseios tanto do indivíduo quanto de

sua classe como um todo , precede a fortuna crítica do gênero,

historicizando-o e atrelando-o às circunstâncias bastante específicas

da constituição do mundo burguês. No caso do Bildungsroman ale­

mão, a própria criação do termo encontra-se vinculada a uma ex­

periência biográfica e histórica, a trajetória intelectual do próprio

Karl Morgenstern, que vinculou sua busca de aperfeiçoamento ao

paradigma literário que ali se iniciava. Sua correspondência pessoal

e seus projetos pedagógicos na Universidade de Dorpat denotam

sua quase obsessão pela possibilidade de uma formação universal e

autônoma, até então privilégio da aristocracia.

Bernard Witte reconhece em Os anos de aprendizado de Wil­

helm Meister uma obra de arte "simbólica", produzida sob evi-

passa o sentido mais limitado do aperfeiçoamento e da instrução em deter­minadas fases da vida prática. A utilização voluntária de ausbilden pode estar apontando para a futura renúncia do protagonista a uma formação universal, realizada em Wilhelm Meisters Wanderjahre [Os anos de peregri­nação de Wilhelm Meister].

2 Tradução da autora, a partir da Hamburger Ausgabe, com empréstimos a Nicolino S. Neto, tradutor da edição brasileira de 1994.

dente oposição ao regime de terror que se seguiu imediatamente à Revolução Francesa. No romance de Goethe, as mésalliances anunciadas ao fim do livro configurariam a égalité entre os cida­dãos, e as relações de parentesco, a fraternité. Goethe efetivamente realizou uma estetização da sociedade, por meio das intrincadas relações entre as personagens, que, ao final do romance, se ex­plicam e se harmonizam, não apenas por relações de matrimônio e parentesco, mas também de afinidades espirituais, eletivas.

É assim que, por um lado, o surgimento do Bildungsroman alemão encontra-se atrelado a um a priori histórico de contornos bastante definidos, que o incorpora à constelação cultural da Aufklärung alemã, nos últimos trinta anos do século XVIII.

Da mesma forma, o surgimento do termo coincide com o momento do reconhecimento do romance como forma literária "digna". Originário do latim vulgar romanic, por meio do fran­cês romanz, o termo roman designava uma narrativa longa, em idioma diferente do latim clássico, na qual se representava o pro­tagonista em suas relações e divergências com o mundo exterior. Até o século XVIII, na Alemanha, o Roman designava uma narra­tiva trivial, menor, na qual geralmente se representava uma histó­ria de amor. A grande forma narrativa era ainda a epopéia, com sua grandiosidade temática e metro clássico. Na Inglaterra e na França o gênero narrativo já estabelecera sua tradição desde o século XVII; na Espanha, o modelar Don Quixote é publicado pela primeira vez em 1601. Entretanto, na literatura de língua alemã, o reconhecimento do romance como gênero digno ocor­rerá apenas nos últimos trinta anos do século XVIII. Os sofrimentos do jovem Werther, o grande sucesso de público de Goethe, é de 1774 e marca o momento de maturidade e de aceitação do gê­nero pelo incipiente público de língua alemã.

A palavra Bildungsroman conjuga, portanto, dois termos de alta historicidade no contexto alemão e mesmo europeu. Por um lado, a incipiente classe média alemã movimenta-se em direção à sua emancipação política, processo que se reflete na busca pelo auto-aperfeiçoamento e pela educação universal. A par disso, cris­taliza-se o reconhecimento público de um gênero literário vol­tado para a representação do próprio ideário burguês, gênero esse

que o século XIX irá conhecer como a grande forma do romance realista.

Desde suas origens, o romance realista mostra-se como uma forma capaz de retratar o "homem comum", mediano. Não se representam mais seres de capacidade, força e coragem extraor­dinárias, mas sim o jovem que se inaugura perante a vida, que busca uma profissão, o auto-aperfeiçoamento e seu lugar no mun­do. Em vez de Ulisses, o burguês.

Nas literaturas nacionais ocidentais, o advento do romance coincide com a "descoberta da vida privada", das questões indivi­duais e familiares. Uma classe média incipiente elege então essa forma narrativa como uma literatura reflexiva, que constrói, ao mesmo tempo em que reflete, as instituições basilares da vida burguesa. Profissão, casamento, formação, e mesmo economia, fazem parte de um repertório que o romance passará a veicular, em estreita conformidade com as "pequenas questões" da sociedade em meio à qual se originou. Pode-se falar, portanto, de uma estreita relação entre as condições de produção e de recepção do romance. Produ­zido, consumido e editado pela burguesia, o romance realista rei­nará soberbo como a forma narrativa que sobreviverá até mesmo à estética experimental das vanguardas do século XX.

Para a historiografia literária, o Bildungsroman passou a cons­tituir um signo, formado, de um lado, pela profunda historicidade de suas condições de origem, e, por outro, pela magnitude e al­cance da figura literária e histórica de Goethe, o "príncipe dos poetas". Ao longo de quase duzentos anos, cristalizou-se um con­ceito de Bildungsroman que, a despeito da alta carga ideológica de suas origens, foi realizado pela historiografia literária como uma instituição, um cânone atemporal e, paradoxalmente, a-his-tórico. Dezenas de verbetes em enciclopédias literárias entendem o Bildungsroman como um gênero cuja obra modelar é Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, associando-o assim ao Classicismo de Weimar, período no qual Goethe, ao lado de Schiller, reina soberbo como a figura emblemática. Todas as obras posteriormente consideradas como Bildungsromane, na Alemanha e fora dela, são mensuradas, sob a perspectiva de sua temática e composição estética, ante o paradigma constituído pelo romance

de Goethe. Assim, há obras que são Bildungsromane em maior ou menor medida, dependendo de sua maior ou menor semelhança com Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister.

Essa conjunção entre conceito e obra resultou em um pro­blema para a crítica e a teoria literária. A grande circulação do termo Bildungsroman pelas literaturas nacionais européias, e, mais recentemente, também pelas americanas, levou a uma superex­posição do conceito. O recurso ao Bildungsroman passou a ser uma estratégia teórica e interpretativa capaz de abarcar toda pro­dução romanesca na qual se representasse uma história de desen­volvimento pessoal.

O problema se constrói na medida em que a classificação de obras únicas sob o gênero Bildungsroman deve ainda consi­derar o cânone mínimo constituído por Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, mesmo que não mais compartilhem das con­dições originais de seu surgimento. A pergunta que se impõe é: quais são as conseqüências, para os estudos literários, da utiliza­ção demasiada de um termo tão impregnado de circunstancialidade e historicidade? É possível efetivamente reconhecer a existência de um gênero literário chamado romance de formação, para além das circunstâncias peculiaríssimas de sua origem, entre as quais se encontram mesmo cenas fundamentais da constituição do na­cionalismo moderno e da emancipação burguesa?

Acompanhar a história do Bildungsroman significa, assim, acompanhar outras histórias concorrentes, como a da gênese de uma consciência literária nacional, ao lado dos inícios do próprio gênero "romance" na Alemanha.

Por outro lado, é preciso conceder que os estudos literários repousam hoje sobre pressupostos que contrariam a concepção de literatura como produção tipicamente nacional. O desenvol­vimento dos estudos comparativos, a insistência cada vez maior em atribuir aos estudos de literatura um estatuto de estudos de cultura, na direção oposta àquela seguida pelos formalistas do iní­cio do século, demanda uma abordagem do fenômeno literário capaz de "dar conta" de aparentes contradições.

Esse é o campo de pesquisa no qual se insere este livro. Os capítulos da primeira parte pretendem oferecer ao leitor de lín-

gua portuguesa uma visão dos processos de constituição dessa ins­tituição social-literária que é o Bildungsroman.

Na segunda parte do livro, procura-se interceptar o meca­nismo pelo qual um "gênero" tão marcado ideologicamente pode ser assimilado por uma tradição literária estrangeira, mais jovem e marginal em relação ao eixo eurocêntrico.

Essa relação poderá ocorrer apenas por meio de um meca­nismo de disjunção e transgressão ante o cânone, mesmo diante do cânone mínimo instituído pelo romance de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister.

O exemplo da apropriação do Bildungsroman pela crítica li­terária brasileira, comentado neste trabalho por meio das obras de Eduardo de Assis Duarte e Cristina Ferreira Pinto, ilustra a medida desse processo de deglutição de uma instituição literária originada em uma literatura nacional européia pela jovem tradi­ção literária sul-americana.

Por fim, discute-se aqui o estatuto do próprio romance de Goethe como modelo ideal do Bildungsroman, questão apontada já por críticos contemporâneos da obra como os primeiros-românticos Friedrich Schlegel e Novalis.

Este estudo aponta, em sua totalidade, para a hipótese da existência de um Bildungsroman antes discursivo do que pro­priamente literário, isto é, a eleição de um gênero ideal, capaz de expressar os desejos e necessidades de uma classe, ao mesmo tempo em que deveria ajudar a solidificar as incipientes instituições burguesas.

As conseqüências advindas de uma tal constatação poderão ser acompanhadas pela observação da fortuna crítica do gênero, tanto na produção literária em língua alemã como em outras lín­guas culturais.

O CONCEITO HISTÓRICO DE BILDUNG

Bildung é uma palavra alemã cuja origem remonta ao médio alto-alemão (bildunge, no alto alemão tardio bildunga). Seu pri­meiro significado está atrelado a acepções visuais como "ima-

gem" (Bild), reprodução, "representação da imagem" (Abbild, Ebenbild), "imitação", "reprodução" (Nachahmung, Nachbildung).

O acompanhamento da trajetória do termo informa uma acentuação, por volta da metade do século XVIII, do primeiro sig­nificado etimológico de Bildung como "forma" (Gestalt), sobre­tudo "formação" (Gestaltung), relacionado tanto à forma exte­rior, à conformação (até mesmo do semblante humano: ela tem uma primorosa configuração de traços do rosto, uma configura­ção agradável - "sie hat eine vortreffliche, eine einnehmende Bil­dung") como também à formação e desenvolvimento de caracte­rísticas pessoais como intelecto, bons costumes, comportamento, através de influências exteriores. (Cf. Vierhaus, 1992, p.509). No decorrer de sua existência, o termo Bildung ampliou seu leque de significados, sem perda da função semântica dos primeiros. Isso significa que o complexo conceito Bildung, como hoje o en­contramos na língua alemã, conserva grande parte das concepções atribuídas ao termo, desde sua apropriação pelo discurso intelec­tual nos últimos trinta anos do século XVIII.

Em 1784, em resposta à questão "O que é Iluminismo" ("Was heifit aufklären") proposta pela Berlinische Monatschrift [Revista Mensal Berlinense], o filósofo Moses Mendelsohn fornece o tes­temunho histórico das circunstâncias da entrada em circulação do termo Bildung no discurso intelectual moderno, atrelando-a ao contexto da Aufklãrung alemã:

As palavras Iluminismo [Aufklãrung], cultura [Kultur] e forma­ção [Bildung] são ainda recém-chegadas em nossa língua, perten­cem em princípio apenas à linguagem dos livros. O vulgo dificil­mente as compreende ... Ainda não houve tempo suficiente para que o uso lingüístico, que parece querer distinguir entre essas pala­vras de igual significado, pudesse conferir-lhes os respectivos limi­tes. Formação, Cultura e Iluminismo são modificações da vida em comunidade, efeitos da dedicação e dos esforços dos homens em prol da melhoria das condições do convívio social. Formação divi­de-se em Cultura e Iluminismo. A primeira parece relacionar-se antes à vida prática ... Iluminismo, por sua vez, mais parece dizer respeito a aspectos teóricos. (Mendelsohn, Ueber die Frage: was aufklären? Berlinische Monatschrift, 1784, apud Vierhaus, 1992, p.508)

Nesse momento, o termo Bildung não era em si um neolo­gismo; percebidos como novos eram seu uso, significados e peso como conceito diretor da discussão intelectual. Mendelsohn aponta assim o contexto histórico complexo em que o termo Bildung co­meça a adquirir seu significado moderno.

O repertório referido por Mendelsohn não deixa dúvidas so­bre a alta carga ideológica que o termo Bildung passaria a suportar na língua alemã, vinculado essencialmente aos pilares de susten­tação do otimismo iluminista, como a crença na possibilidade de aperfeiçoamento pessoal e no trabalho em prol do bem comum.

A par disso, o sentido da Bildung como construção do cará­ter do homem foi reforçado pelos autores pietistas, tendo-se tor­nado predominante sobre o significado de Bildung como confi­guração de aparência exterior. Rudolf Vierhaus aponta um retorno às concepções místicas da Idade Média, quando Bildung (ima-ginatio) fazia parte do conjunto das quatro virtudes tradicionais, denominando a capacidade de representação interior e de auto-investigação. Aproximamo-nos dessa forma de um dos sentidos evocados pelo termo Bildung que é essencial para a compreensão do romance de formação: a noção de processo.

Processo, neste contexto, é a sucessão de etapas, teleolo-gicamente encadeadas, que compõem o aperfeiçoamento do indi­víduo em direção à harmonia e ao conhecimento de si e do mun­do. Formação (Bildung) passa então a dialogar com educação (Erziehung), conceito caro ao ideário da Aufklärung e constituin­te do mundo burguês. Na Alemanha dos últimos trinta anos do século XVIII, Erziehung designava o processo de desenvolvimento do patrimônio intelectual inerente ao homem, patrimônio esse que deveria ser otimizado e cultivado por meio de mecanismos de estímulo do aparelho perceptivo e do raciocínio lógico. Na primeira metade do século XIX, o termo Erziehung (educação) encontrava-se também relacionado à concepção da literatura cristã lida no âmbito doméstico, com o intuito de preparar a criança para o exercício da moral e dos ensinamentos cristãos.

De maneira geral, a tendência dos dicionários e do uso lin­güístico moderno é atribuir ao termo "educação" (Erziehung) o sentido de uma ação dirigida, com objetivos propedêuticos bas-

tante definidos, ao passo que "formação" (Bildung) seria enten­dida mais como o resultado um processo que não pode ser atin­gido apenas pela atividade metódica da educação; a Bildung "pres­supõe a atividade espontânea do indivíduo", ocorrendo ao longo do processo de auto-aperfeiçoamento.

É no final do século XVIII, nas origens da educação moderna, que a natureza humana passará a ser compreendida como pas­sível de mudança e de aperfeiçoamento. Rousseau, Pestalozzi, Basedow e o próprio Goethe na Alemanha, debruçaram-se sobre a personalidade do ser infantil e juvenil, atribuindo-lhe caracte­rísticas próprias que o diferenciavam da personalidade adulta.

A "descoberta da educação" como meio de moldar e formar o caráter dos homens encontra-se portanto estreitamente ligada ao conceito de individualização, sobretudo no sentido de reco­nhecimento da especificidade do caráter infantil e juvenil.

Phillipe Ariès, em sua História social da família e da criança, associa o início da individualização do caráter infantil e juvenil a transformações ocorridas no espaço doméstico, na organização familiar e ao advento da escola, em um sentido próximo ao que hoje conhecemos, isto é, como um espaço diferenciado. Assim, à medida que avançavam e se aperfeiçoavam as relações privadas e familiares, aumentava também a importância que se passou a atri­buir à educação. A escola, substituindo a aprendizagem doméstica (no sentido da aprentissage, tirocínio, transmissão de um mister, de um ofício) como meio de educação, logra manter a criança se­parada dos adultos e preconiza-lhe um tratamento diferenciado.

O final do século XVIII é também o período em que irá des­pontar na Alemanha uma literatura destinada à criança e ao edu­cando, em consonância com delimitação dos espaços familiares e a decorrente conscientização das instituições quanto às espe­cificidades e necessidade de orientação da personalidade infantil e juvenil.

Obras como o periódico Der Kinderfreund [O amigo das crian­ças], publicado por Christian Felix entre 1776 e 1782, e O novo Robinson de Joachim Heinrich Campe [Robinson der Jüngere, 1779-1780], uma das inúmeras e bastante popularizadas adaptações alemãs do Robinson Crusoe de Defoe, instituem, em consonância

com os princípios da educação moderna, uma tradição de obras voltadas à formação e instrução do indivíduo já desde a infância.

O projeto pedagógico veiculado nessas obras segue ma-nifestadamente a concepção iluminista. No exemplo oferecido em O amigo das crianças, Mentor, o narrador fictício, acumula as funções de pai e educador, característica comum ao projeto iluminista de educação. Ao mesmo tempo, o processo de desen­volvimento se dá pela colaboração de uma "sociedade educado­ra", constituída pelos amigos da família, Mestre Philokteknos, Doutor Chronickel, Senhor Papillion e Senhor Spirit. Os quatro atuam, junto a Mentor, na educação das crianças, lançando mão de uma educação sistemática, na qual cada um é responsável pela transmissão de um ramo do conhecimento, respectivamente a teo­logia, a história universal, a história natural e as artes.

Reconhecem-se aqui os ecos que a obra de Jean-Jacques Rousseau, Emílio ou Da educação, de 1762, irradiava por toda a Europa. Constitui-se uma tradição de obras educativas, nas quais a figura masculina do preceptor ou do mentor é responsável pela formação da personalidade e do intelecto do jovem. De início, trata-se de obras produzidas com uma intenção e destinação cla­ramente pedagógicas, nas quais o caráter ficcional é mero veículo para a transmissão de ensinamentos que visavam, ao lado do de­senvolvimento do raciocínio lógico, à estabilidade social e mes­mo ao estabelecimento e à manutenção do status econômico.

O romance de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1795-1796) é o exemplo paradigmático de uma série de romances nos quais podem ser identificados os mesmos pressu­postos que norteavam a literatura eminentemente educativa da Aufklärung. O caráter ficcional do romance realista atua ali como mediação entre uma certa configuração histórica, a busca indivi­dual pelo aperfeiçoamento das qualidades inerentes do homem em prol do bem comum, e a sua realização. O fenômeno literário constituído pelo romance de formação só pode ser compreendido se relatado à transição entre a cultura feudal e a emancipação eco­nômica burguesa. Na Alemanha, onde o processo foi acima de tudo lento e pouco definido, a literatura teve um papel funda­mental na veiculação dos princípios que nortearam a passagem

da cultura do mérito transmitido, fundamentado nos direitos de posse e herança, para a cultura do mérito pessoal adquirido, atri­buto do burguês em formação.

A REPRESENTAÇÃO DA EDUCAÇÃO (ERZIEHUNG) EM

OS ANOS DE APRENDIZADO DE WILHELM MEISTER

A idéia de uma sociedade educadora e intervencionista está presente também em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. A Sociedade da Torre, uma espécie de associação de homens sá­bios nos moldes da maçonaria e das sociedades secretas do século XVI, preconiza o desenvolvimento das qualidades e talentos ina­tos no indivíduo orientado para a vida em sociedade, para a prá­tica de ações em prol do bem da coletividade. Jarno, um dos "tu­tores" de Wilhelm Meister, afirma:

Só todos os homens juntos compõem a humanidade; só todas as forças juntas, o mundo; estas estão com freqüência em conflito entre si e, enquanto buscam destruir-se mutuamente, a natureza as mantém juntas e as reproduz. (Goethe, 1994, p.536-7)

Assim como Mentor, figura paradigmática do educador es­clarecido, Jarno também preconiza uma educação individual que deverá ao mesmo tempo servir ao bem comum. Trata-se do pro­cesso de harmonização dos talentos e qualidade inerentes ao ho­mem, em direção à própria felicidade e à de seus semelhantes.

A Sociedade da Torre é uma instituição de caráter interven­cionista e paternalista autoritário. Sua forma de agir reproduz os métodos utilizados nos Diálogos (Gespräche) iluministas, pelos quais a razão, atributo masculino e paterno, era transmitida ao educando por meio de um jogo de pergunta e respostas, a fim de estimular seu raciocínio. O paralelo utilizado pela Sociedade da Torre é o princí­pio da educação pelo erro, o qual permite ao educando entregar-se a seus equívocos como forma de superá-los:

Não é obrigação do educador de homens preservá-los do erro, mas sim orientar o errado; e mais, a sabedoria dos mestres está em

deixar que o errado sorva de taças repletas de seu erro. Quem só saboreia parcamente seu erro, nele se mantém por muito tempo, alegra-se dele como de uma felicidade rara; mas quem o esgota por completo, deve reconhecê-lo como erro... (Ibidem, 1994, p.480, grifo da autora)

Embora o princípio da educação pelo erro possa evocar a idéia de uma espécie de educação liberal, na qual o educando detém o poder de decisão sobre suas ações e trajetória, o caráter interven­cionista da Sociedade da Torre deixa-se reconhecer em manobras ocultas capazes de provocar alterações significativas no destino do educando. Decisões como a escolha de uma profissão e a perma­nência no país natal ou emigração para a América são tomadas pelo protagonista Wilhelm Meister pela influência, velada ou direta, de seus mentores. O grau de emancipação do educando/protagonista é uma das questões mais controversas presentes na constituição do romance de Goethe como obra paradigmática do gênero "romance de formação", e deverá ser retomada adiante.

De todo modo, é possível reconhecer, no romance de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, uma afinidade histó­rica com os pressupostos da literatura educativa da Aufklãrung e Spätaufklärung (Iluminismo e Iluminismo tardio) veiculada espe­cialmente pela Sociedade da Torre, a instituição pedagógica ali representada.

O protagonista Wilhelm Meister ultrapassa, porém, a instân­cia relativamente limitada da concepção educativa da Sociedade da Torre, por meio de sua busca pela formação universal. Como se verá a seguir, "formação" (Bildung) e "educação" (Erziehung), conceitos próximos em sua origem, passam a ter seus significados diversificados. Essa diversificação pode ser identificada também no desejo de Wilhelm Meister por uma "formação universal".

FORMAÇÃO INDIVIDUAL E FORMAÇÃO PARA O ESTADO

Produtos do otimismo iluminista, isento ainda de capacidade de autocrítica, os conceitos formação e educação articulavam-se, nas últimas décadas do século XVIII, ao ideal de uma sociedade

afortunada, isto é, à idéia de que da formação e educação dos indivíduos dependia o bem-estar da sociedade. Decorre daí o re­conhecimento de que formação e educação são tarefas obrigató­rias do Estado, bem como objetos de seu interesse.

Consideradas, portanto, como competência do Estado mo­nárquico autoritário, educação e formação deveriam prover o indi­víduo da capacidade de responder por suas obrigações ante esse mesmo Estado, de forma a assegurar a funcionalidade social. Trata-se, porém, de um Estado ainda absolutista, claramente dividido em classes; educação e formação devem, portanto, observar essa divi­são, contemplando cada classe social com uma educação e formação diferenciadas, "adaptadas" à funcionalidade do Estado de classes.

Tal formação se daria sobretudo pela instrução política, enten­dida como uma necessária ampliação da instrução escolar nos no­vos Estados monárquicos. Christian Wilhelm Dohm nomeia as três classes a quem tal instrução se destina: " 1 . a classe produtora ... 2. a dos que recebem soldo ou que servem a nação ... 3. a classe dos no­bres", as quais era necessário "esclarecer, formar" (aufklären, bilden) de maneira diferenciada. Propõe ainda que se incluam as classes dos varejistas e dos comerciantes, "as quais necessitavam de uma forma­ção completamente diferente" (apud Vierhaus, 1992, p.513).

Assim, nas últimas décadas do século XVIII, o conceito de for­mação encontra-se intimamente ligado à articulação da sociedade em classes. Em nome da funcionalidade social, cada cidadão de­veria receber a formação que o habilitasse da melhor maneira para o desempenho de sua função junto à coletividade.

Uma vez entendidas a educação e formação como obrigação e interesse do Estado, abre-se campo para a concepção de um proje­to de "educação nacional", destinado a fortalecer a consciência de nacionalidade e a preparar cidadãos para o serviço do Estado.

A despeito da situação político-geográfica peculiar da Alema­nha, dividida em muitos Estados independentes, traçaram-se pla­nos nacionais de educação nos quais a classe média cultivada ti­nha papel relevante. Desenhava-se, portanto, o perfil daquele extrato social que constitui hoje na Alemanha a grande reserva de recursos humanos, traduzida sobretudo naqueles que exercem pro­fissões liberais e nos funcionários de Estado. É possível detectar,

por volta de 1775, o esforço dos reformadores sociais e educa­cionais em prol da constituição dessa "classe dominante", que já não era mais exclusivamente constituída pela aristocracia, sem ser efetivamente uma burguesia plenamente estabelecida. Nesse es­forço pelo estabelecimento de uma classe cultivada e funcional nos Estados alemães, produziram-se algumas dezenas de obras que tinham como objetivo final comum a eleição de um "caráter na­cional", o reconhecimento de uma classe capaz de exercer influ­ência imediata e eficaz sobre as camadas incultas, criando costu­mes e leis capazes de ordenar o processo de instalação burguesa. Um título escolhido aleatoriamente dentre as obras contemporâ­neas a esse esforço pode dar a dimensão do processo então inicia­do. Em 1773, F. G. Rezewitz publica Die Erziehung des Bürgers zum Gebrauch des gesunden Verstandes und zur gemeinnützigen Geschäfftigkeit, Kopenhagen, 1773 [A educação do cidadão para o uso do bom senso e para o exercício do interesse público], obra na qual se encontram expostos os princípios de uma educação voltada para a constituição das virtudes burguesas como susten­tação da harmonia social. Uma tal orientação só poderia ocorrer na medida em que também o Estado exercesse sua influência so­bre os indivíduos, incutindo-lhes ao mesmo tempo as primeiras noções de patriotismo.

A educação do indivíduo encontra-se, portanto, associada à formação do Estado burguês estamental. O romance de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister é um documento con­temporâneo desse processo de constituição do mundo burguês, capaz de iluminar, no plano estético, transformações que, na Fran­ça, ocorriam no plano político.

A FORMAÇÃO UNIVERSAL (ALLGEMEINE BILDUNG)

A atualização do romance de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister como "romance de formação" origina-se, por­tanto, em um pressuposto discursivo historicamente localizado. O próprio tratamento dado ao complexo tema "formar-se" (sich bilden) no plano ficcional constituído pelo romance de Goethe

tem sua origem em problemáticas contemporâneas de sua gênese, como a educação dos filhos das famílias burguesas em oposição à educação destinada aos nobres. Assim, entende-se que a inscrição de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister sob o termo gené­rico "romance de formação" reflete esse momento histórico parti­cular, quando a preocupação burguesa com o (auto-) aperfeiçoa­mento encontrava-se manifesta tanto no discurso teórico quanto nas reformas que então se ensejavam, nomeadamente no âmbito da educação e instrução.

Trata-se então de uma "disposição de época", reconhecida e recuperada tanto na obra que constitui o paradigma do concei­to Bildungsroman, como na criação do próprio termo por Karl Morgenstern.

O romance de Goethe sustenta-se por sobre um programa narrativo que, grosso modo, pode ser apresentado como a traje­tória de um jovem filho de família burguesa em busca dos pró­prios ideais, em busca do livre desenvolvimento de suas aptidões e daquilo que considera suas tendências, ou sua vocação.

O "velho Meister", próspero comerciante, desejava para seu filho Wilhelm uma formação que atendesse às necessidades decor­rentes dos negócios da família, ou seja, uma formação voltada ao comércio. A partida de Meister da casa paterna é determinada por um acontecimento de caráter prático-econômico: o jovem Wilhelm Meister deve fazer uma visita de inspeção aos parceiros comerciais do pai, ao mesmo tempo em que cobrará dívidas e receberá dinhei­ro. A origem econômica do protagonista, nascido no seio de uma próspera família enriquecida pelo comércio, é repetidas vezes acen­tuada, não faltando mesmo uma rica descrição da casa paterna, sua decoração e cotidiano doméstico, de modo a indicar valores im­portantes para essa parcela da população. Práticas como a aplica­ção financeira, empréstimos, juros e pagamento de impostos são citadas com freqüência (Cf. carta de Werner a Meister, conversa ao final com Lothario, Werner etc).

Assim, quando Meister se decide pelo caminho do autode-senvolvimento e da formação, seu primeiro grande opositor é a própria origem social e econômica. A consciência de que as pos­sibilidades de ampliação de horizontes reservadas à classe a qual

pertence são ínfimas leva Meister a lamentar o destino burguês e contrapô-lo às possibilidades reservadas à aristocracia. Delineia-se, portanto, a consciência de uma sociedade dividida em classes cujos limites inflexíveis constrangem o burguês eternamente a seu próprio círculo de atuação, sem que se vislumbre a possibilidade de ultrapassá-lo.

A carta de Wilhelm Meister a Werner, reproduzida anterior­mente, concentra a questão que perpassa toda a obra: as limita­das possibilidades de desenvolvimento e aperfeiçoamento do jo­vem burguês, ante aquelas destinadas à aristocracia. Ao nobre é destinada uma formação pessoal e universalizante, isto é, de acordo com seus talentos e habilidades natas, ao mesmo tempo que vol­tada para um repertório universal. Ao burguês, resta-lhe uma formação limitada e utilitarista, voltada ao exercício de uma ati­vidade definida, como o comércio. É preciso ressaltar mais uma vez que o período histórico retratado no livro coincide com o momento de produção da obra, por sua vez contemporânea da transição de um estado econômico ainda feudal e latifundiário, para uma economia mais moderna e democrática, em que os ideais e os privilégios da aristocracia serão dissolvidos em meio ao tecnicismo e cientificismo burguês. Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister encontra-se exatamente em meio a essa transi­ção, prenunciando a legitimação das instituições burguesas já no século XIX, ao mesmo tempo em que problematiza ainda ques­tões determinadas pelo primado da aristocracia.

Para Wilhelm Meister, a única maneira de ultrapassar os li­mites estreitos da vida burguesa está na possibilidade de se tornar "uma pessoa pública" (eine öffentliche Person). Meister vislumbra a possibilidade primeiramente na carreira teatral, nas maneiras apuradas dos atores em cena, que em nada lembram a estreiteza e truculência das pessoas de suas relações na cidade natal.

Essa mesma qualidade de "pessoa pública" Meister irá en­contrar no círculo de aristocratas ao qual se une no fim de seus anos de aprendizado.

É assim que o conceito de formação em Os anos de aprendi­zagem de Wilhelm Meister encontra-se associado a um pressupos­to histórico típico da classe média alemã no fim do século XVIII.

Do estabelecimento de uma classe social baseada sobretudo no livre comércio, da ampliação de seu poder econômico e de insti­tuições sociais e financeiras geridas por essa mesma classe, decor­re também um movimento em direção à expansão dos limites que sustentam essa funcionalização. O desejo de Wilhelm Meister de se formar, a partir de seus talentos e tendências naturais, rele­gando a atividade comercial recebida como herança familiar, re­flete o desejo de um grupo social; no romance epistolar de Goethe Os sofrimentos do jovem Werther, de 1774, encontra-se essa mesma inadequação pessoal e profissional do protagonista ao mundo estreito da burguesia, que move Wilhelm Meister para além do universo de origem. No Werther, obra comumente co­nhecida apenas como uma história do amor trágico, a incapaci­dade de adaptação ao universo burguês e suas convenções radicaliza-se, levando ao insucesso irrevogável, no plano pessoal e profissional. Em Os anos de aprendizado, a consciência dos próprios limites (mais como camada social do que como indiví­duo) leva a um movimento de negação desse destino comum, representado primeiramente pela busca da carreira teatral e de­pois pelas ligações do protagonista com a aristocracia, grupo so­cial diferente do seu original.

A decantada harmonia que alguns críticos alegam existir no fim de Os anos de aprendizado é decorrência desse cruzamento interclasses que deve ocorrer por meio da prometida união con­jugai entre as personagens Wilhelm Meister e Nathalie e entre Philline e Friedrich. Bernd Witte (1989) chega mesmo a apontar, a partir dessas uniões entre diferentes classes da sociedade abso­lutista, um paralelo estético com os acontecimentos que, na Fran­ça, se davam em nível histórico, durante a Revolução Francesa.

A representação do processo de formação em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister realiza-se, portanto, de duas for­mas diferentes. O conceito iluminista de formação-educação como processo de desenvolvimento e aperfeiçoamento das qualidades racionais encontra-se configurado na Sociedade da Torre, e mais especificamente em seu mentor intelectual, o abade. O seu proje­to pedagógico, seu princípio de "educação pelo erro", sua atua­ção intervencionista e esclarecida sobre a trajetória dos jovens

sob sua tutela configuram um tipo de procedimento racionalista paternal, nos moldes da Aufklärung.

Historicamente, entretanto, esse sentido iluminista e, na ver­dade, restrito, de formação, foi ultrapassado por um sentido mais amplo. Também em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister a concepção se amplia. O desejo de Meister por uma "formação universal" (allgemeine Bildung) encontra sua contrapartida históri­ca na autonomia do termo Bildung ante Erziehung. Aquele passou a ser usado preferencialmente "quando era intenção designar um pro­cesso de moldagem, de cultivo, mas também de desenvolvimento e de auto-aperfeiçoamento das faculdades espirituais e intelectuais do homem, do coração, do gosto" (Vierhaus, 1984, p.515), ao passo que Erziehung manteve o sentido de um processo pedagógico que levava ao desenvolvimento das faculdades racionais do indivíduo.

A ampliação do conceito de Bildung tem em Herder um mo­mento definitivo. Em Über die neuere Deutsche Literatur [Da nova literatura alemã] (1768), o autor refere-se à Bildung sob um senti­do que se opõe à mera educação ou instrução; Bildung tem em Herder um sentido de "atuação viva" daquele que forma, bem como de atividade espontânea daquele que se forma: "formar, em vez de ensinar" (bilden und nicht unterrichten), "escritores da formação" (Schrifsteller der Bildung), que não escrevem "à maneira das escolas e academias"(wie auf Schulen und Akademien), aperfeiçoamento "vivo, em lugar do livresco, através da formação" (Verbesserung nicht schriftlich ... sondem lebendig, durch Bildung), são expressões pinçadas do texto de 1768, que determinam a ampliação do campo semântico do termo Bildung.

Efetivamente, em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister há trechos que se integram nesse sentido ampliado de Bildung como um processo não acadêmico, não livresco. O exemplo mais ilustrativo pode ser encontrado no relato da personagem Friedrich, no qual explica como adquiriu sua erudição.³ Tampouco Meister freqüenta uma academia, durante seus anos de aprendizado.

3 Friedrich, personagem folgazã, chamado mesmo pela personagem Meister de "nosso pícaro louro", passa por um processo de aquisição de leitura des­crito como uma sátira à pretensa formação universal oferecida nas universi-

No romance de Goethe, o conceito Bildung transita, portan­to, desde um sentido pedagógico-iluminista, como configurado na Sociedade da Torre, até o sentido de formação universal, que se opõe ao sentido absolutista da Bildung burguesa sustentado por uma sociedade de classes. Quando Wilhelm, na carta a Werner, afirma que "só ao nobre é possível uma formação universal", en­quanto ao burguês só restaria "o puro e plácido sentimento do limite que lhe está traçado", está se referindo ao conceito de for­mação adotado pelo estado absolutista, no qual cada indivíduo deveria ser formado segundo sua classe social.

O conceito de formação universal foi claramente definido por Wilhelm von Humboldt, também contemporâneo de Goethe e autor de Ideen zu einem Versuch die Gränzen der Wirsamkeit des Staaten zu bestimtnen [Idéias para uma tentativa de delimitação dos limites da atuação do Estado], de 1792. Ali, Humboldt considera a liber­dade como pressuposto básico da formação do homem:

O verdadeiro objetivo do homem é a formação mais elevada e mais adequada de suas faculdades em um todo. A liberdade é con­dição imprescindível para essa formação. (Humboldt, 1792, apud Vierhaus, 1984, p.521)

Pode-se afirmar que, em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, o conceito de Bildung como formação universal é o que regula e dirige a trajetória do protagonista, embora o processo de aquisição dessa mesma formação permaneça inconclusivo. Meister distancia-se das atividades práticas da vida burguesa, buscando sempre possibilidades de desenvolver suas potencialidades latentes em todas as direções. É um conceito "neo-humanista", na me­dida em que não forma o indivíduo para profissões específicas, mas sim para uma atuação universal:

o espírito e o intelecto são formados em si e para si, não em direção a ocupações determinadas ... A formação é uma formação indivi-

dades: sentados, ao longo de uma mesa sobre as quais se encontram abertos os mais variados títulos, Friedrich e a leviana Philine dedicam-se à leitura aleatória de uma das obras, regulada por um relógio de areia, passando ime­diatamente a outra obra assim que se escoa um período de tempo.

dual e espontânea, que se completa na liberdade, na distância em relação ao mundo prático e na ocupação voluntária com os mais diversos objetos. (Vierhaus, 1992, p.529)

É esse, efetivamente, o conceito de formação que orienta o desejo de Wilhelm Meister em Os anos de aprendizado. Sua con­vivência com a aristocracia é um símbolo da legitimação do dese­jo pela formação universal expressado na carta a Werner. Meister, entretanto, permanece na indeterminação, sem pertencer efetiva­mente à nobreza e, por outro lado, sem assumir uma ocupação burguesa especializada.

É apenas no último livro da trilogia do Meister, Wilhelm Meisters Wanderjahre [Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister], que esse conceito irá se transformar; da almejada Bildung universal, Meister partirá em busca da Ausbildung, da formação especializada.

2 A CONSTITUIÇÃO DO PARADIGMA LITERÁRIO

A CRIAÇÃO DO TERMO

Fritz Martini, em seu artigo Der Bildungsroman - Zur Geschichte des Wortes und der Theorie [O Bildungsroman - sobre a história do termo e da teoria], de 1961, localiza a opinio communis de que o termo teria sido incluído no discurso acadê­mico sobre literatura por obra do filósofo Wilhelm Dilthey. Das Leben Schleiermachers [A vida de Schleiermacher], de 1870, é a obra na qual se encontra a primeira alusão de Dilthey ao Bildungsroman.

É importante observar que já essa alusão aponta para a con­junção entre o termo e uma concepção harmônica e gradual do desenvolvimento do homem, indicando esse caráter na obra de Goethe. Assim, o comentário de Dilthey reforça a idéia de cor­respondência entre o Wilhelm Meister de Goethe e o gênero de­nominado Bildungsroman, antecipando assim sua fortuna crítica.

Entretanto, Martini traz à luz uma disputa intelectual no que se refere à criação do termo Bildungsroman. Atribuída a Dilthey, a

autoria pertenceria na verdade à figura bem menos proeminente de um certo professor da Universidade de Dorpat, Karl Morgenstern.

O artigo de Martini constitui assim um marco na pesquisa sobre o Bildungsroman, trazendo a público a figura bastante sig­nificativa do professor Morgenstern, cuja análise contribui para a compreensão das circunstâncias de surgimento não apenas do ter­mo, mas também do conceito.

O termo Bildungsroman teria sido empregado pela primeira vez por ocasião de uma conferência pública proferida por Karl Morgenstern aos 12 e aos 24 de dezembro de 1810 em Dorpat, no salão nobre da Universidade Imperial, sobre "o espírito e as corre­lações de uma série de romances filosóficos". (Martini, 1961, p.45) Publicada posteriormente por Morgenstern por meio de recursos próprios em seus Dörptsche Beyträge für Freunde der Philosophie, Literattur und Kunst [Contribuições de Dorpat para os amigos da filosofia, da literatura e da arte], em 1817, a passagem vincula o termo Bildungsroman à obra de Friedrich Maximilian Klinger,1 então curador da Universidade de Dorpat e amigo pessoal de Morgenstern. Ali, o autor afirma que não há, dentre os "romances filosóficos e, sobretudo, entre os Bildungsromane de autores alemães", nenhu­ma obra que se compare aos romances de Klinger quanto à capaci­dade de despertar a "elevação moral e a força viril do caráter".

O comentário de Morgenstern contribui, assim, para que se estabeleça uma concepção do Bildungsroman como veículo da formação do caráter, atribuindo portanto ao termo um caráter pedagógico.

É importante acrescentar ainda que, na introdução a uma se­gunda conferência proferida na Universidade de Dorpat, o pró­prio Morgenstern confirma estar consciente quanto ao fato de ser ele o criador do termo: "seja-me permitido falar aqui da prin­cipal dentre as muitas formas do romance, nomeando-a com uma palavra até então inexistente, segundo meu conhecimento: Bil-dungsroman" (apud Martini, 1961, p.46).

1 Autor do drama Sturm und Drang, que deu nome ao movimento pré-român-tico do qual foram expoentes Schiller e Goethe.

Por meio de relações de amizade, Morgenstern foi introdu­zido ao círculo estabelecido na cidade de Weimar, onde não lo­grou, porém, segundo cartas e documentos da época, cair nas gra­ças dos grandes clássicos Goethe e Schiller. Enquanto isso, as expectativas intelectuais suscitadas por sua primeira obra como filólogo, Commentationes tres de Platonis Republica, de 1794, que merecera até mesmo a atenção de Immanuel Kant, não foram pre­enchidas, por meio da publicação de outras obras do mesmo ní­vel. E aqui emerge facilmente a razão pela qual Martini (p.470) percorre a biografia intelectual de Morgenstern com certo excesso de detalhamento:

Sua [de Morgenstern] atividade em Dorpat foi frutífera de ou­tra maneira. Ela caracteriza - e apenas por isso deve ser aqui breve­mente comentada - o pano de fundo intelectual e espiritual sobre o qual se deu a criação do termo e da teoria do Bildungsroman.

Martini recupera assim, paralela aos primeiros tempos de exis­tência do termo Bildungsroman, uma trajetória pessoal, a do pró­prio Morgenstern, em direção ao aperfeiçoamento individual, nos moldes da idéia iluminista da formação do caráter, ao mesmo tem­po impregnada de nuances subjetivas e psicológicas. Subjaz ao tex­to de Martini a idéia de que a denominação Bildungsroman é mais do que uma classificação puramente ordenatória; ela deriva do conjunto de práticas específicas no tempo e no espaço, reflete um desejo de amplitude intelectual comum a uma geração cujo pro­jeto de aquisição de conhecimento e autoconhecimento impõe-se como subjetividade, como desejo pessoal.

De natureza psicológica fragmentária e multifacetada, Mor­genstern buscara, segundo seus críticos, o ideal da conciliação entre "talentos e habilidades dispersos", na direção de uma "formação harmônica" pelo cultivo de suas tendências individuais. O con­teúdo programático de seu projeto de auto-aperfeiçoamento re­mete mais uma vez ao Meister de Goethe, cujas capacidades e talentos, ainda latentes, necessitavam de um processo de integração e conciliação, formando assim o indivíduo apto ao convívio so­cial e à pratica de boas obras em prol da comunidade.

Morgenstern é representante de uma classe de intelectuais ale­mães pós-iluministas, que, durante a passagem do século XVIII ao século XIX, contribui para a constituição de um determinado sis­tema de pensamento em que a formação intelectual e moral do filho de família burguesa passa a ser tematizada e problematizada. A criação do termo Bildungsroman emerge, portanto, como um fato histórico associado a esse momento do pensamento burguês, em que a preocupação com a acumulação de riquezas passa a co­existir com um desejo de superação dos limites do conhecimento possível à classe média ascendente. A origem da "literatura de for­mação" pode ser compreendida como resultado de um mecanismo social auto-reflexivo desenvolvido por uma classe que quer ver espelhados seus próprios ideais na ficção de cunho realista que começa a firmar-se como gênero.

A trajetória intelectual de Morgenstern comprova, portanto, a idéia da existência de uma estrita correspondência entre as con­dições de produção e as condições de recepção da obra literária. Morgenstern, "rico em planos inacabados", teria ele próprio es­boçado uma história de sua formação em forma de romance, pois "alguma coisa haveria de estar errada quando a história da vida e da formação de um homem que realmente viveu não despertasse, para o olho e para o coração, o mesmo interesse de um bom ro­mance" (Morgenstern, apud Süss, 1928, p.159).

O PROJETO PEDAGÓGICO

Paralelamente a suas necessidades e desejos pessoais de auto-aperfeiçoamento expressados em suas cartas e manuscritos, bem como no projeto irrealizado de um Bildungsroman particular, Karl Morgenstern conduziu, por meio de sua atuação como professor em Dorpat, um projeto educativo que tinha como objetivo maior a formação do jovem para a coletividade. As conferências do en­tão professor de filologia clássica progrediram de uma estrita ocu­pação com o objeto primeiro de sua disciplina em direção a abor­dagens mais pedagógicas e mais universais, abertas a estudantes de todas as áreas.

O programa compunha-se de um Studium generale, cuja tra­dição remontava à retórica antiga, pressuposto por sua vez do estudo acadêmico da Eloqüência. A abordagem de Morgenstern reconhecia a importância pedagógica da eloqüência, em conso­nância com a proposta de J. G. Sulzer em sua Allgemeine Theorie der schönen Künste [Teoria geral das belas-artes], (1773):

[A eloqüência] é reconhecidamente o meio mais perfeito para tornar os homens mais sensatos, mais sociáveis, melhores e mais fe­lizes. Por meio dela, os primeiros sábios chamaram para a vida na coletividade os desagregados, fazendo-lhes amar os costumes e as leis; por ela, Platão, Xenofonte, Cícero e Rousseau tornaram-se mes­tres da humanidade. (Sulzer, 1773, p.197, apud Martini, 1961, p.48)

O trecho acima citado aponta para a inclusão do ser indivi­dual e desagregado (zerstreut) no mundo das relações sociais, motivo tradicional da temática educativa do século XVIII iluminista e pós-iluminista. É um motivo que se reconhecerá em obras pos­teriormente classificadas como Bildungsromane, como o Agathon de Wieland e o Wilhelm Meister de Goethe.

O ensino da Eloqüência incluía ainda o estudo e a filosofia do Belo, com o qual Morgenstern recomendou a seus alunos que se ocupassem. Seu projeto pedagógico inspirou-se, portanto, em uma tradição da Antigüidade clássica, buscando a representação de uma formação universal, por meio da qual todas as habilidades potenciais são cultivadas. A linha básica sobre a qual Morgenstern construiu seu projeto pedagógico previa um ideal que direciona, educa e harmoniza os talentos, as habilidades e o caráter que cada homem racional já traz em si como patrimônio inato.

O artigo de Martini leva-nos, pois, a reconhecer uma relação entre a biografia pessoal e intelectual de um indivíduo, o profes­sor de Filologia Clássica Karl Morgenstern, e a irrupção de um termo caro à historiografia, à crítica e teoria literárias, o Bildungs-roman. Mais do que isso, leva-nos a afirmar o cunho marca­damente ideológico instalado já na própria criação do termo, que deverá impregná-lo nas leituras que se sucederão.

A busca pessoal de Karl Morgenstern representa também o anseio de uma classe de indivíduos intelectuais pós-iluministas,

que tinham em comum a preocupação com o aperfeiçoamento do caráter e o desenvolvimento das qualidades latentes do ho­mem, sustentado por um projeto neo-humanista. Por meio da fi­gura histórica de Karl Morgenstern, cujas preocupações sintetizam as aspirações intelectuais e espirituais de uma época, pode-se ilu­minar uma das mais determinantes configurações históricas que atuaram na origem do Bildungsroman: o desejo do burguês culto e esclarecido pela ampliação dos limites de suas possibilidades de atuação, pelo auto-aperfeiçoamento, pela formação universal.

AS DEFINIÇÕES DE BILDUNGSROMAN

O acompanhamento das definições do Bildungsroman ao lon­go da historiografia literária permite que se delineie o estabeleci­mento de uma concepção tradicional do gênero, que se estende a partir da criação do termo por Morgenstern, no início do século XIX, até meados da década de 1980.

O texto da conferência proferida por Morgenstern em 1820 contém o que se poderia chamar de definição inaugural do ter­mo, na qual já se encontram os principais traços de constituição do paradigma literário.

[Tal forma de romance] poderá ser chamada de Bildungsroman, sobretudo devido a seu conteúdo, porque ela representa a forma­ção do protagonista em seu início e trajetória em direção a um grau determinado de perfectibilidade; em segundo lugar, também por­que ela promove a formação do leitor através dessa representação, de uma maneira mais ampla do que qualquer outro tipo de roman­ce. (Morgenstern, 1988, p.64)

Essa definição de Bildungsroman decorre da discussão teó­rica que Morgenstern desenvolve sobre as especificidades da epo­péia antiga e do romance burguês. Para Morgenstern, a epopéia mostra o "protagonista agindo em direção ao exterior, provocan­do alterações significativas no mundo; o romance por sua vez [mostra] mais os homens e o ambiente agindo sobre o protago­nista, esclarecendo a representação de sua gradativa formação in-

terior. Por isso mesmo, a epopéia apresentará antes os atos do herói com seus efeitos exteriores sobre os outros; o romance ao contrário privilegiará os fatos e os acontecimentos com seus efei­tos interiores sobre o protagonista...".

Dessa forma, a primeira definição de Bildungsroman atrela-o a uma das questões mais determinantes sobre o surgimento do romance burguês. Desde o ensaio de Friedrich von Blankenburg, Versuch über den Roman [Ensaio sobre o romance], 1724, com o qual Morgenstern dialoga em sua conferência, até Georg Lukács e Walter Benjamin, a tradição literária reconhece o momento da gênese do romance burguês como resultado de suas relações e distinções ante a epopéia antiga. Assim, o termo Bildungsroman nasce atrelado a uma questão fundamental da história do roman­ce, permanecendo ligado assim à discussão mais ampla do romance como gênero.

É importante ressaltar aqui que a conferência de Morgenstern já contém a referência a Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister como paradigma do Bildungsroman:

Como obra de tendência mais geral e mais abrangente da bela formação do homem, sobressai-se, com seu brilho suave, Os anos de aprendizado de 'Wilhelm Meister, de Goethe, obra duplamente signi­ficativa para nós alemães, pois aqui o poeta nos oferece, no protago­nista e nas cenas e paisagens, vida alemã, maneira de pensar alemã, assim como costumes de nossa época. (Morgenstern, 1988, p.66)

O trecho acima prenuncia já uma das vertentes mais produti­vas na tradição crítica do Bildungsroman, aquela que o compre­ende como expressão do "espírito nacional alemão".

Mais adiante, Morgenstern atribui a Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister a qualidade de representar, como nenhum outro romance, em tão alto grau e em tão vasta dimensão "o aperfeiçoamento universal harmônico daquilo que é autentica­mente humano e de ter aspirado ao "mais belo ideal da formação da humanidade neo-européia e da época". Morgenstern conjuga assim Os anos de aprendizado a um determinado "espírito de épo­ca", concepção que será retomada e desenvolvida posteriormente por Dilthey, Melitta Gerhard e Ernst Ludwig Stahl.

A mesma conferência de Morgenstern contém ainda mais uma definição para o Bildungsroman, na qual o autor, citando indire­tamente C. F. Körner, aponta como objetivo e tarefa de Os anos de aprendizado a representação de um processo ao longo do qual se efetue o equilíbrio entre harmonia e liberdade:

A tarefa de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister não me parece ser outra senão a representação de um homem que se aper­feiçoa pela atuação conjunta de suas disposições interiores e das relações com o mundo exterior, de maneira gradativa e em confor­midade com a natureza. A meta desse aperfeiçoamento é um equilí­brio perfeito, harmonia com liberdade. (Morgenstern, 1988, p.66)

Entretanto, é apenas em 1870 que o termo Bildungsroman será efetivamente incluído no discurso intelectual-acadêmico so­bre literatura, por obra de Wilhelm Dilthey. Em Das Leben Schleiermachers, Dilthey repete Morgenstern articulando o ter­mo ao Meister de Goethe.

Posteriormente, em seu livro Das Erlebnis und die Dichtung [Experiência vivida e Poesia], Dilthey amplia o conceito, relacio-nando-o a um momento específico da história da narrativa em língua alemã:

A partir do Wilhelm Meister e do Hesperus, todos eles repre­sentam o jovem em seus dias; como esse jovem, em uma aurora afortunada, inaugura-se na vida, procura espíritos semelhantes aos seu e depara-se com a amizade e o amor. Tais romances represen­tam também a maneira pela qual o jovem protagonista entra em conflito com as duras realidades do mundo, amadurecendo então por meio das diferentes experiências da vida, encontrando-se a si mesmo e tornando-se consciente de sua missão sobre a terra. (Dilthey, apud Jacobs, 1972, p.11)

Dilthey associa então essa linhagem literária específica à situ­ação de isolamento da burguesia alemã em relação aos aconteci­mentos políticos e à idéia de coletividade: "Assim, tais Bildungs-romane expressam o individualismo de uma cultura limitada à esfera dos interesses da vida privada".

Dilthey contribui decisivamente para a associação do Bild­ungsroman ao "conceito alemão de humanidade", a um caráter

nacional específico, dando origem à bem-sucedida fortuna crítica que compreende o Bildungsroman como um fenômeno particular, especificamente alemão, gerado sob as condições de individualis­mo excessivo e de alheamento político da nascente burguesia culta na segunda metade do século XVIII. Possivelmente a mais conheci­da defesa do Bildungsroman como fenômeno tipicamente alemão foi feita por Thomas Mann em suas Confissões de um apolítico:

Existe, no entanto, uma variedade do romance que é acima de tudo alemã, tipicamente alemã, legitimamente nacional; trata-se pre­cisamente do Bildungs- e do Entwicklungsroman de cunho autobio­gráfico ... O predomínio desse tipo de romance na Alemanha, assim como sua singular legitimidade nacional, coincidem exatamente com o conceito alemão de humanidade, ao qual, sendo ele produto de uma época em que a sociedade se atomizou, fazendo de cada cida­dão um representante particular do gênero humano, vem faltando, desde sempre, o elemento político. (Mann, 1960, v.XI, p.702)

Assim, a definição do Bildungsroman por Dilthey, ao mesmo tempo em que insere o termo no discurso crítico mais amplo, atrela-o à idéia de "produto tipicamente alemão", conjunção que se legi­timou e foi incorporada ao discurso crítico sobre o Bildungsroman.

Três décadas depois da intervenção de Dilthey, o livro de Melitta Gerhard, Der deutsche Entwicklungsroman bis zu Goethes 'Wilhelm Meister' [O romance alemão de desenvolvimento até o 'Wilhelm Meister' de Goethe], de 1926, é o terceiro marco produ­tivo que, já no século XX, deverá contribuir para a determinação do conceito Bildungsroman.

Gerhard introduz no discurso crítico o termo Entwicklungs­roman (romance de desenvolvimento) entendido como categoria geral e supra-histórica, a partir do qual se teria desenvolvido a categoria historicamente localizada e datada do Bildungsroman. Sob o termo Entwicklungsroman Gerhard entende

todas as obras narrativas que tenham por objeto a problemática do confronto entre o indivíduo e a realidade de sua época, de seu ama­durecimento gradual e sua adaptação ao mundo, sempre que se possam reconhecer os pressupostos e objetivos dessa trajetória. (1926, p.l)

Gerhard propõe uma definição do Entwicklungsroman como uma forma literária de significado bastante generalizado, cuja de­limitação se deve menos ao recorte das circunstâncias históricas do que ao "significado poético simbólico" do processo represen­tado, o que possibilitaria a compreensão da existência do gênero para além das especificidades nacionais e históricas.

Entretanto, o gênero universal Entwicklungsroman conhece­ria, segundo Gerhard, sua particularização no âmbito específico da história do espírito na Alemanha. A "crescente preocupação com a vida interior" teria levado à problemática do confron-tamento do indivíduo com o mundo circundante, questão essa que se particulariza, passando a correr paralelamente à linha da história do romance de expressão alemã.

Guiando-se por um raciocínio historicista, Gerhard aponta um movimento evolucionista da história literária que, iniciado a partir do marco instituído pelo Agathon (1773-1794) de Wieland, iria cul­minar no nascimento do Bildungsroman moderno, plenamente rea­lizado e inaugurado em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister.

Segundo Gerhard, o que diferencia Os anos de aprendizado de seus antecessores, permitindo sua compreensão como modelo constituinte do "moderno Bildungsroman" é o "impulso para a auto-formação, que atuando sobre o herói desde a juventude, move-o para adiante" (Ibidem, p.l34, grifo deste autor).

Contemporâneo da obra de Gerhard, o artigo de Ernst Ludwig Stahl Die Entstehung des deutschen Bildungsromans im XVIII. Jh. [O surgimento do Bildungsroman alemão no século XVIII], 1934, compartilha da opinião que inscreve o Bildungsroman como des­dobramento necessário da concepção cultural e histórica vigente na segunda metade do século XVIII. Stahl identifica como princi­pal característica temática do Bildungsroman "a idéia do vir-a-ser" (die Idee des Werdens), a qual se associa aos "interesses psi­cológicos e pedagógicos" da época.

Em consonância com a idéia do alinhamento entre a mani­festação estética Bildungsroman e um momento histórico especí­fico, Stahl defende ainda essa "forma especial do romance" como um reflexo imediato dos ideais de formação dos autores, e, mais do que isso, como a configuração das aspirações e ideais da pró-

pria época. Assim, "os escritores não mais criam a partir da pró­pria inspiração. Eles dependem, em sua maioria, dos pensadores de seu tempo, pertencem a tendências, representam as concep­ções da época" (Stahl, in: Selbmann, 1988, p.126).

Sob a expressão "pensadores de seu tempo" e "concepções da época" podem-se abrigar desde o pensamento racionalista de Immanuel Kant até os princípios pedagógicos de Basedow e Pestalozzi, nomes que marcam o final do século XVIII alemão pela preocupação com a educação intelectual e física do indivíduo. Em um momento, portanto, em que as aspirações da classe burguesa orientam-se em direção à aquisição de cultura pessoal e do exer­cício da educação como forma de aperfeiçoamento do indivíduo, em um momento em que o indivíduo burguês torna manifesto seu impulso de superação da estreiteza de ideais inerentes à sua origem social em direção à possibilidade de "formação univer­sal", o Bildungsroman surge como manifestação necessária dessa busca. Stahl, assim como Gerhard, dirige a compreensão do Bildungsroman como manifestação exemplar do "individual-uni-versal". A busca pela "formação universal" mostra-se ao mesmo tempo como uma necessidade particular do indivíduo, como no caso exemplar do próprio criador do termo Bildungsroman, Karl Morgenstern, e como ideal comum ao todo da humanidade.2

As definições do Bildungsroman por Morgenstern, Dilthey, Gerhard e Stahl constituem então o complexo original a partir do qual se construirão as definições posteriores do conceito. Os traços determinantes levantados a partir desses quatro autores se deixa­rão, portanto, reconhecer e reproduzir nas concepções posteriores.

O levantamento dessas concepções irá demonstrar que elas pouco divergem entre si ou em relação a seus modelos originais. É apenas a partir dos anos 80 do século XX que o conceito Bildungs-

2 Confira-se a respeito também Wilhelm Vosskamp (1986, p.341), sobre a mesma questão: "A ênfase sobre o indivíduo singular, o qual, em sua condi­ção ideal logra representar o gênero humano, contempla não apenas o cará­ter utópico do projeto 'formação', como também ilumina o arcabouço contextual no qual Os anos de aprendizado de Goethe foram imediatamente recebidos e discutidos: a 'formação do indivíduo' remete continuamente à 'formação coletiva da humanidade'".

roman será problematizado em relação mesmo às concepções que lhe deram origem, por meio de uma perspectiva crítica.

AS DEFINIÇÕES "REPRODUTIVAS" DO BILDUNGSROMAN

De acordo com a tipologia proposta por Melitta Gerhard em seu livro de 1926, as enciclopédias literárias apontam o Bildungs-roman como uma forma particularizada, específica de uma dada conjuntura histórica, recortada sobre a forma geral e "supra-histó-rica" do Entwicklungsroman (romance de desenvolvimento). En­tretanto, como se verá no próprio enunciado das definições, a tentativa de delimitação entre um e outro conceito é insuficiente para que se possa constituir uma tipologia. Além disso, as obras enumeradas ora aparecem sob a égide do Entwicklungsroman, ora classificadas como Bildungsromane, o que exclui qualquer possibi­lidade de distinção. Soma-se ainda a esses dois termos um terceiro, Erziehungsroman (romance de educação ou romance educativo), termo sob o qual os autores entendem obras de cunho pronun­ciadamente pedagógico, nos quais a intervenção de instituições ou de mentores se faça sentir pela realização efetiva de um programa pedagógico, como no Emílio de Rousseau. Porém, mesmo aí, em que a delimitação mais conclusiva de um dos termos se anuncia, as três denominações se confundem, sendo mesmo afirmado que os três termos são usados freqüentemente como sinônimos.

As definições apresentadas pelas enciclopédias literárias, aqui consideradas de 1958 a 1984, pouco contribuem para o estabeleci­mento de uma definição mais nítida do Bildungsroman. Os verbetes, que em certa medida se repetem uns aos outros, trazem definições vagas e abstratas, ao mesmo tempo em que falham em delimitar um corpus constitutivo do Bildungsroman, como se verá a seguir.

A partir da Kleines Lexikon der Weltliteratur [Pequena enci­clopédia da literatura universal], 1956, de H. Pongs, ao lado da Reallexikon der deutschen Literaturgschichte [Real enciclopédia da história da literatura alemã], passando pela Kleines Literarisches Lexikon [Pequena enciclopédia literária] (1961, org. de Wolfgang Kayser), pelo Sachwörterbuch der Literatur [Dicionário de litera-

tura], 1961, de Gero von Wilpert, pela Metzler Literatur Lexikon [Enciclopédia Metzler de literatura], de 1984, e Meyers Kleines Lexikon - Literatur [Pequena enciclopédia Meyers - Literatura], de 1986, reitera-se a cristalização do Bildungsroman, que se ori­gina nos pressupostos reconhecidos já por Wilhelm Dilthey, Karl Morgenstern e, no século XX, Melitta Gerhard.

O Bildungsroman é considerado, no repertório citado, como um fenômeno de natureza histórico/literária, cujas origens se con­fundem em meio à própria "história do espírito alemão". O ex­cesso de subjetivismo, o caráter reconhecidamente apolítico da incipiente classe média alemã, bem como o desejo burguês por uma formação universal e pelo equilíbrio entre a subjetividade e a coletividade formam o núcleo de circunstâncias que serão con­sideradas pela historiografia como a origem do Bildungsroman.

Ao mesmo tempo que consideram o Bildungsroman como um fenômeno extremamente datado em suas origens, as definições nas enciclopédias literárias apontam também uma linhagem de obras que ultrapassa as condições limitadas dessa mesma origem, indicando um processo de expansão do gênero em direção às fron­teiras nacionais e temporais. Decorrem daí as inúmeras listas de Bildungsromane, nas quais se encontram obras em língua alemã e em língua estrangeira (inglês, francês) ao longo de um período que se estende por quase duzentos anos.

Um levantamento a partir das enciclopédias consultadas per­mitirá que se vislumbre aquele que se considera hoje o repertório "canônico" do gênero, repertório esse suficientemente flexível para abarcar desde as obras consideradas como antecessoras do gênero, passando pelo momento da gênese em direção a sua expansão:

Parzifal (1200-1210), Wolfram von Eschenbach Simplicissimus (1668) Geschichte des Agathons (1776-1767), Wieland Hesperus (1795), Jean Paul Hermann und Ulrike [Hermann e Ulrike] (1780), J. C. Wezel Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1795-1796) William Lovell (1795-1796), Ludwig Tieck Franz Sternbalds Wanderungen [Peregrinações de Franz Sternbald]

(1798), Ludwig Tieck

Heinrich von Ofterdingen (1780), Novalis

Titan (1800), Jean Paul

Flegeljahre (1805), Jean Paul

Ahnung und Gegenwart [Pressentimento e presença] (1815), Joseph

Freiherr von Eichendorff

Wilhelm Meisters Wanderjahre [Os anos de peregrinação de Wilhelm

Meister] (1821-1829), Johann Wolfgang von Goethe

Maler Nolten [O pintor Nolten] (1832), Eduard Mörike

Der Grüner Heinrich [Henrique, o verde] (1854-1855)

Soll und Haben [Débito e crédito] (1855), Gustav Freytag

Nachsommer [Veranico] (1857) Adalbert Stifter

Leute aus dem Walde [Gente da floresta] (1862), Wilhelm Raabe

Hungerpastor [O pastor da fome] (1864), Wilhelm Raabe

Witiko (1865-1867), Adalbert Stifter

Prinzessin Fisch [Princesa Fisch] (1882-1883), Wilhelm Raabe

Peter Camenzind (1904), Hermann Hesse

Demian (1919), Hermann Hesse

Siddharta (1922), Hermann Hesse

Berlin Alexanderplatz (1920), Alfred Döblin

A montanha mágica (1924), Thomas Mann

Andreas oder die Vereinigten [Andreas ou os associados] (1930), H.

von Hoffmanstahl

O homem sem qualidades (1930-1942), Robert Musil

José e seus irmãos (1933-1943), Thomas Mann

O jogo das contas de vidro (1933), Hermann Hesse

Dr. Faustus (1947), Thomas Mann

O tambor (1954), Günter Grass

Felix Krull (1954), Thomas Mann

Obras críticas mais recentes, como o livro de Jürgen Jacobs

Der deutsche Bildungsroman [O romance de formação alemão],

1989, incluem ainda outras obras da literatura pós-1945:

Die Strudlhofstiege (1951), Heimito von Doderer

Em busca de Christa T. (1968), Christa Wolf

Die neuen Leiden des jungen W [Os novos sofrimentos do jovem

W] (1973), Ulrich Plenzdorf

Breve carta para um longo adeus (1972), Peter Handke

Jacobs acrescenta ainda o que chama de "romance de forma­ção socialista", encontrando exemplos nas seguintes obras:

Erziehung vor Verdun [ A educação antes de Verdun] (1940), Arnold Zweig

Abschied [Despedida] (1940), Johannes R. Becher

A par do corpus em língua alemã, as enciclopédias nomeiam também romances de outras literaturas nacionais:

David Copperfield (1849-1850), Charles Dickens Sartor Resartus (1833-1834), Thomas Carlyle Jean Christophe (1904-1912), Romain Rolland Tom Jones (1747), Henry Fielding

Nas enciclopédias mais recentes, como a Metzler de 1984, figuram como Bildungsromane sem quaisquer reservas romances do século XX alemão, mesmo que, em boa parte deles, como no Felix Krull de Mann e O tambor de Grass, o conceito tradicional de formação tenha sido subvertido ou mesmo invertido.

A enciclopédia Literatur-Brockhaus, edição de 1988, consi­dera Bildungsroman "uma forma do Entwicklungsroman limita­da predominantemente à literatura de língua alemã, que se de­senvolveu a partir do romance sentimental de viagem, da autobiografia pietista e do romance de caráter autobiográfico-psi-cológico (K. Ph. Moritz, Anton Reiser, 1785-1790) no contexto do classicismo de Weimar" (p.244).

A definição citada repete os mesmos pressupostos que orien­tam as anteriores, como a conceituação de Entwicklungsroman como forma universal e supra-histórica, ao mesmo tempo em que aponta para uma linha genealógica do Bildungsroman, preocupa­ção até então ausente das definições anteriores. Concordando que o Bildungsroman é uma forma restrita à literatura de língua ale­mã, desenvolvida no contexto do classicismo weimariano, a Brockhaus considera como paradigma atuante na história do gê­nero os romances de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1795-1796) e Wilhelm Meisters Wanderjahre, de 1821,

versão ampliada em 1829. Dessa forma, o paradigma assim con­siderado contém a representação de uma história individual da formação de um protagonista jovem que vivencia "um complexo processo de socialização por entre instâncias coletivas (teatro, boêmia, aristocracia, província pedagógica), alienado em relação ao aspecto político e que termina como 'renunciante' (Entsagender) em uma profissão burguesa".

Ao considerar também Os anos de peregrinação como consti­tuinte do paradigma do Bildungsroman clássico, a Brockhaus le­vanta uma questão teórica que vai além da simples definição do termo; se, ao contrário do que a grande maioria da crítica afir­ma, o terceiro romance da trilogia do Meister integra a constitui­ção do paradigma, o Bildungsroman não poderá mais ser enten­dido como expressão máxima do conceito humanístico-filosófico da formação universal, como o encontramos em Stahl e como toda a crítica tradicional o entende. O subtítulo do terceiro ro­mance do Meister, Die Entsagenden - [Aqueles que renunciam], contém já a indicação da impossibilidade do projeto idealista da formação individual-universal como o desejava Meister em Os anos de aprendizado; em Os anos de peregrinação, o papel do pro­tagonista é diluído e relativizado, como indício da impossibili­dade da formação pessoal, individual, em proveito de uma socia­lização e especialização profissional.

Diferentemente também de seus predecessores, a enciclopé­dia Brockhaus situa o romântico Heinrich von Ofterdingen de Novalis como contraposição ao conceito socializante do paradigma constituído pelos romances do Meister, e não como um herdeiro direto de sua tradição. Sabidamente, o romance de Novalis foi concebido como um "anti-Meister", como um antídoto românti­co ao "prosaísmo e mercantilismo" identificados por Novalis em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. O verbete da Brockhaus recupera assim um sentido crítico, não considerado pelas enciclopédias literárias anteriores.

A Brockhaus considera ainda o Kater Murr de E. T. A. Hoffmann [O gato Murr], de 1819-1821 - citado pela primeira vez nas enciclopédias -, como paródia, o Titan de Jean Paul e Der grüne Heinrich de Gottfried Keller como crítica ao programa de

formação estética ensejado nas obras paradigmáticas do gênero; reconhece que, já no século XX, autores como Hermann Hesse, Rilke, Musil e Thomas Mann, entre outros, retomam a tradição do Bildungsroman, que se deixa encontrar então sob um "forma fraturada, abalada" (gebrochene Form). Entre os autores do sécu­lo XX que assim se teriam ocupado da tradição do Bildungsroman, a Brockhaus cita ainda, Franz Kafka, Max Frisch, Thomas Bern-hard, Peter Handke e Botho Strauss.

É bastante perceptível, no verbete da Brockhaus para o Bildungsroman, a inserção de uma perspectiva crítica, até então ausente das enciclopédias literárias, que se limitavam a reprodu­zir quase que mecanicamente os conteúdos anteriores, sem a preo­cupação de confrontar e averiguar os dados recebidos.

O verbete da Brockhaus reflete assim um momento em que a história da literatura alemã passou a refletir sobre a constituição de um dos seus mais significativos cânones, o Bildungsroman. Editada em 1988, a Literatur-Brockhaus traz, na indicação biblio­gráfica, obras consideradas revisionistas como o livro de Jacobs Wilhelm Meister und seine Brüder [Wilhelm Meister e seus irmãos] de 1972, e o de Dieter Sorge, Gebrochener Teleologie. Studien zum Bildungsroman von Goethe bis Thomas Mann [Teleologia in­terrompida; estudos sobre o Bildungsroman de Goethe a Thomas Mann], de 1983.

Quanto ao Entwicklungsroman, a Brockhaus repete os con­ceitos e lista de obras já apresentados por outras enciclopédias; acrescenta, porém, que a socialização do protagonista, em tais romances, pode "ser narrada como a história do aperfeiçoamen­to ou deformação, trajetória utópica ou desilusão, adaptação ou negação e renúncia, ascensão ou descensão social, na qual se entrecruzam freqüentemente vetores positivos, negativos e aque­les que conduzem à estagnação" (p.604).

A Literatur Lexikon [Enciclopédia de literatura], organizada por Walther Killy e publicada em 1992, institui um marco na definição do Bildungsroman nas enciclopédias literárias. O ver­bete Bildungs- und Entwicklungsroman, assinado por Georg Stanitzek, procura, em vez de estabelecer uma definição, situar o conceito em meio ao contexto da história social, e da relação

entre as diferentes obras literárias. Stanitzek condiciona a com­preensão do termo Bildungsroman ao entendimento das circuns­tâncias históricas que o geraram. Aponta como acontecimento fundamental para o estabelecimento do termo Bildungsroman por Karl Morgenstern o momento da história do romance em que este deixa de ser considerado uma literatura menor, ou mesmo uma literatura marginal, voltando-se para o centro do conjunto dos gêneros literários. Considera que a conjunção dos termos Bildung e Roman seria tomada por paradoxal, na metade do sé­culo XVIII, momento em que ao termo romance se associava a idéia de uma 'história de amor". Para Stanitzek, a conjugação só se tornou possível a partir da existência de uma nova camada de público leitor, que assegurou o sucesso do gênero.

Stanitzek considera Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister como o "protótipo do gênero"; ao contrário, porém, das defini­ções anteriores, esta não situa apenas o paradigma sem discuti-lo criticamente; Stanitzek reconhece que o aparecimento de Os anos de aprendizado trouxe consigo um debate que perdura ainda hoje, debate esse que se traduz na pergunta: como se deve ler esse texto temporalmente determinado? Acolhendo as críticas de Hegel e de Friedrich Schlegel em seu verbete, Stanitzek chega mesmo a afirmar que "mesmo em relação ao Wilhelm Meister, pode-se ques­tionar se o protagonista percorre efetivamente um processo de formação em uma acepção neo-humanística do termo" (p.120).

No fim de sua exposição, na qual insere cada obra no con­texto crítico da conceituação do Bildungsroman, Stanitzek per­gunta-se se o Bildungsroman seria uma forma esgotada no século XX, denotando assim a sintonia do verbete com a crescente problematização crítica do conceito. Considera uma "questão que permanece aberta" se obras como Berlin Alexanderplatz, de Döblin, O homem sem qualidades, de Musil, ou Amerika, de Kafka, podem ser interpretadas à luz do modelo do Bildungsroman.

No último parágrafo do verbete, Stanitzek expõe o que acre­dita ser o motivo do crescente recurso ao modelo do Bildungs­roman para a interpretação de obras individuais. A classificação de obras sob o gênero Bildungsroman, freqüente na "crítica lite­rária folhetinesca", seria um indício da superexposição do termo,

fato decorrente da notável facilidade de manipulação do concei­to, capaz de incluir um grande número de obras sob um gênero dotado de grande reconhecimento e aceitação pelo público e pela crítica. O adjetivo "folhetinesco", empregado por Stanitzek, refe­re-se, em alemão, tanto aos suplementos culturais dos grandes jor­nais (Feuilletons) quanto a uma crítica superficial e pouco cientí­fica. A alusão tem a intenção de censurar o emprego leviano do termo sem que se problematize o conceito.

O verbete Bildungs- e Entwicklungsroman na Literatur Lexi-kon de 1992 é, portanto, o primeiro a refletir um reposiciona­mento crítico ante o Bildungsroman. É significativo que o verbete assinado por Georg Stanitzek furte-se a propor uma definição ní­tida do que entende por Bildungsroman, ao mesmo tempo em que praticamente despreza a distinção entre Bildungs- e Entwicklungs­roman. Para Stanitzek, eventuais definições tipológicas não são suficientes para abarcar um conceito cuja amplitude é antes de tudo histórica.

A apreciação do conjunto constituído pelas definições já ci­tadas pode conduzir a algumas conclusões importantes. A pri­meira delas é que a grande maioria das definições do Bildungs­roman é unânime quanto ao fato de que o conceito foi gerado no período do classicismo weimariano, atribuindo-se assim ao con­ceito uma especificidade já em sua origem. A definição de Wilhelm Dilthey para o Bildungsroman, que o atrela a um pressuposto histórico particular, é efetivamente a base para todas as defini­ções já comentadas.

Ao mesmo tempo, porém, em que todas as definições anali­sadas são unânimes em considerar o Bildungsroman uma mani­festação especificamente alemã, abre-se espaço para um possível alargamento do conceito, permitindo que se incluam obras per­tencentes a outras literaturas nacionais. Essa ampliação estende-se também pelo eixo temporal; mesmo aqueles autores que con­sideram impossível a sobrevivência, no século XX, de formas literárias que expressem um conteúdo de desenvolvimento pesso­al linear, indicam exceções e formas de continuidade para além do período histórico de origem. As definições tradicionais do Bildungsroman oscilam portanto entre a atribuição de uma

especificidade que o caracterizasse de maneira bastante incisiva como forma literária peculiar de uma época e nacionalidade úni­cas e a tendência de ampliação desses limites.

Essa problemática, que vem se mostrando como uma questão permanente, reflete-se na tentativa de se estabelecer definições para um conceito mais generalizado, de alcance supra-histórico, sob o termo de Entwicklugsroman, em oposição a um "subtipo" que per­mitisse então a expressão das especificidades, sob o termo de Bil-dungsroman. Essa tentativa, que tem origem no trabalho de Melitta Gerhard, mostra-se, porém, improdutiva, na medida em que as ten­tativas de definição de um e de outro termo não são concludentes, não oferecem instrumentos ou um corpus que permita encaixar as obras isoladas sob um ou outro tipo; ao contrário, a cada verbete consultado, variam consideravelmente as obras classificadas como Bildungs- ou Entwicklungsromane. Além disso, os autores não hesi­tam em afirmar que os termos são freqüentemente usados como sinônimos, o que invalida qualquer distinção tipológica a partir dessa nomenclatura.

Obras consideradas por um autor como exemplos acabados de Entwicklungsromane surgem, em outros autores, como exem­plares Bildungsromane. Há casos ainda de obras citadas apenas por um autor como integrantes do rol de Bildunsgromane, como é o caso do Tom Jones de Fielding, citado, até onde se saiba, uni­camente por Gero von Wilpert em seu Sachwörterbuch der Literatur, ou ainda da obra de Carossa e Vinzenz Erath Richard, Church e Faulkner, citados apenas por Hermann Pongs como au­tores de Entwicklungsromane do século XX.

Da mesma forma, autores como Thomas Mann e Hermann Hesse têm obras suas citadas como paródia do Entwicklungsroman (referência de Pongs a A montanha mágica) e como alusão simbólica ao gênero (O jogo das contas de vidro), únicas formas capazes de expressar a manifestação do Bildungsroman em um século como o nosso, o da fragmentação do processo linear de formação e desen­volvimento. Contraditoriamente, no Sachwörterbuch de Wilpert, o mesmo O jogo das contas de vidro, acompanhado agora do Peter Camenzind, é citado como herdeiro legítimo e direto do Entwick­lungsroman, representado em seu ponto mais alto pelo Meister de

Goethe. O mesmo Wilpert alinha também o Dr. Faustus de Mann sob essa tradição, sem referir-se porém a A montanha mágica.

A tentativa de se isolar um corpus definidor do Bildungsroman a partir de uma lista de obras pertencentes ao gênero mostra-se particularmente insuficiente se considerarmos como critério a menção das mesmas obras em cada lista.

Uma comparação entre as 6 enciclopédias literárias considera­das até 1986, (excluindo-se portanto, a Literatur-Brockhaus de 1988 e a Literatur Lexikon de 1992, que não estabelecem uma lista de obras pertencentes ao gênero, mas sim problematizam o próprio conceito Bildungsroman) preocupadas em apresentar uma lista de obras pertencentes ao gênero tanto do Entwicklungsroman como do Bildungsroman, indicará que há apenas 4 obras citadas em co­mum por todas as seis enciclopédias. Trata-se de Os anos de apren­dizado (1795-1796), de Goethe, Der Grüner Heinrich [Henrique, o Verde], de Gottfried Keller, Der Nachsommer [Veranico], de Stifter, e Glasperlenspiel [O jogo das contas de vidro], de Hermann Hesse. É preciso ainda levar em conta o fato de que boa parte dos verbetes consultados constitui mera reprodução de verbetes anteriores, o que contribui para a escassa confiabilidade do critério "obras pertencen­tes ao gênero". Ainda, os quatro romances citados não possuem, entre si, características comuns que os diferenciem especialmente de outras obras também consideradas Bildungsromane, podendo ser incluídas, ao lado destas, sob as definições generalizantes do conceito. Trata-se efetivamente de obras bastante significativas, as quais, entretanto, não poderiam sustentar por si próprias a idéia de existência de um gênero.

O critério reduz, portanto, a possibilidade de se estabelecer um elenco de Bildungsromane reconhecidos universalmente pela crítica.

A terceira conclusão que se adianta é que as definições são, em sua totalidade, de carater conteudístico-temático. Como já foi afirmado, apenas a opção por uma definição conteudística é capaz de sustentar a necessária generalidade presente à sustentação do gênero.

O trabalho de Jürgen Jacobs ilustrará claramente a tensão a que se submete uma definição do Bildungsroman na medida em que propõe uma "concepção flexível" do gênero, como se verá a seguir.

O GÊNERO "FLEXÍVEL"

Jürgen Jacobs, em seu livro de 1989 sobre o Bildungsroman, propõe uma sistematização das características capazes de recor­tar os limites do Bildungsroman em relação a outras formas de romance. Em oposição a uma compreensão estreita do gênero, delimitada pela concepção de Bildung peculiar ao Goethezeit (épo­ca goethiana), propõe uma definição para o Bildungsroman a qual, por sua extrema generalidade e flexibilidade, é capaz de "dar con­ta" da grande diversidade que se abriga sob o conceito.

Devem ser consideradas como pertencentes ao gênero obras em cujo centro esteja a história de vida de um protagonista jo­vem, história essa que conduz, por meio de uma sucessão de en­ganos e decepções, a um equilíbrio com o mundo. Esse equilíbrio é freqüentemente descrito de forma reservada e irônica; entre­tanto, ele é, como meta ou ao menos como postulado, parte ne­cessariamente integrante de uma história da "formação" (Jacobs, 1989, p.37).

A essa definição acrescenta-se o que Jacobs considera "carac­terísticas do Bildungsroman": • o protagonista deve ter uma consciência mais ou menos explí­

cita de que ele próprio percorre não uma seqüência mais ou menos aleatória de aventuras, mas sim um processo de autodes-cobrimento e de orientação no mundo;

• a imagem que o protagonista tem do objetivo de sua trajetória de vida é, em regra, determinada por enganos e avaliações equi­vocadas, devendo ser corrigidas apenas no transcorrer de seu desenvolvimento;

• além disso, o protagonista tem como experiências típicas a se­paração em relação à casa paterna, a atuação de mentores e de instituições educacionais, o encontro com a esfera da arte, ex­periências intelectuais eróticas [sic], experiência em um campo profissional e eventualmente também contato com a vida pú­blica, política.

Após a enumeração das características que considera consti­tuintes do Bildungsroman como gênero, Jacobs afirma que "na

configuração e valorização desses motivos, os diversos romances diferenciam-se de forma extraordinária. Entretanto, pela orienta­ção para um fim harmonioso, eles recebem necessariamente uma estrutura teleológica" (Ibidem, 1989, p.37).

Fica clara, portanto, a opção pelas características predomi­nantemente conteudísticas, em detrimento das formais. Estas, em vez de traços diferenciadores, são apenas o suporte decorrente do elenco temático/conteudístico, não conduzindo, portanto, a um corpus definidor.

O Bildungsroman mostra-se então como uma forma literária definível apenas a partir da grande Bildungs-Frage, da grande ques­tão da formação, considerada não apenas em relação ao momento específico de sua gênese, mas por meio das diferentes épocas histó­ricas. Por um mecanismo de atualização, a formação no sentido amplo, como a considera Jacobs, ultrapassa os limites históricos da gênese do conceito Bildungsroman, universalizando-se na me­dida em que se alarga o programa narrativo que define o gênero. É preciso ressaltar que a abrangente definição de Bildungsroman pro­posta anteriormente constrói-se a partir de características bastante variáveis, o que se pode comprovar pelo próprio enunciado da defi­nição, na qual o uso freqüente de advérbios tem a função de per­mitir e indicar a possibilidade de variação ou mesmo a ausência de determinadas características.

Uma definição ampla do Bildungsroman há que incluir, por­tanto, as oscilações perceptíveis na evolução histórica do conceito, neutralizando-as na medida em que as reconhece como caracte­rísticas constituintes do gênero. Isso significa que a existência do Bildunsgroman como gênero é possível apenas se admitirmos uma contínua alteração de seus pressupostos, a qual se desenha a par­tir de um programa narrativo básico. Esse programa, conforme a própria definição que Jacobs indica, constitui-se necessariamente a partir do romance de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister.

Um olhar sobre a genealogia literária do Bildungsroman irá permitir, por sua vez, que se contemplem os diversos discursos atuantes tanto na formação do conceito como na composição de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister.

A GENEALOGIA

A idéia da existência de uma categoria como o "gênero literá­rio" permite a inserção do particular no universal, da obra singular no universo coletivo de suas semelhantes. Ao longo de sua história, o conceito de gênero, por meio de avanços e recuos, permitiu que se refletissem as mais diversas concepções da matéria literária.

Desde a concepção evolucionista e teleológica de Brunetière, que anuncia o percurso "natural" dos gêneros, de acordo com a concepção cientificista do século XIX ("Um gênero nasce, cresce, alcança sua perfeição, declina e enfim morre"), até o ataque ra­dical de Croce à idéia de gênero, de imitação e à concepção historiográfica, ressaltando o caráter intuitivo e individual da obra como expressão única, o conceito de gênero vem permitindo a veiculação de posicionamentos fundamentais de orientação sobre a organização, tipologia e até mesmo interpretação da literatura.

Predominantemente normativa, a teoria dos gêneros nunca foi abandonada, embora seus pressupostos tenham variado ao lon­go do tempo.

Uma abordagem contemporânea do fenômeno literário há que necessariamente tomar posição ante a questão dos gêneros. Sem romper definitivamente com a tradição morfológica, que classi­fica a obra singular em relação ao parâmetro formal constituído pelo cânone, a abordagem genealógica permite que se investigue, ao lado das semelhanças formais, a própria história do gênero. A obra literária singular passa então a ser considerada a partir de suas relações com o universo literário preexistente, bem como com aquele que lhe é contemporâneo. Historiar a obra significa captá-la na dinâmica dos processos de sintetização, empréstimo, trans­formação e exclusão que ocorrem entre as várias obras singulares que constituem um determinado universo literário. A visão global desses processos, ao focalizar sua dinâmica, deverá resultar naquilo que se poderia chamar de história do gênero, ou seja, na história do estabelecimento e legitimação de uma determinada forma de expressão literária.

No âmbito da historiografia literária, a trajetória de consti­tuição do Bildungsroman se firma e se confunde com a própria

história do romance na Europa. Apenas uma abordagem ge-nealógica, que leve em conta a relação da obra paradigmática do Bildungsroman com outras obras e gêneros afins, poderá dar con­ta de iluminar nossa própria compreensão contemporânea do fe­nômeno assim constituído.

O modelo teórico que fundamenta tal abordagem sustenta-se na idéia da existência de obras paradigmáticas capazes de cons­tituir uma tradição, como é o caso das epopéias homéricas, dos romances epistolares de Richardson e de obras como a Utopia de Morus. Em cada um desses casos, uma única obra foi capaz de am­pliar seus efeitos e sua recepção para além do círculo mais ime­diato de leitores. Em casos como a representação da sociedade ideal de Morus, a obra original passa a definir, por meio de um processo metonímico, narrativas compostas à luz do modelo por ela fornecido. Um dos casos mais representativos desse processo foi a extraordinária recepção do romance Robinson Crusoe (1719), de Daniel Defoe, junto ao público leitor de língua alemã. Em 1731, contavam-se 15 romances na Alemanha que tiveram por modelo o Robinson, e o título do romance original passou a constituir um gênero, a Robinsonade (Robinsoníada), narrativas nas quais se representavam histórias de naufrágios e ilhas.

O processo de constituição de um gênero realiza-se, portanto, como reação ante a tradição literária que o antecede, bem como perante demandas e constelações históricas contemporâneas desse processo. A experiência de leitura do público tem papel fundamen­tal, uma vez que é por meio dela que se veicula a tradição literária preexistente, e que se realizam as tradições por estabelecer.

As confissões e o Emílio de Rousseau

Traçar uma linhagem literária do conceito Bildungsroman significa menos localizar influências diretas do que isolar as disposi­ções culturais, literárias e intelectuais favoráveis a seu surgimento.

As autobiografias intelectuais como As confissões (1791) de Jean-Jacques Rousseau, são pressuposto fundamental para o estabelecimento de uma tradição romanesca da formação e do desenvolvimento.

Em suas Confissões, Rousseau utilizou procedimentos de investigação interior e de auto-exposição ao público que congre­gam, pela primeira vez, o desejo do indivíduo burguês de se ver refletido na obra de arte, ao lado da necessidade de expressão indi­vidual. Utilizando a narrativa em primeira pessoa, trechos de cor­respondência pessoal e o caráter memorialístico e confessional da autobiografia, As confissões prenunciam, no plano estético, o fenô­meno essencialmente burguês do Bildungsroman. Faz parte desse elenco a preocupação do indivíduo com sua própria história, com os acontecimentos e personalidades que, intervindo em sua trajetó­ria, configuraram e determinaram gostos, tendências e comporta­mentos. Na obra autobiográfica de Rousseau, estão presentes ainda questões relativas à profissão e à sobrevivência de Jean-Jacques em Paris, aos arranjos domésticos a que um homem de sua condição social tinha que se submeter, bem como as intrigas familiares com os parentes de Thérèse, a mulher com quem Rousseau vive e tem seus cinco filhos. Essas questões miúdas do cotidiano em uma me­trópole como Paris conferem à obra um caráter único no que se refere à constituição do mundo burguês, ao mesmo tempo refletin­do e ajudando a estabelecer o moderno comportamento do indiví­duo na sociedade. As relações de Rousseau com a aristocracia e com os intelectuais de seu tempo, como Diderot e Voltaire, contribuem para que As confissões possam ser compreendidas também como um testemunho histórico da entrada em cena do indivíduo moder­no, aquele que realizou a passagem do mérito do nascimento para o mérito individual adquirido.

Entretanto, na autobiografia de Rousseau, a questão da for­mação da personalidade entra como que de viés, sem que se pos­sa falar da presença direta da preocupação com a educação e com a formação da personalidade.3 Essas questões, essenciais para o pensamento da época e para o próprio Rousseau, encontram-se certamente presentes em sua autobiografia. Porém, As confissões foram escritas sob outra perspectiva, mais determinante no texto, por meio da qual Rousseau, em seu exílio em Londres, visava a

3 Já se tornou antológica a passagem d'As confissões em que Rousseau narra o destino de seus cinco filhos, todos entregues à educação pública desde o nas­cimento. Cf. p.236 da edição brasileira (Ediouro).

um ajuste de contas, um balanço final de sua vida narrado por ele mesmo com vistas a influenciar a opinião pública contemporâ­nea. O grande objeto d'As confissões, ao longo de todas as suas páginas, é o cidadão genebrino e o indivíduo Jean-Jacques Rous­seau, sua história pessoal, suas motivações e seus julgamentos da sociedade contemporânea.

Segundo Jürgen Jacobs, As confissões de Rousseau caracterizam a disposição intelectual que irá estabelecer os pressupostos do Bil-dungsroman. Ou seja, As confissões de Rousseau prenunciam o Bildungsroman no sentido em que se constituem como resposta, como reação à necessidade burguesa de expressão individual.

Se As confissões de Rousseau celebram a auto-reflexão, abrindo espaço para a memória individual e a autocrítica, o Emílio (1762) traz em si por sua vez a noção de que a educação deverá respeitar o caráter individual inerente a cada homem.

Emílio ou Da educação é a obra de Rousseau que constitui efetivamente um marco na história da educação moderna. Consi­derando os diferentes estágios da personalidade infantil e juvenil, Rousseau diferencia o indivíduo não-adulto do adulto, preconi­zando ao primeiro um programa educativo capaz de formá-lo de acordo com suas habilidades e tendências naturais, pela inter­vencão de um preceptor.

A recepção do livro, censurado e queimado na França, po­rém de grande alcance no resto da Europa, a ponto de a então rainha da Suécia mandar vir um negrinho da África para educá-lo segundo os preceitos rousseaunianos, denota a existência de um diálogo, em alguns casos, direto entre as obras literárias dos úl­timos trinta anos do século XVIII e o "romance educativo" de Rousseau.

A questão central que subjaz a todo texto compreendido pela historiografia literária como Bildungsroman é a questão do aper­feiçoamento individual. O conceito de perfectibilité (perfectibi-lidade) entra em circulação no discurso intelectual da segunda metade do século XVIII por intermédio de Rousseau. Em seu se­gundo Discours sur l'origine et les fondements de l'inégalité parmi les hommes, Rousseau reconhece uma severa dicotomia entre o estado natural do homem e o estado da civilização, alcancado pelo desenvolvimento da Razão. A "capacidade de se aperfeiçoar"

(faculté de se perfectioner) está reservada apenas ao estado da cul­tura, ao homem civilizado. Ao mesmo tempo, é também no esta­do da civilização que ocorre a corrupção. Rousseau acredita que o gênero humano tanto mais se distancia de seu estado original à medida que progride na civilização. Assim, o desenvolvimento do homem a partir de suas qualidades e tendências naturais mostra-se irreconciliável com o aperfeiçoamento intelectual voltado para a civilização e para a sociedade. Em Emílio, essa dicotomia fica ainda mais clara, quando Rousseau (1994, p.11) distingue clara­mente entre a educação pública e a privada, respectivamente des­tinadas ao "cidadão" e ao "homem":

O homem natural é tudo para si mesmo; é a unidade numérica, o inteiro absoluto, que só se relaciona consigo mesmo ou com seu semelhante. O homem civil é apenas uma unidade fracionária que se liga ao denominador, e cujo valor está em sua relação com o todo, que é o corpo social. A boas instituições sociais são as que melhor sabem desnaturar o homem, retirar-lhe sua existência abso­luta para dar-lhe uma relativa, e transferir o eu para a unidade comum, de sorte que cada particular não se julgue mais como tal, e sim como uma parte da unidade, e só seja perceptível no todo.

E, adiante,

Para ser alguma coisa, para ser si mesmo e sempre uno, é preciso agir como se fala; é preciso estar sempre decidido a respei­to do partido a se tomar, tomá-lo abertamente e continuar sempre com ele. Estou esperando que me mostrem esse prodígio para saber se ele é homem ou cidadão, ou como faz para ser ao mesmo tempo um e outro.

Dessas duas coisas necessariamenre opostas decorrem duas for­mas contrárias de educação: uma pública e comum, outra particu­lar e doméstica. (Ibidem, p.l2)

Em Rousseau, o conceito de "perfectibilidade" encontra-se portanto associado à formação do "cidadão", processo esse irre-conciliavelmente dissociado da formação do "homem" de acordo com seu estado natural.

Dessa forma, a dicotomia proposta por Rousseau diverge cla­ramente da formação representada no Bildungsroman. A questão

central que perpassa o espaço literário da Alemanha dos últimos trinta anos do século XVIII é a da formação integral do indivíduo, harmonizando e equilibrando suas tendências e talentos naturais ao lado de sua formação para a sociedade. É possível reconhecer, portanto, uma assimilação do conceito de perfectibilidade de Rousseau que o reinterpreta em sua essência. Goethe assimilou de Rousseau o conceito de uma natureza humana que pode ser educada para a civilização e a cultura a partir de suas disposições inatas. Meister, o protagonista de Os anos de aprendizado, deve sim descobrir suas reais aptidões naturais, para utilizá-las então em proveito da sociedade e das instituições.

Ao lado disso, é possível identificar pontualmente a presen­ça de Goethe como leitor de Rousseau4 e como interlocutor de sua obra, ao longo de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. A Sociedade da Torre, associação de homens sábios dispostos a educar e a formar o jovem Wilhelm a partir do que consideram suas tendências e habilidades naturais, cumpre o papel reservado ao preceptor de Emílio. Também a ausência, ou mesmo a ne­gação, de uma educação livresca, aproxima Meister de Emílio. No último livro do romance de Goethe há um longo episódio no qual a personagem Friedrich, o "pícaro louro", de caráter fan­farrão e leviano, relata à Sociedade como adquiriu sua erudição. Trata-se de uma passagem efetivamente cômica, na qual o caráter acadêmico e livresco da educação de então é ironizado e relativizado. Já em Emílio, o único livro ao qual o educando tem acesso é o Robinson Crusoe de Daniel Defoe, "livro que cons­tituirá por bastante tempo sua biblioteca inteira", "ao mesmo tempo a diversão e a instrução de Emílio...". Também a ausência da família como educadora repete-se em ambas as obras. Em

4 Que Rousseau não passou despercebido pelo autor do Meister está mais do que comprovado. Não apenas as semelhanças evidentes entre Otília, de As afinidades eletivas, e Julie, a heroína de A nova Heloísa, mas também a seguinte passagem da autobiografia de Goethe comprovam-no: "Fora esse príncipe Frederico que, buscando conselhos para a educação de seus filhos, escrevera a Rousseau, cuja resposta célebre começa por estas palavras notá­veis: 'se eu tivesse a infelicidade de ter nascido príncipe...'" (Memórias: poesia e verdade. Trad. L. Vallandro, 1986, p.213).

Emílio, a condição de orfandade é mesmo pressuposto para a tarefa do preceptor: "Emílio é órfão. Não importa que tenha pai e mãe ... Deve honrar seus pais, mas só a mim deve obedecer" (Ibidem, p.31).

Wilhelm Meister, por sua vez, inicia seu processo de desen­volvimento já longe de sua terra natal, em viagem, num estado, portanto, de orfandade social, que se transforma ao longo do per­curso em orfandade familiar. Há também identificação entre as figuras virtuosas de Sophie, a jovem por quem Emílio se apaixo­na e com quem deverá se casar, e Nathalie, a prometida de Meister. Ambas foram educadas segundo um padrão que alia virtude mo­ral à atividade e sabedoria doméstica.

Prosseguindo ainda na identificação pontual, agora das di­vergências, reconhecemos que Emílio, ao longo de toda a obra, é poupado pelo seu próprio preceptor de quaisquer experiências efetivamente insatisfatórias, ao passo que o aprendizado de Meister deve necessariamente passar pelo erro e pela decepção, traço esse compartilhado pelos outros protagonistas de obras consideradas como Bildungsromane.

É assim que, por meio de um jogo de semelhanças e diver­gências, Emílio e As confissões de Rousseau podem ser consi­derados antecessores genealógicos bastante próximos do Bild-ungsroman, na medida em que antecipam a preocupação do indivíduo consigo mesmo, com sua personalidade e formação, constituindo assim um pressuposto fundamental para o desenvol­vimento da literatura realista burguesa da formação e do desen­volvimento.

O romance picaresco

O romance picaresco, gênero que tem origem no século XVI espanhol, é outra grande linhagem da tradição narrativa com a qual o Bildungsroman dialoga.

Efetivamente, são consideráveis as identificações entre a his­tória dos conceitos "romance picaresco" e Bildungsroman. Am­bos têm origem em condições históricas muito bem delimitadas. Enquanto o surgimento da narrativa picaresca na Espanha "pode

ser encarada como uma forma de conscientização da desintegra­ção do mundo feudal na Espanha" (Gonzáles, 1994, p.229), o surgimento do paradigma do Bildungsroman, na Alemanha, é con­temporâneo do momento de transição entre a economia feudal latifundiária e o prenuncio da fase econômica e política em que os ideais e privilégios da aristocracia serão dissolvidos em meio ao tecnicismo e ao cientificismo burguês.

Tendo suas origens inscritas em condições históricas assim tão demarcadas, ambas as formas narrativas percorrem uma trajetória que vai do nascimento do conceito à sua expansão, de maneira que a linhagem sucessória, embora atrelada à tradição original, não compartilhe com essa os mesmos pressupostos históricos e sociais que favoreceram seu desenvolvimento.

A definição de Maria Casas de la Faunce para o romance pi­caresco pretende sintetizar tudo o que já se escreveu sobre o con­ceito, valendo-se prioritariamente do critério conteudístico:

Defino novela picaresca como una narración fictícia, de cierta extensión y en prosa, expuesta desde el punto de vista de un ente acomodatício cuya filosofia existencial subjetiva y unilateral enfatiza el instinto primario del indivíduo que no ha desarrollado las funcio­nes espirituales ni Ia sensibilidad anticipada en el hombre. En prin­cipio, se ocupa de narrar una vida que podríamos denominar vulgar en oposición al personage heroico que destaca por sus méritos espirituales ...El relato, generalmente, sigue un proceso lineal en el que se indican los antecedentes, estado y desenlace o suspenso de la experiencia del pícaro. El ingenio del personage es el ingrediente que sirve para manifestar su astucia y presa a la obra el tono festivo de la burla que divierte mientras penetra en el leitor produciendo, reflexi­vamente, la catarsis moralizante o didáctica inherente al género. (Faunce, apud Gonzáles, 1994b, p.245)

Compare-se a definição de romance picaresco de Casas de la Faunce com a definição de Bildungsroman por Jürgen Jacobs (p.37), em seu livro de 1989:

Devem ser consideradas como pertencentes ao gênero obras em cujo centro esteja a história de vida de um protagonista jovem, história essa que conduz, por meio de uma sucessão de enganos e

decepções, a um equilíbrio com o mundo. Esse equilíbrio é freqüentemente descrito de forma reservada e irônica, entretanto é, como meta ou ao menos como postulado, parte necessariamente integrante de uma história da 'formação'.

A essa definição já por si bastante ampla, Jacobs acrescenta ainda o que considera "características do Bildungsroman", entre as quais se encontram, por exemplo, a "consciência mais ou me­nos explícita" que o protagonista deve ter de sua trajetória de orientação e de autodescobrimento, a "avaliação equivocada" que o protagonista tem, ao início, de sua trajetória de vida, o abando­no da casa paterna, a atuação de mentores etc.

A comparação entre as duas definições permite-nos concluir que, por tratarem de manifestações históricas e de grande produ­tividade na tradição da literatura européia, as definições do Bildungsroman e do romance picaresco refletem a amplitude e flexibilidade que cada uma das duas formas deverá forçosamente exercitar, a fim de abranger o amplo espectro de obras que se abrigam sob cada um dos dois termos.

Quanto às identificações existentes entre as duas formas narra­tivas entre si, é preciso ressaltar que, no início, o protagonista de ambas é um indivíduo que ainda não desenvolveu suas qualidades espirituais e intelectuais. A trajetória de cada protagonista difere, entretanto.

Enquanto o protagonista dos Bildungsromane alcança, segun­do as definições tradicionais do gênero, um equilíbrio no fim de sua trajetória, um misto de "harmonia com liberdade", o prota­gonista pícaro pode ascender sim a um estado mais elevado social ou economicamente, porém nunca pelo cultivo de suas qualidades pessoais, mas pela trapaça.

Pode-se dizer que a distinção entre o Bildungsroman em sua concepção tradicional, e o romance picaresco, sob a mesma pers­pectiva, decorre fundamentalmente do reconhecimento do "cará­ter" do herói. O Bildungsroman representaria a trajetória de um indivíduo jovem, bem-intencionado, no fim da qual se poderia re­conhecer um efetivo aperfeiçoamento do protagonista, no sentido de que ele adquire o desejável equilíbrio entre sua conformação

interior e o mundo exterior das relações sociais. No caso do pícaro, esse bom caráter, essa boa intenção estariam ausentes. O herói pi­caresco é um anti-herói, aquele que ascende socialmente pela tra­paça. Além disso, conforme afirma Gonzáles, a trajetória do pícaro não conhece paradeiro, trata-se de uma "aventura permanente".

Ocorre, porém, que tal distinção nem sempre se dá de forma clara. No romance de Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, há passagens que efetivamente ficariam muito bem situa­das no currículo de um pícaro. A primeira delas enfoca um episó­dio raramente comentado. Trata-se do diário de viagem que Wilhelm Meister forja, com a ajuda de Serio, para tranqüilizar o pai. Wilhelm descreve ali seu contato com os fornecedores e de­vedores do velho Meister, sem se esquecer de acrescentar passa­gens que comprovem o seu recém-adquirido conhecimento das coisas do comércio, da indústria, e mesmo da geografia local. Constrói assim um verdadeiro diário de aprendizagem, o qual será até mesmo elogiado por Werner, seu cunhado, que representa o arquétipo do negociante burguês. Meister utiliza um expediente de trapaça para conseguir um fim determinado, no caso, mais di­nheiro para prosseguir viagem, e também a tranqüilidade de espí­rito de seu pai.

E preciso relembrar ainda que, segundo as Conversações com Eckermann, ninguém menos do que Schiller teria comparado Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister ao Gil Blas de Lesage, romance reconhecido como integrante da picaresca européia, con­firmando assim uma afinidade aqui sugerida.

Já no século XX, o romance de Thomas Mann, Confissões do impostor Felix Krull, retoma ao mesmo tempo a dicção da narra­tiva picaresca e a do Bildungsroman clássico, transformando-se em um complexo que comporta os limites de ambas as tradições, harmonizando-as.

A literatura pietísta

Um dos mais importantes mecanismos de introspecção e de investigação psicológica que o mundo moderno conheceu é a lite-

ratura de conversão religiosa. Comuns na Alemanha luterana e pietista desde as primeiras décadas do século XVIII, os testemunhos de conversão e os apontamentos autobiográficos dos indivíduos "renovados" e "renascidos" descreviam a trajetória individual do crente desde sua vida pregressa até o momento da conversão mís­tica ao pietismo. O período da vida que antecede a conversão é representado como uma época de convicções errôneas e julgamen­tos falhos, no que se refere sobretudo às relações com o mundo exterior, com a sociedade, e à própria vocação individual.

A experiência pessoal relatada nessas autobiografias místicas tinha caráter exemplar e era difundida ao público, seja por meio de cartas, seja da publicação em livro.

Embora não fosse propriamente literatura, o estilo pessoal e a preocupação do indivíduo com seu desenvolvimento espiritual configuraram o conceito religioso de formação que, seculariza-do, contribuiria para a fixação da forma do romance burguês na Alemanha.

Ernst Ludwig Stahl cita o exemplo da coletânea de autobio­grafias pietistas reunidas sob o título Historie der Wiedergebohrnen [História dos renascidos], de 1724. Relata-se ali o processo de conversão de homens e mulheres de diferentes classes sociais e a maneira pela qual eles foram conduzidos por Deus ao estado de renovação. O estado anterior em que viviam em pecado não fora originado de qualquer delito ou infração moral; é simplesmente o ato da própria existência no mundo secular que se considera pecaminoso. A Bildung pietista prevê portanto um hermético iso­lamento em relação ao mundo, como forma de se trilhar o cami­nho que leva à graça divina.

Um exemplo bastante ilustrativo do processo de isolamento ante o mundo secular está incluído no Livro 5 de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, nas chamadas Confissões de uma bela alma. Reproduz-se ali em primeira pessoa o relato autobio­gráfico da canonisa (tradução da edição brasileira do Meister para Stiftungsdame), personagem a qual se sabe ter sido inspirada por Susanne von Klettenberg, amiga de Goethe em sua juventude. Goethe relata, em sua autobiografia, os esforços envidados por

Frau von Klettenberg para a conversão do jovem Goethe ao cris­tianismo, mais especificamente, ao pietismo herrnhuto.5 Na es­trutura do romance, o relato da "bela alma" ocupa uma posição, se bem que destacada, alheia ao todo orgânico da narrativa. A trajetória da canonisa percorre precisamente o caminho que leva da existência no mundo secular ao recolhimento piedoso e ao isolamento. Embora suas confissões não exerçam influência dire­ta sobre a formação de Wilhelm Meister, a canonisa encontra-se ligada ao destino do protagonista; ela revela-se depois como tia e preceptora de Nathalie, noiva de Wilhelm. A inclusão de um "au­têntico" relato de conversão pietista na estrutura de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister reitera a atualidade desse tipo de leitura à época de composição do romance, contribuindo para a legitimidade da hipótese genealógica.

Tanto no relato da "bela alma", quanto nas autobiografias pietistas reais, predomina a crença de que a trajetória do homem é conduzida exclusivamente por Deus. Não está ao alcance do homem o arbítrio sobre seu destino, ou mesmo sobre o desenvol­vimento de suas qualidades. Jung Stilling, autor contemporâneo de Goethe e seu amigo pessoal, afirma em sua Lebensbeschreibung {Biografia):

Agora ficarão todos os meus leitores convencidos de que eu não sou um grande homem, um grande espírito ou um grande gê­nio - pois eu próprio não contribuí com a mais ínfima parcela para toda a minha trajetória, até mesmo minhas aptidões tiveram que ser preparadas e trabalhadas por meio de muito esforço e por entre caminhos penosos; eu era apenas matéria sofredora na mão cega do artista ... Acaso não comprova toda a história de minha vida, de maneira irrefutável, que não foram a razão e a sabedoria humana, mas sim Ele, do começo ao fim, que verdadeiramente me guiou, formou e educou, por meio de um plano previamente estabeleci­do[?]. (Lebensbeschreibung. Werke: p.755, 761, 762, apud Stahl, in Selbmann, 1988 p.141, grifo da autora)

5 O nome se deve à cidade de Herrnhut, na Saxônia, onde a comunidade pietista-evangélica liderada pelo conde Zinzendorf (1700-1760) encontrou abrigo.

A afirmação de Jung Stilling permite que se identifiquem cla­ramente pontos de contato entre a autobiografia pietista e o ro­mance de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister.

É preciso recordarmos aqui que o percurso do protagonista Wilhelm foi sempre conduzido por uma instância exterior e desco­nhecida, pela mão invisível da Sociedade da Torre. Por intermédio de seus emissários, que pontuam as idas e vindas do protagonista, a Sociedade da Torre conduz Wilhelm de forma a não lhe permitir uma real intervenção no próprio destino. Já houve quem consi­derasse a Sociedade da Torre como uma organização "mais autori­tária que a da Flauta mágica, ópera mozartiana de 1791" (ver artigo de Renato Janine Ribeiro, Folha de S.Paulo, 23 de outubro de 1994, p.6-7). Da mesma forma que Jung Stilling se diz "con­duzido, formado e educado" por Deus por meio de um "plano pre­viamente arquitetado", também a trajetória de Wilhelm foi objeto dos desígnios de uma instância superior. Pode-se identificar clara­mente um momento da chamada "transição" entre a autobiografia pietista e o Bildungsroman, configurado aqui na obra considerada seu paradigma, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister: Stilling atribui sua formação não à "racionalidade do homem ou à sua sa­bedoria", mas sim à intervenção divina; já a Sociedade da Torre atua de forma racional e de acordo com princípios pedagógicos em vigor durante os últimos trinta anos do século XVIII, em estreita conjunção com os princípios racionalistas da Ilustração, como a "educação pelo erro" defendida pelo abade.

Entretanto, enquanto as autobiografias pietistas preocupam-se em narrar uma trajetória que se estende da perdição da alma em direção à sua salvação, a qual coincide com o isolamento social, as narrativas de formação representam um processo de desen­volvimento voltado para a sociedade, para o equilíbrio do indiví­duo com o mundo exterior. As autobiografias pietistas podem ser então consideradas "formas de transição", detentoras de um sen­tido extremamente religioso, o que não impediu que antecipas­sem um processo de secularização. Trata-se efetivamente de um momento de transformação na própria história espiritual e inte­lectual, que se reflete na transição do conceito religioso de for­mação para o conceito filosófico-humanístico de formação.

A literatura confessional pietista constitui-se assim em um pressuposto bastante significativo não apenas para a constituição do gênero Bildungsroman mas para toda a literatura burguesa em língua alemã, que tem na segunda metade do século XVIII suas origens. Autores como Wieland e Novalis descendem diretamen­te de círculos pietistas ou estiveram muito próximos a eles, como o próprio Goethe.

Assim, mesmo que Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, em sua temática invulgar e diversificada, esteja longe, como ma­nifestação literária, dos relatos de conversão pietista, é inegável que estes, por meio de sua dicção individualizada, de sua expres­são do mundo interior, contribuíram para a fixação da forma do romance burguês na Alemanha.

O romance de aventura e de viagens

Entre as formas narrativas existentes na Europa do século XVIII, o chamado "romance de aventura e de viagens" encontra-se tam­bém na origem do processo de estabelecimento do Bildungsroman.

Wilhelm Vosskamp fala da "perda de função histórica" so­frida por esse tipo de literatura, que, na Alemanha do final do século XVIII, teria passado a narrar a história de um caráter em evolução. Ernst Ludwig Stahl e Wilhelm Vosskamp defendem a tese que a tendência do caráter espiritual alemão à interiorização dos processos, à subjetivação dos acontecimentos, levou a uma transformação das narrativas de viagens em narrativas da evolu­ção da personalidade e do caráter individual.

O exemplo mais significativo e legitimador dessa tese é a recepção do Robinson Crusoe de Defoe no espaço literário ale­mão da época. A história da recepção do romance de Defoe na Alemanha é exemplo de um dos mais bem-sucedidos casos de obra capaz de instituir uma tradição literária. Entre o período de sua primeira edição em língua inglesa e a publicação de Insel Felsenburg [A ilha Felsenburg] de Gottfried Schnabel (v.1, 1731) contam-se na Alemanha quinze romances que tiveram o Robinson por modelo literário, e, segundo Vosskamp, já em 1723, quatro anos após sua publicação, o romance de Defoe nomeava o gêne-

ro, dando origem a uma galeria de romances denominados Robinsonaden (Robinsoníadas), termo até hoje existente no léxi­co literário alemão.

O Robinson Crusoe de Daniel Defoe representa, paradig-maticamente, a transformação fundamental que a narrativa de via­gens e aventuras sofre no fim do século XVIII. Essa transforma­ção anuncia o fim de um gênero e a ascensão de uma nova forma de romance, o qual responde, de uma nova maneira, à situação histórico-social que se impunha.

A retumbante recepção do romance de Defoe, por meio do número incontável de "Robinsons alemães", é intermediada pela configuração histórica e pelas necessidades intelectuais e espiri­tuais da época. Essa configuração apontava então para a necessi­dade de se constituir um caráter individual para o burguês, capaz ao mesmo tempo de expressar os desejos de uma classe social. Atuam na elaboração desse deslocamento as expectativas do pú­blico leitor, em meio ao qual se incluem os autores dos novos Robinsons, no sentido de constituir uma história do desenvolvi­mento do caráter burguês na fragmentada Alemanha de então.

A leitura do Robinson Crusoe nesse contexto foi feita a partir do papel do indivíduo. Nem mesmo a clara orientação capitalis­ta da obra, libelo da cultura mercantilista que se instalava então na Inglaterra, ou o aspecto pedagógico da união entre a atividade manual e atividade intelectual, como compreendida por Rousseau, interessou ao público alemão da época. A necessidade histórica de constituição de uma identidade individual e social predomi­nou sobre as demais propostas de leitura do romance de Defoe.

Johann Carl Wezel, autor do Robinson Krusoe de 1779, dei­xa clara, no prefácio à obra, sua intenção de alterar "funcional­mente" o modelo original: "Procur[ei] indicar precisamente e in­cluir esses estágios do desenvolvimento, tanto quanto o plano da obra original mo permitiu, ainda que não houvesse indicadores de que Defoe tiv[era] realmente essas idéias filosóficas na compo­sição da obra" (apud Vosskamp, 1977, p.35, nota 60).

É tambem de Wezel a definição do caráter individual que de­veria ser representado nas diversas adaptações do Robinson:

Esse caráter deve ser conduzido por meio de uma série de acontecimentos prováveis, destituídos de qualquer laivo de aventu­ra, para que alcance com inabalável perseverança o seu último ob­jetivo - o de atuar, por meio de uma atividade laboriosa, sobre grande número de seus próximos, de uma forma que seja possível em nosso mundo e permitida por nossas leis. (Wezel, apud Vosskamp, 1977, p.35, grifo da autora)

Wilhelm Vosskamp compreende o fato como uma "perda his­tórica parcial de função" em relação ao modelo original, ou seja, a Robinsonade de caráter inicialmente "aventuresco" passa a remeter aos princípios históricos e filosóficos que antecedem e preparam o estabelecimento do Bildungsroman alemão. Assim, os adaptadores alemães do Robinson, ao mesmo tempo que imputam à obra uma perda parcial de função, concretizada pelo desvio em relação ao modelo original, atualizam essa mesma função, sintonizando-a com as necessidades históricas filosóficas suas contemporâneas.

É importante ressaltar aqui a coincidência ideológica entre a intenção de Johann Carl Wezel em sua adaptação do Robinson e trechos da crítica contemporânea ao surgimento do romance de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Daniel Jenisch, no primeiro livro dedicado ao romance, Über die hervorstech-endsten Eigentümlichkeiten von Meisters Lehrjahre; oder über das, wodurch dieser Roman em Werk von Goethen's Hand ist [Sobre as mais evidentes qualidades de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister], 1797, afirma:

Quase todos os outros romances e representações artísticas, de um modo geral, despertam em nós, por meio da representação de situações insólitas e extraordinárias, por sentimentos e atitudes ex­tremas de seus heróis, a inclinação para a aventura, tão daninha para o tranqüilo e prolongado bem-estar, tão deletéria para as atitudes de uma vida consagrada ao trabalho ... Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister tornam-nos satisfeitos com um restrito círculo de atuação, fazem cada obrigação decorrente de nossas relações com o mundo parecerem-nos mais sagradas, e, portanto, mais dignas de serem cum­pridas com amor e atenção. (apud Vosskamp, 1986, p.342)

A coincidência entre os dois trechos citados, contemporâneos entre si (o texto de Wezel data de 1779, o de Jenisch, de 1797)

torna evidente uma determinada disposição histórica na qual pre­domina uma orientação voltada para "a atividade laboriosa" em prol do bem comum, destituída de caráter aventuresco, adequada ao estreito círculo da vida burguesa. A reinterpretação do Robinson Crusoe pelos seus imitadores alemães coincide e prepara alguns dos pressupostos histórico-literários que deram origem ao Bildungsroman, como a necessidade de construção de um caráter burguês individual e de sua inserção na sociedade constituída por seus pares.

Ao delinearmos a origem do signo literário Bildungsroman por meio de relações perspectivistas e genealógicas, ressaltamos ao mesmo tempo a necessidade de modelos de descrição que ul­trapassam os limites morfológico-normativos. Dessa forma, é pos­sível legitimar a hipótese que compreende o Bildungsroman como uma projeção do ideário coletivo, como representação dos pro­jetos da burguesia em relação à superação dos próprios limites.

O reconhecimento da historicidade das formas literárias co­mentadas permite que se identifiquem os diferentes núcleos discursivos efetivamente atuantes na constituição do Bildungs­roman como signo literário. As relações com a autobiografia mo­derna, com as confissões pietistas, com o romance picaresco, com os relatos de viagem e aventura, dão a medida do caráter empírico presente na constituição do conceito Bildungsroman e revelam a função cognitiva dos gêneros literários. É apenas pelo acompanha­mento da história do Bildungsroman como história dinâmica do gênero que será possível compreendermos sua própria natureza.

A história do Bildungsroman confunde-se assim com a pró­pria história do romance europeu; além disso, o fato de seu paradigma estar configurado em um romance de Goethe, figura central da literatura européia e um "clássico", tanto no sentido da periodização literária quanto no sentido de autor canônico, atribui ao próprio conceito de Bildungsroman uma grandiloqüência caramente cultivada pela historiografia literária tradicional. Esse fato trouxe não poucas desvantagens ao estudo do Bildungsroman como instituição social-literária, uma vez que a tendência da crí­tica foi, por longo tempo, considerá-lo como categoria modelar e canônica, logo, a-histórica. Em conseqüência disso, são muitos os

autores que, seduzidos pela flexibilidade das definições e pelo ca­ráter insuspeito das origens, utilizaram o Bildungsroman como arcabouço teórico rígido, sem levar em conta sua historicidade e sua dinâmica.

A história da continuidade do Bildungsroman no século XX reitera o caráter dinâmico e empírico do gênero, na medida em que se estabelece uma tradição consciente do Bildungsroman. Obras como O tambor, de Günther Grass, e Felix Krull, de Thomas Mann, remetem diretamente ao paradigma, ao mesmo tempo em que o subvertem.

É certo que tais subversões se devem necessariamente ao di­namismo do gênero em meio às diferentes constelações histórico-literárias. No século XX, desaparece a idéia do homem como ser psicológica e historicamente indecomponível. A representação do desenvolvimento individual como um processo linear em direção ao equilíbrio das tendências individuais no enfrentamento com a sociedade torna-se então uma aporia.

3 A HISTÓRIA DA OBRA NA CONSTITUIÇÃO

DO SIGNO LITERÁRIO BILDUNGSROMAN

O acompanhamento da trajetoria crítica de Os anos de apren­dizado de Wilhelm Meister desde sua primeira recepção em meio aos contemporâneos de Goethe torna possível também o rastreamento da própria história do Bildungsroman.

Gestado em um momento em que a literatura em língua alemã passa a reclamar e a exercer autonomia em relação aos modelos franceses e da Antigüidade clássica, a história do Bildungsroman insere-se na própria história da literatura alemã, contribuindo mes­mo para o estabelecimento de modelos e concepções em parte ain­da hoje válidas.

São consideradas aqui como instâncias discursivas produtoras de sentido tanto a correspondência privada entre o autor Goethe e seus comentadores, cujo caso mais representativo é o da longa e prolífica correspondência Goethe-Schiller sobre Os anos de apren­dizado de Wilhelm Meister, quanto as resenhas tornadas pú­blicas, como o exemplar trabalho de Friedrich Schlegel Über Goethes Meister [Sobre o Meister de Goethe], publicado no perió­dico Athenäum.

Iluminam-se, dessa forma, as circunstâncias da primeira re­cepção do romance de Goethe, elemento fundamental no proces­so que antecede e prepara o nascimento do gênero Bildungsroman.

AS PRIMEIRAS CRÍTICAS A OS ANOS DE APRENDIZADO

DE WILHELM MEISTER

A correspondência privada

As primeiras manifestações críticas sobre Os anos de aprendi­zado de Wilhelm Meister realizaram-se no âmbito da correspon­dência privada entre o círculo de amigos próximos a Goethe, como Schiller, Körner e Humboldt. Nessa correspondência co­meçam a delinear-se acepções críticas que irão acompanhar a trajetória do romance de Goethe, reiterando seu caráter de obra polêmica, ao mesmo tempo em que se delineiam pressupostos que irão constituir o signo literário Bildungsroman. Trata-se de documentos de caráter particular, algumas vezes de difícil acesso ao público, como no caso das pequenas edições de documentos de família (ver correspondência de Charlotte von Stein, incluída neste capítulo). Klaus Gille, em sua obra de 1971, "Wilhelm Meister' im Urteil der Zeitgenossen ["Wilhelm Meister' segundo a crítica de seus contemporâneos], coletou e organizou em um úni­co volume as primeiras críticas sobre o Meister, veiculadas ini­cialmente por meio da correspondência particular. Convivem, por­tanto, no livro de Gille, testemunhos antológicos e largamente difundidos e editados, como a correspondência entre Goethe e Schiller sobre Os anos de aprendizado, ao lado de documentos aos quais só se pôde ter melhor acesso após a edição do trabalho de Klaus Gille. Além do livro de Gille, sustentam a informação bibliográfica deste capítulo as traduções brasileiras das Cartas sobre a educação estética da humanidade (Schiller), da corres­pondência entre Goethe e Schiller, bem como dos fragmentos de Schlegel e Novalis.

Os conceitos estéticos de Schiller e o 'Meister' de Goethe

A correspondência entre Goethe e Schiller sobressai-se como um testemunho vivo de um interesse crítico detalhado e muito próximo à obra, anterior mesmo à sua publicação.

A correspondência entre Friedrich Schiller e Johann Wolfgang von Goethe inicia-se em agosto de 1794. Goethe encontrava-se em Weimar, a serviço da corte, enquanto Schiller se estabelecera em Jena, desde maio de 1789, como catedrático de história.

Após a "febre de leitura" provocada pelo seu romance Os so­frimentos do jovem Werther, de 1774, Goethe não mais conheceu um verdadeiro sucesso de público. Arnold Hauser (1972, p.775) afirma que "verdadeiramente popular ele o foi na juventude, quan­do publicou Götz e Werther". Klaus Gille chega mesmo a afirmar que, desde a época de Weimar, a imagem que o grande público teve de Goethe foi aquela do ministro e do cortesão frio, vaidoso e egoísta, cujo talento se havia extinguido. E essa também a opi­nião de um dos futuros críticos de Os anos de aprendizado, Friedrich Schlegel, cuja declaração de 1792 é bastante represen­tativa do abismo entre Goethe e seu público, até mesmo o pú­blico intelectual:

A essência de suas obras é a reprodução de uma alma egoísta e fria. O Werther, Götz, Fausto, Ifigênia e algumas composições líri­cas são o começo de um grande homem - do qual logo se viu, po­rém, a transformação em cortesão. (Apud Gille, 1971, p.31)

Portanto, o período que antecede a publicação de Os anos de aprendizado caracteriza-se por uma considerável distância entre Goethe e o público, distância essa que ele acertadamente com­preendeu como decorrência da incapacidade de compreensão de sua obra por esse mesmo público. Pode-se então reconhecer, na correspondência trocada entre Goethe e Schiller, o desenho de um intercâmbio por meio do qual o primeiro reconheceu no se­gundo um "público ideal":

E tão raro encontrar nos negócios e atividades da vida a deseja­da participação, e nesse caso altamente estético ela quase não pode ser esperada, pois quantas pessoas vêem a obra de arte em si mes-

mas, quantas podem ignorá-la, e depois só resta a tendência que pode ver tudo que ela contém, e a tendência pura que ainda pode ver o que lhe falta. E quanto não restaria ainda a acrescentar, a fim de expressar o caso isolado no qual me encontro apenas com o se­nhor. (Cavalcanti, 1993, p.76, grifos da autora)

As cartas trocadas entre Friedrich Schiller e Johann Wolfgang von Goethe sobre Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister inau­guram a crítica ao romance de Goethe, crítica essa que se concre­tiza não por meio de um exercício público, mas sim no círculo íntimo da amizade entre os dois autores. Anos mais tarde, já mes­mo depois da morte de Schiller, Goethe irá avaliar definitivamen­te o significado da crítica exercida pelo primeiro sobre Os anos de aprendizado:

Deixo para o final o comentário sobre a participação de Schiller: ela foi a mais íntima e a mais elevada; e suas cartas sobre o assunto ainda se encontram à disposição, não posso eu dizer mais nada além de que o conhecimento delas poderia ser um dos mais belos pre­sentes que se possa oferecer a um público cultivado. (Goethe, apud Gille, 1971, p.29)

Na famosa "carta de aniversário" enviada por Friedrich Schiller a Johann Wolfgang von Goethe em 23 de agosto de 1794, o primei­ro convida o autor de Os anos de aprendizado a publicar, em partes, o romance nas Horen.¹ Em razão dos direitos de seu editor, Unger, Goethe é levado a recusar o convite, comprometendo-se, porém, a enviar-lhe o primeiro livro do romance assim que as provas estives­sem prontas, o que ocorreu em 6 de dezembro de 1794.

A partir de então, Schiller passa a receber em primeira mão as provas de cada um dos livros, indicando em suas cartas a Goethe escritas até 2 de julho de 1796 a espontaneidade e vivacidade de sua recepção imediata do romance.

1 Die Horen: periódico editado por Schiller de 1795 a 1797, tendo entre seus colaboradores Goethe, Herder e A. W. Schlegel. O termo Horen designa as três filhas de Zeus e Themis: Eunomia (Justiça), Dike (Direito) e Eirene (Paz). Designa também as quatro deusas das estações do ano. (Meyers GroBes Lexikon, 1968, p.360).

Em carta de 9 de outubro de 1794 a Christian Gottfried Körner, Schiller declara suas grandes expectativas em relação ao processo simbiótico que pretendia manter com o autor do Meister em relação à concepção do romance:

Seu romance ele deverá enviar-me em tomos; e então eu deve­rei escrever-lhe, a cada vez, o que deverá conter o próximo volume, e como este se realizará e desenvolverá. Ele fará então uso dessa crítica antecipatória, antes que mande imprimir um novo volume. Nossas discussões sobre a composição levaram-no à idéia de que, uma vez que esta seja boa e conduzida com desvelo, poderia muito bem trazer à luz as leis da composição poética. (Gille, 1971, p.10)

O trecho citado marca as grandes expectativas de Schiller ante a possibilidade de um trabalho intelectual conjunto com Goethe, trabalho esse que, como se sabe, efetivamente aconteceu. No caso específico de Os anos de aprendizado, as expectativas de colabo­ração e efetivo intercâmbio de opinião são, ao final de um certo período, frustradas, deixando mesmo Goethe de enviar o oitavo livro a Schiller antes de mandá-lo à impressão. De toda maneira, indícios da sintonia intelectual entre os dois autores se deixam encontrar, com maior ou menor intensidade, por entre o texto de Os anos de aprendizado, sendo mesmo possível apontar trechos nos quais a concepção estética de Schiller pode ser nitidamente reconhecida, como se verá nas linhas a seguir.

Cronologicamente, o período em que se realiza a crítica de Schiller sobre Os anos de aprendizado coincide com o momento de elaboração das Cartas sobre a educação estética da humani­dade, em que Schiller expõe os princípios de sua concepção clás­sica da arte.

A carta de 2 julho de 1796 constitui uma inflexão na leitura do romance; em lugar de uma apreciação quase que descom-prometida, a carta assume a forma de uma "discussão cuidado­samente articulada. Ali, Schiller refere-se ao sentimento de uma "incrível e inaudita variedade" que o domina logo após a releitura dos oito livros, que acabara de empreender. Afirma ainda já ter assimilado bem "a constância, mas não a unidade, embora não duvide em nenhum momento de que ainda terei uma total clare-

za sobre esta última..." (Cavalcanti, 1993, p.63). Dessa forma, configura-se uma das principais dicções que irá orientar todo o extenso trabalho crítico de Schiller sobre o romance. Fortemente impressionado pela riqueza de situações e caracteres ali represen­tados, Schiller procura ao mesmo tempo uma unidade estética formal que acomode essa mesma diversidade, harmonizando o conjunto. Assim, os primeiros testemunhos efetivamente críticos da leitura de Schiller já se mostram como produto de uma com­preensão estética predominantemente harmônica, na qual a sin­gularidade do único deve ser absorvida pelo todo orgânico.

Ainda na carta de 2 de julho, Schiller elogia a capacidade do autor de ordenar, no oitavo livro, em um conjunto orgânico, as diversas figuras e situações desenhadas ao longo da narrativa: "como o senhor conseguiu reunir tão próximos os grandes e tão espalhados círculo e cena de pessoas e acontecimentos! É como um belo sistema planetário, e apenas os personagens italianos li­gam, como cometas e também tão terríveis quanto estes, o sis­tema em algo distante e maior" (Ibidem, p.64).

Louvando assim a harmonia presente no último livro, Schiller refere-se aos "personagens italianos" como os únicos elementos que escapam ao conjunto. A referência contempla certamente as personagens Mignon e o tocador de harpa, elementos prenun­ciadores de catástrofe que, ao lado de Mariane e Aurelie,2 "saem completamente do sistema e se separam dele como criaturas es­tranhas, depois que simplesmente serviram para produzir ali um movimento poético". A afirmação de Schiller é importante por­que aponta para sua concepção do belo como o genérico, uni­versal, em que a particularização, o contingente, o extremamente individual não podem ter lugar permanente, pois limitam o belo que resulta exatamente dessa qualidade universal. Assim, tanto a

2 As quatro personagens citadas, Mignon, Augustin, Mariane e Aurelie, são exemplos de naturezas apaixonadas, poéticas e "irracionais". Mignon é filha de uma relação incestuosa. Augustin, o tocador de harpa e pai de Mignon (o que se vem a descobrir exatamente no oitavo livro), torna-se insano e peri­goso. Aurelie e Mariane são figuras femininas que se deixam levar e destruir por paixões inadequadas. O destino das quatro personagens é a morte.

história quanto o destino das personagens citadas servem a um "movimento poético", sem constituir parte integrante do conjun­to harmonioso.

Também a carta imediatamente seguinte, de 3 de julho de 1796, trata da concepção do todo. A análise da personagem Werner é inserida a partir da ótica da composição geral da obra: "Muito me alegrei com a triste transformação de Werner ... Essa figura também é muito benéfica para o todo porque explica e eno­brece o realismo para o qual o senhor conduz o herói do romance". (Ibidem, p.70, grifo da autora).

As observações iniciais de Schiller sobre as personagens do romance de Goethe originam-se em uma reflexão estética que Schiller vinha desenvolvendo em seu próprio trabalho teórico. E possível identificar uma relação bastante próxima entre as con­cepções de Schiller veiculadas na crítica ao Meister e os princí­pios desenvolvidos em sua obra teórica Cartas sobre a educação estética da humanidade, sobretudo no que se refere à conceituação do "estado estético", aquele em que todas e nenhuma determi­nação são possíveis, em que a liberdade estética se universaliza como "infinitude plena", na medida em que "a beleza não ofe­rece resultados individuais ao entendimento ou à vontade".

Ao lado da concepção de "estado estético", que encontrará sua contrapartida na crítica de Schiller ao Meister como se verá a seguir, figura também a concepção formalista da arte, em detri­mento do aspecto conteudístico.

Escrita em 1795 (no mesmo ano, portanto, em que vêm a público os primeiros livros do Meister), a seqüência de 27 cartas reunidas sob o título Cartas sobre a educação estética da humani­dade veicula as concepções de Friedrich Schiller "acerca da forma­ção do cidadão e do Estado; em seguida, seu conceito de beleza como ideal a ser alcançado; depois os problemas concernentes à representação do Belo; por último a arte como instrumento de mediação entre o homem e a beleza, as artes plásticas, a poesia dramática e épica bem como o romance" (Sousa, 1994, p.15).

Na carta de número 22 Schiller discorre sobre o papel pre­dominante da "disposição estética" na composição do "todo da humanidade": o "estado estético é o mais fértil com vistas ao co-

nhecimento e à moral"; mais do que isso, o estado estético é aquele que inclui o particular e o individual na composição orgânica do todo:

Por não proteger de modo exclusivo nenhuma das funções da humanidade, ela [a disposição estética] favorece todas, sem exceção e se não favorece nenhuma isoladamente, é por ser a condição de possibilidade de todas elas. Todas as outras atividades dão ao espírito um destino particular e impõem-lhe, por isto, um limite particular; somente a estética conduz ao ilimitado ... somente o estético é um todo em si mesmo. (Schiller, 1963, p.102, grifo da autora)

Dessa forma, pode-se reconhecer, no texto das cartas sobre a educação estética, a gênese da crítica exercida por Schiller sobre Os anos de aprendizado; da mesma forma que as personagens, no ro­mance de Goethe devem justificar sua trajetória particular em re­lação ao todo da composição, a "disposição estética" é aquela que universaliza as disposições particulares, congregando-as ao todo.

Não são poucas as conseqüências dessa aproximação. Pela lei­tura de Schiller, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister inau­gura sua fortuna crítica atrelado ao ideário humanista-filosófico do classicismo alemão, permeado pela dinâmica entre os aspectos individual-universais do processo de desenvolvimento estético. Estabelece-se assim uma interpretação harmônica do Meister, clás­sica em seu ideal de equilíbrio entre a liberdade individual e a possibilidade de determinação do destino coletivo, do desenvol­vimento da humanidade.

Efetivamente, essa concepção da formação do caráter individual moldada pelas necessidades comuns e imediatamente relacionada a instâncias sociais concretas, ou seja, ao coletivo "humanidade", encontra-se claramente expressa no próprio texto de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Jarno, membro da Sociedade da Torre, comunica a Wilhelm, por ocasião da continuação da leitura da Lehrbrief [Carta de Formação], os princípios que orientam a concepção pedagógica do Abade, figura central da Sociedade. Jarno afirma que

A maior parte dos homens, mesmo os melhores, é limitada; cada qual aprecia em si mesmo e nos outros determinadas qualida-

des; e ele só favorece aquelas que quer ver desenvolvidas. De um modo totalmente oposto age o abade; tem sentido para tudo, tem interesse de tudo reconhecer e promover ... Só todos os homens juntos compõem a humanidade; só todas as forças reunidas, o mun­do. Estas estão com freqüência em conflito entre si e, enquanto buscam destruir-se mutuamente, a natureza as mantém juntas e as reproduz. (Goethe, 1994, p.536-7)

Analogamente ao desenvolvimento de todas as qualidades in­dividuais, sem prejuízo ou precedência de uma única, também cada indivíduo singular deve atuar em harmonia com seus semelhantes, ajudando a compor o todo da humanidade.

A concepção estética professada por Schiller nas Cartas pode também ser diretamente identificada em trechos do romance de Goethe que tratam especificamente do fenômeno estético, deli­mitando assim concepções compartilhadas por ambos os autores durante o período do chamado "Classicismo de Weimar".

Segundo a carta de número 22, a "autêntica obra de arte" deve deixar-nos em uma disposição de "alta indiferença e liberdade de espírito". Ambos os termos devem ser entendidos como decorren­tes de um estado de espírito que não privilegie uma "determinada maneira de agir ou de sentir" em detrimento de outras maneiras. Isso seria "prova segura de que não experimentamos um efeito verdadeiramente estético" (Schiller, 1963, p.102). Assim, "quanto mais geral for esta disposição e quanto menos limitada for a dire­ção que um determinado gênero de arte e um produto particular dentro dele dão ao nosso espírito, tanto mais nobre será aquele gênero e tanto mais excelente tal produto" (Ibidem, p.103).

Reconhecendo como ideal aquele gênero artístico de caráter universal, Schiller não deixa de apontar as "afinidades particulares" que uma peça artística pode despertar no espírito daquele que a contempla, ouve ou lê. Tais afinidades particulares serão, porém, diluídas, ao alcançar a obra de arte um "nível mais alto". De acordo com uma concepção classicista da arte, Schiller reconhece, nas artes plásticas, o paradigma perfeito do estilo harmonioso da An­tigüidade. Todas as outras formas de expressão artística são refe­ridas às artes plásticas, representação perfeita do caráter artístico harmonioso:

A música, em sua nobreza mais alta, transforma-se em figura e afeta-nos com o calmo poder da antigüidade; as artes plásticas, em sua máxima perfeição, tornam-se música e afetam-nos por sua ime­diata presença sensível; a poesia, em sua manifestação mais plena, deve prender-nos poderosamente como as artes sonoras e, ao mes­mo tempo, circundar-nos da serena clareza das artes plásticas. O estilo perfeito em cada arte revela-se, justamente, ao afastar-lhe as limitações específicas sem negar as virtudes particulares, conferin­do-lhe um caráter mais universal pela sábia utilização de sua pecu­liaridade. (Ibidem, p.l04)

Ainda sobre as "afinidades particulares" despertadas no espí­rito humano pelas diferentes formas da arte, Schiller estabelece uma certa tipologia dos efeitos:

Deixamos uma bela peça musical com vivo sentimento, o belo poema deixamos com a imaginação vivificada, e o belo quadro ou edifício com o entendimento desperto; mas quem quisesse incitar-nos ao pensamento abstrato imediatamente após o alto prazer mu­sical; utilizar-nos para um negócio comedido da vida comum, logo após o alto prazer da poesia; afoguear nossa imaginação e surpreen­der nossa emoção, logo após contemplarmos belas telas e escul­turas, teria escolhido uma oportunidade infeliz. (Ibidem, p. 104, grifo da autora)

Schiller afirma assim a diferente atuação das diferentes maté­rias artísticas sobre os sentidos da percepção. Enquanto a música tem com os sentidos uma afinidade "maior que a permitida pela verdadeira liberdade estética", incitando-nos a experimentar em excesso uma determinada disposição de espírito, a poesia incita demasiadamente a imaginação; apenas as "belas telas e esculturas" organizam e apaziguam o tumulto interior dos sentidos, confir­mando mais uma vez a afinidade entre as obras plásticas e a orde­nação estética harmoniosa.

Schiller atribui assim às artes plásticas da Antigüidade um poder calmante e ordenatório sobre o espírito humano, poder esse que se opõe à exacerbação dos sentidos provocada pela música, e sobretudo, pela poesia.

Essa concepção pode ser identificada na trajetória estética do protagonista Wilhelm Meister em seus anos de aprendizado. No

décimo capítulo do segundo livro do romance, há um episódio que marcadamente comprova a asserção de que a poesia exacerba os sentidos, desorganizando-os. Trata-se do episódio em que a trupe de Wilhelm reúne-se nos aposentos deste, para uma leitura em voz alta de "obras de cavalaria" (Ritterstücke). A excitação provo­cada pelo heroísmo nacional das situações e personagens represen­tados, bem como a alteração dos ânimos provocada por bebida alcoólica, leva os integrantes da trupe a um estado de total con­fusão e exacerbação dos sentidos:

Estavam todos inflamados pelo fogo do mais nobre espírito nacional. Quão prazeroso era para aquele grupo de alemães, em conformidade com seu caráter, deleitar-se com a poesia em seu pró­prio solo! ...

Perto do quinto ato fez-se mais ruidoso e mais sincero o aplau­so, e, ao final, quando o herói escapava verdadeiramente de seu opressor e punia-se o tirano, foi tão grande o entusiasmo geral que juravam todos nunca haver desfrutado momentos tão felizes. Melina, arrebatado pela bebida, era o mais inquieto, e como já haviam esva­ziado a segunda poncheira e se aproximava a meia-noite, Laertes manifestou solenemente que doravante não haveria mais ninguém digno de levar aos lábios aqueles copos e, ante tal afirmação, arre­messou o seu pela janela contra a rua. Os outros seguiram seu exem­plo e, a despeito dos protestos do estalajadeiro, que acudiu pronta­mente, fizeram em mil pedaços a própria poncheira para que, depois de uma festa como aquela, não mais a profanassem com bebidas impuras. (Goethe, 1994, p.l19)

No trecho acima citado, "o alto prazer da poesia" (Schiller) encontra-se associado ao delírio e descontrole emocional provo­cado pela ingestão da bebida alcoólica; a euforia provocada inicial­mente pela leitura da obra poética conflui na excitação alcoólica, igualando-se a ela. Ainda mais significativo é o trecho seguinte, em que se atribui (algo ironicamente, é certo) a uma obra poética um efeito desorganizador:

Nesse meio tempo, a tropa da guarda havia chegado e ameaça­va entrar na estalagem. Wilhelm, excitado demais pela leitura, em­bora não tivesse bebido muito, teve bastante trabalho para acalmar os guardas mediante algum dinheiro e boas palavras, e conduzir para casa os membros da companhia no estado deplorável em que

se encontravam. Ao regressar, dominado pelo sono, atirou-se contra­riado e sem se despir à cama, e nada poderia compara-se à desagra­dável sensação que experimentou na manhã seguinte ao abrir os olhos e contemplar com um olhar sombrio os estragos do dia anterior, a sujeira e os péssimos resultados obtidos por uma engenhosa, animada e bem-intencionada obra poética. (Ibidem, p.120, grifos da autora)

A passagem acima contrasta vivamente com a descrição do "Salão do Passado" (Saal der Vergangenheit), recinto construído pelo tio de Natalie {der Oheim), onde se encontram dispostas, em um conjunto harmônico, obras pictóricas e arquitetônicas mo­dernas ao lado de esculturas da Antigüidade e de construções de proporções clássicas.

Embutidas nas paredes, arcadas bem proporcionais abrigavam grandes sarcófagos, nas colunas interpostas viam-se pequenos ni­chos, ornados com urnas e vasos funerários; as outras partes das paredes e da abóbada estavam regularmente distribuídas e, entre alegres e variadas molduras, guirlandas e ornamentos, viam-se fi­guras alegres e simbólicas pintadas em divisórias de tamanhos dife­rentes. Os elementos arquitetônicos estavam revestidos de um belo mármore amarelo, tendente para o vermelho; listras de um azul claro, de uma feliz composição química, imitando o lápis-lazúli, deleitavam o olhar pelo contraste e davam ao conjunto unidade e coesão. Todo esse esplendor e ornamento apresentavam-se dentro das puras proporções arquitetônicas, e assim qualquer um que ali entrava parecia elevar-se por sobre si mesmo ao aprender pela pri­meira vez, graças àquela arte harmoniosa, o que é e o que pode ser o homem. (Ibidem, p.526)

O trecho encontra-se no livro de número 8, o último, carac­terizando assim uma possível alteração da percepção estética de Wilhelm Meister, ou, ao menos, diferindo o suficiente daquela comoção estética perturbadora causada pela leitura das obras de cavalaria para que se possa falar de um amadurecimento da per­cepção estética do protagonista.

Na carta de 9 de julho de 1796, seguinte àquela que institui o momento de crise entre os dois missivistas quanto à critica do Wilhelm Meister, Schiller irá tratar especificamente desse episó­dio, argumentando pelos meios de sua própria concepção estéti­ca que privilegia a forma:

Tenho ainda algo a lembrar sobre o comportamento de Wilhelm na sala do passado, quando ele entra nela pela primeira vez com Natalie. Para mim, ainda há muito do antigo Wilhelm, que na casa do avô prefere ficar com o filho doente do rei,' e o qual o desconhecido encontra num caminho tão equivocado. Tam­bém aqui ele permanece quase que exclusivamente no conteúdo das obras de arte e, na minha opinião, poetiza demais com isso. Não seria aqui o momento de mostrar o começo de uma crise mais feliz nele, de apresentá-lo não como conhecedor - pois isto é impossível - mais como um observador mais objetivo...? (Caval­canti, 1993, p.87, grifos da autora)

Assim, mesmo que se possa apontar uma diferenciação entre os dois momentos, aquele da leitura das peças de cavalaria, que termina em total confusão dos sentidos, e este da apreciação da "arte harmoniosa" colecionada pelo tio de Natalie, ainda assim Schiller considera insuficiente o "progresso" de Wilhelm Meister, apoiando-se ainda em sua concepção clássica da predominância da forma sobre o conteúdo.

3 Referência a um quadro pertencente à coleção do "velho Meister", pelo qual Wilhelm demonstrava predileção. O trecho, que se reproduz abaixo, encontra-se no capítulo dezessete do primeiro livro; ali, Wilhelm reencontra o comprador da coleção de quadros que pertencera a seu avô:

"... - Lembro-me de uma tal pessoa, mas não a teria reconhecido no senhor. - É que já se passou muito tempo e, um pouco mais um pouco menos, sempre mudamos. Se bem me lembro, havia entre aqueles quadros um que era seu preferido e do qual não queria se desfazer de forma alguma. - E verdade! representava a história do filho enfermo do rei, consumido de amor pela noiva de seu pai. - Não era propriamente a melhor pintura; mal composta, era de um colori­do que nada tinha de especial e num estilo amaneirado. - Não entendia e ainda não entendo dessas coisas; o que me agrada num quadro é o tema [no orignal, Gegenstand], não a arte." (Os anos de aprendi­zado de Wilhelm Meister, 1994, p.63, tradução de Nicolino Simone Neto, grifo da autora)

A citação torna bastante nítida a origem da censura de Schiller pois atribui a Wilhelm Meister uma compreensão conteudística da arte, que se opõe clara­mente à proposição schilleriana da fruição formal da obra de arte, integran­te das Cartas sobre a educação estética do homem (Ver nota explicativa de número 16 da tradução brasileira, ao final do Livro I, p.72, que contextualiza o tema ali representado).

Em trecho da carta de número 22, Schiller (1963, p.105) afirma a predominância da forma sobre o conteúdo, em uma obra de arte:

Numa obra de arte verdadeiramente bela, o conteúdo nada deve fazer, a forma é tudo; é somente pela forma que se age sobre o homem como um todo, ao passo que o conteúdo visa apenas a for­ças particulares. O conteúdo, por sublime e amplo que seja, age sobre o espírito sempre como limitação, e somente da forma pode-se esperar verdadeira liberdade estética ... O espírito de quem ouve ou de quem contempla deve permanecer plenamente livre e incólu­me, deve sair puro e perfeito da esfera mágica do artista como das mãos do criador.

No romance de Goethe (1994, p.528), a personagem Natalie dá voz à oposição forma/conteúdo também na música, pela contraposição entre a desejável despersonalização e universalidade da voz que executa a melodia, e os gestos individuais e dramá­ticos dos atores em cena:

O teatro nos perverte totalmente; a música nele só serve por assim dizer aos olhos, ela acompanha os movimentos, não as emo­ções. Nos oratórios e nos concertos perturba-nos sempre a figura do músico; a verdadeira música é somente para o ouvido; uma bela voz é o que se pode pensar de mais [universal], e se o limitado indivíduo que a produz se põe diante de nossos olhos, destrói o puro efeito dessa [universalidade]4... aquele que para mim canta deve ser invisí­vel; sua figura não deve seduzir-me nem extraviar-me.

Assim, tanto no tratado estético de Schiller quanto no romance de Goethe encontra-se uma concepção da arte como um constructo universal, sobre o qual o excesso de particularização atua de for­ma limitante.

Conjugada à leitura de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister como obra na qual se concretizam princípios fundamen­tais da estética clássica, que privilegia a composição orgânica do todo, encontra-se também o reconhecimento da representação da

4 Sugestão de tradução da autora.

trajetória de um caráter individual em direção à harmonia resultan­te do equilíbrio entre a determinação individual e a universali­dade ideal. Para Schiller, o protagonista do romance de Goethe teria atingido o "estado estético", a "liberdade estética em relação a todas as determinações":

No estado estético, portanto, o homem é zero sempre que pro­curamos o resultado isolado e não as faculdades como um todo, sempre que consideramos, nele, a ausência de todas as determina­ções específicas. Daí terem razão aqueles que declaram, com vistas a conhecimento e moralidade, serem o belo e a disposição em que ele coloca o espírito de todo indiferentes e estéreis. Têm razão ple­na, pois a beleza não oferece resultados individuais ao entendimento ou à vontade, não realiza, isoladamente, finalidades intelectuais ou morais ... e é, numa palavra, tão incapaz de fundar o caráter quanto de iluminar a mente. A cultura estética, portanto, deixa plenamente indeterminados o valor e a dignidade pessoais de um homem, na medida em que possam depender dele, e nada se alcançou além da possibilidade natural de fazer ele de si mesmo aquilo que quiser, já que lhe é devolvida completamente a liberdade de ser o que deve. (1963, p.100-1, grifos da autora)

Portanto, o herói de Goethe em sua indeterminação recor­rente representa, para Schiller, a concretização desse estado esté­tico e livre, uma vez que traz em si a possibilidade natural, a li­berdade de ser o que deve ser.

Entretanto, na carta de 8 de julho de 1796, Schiller expressa sua discordância quanto ao tratamento que Goethe passou a dar ao pro­tagonista. Schiller afirma que a "moral" não coincide com a "fábula', apontando assim o que em sua opinião consiste em uma inadequação do caráter do protagonista em relação a uma possível "filosofia ge­ral" de Os anos de aprendizado: "Quero dizer: a fábula é comple­tamente verdadeira, a moral da fábula é completamente verdadeira, mas a relação de uma com a outra ainda não salta aos olhos com clareza suficiente" (Cavalcanti, 1993, p.80, grifo da autora).

Efetivamente, a carta de 8 de julho de 1796 contém o início da crítica mais rigorosa exercida por Schiller a partir de sua perspectiva de teórico e autor "clássico". Ali, Schiller desenvolve observações apenas esboçadas em cartas anteriores, como a ne­cessidade de se acomodar toda a diversidade em uma unidade,

atribuindo aos acontecimentos um nexo causai que, na opinião do crítico, está ausente em certas passagens, e mesmo no caráter do protagonista. Schiller ressente-se ainda de uma "explicação estética" que justificasse a "maquinaria" constituída pela Socie­dade da Torre e suas intervenções: "Em tudo isto, eu teria ainda desejado que o senhor tivesse aproximado um pouco o aspecto significativo dessa maquinaria, a necessária relação da mesma com o ser interior. Este deveria olhar sempre em direção à economia do conjunto, mesmo que esta deva permanecer oculta às figuras em ação" (Ibidem, p.78).

Schiller, portanto, passa a reclamar para a obra "uma relação claramente pronunciada" entre os acontecimentos. É assim que, segundo ele, haveria de se "mencionar com mais detalhe o motivo que tornou Wilhelm objeto dos planos pedagógicos do abade"; e, de forma ainda mais veemente, Schiller discute a maneira como estão caracterizados os conceitos de "aprendizado e mestria": "A maneira, pois, como o senhor explica o conceito dos anos de aprendizado e de mestria parece impor a ambos um limite mais estreito. Pelo pri­meiro, o senhor entende somente o engano de procurar fora de si aquilo que o seu interior deve produzir; pela segunda, a convicção do equívoco daquela procura" (Ibidem, p.80).

É assim que Schiller chega a considerar insuficiente a forma como ambos os conceitos de aprendizado e mestria colocam-se para o herói do romance.

Reconhecendo que a "mestria" (Meisterschaft) de Wilhelm consiste em nada além do que "a convicção do caráter equivoca­do de tal busca" (die Überzeugung von der Irrigkeit jenes Suchens), Schiller sugere a Goethe a "emancipação" do Meister: "Agora a exigência se lhe transfere ... a exigência de impor o seu pupilo com total independência, segurança, liberdade e por assim dizer, firmeza arquitetônica, de forma que assim ele possa manter-se eter­namente, sem precisar de um apoio externo..." (Ibidem, p.86).

Essa emancipação consistiria, ainda segundo o texto da carta de 8 de julho de 1796, em prover o Meister de um fundamento filosófico, preservando-o de um resvalo no misticismo. Klaus Gille (1971, p.19) reconhece no caráter emancipatório da proposição schilleriana uma filiação direta aos acontecimentos da Revolução

Francesa: "Para Schiller, o resultado da educação de Wilhelm mostra-se na liberdade, igualdade e fraternidade, diante das quais ... o seu ambiente esteticamente cultivado o confronta".

Schiller afirma que o romance de Goethe nada tem de "sansculotista",5 "parecendo, muito pelo contrário, que a aristo­cracia tem a palavra" (Cavalcanti, 1993, p.73).

Tais afirmações certamente justificam-se na "mania de no­breza" de Wilhelm Meister, que pontua a narrativa em diversas ocasiões: "Três vezes felizes aqueles que, desde o nascimento, se colocam acima das camadas inferiores da humanidade; que não precisam passar, nem mesmo como hóspede em trânsito, por si­tuações que atormentam em grande parte a vida de tantos ho­mens de bem!" (Goethe, 1994, p.151).

O trecho citado faz parte do monólogo de Wilhelm Meister, quando se encontra prestes a adentrar pela primeira vez o "gran­de mundo", o espaço de atuação da aristocracia, quando, a con­vite do Conde, a trupe de atores deverá atuar no castelo. O tre­cho refere-se diretamente ao comportamento desembaraçado, seguro e elegante do Conde, da Condessa e do Barão, em compa­ração ao limitado espaço de atuação e ao comportamento aca­nhado reservado ao burguês. Trata-se portanto do mesmo tema que Meister desenvolverá na carta enviada a seu cunhado Werner, no capítulo 3 do livro 5.

Há que se ressaltar, porém, que Schiller não prescrevia para Os anos de aprendizado uma atitude efetivamente "sansculotista", revolucionária. Schiller prescreve antes, como pontifica Klaus Gille, uma "integração de Wilhelm no universo reconhecidamente

5 Advérbio derivado de "Sansculloten". Segundo Cláudia Cavalcanti, o termo francês sans-cullote eqüivale a "sem-calças". Apelido dado aos radicais re­volucionários durante a Revolução Francesa, que usavam, em vez da peça larga na parte superior e ajustada a partir do joelho, as chamadas "pantalons", calça masculina longa surgida à época da Revolução. Cláudia Cavalcanti acentua também a referência ao "famoso artigo de Goethe publicado nas Horas em maio de 1795, sob o título de Literarischer Sanscullotismus (Sans-culotismo literário), no qual analisa a situação cultural da nação, a necessi­dade da existência de um autor nacional clássico, entre outras coisas" (Cavalcanti, 1993, p.74).

não-problemático da nobreza; ele deve esquecer'' sua origem bur­guesa. Assim, para que Wilhelm Meister ascenda de sua condição social, seria preciso que o conde, por meio de seu "respeitável comportamento", o conduzisse "de sua classe" para "uma posição mais elevada" concedendo com isso "a nobreza ainda ausente" (Carta de 9.7.1796).

As expectativas de Schiller não se concretizam no transcorrer da narrativa. O tratamento dispensado aos atores, entre eles Wilhelm Meister, no castelo do Conde está longe de poder ser classificado como "distinção" (ver p.153-7 da edição brasileira). A nobreza permanece ausente mesmo quando, no fim do último livro, se anuncia a união de Natalie, irmã da Condessa, com o burguês Wilhelm. Tal união, que poderia concretizar dessa forma o que Schiller chamou de "mésalliance", ou seja, um casamento interclasses, não se realiza, e o livro termina no momento do anún­cio, transportando para um tempo futuro a efetiva concretização. Porém, nem mesmo no terceiro livro do Meister, Wilhelm Meisters Wanderjahre [Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister], essa união se concretiza, e Natalie deixa mesmo de ocupar uma po­sição de destaque, tornando-se mera referência longínqua.

Dessa forma, Schiller acaba por reconhecer em Os anos de aprendizado uma hesitação, no desenvolvimento da narrativa, no que se refere à alteração da classe social do protagonista, consi­derando, portanto, ausente um signo claro de sua ascensão.

Pode-se então traçar, com algum detalhe, os fundamentos da crítica de Friedrich Schiller ao romance de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. A partir da carta de 2 de julho, marco de uma recepção mais crítica e articulada, torna-se pos­sível identificar ao menos dois direcionamentos fundamentais, que se complementam. Por um lado, as concepções de Schiller mos­tram-se claramente orientadas por uma perspectiva estética classicista, em harmonia com suas concepções expressas nas Car­tas sobre a educação estética. Essa concepção reflete-se na ma-

6 "Poderá ele um dia esquecer o burguês, e não deverá fazê-lo, se o seu desti­no tem de desenvolver-se inteiramente belo?" (Cavalcanti, 1993, p.73).

neira como Schiller reconhece, no romance de Goethe, a existên­cia de uma "liberdade estética" configurada nas infinitas possibi­lidades de determinação reservadas ao protagonista, atrelando a obra à concepção da arte como conceito universalizante, o qual prevê a não-particularização de seu objeto; da mesma forma, quan­do identifica na composição das personagens sua relação com o todo do romance, Schiller ressalta a percepção da obra como um conjunto estético orgânico, em sintonia ainda com os parâmetros clássicos. Por outro lado, quando manifesta o desejo de ver o pro­tagonista mais bem provido de um equipamento filosófico que o resguarde do misticismo irracionalista, assim como na preocupa­ção de detectar em Os anos de aprendizado os fundamentos de um efetivo processo formador, Friedrich Schiller insere, na críti­ca contemporânea da gênese da obra, uma perspectiva racionalista, em sintonia com os princípios do Iluminismo francês e da Aufklärung alemã.

O "rompimento"

Klaus Gille pergunta-se "quando teria Goethe se apercebido do fato de que as concepções de Schiller sobre a idéia e forma da obra desviavam-se definitivamente das suas". Efetivamente, a cor­respondência entre Schiller e Goethe sobre Os anos de aprendizado é interrompida após a resposta de Goethe à carta de 8 de julho de 1796, depois do que Goethe envia o último livro à impressão sem antes oferecê-lo novamente à leitura de Schiller (o que não equivale absolutamente ao rompimento da relação epistolar entre os dois autores). O episódio marca, sem dúvida alguma, o rompimento do trabalho comum sobre Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister.

A versão do romance que chegou até nós mostra que Goethe, de maneira geral, manteve inalteradas as questões mais criticadas por Schiller. A chamada "autonomia" filosófica e social de Wilhelm Meister permanece na sugestão do crítico, sem ter sido realizada pelo autor. Também permanece ausente um sinal de distinção, que justificasse o interesse da Sociedade da Torre sobre Wilhelm Meister.

Assim, se por um lado a crítica exercida por Schiller aproxima Os anos de aprendizado, em sua concepção estética, dos mesmos

pressupostos que orientam as Cartas sobre a educação estética, ou seja, de um dos baluartes do classicismo alemão, por outro pode-se reconhecer uma divergência básica entre as opiniões gerais do crí­tico Friedrich Schiller e a obra concretizada pelo autor Goethe. Expressando de forma modelar a necessidade de uma coincidência mais extensa entre a personalidade do protagonista e as dimensões teóricas que considera desejáveis, Schiller reconhece a tensão entre sua concepção para a "moral" que deveria orientar a trajetória do protagonista e a "fábula" efetivamente levada a termo pelo autor do Meister. O reconhecimento de uma tensão desse caráter, já em um comentarista do porte de Schiller, no momento mesmo de com­posição do romance, vem reafirmar a vocação de Os anos de apren­dizado de Wilhelm Meister como obra polêmica, indócil a classifi­cações mais definitivas. Da mesma forma que se deixa impregnar pela atmosfera estética do classicismo weimariano, do qual Goethe é a figura central, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister esca­pa a uma perspectiva mais filosófica e moralizante, como aquela articulada pela crítica de Schiller. Como se verá a seguir, a crítica contemporânea à primeira publicação de Os anos de aprendizado deverá oscilar entre esses dois pólos, já identificados por Schiller; ora o romance será compreendido como obra prima da formação estética e moral, ora será combatido como obra perniciosa de um esnobe. O reconhecimento dessa tensão deverá desempenhar im­portante papel nas tentativas posteriores de se desenvolver o conceito do signo literário Bildungsroman, entendido corno a conjunção dos enunciados históricos e culturais da Bildung burguesa ao romance de Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister.

0 Meister como representante das virtudes burguesas -Christian Gottfried Körner

Integra os primórdios da crítica de Os anos de aprendizado a carta de Christian Gottfried Körner7 ao editor de Die Horen,

7 Christian Gottfried Körner (1756-1831), magistrado do Superior Tribunal de Apelação em Dresden, amigo e correspondente de Schiller. Sobre a carta

Friedrich Schiller. A carta de Körner é documento fundamental na história da crítica de Os anos de aprendizado, pois inscreve o romance de Goethe diretamente no campo semântico da Bildung burguesa, reconhecendo ali a representação de um efetivo pro­cesso de formação. Em harmonia com a concepção crítica inicia­da por Schiller em suas primeiras cartas a Goethe, o ensaio de Körner inscreve o romance na tradição da idéia da educação esté­tica e moral.

As primeiras referências de Körner ao romance que Goethe então escrevia podem ser encontradas em sua correspondência com Schiller. Percebe-se ali a opinião negativa que o restrito pú­blico tinha então daquele que se consagrara anteriormente como o "autor do Werther": "Que achas do romance de Goethe? É ele isento daquela astenia e frieza que eu tenho encontrado em al­guns de seus novos produtos?" (apud Gille, 1971, p.32).

O comentário de Körner alude certamente a uma compara­ção com Os sofrimentos do jovem Werther, romance anterior de Goethe publicado em 1774. Repita-se aqui que a popularidade de Goethe sofrera significativo decréscimo após a "febre de lei­tura" provocada pelo Werther, e que seu público em geral espe­rava a publicação de "um novo Werther", ou seja, um romance tão "eloqüente" quanto o primeiro. Tranqüilizado por Schiller, que, entusiasmado após a leitura do primeiro livro, afirma-lhe que o autor é, em Os anos de aprendizado, "sem dúvida muito mais tranqüilo e mais frio do que no Werther, porém tão verdadeiro, tão individual, tão vivo como no romance citado, e que pelo livro todo predomina 'um sentido claro e calmo, uma razão serena' ( a p u d Gi l l e , 1 9 7 1 , p . 3 3 ) , K ö r n e r passa e n t ã o a a c o m p a n h a r a p u ­

de Körner publicada em Die Horen comenta o próprio Goethe: "A carta de

Körner alegrou-me muito, tanto mais que me encontrou numa dura solidão

estética. A clareza e a liberdade com as quais ele abrange o seu assunto é

realmente admirável; ele paira sobre o todo, abrange as partes com persona­

lidade e liberdade, escolhe aqui e lá uma prova para seu julgamento, decom­

põe a obra para depois reuni-la à sua maneira e prefere deixar de lado o que

atrapalha a unidade que procura ou encontra, a só manter-se ou até mesmo

apoiar-se por completo, como habitualmente fazem os leitores." (Carta de

Goethe a Schiller de 19.11.1796, ver Cavalcanti, 1993, p.93).

blicação de cada volume. Após a leitura do último, envia uma carta a Schiller, editor da revista Die Horen, que a publica.

Ali, Körner, ao contrário de Schiller em sua última carta, re­conhece a conclusão de um processo formador do protagonista, processo esse que teria culminado na aquisição de uma "huma­nidade harmônica". Para Körner, a representação do processo de formação do protagonista é efetivamente o tema do romance, processo esse que ele reconhece acabado, completado. Körner re­fere-se à composição do romance como um equilíbrio entre as forças individuais do homem e a influência das forças exteriores, da natureza e do ambiente, sobre o desenvolvimento pessoal.

Körner expõe sua concepção do romance de Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, como a representação har­mônica do processo de determinação do homem, considerando ainda o princípio da unidade no todo:

Eu concebo a unidade do todo como a representação de uma bela natureza humana, que se aperfeiçoa gradualmente por meio da atuação conjunta de suas tendências interiores e das relações com o universo exterior. O objetivo desse aperfeiçoamento é o de um ple­no equilíbrio - harmonia com liberdade ... Quanto maior a capaci­dade pessoal de se deixar formar [Bildsamkeit], e quanto maior a capacidade formadora [bildende Kraft] do mundo circundante, tan­to mais rica a nutrição do espírito que permite tal manifestação. (Apud Gille, 1979, p.10)

E Körner, portanto, o primeiro a apontar efetivamente a exis­tência e um processo de formação totalmente realizado, culminando no desenvolvimento harmonioso das tendências do protagonista. A fortuna dessa concepção, ao longo da história da crítica de Os anos de aprendizado, é incalculável. Christian Gottfried Körner, ao lado de Karl Morgenstern, criador do termo Bildungsroman, constrói efetivamente aquilo que se vem chamando, ao longo des­te livro, de "signo literário", conjugando Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister ao campo semântico do termo Bildung (Bildsamkeit, bildende Kraft). É preciso ainda ressaltar que Karl Morgenstern, alude à crítica de Körner, ao classificar Os anos de aprendizado como Bildungsroman (Morgenstern, in Selbmann, 1988, p.66).

Em consonância com essa concepção, Körner considera Wilhelm Meister efetivamente como um protagonista dotado de energia, afirmação e independência. Considera que Wilhelm Meister possui, no mais alto grau, aquelas qualidades que não se podem obter a partir do mundo exterior, "espírito e força" (Geist und Kraft), afirmando ainda que Wilhelm Meister "pertence àquela classe de homens que em seu mundo são vocacionados para do­minar". Christian Gottfried Körner insere o romance de Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, numa perspectiva olímpica e clássica, a qual compartilha com Friedrich Schiller em suas primeiras cartas. O romance abre, portanto, as perspectivas de um mundo, "do qual se pôde esperar a formação não de um artista, de um homem de Estado, de um erudito, de um homem de bom-tom, mas sim de um exemplar do gênero humano" (apud Gille, 1971, p.10. Humboldt e Herder - o Meister como epopéia e a crítica moralizante).

A leitura idealizadora de Os anos de aprendizado realizada por Körner encontra um contraponto, já mesmo em meio ao círculo da correspondência trocada entre o autor Goethe e seus comentadores mais próximos. Inaugurando a série de comentadores do Meister que irão apontar certa "fraqueza de caráter" no protagonista, Wilhelm von Humboldt contesta as concepções defendidas por Körner. Considera traços de caráter de Wilhelm Meister

sua capacidade generalizada para se deixar determinar, destituída de quase toda determinação efetiva, sua contínua aspiração voltada para todas as direções, sem uma energia definitiva e natural orien­tada para uma única, sua inesgotável tendência para reclamar, e sua tibieza, para não dizer frieza de sentimentos, sem a qual não se poderia compreender seu comportamento após a morte de Marianne e de Mignon. (Geiger apud Gille, 1971, p.43)

Para Humboldt, a perspectiva que transforma Os anos de apren­dizado em obra única entre suas semelhantes é aquela que reflete uma visão orientada "para o mundo e para a vida", em oposição à representação da trajetória de um desenvolvimento individual: "Em minha opinião, realmente o grande mérito que faz do Meister uma obra única entre todos os seus semelhantes, é que ele [o romance

Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister] descreve o mundo e a vida exatamente como eles são, totalmente independentes de uma individualidade singularizada, e exatamente por isso abertos para uma tal individualidade" (apud Gille, 1971, p.44).

No romance de Goethe, não se descreveria o desenvolvimento interior e individual do protagonista, mas sim um quadro mais amplo, uma "reprodução do mundo". Dessa forma, Os anos de aprendizado se aproximariam, em termos de gênero, mais da epo­péia, na qual se representam os acontecimentos exteriores, do que do romance burguês, em que a tônica é a representação dos acon­tecimentos interiores.8

Em carta a Goethe de 28 de novembro de 1796, também Schiller compartilhará da opinião de Humboldt sobre o estatuto do herói Wilhelm Meister, em contraposição à opinião de Körner que vê no Meister um verdadeiro herói de romance:

As lembranças de Humboldt sobre a carta de Körner parecem não de todo insignificantes, embora ele, no que diz respeito à perso­nagem de Meister, pareça ir longe demais pelo lado oposto. Körner viu essa personagem muito como o verdadeiro herói do romance; seduziram-no o título e a velha tradição de ter em todo romance um herói. Wilhelm Meister chega a ser necessário, mas não é a figura mais importante; justamente pertence às singularidades do romance, a de não ter nem precisar de uma figura mais importante. Por ele e em torno dele acontece tudo, mas na verdade não por sua causa; justamente porque as coisas em torno dele representam e expressam energias, mas ele [representa] o ideal de formação, então ele deve ter uma relação totalmente diferente com as outras personagens da que tem o herói em outros romances. (Cavalcanti, 1993, p.96)

A primeira recepção de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, realizada no âmbito privado e intelectualizado do círculo de amigos de Goethe, encontra-se, portanto, impregnada pelas dis-

8 Ê preciso lembrar que, já no século XX, essa aproximação de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister à epopéia constituirá a base da aceitação do romance por parte de Georg Lukács. Em seu segundo estudo sobre a obra, reproduzido na edição brasileira de Os anos de aprendizado, Lukács considera o romance de Goethe como a conciliação entre o excessivo individualismo burguês, peculiar ao romance moderno, e o universo coletivo da epopéia.

cussões estéticas da época. A leitura do romance varia, assim, desde sua compreensão como obra representativa dos ideais da "educa­ção estética" (como nas primeiras cartas de Schiller), passando pela afirmação de Körner a qual reitera a representação da "formação não de um artista, de um homem de estado, de um erudito, de um homem de bom-tom, mas sim de um exemplar do gênero humano", chegando à perspectiva de Humboldt que o aproxima do universo coletivo da epopéia, apontando assim para a escassa individuali­dade do caráter do herói. É preciso ainda ressaltar que todas essas concepções originaram, cada uma delas, uma tendência crítica, que se deixa reconhecer ao longo da história da obra Os anos de apren­dizado de Wilhelm Meister bem como do conceito Bildungsroman. Delineia-se, portanto, já nas primeiras leituras do Meister, o caráter controvertido da obra e de sua conjunção ao conceito Bildungs­roman, caráter esse que se reflete permanentemente nas tentativas de se definir esse mesmo conceito a partir de características bas­tante objetivas, morfológica e tematicamente.

Ao lado da crítica que enfatizou basicamente a composição estética da obra, expressou-se também uma crítica de teor efeti­vamente moralizante, que apontou no Meister a existência de uma "moral frouxa".

É também por meio da correspondência privada que se pode ter acesso à opinião de Herder sobre Os anos de aprendizado. Em carta de 1796 à Condessa Baudissin, Herder comenta o romance de Goethe a partir de uma leitura do quarto livro do romance. Nessa carta, Herder expressa sua principal objeção ao romance, deixan­do clara sua reprovação quanto ao tipo de comportamento femi­nino ali retratado, criticando em conseqüência o envolvimento do protagonista com tais personagens:

As Marianes e Philines, toda essa confusão é-me odiosa. Eu creio que o autor também deve ter desejado torná-las desprezíveis, como talvez a seqüência do livro deverá demonstrar. Infelizmente, ele não nos deu essa seqüência, apresentando apenas a primeira parte. Mas também aqui Goethe agiu conforme sua própria vonta­de. Qualquer que seja a dita seqüência, o protagonista não poderá livrar-se de sua mácula; com que tipo de criatura ele desperdiçou seu primeiro amor! (apud Gille, 1971, p.56)

Klaus Gille caracteriza de maneira bastante clara o cerne dessa apreciação moralizante "negativa" de Os anos de aprendizado, que Herder tão bem representa. Segundo Gille (1971, p.60), o "frio distanciamento com o qual Goethe se retira para trás de suas perso­nagens, a superioridade irônica com que ele as deixa agir, são pou­co apropriados para despertar uma atividade moral no leitor". O comentário de Gille aponta para uma concepção da época, herdada do Iluminismo, que preconiza à obra literária um caráter formador, didatizante.

A crítica de Herder a Os anos de aprendizado, expressada na carta de 1796 à Condessa Baudissin, constrói-se, portanto, a partir de duas constatações básicas. A primeira refere-se à "má companhia" (schlechte Gesellschaft) em meio a qual Goethe traz seu protagonista. É uma concepção moralizante, que encontrará continuidade em Novalis, Jean Paul e mesmo em Friedrich Schlegel. O segundo aspecto importante da crítica de Herder refere-se à atribuída simpatia de Goethe pela aristocracia, já reconhecida anteriormente por Schiller quando cons­tata que no romance não há "nada de sansculotista". Böttiger refere-se à reação de Herder ainda durante a leitura do quarto livro do Meister: "Herder queixou-se dos sofismas que Goethe constrói com tanta freqüência, e também da maneira como, por meio de Lothario, que ele louva por todo o canto, sejam colocadas almofadas para sus­ter a voluntariedade dos grandes" (Böttiger apud Gille, 1971, p.62).

A referência contempla possivelmente a posição de Lothario ante os princípios da economia feudal, quando este defende que a incidência de impostos sobre as terras pertencentes também aos aristocratas deveria garantir a "segurança do direito de proprieda­de" (die Sicherheit des Besitzes) (Wilhelm Meisters Lehrjahre, 1962, p.507). Lothario defende assim o pagamento de impostos ao Es­tado como forma de assegurar privilégios "dos grandes". E possível que Herder esteja aludindo também ao comportamento leviano de Lothario ante os negócios amorosos, comportamento esse garan­tido sobretudo pela sua posição social superior.

Ainda no círculo de Weimar, encontra-se a apreciação de Charlotte von Stein, amiga de Goethe, cuja compreensão de Os anos de aprendizado parece ter sido realizada segundo a mesma crítica moralizante praticada por Herder:

Além do mais, suas mulheres ali são todas de comportamento inadequado, e onde quer que ele, aqui e ali, concretize sentimentos nobres na natureza do homem, trata logo de cobri-los com um pouco de lama, para que não reste nada de celestial na natureza humana. (apud Gille, 1971, p.64)

Pode-se depreender que as primeiras interpretações de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister refletem a ausência de "popula­ridade" de seu autor à época, traduzida menos quantitativamente do que qualitativamente. O romance de Goethe, como demonstram os testemunhos colhidos por Klaus Gille, foi efetivamente lido por um círculo próximo ao autor, até mesmo antes de sua publicação; essa leitura orientou-se, porém, por perspectivas estéticas e morais evidentemente estreitas para uma "compreensão" da obra. A crí­tica exercida por Herder, assim como por Humboldt e Charlotte von Stein, não teve sensibilidade para a "ironia com a qual Goethe trata seu protagonista." (Gille, 1971).

Os primeiros leitores do Meister construíram certamente uma expectativa de leitura que reclamava a representação de um efetivo processo de desenvolvimento do protagonista, expectativa essa que reconheceram frustrada. Daí o teor das críticas que atribuem a Goethe uma ausência de moral e de ideal.

Goethe escaparia, portanto, do enquadramento do autor na figura do "reformador do mundo" (Weltverbesserer), daquele que produz de obras destinadas a elevar e efetivamente educar seus lei­tores. Nesse aspecto, é representativo o comentário da Condessa Schimmelmann, de Nordelbingen, na Dinamarca, onde se estabe­lecera ao redor do conde e camareiro imperial Ernst Heinrich Schimmelmann uma sociedade literária cujo gosto se formara a partir do Aufklärung e da filosofia kantiana, aliada a um verda­deiro "culto" a Schiller. Sobre Goethe, a Condessa declara:

É certo que ele [Goethe] esquadrinha com olhar profundo o coração humano e raramente encontra ao redor reais virtudes - po­rém, parece-me que exibir dessa maneira a onipotência do mal e da baixeza no Homem não é tarefa de um verdadeiro reformador do mundo, o qual pode e deve conduzir-se em toda sua dignidade, (apud Gille, 1971, p.74)

O próprio Goethe reconhecerá posteriormente as conseqüên­cias da vinculação que se fez de parte de sua obra uma literatura que tivesse por função precípua educar e elevar o público leitor. Em suas memórias, referindo-se à comoção provocada pelo romance epistolar Os sofrimentos do jovem Werther (1774), Goethe ressen­te-se de que

Não se pode exigir que o público acolha intelectualmente uma obra intelectual. Não se considerou senão o fundo, o tema, como já o tinham feito meus amigos; ademais, viu-se reaparecer o velho preconceito, fundado na dignidade de uma obra impressa, de que ela deve ter uma finalidade didática. Mas a verdadeira exposição não tem tal objetivo. Não aprova nem condena: desenvolve no seu en­cadeamento próprio as ações e os sentimentos, e é dessa forma que esclarece e instrui. (Goethe, 1986, p.445, grifos da autora)

Embora o trecho citado se refira em princípio diretamente a Werther, pode-se estender sua aplicação sem sombra de dúvida a uma ordem de pensamento mais ampla. A reflexão de Goethe sobre a interpretação de sua obra é paradigmática em relação às primeiras críticas moralizantes a Os anos de aprendizado, na me­dida em que estas exigiram diretamente um posicionamento do autor que visasse ao aperfeiçoamento das relações sociais.

As primeiras críticas na imprensa

Ao lado da crítica exercida no círculo pessoal da correspondên­cia, encontram-se também as primeiras críticas públicas sobre Os anos de aprendizado. Trata-se sobretudo de resenhas publicadas em periódicos eruditos, comprometidos com "o espírito da Aufklärung, que observavam a vida literária em Weimar com grande reserva e cujos editores e colaboradores tornavam-se freqüentemente vítimas das Xenien"9 (Gille, 1971, p.79). Basicamente, essa crítica susten-

9 Reproduz-se aqui a nota explicativa de Cláudia Cavalcanti (1993, p.49) so­bre as "Xenien": "Goethe havia expressado [a Schiller) a idéia de fazer críti­cas à literatura contemporânea em forma de dísticos epigramáticos satírico-polêmicos, levado principalmente pelas crescentes e severas observações que

tou-se sobre a comparação entre Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister e Os sofrimentos do jovem Werther, reificando o visível pen­dor público em favor do segundo.10 Citem-se aqui dois exemplos: "Em vão se procura aqui a representação pulsante e o profundo sen­timento que respiram no Werther; aqui, trata-se apenas de manifes­tações isoladas, que, ao desaparecer, permitem que se vislumbre novamente o autor" (Gille, 1971, p.81).

Da mesma forma expressa-se Georg Sartorius, professor de História e de Administração Pública em Göttingen: "A expecta­tiva de se encontrar nesta nova obra algo de semelhante ao Werther encontra-se frustrada em mais de um aspecto. Meister jamais en­contrará um público tão grande como encontrou o Werther" (Gille, 1971, p.81).

Ao passo que as resenhas publicadas nos periódicos da época tinham como principal referência a comparação entre os dois ro­mances, com visível predominância a favor de Werther, o primeiro livro publicado sobre Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister parece ao contrário louvar, em Os anos de aprendizado, aquelas

fazia sobre o público leitor por causa da má aceitação que tiveram As horas [Die Horen]. Além disso, a correspondência entre os dois escritores mostra­va o ceticismo relativo às possibilidades que tinham de impor suas posições a um público mais amplo".

10 Uma das únicas vozes a se levantar contra o lugar comum da crítica que preferiu o Werther ao Meister foi a de Karl Morgenstern, o criador do termo Bildungsroman. O trecho a seguir, publicado na Neue Bibliothek der Schönen Wissenschaften [Nova Biblioteca das Belas Ciências), periódico editado em Leipzig, parece constituir resposta direta ao comentário de Georg Sartorius transcrito no corpo do texto:

"O senhor, meu amigo, e consigo muitos de meus conhecidos, espe­ram um 'pendant' aos sofrimentos de Werther. Como não o encontram, queixam-se da expectativa frustrada. Mas o que significaria esperar um Werther Segundo? O grande artista destrói a fôrma de sua magnífica obra de arte, pois é orgulhoso demais para reproduzir a mesma coisa ou mes­mo uma obra semelhante. Goethe especialmente é um Proteu, que se apraz com a eterna transformação das inúmeras e diferentes formas, do mesmo modo que a Natureza em suas criações. Esta não se limita a um determinado estilo, ao compor suas obras. Assim, o mais perfeito estilo do gênio seria não possuir estilo algum, mas sim representar o objeto em todas as suas particularidades" (Morgenstern apud Gille, 1971, p.83).

qualidades certamente ausentes em seu predecessor. A primeira crítica publicada em livro sobre o Meister é a obra de Daniel Jenisch, Ueber die hervorstechendsten Eigenthümlichkeiten von Meisters Lehrjahren; oder über das, wodurch dieser Raman ein Werk von Götbens Hand ist [Sobre as mais evidentes qualidades de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister; ou, sobre aquilo que faz deste romance uma obra das mãos de Goethe], de 1797.

Jenisch, pregador, poeta e escritor berlinense de pouca ex­pressão e freqüente alvo de zombaria dos autores das Xênias e das Horas, louva em sua obra as qualidades pequeno-burguesas e conciliatórias que considera presentes no romance de Goethe, como o casamento burguês, o papel da mulher na constituição da sociedade, a função do trabalho.

A interpretação de Jenisch, que se pode considerar, no mí­nimo, ingênua, tem sua origem explicada por mecanismos sociais vigentes à época da publicação de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. A emergente burguesia mercantil projeta seus anseios e ideais sobre uma forma narrativa que os representasse de maneira "sublime", por sua vez também idealizada. Ao situar o protagonista de Os anos de aprendizado a meio caminho entre o gênio e o herói burguês, Daniel Jenisch empresta grandiosidade ao estreito círculo de atuação ao qual o burguês está destinado. Considera o caráter mediano de Wilhelm como "a virtude má­xima da tranqüila vida privada", "a imagem da pura humanidade". Acrescenta ainda que, estando Wilhelm a meio caminho do gênio e do herói, "ele age, na balança da dignidade moral, com maior grandiosidade do que ambos". Assim, a leitura de Jenisch, embo­ra ingênua, eleva o burguês da posição acanhada que lhe é reser­vada no mundo social à qualidade de herói romanesco, projetando assim os ideais coletivos da própria burguesia retratada na obra. Para Wilhelm Vosskamp, o romance de Goethe "oferece a possi­bilidade de identificação e de projeto para um público leitor mé­dio, que se reconhece nas personagens e nas constelações de personagens do romance. A estreita conjunção entre a produ­ção e o consumo de literatura conflui, além disso, para a consti­tuição de uma nova consistência estética do romance no conjunto da narrativa do século XVIII" (Vosskamp, 1986, p.338).

O comentário de Vosskamp esclarece não apenas a relação que se institui entre o romance de Goethe e uma interpretação que se pode chamar de conciliatória, como a realizada por Jenisch, como também salienta a relação entre o processo de emancipação esté­tica do romance como gênero e o processo de auto-reflexão ensejado por um público leitor oriundo da burguesia mercantil.

Acompanhando-se, portanto, a história crítica de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister desde as suas primeiras manifes­tações no âmbito privado até a publicação do primeiro livro que trata especificamente do romance de Goethe, obtém-se um tra­çado crítico que projeta as vertentes históricas e discursivas que colaboraram para a conjunção das partes que formam o signo li­terário Bildungsroman, ao mesmo tempo em que já reflete a tra­jetória polêmica desse mesmo signo. Em um mesmo período de tempo e espaço cultural, constroem-se opiniões como as do pri­meiro Schiller, que vê no romance de Goethe um digno exemplar das idéias estéticas do classicismo weimariano, de acordo com suas próprias teorias estéticas; o mesmo Schiller, meses mais tarde, irá apontar no Meister deficiências no caráter do protagonista em re­lação à perfectibilidade de seu desenvolvimento estético e filosó­fico; lado a lado com Schiller, estabeleceu-se a opinião de Christian Gottfried Körner, que considera efetivamente representado no romance um processo formador perfeito, acabado. Alinham-se ainda as opiniões do público culto e restrito que constituiu a pri­meira camada de leitores de Os anos de aprendizado, cujas opiniões assinalam uma fraqueza moral naquele que deveria ser o prota­gonista de um processo de formação, ao lado da interpretação burguesa conciliatória de Daniel Jenisch, no primeiro livro sobre o Meister.

A CRÍTICA PRIMEIRO-ROMÂNTICA A OS ANOS DE

APRENDIZADO DE WILHELM MEISTER -

FRIEDRICH SCHLEGEL E NOVALIS

A crítica exercida pelos primeiros românticos Friedrich Schlegel e Novalis sobre Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister

é peça relevante para a história do Bildungsroman, assim como para a concepção da "nova literatura" que então começava a se firmar, contendo já princípios estéticos fundamentais do chama­do primeiro romantismo.

Em relação à tradição crítica do romance de Goethe, os traba­lhos de Schlegel e Novalis são fundamentais porque apontam, em meio à recepção diversificada de Os anos de aprendizado, a oscilação existente entre o cânone e a ironia, entre uma leitura harmoniosa e conciliatória e uma outra leitura, moderna e "problemática".

Realizada e veiculada em outro círculo que não aquele dos amigos do autor e seus comentadores mais imediatos, a crítica por Schlegel e Novalis sinaliza um deslocamento em relação a uma compreensão do Meister como obra harmônica e concilia­tória, como difundida por Daniel Jenisch, ou mesmo em relação à compreensão predominantemente estética e classicista por Friedrich Schiller. É preciso ainda acrescentar que, tanto no en­saio de Schlegel quanto nas anotações de Novalis sobre o Meister, a questão da "formação" ultrapassa a perspectiva dos primeiros críticos do romance que viram em Os anos de aprendizado um conteúdo programático da formação burguesa que se estendia mesmo em direção ao leitor. A Bildung está efetivamente presente no texto dos dois primeiros românticos sobre o Meister, porém não imediatamente relacionada a um conteúdo pessoal e programá­tico da formação do indivíduo. Em Schlegel e Novalis, trata-se antes da formação mesmo de um novo paradigma estético-científico-filosófico, da qual o romance de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister é um indicador de caminhos.

Dessa forma, a leitura de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister pelos primeiros românticos Schlegel e Novalis determina novas possibilidades para a pesquisa sobre o romance de Goethe como parte integrante do signo literário Bildungsroman.

A concepção poética de Friedrich Schlegel

A resenha de Friedrich Schlegel sobre Os anos de aprendiza­do de Wilhelm Meister, Über Goethes Meister [Sobre o Meister de Goethe] (1798) integra, ao lado de seu ensaio teórico Gespräch

über Poesie [Conversa sobre poesia], dos Fragmente e dos Hymnen an die Nacht [Hinos à noite], de Novalis, o cume da produção trazida a público no Athenäum, periódico fundado por Friedrich e seu irmão August Wilhelm Schlegel.

O Übermeister, como assim se referiu ao ensaio o próprio Schlegel, traz em si princípios de uma teoria literária a qual Schlegel começava a sistematizar. Princípio norteador dessa teoria foi o reco­nhecimento da diferenciação entre Antike e Moderne, entre a Anti­güidade clássica, modelo até então perseguido como perfeição, e a disposição moderna e "característica", "interessante" e "em progres­são", como Schlegel irá depois caracterizar a "nova literatura".

O jovem Schlegel, discípulo e admirador de Winckelmann, nutria admiração pela arte da Antigüidade clássica e respeito pe­las normas de criação artística dela decorrentes. (Hans Eichner identifica, nessa admiração nutrida pelo século XVIII em relação aos ideais da Antigüidade, uma espécie de utopia voltada para o passado, "pela qual se cunhou um contrapeso espiritual e intelec­tual à estreiteza e monotonia da vida burguesa".)

O ensaio intitulado Ueber das Stadium der griechischen Poesie [Do estudo da poesia grega] (1795) foi originalmente concebido como prefácio e base teórica de uma história da literatura. Ali se anuncia o estudo da poesia antiga grega como o único caminho a ser trilhado pela poesia moderna, a fim de se libertar de suas ten­dências errôneas e de poder elevar-se em direção ao verdadeiro Belo.

Nesse estudo, Friedrich Schlegel opõe duas categorias poéti­cas, aquela produzida pela civilização natural ("natürliche" Civilisation - a Antigüidade greco-romana) e a civilização artificial ("künstliche").¹¹ A civilização da Antigüidade produziu uma "poe­sia natural", na medida em que esta se submete ao ciclo da infância, juventude, idade viril e senilidade, ao passo que a nova civilização cria, a partir dos artifícios da razão,'2 uma "poesia artística", que não se submete, portanto, ao ciclo natural de evolução.

11 A tradução de Willi Bolle, em Fundadores da Modernidade, é "poesia artísti­ca", em contraposição a "poesia natural".

12 Entende-se aqui "razão" (no original, Verstand) não no sentido iluminista pleno; é antes provável que designe a capacidade humana de fabricação, de

Para o Schlegel do Studiumaufsatz, a "poesia artística" sofre de uma heterogeneidade descaracterizante. Descreve a poesia da nova civilização como um "armazém estético" onde se alinham produtos poéticos variados e de gosto duvidoso:

Como em um armazém estético, encontram-se aqui lado a lado poesia popular e poesia de bom-tom, e mesmo o metafísico procu­ra, não sem sucesso, seu próprio sortimento; epopéias nórdicas ou cristãs para os amigos do norte e da cristandade; histórias fantasma­góricas para os apreciadores dos horrores místicos, e odes iroquesas ou canibais para os apreciadores de carne humana... (Schlegel, 1988, p-222)

Schlegel considera então que a existência de uma hetero­geneidade poética, característica da "arte artificial", desfaz o ciclo natural do desenvolvimento da civilização (e da arte), sendo por­tanto compreendida de forma negativa; três anos depois, Schlegel escreve uma crítica laudatória de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, obra em que o particular e o "interessante", o subjetivo e o localizado configuram e sustentam a narrativa, distanciando-se portanto da almejada objetividade clássica. Assim, o outrora "discí­pulo de Winckelmann" redireciona seus posicionamentos estéticos; em lugar de uma rigorosa objetividade clássica, alheia à hete­rogeneidade temática e genérica, Schlegel desenvolve uma poética "moderna",13 da qual Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister é significativa ilustração.

produção de artefatos, de indústria, que se oporia ao estado "natural" das civilizações antigas.

13 René Welleck define o conceito de poesia moderna em Schlegel: "A poesia moderna é artificial, 'interessante' (isto é, não desinteressada, envolta nos fins pessoais do autor), 'característica', 'amaneirada' (no sentido que dava Goethe à palavra, o qual contrasta a maneira subjetiva com o estilo objetivo), impura na mistura e confusão de gêneros, impura na sua mescla do didático e filosófico, impura por incluir até mesmo o feio, o monstruoso e anárqui­co, e em sua rejeição a leis. A literatura moderna sente o 'terrível mas infru­tífero desejo de espalhar-se até o infinito, a sede ardente de penetrar o indi­vidual". [das furchtbare und doch fruchtlose Verlangen sich ins Unendliche zu verbreiten; der heiBe Durst das Einzelne zu durchdringen] (citado na reedição de Jakob Minor, Friedrich Schlegel 1794-1802: seine prosaischen Jugendschriften, Welleck, 1967, p.308).

Eichner localiza, a partir de 1797, o ponto de inflexão na concepção estética desenvolvida por Schlegel, configurada por uma ampliação do horizonte (quase que) estritamente classicista em direção à sua obra vinculada ao romantismo. O teórico que pre­gava a estrita separação entre "poesia" e "ciência", para quem a poesia não deveria "filosofar" e a filosofia por sua vez não deve­ria "poetizar", passa a conclamar a união de "Goethe e Fichte", da arte e da ciência, e, em lugar da clássica separação dos gêne­ros, prega a concepção de uma "poesia mista" (Mischgedicht). O romance encontra-se no cerne dessa nova poética. (Em seu Studiumaufsatz, entendido aqui como a defesa dos ideais do classicismo grego, apontava já para as possibilidades da poesia universal progressiva, concepção a ser desenvolvida pelo Schlegel romântico.)

Os fragmentos publicados no Lyceum em 1797 veiculam ma-nifestadamente a oposição a uma concepção estritamente clássica:

Todos os gêneros poéticos clássicos em seu purismo rigoroso são agora ridículos. (Schlegel, 1991, p.36)

Os antigos não são nem os judeus, nem os cristãos, nem os ingleses da poesia. Eles não são um povo aleatoriamente escolhido por Deus para o exercício da arte, tampouco são detentores do credo exclusivo do Belo; não possuem também um monopólio poé­tico. (Ibidem, 1988, Lyceums Fragmente 91)

Toda a história da poesia moderna é um comentário contínuo do breve texto da filosofia: toda arte deve tornar-se ciência, e toda ciência deve tornar-se arte; a poesia e a filosofia devem tornar-se uma só. (Ibidem, 1991, p.37)

Essa reorientação estética de Friedrich Schlegel teria origem, segundo seu estudioso Hans Eichner, em acontecimentos e con­flitos pessoais. O Schlegel da juventude queixara-se, em cartas íntimas, de sua falta de harmonia pessoal, do predomínio destrutivo "da racionalidade artificial" sobre seu estado de espíri­to. Essa mesma fragmentação ele descobriu na poesia moderna, identificando-se com o Hamlet de Shakespeare, cuja queda de­veu-se à "desarmonia", "à relação equivocada e desmedida entre

a atividade do espírito e a atividade prática" (Ibidem, 1988, p.248). Para Schlegel, Hamlet constitui ponto alto da poesia moderna, na qual ele identificara também a perfeita ilustração da tendência ao "filosófico", ao "interessante".

Encontra-se então preparado o terreno para o trabalho sobre o Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, no qual, como se sabe, uma encenação do Hamlet constitui ponto de crise (ou de solução de crise!) da trajetória de Wilhelm Meister.

A poesia romântica moderna como pressuposto teórico para a crítica do Meister

Ao detectar a emergência de uma estética nova, Friedrich Schlegel identificou-a a uma corrente principal, derivada da opo­sição entre Antigüidade e Modernidade. Essa literatura, contida no "essencialmente moderno" (Wesentliches-Modernes) carecia de um conceito que abarcasse, em sua amplitude, a emergente complexidade estética. Os adjetivos "característico", "interes­sante", "didático", entre outros, já haviam sido empregados por Schlegel no Studiumaufsatz como indicativos da literatura mais recente.

O nome para a literatura "essencialmente moderna", pelo qual se decidiu Schlegel foi "poesia romântica" [romantische Poesie], e a antítese hoje tão manifesta entre clássico/romântico deve a tal deci­são sua existência. (Eichner, 1985, p.33)

O adjetivo "romântico", em voga nos circuitos estéticos ao final do século XVIII, comportava conotações variadas (cf. Eichner, 1972). Para este trabalho interessa mais especificamente um sig­nificado que hoje se perdeu e que se deixa recuperar amiúde na leitura dos manuscritos de Schlegel especialmente entre os anos 1797 e 1800. Assim como "épico", "lírico" e "dramático" refe­rem-se aos gêneros epopéia, lírico e drama, o adjetivo "românti­co" referia-se, para Schlegel e seus contemporâneos, ao gênero do romance. Não se trata, como frisa Hans Eichner em seu prefá-

cio a Ueber Wilhelm Meister, de um sentido excludente das outras possibilidades, mas de uma acepção a mais, passível de convivên­cia com todas as outras acepções suas contemporâneas (como "ro­mântico" em oposição ao prosaico, expressão do fantástico e do exótico, ou mesmo no sentido de "estória de amor", ou ainda na acepção que aponta para a língua e literatura românica popular da Idade Média e da Renascença).

Para Schlegel, o romance constituiu o "fenômeno central" da poesia "essencialmente moderna", à qual ele passa a denominar, por isso mesmo, "romântica". Constrói-se assim a seqüência cro­nológica das formas estéticas mais significativas para o mundo ocidental: "Três gêneros poéticos predominantes 1, tragédia en­tre os gregos 2, sátira entre os romanos 3, romance entre os mo­dernos" (Schlegel, 1988, p.88, v.XVI).

Embora o termo "romance" caracterizasse sobretudo, ao fi­nal do século XVIII, o mesmo tipo de narrativa em prosa mais ou menos realista como ainda hoje o entendemos, a amplitude de significação era bem maior, assim como ocorre com o adjetivo "romântico". A época de Schlegel, o termo podia abarcar desde o gênero relativamente jovem e especialmente fluente na Inglaterra da segunda metade do século como também Faerie Queene de Spenser, Niebelungenlied, Orlando Furioso de Ariosto, ou mesmo as peças de Shakespeare, que para Herder constituíam "romances filosóficos".

O termo "romântico" possuía então, à época de Schlegel (1991, p.39), uma carga semântica que possibilitara um amplo espectro de conotações, adequando-se à caracterização de uma literatura moderna que se opusesse especialmente à contenção e orientação para a hegemonia dos modelos clássicos. "Românti­co" qualifica-se então como expressão do "essencialmente mo­derno", do romanesco, do poético e do prosaico. Para Schlegel, o conceito deve conter em si todos os "subgêneros" possíveis, o dra­ma e o épico, a poesia e a filosofia, o fantástico, o sentimental; a crítica e a filosofia devem unir-se à poesia, constituindo assim a "poesia universal", em clara oposição aos ideais puristas de seus escritos anteriores.

O romance, segundo a acepção de Schlegel como gênero ca­

paz de abarcar em si todos os assuntos e formas possíveis, não

pode constituir uma especificidade histórica, mas sim "uma tare­

fa sempre inacabada", um ideal, do qual é possível aproximar-se,

mas nunca realizá-lo: o romance é a forma progressiva par

excellence, e a poesia romântica, como o famoso fragmento 116

da Athenäum proclama, "poesia progressiva universal".

116. A poesia romântica é uma poesia universal progressiva. Ela se destina não apenas a reunir todos os gêneros separados da poesia e pôr a poesia em contato com a filosofia e a retórica. Ela quer, e também deve, ora misturar, ora fundir poesia e prosa, genialidade e crítica, poesia artística e poesia natural, tornar a poesia viva e soci­ável, e a vida e a sociedade poéticas, poetizar o chiste e encher e saturar as forma artísticas com todo o tipo de substância sólida para a formação, animando-as com as pulsações do humor. Só a poesia pode, como a epopéia, se tomar o espelho de um mundo inteiro em volta, uma imagem da época ... Ela é capaz da formação mais apri­morada e universal, não só de dentro para fora, como também de fora para dentro. Para cada totalidade que seus produtos devem constituir, ela organiza uma totalidade semelhante em todas as suas partes, abrindo desse modo a perspectiva para uma classicidade cres­cente sem limites. A poesia romântica é, entre as artes, o que o chiste é na filosofia, e o que a sociedade, as relações, o amor e a amizade são na vida. Outros gêneros poéticos já estão terminados, podendo agora ser inteiramente analisados. A poesia romântica ainda está se formando; e é esta a sua verdadeira essência, o eterno devir, sem jamais se dar por acabada. Nenhuma crítica pode esgotá-la, e apenas uma crítica divinatória poderia ousar classificar seu ideal. Só ela é infinita, assim como só ela é livre; e ela reconhece como sua primeira lei que a vontade do poeta não deve submeter-se a lei ne­nhuma. O gênero da poesia romântica é o único que é mais que um gênero e que é, por assim dizer, a própria arte poética: pois, num certo sentido, toda poesia é ou deve ser romântica. (1991, p.39)

O fragmento 116 foi publicado na mesma edição da Athenäum

em que Schlegel trouxe a público sua resenha sobre o Meister.

Uma vez que o gênero "romance" detém a posição central em sua

teoria poética, é natural que Schlegel se ocupasse do romance

"mais significativo e com maior poder gerador de influência"

(Eichner, 1985, p.39) dos anos 90.

A resenha de Friedrich Schlegel sobre Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister

O "Übermeister" veio a público na segunda edição do Athenäum, em junho de 1798, projetada para ser a primeira parte de um tra­balho cuja continuação, porém, nunca foi escrita.

Friedrich Gundolf classifica o ensaio de Schlegel como "a melhor crítica existente em língua alemã", enquanto Jakob Steiner o inclui entre os "mais eminentes documentos produzidos pelo espírito crítico alemão".

A confrontação inicial com o texto de Schlegel pode levar, porém, o leitor (mesmo o mais sensível, e talvez especialmente este) a uma certa perplexidade e confusão em seus horizontes de expectativa. Já que, se Schlegel elegera no romance, ao lado do fragmento, o veículo essencial da poesia moderna universal pro­gressiva, se o fragmento 216 da revista Athenäum eleva o Meister de Goethe, ao lado da Revolução Francesa e da Doutrina das ci­ências de Fichte, à condição de figurar entre as "maiores tendên­cias da época", e se o próprio ensaio de Schlegel é considerado como crítica modelar, como encaixar um tom algo incerto no mais das vezes em relação ao seu personagem principal, apontando mesmo que este é mera pilastra na arquitetura do romance, en­quanto "a abóbada que aspira ao céu", o homem "completo" cujo "espírito encontra-se em contínuo progresso" (Schlegel, 1956, p.282) configura-se em outro, em Lothario, a "figura humana mais interessante do romance"?

Uma das linhas condutoras do ensaio de Schlegel é a compre­ensão de que Wilhelm Meister não é a personagem principal. Enquanto a mesma idéia, em Schiller, é compreendida como de­corrência do fato de que Os anos de aprendizado não necessita de ter um protagonista, em Schlegel (1956, p.282) existe a clara afirmação de que Meister é personagem secundária: "Lothario, o Abade e o Tio são, em certa medida, e cada um a seu modo, o próprio espírito do livro; os outros são apenas caracteres sem autonomia".

A leitura de Über Goethes Meister transita por um discurso crítico sem dúvida laudatório, em que o elogio à obra, entretan-

to, não se estende sempre e necessariamente ao elogio do represen­

tado; o parágrafo introdutório fornece-nos já um breve exemplo

de como essa dicção sutil irá impor-se por todo o ensaio, tornan­

do-o talvez por isso mesmo "exemplar":

Sem pretensão e sem alarde, como se dá a formação silenciosa de um espírito sequioso, e da mesma forma como o mundo em transformação se eleva suavemente a partir de seu interior, assim começa essa história clara. Aqui não acontece nada fora do comum e não se fala de assuntos extraordinários, tampouco são grandiosas ou espetaculares as personagens que se adiantam: uma velha esper­ta, que acima de tudo considera as vantagens, e que concede a prece­dência ao pretendente mais rico; uma jovem que, nem bem se livra das tramas dessa perigosa conselheira, entrega-se impetuosamente ao amante; um rapaz puro, que consagra a uma atriz a bela chama de seu primeiro amor. (Ibidem, p.263, grifo da autora)

As linhas mestras da crítica de Schlegel ao Meister são sobretu­

do o reconhecimento da presença da ironia14 do próprio enunciado

14 São grandes as dificuldades para se delimitar um conceito definitivo da iro­nia literária. No âmbito deste capítulo, acreditamos não se tratar nem da chamada "ironia retórica, socrática, ou mesmo da chamada 'ironia românti­ca', cujos recursos concorrem para a 'destruição deliberada da ilusão'" como em Tieck e Brentano, E. T. A. Hoffmann e Heine. A ironia que Friedrich Schlegel reconhece na obra de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister e que ao mesmo tempo emprega em seu próprio ensaio sobre o romance, é reconhecível como o princípio da união dos contrários: "a per­cepção de uma contradição irreconciliável entre o não-contingente e o con­tingente, da impossibilidade e necessidade de uma comunicação perfeita" (das Gefühl von den unauflöslichen Widerstreit des Unbedingten und des Bedingten, der Unmöglichkeit und Nothwendigkeit einer vollständigen Mittheilung) (Lyceums-Fragment 108, Das Fischer Lexikon 2/1 p.306). Se­gundo a formulação de René Welleck (1967, p.13), "a ironia é, para Schlegel, o reconhecimento do fato de ser o mundo, em sua essência, paradoxal, e de que apenas uma atitude ambivalente pode apreender a sua totalidade con­traditória. Schlegel considera a ironia como a luta entre o absoluto e o rela­tivo [des Unbedingten und des Bedingten], a consciência simultânea da im­possibilidade e a necessidade de uma descrição completa da realidade [der Unmöglichkeit und Nothwendigkeit einer vollständigen Mittheilung]" (são meus os grifos e colchetes inseridos na tradução portuguesa de Lívio Xavier para o mesmo trecho do fragmento 108 acima transcrito em sua totalidade). Essa atitude ambivalente irá permitir um distanciamento e uma objetividade

em relação ao objeto da narrativa, e a percepção da organicidade que articula as partes do todo. Logo no início do ensaio, Schlegel (p.267-8) expressa uma recomendação de leitura válida não apenas para a obra em questão, mas com certeza a ela aludindo:

É bom e necessário entregar-se inteiramente ao efeito de uma obra, permitir ao artista que faça conosco o que lhe aprouver, dei­xando que a reflexão confirme o sentimento apenas em determina­dos pontos singulares, elevando-os ao pensamento e, onde ainda persistir a dúvida ou a controvérsia, decida e complete o sentido. Isso é o primordial e o mais importante ... É preciso que nos eleve­mos acima de nossas preferências e que sejamos capazes de destruir em pensamento aquilo que veneramos. (Grifo da autora)

O parágrafo citado é exemplar quanto à dicção predominan­te por todo o texto; enquanto as primeiras linhas sinalizam para o predomínio da fruição quase que intuitiva, não reflexiva, as úl­timas afirmam a necessidade de uma postura crítica ante o texto, a qual só se consegue pela isenção.

Logo, o próprio ensaio crítico de Schlegel sobre o Meister mostra-se também um exemplo da aplicação da ironia que o au­tor reconhece presente também em seu objeto, configurando as­sim um exemplo típico da crítica romântica, "que é menos um julgamento da obra de arte, do que o método para seu aperfeiçoa­mento" (Bolle, in: Chiampi, 1991, p.37, nota 19).

Schlegel (1956, p.280) prossegue afirmando que a tarefa prin­cipal proposta já no título do romance de Goethe não se teria completado. Em Os anos de aprendizado, não se cuidou exata­mente da formação de Wilhelm Meister: "Nós vemos também que estes anos de aprendizado querem e podem antes formar qual-

em relação ao objeto da crítica, bem como o distanciamento do artista em relação à sua própria criação. A ironia, autoconsciente, exige que o artista se erga cima do seu "ponto mais alto" (sich selbst über ihr Höchstes zu erheben) (apud Welleck, nota 48, p.308, citando a Edição Minor, 2, p.195). É essa superioridade e objetividade que F. Schlegel encontrará no Meister de Goethe, o qual "parece sorrir das alturas de seu espírito para a sua obra-prima" (auf sein Meisterwerk von der Höhe seines Geistes herabzulächeln scheint) (apud Welleck, op. cit., nota 51, citando a Ed. Minor, 2, p.51).

quer outro que não o próprio Wilhelm em um hábil artista ou em um cidadão capaz" (Grifo da autora).

Ao negar a existência de um processo individual de formação para Wilhelm Meister, Schlegel amplia entretanto o espectro des­sa Bildung em direção à natureza e à vida. Assim, embora Wilhelm Meister não adquira mestria, os anos de aprendizado são "os anos de aprendizado para a arte da vida" (Lebenskunst).

Ao deslocar a Bildung do âmbito mais limitado da formação pessoal, a crítica de Schlegel ao Meister remete certamente à sua concepção de poesia romântica, de "poesia universal progressi­va" expressada no fragmento 116 da revista Athenäum.

Existem, efetivamente, pontos de contato entre a concepção de "poesia moderna universal-progressiva" exposta no fragmento e a resenha sobre o Meister. No texto do fragmento, Schlegel (p.264) atribui à poesia romântica e moderna a qualidade da correspon­dência entre a totalidade da unidade e uma totalidade semelhante "em cada uma de suas partes"; ou seja, Schlegel reconhece uma organicidade na poesia romântica que se repete também em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Ali, o "tipo de represen­tação" permite que "também o mais limitado pareça ser simulta­neamente um Todo completamente independente em si mesmo, e ainda assim um outro aspecto, uma nova alteração da natureza universal e, a despeito de todas as transformações, ainda uma na­tureza do homem, uma pequena parte do mundo inesgotável".

Em ambos os textos, Schlegel reconhece a organicidade como qualidade, como forma de recuperar, no fragmentário, a inde-pendênncia do Todo. Os dois textos também compartilham da atri­buição de poeticidade a temas por definição não poéticos: arte e ciência, filosofia e temas do cotidiano, tudo isso a poesia universal progressiva engloba e torna em material poético, assim como no Meister a liberalidade do gênero romance permitiu que se tratasse de temas e personagens "nada extraordinários" e apoéticos, como a "velha esperta" Barbara e a vulnerável e leviana Mariane, bem como dos assuntos relativos à economia mercantil.

Schlegel afirma, ainda no texto do fragmento, que a poesia universal progressiva "é capaz da formação mais aprimorada e mais universal",' aproximando assim o tema da Bildung de um

campo semântico mais amplo e menos datado pelo anseio da bur­guesia por uma formação pessoal e universal, como no romance de Goethe. A Bildung tem, no texto do fragmento, um sentido de formação de um novo paradigma poético e intelectual, expressa­do sob o termo de "poesia universal progressiva".

É possível ainda depreender do texto do fragmento 116 mais uma possível relação com o romance de Goethe; se se compreen­der o processo de formação de Wilhelm Meister não como um pro­cesso acabado, mas sim como uma trajetória ainda sempre renova­da a caminho de um destino, de uma "formação", pode-se interpretá-lo sob o tema do "eterno devir", da perfectibilidade inacabada que permanece como ideal. O comentário de Hans Eichner (1985, p.38) sobre a concepção do romance como gênero em Schlegel poderia assim esclarecer também a natureza do proces­so de formação sofrido por Wilhelm Meister: "Entretanto, como uma obra que abrangesse todos os temas possíveis está além da capacidade humana, assim também o romance perfeito não pode ser uma circunstância histórica, mas sim uma tarefa interminável, um ideal, do qual é possível se aproximar, mas nunca realizá-lo ".

Ao mesmo tempo, porém, que Friedrich Schlegel (1988, v.XVI, p.30ss.) reconheceu, no romance de Goethe, uma ilustra­ção da "revolução estética" a que já aludira em seus escritos ante­riores, manteve suas reservas sobretudo quanto à "falta de reli­gião do autor", perceptível na obra em questão. Pois "a poesia é a linguagem da religião e dos deuses. Esta é a sua mais real defini­ção ... A perfeição em si mesma apenas enobrece o objeto belo em direção a uma beleza autônoma; e somente a qualidade divi­na dá a ele um valor absoluto, infinito".

É interessante ainda notar que o ensaio de Schlegel, escrito "sob encomenda" para ser publicado no periódico Athenäum, con­trasta vivamente com suas anotações pessoais nos chamados "ca­dernos" recuperados pelos pesquisadores. Hans Eichner coletou alguns exemplos, nos quais se pode perceber a alusão ao Meister:

A má idéia que Goethe tem do romance, [de] que a intriga analítica faça parte essencial do conjunto, que o protagonista tenha que ser um "bobalhão pedante" [Schwachmathikus], que o Tom Jones seja um bom romance... (Ibidem, v. XVI, p.94)

Ou ainda:

Um romance perfeito deveria ser uma obra muito mais român­tica do que o Wilhelm Meister; mais moderno e mais antigo, mais filosófico e mais ético e mais poético, mais político, mais liberal, mais universal, mais social. (Ibidem, p.l08)

O Meister por isso mesmo incompleto, porque não é totalmen­te místico. (Schlegel, 1988, v. XVI, p.114)

Todo romance completo deve ser obsceno; deve dar também o absoluto da luxúria e da sensualidade - no Meister não há nem luxúria nem cristandade suficiente para um romance, (p.133)

Estabelecem-se, portanto, dois registros diferentes. O Schlegel da Athenäum, autor de Über Wilhelm Meister, ensaio no qual convi­vem o elogio expresso ao romance de Goethe como obra estetica­mente revolucionária com laivos da própria ironia, instrumental crítico reconhecido por Schlegel na obra comentada e utilizado no ensaio, e o autor das anotações pessoais, as cartas, nas quais uma reprovação mais concreta se dirige sobretudo à ausência de misticismo, de religiosidade (Goethe ist ohne Wort Gottes [A Goethe falta-lhe a palavra de Deus]15), componente essencial, na visão de Schlegel, para toda obra universal, "romântica".

Essa oscilação entre o elogio do romance de Goethe como indicador de caminhos e sua rejeição pode ser observada pela com­paração de duas versões do famoso "fragmento das tendências". Publicado no Athenäum em 1798, na mesma edição que trouxe a público a resenha sobre o Meister, o fragmento 216 eleva o ro­mance de Goethe à condição de figurar entre as "maiores tendên­cias da época":

A Revolução Francesa, a Doutrina das ciências de Fichte e o Meister de Goethe são as maiores tendências da época. Quem se sentir provocado por esta constelação, quem não considerar im­portante uma revolução que não seja ruidosa e material, ainda não

15 Anotação de 1798, apud Eichner, 1985, 58.

atingiu a perspectiva elevada e ampla da história da humanidade. (Schlegel, 1991, p.40)

A versão original, datada de 1797 e recuperada na edição crí­tica de 1988, declara:

As três maiores tendências de nossa época são a Doutrina das ciências, Wilhelm Meister e a Revolução Francesa. Entretanto, to­dos os três são apenas tendências, sem concretização mais profun­da. (Ibidem, 1988, v.XVIH, p.85)

Completa o sentido da versão original do fragmento o signi­ficado do termo "tendências" no "Dialeto dos Fragmentos", como esclarece Schlegel (1988, v.II, p.367) no ensaio Über die Unver-stándlichkeit [Da ininteligibilidade], de 1800: "tudo mais é ape­nas tendência, a época é a época das tendências".

A relação entre crítico e objeto da crítica é permeada, por­tanto, por um jogo sutil. Ao mesmo tempo em que Schlegel elo­gia o romance de Goethe pela sua estrutura orgânica, pela sua sincronia com o advento de uma poética moderna e universal, expressa sobretudo por meio do romance como gênero, adverte também para o descompasso entre entre "intenção pressuposta" e obra, entre uma tradição harmônica que já começara a firmar-se e a percepção de um viés que desloca o Meister para além dessa tradição, inscrevendo-o no universo da polêmica.

Decorridos apenas três anos da publicação do romance, a crí­tica de Schlegel estendeu os limites da primeira interpretação do Meister como representação de um processo de formação harmo­nioso e individual, em direção a uma poética moderna e dialógica, na medida em que os pressupostos da formação se alargam para compreender o caráter progressivo e dinâmico que Schlegel sou­be reconhecer em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister.

Meister como "Candide contra a poesia"

A tarefa de publicar uma crítica ao Meister no Athenäum fora primeiramente um desejo de Novalis, que, entretanto, não levou o projeto adiante. Mesmo assim, seus fragmentos esparsos, bem como

seu diário, dão prova de uma intensa ocupação com o romance de Goethe, à mesma época em que Schlegel compôs sua resenha.

Sob o título Zu Goethes 'Wilhelm Meister' [Sobre o 'Wilhelm Meister' de Goethe] encontram-se alinhadas suas reflexões pri­meiramente sobre o autor, que refletem a posição ambígua dos primeiros românticos em relação a Goethe, perceptível também em Schlegel: "Goethe é poeta de grande senso prático. Ele é em suas obras - como os ingleses em seu comércio - extremamente simples, agradável, cômodo e duradouro ... Ele tem, como os ingleses, um gosto estético naturalmente mercantil e um gosto nobre adquirido pelo intelecto" (Novalis, 1953b, p.486).

Novalis aponta já para a crítica ao prosaísmo mercantilista que ele detecta no romance de Goethe e que irá conduzir sua re­flexão sobre a obra. A relação ambígua com o autor e sua obra Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister está presente também no texto de Novalis, mais evidente até do que em Schlegel. Ao leitor contemporâneo apresenta-se a tarefa de interpretação da crítica, mais uma vez pontuada pela ironia (aqui, puramente re­tórica), havendo, portanto, que se distinguir entre essa e o tam­bém presente elogio da obra e do autor.

É importante notar que as concepções de Novalis sobre Goethe identificam-se com as do Schlegel "pós-classicista" no que se refere por exemplo à arte fabricada pela razão em oposição aos produtos da Antigüidade clássica. Para Novalis, "a razão é a verdadeira morada da arte". Razão pode ter aqui o mesmo senti­do de "fabricação", de produto artificial e artístico em oposição à mera imitação da natureza, sentido esse referido por Schlegel como característica da poesia moderna. Alude, portanto, ao sentido po­sitivo da obra "moderna", porque oposta aos cânones da tradi­ção clássica.

Assim como Schlegel, Novalis ressalta também a composição orgânica da obra, por meio dos contrastes entre pares e grupos de personagens, que delimitam assim a estrutura:

A tia e Therese - Jarno e o tio são dois contrastes principais. Philine pertence à família de Jarno assim como NarzilB. Assim como o tio e a tia são galhos da mesma árvore, também Jarno e Therese.

Um terceiro contraste principal é formado por Mignon e Philine - estas cruzam duas famílias diferentes."

Elencos trágicos e cômicos do romance. (Antigo) (moderno) (Vulgar) (nobre) (Apud Gille, 1979, p.59)

Embora Novalis não se expresse com o mesmo entusiasmo com

que Schlegel o faz no Übermeister, ressalta também a organicidade

da obra em sua composição por meio das oposições e afinidades en­

tre personagens. Ao salientar o trágico e o cômico coexistentes, res­

salta as infinitas possibilidades do romance como "poesia mista",

como gênero no qual se cruzam formas anteriormente impossibili­

tadas de coexistir. Depreende-se, portanto, também um elogio do

romance de Goethe como indicador de caminhos, ao lado da crí­

tica ácida sobre o seu prosaísmo desmedido. Também o recurso à

ironia é salientado:

A filosofia e moral do romance são românticas. Tanto o acon­tecimento mais ordinário quanto o mais importante [são] conside­rados e representados com ironia romântica ... O primeiro livro do Meister demonstra como também os acontecimentos comuns e co­tidianos se deixam ouvir, se forem relatados de forma modulada e agradável, se forem revestidos de uma linguagem fluente e articula­da, se avançarem em passos moderados. (Novalis, 1953b, p.487)

Novalis (p.487) comenta aqui a inclusão de cenas não gran­

diosas, de acontecimentos comuns nas casas burguesas, que passam

então a fazer parte do plano da ficção, ao lado de personagens

medianas e destituídas de qualquer traço heróico, compondo um

pacato cenário doméstico:

16 Os contrastes citados por Novalis foram construídos certamente com base em características pessoais e tendências psicológicas. Jarno e Therese são "galhos da mesma árvore" em razão de sua inserção no mundo prático; ela, mulher burguesa dedicada à casa e à terra, ele, militar, voltado às questões concretas. A tia e o tio (Novalis certamente refere-se aqui a "der Oheim" e "die Stifts-dame"), ambos espíritos contemplativos, desligados do mundo prático, ele por meio da arte, ela da religião. Entre Mignon e Philine, o contraste também é da mesma ordem; a primeira, criatura "romântica", esquiva, distanciada do mundo real, enquanto Philine é mundana por excelência.

Um tal prazer é assegurado por um serão passado no solar de uma família, a qual, sem abrigar em seu seio nenhum ser espetacular, sem possuir paisagens especialmente sedutoras - mas sim pela or­dem e amabilidade reinantes em seu arranjos domésticos, pela execução harmoniosa de seus talentos moderados e de suas concep­ções, e pela utilização e preenchimento racional de seu espaço e de seu tempo, deixa uma recordação sempre agradável de se evocar.

A passagem acima vai contrastar com outro parágrafo alinha­

do sob o título Gegen Wilhelm Meister [Contra Wilhelm Meister],

no qual Novalis (p.489) declaradamente se posiciona contra o

prosaísmo presente no romance de Goethe:

Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister são, de certo modo, necessariamente prosaicos - e modernos. O caráter romântico vai, por esse motivo, a pique como também a poesia da natureza, o maravilhoso. Ele trata apenas de coisas humanamente ordinárias -a natureza e o misticismo são completamente esquecidos.

Ou ainda, os aforismos:

Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, ou A Peregrina­ção em busca do Título Nobiliário.

Wilhelm Meister é na verdade um Cândido contra a poesia. Ele transforma as Musas em comediantes, em vez de tornar as

comediantes em Musas. É realmente trágico que ele ponha Shakespeare em meio a tal companhia.

Aventureiros, comediantes, concubinas, caixeiros-viajantes e filisteus são parte integrante do romance. Quem o toma direto à sensibilidade não será capaz de ler mais romance algum.

O protagonista retarda a entrada do evangelho da economia. Teatro de marionetes no começo. O final compara-se ao fim da sessão no parque de diversões da bela Lili. (Apud Gille, 1979, p.60)

Os dois últimos parágrafos ilustram bastante bem a relação

ambígua dos primeiros românticos com o Meister de Goethe. Ao

reconhecer que "quem o toma direto à sensibilidade não será ca­

paz de ler mais romance algum", Novalis indica a grande possi­

bilidade de leitura pela ironia. Ao mesmo tempo, ao criticar os

tipos vulgares que fervilham por toda a narrativa, Novalis acaba

por confirmar a vocação do romance como gênero universal, ca-

paz de abarcar as mais diferentes castas sociais e suas relações entre si, vocação essa da qual o romance de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister é representante indiscutível e modelo gerador de influência.

Confirma-se, portanto, por intermédio de Schlegel e Novalis em sua ocupação com o Meister, uma possibilidade de leitura que extrapola o cânone da primeira recepção harmônica indicada já por Schiller e Körner especialmente. Os primeiros românticos, ao mesmo tempo em que se ressentiram do prosaísmo ateu que reconheceram no romance de Goethe, souberam reconhecer sua extrema importância como indicador de caminhos para a nova poética que então se instalava.

Assim, Friedrich Schlegel e Novalis realizaram sobre o roman­ce Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister uma leitura capaz de deslocá-lo do ideário da formação, no sentido de obra exem­plar veiculadora de preceitos. Ao apontar a oscilação entre uma compreensão harmônica da obra e uma leitura moderna "proble­mática", os primeiros românticos indicam novas possibilidades para a pesquisa do Bildungsroman, confirmando a necessidade de uma crítica que se ocupe do romance de Goethe menos como obra canônica, modelo exemplar estabelecido na tradição literá­ria, e mais como elemento fecundo no traçado da "história dos problemas" engendrados dentro dessa mesma tradição.

4 OS ANOS DE APRENDIZADO DE WILHELM MEISTER COMO

PARADIGMA DO BILDUNGSROMAN

Nos capítulos anteriores, investigou-se o estabelecimento do conceito Bildungsroman, bem como a eleição de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister como obra paradigmática do gênero, ao longo da historiografia literária.

Aos olhos da história literária contemporânea, caberia, sem dú­vida alguma, revisitar a obra e reavaliar esse estatuto reconhecido há quase duzentos anos.

O reconhecimento da existência do Bildungsroman como um gênero literário acabado faz pressupor, por sua vez, o reconheci­mento de uma tradição literária gerada dentro de limites históri­cos e nacionais bastante específicos, os últimos trinta anos do século XVIII na Alemanha, ao mesmo tempo que se faz necessário também pressupor e legitimar uma continuidade, uma expansão do gênero para além desses limites. De todo modo, a obra de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister permanece, para a história da literatura, como o exemplar mais perfeito do gênero, como a realização ideal de uma projeção histórica e lite­rária conscientemente exercida por um grupo social.

Uma contemporânea história da literatura não poderá isen­tar-se então de proceder à revisão do romance de Goethe à luz da tradição que o inscreve como paradigma do gênero.

Essa eleição não se realizou de forma abrupta; constituiu-se gradativamente pelos posicionamentos críticos que reconheceram, no romance de Goethe, a narrativa de uma trajetória de consti­tuição de um caráter pessoal. A criação do termo Bildungsroman por Karl Morgenstern, assim como o reconhecimento da existên­cia de um processo de formação em Os anos de aprendizado pela recepção imediata à sua publicação, especialmente Christian Gottfried Körner, foram os vetores iniciais de uma longa tradição crítica, que culminou na cristalização do signo literário constituí­do, por um lado, pelo romance de Goethe e, por outro, pelo ter­mo Bildungsroman.

Como se pode depreender pelo acompanhamento efetuado nos capítulos anteriores, essa conjunção nem sempre se mostrou har­mônica. Já o primeiro crítico de Os anos de aprendizado, Friedrich Schiller, cujas primeiras apreciações da obra conjugaram-na ao ideal do classicismo estético, reconhece, em suas últimas cartas sobre o romance dirigidas ao próprio Goethe, de alguma forma um descompasso entre "a moral e a fábula", uma falta de sintonia entre o efetivo comportamento do protagonista e as expectativas do lei­tor mais crítico quanto à realização de uma formação universal e de uma autonomia da personalidade de Wilhelm Meister em relação aos acontecimentos.

A primeira recepção crítica de Os anos de aprendizado foi realizada em meio a um ambiente cultural bastante fértil, no qual se entrecruzavam diferentes correntes estéticas, refletindo um cená­rio literário em meio ao qual conviviam ao mesmo tempo repre­sentantes da Aufklärung tardia, os primeiros românticos e ainda alguns representantes da literatura pietista, ao lado do classicismo esteticista centralizado em Weimar.

Assim, a constituição do signo literário Bildungsroman en­contra-se vincada por uma multiplicidade cultural que se reflete tanto na heterogeneidade das críticas que foram dirigidas ao ro­mance como na relativização de um real processo de formação do protagonista.

Dentre a diversidade crítica e controvérsias provocadas pela publicação da obra, foi vitoriosa a vertente discursiva que elegeu o romance de Goethe como paradigma do Bildungsroman. Para críticos do porte de Ernst Ludwig Stahl, o romance de Goethe configura o ponto máximo do "ideal humanístico-filosófico da formação". A afirmação de Stahl é exemplar de um posiciona­mento crítico que se estendeu até nossos dias.

O romance de Goethe tornou-se assim o arcabouço formal e conteudístico ao qual as obras que se lhe sucedem deveriam amol­dar-se. Jürgen Jacobs, em seu livro de 1989, já salientou que as objeções ante as definições do Bildungsroman como gênero lite­rário se articulam em torno do fato de que todas essas definições foram construídas a partir de Os anos de aprendizado. O próprio trabalho de Jacobs aqui citado é em si um exemplo da amplitude da influência do modelo goetheano sobre as obras posteriores, na medida em que tem por referência o distanciamento ou a aproxi­mação entre as obras que compõem a galeria dos Bildungsromane e o romance de Goethe. A própria dificuldade em se "definir" o conceito Bildungsroman deita raízes certamente nessa conjunção tão imediata entre a entidade teórica Bildungsroman e a concretude do romance de Goethe.

Quais são, efetivamente, as características de Os anos de apren­dizado de Wilhelm Meister capazes de tornar essa obra em um exemplo paradigmático da representação de um processo de for­mação e desenvolvimento individual?

O romance de Goethe consiste, generalizadamente, da narra­tiva de um percurso individual, da representação de diferentes episódios da vida de um jovem de origem burguesa aparentemente sem conexão entre si. A interligação entre os diferentes episódios vivenciados por Wilhelm Meister aparecerá, no fim do livro, como obra da Sociedade da Torre (Turmgesellschaft), associação de ho­mens sábios e esclarecidos que tem por objetivo a formação de jovens. Acontecimentos que tanto o protagonista como o leitor atribuem, no transcorrer da narrativa, ao mero acaso mostram-se como obra de uma instância superior e "invisível", instância essa que, operando por meio de emissários, se dará a conhecer apenas no fim do livro.

O DESEJO PELA FORMAÇÃO UNIVERSAL: O TEATRO

O desejo de Wilhelm por uma formação universal e pelo aperfei­çoamento de suas habilidades inatas encontra-se expresso claramente na carta enviada a seu cunhado Werner, documento obrigatório na crítica do romance de Goethe e exemplar de um desejo comum a uma classe social que pretendia estender seus limites para além da estreiteza do círculo burguês de atividades: "Pois bem, tenho justa­mente uma inclinação irresistível por essa cultura' harmônica de minha natureza, negada a mim por meu nascimento ... Não vou negar-te que a cada dia se torna mais irresistível meu impulso de me tornar uma pessoa pública, de agradar e atuar num círculo mais amplo (Goethe, 1994, p.286-8).

A carta de Meister a Werner resume exemplarmente os pro­jetos de auto-aperfeiçoamento de Wilhelm Meister e transmite ao leitor as expectativas do protagonista. Dessa forma, confirma-se uma perspectiva que já vem se estabelecendo por toda a obra, dirigindo também a expectativa do leitor para a realização desse projeto de formação universal, conduzindo assim parte da críti­ca, que viu em Os anos de aprendizado o ideal de uma formação humanístico-filosófica. A base humanística e democrática desse projeto reside efetivamente na idéia de que o indivíduo deve de­senvolver seus talentos e habilidades latentes; "aperfeiçoar-me, a partir do que realmente sou" significa: detectar no indivíduo suas inclinações e desenvolvê-las por meio de um exercício e um am­biente propícios a esse desenvolvimento.

O projeto é democrático na medida em que prevê ao burguês as mesmas possibilidades de aperfeiçoamento que lhe são nega­das por sua origem. Meister reconhece que apenas aos nobres está reservada a possibilidade de formação universal; acredita então

"Cultura" traduz aqui Ausbildung, substantivo formado pelo radical presen­te em bilden e ausbilden. Como acontece no caso dos verbos, o acréscimo do prefixo aus- especializa o sentido de Bildung, aproximando-o de um sen­tido mais prático de instrução e preparação profissional, como um estágio de aperfeiçoamento. Na tradução portuguesa de Paulo Eugênio de Castro, utilizou-se "desenvolvimento".

que o teatro poderá fornecer-lhe um sucedâneo, um espaço onde possa ampliar seu círculo de atuação, tornando-se, assim como o nobre, uma "pessoa pública".

O teatro é, portanto, a primeira esfera de relações que deve­rá constituir a trajetória de Wilhelm Meister. A dedicação de Meister a seu projeto teatral estende-se desde o primeiro livro ao sétimo. Não se trata, porém, de um processo representado linear­mente; a narração dos acontecimentos teatrais é entremeada com a narração de aventuras, viagens, encontros.

O jovem Wilhelm Meister, ao início da narrativa, mostra-se como um indivíduo possuidor de talento artístico. Já as primeiras cenas do capítulo I do livro primeiro mostram-no às voltas com o teatro, por seu relacionamento com Mariane, a atriz a quem "consa­gra a pura chama de seu primeiro amor" (Schlegel). Nas conversas com Mariane, Wilhelm refere-se com freqüência às representações domésticas do teatro de bonecos, com ênfase e paixão (às quais Mariane tenta retribuir com interesse, custando, porém, a disfarçar o tédio que tais descrições lhe provocam).

A vocação teatral é, para Meister, mais do que um diletantismo; é por ela que Meister pretende alcançar o desenvolvimento pleno de suas qualidades, o alargamento dos estreitos horizontes burgue­ses, nos quais lhe estaria reservada apenas a submissão às leis da vida cotidiana.

É também pelo teatro que Meister se aproxima pela primeira vez do "grande mundo", do mundo da aristocracia. Na condição de diretor da trupe ambulante, Meister adentra pela primeira vez um palácio da nobreza. Dessa forma, aproxima-se também de seu ideal de formação, pois acredita que "apenas ao nobre é possível uma formação universal".

Assim, a primeira parte da trajetória de Wilhelm Meister en­contra-se determinada por dois núcleos principais: sua dedicação ao teatro e sua admiração pelas possibilidades de atuação reser­vadas à nobreza. Uma vez que, por uma questão de origem social, os privilégios concedidos à nobreza lhe são definitivamente nega­dos, Wilhelm Meister acredita que o teatro seja a única instância na qual um jovem de origem burguesa poderá desenvolver suas qualidades e seus talentos.

Meister segue, portanto, com seus projetos artísticos, primeira­mente, formando uma trupe provinciana junto com Melina, depois, dedicando-se à companhia teatral de Serio, a qual encena dra­maturgos ingleses e autores alemães, como Shakespeare e Lessing. Introduzido por Jarno, um dos representantes da Sociedade da Torre, na leitura de Shakespeare, Meister dirige e atua em uma bem-sucedida apresentação de Hamlet. A companhia teatral, porém, não se mantém por muito tempo. Serio e Melina aproveitam-se de uma ausência de Wilhelm e transformam a companhia teatral em uma companhia de ópera, adaptando-se assim ao gosto do público e aumentando seu lucro.

Os projetos teatrais de Wilhelm Meister, apresentados ao iní­cio tanto como uma possibilidade de ampliação dos horizontes individuais como um caminho para educar o gosto do público, não têm continuidade. A opção pela ópera, pelo espetáculo musi­cal em lugar dos dramas shakespearianos e alemães demarca o final do projeto acalentado por Meister de um "teatro nacional" inspirado pela dramaturgia de Shakespeare. As palavras de Melina, membro da companhia e responsável pela mudança de rumos, ilustram o destino reservado a tais projetos: "Melina zombou sem muita sutileza dos ideais pedantes de Wilhelm, de sua arrogante pretensão de educar o público, ao invés de se deixar educar por ele, e assim, verdadeiramente convencidos, os dois [Melina e Serio] reconheceram que não deveriam fazer outra coisa senão ganhar dinheiro, enriquecer ou divertir-se..." (Goethe, 1994, p.343).

As palavras de Melina anunciam o final de um projeto de con­tornos coletivos; as de Jarno, membro da Sociedade da Torre e, portanto, um dos responsáveis pela "formação" de Meister, se­lam o fim de seus projetos individuais: "- Ademais - respondeu Jarno -, penso que o senhor deve abandonar de vez o teatro, para o qual não possui nenhum talento" (Ibidem, p.458).

As palavras de Jarno são tanto mais significativas quando se considera o fato de que foi Jarno quem introduziu Meister na leitura das obras de Shakespeare.

No fim do oitavo capítulo do sétimo livro, Wilhelm Meister despede-se definitivamente da carreira teatral, incerto sobre seu próprio talento. Escreve mais uma vez a Werner, seu cunhado e

responsável pelos negócios da família, em um tom que prenuncia uma possível futura dedicação a atividades da vida prática: "Deixo o teatro e me junto a homens cujo contato haverá de me conduzir, em todos os sentidos, a uma pura e sólida atividade" (Ibidem, p.477).

É assim que o primeiro grande núcleo, apresentado como formador, se desfaz, nada restando, no quadro final da narrativa, dos projetos iniciais de Wilhelm Meister em relação à carreira teatral. A dedicação ao teatro pode mesmo ser entendida como o grande equívoco da juventude de Wilhelm Meister, que cultivou pretensos talentos e aptidões que realmente não possuía.

Portanto, Meister "não se forma" pelo teatro; não é este o caminho que deverá conduzi-lo ao amadurecimento e ao pleno desenvolvimento de suas aptidões.

AS RELAÇÕES COM A ARISTOCRACIA

(NATALIE COMO FORMADORA)

Paralelamente aos projetos teatrais e mesmo em relação de interdependência com eles, ocorre a aproximação de Meister ao círculo da nobreza. Essa nova esfera de relações inicia-se por intermédio do Barão, da Condessa e do Conde. Do primeiro, Meister acaba por obter, de maneira servil, recursos em paga­mento por suas apresentações teatrais; da segunda, Meister con­segue uma espécie de flerte, culminando com um beijo às escon­didas nos aposentos da nobre. Sobre o quadro todo, o de Meister como intruso penetrando no quarto da Condessa, às escondidas do Conde, o marido, paira uma atmosfera jocosa. Assim, o pri­meiro contato de Meister com o "grande mundo" está longe de constituir-se em mecanismo de aprendizado, formação ou instru­ção. Parece-se antes com as aventuras de um pícaro.

Esse primeiro Wilhelm Meister, que se utiliza de recursos pou­co desculpáveis (como a falsificação do diário de viagem a ser enviado ao pai) para sobreviver é o que perdura por toda a pri­meira metade do romance.

A trajetória de Meister adquire um novo estímulo após um encontro com a "misteriosa amazona", ou Natalie, que encontra

o herói ferido após uma luta com salteadores e trata de seus ferimentos. Essa figura feminina desaparece logo depois do epi­sódio. Meister irá reencontrá-la adiante, no oitavo e último livro, quando acontece a elucidação de relações e tramas até então apa­rentemente misteriosas. Natalie é o fio condutor, é o ponto de referência ao redor do qual se esclarecem boa parte dos princí­pios que regeram a ação.

Podem-se reconhecer algumas modificações no comporta­mento do protagonista, a partir da influência emanada da bela amazona, ou Natalie, quando esta e Wilhelm finalmente se encon­tram. Wilhelm abandona a "má companhia" que os críticos do romance tanto lhe censuraram, passa a freqüentar efetivamente os ambientes aristocráticos, chega mesmo a apresentar algum inte­resse por assuntos da vida econômica (apenas na medida, é ver­dade, em que lhe garantam a sobrevivência), como se poderá observar no reencontro com Werner. É preciso lembrar, porém, que em todas essas novas situações Wilhelm desempenhará papel subalterno, cumprindo incumbências como acompanhar Lydie, amante de quem o aristocrata Lothario já havia se enfastiado e de quem precisava livrar-se.

No capítulo 9 do livro 7, o Abade, após a leitura da carta de aprendizado, declara terminados os anos de aprendizado de Wil­helm Meister; já no segundo capítulo do livro seguinte, Wilhelm encontra-se pela primeira vez com Natalie, após o episódio em que ela o ajuda a restabelecer-se depois do ataque dos salteado­res. O reencontro com Natalie é precedido por uma passagem que evidencia o desejo de Wilhelm Meister de ver a configuração final dos "diversos fios" que conduziram sua trajetória e que de­verão desenhar seu destino: "Estavam todos satisfeitos porque os negócios importantes que haviam preparado foram concluídos e fechados sem demora, e Wilhelm aguardava com ansiedade para ver como se reatariam e em parte se romperiam tantos fios, e como sua própria situação determinaria seu futuro. (Ibidem, p.496, grifo da autora).

Também a proximidade dos dois episódios, aquele em que a Sociedade da Torre considera terminados os anos de aprendizado de Meister, e aquele em que Wilhelm irá reencontrar Natalie,

permite antever uma relação que associa a personagem da "bela amazona" no fim do processo de aprendizado conduzido pela Sociedade. Natalie reaparece no oitavo e último livro, pontuando as explicações e revelações que esclarecem a Meister as diferentes intervenções da Sociedade da Torre, os acontecimentos que lhe pareceram até então fortuitos e que na verdade possuíam encadea­mento entre si. O encontro com Natalie é simbólico, investe-se de uma função organizadora e integradora dos diferentes episó­dios vividos por Meister ao longo da narrativa.

É também na presença de Natalie que Wilhelm, na última cena do livro, irá declarar não saber o valor de um reino, mas saberá reconhecer o valor incalculável daquilo que conseguiu. E Natalie faz parte dessa conquista. Cabe então analisar o que Natalie re­presenta na trajetória de Meister.

Efetivamente, já ao adentrar o vestíbulo da residência, Meister começa a sofrer os efeitos da proximidade da "bela amazona". O ambiente circundante mostra-se em afinidade com o estado de espírito do protagonista e desperta-lhe familiaridade:

Entrou na casa e se viu no lugar mais solene e, em conformida­de a seu sentimento, mais sagrado que já havia pisado. Um candeei­ro suspenso, deslumbrante, iluminava uma larga e suave escada que havia a sua frente e que, no alto, se dividia em duas partes. Dispos­tas sobre pedestais e em nichos, erguiam-se estátuas e bustos de már­more, alguns dos quais lhe pareceram conhecidos. As impressões da infância não se esvaem, nem mesmo em seus ínfimos detalhes. Reco­nheceu uma Musa que pertencera a seu avô, não pelo formato nem pelo valor, seguramente, mas por um braço restaurado e por partes de sua vestimenta que lhe foram novamente inseridas ... Entrou na ante-sala e, para sua maior surpresa, avistou numa das paredes o quadro do filho enfermo do rei, seu velho conhecido ... Ali, oculta por um quebra-luz que lhe fazia sombra, uma mulher sentada lia. (Ibidem, p.502, grifo da autora)

A familiaridade sentida por Wilhelm ao aproximar-se de Natalie, o reconhecimento dos objetos de arte que pertenceram a seu avô, prenunciam um ponto de viragem na trajetória de Wilhelm, um possível momento de resolução. (Observe-se, po­rém, que há uma indicação clara do pouco progresso feito por Wilhelm ao menos no âmbito estético; ele reconhece a Musa que

pertencera ao avô "não pelo formato nem pelo valor", mas por sinais prosaicos, a vestimenta e uma restauração).

A partir desse reencontro, torna-se cada vez mais nítida a re­lação entre Natalie e episódios da vida e trajetória de Wilhelm Meister. Já no dia seguinte à sua chegada, depara-se com um retra­to que supõe ser de Natalie, embora ao mesmo tempo perceba di­ferenças; Natalie lhe explica que se trata de um retrato de sua tia, fazendo então um breve relato das circunstâncias da vida da mu­lher retratada; trata-se da "bela alma", de cujas experiências Wilhelm tivera notícia por meio de um longo relato autobiográfico, típico testemunho de conversão pietista, que lhe chegara às mãos quase que por acaso, e que constitui, na estrutura da obra, todo o livro V. Tal episódio, intitulado "Confissões de uma bela alma", não se ar­ticula efetivamente com o todo narrado, bem como não parece, até então, ter provocado qualquer efeito sobre a personalidade ou as concepções de Wilhelm Meister. É apenas por Natalie, e em sua presença, que Wilhelm refere-se ao episódio narrado, reconhecen­do mesmo algum efeito das confissões da tia sobre sua própria vida:

Seria possível - replicou Wilhelm, depois de refletir um instante sobre aquelas circunstâncias tão diversas que lhe pareceram coinci­dentes - seria possível que essa magnífica e bela alma, cujas secretas confissões comigo também foram compartilhadas, fosse sua tia?

- O senhor leu o caderno? - perguntou Natalie. - Sim - respondeu Wilhelm -, com o maior interesse, e não

sem que ele influísse em toda a minha vida. (Ibidem, p.506)

Embora a última frase de Wilhelm deva ser lida com reservas, pois, em toda a narrativa, há pouca ou nenhuma notícia da influên­cia do relato da bela alma sobre a vida de Wilhelm, está claro que a ligação entre Natalie e a tia faz parte de um momento de reconhe­cimento das diversas relações entabuladas por Meister em toda a sua trajetória, e que se desdobrará por todo o oitavo livro.

AS CONCEPÇÕES PEDAGÓGICAS

É também por Natalie que se esclarecerá, para Wilhelm, a origem de seu amigo Lothario, bem como da Condessa e de

Friedrich, o louro. São todos os três irmãos de Natalie e sobri­

nhos da bela alma. Também a figura do Abade adquire contornos

mais precisos, evidenciando-se sua influência pedagógica na edu­

cação dos irmãos, bem como as concepções que a sustentam:

- Já que me encontro em meio a este círculo familiar -prosseguiu Wilhelm -, será provável que o abade, mencionado naquele escrito, seja o mesmo homem estranho e misterioso que encontrei na casa de seu irmão, depois dos acontecimentos mais insólitos? Talvez a senhora pudesse dar-me algumas informações precisas sobre ele?

Natalie respondeu: A respeito dele haveria muito o que dizer; estou mais exata­

mente a par é da influência que exerceu sobre nossa educação. Du­rante algum tempo esteve convencido de que a educação não devia senão adaptar-se aos talentos; não posso dizer como pensa agora. Afirmava que a primeira e a última coisa no homem era a atividade e que nada poderia ser feito sem haver aptidão ou instinto que a isso nos impulsione. Admite-se, costumava dizer, que se nasça poe­ta, e o mesmo se admite para todas as artes, porque é preciso que assim seja e porque tais efeitos da natureza humana mal podem ser arremedados; mas, examinado mais atentamente, veremos que toda a capacidade, mesmo a mais ínfima, nos é inata, e que não pode haver capacidade indeterminada. Só nossa educação equívoca, dis­persa, torna indecisos os homens, desperta desejos em vez de ani­mar impulsos, e ao invés de beneficiar as verdadeiras disposições dirige seus esforços a objetos que, com muita freqüência, não se afinam com a natureza que por eles se esforça. Prefiro uma criança, um jovem, que se perde seguindo sua própria estrada, àqueles outros que caminham direito por uma estrada alheia. Quando os primeiros encontram, não importa se por si mesmos ou por outra direção, seu verdadeiro caminho, ou seja, quando estão em harmonia com sua natureza, não o deixarão jamais, enquanto os outros correm a todo instante o perigo de se livrar do jugo alheio e entregar-se a uma liberdade incondicional. (Ibidem, p.508-9)

Portanto, por Natalie, é exposta a concepção pedagógica do

Abade, em cuja base está a idéia de que a educação deve respeitar

os talentos e habilidades inatas ao homem. Encontram-se ali tam­

bém os princípios da "educação pelo er ro" , que traduzem na rea­

lidade o m o d o de ação da Sociedade em relação ao própr io

Meister. C o m o se saberá em seguida, a Sociedade da Torre, em-

bora acreditando ser Wilhelm destituído de vocação teatral, per­mite que se dedique a ela, até que, instado por circunstâncias alheias à sua vontade, Wilhelm abandona a companhia de Serio, encerrando assim sua carreira artística.

Após a exposição de Natalie, Meister expressa seu espanto quanto a ter sido escolhido como objeto das preocupações peda­gógicas do Abade, bem como põe diretamente em dúvida os prin­cípios que nortearam o processo: "- É estranho, disse Wilhelm -que esse homem notável tenha-se interessado também por mim, e, segundo me parece, tenha-me a seu modo, senão dirigido, pelo menos corroborado durante um certo tempo em meus erros. Devo, pois, esperar pacientemente que tipo de justificativa me dará por haver de certo modo zombado de mim, ele e tantos outros".

Meister, uma vez ciente da intervenção da Sociedade da Tor­re sobre os acontecimentos mais recentes que orientaram sua traje­tória, expressa, embora de maneira comedida, sua contrariedade. Ao que responde Natalie:

Não tenho por que me queixar dessa mania do Abade, se é que pode ser considerada uma mania ... pois não resta dúvida de que de meus irmãos eu fui a que melhor me saí. Não vejo tampouco como meu irmão Lothario teria podido receber melhor educação; talvez só a Condessa, minha boa irmã, necessitasse de um tratamento diferençado, e talvez fosse possível infundir em sua natureza um pouco mais de seriedade e vigor. O que há de ser de meu irmão Friedrich, não se pode ainda imaginar; temo que se torne vítima dessas experiências pedagógicas. (Ibidem, p.509)

Pode-se depreender, a partir da fala de Natalie, uma avalia­ção pouco positiva das concepções pedagógicas do Abade, sob as quais os quatro irmãos foram educados. Natalie reconhece o suces­so do procedimento em relação a si mesma e a seu irmão Lothario, enquanto põe em dúvida os resultados em relação a Friedrich e à Condessa. A despeito do elogio a Lothario, já se pôde ter notícia, em passagens anteriores, do comportamento pouco ético de Lothario em relação a Lydie e Aurelie, e o texto indica mesmo que essas não teriam sido as únicas ocasiões em que o barão Lothario teria se comportado de maneira leviana nos negócios amorosos.

Quanto a Friedrich, sobre o qual, no fim do livro 8 se saberá ser o mesmo Friedrich do início, folgazão e irresponsável, fica eviden­te o malogro da concepção pedagógica do Abade. O mesmo ocorre em relação à Condessa, que, em sua breve passagem pela narra­tiva, demonstra sua leviandade e fraqueza de propósitos. Trata-se da mesma Condessa com quem Wilhelm teve sua pequena aven­tura no castelo do Barão (p.191-4 da edição brasileira).

É bastante significativo o trecho em que Natalie descreve o caráter do irmão Friedrich, seguido imediatamente da reflexão de Wilhelm sobre aquilo que ele considera "paradoxos":

-A senhora tem ainda um outro irmão? - exclamou Wilhelm. - Sim! - respondeu Natalie. - Possuidor, sem dúvida, de uma

natureza alegre, estouvada, e como não o impediram de correr o mundo, não sei qual será o resultado desse ser travesso e leviano. Há muito que não o vejo. A única coisa que me tranqüiliza é saber que o Abade e sobretudo a Sociedade de meu irmão estão sempre informados do local onde ele se encontra e do que faz.

Wilhelm já estava a ponto não só de sondar as idéias de Natalie acerca daqueles paradoxos, como também de extrair-lhe algumas informações a respeito daquela sociedade misteriosa, quando en­trou o médico... (Ibidem, p.509)

Natalie descreve o irmão Friedrich como "um ser travesso e leviano", dizendo ao mesmo tempo que a Sociedade da Torre acompanha sua trajetória e sabe de seu paradeiro. Para Wilhelm, constitui-se aí um paradoxo, pois como pode Friedrich perma­necer travesso e leviano com a anuência da Sociedade? No mo­mento em que Wilhelm decide informar-se a respeito disso e da própria natureza da Sociedade da Torre, o narrador interrompe-lhe o gesto, passando-se então a outro tema.

O trecho é bastante esclarecedor quanto à concepção geral dos projetos pedagógicos da Sociedade da Torre no âmbito da narrativa. Ao lado de toda a solenidade que acompanha o episó­dio da leitura da Carta de Aprendizado, bem como do tom filo­sófico dos diálogos entre Wilhelm e os enviados da Sociedade, evidencia-se, por meio da descrição de Natalie no oitavo livro, o caráter ambíguo das concepções pedagógicas que orientaram a educação dos quatro irmãos e que interferiram na trajetória de

Wilhelm Meister. Natalie afirma que, dentre os quatro irmãos,

ela foi a mais bem-sucedida no empreendimento pedagógico, não

hesitando então em apontar falhas de caráter em Friedrich e na

Condessa, o que permitira sem embargo depreender que, no caso

de Natalie (e mesmo de Lothario) teria sido uma natureza feliz

que a predispusera ao sucesso da constituição da personalidade,

mais do que um projeto pedagógico.

Algumas páginas adiante, quando Natalie relata a Wilhelm o

desenvolvimento de suas próprias inclinações naturais sob a orien­

tação do Abade, Wilhelm pergunta-lhe se ela adotara esses mes­

mos princípios professados pelo Abade na educação das jovens

sob sua tutela.

A resposta é surpreendente:

- Não! - disse Natalie. Esse modo de agir com as pessoas viria totalmente de encontro aos meus sentimentos Quem prontamente não socorre, parece-me jamais socorrer; quem não dá conselhos imediatos, jamais aconselhará. Assim como também me parece ab­solutamente necessário formular e incutir às crianças certas leis que dêem à sua vida certo amparo. Sim, quase poderia afirmar que é melhor equivocar-se segundo as regras que se equivocar quando a arbitrariedade de nossa natureza nos deixa à deriva, e, tal como vejo os homens, parece-me sempre restar em sua natureza um vazio que só uma lei categoricamente formulada pode preencher. (Ibidem, p.515, grifo da autora)

Para Natalie, o educador não deve deixar o jovem entregue a

seus equívocos, esperando que a vocação natural vença por si

mesma. A concepção pedagógica de Natalie diverge, por tanto,

dramaticamente daquela concepção da "educação pelo erro", pro­

fessada pelo Abade e efetivamente utilizada pela Sociedade da Tor­

re em suas intervenções sobre a trajetória de Wilhelm:

- Não é obrigação do educador de homens preservá-los do erro, mas sim orientar o errado; e mais, a sabedoria dos mestres está em deixar que o errado sorva de taças repletas de seu erro. Quem só saboreia parcamente seu erro, nele se mantém por muito tempo, alegra-se dele como de uma felicidade rara; mas quem o esgota por completo, deve reconhecê-lo como erro... (Ibidem, p.480, grifo da autora)

Uma vez que se reconheça Natalie como a personagem que reúne em si a resolução e a configuração final dos "fios" que te­ceram a trajetória de Meister, pode-se legitimamente depreender que a pedagogia aplicada pela Sociedade da Torre sobre seus dis­cípulos está longe ser legitimada no todo da narrativa. Ao contrá­rio, as afirmações de Natalie conduzem antes a uma relativização dos princípios professados pelo líder intelectual da Sociedade, o Abade, do que a sua confirmação.

É também Natalie que transmitirá a Meister as concepções estéticas do Oheim, tio avô de Natalie e comprador da grande co­leção de arte posta à venda pelo avô de Wilhelm Meister tempos atrás. Como já se comentou no capítulo sobre a correspondência de Goethe e Schiller sobre Os anos de aprendizado, o reencontro da coleção de obras de arte que pertencera ao avô tem um efeito emo­cional, afetivo, sobre Meister. Schiller esperava que o episódio ilus­trasse um possível amadurecimento estético de Meister, o que, na realidade, não ocorreu, como se pode depreender a partir do tre­cho que relata o reencontro do quadro que representa "o filho doente do rei". Meister continua apreciando o quadro mais por seu tema do que por sua composição, demonstrando assim pouco ou nenhu­ma evolução de sua capacidade de apreciação artística, segundo os padrões clássicos defendidos pelo próprio Oheim. De toda manei­ra, o reconhecimento da coleção do avô, bem como o contato com a concepção estética do Oheim se dá na presença de e por Natalie, o que mais um vez confirma sua função de elemento de resolução e conjunção dos diversos momentos do romance.

WILHELM MEISTER E WERNER, O BOM BURGUÊS

No capítulo 1 do oitavo livro ocorrem ainda, também ao redor de Natalie, o reencontro entre os dois amigos de infância Wilhelm Meister e Werner e o passeio de Wilhelm com Felix, a criança que lhe foi apresentada como seu filho. Trata-se, portanto, de dois mo­mentos singulares da trajetória de Meister. Ao lado de Werner, efe­tua-se uma comparação entre os dois modos de vida. Werner dedi­cou-se a administrar a fortuna paterna, casando-se com a irmã de

Wilhelm e efetivando assim, além do casamento burguês, a união

da fortuna das duas famílias. Quanto a Meister, sabe-se que seu

percurso desviou-se totalmente da trajetória seguida por Werner.

Longe dos círculos burgueses, Meister dedicou-se primeiramente

ao teatro e às relações com a aristocracia, sem fixar-se em uma ati­

vidade definida. A descrição física dos dois amigos acentua a diver­

sidade dos caminhos seguidos por um e por outro:

Surpreso, Wilhelm foi ao encontro deles e não pôde confiar em seus próprios olhos: era Werner, que também hesitou um instante antes de reconhecê-lo. Os dois se abraçaram carinhosamente, sem conseguir ocultar o quanto ambos haviam mudado. Werner garantiu que seu amigo estava mais alto, mais forte e mais encorpado, mais distinto em sua natureza e mais agradável em seu comportamento ...

Faltou muito para que Werner causasse em Wilhelm uma im­pressão igualmente favorável. O bom homem parecia haver antes recuado do que avançado. Estava muito mais magro do que outro­ra, seu rosto anguloso parecia mais fino; seu nariz, mais largo; sua fronte e o alto da cabeça, desprovidos de cabelo; sua voz, fina, for­te e vociferante, e seu peito retraído, seus ombros caídos, suas faces descoloridas não deixavam margem a qualquer dúvida: ali estava um laborioso hipocondríaco.2 (Ibidem, p.489-90)

Fiel aos princípios da acumulação de capital, Werner sugere

ao amigo que, uma vez que este tenha empregado mal seu tempo,

e, como Werner supõe, não tenha amealhado bens, deveria então

aproveitar-se da "figura que tens" e "adquirir uma bela e rica her­

deira". Segue então a descrição de Meister pelo próprio Werner:

"Tens os olhos mais profundos; a fronte, mais larga; o nariz, mais

afilado; e a boca, mais afável. Vejam só como ele se sustém! Como

tudo lhe assenta bem e se harmoniza! Como prospera a preguiça!

Em compensação, eu, pobre-diabo - e mirou-se no espelho -, se

durante todo esse tempo não tivesse ganhado dinheiro bastante,

não seria absolutamente nada... (Ibidem, p.490)

A contraposição que se estabelece é bastante clara. Werner,

dedicado à acumulação de capital, reflete, por sua lamentável dis-

2 Um "maníaco por trabalho", em uma tradução livre.

posição física, os efeitos dessa atividade. Chama-se a si próprio "pobre-diabo", reconhecendo que, se não tivesse aumentado ain­da mais sua fortuna, não teria conseguido nenhum outro benefí­cio. Quanto a Meister, sua bela aparência reflete uma vida sem cuidados e longe das obrigações burguesas, ao mesmo tempo em que denota a ausência da acumulação de capital.

Retoma-se assim novamente a grande cisão que perpassa toda a narrativa, o contraste entre os modos de vida do nobre e do burguês. A passagem remete claramente ao conteúdo da carta de Wilhelm Meister a Werner, em que o primeiro perfila ao segundo as vantagens e prerrogativas concedidas à aristocracia, e os limi­tes por entre os quais o burguês tem de mover-se.

A comparação entre o capitalista Werner e o diletante Wilhelm Meister não resultará, porém, na afirmação da predominância de um estilo de vida sobre o outro. Não se fará a defesa de uma hierar­quia do diletante sobre o burguês ou vice-versa. Isso não significa, porém, que haja neutralidade na caracterização de Werner ou de Meister. É ainda por meio dos comentários do primeiro sobre a trajetória do segundo que se pode identificar a opinião crua que a sociedade burguesa da época mantinha sobre um jovem oriundo dessa classe que não compartilhasse dos mesmos ideais:

Wilhelm elogiava sua situação e a felicidade de haver sido acolhido entre pessoas tão excelentes. Werner, ao contrário, sacudiu a cabe­ça e disse:

- Não deveríamos crer senão naquilo que vemos com os pró­prios olhos! Mais de um amigo me assegurou que vivias com um jovem fidalgo libertino, que o apresentavas às atrizes, que o aju-davas a gastar seu dinheiro e que eras o culpado por ele haver-se indisposto com todos os parentes. (Ibidem, p.491)

Complementa essa descrição da situação de Meister por Werner a descrição da situação familiar na terra natal de ambos, na qual se pode identificar o filistinismo da vida pequeno-burguesa:

Werner apressou-se em contar tudo o que havia mudado, o que ainda subsistia e o que estava ocorrendo.

- As senhoras da casa - disse - estão contentes e felizes, nunca lhes falta dinheiro. Passam a metade do tempo a se enfeitar, e a

outra metade a se mostrar enfeitadas. São tão econômicas quanto poderiam ser. Meus filhos prometem tornar-se jovens sensatos. Já os vejo em pensamento sentados e escrevendo, calculando, corren­do, fazendo negócios e permutas; cada um deles haverá de estabe­lecer, quanto antes, seu próprio negócio... (Ibidem, p.491)

No discurso de Werner, encontram-se os componentes essen­ciais da economia capitalista ao lado da ideologia burguesa e peque-no-burguesa. São louvadas as virtudes dos conceitos de propriedade, hereditariedade e especulação de capital, ao lado de um ambiente doméstico pobre de perspectivas mais enriquecedoras.

Werner prossegue, criticando agora o traje com o qual Meister se fizera retratar: "Tua mãe e tua irmã acharam adorável aquele jovem senhor com o pescoço livre, o peito seminu, uma grande gorjeira, cabelo solto, chapéu redondo, colete curto e calças com­pridas e largas, enquanto eu sustentava que um traje daquele não estava senão a dois dedos de distância da roupa de um arlequim" (Ibidem, p.492).

A descrição refere-se provavelmente à época em que Meister fazia parte da trupe teatral. Sua indumentária de então condizia com a de um ator, ou mesmo a de um bandoleiro. Embora não haja uma descrição dos trajes atuais de Wilhelm, no momento em que ele convive com o fidalgo Lothario, pode-se depreender, pela observação de Werner, que a convivência com o aristocrata con­feriu-lhe certa distinção: "Agora, tens a aparência de um homem, só te falta a trança3 na qual te peço prendas teu cabelo, do con­trário podem tomar-te a caminho por judeu e te exigir peagem e escolta"4 (Ibidem, p.492).

Os trajes atuais de Meister parecem a Werner mais apro­priados, uma vez que ajudam a compor a aparência distinta de

3 Reproduz-se aqui a nota de rodapé da tradução brasileira: "'só te falta a trança': estamos na época em que o grupo do Sturm und Drang suprimiu a trança entre os jovens. De modo geral, isto só se impôs vinte anos mais tarde (nos anos 90). Os judeus não seguiram a moda das perucas e coletas".

4 Reproduz-se aqui a nota de rodapé de número três da tradução brasileira: "'peagem e escolta': desde a Idade Média até o final do século XVIII, os judeus foram obrigados a pagar uma taxa pessoal quando passassem de um principado a outro."

um burguês que circula por entre a aristocracia. O detalhe dos cabelos soltos não permite, porém, que se possa concluir pela to­tal adesão de Wilhelm aos princípios burgueses, mesmo no que se refere restritamente à indumentária. A figura de Meister perma­nece "romântica", no sentido mais ingênuo do termo, mesmo nas passagens finais em que se espera efetivamente a conclusão da formação de sua personalidade.

O reencontro com Werner, no primeiro capítulo do oitavo livro, auxilia a compor o contraponto entre modos de vida bas­tante diversos: o da burguesia mercantil; o dos artistas, em alu­são ao passado teatral de Meister e o da aristocracia latifundiária, representada por Lothario e sua família. Wilhelm Meister orbita por entre todos eles, sem efetivamente engajar-se a nenhum. Relembre-se aqui a queixa de Schiller, quando, em carta a Goethe, reclama, em relação a Meister, que a "nobreza permanece ausen­te". Da mesma forma que não há indício de um efetivo enga­jamento de Meister ao grupo aristocrático, permanece ausente também uma ligação com o mundo do comércio representado por Werner. Meister deixa que seu patrimônio seja administrado pelo cunhado e amigo de infância, isentando-se de qualquer participa­ção. Dessa forma, permanece à margem de uma efetiva inserção em um estrato social definido, transitando livremente por entre os dois que se lhe apresentam como possibilidades. O casamento com Therese, que lhe teria assegurado as virtudes e tranqüilidade da vida burguesa, não se realiza; a união com Natalie, irmã da Condessa e do Barão Lothario, anunciada às últimas linhas do último capítulo, permanece futuridade; nem mesmo na chamada "continuação" de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, Wilhelm Meisters Wanderjahre [Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister], obra que veio a público quase trinta anos depois, sabe-se do destino da relação entre Meister e a bela amazona; as alu­sões a Natalie são raríssimas, destituindo-se assim a concretização da união anunciada na obra anterior.

Conclui-se assim pela não-inserção de Meister em uma classe social bem definida; pertencendo, por origem, à burguesia comer­ciante, desliga-se desta logo às primeiras páginas do livro, quan­do se une à trupe de atores. Ao mesmo tempo, sua adesão ao "gran-

de mundo", ao mundo da aristocracia, não se concretiza, o que poderia ter sido feito por meio de sua união com Natalie ou pela concessão de um título de nobreza, como reza a crítica do pri­meiro romântico Novalis. É preciso ressaltar aqui que a censura de Novalis considerando o romance de Goethe um "passaporte para a nobreza" não pode ser entendida como a avaliação de um processo que se tenha efetivamente concluído. A adesão ao mun­do da aristocracia fica a meio caminho, e a afirmação de Novalis só pode ser considerada como uma 'tendência" da trajetória de Meister, sem efetiva realização. Da mesma forma, pois, como não se decide nem pela carreira artística, nem por uma profissão bur­guesa, Meister também não se associa efetivamente a uma classe social. Renegando os limites impostos por sua origem, Meister também não ascende à aristocracia, permanecendo, portanto, em uma espécie de limbo social.

O MESTRE-APRENDIZ

No mesmo oitavo livro, ainda no primeiro capítulo, pode-se identificar um novo símbolo que poderia ser tomado como indí­cio da conclusão dos anos de aprendizado. Trata-se do relaciona­mento de Meister com seu suposto filho Felix.

No capítulo oitavo do livro sétimo, ou seja, do livro que ante­cede as cenas finais, o pequeno Felix é apresentado a Meister como seu filho, fruto da relação com Mariane, o primeiro amor de Meister. Embora sinta grande afinidade com criança, Meister hesita em acre­ditar no relato da velha Barbara, governanta e conselheira de Mariane. É Barbara quem relata a Meister os últimos dias de vida de Mariane, bem como lhe revela sua paternidade. O relato comove Meister, que hesita, porém, entre acreditar totalmente na versão dos fatos que lhe é apresentada e duvidar de uma mulher cujo cará­ter interesseiro e alcoviteiro já se conhece do início da narrativa. É preciso relembrar aqui que, pouco antes de partir em viagem deter­minada por seu pai, Wilhelm intercepta um bilhete de Norberg, amante de Mariane, sentindo-se então traído e partindo sem vê-la (Cf. p.66-7 da edição brasileira). Barbara, ao relatar-lhe os acon-

tecimentos após sua partida, reitera dramaticamente a inocência de Mariane, querendo fazer crer a Wilhelm que Felix é indubi­tavelmente seu filho.

A dúvida sobre a paternidade de Felix deverá acompanhar Meister por todos os capítulos seguintes. Depois da velha Barbara, Mignon é a primeira personagem a dizer a Meister que Felix é seu filho. Esta confessa a Meister há muito saber do segredo sem tê-lo revelado a ninguém. Os argumentos de Mignon não per­tencem, porém, à esfera da argumentação racional. Ela afirma ter intuído a relação entre pai e filho em um momento em que a criança correra perigo (Cf. p.462 da edição brasileira). Mignon refere-se aqui ao episódio em que o velho harpista, insano, atenta contra a vida de Felix, episódio no qual o menino é salvo pelos gritos de Mignon e por Meister, a quem ela chama para acudir o menino. O argumento é, portanto, um argumento mágico, pro­duzido pelas relações de Mignon com o invisível, destituído de qualquer racionalidade. Assim, os dois primeiros depoimentos que Wilhelm tem a favor da paternidade de Felix são o da velha Barbara, cujo caráter faz duvidar de qualquer afirmação sua, e o depoimento da frágil e insólita Mignon, figura a quem o próprio Jarno, membro da Sociedade da Torre, irá chamar de "criatura parva e hermafrodita".

A dúvida quanto à paternidade de Felix expressa-se também nas falas do próprio Meister. Seu diálogo com a velha Barbara é pontuado por exclamações e críticas, em que Meister censura o comportamento interesseiro da governanta. A passagem relatada a seguir descreve o encontro de Meister e de Barbara, no qual ela relatará com detalhes o que se passou após a partida de Meister: "Sibila! Fúria! - exclamou Wilhelm, levantando-se de um salto e batendo com o punho sobre a mesa. - Que espírito maligno te possui e te move? ... Sempre te abominei e ainda me é difícil crer na inocência de Mariane sabendo que tu eras sua companheira" (Ibidem, 1994, p.464).

A hesitação de Meister pode ser percebida também em seu comportamento ambíguo diante do próprio Felix. A passagem a seguir descreve a decisão de Meister de enviar Mignon e Felix para longe de si, aos cuidados da senhorita Therese:

Isso lhe foi tão mais fácil quanto continuava temendo em con­siderar como seu filho o belo Felix. Tomou-o nos braços e cami­nhou com ele no colo; o menino gostava que o erguessem à altura do espelho, e, sem confessá-lo a si mesmo, Wilhelm de bom grado o punha defronte do espelho e procurava descobrir semelhanças entre ele e a criança. Houve um instante em que elas pareceram tão verossímeis que ele estreitou contra seu peito o menino; mas, de repente, assustado com a idéia de que podia enganar-se, colocou de volta no chão a criança, que saiu correndo. (Ibidem, p.476)

A dúvida persegue Meister até mesmo durante o solene epi­

sódio da leitura da Carta de Aprendizado, no capítulo nono do

mesmo sétimo livro. Após a leitura da carta, Wilhelm pede licen­

ça para fazer uma pergunta a seus benfeitores:

- Posso fazer uma pergunta? - Não hesite! E pode esperar uma resposta decisiva, caso se

trate de um assunto que lhe toque antes de tudo o coração, e que deva o coração tocar.

- Pois bem! O estranhos e sábios homens, cuja visão penetra em tantos segredos, podem dizer-me se Felix é realmente meu filho?

- Glória por haver feito tal pergunta! - exclamou o abade, batendo palmas de alegria. - Felix é seu filho! Por tudo que há de mais sagrado que em nós se oculta, eu lhe juro que Felix é seu filho. E quanto a seu caráter, a finada mãe do menino não era indigna do senhor. Receba de nossas mãos essa adorável criança, retorne e atre­va-se a ser feliz. (Ibidem, p.482-3)

Espera-se então que a palavra do Abade seja suficiente para

destruir as dúvidas que Meister ainda cultiva. Ao mesmo tempo,

é possível defender a idéia de que isso não passa de mais um es­

tratagema da Sociedade da Torre, dentre os muitos utilizados para

conduzir Meister por um determinado caminho. É possível afir­

mar que a Sociedade da Torre considerasse benéfica para Meister

a idéia de paternidade, no conjunto do desenvolvimento de sua

personalidade.

Para o próprio Wilhelm as dúvidas subsistirão. No início do

oitavo livro, durante seu reencontro com Werner, Meister hesita

em revelar ao amigo a suposta paternidade de Felix:

- Quem é esse pequerrucho? - perguntou Werner. Wilhelm não teve coragem naquele instante de dizer a verda­

de, nem vontade de contar uma história, sempre duvidosa, a um homem nada ... crédulo por natureza. (Ibidem, p.492)

A passagem, que ocorre depois da leitura da Carta de Apren­dizado e, portanto, depois da confirmação da paternidade de Felix pelo Abade, demonstra a persistente hesitação de Meister em acre­ditar sem reservas na atribuição da paternidade de Felix.

O excurso do narrador também deixa espaço livre para algu­mas especulações. Wilhelm não teve coragem de dizer a verdade, nem vontade de contar uma história, sempre duvidosa, a um ho­mem nada crédulo. Se a história duvidosa que necessita de uma dose de credulidade para que acreditem nela é a história que atri­bui a Meister a paternidade de Felix, então a verdade a qual Meister não tem coragem de contar é aquela que o destitui dessa função.

No conjunto da narrativa, a questão da incerteza quanto à pa­ternidade de Felix é bastante significativa, pois Felix desempenhará efetivamente um papel na compreensão de mundo de Meister. Uma vez que se vê, pela primeira vez, na iminência de desempenhar o papel de educador de um espírito mais jovem e supostamente mais despreparado do que o seu, Meister tem chance de refletir sobre sua própria condição, sobre o estágio de sua própria formação.

O fato de persistir a incerteza quanto à relação paterna entre Meister e Felix não impede, por sua vez, que Felix seja efetiva­mente um vetor no início do processo de auto-conhecimento de Meister. Sim, pois há reais indícios de uma tomada de consciên­cia de Meister sobre si mesmo no início do oitavo livro, e esta é movida pela relação com Felix. Embora não se possa dizer que Meister tenha amadurecido, pode-se dizer que ele se encontra, ao final do romance, pronto para iniciar o processo de amadureci­mento, e a relação com Felix pode ser considerada o principal motor desse estado.

No início do primeiro capítulo do oitavo livro tem-se, pela primeira vez, uma reflexão de Meister sobre sua relação com o mundo exterior, o mundo da natureza:

Felix havia corrido para o jardim, e Wilhelm o seguiu arrebata­do; a esplendorosa manhã revelava cada objeto sob novo encanto, e Wilhelm desfrutava seu momento mais feliz. Felix era novato e livre no magnífico mundo, e seu pai não conhecia muito mais os objetos pelos quais o pequeno lhe perguntava repetida e incansavelmente. Foram reunir-se, por fim, ao jardineiro, que teve de lhes relatar com todos os pormenores o nome de muitas plantas e sua utilidade. Wilhelm via a natureza por um novo órgão, e a curiosidade, a ânsia de saber da criança faziam-no sentir somente agora que débil inte­resse tivera pelas coisas exteriores a ele e quão pouco conhecimento tinha delas. Naquele dia, o mais feliz de sua vida, parecia também começar sua própria cultura;5 sentia a necessidade de se instruir sen­do convocado para ensinar. (Ibidem, p.489)

Wilhelm Meister reflete, pela primeira vez em seus anos de

aprendizado, sobre seu pouco conhecimento do mundo; Meister

encontra-se no seu dia inaugural, o dia em que "parecia também

começar sua própria [formação]". Mais do que nunca, o sobreno­

me Meister (mestre) parece inapropriado para aquele que o traz,

estando Wilhelm mais próximo da condição de discípulo do que da

mestria. Cabe ao leitor esquecer-se de que já se encontra no primeiro

capítulo do último livro do romance, na cena que antecede o "grand

finale" em que os fios que conduzem a trajetória de Meister deve­

rão adquirir sua configuração final. Ao leitor parece antes encon­

trar-se nas cenas que deveriam inaugurar a representação de um

processo de aprendizado, no preâmbulo de toda ação, no momen­

to em que o neófito toma consciência de suas necessidades, de suas

imperfeições e incompletudes, e sai em busca de preenchê-las. Ao

mesmo tempo que a existência de Felix serve de contraponto para

que se evidenciem as carências da personalidade de Meister, a pre­

sença do garoto desperta no adulto sentimentos de proteção pater­

na, de responsabilidade ante o menor e mais fraco, mais inocente:

A sofreguidão da criança por cerejas e frutos silvestres, que logo estariam maduros, recordou-lhe os tempos de sua infância e

5 No original, Bildung, "formação". A tradução brasileira ignora, aqui, o senti­do de processo presente no termo original, ao traduzir Bildung por "cultura", deslocando assim a trajetória de Meister do sentido de um processo formador.

os múltiplos deveres do pai de preparar, providenciar e conservar a satisfação dos seus. Com que interesse contemplava os viveiros de árvores e os edifícios! Com que ânimo pensava em reparar o que havia sido negligenciado e restaurar o que estava em ruínas! Ele não via mais o mundo como uma ave de arribação, um edifício como um caramanchão, erguido às pressas, que se deteriora antes de o deixarmos. Tudo o que pensava plantar devia crescer ao en­contro do menino, e tudo que estabelecesse devia durar por várias gerações. Nesse sentido, haviam chegado ao fim seus anos de apren­dizado, e com o sentimento de pai havia adquirido também todas as virtudes de um cidadão. Sentia-o assim, e nada podia igualar-se à sua alegria. (Ibidem, p.492, grifo da autora)

No parágrafo citado, Meister, em um monólogo interior rela­tado pelo narrador em terceira pessoa, percebe-se com propósitos que se assemelham em muito aos da burguesia acumuladora de bens. O desejo de solidez e de durabilidade dos projetos fazem lembrar a descrição da casa da família Meister e a aparência e o desejo de durabilidade, solidez e transmissão de bens expressados pelo Meister pai em relação a seus descendentes.6 Por um momento, Wilhelm aproxima-se totalmente dos ideais que combatera ao início de sua trajetória, chegando mesmo a considerar terminados, nesse senti­do, seus anos de aprendizado. A citação corresponde ao momento em que a idéia de cidadania e maturidade de Wilhelm Meister atin­ge seu clímax, sustentada pela idéia de paternidade. Entretanto, esse estado de espírito é fugaz, e interrompe-se logo às páginas seguin­tes, quando Meister volta a sentir-se indeciso e inseguro, quanto ao

6 "O velho Meister, logo após a morte de seu pai, transformara em dinheiro uma valiosa coleção de quadros, desenhos, gravuras em cobre e antigüidades; ergueu de cima a baixo sua casa, mobiliou-a segundo o gosto mais moderno e tratou de valorizar o resto de sua fortuna de todas as formas possíveis. Uma parte considerável dela havia empregado no comércio do velho Werner, famoso como comerciante ativo e cujas especulações em geral eram favore­cidas pela sorte. Mas nada havia desejado mais o velho Meister que poder incutir em seu filho qualidades que a ele próprio faltavam, e legar a seus filhos os bens aos quais atribuía o maior valor. Tinha ele, na verdade, uma inclinação particular para o luxo, para aquilo que salta aos olhos, mas que também deveria ter ao mesmo tempo um valor e uma duração intrínsecos. Tudo em sua casa devia ser sólido e maciço; as provisões, abundantes, a baixela, de prata pesada..."

próprio destino e ao de Felix. A expressão grifada na penúltima linha da citação, "sentia-o assim", leva o leitor a reconhecer o esta­do das coisas como resultado de uma disposição emocional transi­tória do protagonista que, nesse momento, sente-se um cidadão.

Mais do que tudo, porém, a presença de Felix acentua o des­conhecimento de Meister sobre a realidade exterior, sobre os fe­nômenos naturais sobre o andamento da natureza. Por meio do questionamento de Felix sobre as coisas do mundo natural, tor­na-se evidente a Meister sua ignorância também em relação a tais assuntos:

O desejo do menino de estabelecer distinções crescia a cada dia. Ao descobrir que as coisas tinham nomes, quis aprender os nomes de tudo; acreditava que ninguém exceto seu pai havia de saber tudo; incomodava-o amiúde com perguntas, dando-lhe ocasião de se intei­rar de coisas às quais até ali havia dispensado pouca atenção. Tam­bém o instinto inato de querer saber a origem e o fim das coisas se manifestou precocemente na criança. Quando ele perguntava de onde vinha o vento e para onde ia a chama, só então o pai se dava conta de sua própria limitação. (Ibidem, p.493, grifo da autora)

No oitavo e último livro do romance, o confronto com Felix provoca em Meister a consciência quanto a suas próprias deficiên­cias, o estado acanhado de sua própria formação.

Este agradável sentimento de que o menino tinha sobre sua existência uma bela e verdadeira influência alterou-se por um ins­tante tão logo Wilhelm percebeu que na verdade era mais o menino que o educava do que ele ao menino. Nada tinha para censurar na criança, não estava em condições de indicar-lhe um rumo que ele mesmo não seguia... (Ibidem, p.493, grifo da autora)

Se, por um breve momento, a idéia de paternidade levou Wilhelm a se considerar de posse das "virtudes de um cidadão", pronto para a convivência e atividade no mundo, essa mesma idéia é capaz de apontar-lhe as lacunas de sua própria formação, tor­nando-o consciente delas e desejando preenchê-las. Seria lícito afirma-se, portanto, que o oitavo livro, embora seja o último na estrutura do romance, é o primeiro em que Wilhelm parece efeti-

vamente apto a iniciar seus anos de aprendizado. Surge assim a hipótese de que o grande aprendizado de Wilhelm Meister foi ter adquirido consciência sobre suas deficiências, e de que um efeti­vo processo de formação ainda estaria por vir.

Enquanto Meister parece então apto a finalmente iniciar seus anos de aprendizado, o destino das outras personagens que, como ele, iniciaram seu percurso no começo da narrativa já se resolveu.

O DESTINO DAS PERSONAGENS

Schiller já afirmara que, no que diz respeito às personagens, Goethe soubera muito bem posicioná-las em relação ao todo. É assim que personagens que aparecem ao início da trama, como o burguês e filisteu Werner, assumem, no fim da narrativa, uma po­sição bastante coerente com os indícios que já apresentara antes, ao mesmo tempo que se localizam também diante do todo. Werner apresenta-se, no fim do livro, como um rematado capitalista, des­provido de percepção artística e preocupado apenas com as fi­nanças, coroando assim um perfil de oposição entre o burguês filisteu e o artista. Seguindo-se ainda as observações de Schiller, também Mignon, o harpista, Aurelie e Mariane têm um destino bem definido e coerente com a lógica interna da narrativa, bem como com o gosto estético do crítico. As quatro personagens re­presentam um universo desordenado e apaixonado, sem lugar na configuração final da trama. Seu destino trágico, a morte, é o de­senvolvimento lógico para seu percurso em termos da organiza­ção narrativa. Mignon e o harpista são dois elos com o mundo mágico, invisível e poético ao extremo. Mignon, como se desco­brirá no fim da narrativa, é filha de uma relação incestuosa. O harpista, seu pai, enlouquece e comete suicídio. Mariane e Aurelie, embora sejam representadas como mulheres dotadas de qualida­des, têm comportamento amoroso leviano e humor instável. A primeira morre ao dar à luz um filho ilegítimo, a segunda, morre em razão das conseqüências de um amor fracassado.

Também personagens de menor importância, como o casal Melina, integrante da trupe teatral, ou mesmo a velha Barbara,

acompanhante de Mariane, têm um destino coerente e bem de­finido. O casal Melina, inicialmente membro da trupe de atores ambulante da qual Meister fora diretor, transforma-se em proprie­tário de uma companhia de ópera; seu destino acompanha, dessa forma, o destino dos projetos teatrais de Wilhelm Meister, que não se concretizam. Já a velha Barbara, apresentada nos primeiros capítulos como intrigante e alcoviteira, segue mantendo o mes­mo ofício e mesmos estratagemas, e suas revelações no sétimo livro contribuem decisivamente à configuração do final.

A grande surpresa fica para as personagens de Philine, a leviana amiga de Wilhelm de seus tempos da trupe teatral, e Friedrich, o criado que, conforme se vem a saber depois, é irmão de Natalie e Lothario, e, portanto, nobre. Apresentados ao início como cria­turas fúteis e vulgares, Philine e Friedrich comprovam, nas cenas finais, terem passado por um efetivo processo de burilamento da personalidade e aquisição de cultura.

O primeiro encontro com Philine ocorre no capítulo 4 do segundo livro, quando Wilhelm, já em viagem, hospeda-se na al­deia de Hochsdorf e conhece Laertes, Philine, Mignon e Friedrich.

Philine observa o recém-chegado da janela de seu quarto, e manda Friedrich cumprimentá-lo e convidá-lo para sua casa. O parágrafo a seguir reproduzido descreve o primeiro contato entre Wilhelm e Philine: "A mulher saiu do quarto para recebê-los, cal­çando miúdos pantufos de saltos altos. Havia jogado uma man-tilha negra sobre seu négligé branco, que, exatamente por não es­tar muito limpo, lhe dava um ar caseiro e sem-cerimônia; sua saia curta deixava à vista os pezinhos mais delicados deste mundo" (Ibidem, 1994, p.90).

Embora sutil, a descrição da personagem aponta claramente para uma personalidade sedutora e aparentemente descuidada, sem deixar de delatar uma dose de premeditação e interesse. A breve alusão a uma possível falta de asseio faz lembrar ao leitor a des­crição da desordem reinante nos aposentos de Mariane, desor­dem essa que Meister, mesmo quando dela se apercebe atônito, acaba por achar cativante (Cf. p.53-4 da tradução brasileira).

O rapazote que se pode tomar pelo criado de quarto de Philine é Friedrich, o louro, o irmão "travesso e leviano de Natalie", cuja

verdadeira identidade só se descobrirá no oitavo livro. Friedrich transitará como um pícaro pela narrativa, sempre pronto a apli­car trotes e a apoiar travessuras.

Philine, por sua vez, comprovará ser personagem da "mesma família" (Novalis) da qual provém Friedrich. Leviana e adulado-ra, perseguirá o favor dos grandes, adulará a Condessa durante a estada da trupe no castelo, demonstrando um comportamento pouco sóbrio e educado.

Philine permanece ao lado de Wilhelm, acompanhando-o e à trupe, até que parte em circunstâncias misteriosas. Também Friedrich, o criado de quarto, abandona a cena a uma certa altura. Ao leitor parecerá que ambos deixaram de merecer foco de atenção.

Surpreendentemente, Friedrich aparecerá, também no oitavo livro, revelando ao leitor e a Wilhelm sua verdadeira identidade. No início do capítulo 6, quando a sociedade se encontra reunida no castelo de Lothario, Friedrich se faz anunciar, surpreendendo a todos pelo seu súbito aparecimento. Na ocasião, Wilhelm, que o reconhece e o chama de "nosso pícaro louro", observa o vocabu­lário erudito então exibido pelo recém-chegado. É então que, por meio do relato de Friedrich, se terá notícia de um dos episódios mais significativos (e cômicos) de todo o livro, episódio que tem ligação direta com os conceitos de educação e formação que pon­tuam a narrativa.

Ao se apresentar à sociedade reunida no castelo de Lothario, Friedrich acrescenta, à sua excêntrica maneira de expressão, te­mas e vocábulos da história universal, da religião e da mitologia; referindo-se a Meister, declara:

Cuidem bem deste herói, deste comandante supremo e filóso­fo dramático! ... Ele é magnânimo como Cipião, generoso como Alexandre ... Não pensem que amontoava brasas sobre a cabeça de seus inimigos, que, como se diz, deve ser um dos piores serviços a se prestar a alguém...

- Não se assombrem - exclamou - com minha grande erudição nos escritos sagrados e profanos; em breve saberão como adquiri esses conhecimentos. (Ibidem, 1994, p.540)

Segue o relato de Friedrich sobre a aquisição dessa erudição:

- Diga-me - perguntou Wilhelm -, onde adquiriu esta tão vas­ta erudição? Ouço assombrado a maneira estranha que tem adotado ao falar, fazendo sempre referência a histórias e fábulas antigas.

- Tornei-me erudito, e na verdade, muito erudito, da forma mais divertida - disse Friedrich. Philine está comigo agora; sublo-camos de um arrendatário o velho castelo de uma possessão feudal, onde, como duendes, levamos a mais divertida vida. Ali encontra­mos uma biblioteca, embora limitada, é verdade, bastante seleta, onde há uma Bíblia in-fólio, a Crônica de Gottfried, dois volumes do Theatrum Europaeum, os Acerra Philologica, escritos de Gryphius, e outros livros menos importantes. Pois bem, depois que dávamos livre curso a tudo, às vezes nos sentíamos enfadados e passávamos a ler; antes de nos prover, já era maior o nosso tédio. Ocorreu então a Philine a magnífica idéia de abrir todos os livros sobre uma gran­de mesa; sentávamo-nos frente a frente e líamos, um para o outro, nada além de trechos ora de um ora de outro livro. Uma verdadeira diversão! Acreditávamos estar numa boa sociedade onde se tem por impróprio estender-se longamente sobre a mesma matéria ou mes­mo querer debatê-la a fundo; acreditávamos estar numa sociedade animada onde ninguém dá ao outro a palavra. Entregamo-nos re­gularmente todos os dias a esse entretenimento e aos poucos nos tornamos tão eruditos que nos surpreendíamos com nós mesmos. Já não encontrávamos mais nada de novo sob o sol, e nossos conheci­mentos nos servem para tudo como referência. Praticamos diversas variações nesse modo de nos instruir. Às vezes líamos acompanhados de uma velha e deteriorada ampulheta, que em minutos já estava vazia. Sem perda de tempo, o outro a virava e dava início à leitura de um livro, e nem bem a areia preenchia o vidro inferior, recomeçava o outro com seu discurso, e assim estudávamos de maneira verdadeira­mente acadêmica, só que nossas aulas eram mais curtas e nosso estudos, manifestadamente variados. (Ibidem, 1994, p.542)

Essa é a descrição do processo de aquisição da cultura erudi­

ta por Friedrich e Philine, o casal de "travessos e levianos", perso­

nagens que se mostraram por toda a narrativa como caracteres

pouco confiáveis, ardilosos e mesmo cômicos. No oitavo livro,

por meio do relato de Friedrich, tem-se efetivamente o relato de

um processo de instrução, de aquisição da cultura universal

livresca, embora esse relato seja ponti lhado pela ironia que pesa

tanto sobre os próprios indivíduos objetos do processo de instru­

ção quanto sobre o próprio processo em si, crítica aguda da cul-

tura erudita dos salões da sociedade burguesa, arremedo dos pro­gramas das academias levado a cabo por dois bufões.

A união de Philine e Friedrich, além de representar, portan­to, um excêntrico processo de formação e aquisição de cultura, realiza também um dos casamentos interclasses, ou mésalliances. Ao lado das uniões anunciadas de Wilhelm e Natalie e Lothario e Therese, constituem o único par que realmente concretiza a união, coabitando. Philine, grávida, faz crer a Friedrich que é dele o filho que espera, repetindo assim o mesmo mecanismo posto em ação quanto a Felix, filho de Mariane e Wilhelm. Assim, para o casal Philine e Friedrich, a paternidade e maternidade também se mostram em princípio como sinal exterior de amadurecimento e responsabilidade. Mais uma vez, porém, assim como no caso de Meister, essa paternidade é duvidosa:

- Devo confessar - replicou Wilhelm sorrindo - que há de ser muito engraçado vê-los juntos como pai e mãe.

- É um verdadeiro desvario - disse Friedrich - que eu tenha afinal de passar por pai. Ela o afirma, e as datas coincidem. A prin­cípio me desconcertava um pouco a visita que ela lhe fizera aquela noite, depois do Hamlet. (Ibidem, p.543)

Friedrich refere-se aqui à misteriosa visita noturna de uma mulher ao quarto de Meister, logo após a encenação do Hamlet, revelando assim a Meister a identidade da mulher misteriosa, Philine. Friedrich prossegue:

Essa história me foi, decerto, um duro dote, mas quando não se transige com certas coisas, não há como amar. A paternidade baseia-se principalmente na convicção; estou convicto, logo, sou pai. Como vê, sei empregar a lógica também no lugar apropriado. (Ibidem, p.543)

A afirmação de Friedrich, além de evidenciar o caráter duvi­doso dessa segunda paternidade, sugere ao leitor a possibilidade de uma 'troca". Sim, pois se o filho que Philine espera pode ter sido gerado durante seu encontro noturno com Meister, substitui assim biologicamente a paternidade de Felix, sobre a qual o pró-

prio Meister jamais estará seguro. O mecanismo sugere assim a consideração plena da afirmação de Friedrich de que a paterni­dade baseia-se sobretudo na convicção.

De toda maneira, Philine e Friedrich são as personagens que melhor ilustram a concretização de um processo de desenvolvi­mento. Embora narrado com ironia e comicidade, seu processo de aquisição de cultura livresca, sua união por meio de um casamento interclasses, e o reconhecimento efetivo da paternidade, são sinais de uma definição pessoal que o próprio Wilhelm Meister não irá alcançar. Assim, o destino do protagonista de Os anos de aprendi­zado perde em definição e concretização, quando comparado à tra­jetória das personagens circundantes, como Philine e Friedrich ou mesmo os anteriormente citados casal Melina, Mignon, o velho harpista, Mariane e Aurelie.

AS INTERVENÇÕES DA SOCIEDADE DA TORRE

A Sociedade da Torre é a instituição formadora que promo­ve, ao longo da narrativa, intervenções que deverão dirigir o des­tino e trajetória de Wilhelm Meister, que só aparentemente dis­põe de livre-arbítrio sobre suas decisões. Já no livro primeiro, capítulo 17, registra-se pela primeira vez o encontro de Meister com um desconhecido, o qual, como se saberá no fim, se tratava do Abade, ou mesmo de seu irmão gêmeo, também membro da Sociedade. O episódio da "Conversa sobre arte e destino com o desconhecido" ocorre imediatamente antes da descoberta, por Wilhelm, da traição de Mariane. A conversa gira em torno das maneiras de se apreciar a arte, quando Wilhelm demonstra pela primeira vez na narrativa a predominância de sua apreciação pelo tema sobre a forma, predominância que o acompanhará até mes­mo no fim do livro, quando reencontra a coleção de arte. que pertencera a seu avô. Em seguida, passam a falar sobre o destino. Meister refere-se à sua presumida vocação teatral, para a qual se imagina determinado pelo destino. Ao que o desconhecido responde:

Infelizmente, mais uma vez ouço a palavra destino pronuncia­da por um jovem numa idade em que é comum submeter suas vivas inclinações à vontade dos superiores.

- Mas, então, o senhor não crê em destino? Num poder que nos governe e tudo conduza para o nosso bem?

- . . . A trama deste mundo é tecida pela necessidade e pelo acaso; a razão do homem se situa entre os dois e sabe dominá-los ... Infeliz daquele que, desde sua juventude, habitua-se a querer encontrar no necessário alguma coisa de arbitrário, a querer atribuir ao acaso uma espécie de razão, tomando-se mesmo uma religião segui-lo! Que seria isto senão renunciar à própria razão e dar ampla margem às suas inclinações? Imaginamo-nos piedosos, enquanto avançamos, vagando sem refletir, deixando-nos determinar por contingências agradáveis, e acabamos por dar ao resultado de uma tal vida vacilante o nome de uma direção divina. (Ibidem, 1994, p.64, grifo da autora)

As palavras do emissário da Torre podem ser entendidas como

uma defesa do desenvolvimento programado das qualidades huma­

nas, em detrimento da idéia do acaso e de um destino pré-traçado.

O primeiro encontro entre Meister e um dos integrantes da

Sociedade da Torre dirige, por tanto , a discussão para um tema

que predomina por toda a primeira metade do livro. Trata-se da

pretensa vocação teatral de Wilhelm Meister, para a qual se ima­

gina predestinado. A argumentação rígida do emissário da Socie­

dade da Torre a favor da razão e contra o desenvolvimento livre

das "inclinações" posiciona-se claramente contra a idéia de que o

indivíduo possa deixar aflorar livremente seus talentos e habili­

dades: "Só a capacidade nos é inata; faz-se necessário, pois, apren­

dê-la e exercitá-la cuidadosamente" (Ibidem, 1994, p.65).

O segundo encontro com um emissário da Sociedade da Tor­

re dá-se durante uma travessia de barco, quando Wilhelm já se

encontra reunido ao grupo que será sua trupe teatral: "Subiu à

embarcação um homem de belo porte , que por seu traje e sua

aparência respeitável poderia ser tomado por um eclesiástico"

(Ibidem, p . l 1 3 ) .

O desconhecido junta-se ao grupo nas brincadeiras e repre­

sentações improvisadas , começando depois a conversar com

Meister. A princípio, trocam idéias sobre os exercícios mais ade­

quados a um ator, depois sobre a formação mais apropriada a um

ator. Da mesma forma que no encontro anterior, o enviado da

Torre mostra-se contrár io ao conceito de gênio, acredi tando

sobrepujá-lo a educação:

- ... Ora - replicou Wilhelm -, uma feliz disposição natural, na qualidade de princípio e fim, não haveria de conduzir a tão elevado objetivo não só um ator, mas qualquer artista, ou mesmo qualquer ser humano?

- Poderia ser e continuar sendo o princípio e o fim, o primeiro e o último; mas entre um e outro ficam faltando ao ator muitas coisas, quando a educação7 não faz dele o que ele deveria ser, e, para ser mais preciso, uma educação precoce, porque talvez seja pior para aquele a quem se atribui gênio que a um outro que só possui aptidões corriqueiras, pois aquele pode degenerar-se mais facilmente e ser impelido para o mau caminho com mais impetuosidade que este. (Ibidem, p.l 15, grifo da autora)

Da mesma forma que no encontro anterior, o desconhecido

argumenta de forma contrária às disposições do destino (no sen­

tido de "acaso"), no que se refere à formação e educação do ho­

mem. Constitui-se claramente o paralelo entre o processo de edu­

cação e desenvolvimento das habilidades inatas e a vocação

"genial" intuitiva, a "feliz disposição natural" que Meister acre­

dita possuir. A alusão à "pior" situação daquele "a quem se atri­

bui gênio", pois este "pode degenerar-se mais facilmente" ilustra

à perfeição o grande equívoco de Wilhelm Meister em relação à

sua vocação teatral.

O desconhecido:

- ... Fala-se e escreve-se muito sobre educação,8 mas não vejo senão uma parcela de homens capaz de compreender e levar a cabo o simples porém grande conceito que encerra em si todos os demais.

- É bem possível que seja verdade - disse Wilhelm -, pois todo homem é limitado demais para querer educar o outro à sua própria imagem. Felizes aqueles de quem se encarrega o destino, que a to­dos educa à sua maneira.

7 No original, Bildung, "formação". 8 No original, Erziehung, "educação".

O destino - replicou o outro, sorrindo - é um preceptor exce­lente, mas oneroso. Eu preferiria ater-me ao julgamento de um mes­tre humano. O destino, a cuja sabedoria rendo total respeito, tem no acaso, por meio do qual age, um órgão muito canhestro. Pois raras são as vezes em que este parece realizar com acerto e precisão o que aquele havia determinado.

- Este me parece um pensamento muito singular - replicou Wilhelm.

- De maneira alguma! A maior parte das coisas que ocorrem no mundo justifica minha opinião. Não é fato que muitos aconteci­mentos mostram a princípio um grande sentido e acabam sempre por resultar em algo insignificante?

- O senhor está caçoando. - Mas não é o que ocorre - prosseguiu o outro - com rodos os

indivíduos? Suponha que o destino tivesse escolhido alguém para se tornar um bom ator ... digamos que, por um infortúnio qual­quer, o acaso conduzisse o nosso jovem homem a um teatro de marionetes, onde não poderia deixar de tomar parte em algo insí-pido, de achar suportável e até mesmo interessante algo disparata­do, de receber assim, sob um aspecto errôneo, aquelas impressões infantis que nunca se esvaem e pelas quais nunca deixamos de sen­tir um certo apego. (Ibidem, 1994, p. l16, grifos da autora)

O exemplo aparentemente casual incomoda Wilhelm, pois

trata-se de nada menos do que uma referência direta a seus dotes

de ator, bem como ao teatro de marionetes ao qual ele tanto se

dedicara na infância e do qual tanto se orgulhara, narrando mes­

mo a Mariane suas encenações infantis. Embora nem o protago­

nista nem o leitor ainda o saibam, o emissário da Sociedade da

Torre trata de falar a Meister sobre os enganos a que um jovem

está exposto quanto ao auto-reconhecimento de seus talentos e

de sua vocação.

O que para Meister parece então extremamente significativo,

sua vocação teatral, trata-se, para os membros da sociedade, de

uma tendência juvenil, incitada e mantida pela carga de afeto que

o homem dedica às atividades ligadas às recordações da infância

e primeira juventude. É esse um dos sentidos da afirmação do

emissário sobre os "muitos acontecimentos [que] mostram a prin­

cípio um grande sentido e acabam sempre por resultar em algo

insignificante". A mesma frase, tomada literalmente ao contrário,

combina perfeitamente com a frase final de Friedrich, no oitavo livro, quando atribui a Meister a mesma sorte de Saul, filho de Kis, que "saiu em busca das jumentas de seu pai e encontrou em lugar disso um reino". A trajetória de Wilhelm Meister encontra-se, portanto, determinada entre o acaso, que, na acepção da Socie­dade da Torre, é o veículo pelo qual age o destino, e a interven­ção racional sobre as capacidades inerentes ao homem. Se, por um lado, é possível identificar assim a existência de um real pro­jeto de formação por parte da Sociedade da Torre, de base racionalista e intervencionista, é necessário, por outro lado, infe­rir em que medida esse projeto foi efetivamente levado a cabo, no total da narrativa.

Uma real concretização dos desígnios da Sociedade da Torre quanto ao destino de Meister pode ser verificada naquela que o distancia do teatro, entendido por ele até então como vocação à qual estava predestinado. Durante a estada da trupe teatral no castelo do Conde, Wilhelm Meister conhece Jarno, militar que, como se saberá depois, é uma das lideranças da Sociedade da Torre ao lado do Abade. Durante uma discussão sobre teatro, em que o príncipe ali presente declara sua preferência pelo teatro francês (p.l73 da edição brasileira), também Wilhelm declara-se conhe­cedor e admirador de Racine e Corneille; Jarno o interrompe e pergunta-lhe se já havia lido alguma peça de Shakespeare. Ante a negativa, Jarno promete enviar-lhe alguns livros. Assim, Meister é introduzido por Jarno na leitura do poeta inglês, concretizan-do-se então uma ação bastante próxima e concreta da Sociedade da Torre sobre a educação e formação de Meister. Segue a des­crição dos efeitos da leitura: "Nesse estado de ânimo recebeu os livros prometidos e em pouco tempo, como se pode presumir, arrebatou-o a torrente daquele grande gênio, conduzindo-o a um mar sem fim, no qual rapidamente se esqueceu de tudo e se per­deu" (Ibidem, p.l75).

O comportamento inicial de Wilhelm diante da leitura das peças de Shakespeare reproduz, sem dúvida alguma, o espírito dos "Sturm-und-Dränger"; a leitura de Shakespeare por Wilhelm Meister é arrebatada e apaixonada, irracional. Não parece ter sido esse o desígnio de Jarno. No capítulo seguinte, o diálogo entre os dois dá

a dimensão das intenções de Jarno. A leitura de Shakespeare põe

Meister em estado de arrebatamento:

- Estou tão admirado de sua força e delicadeza, de sua violên­cia e serenidade, e ao mesmo tempo tão desconcertado, que espero ansioso o momento em que me encontrarei num estado melhor, que me permita continuar a leitura.

- Bravo! - exclamou Jarno ... - Exatamente como eu imaginava! E as conseqüências que espero não tardarão certamente a aparecer.

- Quisera - replicou Wilhelm - poder revelar-lhe tudo o que se passa agora dentro de mim ... Esses olhares ligeiros que lancei ao mundo de Shakespeare me instigam, mais do que qualquer coisa, a seguir adiante, a progredir com maior rapidez no mundo real, a mis­turar-me no fluxo dos destinos que lhes estão reservados, e um dia, havendo logrado êxito, haurir do imenso mar da verdadeira na­tureza alguns copos e oferecê-los diretamente do palco ao sequioso público de minha pátria.

- Como me alegra vê-lo em tão boa disposição de espírito! -replicou Jarno ... - Não permita esmorecer seu propósito de voltar-se para uma vida ativa, e dê-se pressa em aproveitar bravamente os bons anos que lhe são concedidos ... Ainda não lhe perguntei como veio parar nesta companhia, para a qual certamente não nasceu nem foi criado. Tenho visto, e é o que espero, que está ansioso para deixá-la ... Asseguro-lhe que ainda não compreendi como pôde tor­nar-se amigo dessa gente. Quantas vezes presenciei com desgosto e irritação como o senhor, só para poder viver razoavelmente, teve de dedicar-se de coração a um músico ambulante e a uma criatura parva e hermafrodita. (Ibidem, p.l86-7, grifos da autora)

Para Jarno, o interesse de Wilhelm por Shakespeare é positi­

vo na medida em que deverá permitir a inserção de Meister em

uma atividade voltada para o mundo exterior, e, paradoxalmen­

te, longe do teatro e dos arroubos artísticos. A recomendação de

leitura não é feita com a intenção, como se pode pensar de início,

de contribuir para a formação do ator Wilhelm Meister, mas sim

a de trazê-lo mais próximo da experiência do mundo real.

A referência demeritória a "essa gente" com a qual Wilhelm

se juntou, especialmente o harpista e Mignon, denota a intenção

de Jarno de separar Meister de tudo aquilo que contraria os prin­

cípios da razão e da atividade produtiva. A disposição de espírito

que Ja rno saúda em Meister é aquela que deveria levá-lo a ocu-

par-se de objetos e atividades voltados para a vida ativa. Para Jarno, o germe dessa disposição encontra-se mesmo na breve frase do discurso de Meister em que este se diz instigado a progredir com maior rapidez no mundo real. Como se verá a seguir, após a primei­ra encenação de Hamlet pela companhia teatral de Meister, o ator misterioso que interpretara o espectro do rei deixa sobre o leito de Wilhelm um lenço, em que se pode ler as seguintes palavras: "Pela primeira e última vez, foge! Foge, meu jovem, foge!".

A inscrição não tem aparentemente sentido algum para Meister. No oitavo livro, ao encontrar-se com os membros da Sociedade da Torre no castelo de Lothario, Meister (e os leitores) saberá que o ator que interpretara o espectro do rei era o Abade, e que a inscrição o incitava a abandonar o mundo de teatro.

Efetivamente, Meister é levado a fazê-lo. Incumbido pela amiga Aurelie, que, antes de morrer, pede-lhe que leve uma carta a Lothario, Wilhelm é obrigado a deixar temporariamente a com­panhia, à qual ele não mais se juntará. Os planos de Melina e Serio são de transformar a companhia teatral em uma companhia de ópera, que deverá trazer-lhes mais lucros. Assim, a companhia teatral de Wilhelm Meister, que encenara Hamlet e Emilia Galotti, deverá adequar-se ao gosto popular da época. Terminam assim tristemente os projetos teatrais de Wilhelm, e deles não mais se voltará a falar até o final do livro. Assim, os desígnios da Socie­dade da Torre no que se refere à carreira teatral de Meister são realizados, menos em razão de uma real influência ou ação da Sociedade do que pelo próprio acaso, contrariando assim os prin­cípios norteadores da mesma Sociedade.

Quando Jarno e Meister voltam a se encontrar, desta vez ca­sualmente, no castelo de Lothario, a conversa entre os dois abor­da novamente o tema da necessidade da razão como condutor do espírito humano:

A espécie humana não teme outra coisa senão a razão; deveriam temer é a estupidez, se tivessem noção do que é temível; mas a razão é incômoda, ao passo que a estupidez não é senão perniciosa, e por isso se pode esperar ... Mas diga-me, o que lhe sucedeu? Eu vejo, eu sinto que o senhor também mudou. Como anda sua antiga mania de criar algo belo e bom com uma companhia de ciganos? (Ibidem, p.426)

A presumida mudança que Jarno atribui a Meister refere-se certamente a seu desligamento da companhia teatral. O comentá­rio sobre a mudança de Meister segue-se ao comentário sobre a razão e a estupidez, quando Jarno afirma que a "estupidez pode esperar". Ao leitor que estiver ciente do papel de Jarno como tu­tor, fica clara a alusão aos naufragados projetos teatrais de Meister, manifestações, portanto, de sua estupidez.

A pergunta de Jarno sobre sua antiga mania "de criar algo belo e bom com uma companhia de ciganos", Wilhelm responde com um discurso inflamado pelo qual critica a vaidade e o egoís­mo dos atores, sua incapacidade de dedicar-se a algo que não seja rotina, sua estupidez, enfim:

Não só cada um quer ser o primeiro, como também o único; to­dos excluiriam, com prazer, os demais, sem ver que, mesmo com todos juntos, mal poderiam realizar alguma coisa; todos se imagi­nam maravilhosamente originais e, no entanto, são incapazes de descobrir no que quer que seja algo que esteja fora da rotina, o que os leva a sentir um eterno desassossego por algo de novo. Com que violência agem uns contra os outros! E só o mais mesquinho amor próprio, o mais tacanho egoísmo fazem unir-se um ao outro... quem não vive licenciosamente, vive como um imbecil. Todos reclamam a mais incondicional estima, e todos são sensíveis à menor crítica ... Sempre necessitado e sempre desconfiado, parece não temer nada senão a razão e o bom gosto, nem procura ater-se a outra coisa que não o direito majestoso de seu capricho pessoal. (Ibidem, p.426-7)

O discurso de Meister deixa entrever sua decepção com a ex­periência junto à companhia teatral de Serio, cuja proposta ini­cial, a de encenar obras do teatro inglês e peças de autores nacio­nais alemães, caiu por terra em nome do lucro e do divertimento fácil do público. Wilhelm censura assim os antigos companheiros quando fala da "incapacidade de descobrir algo que esteja fora da rotina, o que os leva a sentir um eterno desassossego por algo de novo". O seu discurso nada positivo, a descrição crua das vai-dades e caprichos pessoais dos atores seus antigos companheiros, faz que seu interlocutor, rindo, lhe diga:

Pois saiba, meu amigo ... o que me descreveu não foi o teatro, mas o mundo, e que eu poderia encontrar em todas as classes sociais

personagens e ações suficientes para suas duras pinceladas? Perdoe-me, mas só me resta continuar rindo, já que realmente crê que essas belas qualidades sejam exclusivas dos palcos. (Ibidem, p.427)

Se, por um lado, o discurso de Wilhelm Meister evidencia sua decepção com o teatro, aproximando-o, portanto, de um de­sígnio da Sociedade da Torre, Jarno, emissário da Sociedade, ironiza a ingenuidade de Meister quando este pensa estar descre­vendo apenas um grupo restrito, o dos atores, enquanto pinta um quadro do próprio mundo. Ainda assim, a passagem citada pode ser considerada, em todo o livro, como aquela que melhor evi­dencia uma efetiva transformação de Wilhelm Meister. Embora, como já se exemplificou anteriormente, Meister chegue no fim do oitavo livro ainda antes como aprendiz do que como um ver­dadeiro mestre, qualidade paradoxalmente explícita em seu pró­prio nome, é inegável que entre o jovem que se dedicava ao tea­tro de marionetes e aquele que proferiu o discurso citado existe uma diferença notável. Tendo uma vez abandonado sua vocação teatral, Meister, porém, não abraça outra. Os negócios de sua fa­mília são administrados por Werner, o que o isenta de ter que envolver-se com eles. A indefinição quanto ao destino de Meister permanece, o que permitiu o elogio de Schiller quanto ao fato de que o protagonista "permanece na indeterminabilidade, sem per­der a bela capacidade de se deixar determinar".

O DESTINO DE WILHELM MEISTER

O oitavo livro traz à luz, portanto, fios que se encontravam até então ocultos, esclarecendo e finalizando situações, embora o leitor possa sentir-se incomodado com o destino dado a alguns conflitos. O próprio destino de Wilhelm Meister encontra-se irresolvido até as últimas páginas do livro. Tendo-se decidido pelo casamento com a burguesa e virtuosa Therese, Meister vê seus planos desmoronarem na medida em que ela é considerada livre e desimpedida para unir-se a Lothario, de quem se acreditava an­teriormente irmã. Meister vê falhar assim um dos seus poucos projetos de iniciativa própria, o qual ele vê frustrado com a cola-

boração de Jarno, membro da Sociedade da Torre, que revela a todos a origem de Therese.

Meister passa então a sentir-se indesejado por aquela mesma sociedade que o acolhera, acreditando mesmo que os amigos que­rem livrar-se dele a qualquer custo, uma vez que não há como encaixá-lo na nova configuração assumida pelas relações pessoais entre os membros da pequena sociedade reunida ao redor de Natalie. É quando se tem notícia pela primeira vez dos planos de Jarno de embarcar para a América, fazendo-se acompanhar por Meister. Isso se dá no capítulo 7 do oitavo livro, e o romance termina no capítulo de número 10. (Os planos de emigração para a América serão de­senvolvidos em detalhe pela Sociedade da Torre em Os anos de pere­grinação de Wilhelm Meister. Em Os anos de aprendizado, tais pla­nos são comentados de maneira breve. Sabe-se apenas que os planos de emigração para a América derivam da preocupação de Jarno quanto às "grandes transformações" que se esperam.) Quan­do ouve pela primeira vez os planos de emigração para a América, Wilhelm se espanta, dizendo-se surpreso por ter sido escolhido como companheiro de viagem para semelhante aventura. Jarno responde que "é preciso conhecer um pouco dos negócios do mundo para perceber que nos esperam grandes transformações, e que as proprie­dades não estão seguras em parte alguma". Trata-se possivelmente de transformações econômicas e políticas, como se pode depreender do seguinte parágrafo:

Nos dias de hoje, nada é menos aconselhável que ter uma propriedade num só lugar, que confiar seu dinheiro a uma só praça; mas é igualmente difícil mantê-los sob vigilância em muitos lugares, daí porque concebemos algo diferente: de nossa velha torre há de sair uma sociedade que se espalhará por todas as partes do mundo, e na qual de todas as partes do mundo se poderá entrar. Asseguramos reciprocamente nossa existência para o caso único de que uma revolução nacional desaloje um ou outro de suas propriedades. Vou para a América com a intenção de aproveitar as relações que nosso amigo fez durante sua estada nesse país. O abade irá para a Rússia, e o senhor deve escolher, caso queira unir-se a nós, se fica ajudando Lothario aqui na Alemanha ou se parte comigo. Penso que o senhor escolherá esta última, pois para um jovem é extremamente provei­toso fazer uma viagem. (Ibidem, p.547)

As preocupações da Sociedade da Torre com a manutenção dos direitos de propriedade e segurança parecem constituir de­corrência direta das preocupações que efetivamente assolavam a Alemanha quanto ao processo revolucionário que ocorrera na França e seus desdobramentos. Assim, a viagem para a América surge como um projeto dissociado da preocupação com a forma­ção individual, mas sim como o germe de um projeto coletivo, se bem que anti-revolucionário.

Segue a resposta de Meister ao convite:

- A proposta é digna de toda reflexão, já que em breve minha divisa será: "Quanto mais longe, melhor". Espero que me dê mais detalhes sobre seu plano. Talvez seja meu desconhecimento do mundo, mas me parece que uma tal associação deve topar com difi­culdades invencíveis, (p.547)

Percebe-se, no tom utilizado na resposta, o desagrado de Meister, sua percepção de que "está a mais" na sociedade constituída ao redor de Natalie e Lothario, como também a percepção de que as mes­mas pessoas que até então se teriam ocupado dele e de seu destino pretendem agora livrar-se dele. É importante notar que, no capítu­lo 7 do oitavo livro, poucas páginas antes da cena final, Meister refere-se ainda ao seu "desconhecimento do mundo", que talvez o impedisse de considerar factível o projeto da Sociedade da Torre para a América. Jarno responde-lhe que as dificuldades de tal pro­jeto estão, em suas maior parte, eliminadas, dado serem eles os membros até agora "bem poucos, homens honestos, sensatos e decididos, que têm um certo sentido do geral, de onde unicamente pode provir o sentido de sociedade" (p.547).

Assim, aquilo que se apresentara em princípio como o pro­cesso de desenvolvimento individual de Wilhelm Meister condu­zido pela Sociedade da Torre conflui em um projeto de sentido coletivo, planejado para o futuro e de caráter utópico, dado que sua realização permanece futuridade.

No sétimo capítulo, delineiam-se, portanto, decisões que se mostram surpreendentes, tanto pelo seu imediatismo quanto por sua praticidade. Embora Meister não se mostre disposto a acom­panhar Jarno à América, há outros candidatos. Friedrich interes-

sa-se pelo projeto, compromentendo-se a levar Philine. Sugere ain­da que o destino da "pobre Lydie", a amante desprezada por Lothario, se resolva também da mesma forma.

Friedrich propõe assim a emigração para a América como um "remate de males", como uma solução para aqueles cujos planos mais ambiciosos e pessoais não se realizaram, como Wilhelm e Lydie, que, desiludidos ambos amorosamente, poderiam juntar-se e ini­ciar uma nova vida.

Tanto Wilhelm quanto Natalie discordam da solução apre­sentada. O destino de Lydie, porém, já estava designado. Jarno, o mentor do projeto, decidira desposá-la, sanando assim uma falta de Lothario e uma situação desonrosa e desconfortável para Lydie. Dessa forma, o projeto do bufão Friedrich deverá realizar-se da mesma forma, com Jarno em lugar de Meister.

Essas resoluções, em seu imediatismo, parecem contrariar as aspirações originais do protagonista Wilhelm Meister e mesmo o espírito da obra como um todo. Já se está muito distante daquele jovem Meister cujo desejo maior era "aperfeiçoar-me, como real­mente sou", segundo reza o texto da carta enviada a Werner. Embora não se possa dizer que as aspirações de Meister tenham desapa­recido, é possível afirmar que as expectativas de sua realização são praticamente nulas. Os projetos que se lhe apresentam desviam-se dos planos de uma formação pessoal, de um desenvolvimento ideal de suas qualidades individuais, como era seu desejo expres­sado a Werner. O caráter prático e imediatista dos planos da Socie­dade da Torre contrariam assim o idealismo das ambições originais do protagonista.

Uma vez que Meister se recusa a acompanhar Jarno no proje­to de emigração para a América, deixando-o para os "vencidos da vida" como Lydie, apresentam-lhe imediatamente uma segunda proposta, trazida pelo Abade: Wilhelm poderia acompanhar como secretário um marquês italiano, que precisava de alguém que do­minasse a língua alemã "e mais alguma outra". O Abade acres­centa que Wilhelm conhece a língua, "além de ser instruído em mais algumas coisas", as quais, porém, não especifica. Dentre os membros da sociedade, ninguém se opõe à proposta, sendo essa até mesmo encorajada.

Assim, logo que Wilhelm recusa a idéia de viajar à América, apresentam-lhe imediatamente outra proposta de encaminhamen­to: acompanhar um marquês italiano em viagem pela Alemanha. É grande a diferença entre as duas propostas. Isso pode conduzir o lei­tor à conclusão de que, para a Sociedade da Torre, não é muito im­portante o tipo de finalização que se dará ao projeto de formação de Meister; porém, é preciso observar que qualquer uma das duas pos­sibilidades traz em si uma idéia de atividade voltada para a coletivi­dade, para o mundo exterior, até então estranha para Meister. O fato de ninguém ter apresentado oposição a essa segunda proposta re­força o reconhecimento de uma indiferença quanto ao caminho que deve ser tomado por Meister, o que ele próprio percebe.

Wilhelm, em seu íntimo, estava tão indignado com essa nova proposta que mal o conseguia dissimular. Via claramente naquilo um arranjo para se livrarem dele o mais depressa possível, e, o que era ainda pior, faziam tudo às claras, sem nenhuma consideração ...

Conteve-se e respondeu: - Essa proposição merece certamente uma reflexão madura. - Uma decisão rápida se faz necessária - replicou o abade. - Não estou preparado para isso agora - respondeu Wilhelm. -

... Mas devem, de antemão, aceitar uma condição básica: que eu possa levar meu Felix comigo e conduzi-lo por toda a parte.

- Essa condição dificilmente será aceita - replicou o abade. - E não vejo por que - exclamou Wilhelm - deveria deixar que

qualquer um me impusesse condições. E por que, para visitar mi­nha pátria, necessito da companhia de um italiano?

- Porque um jovem - replicou o abade com uma seriedade imponente - tem sempre motivo para se juntar a alguém. (p.550)

O parágrafo reproduzido permite que se perceba, em primei­ro lugar, a consciência de Wilhelm Meister quanto a seu papel mínimo na determinação do próprio destino. Meister revolta-se quanto ao autoritarismo da Sociedade da Torre e quanto à não consideração dos seus desejos e necessidades na determinação de seu próprio destino. Por outro lado, a última afirmação do Abade reitera a concepção que parece predominar finalmente como ba­liza das preocupações formadoras da Sociedade. Se "um jovem tem sempre motivo para juntar-se a alguém", então o destino de Wilhelm Meister deverá efetivamente resolver-se em meio à cole-

tividade, e não mais como uma trajetória individual em busca da

formação universal, no sentido do desenvolvimento pleno das

qualidades individuais. Assim, é apenas no último livro do ro­

mance que as verdadeiras determinações da Sociedade da Torre

se manifestam com maior clareza.

Porém, não será ainda esse o destino de Wilhelm Meister. Pres­

sionado pelo Abade, que lhe cobra uma decisão, Wilhelm Meister

contemporiza, indicando a possibilidade de um futuro indepen­

dente dos laços que o prendem à Sociedade:

- Que me concedam apenas algum tempo para pensar, e su­ponho que bem depressa decidirei se tenho motivo para continuar a me juntar a alguém ou se, ao contrário, o coração e a astúcia não me ordenam de modo irresistível desatar-me de tantos laços que me amea­çam como uma prisão eterna e miserável.

Disse tais palavras com a alma vivamente comovida. Um olhar sobre Natalie o tranqüilizou de certo modo, apossando-se dele de forma tão profunda naquele momento de paixão a figura e o valor da jovem.

- Sim - disse a si mesmo, ao se ver sozinho -, confessa-te; tu a amas e de novo sentes o que isto significa quando o homem pode amar com todas as suas forças. (p.550)

Wilhelm Meister, depois de ver fracassarem seus projetos de

união com Therese, descobre que ama Natalie. Percebe então que,

qualquer que seja o destino que a sociedade lhe atribuir, estará

abandonando o verdadeiro bem, a ventura que Natalie representa:

Agora que a conheces, que estiveste tão perto dela, que tanto interesse por ti ela demonstrou, agora estão gravadas profundamente em tua alma suas qualidades, como antes sua imagem em teus sentidos. É angustiante viver procurando, mas é muito mais angus­tiante achar e ter que abandonar. (p.551)

Natalie apresenta-se por tanto como o objeto final da busca

de Meister. Quando descobre finalmente que a ama, Wilhelm

Meister relativiza e põe em xeque seus desejos em relação ao mun­

do exterior:

Que devo pedir agora ao mundo? Que devo procurar dentro de mim? Que região, que cidade guarda um tesouro semelhante a este?

E devo viajar para encontrar sempre só o inferior? Acaso a vida não é senão uma mera pista de corridas em que se deve retornar uma vez alcançado o ponto extremo? E estará aí o bem, o excelente, como uma meta fixa, inalterável, da qual haverá que se afastar ligeiro com cavalos velozes quando se acreditava havê-lo alcançado? Enquanto aquele que aspira a mercadorias terrestres pode procurá-las nos mais diferentes pontos da terra e até na feira e no mercado. (p.551)

Acreditando ser impossível atingir o objeto desse amor ainda

idealizado, Meister decide-se por partir junto com Felix. Após essa

decisão, em vez de encontrar a calma, perde-se num lastimável

estado de desorientação e angústia cuja descrição nada fica de­

vendo aos momentos mais tensos e penosos que antecedem as

cenas finais do romance epistolar de Goethe Os sofrimentos do

jovem Werther (1774), na chamada fase "Sturm und Drang" de

Goethe:

Em tal estado, não encontrava ele repouso espiritual ou físico nem de dia nem de noite. Enquanto todos dormiam, ele circulava pela casa. A presença daquelas antigas e conhecidas obras de arte o atraíam e o repeliam. Não podia apanhar nem abandonar nada do que estava à sua volta: tudo o fazia lembrar tudo; ele abarcava com o olhar todo o círculo de sua vida, mas este infelizmente jazia quebrado à sua frente e parecia assim não querer fechar-se nunca mais. Essas obras de arte, que seu pai havia vendido, pareciam-lhe um símbolo do qual ele também estava excluído, em parte de uma posse tranqüila e sólida das coisas desejáveis do mundo, em parte despojado por culpa própria ou alheia. Perdia-se a tal ponto nessas singulares e tristes divagações que muitas vezes se sentia como um fantasma, e mesmo quando sentia ou apalpava as coisas exteriores, mal podia precaver-se contra a dúvida de estar realmente vivo e se encontrar ali.

Só a viva dor que às vezes o atacava de ter que abandonar de um modo tão afrontoso e, no entanto, tão necessário tudo o que havia encontrado e recuperado, só suas lágrimas lhe restituíam o sentimento de sua existência. (p.552-3)

Esse estado de espírito confuso e angustiado do protagonista é

interrompido pela sucessão de acontecimentos sensacionais, como

a leitura da carta que explica a origem de Mignon e suas exéquias.

Volta-se a falar do destino de Wilhelm apenas no capítulo décimo

do oitavo livro, de forma breve, sem alusão a seu estado de espírito.

Ali, Wilhelm está decidido a acompanhar o marquês à Itália. É quando se tem a notícia do suposto envenenamento de Felix, bem como da morte do harpista. Assim, no oitavo livro, acontecimentos de caráter extraordinário interrompem o fio que deveria levar à trajetória final de Wilhelm Meister. Suas decisões são sempre alte­radas, seu estado de espírito sempre modificado por um aconteci­mento exterior de caráter sensacional, de modo que não se deixa instalar uma sucessão contínua de suas reflexões.

Às últimas páginas do livro, Wilhelm Meister encontra-se em meio a uma grande indecisão quanto ao próprio destino, sem es­paço para colocar em ordem as próprias reflexões. Seus ditos mentores, cuja influência se fez sentir por meio de intervenções ocultas durante a trajetória anterior de Wilhelm, de nada lhe va­lem agora; ocupados com assuntos mais práticos, inclusive com o alojamento de uma comitiva de hóspedes no castelo do barão Lothario, encontram-se longe de poder efetivamente orientar o perplexo Wilhelm Meister. É possível mesmo inferir que um esta­do de confusão e perplexidade toma todos os integrantes da socie­dade que se reúne ao redor de Natalie e Lothario, após os aconte­cimentos extraordinários e sucessivos que dizem respeito a Mignon, a Felix e ao harpista:

Tantos acontecimentos estranhos e terríveis, sucedendo-se um após o outro, obrigaram a um modo de vida inabitual, levando a tudo desordem e confusão, e a casa a uma espécie de delírio febril. As horas de dormir e acordar, de comer, beber e reunir-se estavam confusas e invertidas. Exceto Therese, ninguém mais estava em seu eixo ... Wilhelm estava abalado, transtornado pelas paixões mais violentas ... Contrário a seu costume, Jarno andava calado, e po­der-se-ia dizer que havia perdido um pouco de sua alegria habitual. (p.582)

Esse é o estado de espírito reinante entre os membros da pe­quena sociedade. É quando Friedrich, o "travesso e leviano" ir­mão de Natalie e Lothario, o "brincalhão que costumava beber mais vinho que o razoável", apodera-se da conversa; Friedrich passa a fazer alusões ao estado doentio de Wilhelm, declarado oficialmente enfermo pelo médico; Friedrich alude ao quadro de

filho enfermo do rei, cuja doença nada mais era do que paixão pela esposa de seu pai. Em meio a uma verdadeira intriga amoro­sa, Wilhelm vê sua posição piorada ao ter revelado seu mais ocul­to desejo por meio das brincadeiras de Friedrich, cujo sentido é o de revelar a inclinação de Wilhelm por Natalie. Meister diz então a Lothario:

- Se sou culpado pelo que se passa, pelo que nos acontece, castigue-me então! Prive-me de sua amizade, aumentando ainda mais meus sofrimentos; deixe-me partir por este vasto mundo, no qual devia ter-me perdido há muito tempo ... Adeus! Não ficarei nem mais um minuto nesta casa, onde, contra meu desejo, violei terri­velmente o direito de hospitalidade. A indiscrição de seu irmão é imperdoável, impele minha infelicidade ao mais alto grau e me leva ao desespero.

Ao que Lothario responde: - E se seu casamento com minha irmã - replicou Lothario,

tomando-lhe a mão - fosse a condição secreta que fez Therese deci­dir-se a me dar a mão? (p.584)

Explique-se: Therese, anteriormente comprometida com Meister, viu-se repentinamente livre para unir-se a seu verdadei­ro amor, Lothario, o qual até então considerava seu irmão. Libe­rada por Meister de seu compromisso, ainda assim preocupa-se com a felicidade sentimental do ex-noivo, e passa a observar seu comportamento perante Natalie, confirmando assim uma suspei­ta. A revelação de Lothario vem, assim, trazer a Meister uma so­lução para a complicada trama amorosa em que se envolvera. Então, os gracejos precipitados de Friedrich anunciam o que efe­tivamente seria decidido pelas "pessoas sérias" da Sociedade. E assim, mais uma vez, Meister é impelido por mãos estranhas a um destino que, finalmente, parece ser o seu.

A confirmação da disposição de Natalie em unir-se a Wilhelm vem mais uma vez por intermédio do mesmo Friedrich, que ouvi­ra junto à porta uma conversa reservada entre Natalie e o Abade, quando esta revelou sua inclinação por Meister.

Essa revelação ocorre na penúltima página do livro. Friedrich, que toma a palavra nas cenas finais, alude aos futuros casamen­tos que deverão realizar-se, não sem uma dose de ironia:

- Agora, rápido! - replicou Friedrich. - Como serão as ce­rimônias? Pode-se contá-las nos dedos. Partirão em viagem, o con­vite do marquês veio mesmo a calhar. Quando estiverem além dos Alpes, haverão de se sentir em casa; os homens lhes agradecerão por fazerem algo de extraordinário, e os senhores proporcionarão a eles um entretenimento pelo qual não precisarão pagar. Assim, como se dessem um baile público,* e as pessoas de todas as classes pudessem participar. (p.585)

Friedrich refere-se, de maneira sem dúvida jocosa, aos plane­

jados casamentos interclasses ou mésalliances anunciados entre

Lothario e Therese, Wilhelm e Nathalie, e, de alguma forma, tam­

bém a sua união com Philine. É imediatamente censurado pelo

Abade.

Entretanto, nos três últimos parágrafos do livro, é apenas

Friedrich que tem a palavra. Nem mesmo ao Abade, líder intelec­

tual da Sociedade, são reservadas as últimas frases. É Friedrich, o

bufão, que finaliza a cena e atribui a Meister uma sorte inespera­

da em relação ao m o d o como os acontecimentos se desenrola­

ram. A um comentário de Friedrich sobre as circunstâncias em

que ambos se encontraram pela primeira vez, por obra de Philine,

Meister responde:

- Não me lembres neste instante de felicidade suprema da­quele tempo.

- Do qual não há por que te envergonhares, como tampouco ninguém tem por que se envergonhar de suas origens. Eram bons aqueles tempos, e tenho mesmo de rir ao olhar para ti: tu me lem­bras Saul, o filho de Kis, que foi à procura da jumenta de seu pai e encontrou um reino.

- Não sei o valor de um reino - replicou Wilhelm -, mas sei que alcancei uma felicidade que não mereço e que não trocaria por nada neste mundo. (p.586)

9 Reproduz-se aqui a nota 24 da edição brasileira: "'baile público': baile de máscaras, público, em que se permitia dançar juntos nobreza e burguesia, do qual 'todas as classes sociais podiam participar'. Era uma exceção, numa época em que a nobreza e a burguesia habitualmente formavam ... uma sociedade fechada".

O livro termina com o parágrafo acima reproduzido. É bas­tante significativo o fato de que seja concedido o privilégio das cenas e declarações finais ao "travesso e leviano" Friedrich, ao "pícaro louro", a uma personagem até então considerada como comediante, e, segundo Natalie, um dos irmãos sobre quem o pro­cesso educativo levado a cabo pelo Abade não surtira o menor efeito positivo.

Também a analogia com Saul coaduna-se com uma indicação de negação dos princípios rígidos que porventura instituíssem um processo tradicional de formação. Os acontecimentos da última cena levam o leitor a pensar em uma possível atuação do acaso na trajetória de Wilhelm Meister, o que decerto contraria o pro­cesso de intervenção idealizado e efetivamente realizado, até cer­to ponto, pela Sociedade da Torre.

OS ANOS DE PEREGRINAÇÃO - DA FORMAÇÃO UNIVERSAL

À INSERÇÃO NA SOCIEDADE

No último romance da trilogia goethiana, Os anos de peregri­nação de Wilhelm Meister, o protagonista irá abraçar uma profis­são, uma atividade prática; torna-se médico, especializando en­tão uma formação que desejava, no princípio, universal.

Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister, cuja segunda e definitiva versão foi publicada em 1829, pode ser entendido, já a partir de seu título, não só como a continuação de Os anos de aprendizado, mas até mesmo como seu segundo volume. Em car­ta a Schiller (12 de julho de 1796), o próprio Goethe reconhecera o final aberto e algo desarticulado do romance de 1796, propondo-se assim a tarefa de encaixar algumas "engrenagens" por meio de uma continuação.

Entretanto, entre a intenção anunciada por Goethe em 1796 e sua concretização, cerca de trinta anos depois, estende-se um grande hiato. O terceiro romance do Meister diferencia-se marcadamente de seu antecessor. Enquanto no romance de 1796 a biografia de Wilhelm Meister é o principal fio condutor da nar­rativa, interligando os diferentes episódios (a despeito da "falta

de autonomia" que grande parte dos críticos lhe atribui), em Os anos de peregrinação essa posição encontra-se bastante enfraque­cida. Wilhelm se teria tornado "uma herança quase penosa" para o narrador" (Gundolf, 1922, p.730), "menos o protagonista do que o paciente factotum que tudo providencia, lê, relaciona". (Bielchowsky, apud Jacobs, 1972, p.90).

Efetivamente, entre os dois romances há um considerável des­locamento estrutural e temático, em decorrência direta das trans­formações históricas que se anunciaram entre a publicação de Os anos de aprendizado e Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister.

Grande parte dos comentadores de Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister vê, no caminho que se estende do segundo ao terceiro "romance do Meister", a ilustração da transição históri­ca do século XVIII para o século XIX, ou mesmo "o salto para o século XX - do pensamento individualista para o pensamento so­cialista" (Radbruch, apud Gille, 1979, p.244).

Assim, o ideal da formação filosófico-humanística efetivamen­te ensejado no primeiro romance, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, não se realiza, malogra. Talvez seja mais apropriado afir­mar que ele se transforma. Essa transformação acompanha uma transformação histórica, em que aos ideais da cultura universal humanística deveriam substituir as necessidades de uma cultura econômica, voltada à especialização. Quando Jarno diz a Meister que uma atividade prática deve se estabelecer em lugar dos talentos artísticos que um indivíduo acredite ter, veicula ao mesmo tempo os prenúncios dessa transformação.

Em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, essa refor­mulação dos ideais da formação encontra-se apenas indicada. Em Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister, romance que veio a público cerca de 30 anos depois de seu predecessor, ela deixa-se identificar claramente.

No primeiro livro de Os anos de peregrinação, Wilhelm Meister reaparece, surgido da última cena de Os anos de apren­dizado. O livro anterior terminava com a promessa de um futuro ao lado de Natalie e junto aos membros da Sociedade. Entretan­to, quando se inicia o terceiro livro, Wilhelm encontra-se, ao lado de seu filho Felix, cumprindo a sentença de constante peregrina-

ção que lhe foi atribuída pela mesma Sociedade da Torre; Wilhelm não deveria permanecer mais do que três dias em um mesmo lu­gar. Tal sentença só poderia ser suspensa a partir do momento em que Wilhelm se decidisse por uma determinada ocupação, por "um ofício proveitoso". Logo nas páginas iniciais, Wilhelm reencontra seu antigo mentor da Sociedade da Torre, Jarno, agora Montan, dedicado às atividade relacionadas à natureza e à ciência, especi­ficamente à extração e classificação mineral. O diálogo entre os dois restabelece-se com naturalidade, voltando aos mesmos te­mas que preocupavam Meister no livro anterior. Trata-se ainda da questão da formação universal, que Meister ainda defende e considera vantajosa: "Uma formação universal tem sido conside­rada entretanto vantajosa e necessária".

A resposta de Montan contraria radicalmente esse ponto de vista. Quanto à formação universal, afirma que

Ela pode mesmo sê-lo, a seu tempo ... A universalidade, efetiva­mente, apenas prepara o elemento a partir do qual a especialização pode atuar, à qual tem sido dado suficiente espaço, nestes tempos. Sim, esta é a época das especializações. Feliz aquele que compreende e que atua, para si e para os outros, nesse sentido ... Faz de ti uma parte do todo e espera pelo lugar que os homens, almejando o bem comum, hão de te atribuir em meio à coletividade ... Limitar-se a um ofício, isso é o melhor a fazer. Há sempre um ofício para o espírito mais estreito, para o melhor há sempre uma arte... (Goethe, 1989, v.8, p.37)

É assim que, em Os anos de peregrinação, o projeto de for­mação universal, de formação humanístico-filosófica, dá lugar a uma concepção utilitarista, sintonizada com as vivências da téc­nica e do acúmulo de capital. Se, em Os anos de aprendizado, os ideais almejados pelo protagonista no início não são realizados, restando em seu lugar, segundo Schiller, "uma bela indetermi­nação", em Os anos de peregrinação, esse ideal sofre uma trans­formação radical. No documento mais significativo da trama de Os anos de aprendizado, a carta de Meister a seu cunhado Werner, o primeiro expõe, como se sabe, seu desejo de abandonar a pro­fissão mercantil à qual o pai o destinara. Meister desdenha cla­ramente nesse texto as propostas de Werner quanto a assumir a

administração de um sítio, além do que burla a vigilância de seu pai quando lhe envia um fictício diário de viagem, dando-lhe conta dos parceiros comerciais visitados (Cf. p.260 da edição brasileira). A concepção utilitarista e economicista do mundo é, portanto, integralmente negada por Meister como possibilidade de forma­ção. Mesmo ao final, quando Lothario e Werner se associam em empreendimentos comerciais, nos quais o capital da família Meister está envolvido, Wilhelm delega todas as responsabili­dades de administração ao cunhado, não participando das nego­ciações e discussões.

Já em Os anos de peregrinação, a prática comercial e suas de­corrências, a técnica e a concepção de um mundo mecanicizado, o conceito de uma profissão especializada em oposição à idéia de formação universal são apresentados como necessidades da integração social, como esferas pelas quais o indivíduo jovem deve aprender a transitar.

O binômio formação especializada/inserção na sociedade é, portanto, determinante em Os anos de peregrinação. Ferdinand Gregorius (1849) e Gustav Radbruch (1944) são dois dos comen­taristas do romance de Goethe que, em decorrência dessa asso­ciação, viram ali prenúncios de uma concepção socialista. Para Gregorius, essa concepção já se anunciava mesmo no livro ante­rior, no qual Goethe teria "nivelado as diferenças de classe, na medida em que elas dizem respeito ao nascimento, por meio da Bildung" (Gregorius, apud Gille, 1979, p.160). Já em Os anos de peregrinação o autor teria extinguido essa mesma diferença de clas­ses pela atribuição de "inteligência à classe trabalhadora". Gre­gorius vê no elogio do trabalho a grande característica que apro­xima o romance de uma concepção socialista e libertadora. Afirma que "Goethe teve a percepção de que o trabalho torna o pensa­mento claro e poderoso, o coração aquecido e audaz ... (Ibidem, p.161).

Para Gustav Radbruch, o sentido mais evidente de Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister encontra-se nas seguintes pa­lavras de Jarno: "Grande bobagem é essa vossa formação univer­sal, assim como todas as suas instituições" (Goethe, 1989, v.8, p.282).

As palavras de Jarno antecedem a decisão de Wilhelm Meister de se tornar cirurgião, de se dedicar a um ofício determinado e atuar em prol do bem comum. Radbruch esclarece a partir daí o sentido do subtítulo do romance: Die Entsagenden, ou seja, "aque­les que renunciam".

Wilhelm Meister renuncia à aspiração de se tornar ele mesmo um todo abrangente e auto-suficiente, almejando então apenas ser um membro útil no organismo constituído pelo todo social. Em Os anos de aprendizado ele queria formar-se ator, uma profissão que é um símbolo da capacidade universal de transformação e de sensibi­lidade. Em Os anos de peregrinação ele torna-se "cirurgião", ou seja, literalmente, um artífice, que desempenha uma tarefa a servi­ço do bem comum. (Radbruch, apud Gille, 1979, p.244)

O deslocamento do eixo em volta do qual gravita o conceito de formação de Os anos de aprendizado para Os anos de peregri­nação de Wilhelm Meister está, portanto, historicamente determi­nado. Aos ideais humanístico-filosóficos da formação individual substitui a necessidade de uma especialização voltada para a vida prática.

Esse deslocamento não ocorre, porém, sem prejuízo da con­cepção estrutural original do romance. Se, em Os anos de aprendi­zado, é possível criticar a pouca autonomia do protagonista, cor­roborada pelo comentário de Schiller de que o romance "não precisa de uma tal personagem principal", em Os anos de peregri­nação cabe a Wilhelm uma atuação efetivamente secundária. O estatuto do herói é dramaticamente diferente nos dois romances. Enquanto no romance de 1796 a biografia de Wilhelm Meister é o principal fio condutor da narrativa, interligando os diferentes episódios (mesmo que se possa relativizar o que isso reverte em autonomia para o protagonista), em Os anos de peregrinação Wilhelm é apenas o elo entre os diferentes núcleos de ação, para que se mantenha um mínimo de unidade de ação, espaço e tempo.

Assim, o deslocamento do eixo da formação individual uni­versal em direção a uma especialização prática e integrada às ne­cessidades econômicas e sociais da época em que veio a público o segundo romance reflete-se na composição estrutural da obra. Isso

contribui para que a tradição literária não considere Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister como um Bildungsroman. Segun­do Jacobs, o último Meister configura-se, ante o panorama cons­tituído por Os anos de aprendizado, como um exemplo de como as formas literárias podem se transformar, sob a impressão de experiências históricas, e de como os temas centrais da tradição literária podem se transformar sob uma nova luz.

O comentário de Jacobs pode ser entendido de outra forma. Considerando-se que, em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, o projeto de formação universal do protagonista não se concretiza, fica a meio caminho como uma "teleologia inacabada" (Amrine, 1987), considerando-se que o autor tenha efetivamente levado em conta as alterações históricas ocorridas entre os quase trinta anos que separam os dois romances, é possível entender Os anos de peregrinação efetivamente como uma continuação do ro­mance anterior. Essa continuação se concretiza não como um desenvolvimento detalhado dos conflitos temáticos e dos núcleos de personagens introduzidos no romance anterior; ao contrário, a grande maioria dos personagens anteriores é dramaticamente enfraquecida ou mesmo esquecida, e uma figura central como Natalie em Os anos de aprendizado praticamente desaparece no romance posterior. Como já foi dito anteriormente, o estatuto do próprio Wilhelm se altera; a narrativa se interrompe e dá lugar a uma série de pequenas novelas, a digressões e a trechos de diários particulares de diversas personagens introduzidas. Os projetos individuais, como a própria formação de Wilhelm, dão lugar a projetos coletivos, como a emigração para a América.

Entretanto, reside exatamente nessa dissolução do projeto individual, nessa coletivização dos destinos, a finalização do processo inacabado no livro anterior. Obviamente, não se pode falar aqui do preenchimento das expectativas de formação universal, ou mesmo de um amadurecimento estético ou intelec­tual de Meister. Wilhelm forma-se, porém, para o exercício de uma atividade real, para um ofício útil à sociedade. Passa da Bildung (formação) para a Ausbildung (especialização, aperfei­çoamento), do desejo desmedido de uma formação sem limites para a especialização de um ofício aprendido e restrito.

Quando Meister finalmente se decide por uma profissão, sai em busca de aprendê-la. Dedica-se à anatomia como disciplina básica. Para surpresa do leitor, Meister declara não lhe ser a maté­ria totalmente estranha:

De uma forma inesperada, que ninguém adivinharia, eu já me encontrava bastante adiantado no conhecimento da anatomia hu­mana, precisamente durante minha carreira teatral; pensando bem, no teatro o corpo humano é que desempenha o papel principal, um homem belo, uma mulher bela! (Goethe, 1989, v.8, p.322)

A passagem se liga à afirmação de Jarno, que considera a for­mação universal o precedente sobre o qual a especialização se cons­trói: "A universalidade, efetivamente, apenas prepara o elemento a partir do qual a especialização pode atuar". O teatro, considerado por Wilhelm no livro anterior como a possibilidade de formação universal, serve de ponte, no segundo livro, para seu aperfeiçoa­mento como cirurgião.

No mesmo capítulo em que Wilhelm relata seus estudos de anatomia, há o relato de um escultor que pôs seu talento a servi­ço da ciência, moldando em cera, gesso e madeira, partes do cor­po humano, ossos e articulações:

Nem bem eu aprendera alguma coisa, passaram a exigir de mim imagens de homens dignos em mantos largos, amplas mangas e inúmeras pregas; como me recusasse, e como não pudesse empre­gar aquilo que sabia em prol da expressão da beleza, decidi-me en­tão a ser útil... (Goethe, p.328)

Assim como Meister restringe suas ambições de pleno desen­volvimento de todas as suas tendências e qualidades em prol de um ofício específico e útil à comunidade, assim como a experiên­cia teatral de Meister serve de base a seu estudo de anatomia, também o escultor põe sua arte a serviço da ciência, do saber or­ganizado e especializado. Arte e técnica atingem assim um desejá­vel equilíbrio:

Arte e técnica mantêm a balança equilibrada e de forma tão próxima inclinam-se uma para a outra, de modo que a arte não

possa se rebaixar sem que se transforme em um louvável ofício, e que o ofício não se eleve sem que se torne artístico. (Ibidem, p.329)

Confirma ainda o elogio ao trabalho e à técnica presentes em Os anos de peregrinação o fato de que mesmo personagens como Philine, "a mais inútil das criaturas deste mundo", Friedrich, o "pícaro louro", e Lydie, uma mulher de comportamento leviano, reaparecem, durante poucas linhas, apenas para comunicar que também adquiriram uma profissão. Philine e Lydie tornaram-se costureiras, enquanto Friedrich se torna uma espécie de secretá­rio e escrevente. Os três estão a serviço da grande comunidade que deverá emigrar para a América.

O próprio Wilhelm Meister tem a legitimação final de seu ofício como médico na última cena do livro, quando, por sua habilidade, salva da morte seu filho Felix (Cf. p.360 da edição utilizada).

O terceiro livro do Meister mostra-se, portanto, como uma efetiva conclusão da questão proposta em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. A despeito do papel secundário destinado a Wilhelm, da multiplicidade de focos de ação e da pouca relação com o livro anterior, Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister traz efetivamente o destino do protagonista e o paradeiro de sua trajetória. Dispensado da sentença que o impedia de permanecer por mais de três dias em um mesmo lugar, Wilhelm deverá seguir o grupo que deve emigrar para a América e exercer ali sua profissão.

Paradoxalmente, a questão da Bildung, iniciada no livro an­terior, se resolve por sua extinção; é apenas quando se decide pelo aprendizado de um ofício, de uma atividade específica em meio à comunidade, que Wilhelm adquire sua autonomia como ci­dadão e membro da comunidade. A Bildung resolve-se portanto na Ausbildung, a formação integral transforma-se em atividade especializada.

É preciso porém ressaltar que Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister é tradicionalmente excluído da constituição do paradigma do Bildungsroman. Friedrich Gundolf (1922, p.74) considera Os anos de peregrinação mais como um "livro de sabe­doria" (Weisheitsbuch) do que uma composição poética. Gregorius

(apud Gille, 1979, p.l60) considera-o uma "obra poética social" (soziale Dichtung), enquanto Gustav Radbruch afirma que, nessa obra, defrontamo-nos, mais do que em qualquer outra, com o Goethe pensador (Ibidem, p.243). Entretanto, na medida em que se passa a considerar efetivamente apenas o destino dado à questão da formação do protagonista, pode-se efetivamente compreender Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister como complementação do livro anterior.

Em termos da tradição crítica do Bildungsroman, isso consti­tui sem dúvida alguma mais um problema, pois, paradoxalmente, o que deveria ser a coroação dos esforços pela Bildung universal transforma-se no elogio da atividade especializada.

A transformação do conceito da formação universal em instru­ção especializada só pode ser compreendida a partir da identificação dos a priori históricos que sustentaram a cosmovisão presente no romance de Goethe:

As três décadas que separam os dois romances são marcadas pelos desdobramentos políticos da Revolução Francesa e pela irrupção da Revolução Industrial. Goethe, antevendo as implica­ções da divisão capitalista do trabalho, é levado à reformulação de seu conceito de formação. Assim, enquanto os Lehrjahre proclama­vam que o homem deve se desenvolver em todas as direções, os Wanderjahre fazem outra colocação: a formação deve estar dire­cionada para uma profissão especializada, a inserção social é neces­sária desde o início. (Mazzari, 1999, p.85)

Assim, ao passo que Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister tem sua gênese em um momento da cultura burguesa no qual foi determinante o desejo e a busca por uma formação uni­versal, Os anos de peregrinação é produto de uma inteligência política, e acima de tudo, econômica, que contradiz a universa­lidade e a arte em sua contrapartida técnica. Apenas dessa forma paradoxal é que Os anos de peregrinação pode ser considerado a continuidade e a resolução do livro anterior.

5 A MORAL E A FÁBULA

O HERÓI SEM AUTONOMIA

Schiller, ao considerar bela a indeterminabilidade do protagonis­ta do romance de Goethe, porque esta lhe permitiria uma liberdade estética e moral, inaugurou ao mesmo tempo uma interpretação de Os anos de aprendizado que entende essa mesma indeter­minabilidade como falta de autonomia e fraqueza de caráter. Thomas Carlyle (1916, p.276), que traduziu o Meister para o inglês, con­siderou Wilhelm Meister um "filhinho de papai, o qual, a despeito de todos os seus talentos, é difícil deixar de desprezar". Legiti­mada pela afirmação de Goethe, citada nas "Conversações com Eckermann", que caracteriza Meister como um "pobre-diabo", o comentário de Carlyle dá origem a um núcleo interpretativo que vê, na falta de autonomia e determinabilidade do protagonista, uma dificuldade teórica quanto a se eleger Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister como paradigma do Bildungsroman.

Filiam-se a essa linha as críticas mais evidentes de Friedrich Schlegel, que afirma encontrar no romance as possibilidades de se

formar qualquer outro, exceto Wilhelm Meister, "em um hábil ar­tista ou cidadão capaz", ou mesmo quando afirma, na mesma rese­nha de 1798, Über Wilhelm Meisters Lehrjahre [Sobre Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister], ser Lothario "a figura mais inte­ressante do livro", o "cume da abóbada", na metáfora arquitetônica utilizada por Schlegel, ao passo que os outros todos seriam apenas as colunas de sustentação.

A pouca experiência de mundo do herói foi também forte­mente assinalada por Novalis, que chama o protagonista de "Candide contra a poesia", em alusão ao protagonista do roman­ce de Voltaire e ao prosaísmo que encontra no romance de Goethe.

No século XX, o artigo de Hans Eichner (1966) "Zur Deutung von 'Wilhelm Meisters Lehrjahren'" [Da interpretação de "Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister"] é um marco representativo da discussão do estatuto do protagonista do romance de Goethe e as suas conseqüências para o reconhecimento do Bildungsroman como um gênero de amplo alcance: "Wilhelm não é apenas, e talvez não seja definitivamente, o protagonista de um Bildungsroman. Ele é também o protagonista de um romance picaresco e, se for possível ousar uma caracterização tão radical, o protagonista de uma fábula realista. Ele é um Hans sortudo"1 (Eichner, 1966, Gille, 1971, p.288).

É importante salientar aqui que, pela comparação extrema com Hans sortudo, personagem de um Märchen, de um "conto de fadas" da tradição popular, Eichner atribui a Wilhelm Meister uma caracte­rística definidora desse tipo de personagem: o herói do Märchen não se transforma com o tempo, não aprende pela experiência, e conti­nua cometendo os mesmos erros (Volobuef, 1991, p.75).

A afirmação de Eichner contesta, assim, de uma única vez, tanto a representação da trajetória de Wilhelm Meister como uma

1 "Hans im Glück": protagonista de um conto popular recolhido pelos ir­mãos Grimm, em que Hans, ajudante de moleiro, ao abandonar seu ofício recebe em pagamento um torrão de ouro; ao longo de seu caminho, Hans troca o ouro sucessivamente por um cavalo, uma vaca, um porco, um ganso, uma pedra, um poço sem água, ficando assim, finalmente, de mãos vazias, dirigindo-se então feliz e satisfeito para a casa paterna.

trajetória em direção a uma formação bem definida quanto, con­seqüentemente, o próprio estatuto de Os anos de aprendizado como Bildungsroman.

Klaus Gille (p.l7-8), em seu livro de 1971, no qual traça uma "história da recepção" de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, ressalta, na mesma linha de Eichner, a restrita possibili­dade de influência do protagonista sobre seu próprio destino, fo­calizando especificamente os dois últimos livros (sétimo e oita­vo), momento em que se estabelece a configuração final da trama:

Se considerarmos os dois últimos livros do romance, percebe­remos então que Wilhelm ainda está longe daquela "bela liberdade moral" postulada por Schiller em teoria. É certo que Wilhelm ad­quire, por meio de sua admissão à Sociedade da Torre, a compreen­são da insensatez de sua carreira teatral, tem sua absolvição declarada pela Sociedade da Torre e é liberado de seus anos de aprendizado. Entretanto, a obra termina com a total resignação de Wilhelm, jun­to do reconhecimento do absurdo de qualquer esforço em prol da formação. Dois estímulos para um projeto de vida individual, a união com Therese e o rompimento com o círculo da Torre por meio de uma fuga, fracassam, e, ao final, Wilhelm adquiriu para sua forma­ção nada mais do que o seguinte reconhecimento: "entrego-me to­talmente a meus amigos e à sua orientação ... É inútil empenhar-se neste mundo em agir segundo a própria vontade".

Anterior ainda aos estudos de Gille e Eichner, constituindo assim voz distoante da crítica em sua época, Karl Schlechta (p.242), filósofo e editor, defende, em seu livro de 1953 Goethes Wilhelm Meister [O Wilhelm Meister de Goethe], a tese de que a trajetória de Wilhelm Meister não é uma linha evolutiva em busca de um objetivo "positivo"; ao contrário, trata-se de uma linha descen­dente, que vai do momento vivo e apaixonado que inaugura o livro, o encontro com Mariane, em direção ao momento "asséptico" (lebensfeindlich) de "reflexão sábia" da Sociedade da Torre: "E de uma vez por todas cessa a peregrinação de Wilhelm. Ele não chegou a lugar algum. Ao contrário: é sumariamente ar­rancado de nós - emigra".

Schlechta (p.203) apresenta ainda um argumento que deses­tabiliza diretamente a tese do desenvolvimento do protagonista:

Consideremos o andamento do romance em seus traços ge­rais, detendo-nos especialmente no desenvolvimento de Wilhelm. Dificilmente poderemos então nos furtar à impressão de que no todo, assim como nas inúmeras singularidades, exerce-se um tipo de ironia oculta com nosso herói. Ele desenvolve-se - sem dúvida; mas, de uma forma misteriosa, ele também diminui cada vez mais; perde em cores e contornos, bem como em determinação sob todos os aspectos, perde em calor e em poder de persuasão; sua figura, sua maneira de perceber e de se expressar se perdem - podemos perceber isso especialmente nas ocasiões em que ele aqui e ali reassume o antigo tom. De um homem de carne e osso faz-se quase um conceito, um "ideal".

Ao lado da interpretação "ortodoxa" que entende o Bildungs-roman como um gênero acabado e prolífico, representado exem­plarmente pelo paradigma Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, coexiste, portanto, uma perspectiva que reconhece no pro­tagonista do romance de Goethe um "herói sem autonomia"; essa perspectiva, que se vem desenvolvendo em forma de uma crítica revisionista, opõe-se à idéia mesma da existência de uma entidade literária denominada Bildungsroman, como também à compreen­são do romance de Goethe como paradigma.

A MORAL E A FÁBULA

A origem da vertente que vem desestabilizar a idéia de Os anos de aprendizado como paradigma do Bildungsroman no sentido clás­sico é o já citado estudo de Hans Eichner de 1966, "Da interpreta­ção de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister", em que o autor rejeita a idéia de que o romance seja um Bildungsroman no sentido ideal. Eichner acredita que a insistência em se interpretar Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister como "a representação de um desenvolvimento linear, bem definido e isento de contradições", levaria necessariamente à conclusão de que esse romance teria sido o "malogro de Goethe" (apud Gille, 1979, p.277).

Enquanto a literatura romanesca do século XX mantém com o modelo do Bildungsroman uma relação dialógica e dinâmica, através de um processo de "tradição consciente", a crítica especia-

lizada dá mostras de desconfiança e suspeita ante um conceito que, durante quase duzentos anos, foi referência exemplar para boa parte da produção literária, na Alemanha e fora dela. A in­vestigação da história do Bildungsroman levou-nos a concluir pela coincidência entre os ideais cultivados pela classe burguesa em busca de aperfeiçoamento intelectual e humanístico e aqueles ideais projetados por Wilhelm Meister nos documentos mais eloqüen­tes que a narrativa nos apresenta, como a carta a Werner. Além disso, ao traçar a chamada '"genealogia" do Bildungsroman, sem­pre entendido como a aproximação ideal entre o termo criado por Morgenstern e o romance de Goethe, foi possível verificar seus parentescos com formas narrativas inseridas na história cul­tural da Europa do século XVIII, como os testemunhos de con­versão pietistas, as autobiografias e o romance rousseauniano.

A dificuldade teórica emerge, entretanto, na medida em que, já desde seus primeiros críticos como Schiller e Friedrich Schlegel, o romance de Goethe parece afastar-se desse ideal que contribuiu para sua constituição como paradigma do Bildungsroman.

É a partir dessa argumentação que se pode discutir a afirma­ção de Hans Eichner. O trabalho de Eichner recorre a uma com­paração com outro romance de Goethe, anterior a Os anos de aprendizado: para Eichner, Werther, o protagonista de Os sofri­mentos do jovem Werther, é "um jovem de caráter delirante e en­tusiasta" (Schwärmer) que faz exigências desmedidas ao mundo e que por isso mesmo vai a pique. Meister, herói do romance es­crito quase 20 anos depois - o ator diletante -, começa como um entusiasta, tendo depois que, para utilizar a expressão de Hegel que caracteriza o típico herói do romance moderno, "meter o rabo entre as pernas" e, "com todas as suas aspirações e opiniões, ade­quar-se à ordem estabelecida".

A idéia central do trabalho de Eichner é, portanto, a da limita­ção, a do processo de imposição de limites ao desejo desmedido, às pretensões desmedidas cultivadas pelo protagonista. Eichner retira do próprio discurso dos enviados da Sociedade da Torre indi­cações de que o verdadeiro aprendizado é aquele que leva o indiví­duo à renúncia de suas ambições pessoais mais altas, como o desejo pela "formação universal". Jarno afirma, no quinto capítulo do

oitavo livro, que "o homem não é feliz antes de seus desejos incon­dicionais determinarem a si mesmos", que é ilusório querer fruir "tudo ou fruir parte de sua plena humanidade" e que, para se poder fazer algo, é sempre necessário sacrificar uma outra coisa.

Esse reconhecimento foi realizado já pelo autor do primeiro livro sobre o Meister, Daniel Jenisch. Em seu livro de 1797, Jenisch (apud Gille, 1979, p.278) afirma que o significado de Os anos de aprendizado encontra-se literalmente nessa renúncia à paixão, ao entusiasmo desmedido:

Precisamente nessa aspiração contínua pelo aperfeiçoamento ... quero dizer, na sempre audaciosa libertação do espírito em vista do entusiasmo desmedido, do exagero apaixonado e daquele tipo de ilusão que expõe o espírito ao equívoco e o coração à sedução; ali, exatamente ali, encontra-se uma das mais singulares virtudes dos anos de aprendizado de Meister."

Em Daniel Jenisch, o reconhecimento dessa renúncia à pai­xão e ao entusiasmo são efetivamente entendidos como caracte­rísticas que asseguram ao romance de Goethe seu papel forma­dor sobre o jovem burguês, uma vez que ali se representa um processo harmônico de desenvolvimento. A interpretação de Jenisch, já comentada em capítulo anterior deste trabalho, peca por ingenuidade e falta de percepção para a ironia que pontua o romance. De toda maneira, é importante ressaltar que, para um crítico contemporâneo do romance, já estava manifesta a indica­ção da renúncia aos projetos grandiosos de formação.

Eichner resume, em poucas palavras, o que acontece efeti­vamente com as pretensões de Meister quanto à sua formação universal:

A aspiração de Wilhelm pela formação universal jamais atingiu sua meta mais elevada ... entretanto, essa aspiração não foi total­mente em vão. Conduziu-o pelo mundo, ensinou-o a reconhecer o mundo em sua realidade. (Ibidem)

Fica então claro que a trajetória de Wilhelm Meister não o levou à almejada "formação universal" nem a nenhuma outra; o que efetivamente ocorreu ao protagonista do romance de Goethe

foi, em relação ao jovem entusiasta dos capítulos iniciais, uma permanente decepção com os ideais que cultivava, sejam os que dizem respeito ao mundo teatral, sejam os que se referem ao "gran­de mundo", ao mundo da aristocracia. Meister encontra-se as­sim, ao final do livro, apto a iniciar seu processo de formação, uma vez que os acontecimentos desbastaram sua ingenuidade tanto quanto às desmedidas ambições artísticas como à concepção idea­lizada do mundo da nobreza.

A dificuldade teórica a que se aludiu acima decorre certamente das expectativas que o livro inaugura, e que, no transcorrer da narrativa, são destituídas, desalojadas, transformadas. Essa per­cepção encontra-se, de maneiras diferentes, em toda a tradição crítica de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. O que mais poderia sustentar críticas como as de Novalis, que compara as cenas finais do romance com as horas que "antecedem a última sessão em um parque de diversões"? Também Emil Staiger (1958, p.172), em sua interpretação canônica de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister como obra clássica, tem reservas quanto ao final do romance:

Quanto mais ele [Wilhelm Meister] se aproxima do ápice, mais pálida sua imagem se torna ... Isso decorre do tratamento sumário dado por Goethe aos últimos livros. Depois do momento de abando­no da carreira teatral, o desenvolvimento de Wilhelm ocorre de­pressa demais. Com os casamentos anunciados ao final, retoma-se completamente o padrão romanesco de uma literatura pré-clássica. Goethe queria terminar e empregou para isso uma fábula.

Hans Eichner afirma que o comentário de Staiger pode pare­cer ao leitor um "desmancha-prazeres", pois desestabiliza as ex­pectativas de um "grande final", de um final digno de um Bildungsroman:

A luz das afirmações acima [de Staiger], poderia ser ainda mais provável que Goethe quisesse, por bons motivos, escrever um final de comédia ou uma cena final de ópera, e que tenha feito exata­mente isso ... Talvez não seja o melhor final para um Bildungsroman no sentido das definições ortodoxas; mas é o final correto para o romance que Goethe realmente escreveu. (apud Gille, 1979, p.288)

Os comentários de Eichner reafirmam uma idéia que os críti­cos de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister vêm repetin­do, com maior ou menor intensidade, já desde seu primeiro co­mentarista, Friedrich Schiller; a existência de um descompasso entre "a moral e a fábula", de um lapso ideológico entre os pres­supostos de um "romance de formação" no sentido tradicional e a realidade constituída pelo romance de Goethe de 1796.

É possível detectar então a existência de uma diretriz crítica e teórica, originada a partir do artigo de Eichner, que põe em dúvida diretamente a existência do Bildungsroman como um "gê­nero universal" capaz de incluir obras variadas sob a égide de características comuns básicas. Ou seja, trata-se de uma crítica que, a partir do final da década de 1970, passou a discutir o próprio estatuto do Bildungsroman e a adequação de seu paradigma, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister.

O artigo de Frederick Amrine, "Rethinking the Bildungsroman" [Repensando o Bildunsgroman], de 1987, é um dos exemplos con­temporâneos mais representativos de uma crítica direcionada a apon­tar efetivas dificuldades em se definir um "gênero", uma forma lite­rária específica sob o termo Bildungsroman por meio do instrumental próprio da teoria literária. Amrine (1987, p.l 19) afirma que "pou­cos conceitos literários são tão largamente empregados e ao mesmo tempo tão problemáticos como o termo Bildungsroman".

A principal dificuldade estaria na extrema amplitude das exis­tentes definições do termo, que resulta em imprecisão e generali­dade demasiadas. Se pode ser considerado um Bildungsroman "qualquer romance que descreva o desenvolvimento individual de um herói ou heroína ... poucas e raras obras não serão classifi­cadas como Bildungsromane, e, efetivamente, poucas escaparam da classificação, em determinadas épocas".

Abre o artigo de Amrine uma citação de Rolf Selbmann (1984), a qual aponta a direção que a análise deve tomar. Selbmann reconhe­ce no Bildungsroman um termo universalmente aceito, ao mesmo tempo em que relativiza sua aplicação: "o que vem a ser um Bildungs­roman 'correto'? -a pergunta é respondida para cada Bildungsroman e em cada época de forma totalmente diferente" (Selbmann, apud Amrine, 1987, p.123).

Apontando contradições nas definições de Bildungsroman por Morgenstern e Blanckenburg, Amrine (1987, p.123) considera confusa a história crítica do Bildungsroman já em seus princípios. Cita uma passagem de Versuch über den Roman [Ensaio sobre o romance] (1774), na qual Blanckenburg descreve "um tipo de ficção que poderia ser entendida como um Bildungsroman". O trecho de Blanckenburg reza que "o aperfeiçoamento, a forma­ção de um caráter" deveria ser "o objetivo firme" de todo bom romance. Amrime aponta que, poucas linhas depois, Blanckenburg reconhece a pouca ocorrência de obras desse tipo: "Talvez não tenhamos mais do que dois ou três desses romances; - talvez mesmo apenas um" (Blanckenburg, apud Amrine, 1987, p.l23).

Para Amrine, o paradoxo se constitui tanto na afirmação de que quase não há mais romances do tipo descrito, bem como no fato de que o único que talvez corresponda ao modelo aludido seja, na opinião de Blanckenburg, o Agathon de Wieland, mas apenas na medida em que seja compreendido como uma bem-sucedida imitação de Richardson (Clarissa, Pamela) e Fielding (provável alusão ao Tom Jones), autores que, segundo ainda Amrine, não escreveram Bildungsromane.

Por um pragmatismo extremo, Amrine prossegue alinhavando argumentos que corroborem a hipótese apresentada no início de seu artigo, de que o Bildungsroman é um conceito pouco apreensível a partir do instrumental tradicional da teoria literária.

Ele adota ainda um corpus sucinto de obra consideradas Bildungsromane, sugerido por Michel Beddow (1982). São elas Geschichte des Agathons [História de Agathon], de Wieland, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe, Der Nachsommer [Veranico], de Stifter, Der grüne Heinrich [Henrique, o Verde], de Keller, e A montanha mágica, de Mann. Embora não se detenha na discussão de cada obra, Amrine (1987, p.123) afir­ma que "ao revermos as tentativas dos estudiosos para determi­nar os elementos compartilhados por esses textos, o que desco­brimos, mais uma vez, é que o processo simplesmente se interrompe. Em lugar de um elenco de critérios nítidos, o que veio gradualmente à tona foi um amplo ceticismo quanto à exis­tência mesma do próprio gênero."

O crítico propõe, ao final de seu artigo, algumas formas de apro­ximação teórica ao fenômeno Bildungsroman que, em sua opinião, poderiam contornar as maiores dificuldades e paradoxos apontados e "oferecer a promessa de novas e significativas perspectivas".

Entre tais propostas, cabe citar aquela que prevê o Bildungs­roman como um "gênero híbrido": uma vez que considera tarefa impossível instituir-se um cânone mínimo, capaz de permitir o reconhecimento do Bildungsroman como "gênero puro", Amrine propõe considerar o Bildungsroman à luz de outras convenções genéricas, como o "romance trivial" ou mesmo como paródia de uma obra determinada.

Deve ainda ser destacada a proposta que o crítico denomina "poética revolucionária" (revolutionary poetics), construída a par­tir da consideração da história da recepção crítica de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Ele reconhece uma oposição entre a interpretação de Schiller contra a de Friedrich Schlegel: enquanto Schlegel

entendeu o potencial revolucinário do "novo" romance de forma mais profunda ... a linha de Schiller-Körner-Dilthey salientou o autodesenvolvimento harmônico e aquilo que se poderia chamar de complacência de um evidente processo bem-sucedido; Friedrich Schlegel e outros românticos [sic] salientaram a fragmentação do sujeito, a ironia, potencialidade e progressividade. A crítica erudita do século XIX deserdou os "goethianos de esquerda", enterrando o que havia de experimental e mesmo revolucionário em sua poéti­ca sob a temática conservadora da Bildung. Além disso, tais Bild-ungsromane não pregam meramente o evangelho do humanismo burguês: a razão pela qual essa suposta "teleologia" permanece "inacabada" (Jacobs) é porque os críticos projetaram sobre tais ro­mances algo que simplesmente não estava lá. (Ibidem, p.135)

Amrine desloca assim o conceito Bildungsroman de seu estatu­to tradicional, privilegiando a perspectiva da história da recepção do romance de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, e do próprio conceito Bildungsroman. O fragmento citado traduz uma opinião, compartilhada com Jeffrey Sammons (1981) e Hartmut Steinecke, que compreendem a existência do Bildungs­roman como uma "ficção crítica". O trecho de Steinecke (1984,

p. 112) esclarece a tese: "O termo Bildungsroman tem sua legitimação histórica, porém, e não caracteriza o fenômeno, mas antes sua in­terpretação". Entretanto, não é o artigo de Steinecke a instância original da opinião crítica que compreende o Bildungsroman como uma formação puramente discursiva, "fabricada" por uma crítica conservadora. O artigo de Jefrrey Sammons, da Yale University, pu­blicado na revista Genre em 1981, é a fonte dessa tese.

A tese central defendida por Sammons (1981, p.230) é a de que não se podem encontrar exemplos de Bildungsromane na lite­ratura alemã do século XIX: "Sou obrigado a relatar que, depois do que considero uma investigação e uma pesquisa razoavelmente conscienciosas, fui incapaz de localizar esse celebrado gênero no século XIX".

Sammons inicia sua argumentação afirmando que não se pode entender o termo Bildungsroman sem recorrer a Goethe, atrelado ao conceito de evolução análogo aos processos biológicos de sístole e diástole, expansão e contração, expressado no poema Urworte: Orphisch, de 1817. No poema goethiano, a trajetória evolutiva está estruturada em cinco estágios, e a cada um corresponde uma "pa­lavra original" em grego: daimon, tykhe, eros, anangke e elpis, respec­tivamente a semente individual e primordial, as determinações aci­dentais, o envolvimento amoroso, a necessidade invencível e a esperança.

Os romances do Wilhelm Meister representariam o caso concreto desse processo de desenvolvimento morfológico. Ali,

um indivíduo de dimensões bastante comuns, seriamente desprovi­do de um conhecimento apurado de si próprio, porém pleno de potencialidades latentes, desenvolve a si mesmo, em direção à ple­nitude de sua própria individualidade e à consciência desse proces­so de transformação. Concorrem para esse desenvolvimento o pro­cesso de tentativa e erro, a atividade e o amor, ao lado da sábia orientação de terceiros, a qual deve conduzir à aquisição da capaci­dade de julgamento independente. (Ibidem, p.231)

Sammons retoma portanto uma interpretação canônica não apenas de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, referindo-se ao conjunto dos "romances do Wilhelm Meister" como a ilus-

tração de um processo de desenvolvimento análogo ao desenvol­vimento biológico/morfológico. Sob esse aspecto, a leitura de Sammons é tradicional, conservadora. A inovação de seus pontos de vista consiste na afirmação de que "tais obras [os 'romances de Wilhelm Meister'], especialmente o primeiro deles,2 projetam uma sombra bastante longa sobre o posterior desenvolvimento do gênero romance na Alemanha" (Ibidem).

Ao longo de seu artigo, Sammons argumentará que o conceito Bildungsroman não pode ser tomado sem reservas como um termo de significado genérico. Primeiramente, porque o termo Bildung é historicamente datado, um "rebento da Aufklärung", atrelado a uma concepção fundamentalmente otimista das potencialidades do in­divíduo. Além disso, o conceito Bildungsroman estaria relatado necessariamente a um processo teleológico, nos moldes da evolu­ção biológica. Assim, "um indivíduo... que permance inalterado ao longo de sua trajetória de vida pode passar por experiências de aprendizado, mas não por formação (Bildung)".

Sammons recolhe assim argumentos na defesa da hipótese de que o Bildungsroman é um termo estreitamente ligado a concep­ções vigentes ao final do século XVIII na Alemanha, das quais o processo evolutivo sofrido pelo protagonista de Os anos de apren­dizado de Wilhelm Meister é uma das mais lapidadas expressões.

Como decorrência, o termo Bildungsroman perderia sua capacidade de designar obras alheias ao núcleo histórico e cultu­ral constituído pelas expectativas "otimistas" da burguesia ilus­trada, sendo portanto compreendido como um conceito histori­camente restrito.

Para Sammons, o "Bildungsroman ideal" encontra-se efeti­vamente concretizado nos limites dos romances de Wilhelm Meister; entretanto, embora Wilhelm Meister deixe muitos traços visíveis em romances alemães posteriores, isso não faz deles Bildungsromane.

1 Equivocadamente, Sammons refere-se aqui a Wilhelm Meisters teatralische Sendung [Missão teatral de Wilhelm Meister], em lugar de Os anos de aprendizado.

A hipótese central de Sammons é a de que o Bildungsroman é um "gênero fantasma" no século XIX, tanto na Alemanha quanto em outras literaturas nacionais européias. Retoma o corpus suge­rido por Martin Swales (em The gertnan Bildungsroman from Wieland to Hesse, Princeton University, 1978), constituído pelo Nachsommer [Veranico] de Stifter, Der Grüne Heinrich [Henrique, o verde] de Keller e, mencionados "de maneira bastante fugaz", Heinrich von Ofterdingen de Novalis, Ahnung und Gegenwart [Pressentimento e presença] de Eichendorf, Maler Nolten [O pin­tor Nolten] de Mörike, Die Epigonen [Os epígonos] de Im-mermann, Soll und Haben [Débito e crédito] de Freytag e Der Hungerpastor [O pastor da fome] de Raabe, para argumentar, ante cada um desses romances do século XIX, sua inadequação peran­te o modelo canônico do Bildungsroman.

A hipótese de Sammons é construída a partir da idéia central de que o Bildungsroman é, na literatura do século XIX na Alema­nha, uma ficção crítica. Sammons difere aqui de Amrine ao admitir a existência do paradigma constituído pelo romance goethiano; entretanto, também reconhece a precariedade de constituição de um "gênero ... de uma categoria à qual se possa admitir apenas Wilhelm Meister e talvez mais dois exemplos e meio".

Argumenta, com base em dados da história literária, que o papel predominante do modelo goethiano na tradição literária alemã pode ter impedido a repercussão dos romances que "as pessoas efetiva­mente escreveram e leram". Isso significa que uma produção varia­da de romances históricos, sociais e políticos, de romances realistas com acento regional, teve sua autonomia eclipsada pela longa e poderosa sombra do modelo goethiano do Bildungsroman, consi­derado como predominante e característico.

A hipótese de Sammons compartilha da perspectiva deno­minada por Amrine de "poética revolucionária", que pressupõe o estabelecimento de um cânone conservador e pleiteia a revisão de preceitos estabelecidos pela história da literatura; neste caso, Sammons contraria a acepção de que o romance realista, social e político tenha sido praticado na Alemanha com menor ênfase do que em outras literaturas nacionais européias, como afirma, por exemplo, Hans Meyer em Von Lessing bis Thomas Mann [De

Lessing a Thomas Marin ], ou mesmo Lukács, em sua Teoria do romance. Em defesa da hipótese de Sammons, podem ser consi­deradas três premissas de caráter histórico-literário.

A primeira delas reconhece a existência de um grande hiato, no sistema público-obra do século XIX, entre os romances de "qua­lidade artística" e as obras que efetivamente chegavam à visibili­dade do público: "Os romances mais populares são de mais baixa qualidade, enquanto aqueles livros que hoje possuem estatuto canônico eram obscuros e foram lidos, se tanto, por uma elite intelectual constituída por uma estreita faixa da população" (Ibidem, p.239).

Com isso, Sammons pretende afirmar que, na Alemanha, a leitura de romances era uma espécie de tarefa intelectual,³ ao passo que na literatura de língua inglesa, por exemplo, essa prática deu-se de forma mais próxima ao público. A hipótese de Sammons

A hipótese de Sammons, de que Goethe não foi, à sua época, um autor popular, pode ser corroborada pelo Walter Benjamin de O que os alemães liam enquanto seus clássicos escreviam, peça de 1932 em que, através de alegorias como a "Voz da Ilustração", "Voz do Romantismo", "Primeiro Literato" e "Segundo Literato", bem como da caracterização das figuras históricas do editor alemão Johann Friedrich Unger (editor de Goethe) e do escritor Karl Philipp Moritz, delineia-se o panorama do público leitor da Alemanha entre 1790-1800. Reproduz-se aqui um pequeno trecho do diálogo entre o Locutor e a Voz da Ilustração:

"Locutor: E o que você trouxe para as pessoas? Voz da Ilustração: Justiça e Cultura ao alcance de todos. Locutor: De todos? Você fala evidentemente em sentido figurado. Voz da Ilustração: Como assim? Locutor: Os livros de seus amigos custam caro. A História da Guerra dos Trinta Anos, de Schiller, está por 18 marcos, de acordo com o catá­logo da Editora Göschen. Para o Benvenutto Celinni estão pedindo 24 marcos. E a edição das obras de Goethe, publicada em 1790, consta do catálogo com o preço de 57 marcos. Voz da Ilustração: Sinto muito. Mas isso não prova apenas que a leitura dos clássicos era de difícil acesso, mas também, que havia pessoas dispostas a fazer sacrifícios. A edição de um clássico era uma aquisição para a vida inteira. Digo mais: um dote para filhos e netos. Locutor: Ficava na prateleira, mas será que era lida? Ao fim de sua vida, Goethe disse, ele que devia conhecer o assunto: O grande público tem tão pouco juízo quanto pouco gosto; mostra o mesmo interesse pelo vulgar e pelo sublime."

explica, portanto, a vasta projeção teórica do modelo do Bild-ungsroman sobre a produção romanesca do século XIX na Ale­manha como resultante desse modo de leitura, que teria aproxi­mado o romance como categoria genérica do conteúdo programático da Bildung (formação) burguesa.

O segundo argumento de Sammons, relacionado ao primeiro, leva em conta a constituição do próprio cânone da tradição lite­rária alemã. Segundo ele, o cânone qualitativo que nós hoje reco­nhecemos formou-se na era guilhermina, uma canonização relativa­mente moderna. Desde então, Goethe e o romantismo encontram-se no centro dessa configuração, o que por si asseguraria um caráter especificamente alemão em contraste com a cultura de outras na­ções. O próprio termo Bildungsroman em sua significação moder­na foi posto em circulação por um dos expoentes críticos da época guilhermina, Wilhelm Dilthey. Essa configuração histórico-literá-ria teria então assegurado ao Bildungsroman a predominância ante o romance social, ao romance histórico ou político; ou seja, o Bildungsroman teria sido então compreendido como uma catego­ria genérica capaz de abranger grande parte da produção romanes­ca do século XIX, impondo-se a ela como modelo interpretativo.

O terceiro argumento decorre do anterior e tem na figura do autor Goethe o ponto central de sua sustentação: "a avassaladora

Ou ainda, o trecho que trata das vendas de exemplares de obras de Goethe:

"Heinzmann: ... O senhor sabe quantos assinantes Göschen conseguiu para a edição de Goethe, que ele publicou entre 87 e 90? Peguei os números com o próprio. Seiscentos! Quanto às edições de obras isola­das, parece que a vendagem era pior ainda. Da Ifigênia e do Egmont, trezentos exemplares. Sem falar do Clavigo ou do Götz." (Benjamin, 1986, trad. de Willi Bolle, p.64-81)

O texto da peça de Benjamin reforça a hipótese da grande distância cultural entre as obras clássicas e o público leitor na Alemanha do final do século XVIII, ávido por almanaques, historietas, por "literatura trivial", en­fim. Indiretamente, o texto de Benjamin legitima a proposta de Sammons, que vê no Bildungsroman uma projeção intelectual e elitista da estreita faixa dos leitores de Goethe seus contemporâneos.

magnitude de Goethe e o enorme investimento sobre sua imagem autoral no início da era da formação do cânone obscureceu total­mente o fato de que ele era uma figura aberrante na tradição alemã. Ele não foi representativamente alemão, e nem as pessoas em sua própria época pensaram que ele fosse". (Ibidem, p.241)

O último parágrafo do artigo de Sammons reitera sua hipó­tese do Bildungsroman como "ficção crítica" na produção roma­nesca do século XIX, ao mesmo tempo em que reafirma a ampli­tude de seu alcance no conjunto da história da literatura:

Há, sem dúvida, muitas lendas na história literária. Eu me per­gunto, porém, se há alguma tão desprovida de fundamento e tão capaz de produzir equívocos como o gênero fantasma do Bildungs­roman do século XIX ... Entretanto, quando se encontra a afir­mação de que o Bildungsroman é o gênero característico e singular­mente nacional da narrativa alemã do século XIX - e ela será encontrada, cedo ou tarde -, deve-se reconhecer a presença de um mito e assumir a postura apropriada de reverência e ceticismo. (Ibidem, p.243)

A despeito de seu caráter radical, a interpretação de Jeffrey Sammons para o fenômeno do Bildungsroman na tradição literá­ria pode contribuir para que se compreenda o caráter ideológico que permeia todo o processo. Vinculado, por um lado, ao surgimento da idéia conservadora da Bildung burguesa, e, por outro, à tradição olímpica da figura de Goethe na tradição literá­ria européia, o Bildungsroman carrega consigo o peso dos discur­sos peculiares a essas configurações estéticas e históricas.

Durante os quase duzentos anos passados desde a criação do termo, bem como da publicação de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, instituiu-se uma grande diversidade discursiva, capaz tanto de estabelecer um gênero, atrelando-o a seu para­digma, como de desestabilizá-lo.

A problematização, vista de um ângulo mais abrangente, está afeita portanto à própria natureza do conceito, pouco apreensível por meio de categorias literárias tradicionais em razão de seu atrelamento circunstancial aos diversos núcleos discursivos dos quais tem sido objeto. Em conformidade com esse processo, é

bastante coerente uma compreensão do Bildungsroman como um produto de configurações históricas e literárias determinadas, que se transformam ao longo da existência do próprio conceito. A longevidade do Bildungsroman no contexto das literaturas euro­péias, e, mais recentemente, das literaturas americanas, só pode ser explicada por essa capacidade do conceito de se deixar apro­priar pelas diferentes épocas histórico-literárias. Tal compreen­são opõe-se a uma leitura do Bildungsroman como manifestação cristalizada e imutável no curso da história literária.

6 A TRADIÇÃO CONSCIENTE

No século XX, o conceito teleológico do desenvolvimento individual sofre uma ruptura. No século da psicanálise e das duas guerras mundiais, a representação do indivíduo como um todo harmônico, desenvolvido segundo suas tendências naturais, não corresponde nem ao cidadão nem ao indivíduo. As condições históricas que sustentavam o grande projeto burguês esfacelam-se, ao mesmo tempo que a personalidade individual se descobre fragmentária.

As conseqüências desse quadro para a história do espírito po­dem ser reconhecidas na própria história do romance como gê­nero literário. Assim como, em sua origem, o Bildungsroman está associado às condições de instalação e ao reconhecimento do ro­mance no panorama dos gêneros "dignos", também sua continui­dade para além das circunstâncias de origem entrelaçam-se à his­tória do romance no século XX.

Sob a égide da "crise do romance" configurou-se, nas pri­meiras décadas do século XX, uma concepção que reconhece a dissolução dos pressupostos que sustentaram o romance burguês

realista, e, por conseguinte, do modelo teleológico de desenvolvi­mento e formação.

O pressuposto fundamental para a idéia da existência de um processo evolutivo, de um processo de formação e desenvolvimento do indivíduo, herança do racionalismo do século XVIII e do cientificismo do século XIX, é interrompido no momento em que se abandona a idéia de uma consciência una, passível de se amol­dar e se formar por meio de um processo linear da experiência; o indivíduo é fragmentário, assim como sua "formação" também deverá sê-lo.

É Nietzsche quem afirma que o Eu se transformara "em fá­bula ... em ficção, em jogo de palavras" (Werke, ed. por Karl Schlechta, II, p.973).

A experiência literária realista refletiria esse estado de coisas por meio de uma transformação no próprio caráter da represen­tação romanesca:

Para a literatura do fin de siècle a dissolução do eu foi uma das experiências centrais ... As suspeitas sobre a constituição una do indivíduo e a desintegração da experiência tornaram questionável uma categoria até então válida para a representação do mundo no romance. Estavam ameaçadas a consistência das personagens, a vi­sibilidade da realidade representada, a coerência da experiência tem­poral. (Jacobs, 1989, p.199)

A idéia de uma "crise do romance" como constituída já no iní­cio do século XX aponta nos depoimentos dos próprios romancis­tas, que, confrontados com uma ordem social que já não corresponde ao modelo positivista e progressista do século XIX, saem em busca de uma nova forma de representação da realidade:

Certo dia ocorreu-me o pensamento de que o mundo não mais poderia ser representado como nos romances antigos, isto é, a par­tir do ponto de vista de um escritor. O mundo se desintegrara, e só aquele que tivesse a coragem de representá-lo em sua desintegração seria capaz de produzir uma representação verossímil da realidade. (Elias Canetti, apud Durzak, 1976, p.92)

Para a crítica, bem como para os próprios romancistas deste século, a experiência do romance burguês realista estava destina-

da à extinção. Uma das maiores conseqüências literárias desse re­conhecimento conflui no romance experimental, na narrativa do fluxo de consciência, nos modelos não-lineares de narrar; em con­seqüência disso, o Bildungsroman do modelo goethiano, que im­pregnara a literatura romanesca desde o século XVIII, deveria for­çosamente conhecer o seu ocaso.

Georg Lukács, na Teoria do Romance de 1916, desenvolve um raciocínio paralelo, que, embora sustentado por uma argu­mentação oposta àquela que anuncia a dissolução da narrativa individual e subjetiva no século XX, leva à mesma conclusão de que o modelo tradicional do romance de formação e/ou desen­volvimento não teria mais lugar naquilo em que Lukács chama de "momento pós-goethiano".

Para o Lukács de 1916, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister de Goethe representa o momento de resolução da crise instalada entre o indivíduo solitário e exclusivamente pessoal (pro­tagonista do romance burguês) e o todo representado pelo mun­do social, pela coletividade épica. Lukács (s. d., p.13) afirma que sua teoria do romance foi escrita sob influência do pensamento hegeliano e diltheyano; ali, o autor "procura estabelecer uma dialética dos gêneros assentada historicamente na essência das categorias estéticas". Isso significa que o teórico de 1916 via a questão do romance burguês sempre em contraponto ante o uni­verso coletivo da epopéia antiga: ou seja, à maneira de Hegel, Lukács via no romance burguês individualista e interiorizante um "romantismo da desilusão", o momento histórico em que o indiví­duo solitário problemático fracassaria em seus empreendimentos, o momento em que a narrativa desse percurso solitário reflete o fracasso dos projetos exclusivamente individuais.

No estudo de 1916, o romance de Goethe Os anos de apren­dizado de Wilhelm Meister é, portanto, considerado sob a pers­pectiva da "tentativa de síntese", de "reconciliação entre o indiví­duo problemático com a realidade social concreta". Lukács (p.14) reconhece na obra de Goethe "um equilíbrio entre a ação e a con­templação, entre a vontade de intervir eficazmente no mundo e a aptidão receptora em relação a este. É aquilo a que se chama o romance de educação".

Lukács reconhece Os anos de aprendizado como a possível síntese entre os desejos subjetivos do indivíduo e a realidade social, repetindo assim uma concepção presente já em Dilthey que reconhecia no modelo goethiano a tendência a um "final harmônico", um equilíbrio entre a subjetividade (vita con­templativa) e a atividade voltada para o mundo exterior (vita activa). Afirma, entretanto, que tal fórmula se tornaria cada vez mais difícil de ser repetida nos modelos pós-goethianos. Nesses, os caracteres individuais perdem sua capacidade de serem "exem­plares", "protagonista e destino são algo exclusivamente pes­soal". Essa subjetividade excessiva empresta ao todo representado "o caráter fatalmente insignificante e sem alcance de uma histó­ria puramente privada ... Trata-se do perigo a que sucumbiu nos nossos dias o romance de educação na maioria dos casos". (Ibidem, p.147).

Lukács acredita, portanto, em uma intensificação histórica da experiência subjetiva, no sentido da narrativa das experiências pessoais, do cotidiano privado. Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister representaria então o momento ideal, a última possibili­dade literária de representação da reconciliação entre indivíduo e realidade social, a síntese entre a subjetividade da história indivi­dual e o sentido épico da história coletiva.

Lukács compreendeu assim o Bildungsroman, por meio de seu paradigma Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, não como uma narrativa predominantemente individual, na qual as questões particulares são o centro das problematizações, mas como um romance que se aproximaria da narrativa épica, na medida em que contempla também as aspirações e os questionamentos de uma co­letividade. Entretanto, esse momento ideal da história do romance moderno seria historicamente datado; Lukács considera Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister como o ápice de uma forma des­tinada ao desaparecimento, uma vez que se alteraram os pressu­postos históricos que lhe deram origem.

Assim, também Georg Lukács, um dos teóricos de maior in­fluência para a história do romance no século XX, reconhece a continuidade do modelo tradicional do Bildungsroman como uma impossibilidade histórica; o Meister de Goethe teria sido assim o

momento máximo da concretização dos ideais de conciliação en­tre indivíduo e sociedade.

É possível detectar uma linha de raciocínio semelhante nos dois ensaios de Walter Benjamin, O narrador e A crise do romance (1930). Ambos os textos levam adiante a oposição entre o ro­mance burguês e a narrativa épica. Benjamin atribui ao primeiro um caráter predominantemente escriturai e subjetivo; a ele se interpõe a narrativa de origem oral e anônima, integrante e decor­rente da experiência coletiva. Para Benjamin (1987b, p.201),

O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa - contos de fadas, novelas - é que ele nem procede da tradição oral nem a alimenta. Ele se distingue, especialmente, da narrativa. O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria expe­riência ou a relatada por seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações...

Benjamin (p.211) atribui ao romancista uma "memória perpetuadora", que, "em contraste com a breve memória do narrador, é consagrada a um herói, uma peregrinação, um com­bate". A memória do narrador, ao contrário, dedica-se a "muitos fatos difusos".

Em O narrador, de 1936, encontram-se, portanto, desenvol­vidos os pressupostos de A crise do romance, de 1930, em que Benjamin efetivamente se refere ao "velho romance de formação do período burguês".

Ali, Benjamin comenta o então recém-publicado romance de Alfred Döblin Berlin Alexanderplatz, à luz do "fortalecimento da radicalidade épica", afirmando que o romance de Döblin, por meio do princípio estilístico da montagem, "faz explodir o 'ro­mance', estrutural e estilisticamente, e abre novas possibilidades, de caráter épico" (Ibidem, p.56). O protagonista de Alexan­derplatz, Franz Biberkopf, percorre efetivamente um itinerário, à maneira dos protagonistas do romance de formação: "Como essa fome de destino é saciada, saciada por toda a vida ... e como o marginal se transforma num sábio - esse é o itinerário de sua vida" (p.59).

Benjamin emprega mesmo a palavra "amadurecimento", en­tre aspas, para designar o processo sofrido por Biberkopf. Reco­nhece, porém, na trajetória do herói de Döblin, o momento em que "Franz Biberkopf deixa de ser exemplar e ascende, em vida, ao céu dos personagens romanescos". Esse é o momento em que Biberkopf, protagonista de um romance que resgata os valores e recursos épicos, encontra um paradeiro, um destino individual, aproximando-se assim do herói do romance burguês:

Pois essa é a lei da forma romanesca: no momento em que o herói consegue ajudar-se, sua existência não pode mais ajudar-nos. E se é certo que essa verdade vem à luz, em sua forma mais impla­cável, na Education sentimentale, então a história de Franz Biberkopf é a Education sentimentale dos marginais. O estágio mais extremo, mais vertiginoso, mais definitivo, mais avançado, do velho "romance de formação" do período burguês. (Ibidem, p.60)

O comentário citado é extremamente significativo para a his­tória do conceito Bildunsgsroman no século XX. Seguindo em prin­cípio uma linha de raciocínio semelhante à de Lukács, que vê na recuperação da narrativa de caráter épico a contrapartida para o excesso de individualismo burguês peculiar ao romance, Benja­min reconhece a possibilidade de subsistência do "velho romance de formação do período burguês" em uma forma mais "extrema, mais vertiginosa, mais definitiva, mais avançada", configurada no romance de Döblin, Berlin Alexanderplatz.

Entretanto, ao passo que para Lukács o modelo de síntese en­tre o romance burguês e uma narrativa de caráter épico e aberto tem em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister a sua melhor expressão e, ao mesmo tempo, seu último exemplo, em Benjamin esse modelo parece ser uma forma de sobrevivência do romance burguês.

Este só poderia então manifestar-se por meio de uma forma "vertiginosa e extrema", "épica", forma essa que, no caso do romance de Döblin, se concretizou pela representação da trajetória de um mar­ginal, Franz Biberkopf, em lugar dos anos de formação de um herói burguês, como Fréderique Moureau de A educação sentimental de Flaubert ou o Wilhelm Meister de Os anos de aprendizado.

É, portanto, Walter Benjamin, e não Lukács, que indica as possibilidades de continuidade do romance burguês e do modelo identificado no Bildungsroman, na realidade histórica e social do século XX.

Estabelece-se assim uma nova galeria de protagonistas de ro­mances em que a questão da formação está presente, de uma for­ma, porém, que ultrapassa os pressupostos do romance realista burguês, reconfigurando-os conforme a realidade histórica.

DOIS CASOS EXEMPLARES: O FELIX KRULL

DE THOMAS MANN E O TAMBOR DE GÜNTER GRASS

Confissões do impostor Felix Krull (Bekentnisse des Hoch-staplers Felix Krull), romance de Thomas Mann iniciado em 1911 e publicado em 1954, e O tambor (Die Blechtrommel), de 1959, serão analisados aqui sob a perspectiva da continuidade da tradi­ção do Bildungsroman.

O Felix Krull de Thomas Mann e O tambor de Günter Grass são obras em que se reflete a contradição entre o individualismo necessariamente constitutivo do gênero "romance" e uma frag­mentação ou ampliação dos limites do universo individual, na medida em que este se transforma em relação ao romance bur­guês de modelo goethiano.

Em seu caráter crítico-parodístico, como se verá a seguir, o Felix Krull, rebento confesso do conceito de formação da época de Goethe, o atualiza por meio da paródia e do recurso à pica­resca. O Felix Krull consiste em resposta ao modelo do romance burguês tradicional, e, mais precisamente, ao modelo do ro­mance de formação como entendido pela tradição, na medida em que o protagonista, ao relatar sua trajetória, não tem como perspectiva a integração, a constituição de uma personalidade individual, mas sim a abolição de quaisquer marcas distintivas de caráter.

Também em O tambor está presente o conceito goethiano de formação, por meio de alusões diretas a passagens significativas tanto do romance Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister

quanto da autobiografia de Goethe Dichtung und Wahrheit [Poe­sia e verdade]. Aqui, o conceito de formação no sentido clássico é atualizado sobretudo pela figura do protagonista, um "aborto do século vinte", em oposição aos "jovens de caráter nobre Wilhelm Meister e Henrique, o verde" (referência ao romance de Keller, Heinrich der Grüne). Além disso, em O tambor está presente tam­bém, ao lado da narrativa da história de seu protagonista Oskar Matzerath, a perspectiva épica da história de um povo, na me­dida em que a narrativa da biografia de Oskar imbrica na narra­tiva de episódios coletivos da história européia entre os anos de 1928 a 1958 (o período que cobre o nascimento do protagonista até o momento em que ele passa a escrever sua biografia).

A referência manifesta, nos dois romances, ao modelo cons­tituído pelo romance de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister e à autobiografia Poesia e verdade não significa, absolutamente, que Felix Krull e O tambor possam ser simples e diretamente classificados como Bildungsromane. Mais correto se­ria dizer que, tanto em Felix Krull como em O tambor, o conceito de formação que se conjugou à obra de Goethe Os anos de apren­dizado de Wilhelm Meister está presente de maneira diluída, trans­formado, em sintonia com as cristalizações da história recente da Europa.

O discurso da paródia

O Felix Krull

Em sintonia com suas Confissões de um apolítico (Betrachtungen eines Unpolitischen), obra em que Thomas Mann trouxe a público sua própria crise de desenvolvimento ante a nova configuração européia e também especificamente alemã provocada pelas altera­ções políticas e sociais do pós-Primeira Guerra, o Felix Krull surge como resposta a uma questão ao mesmo tempo política e estética.

Nas Confissões de um apolítico, Mann mostra-se consciente de um avanço da democracia e da crescente politização que se ins­talara na Europa após o término da Primeira Guerra Mundial. Li-

terariamente, esse avanço representava, em sua opinião, o desapa­recimento de uma tradição intelectual e espiritual típica do espírito alemão: o romance individual, burguês, apolítico e interiorizante. Assim, em defesa de uma forma de romance que preservasse a indi­vidualidade interiorizante e a especificidade do "espírito nacional alemão", Mann (1960, v.XI, p.702) escreve em 1916:

Existe, no entanto, uma variedade do romance que é acima de tudo alemã, tipicamente alemã, legitimamente nacional; trata-se precisamente do romance de formação (Bildungs-) e do romance de desenvolvimento (Entwicklungsroman), de caráter autobiográfico. O predomínio dessa forma de romance na Alemanha, a evidência de sua singular legitimidade nacional, está estreitamente associado ao conceito alemão de humanidade, o qual, por ser o produto de uma época em que a sociedade se atomizou, fazendo de cada ci­dadão um indivíduo, carece desde sempre do elemento político.

Para Mann, o romance burguês de cunho individualizante, que tem no Bildungsroman seu paradigma mais eloqüente, é a for­ma narrativa de maior afinidade com o "conceito alemão de hu­manidade", com as características interiorizantes e apolíticas de um provável "espírito alemão", como Mann então o entendia. A experiência coletiva atribuída por Mann ao romance social (Gesellschaftsroman) opunha-se um conceito herdado da tradi­ção: o romance de formação (Bildungsroman) de caráter autobiográfico: "formação (Bildung) é um conceito especificamente alemão; provém de Goethe, e dele herdou seu caráter plástico-artístico, o sentido da liberdade, cultura e crença na vida ... por intermédio dele esse conceito foi elevado a princípio educativo na Alemanha como em nenhuma outra nação" (Ibidem, p.505, v.XII). E acentuando o caráter apolítico desse ideal: "Pois o cará­ter alemão é radicalmente oposto à politização, o elemento polí­tico falta efetivamente ao conceito alemão de formação" (Ibidem, p . l11 , v.XII).

Assim, para o Mann de 1916, o romance burguês individua­lizante de caráter autobiográfico mostrava-se como a alternativa contra a coletivização própria de uma civilização de massa, con­tra o desaparecimento de uma tendência à auto-reflexão e à estetização da própria existência peculiar ao espírito alemão.

Ao mesmo tempo, porém, em que reconhecia a afinidade do "espírito alemão" com uma forma narrativa interiorizante, subje­tiva e apolítica, Mann dava-se conta de que a crescente "demo­cratização" não mais permitia a possibilidade histórica de um "ro­mance de formação individualista alemão".

É possível acompanhar, no romance Confissões do impostor Felix Krull, as decorrências estéticas do reconhecimento da im­possibilidade histórica da continuidade de um romance tributário do individualismo burguês romântico ante a compreensão de que o aspecto político e social são "parte integrante da condição humana".

Tributário de duas grandes tradições da narrativa européia aparentemente irreconciliáveis, o modelo goethiano biográfico/ autobiográfico e o romance picaresco, As confissões do impostor Felix Krull situam-se assim na discussão estética e teórica sobre as possibilidades do romance no século XX.

O Felix Krull e o modelo goethiano

O romance de Mann representa a trajetória do jovem Felix Krull desde a província, passando por Frankfurt, Paris e finalmente o mundo, ou o "grande mundo". Filho de um fabricante de falso champanhe, Krull e sua família, composta então pela mãe e pela irmã, são obrigados a abandonar suas propriedades após a ban­carrota e o suicídio do pai, Engelbert Krull.

Já no primeiro parágrafo, fica evidente a filiação que o narrador pleiteia para a obra:

Pegando da pena para, em completo ócio e isolamento - com boa saúde, aliás, embora cansado, muito cansado ... - para come­çar, pois, a confiar a este paciente papel as minhas confissões, na caligrafia limpa e agradável que me é peculiar, assalta-me o receio de talvez não estar à altura deste empreendimento intelectual, por causa de minha formação e instrução. Mas, como tudo que tenho a relatar provém de minhas experiências, enganos e paixões mais di­retos e pessoais - e é assim que domino perfeitamente o meu tema -, tal dúvida pode, quando muito, relacionar-se ao ritmo e à quali­dade do meio de expressão de que disponho; além disso, acho que,

nessas coisas, os estudos regulares são bem menos importantes do que talento natural e boa formação na infância. (Mann, 1991, p.9)

O narrador Felix Krull narra a trajetória de sua vida, a partir de um ponto no espaço e no tempo no qual já se encontra distan­ciado do material narrado e capaz de refletir sobre os aconteci­mentos passados. Chama ao próprio projeto de "empreendimento intelectual", aproximando-se então de um tipo de escritura que tem seu modelo nas autobiografias intelectuais como As confis­sões de Rousseau e Poesia e verdade de Goethe, obra com a qual o romance de Mann evidentemente dialoga.

Krull não hesitará mesmo em relatar ao leitor seu período de aprendizado, numa clara alusão tanto ao conteúdo da autobiogra­fia Poesia e verdade quanto ao romance de Goethe Os anos de apren­dizado de Wilhelm Meister.

Esse período de aprendizado é narrado como a estada de Krull em Frankfurt (não por acaso a cidade natal de Johann Wolfgang Goethe), no período que antecederá ou sua partida para Paris ou o serviço militar. Lá, Krull dedica-se ao aperfeiçoamento de suas qualidades. E este se dá pelo ócio, "sempre tão necessário e bem-vindo ao adolescente". Consciente de seus talentos inatos, Krull dedica-se a aperfeiçoá-los, pois "ninguém pode adquirir o que não traz em si desde o nascimento, e não devemos querer possuir o que nos for estranho. Quem é de constituição inferior não obterá elevação de espírito; quem a conquista jamais foi grosseiro" (Ibidem, p.75).

Fiel, portanto, a essa máxima pedagógica que acredita poder aperfeiçoar apenas os talentos inatos, Krull passa a dedicar-se a seus "estudos urbanos", aos quais chama de sua "formação cultural".

Esta se realiza prioritariamente por meio das andanças pelas ruas dos bairros luxuosos da cidade, onde Krull, observando as vitrines, aprenderá a avaliar corretamente o valor e a necessidade dos objetos que servem ao luxo da aristocracia e alta burguesia. Krull aprende a conhecer "as necessidades de uma vida nobre e diferente, os frasquinhos de perfume, as escovas, os nécessaires ... o adolescente podia impregnar sua memória de tudo o que fazia parte de um elegante enxoval masculino" (Ibidem, p.76).

Krull familiariza-se assim com os objetos necessários ao coti­diano dos ricos, dos atores do "grande mundo"; aprende a ava­liar o valor de cada jóia, de cada obra de arte exposta nas vitri­nes, bem como se familiariza com os hábitos da camada social à qual virá a pertencer, na pele do Marquês de Venosta:

E as papelarias, cujas estantes me ensinavam que papéis um cavalheiro emprega em sua correspondência, e como se manda im­primir neles as iniciais do próprio nome, com coroa e brasão? ...

O dom de olhar, este me fora concedido, e era naquela época tudo o que me importava - certamente um dom educativo diante das coisas concretas, das exposições atraentes e instrutivas do mundo. (Ibidem, p.78-9, grifo da autora)

Em seus "anos de aprendizado" Felix Krull projeta seu ideal de formação sobre a aristocracia, Krull considera parte de seu programa de aprendizado a familiarização com os objetos que servem à nobreza, iniciando-se na arte da aparência. O conheci­mento assim adquirido será fundamental para que Krull assuma, no terço final do livro, a identidade do Marquês, ponto alto de sua trajetória.

Assim como Wilhelm Meister acredita que apenas o nobre pode adquirir uma formação universal, projetando assim seus ideais em uma classe social superior à sua, também Krull acredita poder desenvolver todas as suas potencialidades em um círculo social e econômico elevado.

Também como Wilhelm Meister, Krull é originário da peque­na burguesia. Enquanto Meister está consciente de suas origens burguesas e das impossibilidades que elas lhe atribuem, Felix Krull corteja a idéia de ter entre seus antepassados um grande senhor, um fidalgo. Consciente de seus talentos intelectuais e de sua ten­dência natural às boas maneiras, bem como de sua bela figura, Krull passa a pôr em dúvida a herança genética que lhe atribuí­ram seus antepassados.

Como me pareciam tolos e inferiores os outros meninos da cidadezinha, que obviamente não tinham essa capacidade, e por­tanto jamais desfrutariam das alegrias silenciosas que eu tirava dis­so sem qualquer manifestação externa, com um simples ato de von-

tade! É certo que eles, os rapazes comuns, de cabelo duro e mãos avermelhadas, teriam passado momentos amargos e tornar-se-iam ridículos, se tivessem desejado convencer-se de que eram príncipes. Mas eu tinha cabelos macios como seda, raramente encontrados em pessoas do sexo masculino, e, por serem louros, formavam jun­to aos olhos de um cinza azulado um contraste fascinante com o moreno dourado de minha pele: ... minhas mãos, das quais cuidei desde cedo, sem serem demasiadamente pequenas, eram muito bem-feitas, nunca suadas, mas moderadamente cálidas, secas, com unhas de belo formato e agradáveis por si sós; minha voz ... era doce ao ouvido ... De qualquer modo, eu não podia ignorar que era forma­do de material refinado, ou, como se costuma dizer, de madeira mais nobre que meus semelhantes ... fiel à verdade, repito que sou esculpido da mais fina madeira. (Ibidem, p.15-6)

Krull concede a si mesmo o benefício da dúvida, entre a crença

numa natureza generosa que o escolhera aleatoriamente como

portador de seus melhores dotes e uma dádiva hereditária, trans­

mitida por uma ligação clandestina entre mulheres de sua família

e um hipotético antepassado aristocrático do qual não se tem no­

tícia mais concreta.

De modo geral, porém, convenci-me de que não devia muito às minhas origens; e, como não quisesse aceitar que em um ponto indeterminado da história de minha estirpe tivessem ocorrido secre­tas irregularidades, de modo que entre meus antepassados naturais houvesse algum cavalheiro e grande senhor, seria preciso descer às minhas próprias profundezas para esclarecer a origem de meus pri­vilégios. (Ibidem, p. 66-7, grifo da autora)

A passagem transcrita veicula a crença de Felix Krull na idéia

de que a cultura e o refinamento, mesmo físico, são dotes inaces­

síveis ao burguês, são privilégios de uma hereditariedade seleta e

predeterminada, ou então um dote da natureza a seus escolhidos.

Wilhelm Meister, o protagonista do romance de Goethe, acre­

dita, em um primeiro momento, ser possível superar esse abismo

de classes por meio da carreira teatral. O teatro ofereceria a única

possibilidade de ultrapassar esses limites, de se tornar, assim como

o nobre, uma "pessoa pública", desenvolvendo e harmonizando suas

qualificações pessoais. Meister escreve então na carta a Werner: "Já

percebes que só no teatro posso encontrar tudo isso e que só nesse elemento posso mover-me e cultivar-me à vontade. Sobre os pal­cos, o homem culto aparece tão bem pessoalmente em seu brilho quanto nas classe superiores..." (Goethe, 1994, p.288)

Meister acredita poder resolver o conflito de sua origem bur­guesa e suas aspirações a uma formação universal e a um desen­volvimento harmonioso de suas qualidades latentes pela dedicação ao teatro, a uma atividade artística, de representação, em que se­ria permitido ao burguês comportar-se com a mesma dignidade e graça de um nobre, cultivando assim suas qualidades.

Assim, se o herói de Os anos de aprendizado vê na repre­sentação um caminho para sua formação pessoal, para o desen­volvimento de uma personalidade, Krull utiliza o mesmo expe­diente, a representação, o disfarce e até mesmo o embuste e a trapaça, para ascender socialmente. Porém, enquanto no roman­ce de Goethe são evidenciados os esforços do protagonista em busca de assumir uma personalidade própria, harmônica, em Felix Krull esses esforços convergem para a assunção de todas e ne­nhuma identidade.

O modelo goethiano veicula a trajetória do indivíduo em busca da constituição de uma personalidade individual, diferenciada e harmônica. Ali, a referência aos modelos fornecidos pela aristo­cracia é decorrência inevitável de uma sociedade fortemente classista, na qual as possibilidades de ascensão e flexibilização so­cial pelo mérito e pelo trabalho praticamente não existiam.

Em Felix Krull, a trajetória do protagonista demonstra não o desejo de constituir uma personalidade individual, cultivando-a segundo os padrões de uma desejável universalidade, mas sim o desejo de livrar-se de qualquer pessoalidade, de quaisquer marcas de individualidade que possam levar ao reconhecimento do ci­dadão que as porta.

Dessa forma, o Felix Krull, evidente rebento da tradição goethiana do desenvolvimento de uma enteléquia, do cultivo das qualidades individuais, contrapõe-se dramaticamente a seu mo­delo. A trajetória de Krull é uma sucessão de disfarces, de pe­quenos delitos, de muitas trocas de nome e de identidade, que culminam no grande acontecimento que é a troca de identidade

com o Marquês de Venosta. Os prenúncios dessa vocação para a

farsa e para a anulação das marcas exclusivamente pessoais fa­

zem-se sentir já no jovem Krull, em comentários aparentemente

casuais, que já anunciam, porém, sua vocação para o disfarce:

Mas, voltando a falar de mim, naquelas semanas ocupou-me especialmente a troca de nome que o casamento significaria para minha irmã, e pela qual, segundo recordo, eu a invejava a ponto de sentir rancor ... Como é cansativo e tedioso assinar a vida in­teira o mesmo nome em cartas e documentos! A mão acaba por se paralisar de repulsa e fastio! Que benefício, que estímulo, que re-frigério da existência, apresentar-se com novo nome e ouvir-se chamar assim! A possibilidade de pelo menos uma vez na vida mudar de nome pareceu-me um grande privilégio do sexo femini­no em relação aos homens, aos quais esse privilégio é negado pela lei e pela ordem.

E, numa alusão do narrador ao que lhe aconteceria no futuro:

Quanto a mim, que não nasci para levar, na proteção da ordem burguesa, a vida indolente e segura da grande maioria, mais tarde, não sem talento inventivo, muitas vezes passei por cima dessa proi­bição, que se opunha à minha segurança e à minha necessidade de diversão. (Mann, 1991, p.54)

Em Felix Krull, o talento para o disfarce e para a troca de

identidade são mais do que mero exercício artístico ou contin­

gência de uma vida vivida à margem da lei burguesa; para Krull,

a máscara e o disfarce são as únicas formas possíveis de se apre­

ender a própria realidade:

Assim, como se vê, comecei a levar uma vida dupla, cuja beleza consistia em permanecerem ignorados qual minha forma real e qual o meu disfarce: quando servia solicitamente como empregado nos sa­lões do Saint James and Albany, ou quando, senhor desconhecido e distinto, dando a impressão de ter um cavalo de montaria e, depois de seu jantar, visitar certamente alguns salões ainda mais exclusivos, dei­xava-me servir à mesa por garçons, nenhum dos quais, pensava eu, se igualava a mim nessa outra qualidade. Disfarçado eu estava de qual­quer maneira, e a realidade não mascarada era impossível de definir, porque realmente não existia. (Mann, 1991, p.211, grifo da autora)

A última oração concentra, em sua agudeza, a síntese da tra­jetória de Krull. Confessando-se "disfarçado de qualquer manei­ra", Krull confronta seu mimado leitor com o enigma de sua pró­pria personalidade de protagonista, que permanece obscura até as últimas páginas. Dessa forma, As confissões do impostor Felix Krull contrapõe-se dramaticamente a seus modelos confessos, a autobiografia de Goethe e Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, invertendo mesmo os pressupostos deste. É possível com­preender-se o último livro de Mann como um anti-Bildungsroman, uma paráfrase mas também uma antítese dos pressupostos que sustentaram a idéia do romance burguês subjetivo, individual e interiorizante, como Mann o desejara em seu ensaio de 1916.

Bildungsroman às avessas, o Felix Krull revela também seu parentesco com outra grande forma de romance europeu, o ro­mance picaresco.

O Felix Krull e o modelo picaresco

Se, por um lado, Confissões do impostor Felix Krull dialoga com Os anos de Aprendizado de Wilhelm Meister e com a autobiografia de Goethe, Poesia e verdade, refletindo assim sua filiação ao romance burguês individualista e interiorizante, o romance de Mann atuali­za, por outro lado, essa mesma forma, contrapondo a ela o seu antípoda, o romance picaresco. Como já se afirmou neste trabalho, no capítulo dedicado à genealogia do Bildunsgroman, a narrativa picaresca poderia mesmo ser entendida como um Bildungsroman ao negativo, na medida em que a distinção mais definitiva entre uma e outra forma se daria pelo bom ou mau caráter do protagonista, pelas suas qualidades enfim aperfeiçoadas ou pela insistência no erro.

O romance de Mann vai atualizar o modelo goethiano por meio do recurso ao modelo da narrativa picaresca, buscando as­sim uma solução para a impossibilidade histórica da continuidade do romance burguês individualista no século XX.

Mário Gonzáles, em seu trabalho de 1994, propõe sua defi­nição para romance picaresco. Tal definição, cunhada a partir de uma perspectiva da história do gênero, é suficientemente ampla para comportar obras heterogêneas, que ultrapassem o es-

pelhamento formal de dois ou três modelos do paradigma clás­sico, e ao mesmo tempo capaz de conservar as perspectivas basilares do gênero. Afirma Gonzáles (p.261):

Feitas essas colocações, achamos possível tentar encontrar nes­se intertexto, que constitui o núcleo da picaresca clássica espanho­la, os elementos necessários para uma definição adequada que per­mita estabelecer o grau de relação que com ele possa guardar outro texto remoto ou próximo. Assim, com base nesse intertexto, para nós, um romance picaresco será: a pseudo-autobiografia de um anti-herói, definido como marginal à sociedade, o qual narra suas aven­turas, que, por sua vez, são a síntese crítica de um processo de ten­tativa de ascensão social pela trapaça e representam uma sátira da sociedade contemporânea do pícaro, seu protagonista.

A definição cunhada por Gonzáles permite que se tragam à luz processos narrativos e temáticos presentes em Felix Krull, que o aproximam da definição de romance picaresco.

Salta aos olhos, na definição do romance picaresco por Gonzáles, o termo "pseudo-autobiografia". Efetivamente, o cará­ter autobiográfico mostra-se historicamente, como característica essencial do romance picaresco strictu sensu. Cláudio Guillén, "tal­vez o primeiro a se propor explicitamente uma aproximação à definição do gênero" (Gonzáles, 1994, p.225), inclui a perspec­tiva autobiográfica como um dos oito traços característicos dos romances picarescos strictu sensu.

As confissões do impostor Felix Krull são efetivamente dis­postas em forma de relato autobiográfico. Como elas se relacio­nam com o adjetivo "pseudo" voluntariamente acrescentado por Gonzáles à definição do gênero? Não se pode afirmar, por um lado, que as confissões de Krull pequem por ausência de autenti­cidade ou honestidade quanto à veracidade dos fatos que narra, com detalhe e precisão. Krull narra episódios de sua trajetória com boas dose de realismo. Se pensarmos, porém, que o narrador detém o controle do ponto de vista, da perspectiva, e, por conse­guinte, do discurso, o que lhe permite selecionar e manipular os enfoques, as causas e conseqüências dos acontecimentos, o adje­tivo empregado por Gonzáles terá um de seus possíveis significa­dos esclarecido, no que se refere ao romance de Mann:

Quanto ao meu talento natural para as boas maneiras, desde sempre, como prova de toda a minha ilusória vida, pude ter absolu­ta certeza dele ... De resto, estou decidido a usar da mais perfeita sinceridade nestas minhas anotações, sem medo de ser acusado de vaidade ou despudor. Que valor ou sentido moral teriam estas con­fissões escritas com outra preocupação que não a da veracidade! (Mann, 1981, p.10, grifo da autora)

A passagem, logo à segunda página do capítulo primeiro, antecipa o compromisso do narrador com a veracidade dos fatos que está por relatar. Ao mesmo tempo, já na segunda linha esse mesmo narrador chama a própria vida de ilusória, o que dá mar­gem a uma série de considerações. Ilusória para quem? Para o público que vai ler? Para o narrador? Para aqueles a quem iludiu?

É possível compreender então a autobiografia de Krull como pseudo-autobiografia, na medida em que o relato dos fatos bio­gráficos passa pela manipulação discursiva do narrador, sob o cu­nho de sua visão de mundo e de sua filosofia de vida. Pode-se ainda entender as confissões de Krull como pseudo-autobiografia no que se refere aos contínuos disfarces e trocas de identidade sofridas pelo protagonista. Uma vez que o gênero autobiográfico é entendido como a expressão máxima da individualidade, da rememoração e do subjetivismo burguês, como pode Felix Krull, dono de muitas identidades e de nenhuma, apresentar a seu leitor sua autobiografia como expressão máxima de subjetividade?

Isso não quer dizer, por outro lado, que as confissões de Krull não constituam efetivamente um corpus formal e tematicamente autobiográfico, reconhecível por meio das características pecu­liares a esse tipo de narrativa, como o uso da primeira pessoa, a analepse, as rememorações constantes entremeadas das reflexões do narrador, sem que, para tanto, seja necessária uma mudança de registro, do emissor do discurso. Autobiografia formal e temática, as confissões de Krull relatam as experiências de um indivíduo para­doxalmente destituído de marcas individuais, reconstitui uma personalidade que não se fixa, não se desenvolve, amoldando-se antes às circunstâncias mais favoráveis.

Ao herói picaresco em geral, estaria vedado, segundo a defi­nição de Gonzáles, o verdadeiro relato autobiográfico, uma vez

que sua individualidade como sujeito é fugidia, impossível de se deixar alcançar.

Acompanhando ainda a definição de romance picaresco por Gonzáles, vê-se que o anti-herói, protagonista da narrativa, é de­finido pelo traço "marginal à sociedade".

No caso de Felix Krull, essa característica não lhe é atribuída por acréscimo, pelos atos desonrosos ou criminosos que Krull viria a cometer, mas o acompanha já como traço de origem. A família Krull, "refinada, embora um tanto descuidada", é mal-vista e mal recebida, tanto na sociedade local da província, onde vive, como nos lugares freqüentados pela alta burguesia e aristocracia. Felix Krull narra um episódio de sua infância quando participa de uma pequena farsa preparada por seu pai. O pequeno Krull, armado de um violino de madeira sem corda e de arco untado de vaselina, representa, junto à orquestra da estação de águas de Langenschwalbach, o papel de menino-prodígío perante um pú­blico de aristocratas que antes o ignorara e que agora se apressa em adulá-lo.

A reserva em relação à prosaica família Krull é mantida até o momento em que a pequena encenação arquitetada pelo pai Krull é bem-sucedida. Pela primeira vez das muitas que se seguirão, Felix alcança o favor das classes mais altas pelo engodo e pela aparência:

Damas e cavalheiros aristocráticos rodearam-me, acariciaram meus cabelos, faces e mãos, chamando-me "garotinho infernal" e "anjinho". Uma velha princesa russa, vestida de seda violeta, com imponentes cachos de cabelos alvos sobre as orelhas, pegou minha cabeça entre suas mãos cheias de anéis e beijou minha testa úmida. Depois tirou apaixonadamente do pescoço um faiscante broche de diamantes em forma de lira e, falando francês sem parar, prendeu-o em minha camisa... Crianças de origem nobre, belas e ricas, os peque­nos condes Siebenklingen, que muitas vezes eu buscara com olhares nostálgicos mas que só me haviam lançado em resposta olhares frios, convidaram-me educadamente para uma partida de croqué. (Mann, 1991, p.23-4)

Se sua origem já o coloca, obrigatoriamente, à margem da boa sociedade, Felix Krull tudo faz para integrar-se a ela, e não para modificá-la.

Quando se apresenta a serviço no hotel parisiense Saint James and Albany, (ocasião em que demonstra notável talento para as línguas estrangeiras1), Krull mantém com seu futuro empregador, Sr. Stürzli, um notável diálogo quanto às suas dis­posições perante a sociedade. Contratado como ascensorista, Krull trata de fazer comentários sobre a forma de trabalho de seu colega de profissão:

Ele pára alto ou baixo demais, e forma uns degraus perigosos, senhor diretor. Mas só quando anda com gente de sua classe. Com senhores toma mais cuidado, se é que entendi direito. Não julgo louvável essa diferença de tratamento no exercício do seu ofício.

- Você não tem nada que louvar aqui! Acaso é socialista? - Não, senhor diretor! Considero encantadora a sociedade tal

qual é, e ardo em desejos de conquistar seus favores. (Ibidem, p.l37, grifo da autora)

Assim, embora posto à margem da sociedade pela sua con­dição de origem, Krull declara seu desejo de integrar-se a ela, o que acaba caracterizando mais um dos traços distintivos do ro­mance picaresco definido por Gonzáles, a ascensão social pela trapaça. Estranhamente, porém, o mesmo traço que aproxima as Confissões de Krull da narrativa picaresca enquadra-o como des­cendente direto tanto de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. O desejo de integração em uma classe social diferente daquela de origem é compartilhado assim pelos protagonistas

1 "Tudo muito bom, meu jovem - disse ele -, mas a questão é saber quais são as suas qualidades atuais. Você aparece aqui em Paris ... mas ao menos fala francês?

Era água no meu moinho. Rejubilei-me interiormente, porque com essa pergunta a conversa assumia um rumo favorável. Devo dizer aqui algo sobre meu talento para aprender línguas, que sempre foi enorme e misterioso. De tendências universais, guardando em mim todas as possibilidades do mundo, eu não precisava estudar realmente um idioma estrangeiro para, mal tendo noção dele, pelo menos dar a impressão de dominá-lo fluentemente, com uma imitação tão exageradamente perfeita da pronúncia, que raiava à farsa" (p.136). Na ocasião, Krull demonstra mais uma vez seu talento para a encenação e para a aparência, contrapondo suas "tendências universais" a uma eventual personalidade individual.

Wilhelm Meister e Felix Krull. Porém, enquanto Meister demons­tra descontentamento com a sociedade de classes, ao acusar o pri­vilégio de uma formação universal possível apenas aos nobres, Krull anseia por juntar-se à sociedade "tal qual é", e conquistar seus favores.

A ascensão pela trapaça é efetivamente o destino de Krull. Levando a vida dupla de garçom do Saint James and Albany e cavalheiro burguês à noite, Krull trava conhecimento com o Marquês de Venosta, jovem de sua idade a quem os pais querem afastar de Paris em razão de uma questão amorosa. Venosta estava enamorado de uma grisette, de uma Costureirinha, e os pais pretendem afastá-lo de Paris propondo-lhe uma viagem pelo mundo.

Desesperado, Luís de Venosta confessa-se com Krull, ou Armand, a quem toma por um sujeito misterioso e intrigante, em razão de sua vida dupla. O marquês propõe a Krull que troquem de identidade, tomando este o lugar daquele na viagem que de­verá durar um ano. Assim, efetivamente, Felix Krull assume mais uma vez uma personalidade que deverá portar até no último de­talhe, até na assinatura, na indumentária e nos cartões de visita. É assim que Krull despede-se de sua vida de empregado de hotel, assumindo a promissora personalidade de um nobre, como já fizera antes à guisa de encenação e agora deverá fazer como exer­cício cotidiano. No trem de primeira classe que o levará a Lisboa, primeiro destino de sua longa viagem, Krull reflete sobre os acon­tecimentos que o levaram a essa situação:

Eu não desejava nenhuma ocupação, nenhuma leitura. Sentar-me ali e ser quem eu era - de que outra distração precisava? Minha alma comovia-se brandamente, sonhadoramente com esse estado de coisas, mas erraria quem acreditasse que meu contentamento se devia única e principalmente ao fato de eu ser agora tão distinto. Não, a mudança e a renovação do meu eu usado, despir o velho Adão e entrar num outro, era isso, na verdade, que me dava pleni­tude e felicidade. Percebi que a troca de existências não produzia apenas uma deliciosa renovação, mas também uma certa obliteração no meu interior - no sentido de que todas as recordações de minha vida anterior haviam sido exiladas de minha alma. Sentado ali, eu também já não tinha direito a elas - com o que certamente não

perdia grande coisa. Minhas recordações! Não era prejuízo algum já não terem de ser minhas... Uma estranha sensação de falta de lembrança, sim, de vazio na memória, quis assaltar-me em meu lu­xuoso recanto. (Ibidem, p.237-8)

Assim, o mecanismo de ascensão social pela trapaça, pelo engodo, toma forma como mais uma manifestação da ausência de personalização, de individualidade. Krull, na pele do Marquês de Venosta, leva ao paroxismo sua falta de identidade própria, ao abrir mão das próprias rememorações, das lembranças de seu passado único, individual. O vazio na memória é a tela em bran­co sobre a qual serão pintadas as novas aventuras, os sucessos que lhe ocorrerão na pele do Marquês de Venosta. O indivíduo Felix Krull, que nunca existira completamente, parece então apa­gar todos os vestígios de sua existência sobre a terra.

A formação do pícaro

O romance de Mann As confissões do impostor Felix Krull remete, portanto, confessadamente a duas ricas fontes da tradição narrativa européia.

Se, por um lado, o romance burguês autobiográfico e interiorizante correspondia à contrapartida estética do "espírito nacional alemão", como afirma Mann em seu ensaio de 1916, uma nova configuração social o transformara em aporia. Gestado em um longo período que se estende de 1911 a 1954, compreen­dendo, portanto, as duas grandes guerras e ultrapassando ainda em nove anos o final da segunda, o Felix Krull reproduz estetica­mente as transformações políticas do período.

Em seu caráter crítico-parodístico, o Felix Krull atualiza a for­ma do romance burguês autobiográfico herdado da tradição. Re­bento confesso do conceito de formação da época de Goethe, o Krull o atualiza por meio da paródia e do recurso à picaresca. Dessa forma, o romance de Mann concentra em si uma das possi­bilidades de resolução da grande contradição que acompanha o romance burguês no século XX, canalizando para o procedimento

parodístico uma possibilidade que Walter Benjamin viu na epo­péia e Georg Lukács no realismo crítico.

O romance de Mann configura assim uma das possibilidades de continuidade do Bildungsroman no século XX. Dialogando di­retamente com Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister e com a autobiografia Poesia e verdade, o Felix Krull traz em si mesmo uma indicação das alterações históricas pelas quais o conceito Bildungsroman teve que passar.

O Tambor de Günter Grass

O tambor (Die Blechtrommel) (1959) é o primeiro romance de Günter Grass. É também a obra que consagrou o autor, a pon­to de a revista Time americana afirmar, em sua primeira capa dedicada a um romancista alemão do pós-guerra, em 1970: "Aos 42 anos, Grass não se parece nem um pouco com o maior ro­mancista do mundo ou da Alemanha, mas pode, sem dúvida al­guma, sê-lo" (apud Raddatz, 1979, p.6).

A trajetória do protagonista Oskar Matzerath é narrada pelo próprio Oskar, aos trinta anos de idade, que a escreve em seu quarto de interno em uma clínica psiquiátrica.

Oskar abre a narrativa apresentando o primeiro encontro en­tre seus avós maternos, privilegiando uma perspectiva cronológi­ca e autobiográfica: "ninguém deve descrever sua vida sem ter a paciência de, antes de datar a própria existência, recordar ao me­nos a metade de seus avós" (Grass, 1982, p.14).

O narrador inaugura portanto sua história sob um tom pes­soal, memorialístico, o que aproxima a obra do romance burguês de cunho autobiográfico, assim como é o caso do Felix Krull de Thomas Mann.

Um primeiro distanciamento já irá ocorrer, entretanto, entre a dicção do narrador e o objeto narrado, na medida em que Oskar passa a referir-se a si mesmo na terceira pessoa. Alternando en­tre a primeira e a terceira pessoa, o narrador de O tambor con­segue assim, por meio de um mecanismo simples, criar um dis­tanciamento entre narrador e personagem, bloqueando as possibilidades de uma narrativa eminentemente confessional. Se-

gue um exemplo dessa alternância, dentre as inúmeras passagens existentes:

Estávamos provavelmente no aprazível subúrbio de Hochstriess, saímos por um momento da casa de nosso anfitrião, sem vestir os sobretudos, deixamo-nos fotografar pelo dono da casa, com o pe­queno Oskar fazendo manha no meio, para logo voltar ao interior aquecido ... Há ainda uma dúzia ou mais de instantâneos do pe­queno Oskar: de um ano, de dois anos, de dois anos e meio; dei­tado, sentado, engatinhando, andando. As fotos são todas mais ou menos boas e formam um conjunto de preliminares àquele meu retrato de corpo inteiro que haviam de tirar no dia de meu terceiro aniversário. (Ibidem, p.68)

De toda maneira, Oskar narra efetivamente sua trajetória, desde o nascimento até a internação em uma clínica psiquiátrica, passando pelos episódios da experiência escolar, da experiência teatral, das experiências amorosas.

Descrito sucintamente, o currículo de Oskar poderia muito bem permitir que se encaixasse o romance de Grass sob a classifi­cação de Bildungsroman.

Efetivamente, a crítica a O tambor vem se ocupando da ques­tão já desde o ensaio de Hans Magnus Enzensberger (1979, p.13), veiculado pela primeira vez pela Süddeustscher Rundfunk Stuttgart em 18 de novembro de 1959, ano da primeira edição do livro. Ali, Enzensberger afirma: "O tambor é um 'romance de desen­volvimento' (Entwicklungsroman) e um 'romance de formação' (Bildungsroman). Estruturalmente ele se nutre na melhor tradição da prosa narrativa alemã. É composto com um cuidado e clareza peculiares aos clássicos".

Enzensberger alinha O tambor sob a tradição do "Bildungs­roman", ressaltando sua relação com a tradição da "melhor prosa narrativa alemã", ou seja, indica uma característica não apenas temática mas também estilística, que aproximaria o romance de Grass do modelo clássico.

Linhas abaixo, Enzensberger (1979, p.14-5) salienta aquilo que parece diferenciar O tambor do modelo clássico herdado da tradição: "Wilhelm Meister e Henrique, o verde, são, com toda a

certeza, os jovens de caráter nobre. Seu descendente tardio, Oskar Matzerath, tocador de tambor, aleijão, idiota, é um produto de seu século, assim como aqueles o são de seu próprio. Ele não conta apenas sua própria história, ele é também um porta-voz da nossa".

O comentário de Enzensberger resume, em poucas linhas, duas diretrizes principais que têm norteado a história do conceito Bildungsroman no século XX: obras como O tambor ligam-se à tradição do Bildungsroman tanto por sua temática, a narrativa da trajetória de um jovem ao longo das diversas estações da infância e juventude em direção à maturidade, como também pelo estilo, pela linguagem, pelo modo de narrar. Ao mesmo tempo, Oskar Matzerath, "produto de seu século como Wilhelm Meister e Henrique o verde são de seu próprio", diferencia-se tanto pelas suas características de aleijão e de anão como pelo desenvolvi­mento peculiar de seu processo de formação. As distinções entre o herói de Grass e o de Goethe ou Keller são as mesmas que separam o século XX dos séculos XVIII e XIX; a crença em uma trajetória teleológica que conduzisse ao pleno desenvolvimento das habilidades naturais do indivíduo não mais se pode manter, nem ser representada literariamente.

Ao mesmo tempo, ao afirmar que Oskar é o porta-voz não apenas de sua própria história, mas também da nossa, Enzensberger aponta para uma dimensão coletiva, que aproximaria o romance de Grass de uma narrativa épica, da qual efetivamente há episó­dios em O tambor, como a tomada do correio polonês em Danzig ou a invasão pelas tropas russas. A história de Oskar Matzerath se situaria, assim, entre o tom biográfico de uma história da forma­ção individual e a narrativa épica da história de um povo, de uma guerra, de uma época.

Como protagonista de um processo de formação individual, Oskar Matzerath é o exemplo vivo de uma trajetória invertida, literalmente, na medida em que já nasce "com intelecto, sentidos e até mesmo personalidade plenamente desenvolvidos". Em seu caso, "a questão da 'formação', do desdobramento das possibili­dades individuais sofre um deslocamento radical em sua história" (Mazzari, 1999, p.89).

Efetivamente, a história de Oskar, embora principie e trans­corra como a história de uma biografia, difere drasticamente do modelo ao qual remete, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister.

Marcus V. Mazzari, em seu livro Romance de formação em perspectiva histórica, dedica um capítulo à questão da relação en­tre o romance de Günter Grass e a obra paradigmática do Bildungsroman, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Ali, a relação entre os dois romances é explicada à luz de "uma inten­ção paródica".

O primeiro ponto de contato entre a trajetória de Matzerath e a de Wilhelm Meister é o conflito entre a vocação artística e a de­cisão paterna de que o jovem deveria "herdar o negócio", tomar a si as atividades comerciais do pai que constituíram a fortuna da família. No caso de Oskar, a mãe interpõe-se à decisão paterna, quando decide que, aos três anos de idade, Oskar deverá ganhar um tambor de lata.

No caso de Meister, a vocação teatral, de certa forma tam­bém favorecida pela mãe, irá desviar o protagonista dos desígnios paternos.

Entretanto, enquanto Wilhelm Meister não se cansa de repe­tir seu desejo por uma formação universal, por um desenvolvi­mento pleno das capacidades latentes, Oskar Matzerath dá por encerrado seu desenvolvimento físico e mental aos três anos de idade; por causa de uma queda simulada, Oskar justifica o fato de seu crescimento ter cessado exatamente no dia de seu terceiro aniversário. Uma vez que já nascera dotado de capacidade crítica, raciocínio intelectual refinado e todas as outras qualidades que compõem uma inteligência racional, Oskar dá por encerrado seu desenvolvimento. Marcus Mazzari (1999, p.93) comenta: "Ao fun­damentar a opção de vida tomada, Oskar busca desmascarar os conteúdos absolutamente banais que se ocultam atrás das idéias ligadas ao 'programa de formação', tal como absorvido e culti­vado pela pequena burguesia alemã".

A decisão de Oskar justifica-se, portanto, pela negação, recu­sa, ausência de qualquer modelo que o inspirasse. Sua opção pela aparência infantil e conseqüente negação do mundo dos adultos é assim caracterizada por Oskar:

Para não ter de matraquear nenhum gênero de caixa registra­dora ruidosa, aferrei-me ao meu tambor e, a partir de meu terceiro aniversário, não cresci nem um dedo a mais; estacionei nos três anos, mas também com uma tríplice sabedoria: superado no tama­nho por todos os adultos, mas tão superior a eles; sem querer me­dir minha sombra com a deles, mas interior e exteriormente já aca­bado, enquanto eles, mesmo em idade avançada, continuavam se infernizando a propósito de seu desenvolvimento; compreendendo o que os outros somente logram com a experiência e freqüentemente a duras penas; sem necessitar mudar ano após ano os sapatos e calças para demonstrar que algo crescia. (Grass, 1982, p.69)

Dessa forma, o protagonista de O tambor declara-se drama­ticamente avesso a um processo de desenvolvimento, de cresci­mento, de aperfeiçoamento de suas características interiores e ex­teriores, uma vez que o mundo para o qual elas preparavam o indivíduo é um mundo desprezível. A superioridade intelectual de Oskar leva-o, portanto, a declinar de um processo de forma­ção à maneira convencional, como se reconhece em seus contraparentes Wilhelm Meister ou Henrique, o verde, ou mesmo de Felix Krull, que acha a sociedade "adorável assim como ela é", e que converge esforços no sentido de se fazer aceitar por ela.

Marcus Mazzari afirma que a trajetória de Oskar Matzerath é composta de uma sucessão de recusas: a recusa da profissão do pai, a recusa do desenvolvimento nos moldes pequeno-burgueses, a recusa do aprendizado escolar.

A experiência escolar mostra-se incompatível com a natureza de Oskar. Em substituição a ela, Oskar terá de traçar ele mesmo um efetivo programa de aprendizado voltado a ler e escrever, pois, a despeito de seus dotes intelectuais, essas são técnicas que ele não domina.

No capítulo "Rasputin e o ABC", Oskar descreve sua tentativa de aprender a ler e a escrever, pois, desde o fracasso no primeiro dia de aula, foram deixados de lado os esforços no sentido de lhe trans­mitir qualquer ensinamento. Conscientes de que Oskar era estúpi­do demais para aprender, "nem Matzerath nem mamãe ocuparam-se de minha instrução durante os meses que se seguiram" (Grass, 1962, p.67). Consciente da necessidade da instrução formal (ler e escrever) que deve associar-se à sua superioridade intelectual, Oskar

passa a procurar, entre os diferentes moradores dos dezenove apar­tamentos de seu edifício, aquele que lhe sirva de mestre.

A trajetória em busca de um mentor, procurado entre a arraia-miúda da pequena burguesia da vizinhança, concretiza parodis-ticamente a sucessão de mentores pelos quais passa o herói de Goethe, Wilhelm Meister. Oskar tenta primeiramente com o com­positor e trompetista Meyn: "O Sr. Meyn tinha quatro gatos e es­tava sempre bêbado... Um dia encontrei-o em seu sótão, estendido no piso de barriga para cima, de calças pretas e camisa social bran­ca, fazendo rodar entre os pés descalços uma garrafa vazia de gene­bra e ao mesmo tempo tocando trompete deliciosamente" (Grass, 1982,p.l02).

Oskar o acompanha com o tambor em dueto. Quando a músi­ca termina, Oskar tira de sob seu pulôver um velho exemplar do jornal Neueste Nachrichten, alisa as folhas, acocora-se junto do tocador de trompete Meyn, oferece-lhe as folhas e pede que lhe ensine o ABC maiúsculo e minúsculo. Meyn, porém, caíra no sono.

Oskar tenta então o verdureiro Greff. Este presta-lhe pouca atenção, pois "Oskar era demasiado pequeno para ele, e seus olhos tampouco eram bastante grandes nem sua tez bastante pálida" (Ibidem, p.104). Oskar alude aqui às preferências amorosas do verdureiro. Greff não compreende a intenção de Oskar, e quan­do este passa a mexer nos livros que Greff tem em sua loja, grita-lhe que os deixe onde estão, e que brinque com as batatas, em lugar dos livros.

Havia ainda Frau Greff, mulher do verdureiro, a qual "já a essa época passava semanas na cama, agia como se estivesse doente, cheirava a camisola usada e pegava nas mãos todo tipo de coisa, exceto algum livro que pudesse me instruir" (tradução livre).

A próxima tentativa é feita com Gretchen Scheffler, a mulher do padeiro, a quem Oskar lisonjeia por meio de um comportamen­to falso:

E foi aqui que vim parar para aprender o pequeno e o grande ABC. Esforcei-me para que a porcelana e as lembranças de viagem não sofressem dano algum ... Fiz amizade com duas das bonecas Kathe-Kruse; apertava-as contra o peito e flertava com as pestanas dessas duas daminhas que me fitavam com perpétuo assombro; e

assim, através dessa amizade fingida com a bonecas - que por ser fingida parecia mais real -, eu ia tecendo uma trama de tricô ao redor do coração de Gretchen Scheffler, com duas malhas do lado direito e duas do lado avesso.2 (Ibidem, p.l06)

Oskar conquista assim a simpatia de Gretchen Scheffler, con­seguindo por fim que esta lhe mostre os poucos livros que possui. Entre relatos de marinheiro que pertenceram ao irmão de Gret­chen, uma história da cidade de Danzig e a história "da tal luta por Roma", Oskar encontra, na estante de Gretchen, "um livro que tratava de 'débito e crédito' [Soll und Haben], algo sobre afi­nidades eletivas de Goethe e o grosso volume ricamente ilustra­do: Rasputin e as mulheres" (tradução livre).

No elenco citado por Oskar percebe-se a alusão a obras da tradição da literatura alemã, como Soll und Haben [Débito e cré­dito] (1855) (segundo tradução de Otto M. Carpeaux) de Gustav Freytag, obra do realismo burguês que figura em algumas das lis­tas de Bildungsromane; além disso, alude-se a Die Wahlverwand-schaften [As afinidades eletivas], (1808), o último romance de Johann Wolfgang Goethe, obra que irá compor, ao lado do livro sobre o curandeiro russo, a "obra da formação" (Bildungsbuch) de Oskar.

Por um processo semelhante ao utilizado pelo narrador de Kater Murr, o romance de E. T. A. Hoffmann de 1819-1821, no qual a biografia do músico Johann Kreisler confunde-se e funde-se à narrativa da biografia de Murr, constituindo assim um obra única e singular, Oskar vai arrancando as páginas tanto do ro­mance de Goethe como do livro Rasputin e as mulheres e reunin-do-as novamente de maneira aleatória, constituindo assim um único livro, no qual aprende efetivamente a ler.

Oskar ... mesclava as páginas soltas das Afinidades eletivas com outras de Rasputin, à maneira como se embaralham cartas, lia o livro recém-criado com surpresa crescente, mas nem por isso me­nos divertida: via Otília passeando pelo braço de Rasputin por en-

2 "Duas malhas do lado direito e duas do lado avesso": equivale a dois pon-tos-meia e dois pontos-tricô.

tre jardins da Alemanha central, enquanto Goethe, sentado em um trenó com a dissoluta e aristocrática Olga, deslizava de orgia em orgia através de uma São Petersburgo invernal. (Ibidem, p.l 12)

O livro assim composto vai acompanhá-lo ao longo de seu percurso, concentrando as duas influências extremas que reco­nhece como válidas: "A sombria figura do curandeiro russo, aman­te de orgia e de todos os excessos, fornece-lhe um contrapeso à influência apolínea de Goethe, o luminoso príncipe dos poetas" (Mazzari, 1988, p.68).

Oskar constrói então para si "a visão de um mundo domina­do metade por Rasputin, metade por Goethe" (Ibidem, p.70). Essa imagem alegoriza a própria relação do romance de Günter Grass com a tradição da literatura alemã, na medida em que em O tam­bor convivem elementos de um hiper-realismo grotesco junto a um estilo que Hans Magnus Enzensberger não hesitou em classi­ficar como descendente da "melhor tradição da prosa alemã", ao lado de uma temática que o aproxima do modelo do conceito do Bildungsroman clássico.

A relação ambígua de Oskar com a tradição cultural alemã e com os ideais goethianos é definida pelo protagonista, referindo-se a si mesmo na terceira pessoa:

Goethe, Oskar, se você tivesse vivido e tocado tambor no tem­po dele, só teria visto em você o anormal, teria condenado você como encarnação material da antinatureza, e a natureza dele - que no fim das contas você tem admirado tanto e a que sempre tem aspirado, mesmo quando ela se pavoneia de forma pouco natural -a natureza dele, ele a teria alimentado com confeitos superado-cicados, e pulverizado você, senão com o Fausto,³ ao menos com o alentado volume da sua teoria das cores. (Grass, 1982, p.108)

Essa relação que, ao mesmo tempo, reifica e nega a tradição literária alemã refletiu-se na diversidade da classificação do ro­mance de Grass ora como anti-Bildungsroman, ora como paródia ao "gênero", ora como um Bildungsroman propriamente dito.

3 Faust: em alemão, punho. O trocadilho, intraduzível, refere-se ao drama de Goethe.

O estudo de Enzensberger já comentado, que insere o romance de Grass sob a tradição do romance de desenvolvimento (Entwick-lungsroman) e do Bildungsroman, não o faz sem ressalvas; aponta no protagonista Oskar Matzerath as transformações que o fazem um produto de seu próprio século e que o diferenciam dos jovens de caráter nobre Wilhelm Meister e Henrique, o verde.

Da mesma forma o comentário de Fritz J. Raddatz (1979, p.6), publicado no jornal Die Zeit em 1º de janeiro de 1979, vinte anos após a primeira edição de O tambor:

Um romance alemão de desenvolvimento, sem dúvida. Mas eles costumavam chamar-se Simplicissimus ou Wilhelm Meister, Henrique, o verde, ou Buddenbrooks; o título vinha do nome do protagonista. Não é por acaso que pela primeira vez, um objeto empurre o indivíduo para fora do título do livro, ainda por cima um objeto de uso costumeiramente bélico. O livro de Grass, que não se chama O tocador de tambor, é um anti-romance de desen­volvimento. História, em vez de psique.

Sintomaticamente, Raddatz, ao mesmo tempo em que inclui O tambor sob a tradição do Bildungs- e Entwicklungsroman, apon­ta para o fenômeno da substituição do indivíduo pelo coletivo, da subjetividade pessoal pelo peso épico da história.

Bastante significativa é a interpretação de Detlef Krumme, aqui comentada por intermédio do trabalho de Marcus Mazzari. Krumme afirma que a compreensão de O tambor como Bildungsroman pro­priamente dito, como paródia ao modelo ou como antítese, depen­de da maneira como se considera o protagonista:

A interpretação de O tambor como Bildungsroman, como sua paródia ou ainda como anti-Bildungsroman, depende do julgamen­to que se faça do protagonista. Se Oskar for compreendido como uma personagem extrema, mas no fundo ainda passível de ser en­tendida de maneira realista, como um anão grotesco que deve sua existência à imaginação transbordante do autor, pode-se então tranqüilamente classificar a obra sob a rubrica do Bildungsroman ou da paródia do gênero. Se, por outro lado, Oskar for compreen­dido simbolicamente, como produto de uma não-humanidade caó­tica, como um constructo totalmente fabricado, O tambor pode ser compreendido como antítese ao Bildungsroman. (Detlef Krumme.

Die Blechtrommel. München, Carl Hanser Verlag, 1986, p.78, apud Mazzari, 1988, p.42)

Significativamente, o comentário de Krumme apresenta o mesmo raciocínio utilizado neste trabalho quanto à classificação de certas obras como romances de formação ou romances picarescos, o que reforça a hipótese defendida ao longo deste trabalho de que o Bildungsroman é um conceito constituído discursivamente, isto é, sustentado antes por uma atitude histórico-discursiva do que por suas características literárias imanentes.

Jürgen Jacobs, em seu livro de 1989 O romance de formação alemão - história do gênero do século XVIII ao século XX, dedica poucas linhas ao romance de Günter Grass. Para Jacobs, O tam­bor está longe de ser "um Bildungsroman no sentido tradicional", pois Oskar Matzerath renuncia, desde o início, a uma integração social e a um desenvolvimento pessoal. Da mesma forma, está ausente no romance um confrontamento do indivíduo com o mundo social que o conduzisse a um estado de maturidade. Para Jacobs (p.231), "não seria totalmente errado classificar O tam­bor exatamente como um anti-Bildungsroman com tendências parodísticas".

Uma visão em perspectiva dos diferentes comentários sobre a relação de O tambor com a tradição do Bildungsroman conduz pri­meiramente à conclusão de que, no romance de Grass, há efetiva­mente um diálogo consciente com a tradição goethiana, tanto pelas alusões diretas ao problema da formação como em trechos que para­fraseiam textos do próprio Goethe, como o episódio do nascimento, no qual se pode perceber a semelhança de tom e de estilo:

No dia 28 de agosto de 1749, ao bater meio-dia, vim ao mun­do em Frankfurt am Main. A constelação era feliz: o Sol encontra­va-se no signo de Virgem e em seu ponto culminante para esse dia; Júpiter e Vênus contemplavam-no favoravelmente e Mercúrio sem hostilidade; Saturno e Marte mantinham-se indiferentes. Só a Lua, cheia na ocasião, exercia tanto mais o poder de seu reflexo que a sua hora planetária havia começado ao mesmo tempo. Opunha-se, por isso, ao meu nascimento, que não se consumou senão depois de transcorrida aquela hora.

Esses aspectos favoráveis, que os astrólogos nunca se cansariam de assinalar mais tarde, bem poderiam ter sido a causa de minha conservação, já que, por imperícia da parteira, vim ao mundo como morto e foram precisos grandes esforços para me trazer à vida. (Goethe, 1986, p.19)

Segue a narração do nascimento de Oskar Matzerath por ele mesmo:

Eram os primeiros dias de setembro. O Sol estava no signo de Virgem. De longe aproximava-se através da noite, movendo caixas e armários de um lado para o outro, uma tormenta de fins de verão. Mercúrio fez-me crítico, Urano fantasioso, Vênus fez-me acreditar numa escassa felicidade, Marte em minha ambição. Libra, subindo na casa do ascendente, fez-me sensível e dado a exageros, Netuno entrava na décima casa, a da metade da vida, estabelecendo-me definitivamente entre o milagre e a simulação...

Exceto pela não rara ruptura do períneo, meu parto transcorreu suavemente. Não tive dificuldade para me livrar da posição de cabe­ça tão apreciada pelas mães, fetos e parteiras. (Grass, 1982, p.51-2)

Goethe relata a feliz conjunção dos astros que antecedeu e influenciou a hora de seu nascimento. Também Oskar determina a posição dos astros em sua hora natal, atribuindo a cada um a influ­ência exercida sobre sua personalidade; Goethe, o "príncipe dos poetas", nasce à hora clara, ao meio-dia luminoso; entretanto, o parto é difícil e o feto é dado em princípio por morto. Oskar, a deformidade, nasce à noite, em meio a uma tempestade de verão. O parto é tranqüilo.

A comparação das duas passagens já indica, por si, a relação que O tambor manterá com a tradição literária, e, mais especifi­camente, com o modelo goethiano. Uma tradição consciente, na qual se mesclam submissão e irreverência, paródia e aspiração ao modelo clássico.

Em segundo lugar, pode-se afirmar que O tambor, ao lado do Felix Krull ilustra uma possibilidade de sobrevivência do con­ceito Bildungsroman em um momento em que os pressupostos que lhe deram origem estão historicamente ausentes.

Ambos os romances ilustram exemplarmente as conseqüên­cias das modificações históricas sobre o próprio gênero "roman-

ce". A subjetividade fragmentada, a impossibilidade de represen­tação de um processo teleológico de aquisição de consciência e harmonia individual, a representação de processos históricos co­letivos paralela à representação da biografia individual são mani­festações de um deslocamento dos a priori discursivos que possi­bilitaram o estabelecimento do gênero Bildungsroman. Os romances de Thomas Mann e de Günter Grass configuram as possibilidades de sobrevivência do gênero pelo processo de alu­são parodística, pelo diálogo com uma tradição que é eminente­mente histórica.

Ambos os romances, escolhidos como ilustração tanto por se tratarem de obras de autores capitais na história da literatura euro­péia do século XX, como por serem rebentos confessos da tradição literária, configuram um procedimento intertextual de transfigu­ração, bastante próximo dos modelos aos quais se referem, ao mes­mo tempo em que indicam possibilidades de novas configurações dessa mesma tradição.

O Bildungsroman apresenta-se então como referência recor­rente na história da literatura de língua alemã dos últimos duzen­tos anos. Essa longevidade, ao mesmo tempo em que reitera uma tendência, conduz a um problema teórico, na medida em que o gênero, fortemente vincado por suas circunstâncias históricas de origens, sobrevive necessariamente por sua própria trangressão. Os dois exemplos já comentados ilustram o caráter dinâmico dessa transgressão no âmbito da produção literária em língua alemã, ainda no contexto europeu, deslocando-se o eixo temporal.

Formação feminista e formação proletária:

o Bildungsroman no Brasil

A história do Bildungsroman pode ser compreendida a partir da dialética entre suas circunstâncias de origem, extremamente localizadas, e sua expansão. É possível falarmos hoje de uma his­tória do gênero para além do ambiente cultural e literário ale­mão, seja no eixo eurocêntrico, seja nas literaturas norte e sul-americanas. Nos Estados Unidos, como se pôde verificar pelo

trabalho de Jeffrey Sammons e Friedrich Amrine, a crítica vem se

ocupando da revisão historiográfica da própria tradição alemã,

dando continuidade a uma "dissidência crítica" iniciada já por

Friedrich Schlegel no seu Uebermeister.

No caso brasileiro, é possível identificar, na primeira metade

da década de 1990, um crescente interesse pelo gênero, manifes­

tado por uma dinâmica que ao mesmo tempo em que assimila, já

se apropria, de maneira peculiar, do termo Bildungsroman, "adap­

tando-o" a contextos particulares da literatura brasileira e de ou­

tros países em desenvolvimento.

A trajetória do termo Bildungsroman no Brasil é ainda recen­

te. O termo integra o Dicionário de termos literários de Massaud

Moisés (1978, p.64), representado por um verbete que se repro­

duz a seguir:

Bildungsroman - Alemão Bildung, formação, Roman, roman­ce. Francês: roman de formation. Português: romance de forma­ção. Também se pode empregar, como sinônimo, o termo alemão Erziehungsroman (Erziehung, educação, Roman, romance).

Modalidade de romance tipicamente alemã, gira em torno das experiências que sofrem as personagens durante os anos de formação ou educação, rumo da maturidade. Considera-se o pio­neiro nessa matéria o Agathon (1766), de Wieland, e o ponto mais alto o Wilhelm Meister (1795-1796), de Goethe. No fio da tradi­ção germânica, outros ficcionistas cultivaram o tema: Tieck, Novalis, Jean Paul, Eichendorf, Keller, Stifter, Raabe, Hermann Hesse. Em língua inglesa, citam-se: Charlotte Brontë, Charles Dickens, Samuel Butler, Somerset Maugham. Em francês: Romain Rolland.

Em vernáculo, podem-se considerar romances de formação, até certo ponto, os seguintes: O Ateneu (1888), de Raul Pompéia, Amar, verbo intransitivo (1927), de Mário de Andrade, os roman­ces do "ciclo do açúcar" (1933-1937), de José Lins do Rego, Mun­dos Mortos (1937), de Otávio de Faria, Fanga (1942), de Alves Redol, Manhã submersa, de Vergílio Ferreira, o ciclo A velha casa (1945-1966), de José Régio.

A definição de Bildungsroman por Moisés opta, por tanto ,

por uma conceituação bastante generalizante e temática, na linha

das enciclopédias literárias alemãs. Em comum ainda com as de­

finições alemãs, o verbete do Dicionário salienta que o Bildungs-

roman é uma "modalidade de romance tipicamente alemã", ad­mitindo, porém, sua continuidade além das fronteiras nacionais e cronológicas. O verbete traz ainda uma lista de obras em língua portuguesa, consideradas "até certo ponto" Bildungsromane. Com isso, Moisés dá o primeiro passo para uma legitimação crítica e ficcional do gênero em língua portuguesa, o que, entretanto, não aconteceu.

Se na literatura européia, o conceito de Bildungsroman, a despeito de todas suas variações e diferentes abordagens críticas, constituiu-se pedra angular, em referência prolífica e essencial na história da narrativa, tendo mesmo suas origens confundidas com a própria origem do romance como gênero, na literatura de lín­gua portuguesa, mais especificamente na literatura nacional do Brasil, o conceito permaneceu como referência erudita e pouco produtiva.

O estudo de Cristina Ferreira Pinto, O Bildungsroman femi­nino: quatro exemplos brasileiros, deve ser considerado um mar­co na tradição da crítica brasileira na apropriação e utilização do conceito Bildungsroman. Datado do início da década de 1990, o livro, publicado na coleção Debates da Editora Perspectiva, inse­re-se como um estudo teórico, no qual o uso ao termo Bildungs­roman se dá como recorrência a um modelo teórico e mesmo interpretativo.

A autora recorre ao modelo narrativo temático do Bildungs­roman para analisar os romances Amanhecer, de Lúcia Miguel Pe­reira, As três Marias, de Rachel de Queiroz, Perto do coração sel­vagem, de Clarice Lispector, e Ciranda de pedra, de Lygia Fagundes Telles. Trata-se de romances escritos por mulheres, cujas persona­gens principais também são femininas. O estudo fará portanto a aproximação do Bildungsroman à escrita feminina e feminista.

Ferreira Pinto ocupa-se, nas primeiras páginas de seu livro, em buscar a definição e a história do termo Bildungsroman, utilizando-se especialmente do artigo de François Jost La tradition du Bild­ungsroman (1969), e do livro de Martin Swales, The German Bildungsroman from Wieland to Hesse, de 1978. Parte assim de estudos críticos considerados canônicos da abordagem atual ao Bildungsroman fora da Alemanha. Escritos respectivamente em lín-

gua francesa e inglesa, os estudos de Jost e Swales podem ser con­siderados a ponte para o leitor de língua portuguesa.

Uma das questões essenciais abordadas logo no início pela autora é o reconhecimento da ausência de Bildungsromane femi­ninos. Depreendendo, a partir da definição de Jost, que o objeto representado no Bildungsroman é, necessariamente, a trajetória de um jovem, de um homem, a autora pergunta-se sobre o por­quê "dessa quase total ausência da mulher como personagem cen­tral no Bildungsroman" (Pinto, 1990, p.12), acrescentando que "o problema da ausência da protagonista feminina na tradição do Bildungsroman ... tem sido levantado por diversas críticas femi­nistas". Segundo Cristina Pinto (p.14), "nos últimos dez anos têm surgido novos trabalhos que procuram estabelecer a existência de uma tradição feminina do Bildungsroman e que propõem uma redefinição do gênero". Essa tradição compõe-se de obras escritas sobretudo por mulheres e tem por referência "as características que convencionalmente definem o gênero". Estabelece-se então um corpus de características temáticas definidoras desse Bild­ungsroman escrito por mulheres, que seriam, em resumo:

infância da personagem, conflito de gerações, provincianismo ou limitação do meio de origem, o mundo exterior (the larger Society), auto-educação, alienação, problemas amorosos, busca de uma vo­cação e de uma filosofia de trabalho que podem levar a personagem a abandonar seu ambiente de origem e tentar uma vida indepen­dente. (Ibidem, p.14)

A definição temática acima identificada não seria, porém, ade­quada para incluir efetivamente o Bildungsroman feminino: seriam consideráveis as diferenças temáticas em um corpus constituído a partir das "características que definem convencionalmente o Bild­ungsroman. No verdadeiro Bildungsroman feminino, o desenvolvi­mento da personagem se daria de maneira diferente dos padrões do "Bildungsroman tradicional".

As distinções começam já no quesito idade do (da) protagonis­ta; enquanto no chamado Bildungsroman tradicional a trajetória de desenvolvimento inicia-se na infância ou na adolescência, na contrapartida feminina o desenvolvimento da protagonista inicia-

se freqüentemente na idade adulta. A fim de neutralizar essa pri­meira distinção, a autora, apoiada em bibliografia especializada (The Voyage, in: Fiction of female development. Ed. por Elizabeth Abel, Marianne Hirsch e Elizabeth Langland, Dartmouth College, 1983) propõe a terminologia novels of female development.

Desenha-se assim a relação entre o Bildungsroman "tradicio­nal" e o Bildungsroman da literatura feminina. A autora (p.27) compreende a apropriação do Bildungsroman pela escrita feminina como uma "prática subversiva", uma decorrência da atitude de afirmação da literatura de mulheres perante os cânones da tradição literária, predominantemente masculinos:

A literatura feminina se caracteriza também como subversiva ao adaptar ou reescrever temas e enredos tradicionalmente mascu­linos, invertendo a relação entre personagens, jogando o foco nar­rativo sobre um aspecto novo, estabelecendo perspectivas incomuns ou oferecendo uma visão alternativa da realidade: ou seja, a narra­tiva feminina, numa prática subversiva, apresenta uma revisão de gêneros masculinos e uma revisão da história, escrevendo-a de um ponto de vista marginal.

Trata-se portanto não de uma "continuidade" do gênero, mas de sua transgressão, transgressão essa possível apenas se se entender o Bildungsroman como um gênero de características definidas, veí­culo de uma visão triunfalista da burguesia progressista e dos ideais que lhe são peculiares. A autora (p.27) reconhece ainda que "O Bildungsroman feminino é uma forma de realizar essa dupla revi­são literária e histórica, pois utiliza um gênero tradicionalmente masculino para registrar uma determinada perspectiva, normalmente não levada em consideração, da realidade".

Ferreira Pinto (p.27) reconhece ainda como distinção entre o Bildungsroman feminino e o modelo tradicional masculino os di­ferentes desfechos da narrativa: "Enquanto em Bildungsromane masculinos - mesmo em exemplos modernos - o protagonista al­cança integração social e um certo nível de coerência, o final da narrativa feminina resulta sempre ou no fracasso ou, quando mui­to, em um sentido de coerência pessoal que se torna possível ape­nas com a não integração da personagem em seu grupo social".

Assim, a existência de um final harmônico, que integre o pro­tagonista ao mundo social após uma relação tensa entre o indiví­duo e a realidade exterior, característica considerada por críticos que vão de Wilhelm Dilthey a Jürgen Jacobs como traço definidor do Bildungsroman, está ausente na revisão levada a cabo pelo "ro­mance de aprendizagem feminino". Nas quatro obras analisadas pela autora à luz do modelo teórico do Bildungsroman tradicional, as características do final harmônico, da integração ao mundo so­cial estão ausentes de diferentes maneiras. Nos romances Amanhe­cer (1938), As três Marias (1939), Perto do coração selvagem (1944) e Ciranda de pedra (1954) as protagonistas "iniciam seus processos de Bildung desejando alcançar a integração e realização do EU e a integração social". Enquanto nos dois primeiros o processo é frus­trado, nos dois últimos "as protagonistas abrem mão da integração no seu grupo social para alcançar a integração do EU... A integração pessoal só se torna possível a partir da não integração social da mulher" (Ibidem, p.30).

Assim, o modelo do Bildungsroman tradicional como definido por Dilthey, Morgenstern, Jost e mesmo Jacobs é mais uma vez trans­gredido em uma de suas características básicas, a integração social do protagonista em um desfecho harmônico da narrativa.

O romance de formação ou de aprendizagem feminino mos-trar-se-ia pois como um vetor revolucionário, subversivo, pela sub­versão do próprio modelo textual ao qual recorre. Ferreira Pinto cita recursos narrativos como a ironia e o humor, considerados pela autora como formas de subversão do cânone instaurado pelo Bildungsroman tradicional. O processo, incessante, incluiria, segun­do a autora, obras que se apresentam como "romances de aprendi­zagem", de "transformação e renascimento", "romances do des­pertar da mulher", ou simplesmente romances que retratam o desenvolvimento feminino, "narrativas em que o final fracassado volta a aparecer, talvez com menos freqüência, e em que novas pos­sibilidades e horizontes, sempre maiores, são abertos pelas escri­toras e seus personagens". Cristina Ferreira Pinto afirma que o es­tudo dos quatro romances citados à luz do modelo do Bildungsroman tradicional deflagra uma discussão do processo de transformação da sociedade e da mulher brasileira, de maneira crítica e a partir do

próprio ponto de vista feminino. Dessa forma, o trabalho aqui co­mentado "acaba por ser também uma contribuição para o estudo do Bildungsroman feminino, pois oferece novos exemplos que compro­vam a evolução do gênero e refutam as definições tradicionais de Morgenstern, Dilthey, Jost e outros". A existência de um Bildungs­roman feminino e feminista institui portanto a revisão do conceito tradicional de Bildungsroman, reclamando para si uma subversão das características determinantes do conceito tradicional. Para Ferreira Pinto (p.32), o Bildungsroman feminino reclama que se ultrapasse "a afirmação de Jost, segundo a qual a função didática do 'romance de aprendizagem' está em auxiliar o indivíduo a ser 'homem'", e "o Bild­ungsroman contribui hoje para a afirmação da individualidade da mulher e para a realização de seus anseios, assim como para a forma­ção de uma sociedade onde isso possa concretizar-se".

Pode-se concluir, a partir dos pressupostos explicitados por Cristina Ferreira Pinto, que o recurso a um modelo teórico até então pouco familiar na literatura e crítica brasileiras passa ne­cessariamente por uma atualização de fundo "político", na me­dida em que a autora se apropria do conceito, desconsiderando as condições históricas particulares de sua origem, para realinhá-lo nas fileiras de uma crítica manifestadamente feminista.

Processo semelhante pode ser reconhecido em artigo publicado, em 1994, na Revista da Associação Brasileira de Literatura Compa­rada (Abralic): "Jorge Amado e o Bildungsroman proletário". Ali, Eduardo de Assis Duarte analisa o romance Jubiabá sob a luz do modelo Bildungsroman. Segundo Assis Duarte (1994, p.158), em Jubiabá "Amado se apropria da tradição do romance de aprendi­zagem, para situá-lo no nível das classes populares no Brasil dos anos 30".

Da mesma forma que Cristina Ferreira Pinto, Assis Duarte utiliza o modelo do Bildungsroman tradicional, representado pelo paradigma Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, como re­ferência de interpretação a uma obra da literatura brasileira.

Porém, a literatura secundária que serve de "ponte" entre o conceito tradicional de Bildungsroman e o leitor/crítico brasileiro não é mais o estudo de Jost, mas sim o Lukács de Teoria do romance

na tradução portuguesa de 1955. Trata-se do segundo ensaio de Georg Lukács sobre o Meister de Goethe, escrito em 1936, durante o exílio soviético. Ali, Os anos de aprendizado é apreciado a partir de uma perspectiva marxista, que considera o romance de Goethe como importante herança para o realismo socialista. A tônica do ensaio de Lukács é o reconhecimento de Os anos de aprendizado como a possibilidade de "reconciliação do homem problemático -dirigido por um ideal que para ele é a experiência vivida - com a realidade concreta e social". Assis Duarte (p.160) afirma, citando ainda Lukács, que "esta reconciliação 'não pode nem deve ser um simples acomodamento', nem muito menos uma "harmonia preestabelecida", sendo o personagem "forçado a procurá-la à cus­ta de difíceis combates e de penosas vagabundagens, ao mesmo tempo em que deve estar, contudo, em condições de a alcançar".

O aspecto ressaltado por Assis Duarte no modelo fornecido pelo Bildungsroman é, portanto, o da integração social. O autor (p.160) compara então o romance de Jorge Amado ao romance de Goethe, ressaltando que, no primeiro, "esta integração ao todo social passa por mediações inexistentes na obra goethiana, a começar pela ori­gem burguesa de Wilhelm, bastante diversa da quase indigência lúmpen de Balduíno ... O caráter de Balduíno vai sendo delineado a partir de situações sociais bastante distintas das que produziram a ascensão burguesa na Alemanha. Ele cresce tomando ciência de uma memória familiar marcada pela tradição da rebeldia social e de uma memória comunitária que atualiza a tradição do cativeiro".

Além do texto de Lukács, sustenta a proposta do autor a tipologia do romance proposta por Mikhail Bakhtin em sua Esthétique de Ia création verbale (Assis Duarte cita a tradução fran­cesa; a portuguesa data de 1992). Bakhtin (1992, p.239-40) classi­fica o romance de formação ou de educação em cinco subtipos, dentre os quais considera o quinto o "mais importante":

Nele [nesse quinto tipo] a evolução do homem é indissolúvel da evolução histórica. A formação do homem efetua-se no tempo histórico real, necessário, com seu futuro, com seu caráter profun­damente cronotópico ... O homem se forma ao mesmo tempo que o mundo reflete em si mesmo a formação histórica do mundo ... Ele é obrigado a transformar-se em um novo tipo de homem, ainda

inédito ... A imagem do homem em devir perde seu caráter privado ... e desemboca ... na esfera espaçosa da existência histórica.

Assis Duarte sustenta, portanto, seu modelo de análise de Jubiabá como "Bildungsroman proletário" a partir dos textos de Lukács e de Bakhtin. A perspectiva assim constituída permite que se entenda Jubiabá como uma narrativa em evolução, em direção a um momento histórico em que o proletariado deveria tomar seu destino nas próprias mãos. É Assis Duarte (1994, p.l63) quem afirma: "O triunfo realista de Jubiabá está situado justamente nesta combinação da aprendizagem e do crescimento do heróico com a narração do movimento ascensional das classes subalternas, que é o dado histórico mais importante da década de 1930".

O "jogo de semelhanças e diferenças" entre os dois romances evidencia-se ainda na questão do desejo de ascensão. Enquanto Wilhelm "quer subir no palco como quem sobe na vida", ou seja, a opção pelo teatro evidencia-se como "alternativa para uma forma­ção que eleve o jovem ao mesmo patamar de reconhecimento so­cial desfrutado pela classe dominante", o mesmo desejo de ascen­são tipicamente burguês está ausente no protagonista de Jubiabá. A trajetória de Balduíno, do tablado das lutas de boxe, passando pela estiva e culminando na liderança de uma greve insere seu destino, segundo Assis Duarte, no referencial da utopia socialista.

Prosseguindo no balanço das semelhanças e das diferenças, o autor reconhece que tanto Balduíno como Meister tornam-se "pes­soas públicas". Porém, enquanto Meister apresenta dramas ale­mães no teatro, Balduíno exibe-se em tablados e ringues de circo; enquanto o personagem de Goethe "evolui do teatro para a me­dicina e finda sua peregrinação integrado ao avanço econômico e social da burguesia",4 Balduíno "sai do tablado para a estiva e termina liderando uma greve cujo referencial é a utopia socialis­ta, e não a 'ideologia da filantropia burguesa em sua formação utópica' que permeia o Meister" (Ibidem, p.161).

4 Aqui, Assis Duarte refere-se obviamente a Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister, embora não aluda diretamente ao segundo romance do Meister no corpo do texto.

Duarte (p. 162) argumenta ainda que, enquanto Meister tran­sita por um processo de formação eminentemente individual, a trajetória de Balduíno se dá num "processo de crescimento cole­tivo de nítida coloração épico-romanesca. Sua formação é mais política do que propriamente individual: é toda uma classe que se levanta e luta por direitos mínimos de cidadania".

Na verdade, a compreensão da trajetória de Wilhelm Meister como um processo de formação "basicamente individual" é pro­blemática, e deixa de contemplar um dos aspectos mais impor­tantes na constituição do Bildungsroman: a possibilidade do indi-vidual-universal, a possibilidade de representação dos ideais de formação da humanidade por meio do desejo individual pela for­mação universal. Porém, essa questão não será aqui problemati-zada, uma vez que este capítulo tem por objetivo identificar as formas de apropriação do Bildungsroman pela crítica brasileira.

Sob essa perspectiva, Assis Duarte (p.161-2) argumenta que, em resumo, Jubiabá coloca-se como "estilização 'proletária' do romance de formação burguês", afirmando ainda que o "Bildungsroman proletário se afasta, e mesmo opõe-se a seu cor­respondente burguês pelo encaminhamento dado ao desenrolar da trama".

Assim como Cristina Ferreira Pinto, Assis Duarte utiliza o conceito Bildungsroman como modelo teórico e reaplica-o sobre obras da literatura brasileira. Enquanto na literatura de língua ale­mã a alusão ao modelo Bildungsroman se dá prioritariamente pela relação dialógica da paródia, da reprodução ou da oposição dirigida diretamente ao romance de Goethe Os anos de aprendi­zado de Wilhelm Meister, como ocorre exemplarmente em O tam­bor de Günter Grass e no Felix Krull de Thomas Mann, a crítica brasileira, em um processo ainda incipiente, vem se apropriando do paradigma constituído pelo romance de Goethe por uma es­tratégia que postula menos a semelhança do que a diversidade.

A possibilidade de um "Bildungsroman proletário", como explicita Assis Duarte, está, porém, em sintonia com um dos acon­tecimentos mais significativos para a história do Bildungsroman no Brasil.

A primeira tradução brasileira de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister veio a público no segundo semestre de 1994. Jun­to à edição integral do romance, com a reprodução das notas explicativas da edição original da Deutscher Taschenbuch Verlag, a edição brasileira traz, como posfácio, o ensaio de Georg Lukács de 1936, no qual o autor considera o romance de Goethe como "legado irrenunciável para o realismo socialista". A escolha, que em princípio pode parecer aleatória, inscreve-se na linha edito­rial da editora paulistana Ensaio; uma pequena amostra de ou­tros títulos publicados pela mesma editora poderá comprovar o espaço prioritariamente concedido a obras críticas e teóricas de autores, nacionais e internacionais, ligados à questão do socia­lismo, do comunismo e das esquerdas em geral.

Constituiria, porém, uma simplificação bastante reducionista afirmar que o ensaio de Lukács insere Os anos de aprendizado como uma obra defensora ou representante dos ideais socialistas, ou mesmo do socialismo utópico. O próprio Lukács afirma que "não há em Goethe, evidentemente, nenhum socialismo utópico. Todas as tentativas de enxertar algo semelhante em suas obras ... hão de levar a uma distorção de suas concepções". Para Lukács, Goethe tenta renovadas vezes solucionar a grande contradição entre as paixões individuais ante a sociedade exterior de maneira utópica, "no quadro da sociedade burguesa". Isso significa que Lukács reco­nheceu o "final harmônico" de Os anos de aprendizado como o equilíbrio entre as paixões individuais e a inserção no coletivo so­cial, como já prenunciava seu ensaio de 1916. Essa inserção, po­rém, ele reconhece como um "fundamento contraditório" da con­cepção de sociedade em Goethe, "uma espécie de 'ilha'" dentro da sociedade burguesa. De toda maneira, Lukács (in: Goethe, 1994, p.597) vê no romance de Goethe uma crítica humanista "à socieda­de" e também "à divisão capitalista do trabalho, mas também con­tra o estreitamento, contra a deformação do ser humano pelo apri-sionamento no ser e na consciência da classe social". É este, para Lukács, o ponto de vista central sob o qual são expostas e criticadas as diversas classes e os tipos que a representam.

Embora o artigo de Assis Duarte não cite a tradução brasilei­ra de Os anos de aprendizado, à qual possivelmente não tenha

tido acesso à época de redação do artigo, valendo-se antes da tra­dução de Marcus Vinícius Mazzari,5 salta aos olhos a evidente coincidência entre sua leitura e a leitura proposta pela edição brasileira. A editora Ensaio optou por uma acepção crítica de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister que ressalta as pos­sibilidades de existência de um Bildungsroman proletário; ao lado do artigo de Assis Duarte, a edição brasileira do romance de Goethe pode vir a constituir um paradigma para a leitura do Meister e do romance de formação no Brasil.

Em suma, pode-se afirmar que tanto a concepção de um Bildungsroman feminista como a de um Bildungsroman proletá­rio firmam-se como possibilidades de releitura ideologicamente estabelecidas. Assim como a própria origem do termo (e do con­ceito) Bildungsroman encontra-se impregnada das concepções his-tórico-culturais de sua época, também a apropriação brasileira do conceito se estabelece a partir de núcleos histórica e socialmente determinados, como os movimentos das mulheres e do proleta­riado. Dessa forma, reafirma-se a natureza ideológica do conceito, sua capacidade de associação a diferentes modelos históricos, uma vez diluídas as características temáticas originais em proveito de cada novo núcleo definidor de sentido.

Esse mecanismo possibilita por sua vez que se possa falar em um Bildungsroman feminista, em um Bildungsroman proletário, em um Bildungsroman "psicanalítico". Assim, cada época, cada configuração histórica e intelectual pode ter seu próprio Bildungs­roman, na medida em que recorre aos princípios fundamentais capazes de definir o conceito, necessariamente transformando-os ou mesmo subvertendo-os.

Encaixa-se nesse modelo de explicação a afirmação de Georg Stanitzek (ver Killy, 1992, p.l18) quanto à popularização do re­curso ao Bildungsroman como modelo teórico e interpretativo. Em seu verbete sobre o Bildungsroman, Stanitzek reconhece que

5 Citando aqui a nota de rodapé do artigo de Assis Duarte: a tradução, direto do original, é parte do ensaio "Utopia da formação e utopia social nos ro­mances Wilhelm Meisters Lehrjahre e Wilhelm Meisters Wanderjahre". São Paulo: FFLCH/USP, 1982, cópia mimeografada.

a freqüente referência que a crítica folhetinesca faz ao Bildungs-roman "serve, na maioria das vezes, apenas para medir a distân­cia em relação à concepção tradicional do Bildungsroman, dis­tância essa que se pode observar na mais recente e freqüentemente popular literatura romanesca. Com o recurso ao Bildungsroman coloca-se à disposição um esquema crítico facilmente utilizável e de declarada capacidade de reconhecimento".

O comentário de Stanitzek denota sem dúvida uma censura à utilização desmedida do modelo Bildungsroman como instrumento crítico e interpretativo de obras que em princípio não se encaixa­riam nessa forma. Ao mesmo tempo, o comentário refere-se a um processo de atualização do modelo que vem ocorrendo na medi­da em que críticos como os citados aqui comparam obras indivi­dualizadas ao modelo tradicional do Bildungsroman, ressaltando, porém, as distinções. Dessa forma, nos casos já comentados, é apenas o reconhecimento das diferenças que possibilitará a refe­rência ao modelo.

AS RESENHAS NOS JORNAIS

Integram a incipiente história do conceito Bildungsroman no Brasil as resenhas introdutórias do romance de Goethe a partir da primeira tradução brasileira em 1994, publicadas nos suple­mentos culturais.

O artigo do professor Renato Janine Ribeiro publicado no jornal Folha de S. Paulo em 2 de outubro de 1994 introduz Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister ao leitor brasileiro. Janine Ribeiro inicia sua resenha com a frase: "Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister pode ler-se em várias linhas". A partir daí, o texto percorre as várias estações que devem constituir uma leitu­ra introdutória do Meister.

A primeira dessas instâncias é a articulação do romance de Goethe ao conceito Bildungsroman. Segundo Janine, "trata-se do exemplar mais acabado do Bildungsroman, do romance de edu­cação ou de formação." O autor articula, portanto, o Meister de Goethe ao a priori histórico do nascimento da educação moder-

na, da época que, com Rousseau e Pestalozzi, rompeu "a milenar crença numa natureza humana que nem a história nem a pedago­gia alteravam, mas apenas, a seus distintos modos, ilustravam".

Uma vez estabelecida essa perspectiva de contato, o artigo de Janine ressalta, entretanto, a estranheza que "este belo romance", "este romance notável", causará ao leitor de nosso dias. Essa es­tranheza se constitui, em grande parte, pela quase ausência de uma "história", de um mínimo de "suspense". Em detrimento dos com­ponentes tradicionais de uma narrativa romanesca, o romance de Goethe intensifica os debates teatrais e filosóficos, o que torna a obra "difícil" para o leitor contemporâneo. Janine Ribeiro reco­menda, corretamente, ao leitor que desejar um efetivo prazer na leitura, Os sofrimentos do jovem Werther ou As afinidades eletivas, do mesmo Goethe.

Estranha ao leitor de hoje seria também "a idéia de uma ma­turidade que se atinge após 'anos de aprendizado'", "que assim como a idéia de uma 'felicidade social segundo a natureza' esta­riam datados demais dos inícios da dominação burguesa, ou dos iluminismos do século XVIII, para que passem por nós impune­mente". O artigo de Janine Ribeiro exercita, portanto, a dinâ­mica da recepção histórica, localizando os pontos mais obscuros para o leitor contemporâneo, isto é, aqueles com maior capaci­dade de produção de sentido, que carecem de interpretação.

Janine Ribeiro localiza no romance de Goethe ainda mais um núcleo produtor de sentido: a questão da construção da naciona­lidade alemã, que "passa pela formação de um teatro nacional". Efetivamente, a passagem de Wilhelm Meister pelo teatro com­preende o desejo romântico de constituição de um teatro nacio­nal, onde atores alemães representassem autores alemães para um público alemão, ao qual se deveria educar. Entretanto, o projeto é malogrado; enquanto a nobreza parece preferir os autores fran­ceses, o público popular demonstra preferência pela opereta à maneira italiana. Quando Meister se desvincula da companhia tea­tral da qual fora diretor, esta já se prepara para encenar as óperas italianas.

O artigo do professor Janine Ribeiro (1994, p.6-7) ressalta, por­tanto, a dedicação de Wilhelm Meister ao teatro como uma das esta-

ções de seu aprendizado, relacionada ao desejo coletivo pela aquisi­ção de uma identidade nacional: "Está em cena o suporte emocional para uma cultura; pois era o teatro a forma mais intensa pela qual esta se dava ao público antes de surgirem os meios de comunicação de reprodução mecânica ou eletrônica que hoje socializam a massa. E é por aí que a pergunta pelo teatro nacional, ou seja, pela identida­de alemã, acompanha a busca de Meister por sua própria vida".

O comentário anterior recupera uma leitura de Os anos de aprendizado como obra na qual se representa o "individual-uni-versal", em que os anseios individuais seguem paralelos às ambi­ções de um grupo social. Reafirma-se, assim, uma possibilidade de leitura constituída já nas primeiras críticas de Friedrich Schiller e C. F. Körner, que viram no romance de Goethe uma represen­tação dos ideais da formação universal.

Ainda assim, a obra permaneceria distante e "estranha" ao leitor brasileiro contemporâneo, senão contraditória. A existên­cia de uma instituição como a Sociedade da Torre, instância que o autor reconhece como autoritária e manipuladora, vai de en­contro à idéia de que o protagonista possa alcançar, ao final dos acontecimentos, liberdade e autonomia. Para nós, afirma Ribeiro, essa manipulação "já não suscita entusiasmo nem sequer simpa­tia". Assim, mesmo o ideal de educação iluminista, que constitui, sem dúvida alguma, um dos pressupostos do romance de Goethe, não poderia ser assimilado pelo leitor brasileiro contemporâneo sem uma boa dose de estranhamento.

Conclui-se então que o artigo de Renato Janine Ribeiro opta por introduzir Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister ao lei­tor contemporâneo e real a partir de uma visão de contraste e estranhamento, apontando os possíveis núcleos de constituição do "MiBverständnis" (mal-entendido), dos pontos de ocultamento de sentido que são, ao mesmo tempo, produtores de sentido. Ao final de seu artigo, Ribeiro (p.6-7) indica aquela que parece ser a perspectiva possível para uma atualização do Bildungsroman e de seu paradigma, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister: "Mas talvez esteja nesta distância, que sentimos ante uma das obras constitutivas do mundo burguês em seu empenho pela educação, a razão de ela ainda estar viva: porque não a lemos só para fruir

uma boa história; o que nela achamos são questões que vale a pena discutir, mesmo que seja para ter outras respostas.

O artigo de professor Renato Janine Ribeiro, além de apre­sentar o romance de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister ao leitor brasileiro, preocupa-se em contribuir para a ins­tituição de uma perspectiva crítica, ainda incipiente entre nós.

Nessa mesma linha insere-se o artigo de Marcus V Mazzari, publicado no Jornal de Resenhas da Folha de S. Paulo, em 2 de outubro de 1995.

Seguindo de perto a trajetória de Meister, a resenha salienta pontos críticos do percurso do protagonista, considerado sob a perspectiva da formação. É importante ressaltar que o artigo de Mazzari aponta, pela primeira vez na crítica brasileira, a ausência de harmonia no processo representado, bem como ressalta a pers­pectiva algo irônica sob a qual a Sociedade da Torre é apresentada. Dessa forma, apresenta-se ao leitor brasileiro uma leitura consoan­te com a crítica européia mais recente, como as obras de Klaus Gille e Hans Eichner.

Comentando o percurso de Meister desde a casa paterna até o abandono do teatro, Mazzari afirma que "o processo de forma­ção traçado no romance está longe de percorrer o desenvolvimento harmônico que se costuma associar a concepções classicistas".

Acrescenta ainda o fato de que à declaração do término de seus anos de aprendizado sucederá "um momento de profunda desorientação [o qual] mostra mais uma vez que a formação do jovem Meister não tem um desenvolvimento harmônico, linear­mente evolutivo, dando-se antes de forma descontínua, também através de erranças e reveses" (Mazzari, 1995, p.12).

Apresenta-se assim ao leitor brasileiro uma problematização da natureza do próprio processo de formação vivenciado pelo protagonista, o que contribui por sua vez para o estabelecimento de uma perspetiva crítica para além do conceito tradicional e "or­todoxo" de Bildungsroman.

É possível ainda reconhecer na resenha em questão o desen­volvimento de um pressuposto estabelecido por Friedrich Schlegel, em Über Wilhelm Meisters Lehrjahre (Sobre o Wilhelm Meister), o Übermeister de 1798. Ali, Schlegel (1956, p.282) afirma que "es-

tes anos de aprendizado querem e podem antes formar um outro que não o próprio Wilhelm em um hábil artista e em um cidadão capaz", acrescentando que Lothario é "a figura humana mais in­teressante em todo o livro": "Lothario é um grande homem ... Lothario é perfeito, seu aspecto é simples, seu espírito está sem­pre em progressão...".

A resenha de Marais V. Mazzari (1995, p.6-7) recupera de maneira indireta a concepção de Friedrich Schlegel na medida em que dedica dois longos parágrafos à personagem de Lothario, "es­pécie de social-democrata avant Ia lettre" que "se ocupa priori­tariamente de questões sociais". Embora a personagem Lothario apareça apenas no livro VII, aproximadamente no terço final do romance, suas concepções sobre distribuição de terra e sobre a tributação das propriedades da nobreza salientam suas qualidades de "indivíduo politicamente inteligente, de visão ampla, que age de acordo com as necessidades da época. Membro da nobreza, Lothario possui aguda consciência da delicada situação política na Europa do século XVIII. Por conseguinte, defende ideais de uma convivência equilibrada entre nobreza, burguesia e camadas populares".

Dessa forma, a resenha de Marcus Mazzari propõe ao leitor contemporâneo uma leitura de Os anos de aprendizado que inclui uma perspectiva crítica sob a qual o processo de aprendizado dei­xa de ser visto como um processo teleológico, como uma evolu­ção harmônica; ao mesmo tempo, recupera uma concepção já intuída por Schiller em suas últimas cartas sobre o Meister e de­clarada por Friedrich Schlegel, de que Wilhelm Meister não seria um efetivo protagonista, de que seus anos de aprendizado não constituem a temática central do romance.

O estudo contribui, portanto, para a problematização do ro­mance de Goethe no Brasil, na medida em que também aponta para os deslocamentos em relação às concepções classicistas e or­todoxas de Bildungsroman.

A partir da análise dos exemplos aqui comentados, é possí­vel concluir que a história do conceito Bildungsroman no âmbito da crítica literária brasileira é ainda recente. Entretanto, já se de­lineia uma determinada maneira de apropriação do conceito que

se caracteriza pelo esforço de "adaptação" de expressões peculia­res da literatura produzida no Brasil no século XX ao modelo tra­dicional do Bildungsroman alemão do século XVIII. A idéia de um Bildungsroman feminino, ou mesmo feminista, ilustra exem­plarmente o alcance desse processo, que necessariamente pressu­põe uma subversão dos parâmetros que sustentam as definições "tradicionais" de Bildungsroman.

As resenhas publicadas nos jornais ilustram, por sua vez, uma modalidade diferente de apropriação do Bildungsroman no Bra­sil. Em vez de promover a aplicação do modelo europeu sobre produções particulares da literatura brasileira, o artigo de Renato Janine Ribeiro esforça-se por avaliar a distância entre o leitor bra­sileiro contemporâneo e os pressupostos que constituem o romance de Goethe. A estranheza que daí decorre não tem sua origem ape­nas na questão intercultural ou de época, mas na própria natu­reza da obra, esse romance "belo"' e "notável", porém estranho.

O artigo do professor Janine Ribeiro convida o leitor a um exercício de interpretação do romance de Goethe à luz da histó­ria das idéias, bem como à luz de sua própria tradição crítica, exercício esse do qual também o artigo posterior de Marcus Vinícius Mazzari nos dá notícia.

CONCLUSÃO

A abordagem ao Bildungsroman a partir da investigação dos a priori histórico-literários que o constituem permitiu que se descortinassem certas características do gênero que importam mesmo para o estatuto e a economia do Bildungsroman no cam­po dos estudos literários.

A primeira delas diz respeito à própria natureza do Bild­ungsroman: defendeu-se, nas páginas anteriores, a necessidade de compreensão do Bildungsroman como um signo literário, construído pela conjunção do termo Bildungsroman, criado por Karl Morgenstern em 1803, ao romance de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1795-1796). Como conse­qüência histórico-literária dessa conjunção, uma abordagem ao Bildungsroman deve necessariamente considerar os discursos realizados sobre o romance de Goethe; da mesma forma, é pre­ciso rever o estatuto canônico de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister como obra paradigmática do gênero, expe­rimentando a validade dessa articulação ao longo da história literária.

O Bildungsroman ultrapassa então sua natureza de fenômeno literário, tornando-se um objeto constituído também pelas pro­jeções críticas e interpretativas que sobre ele se debruçaram. Ou seja, o Bildungsroman, como hoje o conhecemos, é um fenômeno constituído tanto pela sua inteireza de "entidade literária" como pela discursividade que dele se vem ocupando desde a criação do termo. Dessa forma, o Bildungsroman mostra-se ainda hoje como conceito em constante movimento, o que possibilita sua apro­priação por parte das diferentes literaturas nacionais e dos mais diferentes modos de interpretação.

Apenas uma perspectiva que considere o Bildungsroman como uma forma histórica dinâmica permitirá fazer convergir as diver­sas e não poucas vezes paradoxais leituras que dele se tem feito; é apenas pela compreensão do Bildungsroman como um objeto for­mado predominantemente por manifestações discursivas que se poderá legitimar a existência de um Bildungsroman diferente a cada período histórico-cultural, a cada núcleo formador de signifi­cado. A compreensão de um tal mecanismo pode então legitimar a existência de um Bildungsroman medieval, um Bildungsroman barroco, um Bildungsroman clássico, um romântico, realista, ca­pitalista, socialista, e até mesmo um Bildungsroman psicanalítico e um feminista.

Também quanto a sua origem e gênese, a abordagem ao Bildungsroman deve ser feita sob uma perspectiva dinâmica; no capítulo intitulado Genealogia pretendeu-se legitimar a hipótese de que o Bildungsroman se sustenta, em seu estatuto literário, como instituição impregnada pelo contato com outras formas de narrativa, como os testemunhos de conversão pietistas, os relatos de viagem, a narrativa picaresca, a literatura predominantemente educativa da Aufklärung, as autobiografias intelectuais. Por meio de suas relações de parentesco, portanto, o Bildungsroman mos­tra-se mais uma vez como uma formação complexa, apontando para núcleos de significação engendrados na história social.

Em sua constituição híbrida, o Bildungsroman é um gênero que se deixa apropriar pelas mais diferentes abordagens. Essa fa­cilidade de apropriação e superexposição do conceito tem conse­qüências para os estudos literários; repita-se aqui o argumento de

Georg Stanitzeck quanto à superutilização do Bildungsroman como esquema interpretativo: "Com o recurso ao Bildungsroman, fica à disposição um esquema crítico de manipulação compro­vadamente fácil e de alta capacidade de reconhecimento" (Killy & Meid, 1992, p.122).

A afirmação de Stanitzeck chama a atenção para um pro­cesso de superexposição e, de certa forma, vulgarização do Bildungsroman, já desenvolvido nas literaturas nacionais euro­péias e incipiente entre nós, como se pretendeu demonstrar no capítulo sobre o Bildungsroman no Brasil. A compreensão desse processo será tanto mais produtiva quanto se tomar em conta a considerável carga ideológico-discursiva que impregna o conceito já desde sua origem.

O Bildungsroman mostra-se, portanto, paradoxalmente, como um conceito facilmente identificável, em razão dos pressupostos extremamente datados que permeiam sua gênese, e ao mesmo tempo como um conceito de difícil apreensão, em virtude do processo de vinculação aos diferentes núcleos discursivos que dele se apropriam.

Consideram-se aqui, portanto, impróprias ou infrutíferas as abordagens ao Bildungsroman que levam em conta exclusivamente o instrumental tradicional da teoria literária, como por exemplo o gênero entendido como categoria normativa e classificatória, sob a qual se identifica um modo específico de representação, de reprodução da realidade. Como se pretendeu ter demonstrado, tais abordagens malogram ao confrontar-se com as definições do Bildungsroman, em suas tentaitvas de delimitar um corpus de ca­racterísticas capazes de isolar o objeto.

Em lugar disso, o que possibilita a abordagem ao Bildungs­roman é a compreensão de sua diversidade, de seu estatuto hí­brido entre constructo literário e projeção discursiva.

Nas páginas anteriores, o que se empreendeu foi a investiga­ção "arqueológica" das diferentes camadas discursivas que vêm atribuindo significação ao signo literário constituído pelo termo Bildungsroman e pelo romance de Goethe Os anos de aprendi­zado de Wilhelm Meister; essa investigação conduziu à com­preensão do Bildungsroman antes como formação eminentemente

histórico-discursiva do que como entidade predominantemente literária. A decorrência teórica desse fato é um realinhamento do instrumental de abordagem ao Bildungsroman, realinhamento que privilegia o estatuto dos objetos de estudo da teoria e história da literatura como instituições social-literárias.

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Nobuca Rachi Kawata

Impresso nas oficinas da Gráfica Palas Athena

o desejo da burguesia culta de superar os limites de­marcados pela classe dominante na Alemanha absolu­tista do século XVIII. Mais tarde, Thomas Mann com­preenderá o Bildungsroman como "uma manifestação tipicamente alemã", uma variedade de romance pró­prio de uma sociedade atomizado, onde cada indiví­duo se transforma num representante do gênero hu­mano, em um contexto onde falta, quase que comple­tamente, o elemento político. Na Alemanha, onde as revoluções burguesas tiveram todas um caráter "insufi­ciente", o romance burguês realista, já mesmo no sé­culo XIX, não teria atingido o mesmo grau de represen­tação social presente em Balzac, Dickens ou Melville.

O trabalho da autora ganha especial atualidade e vigência por mostrar a trajetória e permanência desse gênero literário. O "modelo" original será inevitavel­mente submetido a um processo de diluição, à medida que se deixa apropriar por outras instâncias literárias e críticas em meio à literatura alemã, a outras literaturas européias e mesmo pela crítica literária brasileira. Do prisma de uma história da literatura como história da obra, dos gêneros e da crítica, o estudo mostra a cons­tituição desse cânone desde seu contato com outras for­mas narrativas como os testemunhos das conversões pietistas ou a literatura educativa da Ilustração, con­centrando-se em Goethe, para chegar a Thomas Mann e Günter Grass.

O leitor brasileiro tem, pois, em mãos uma discus­são original e profunda sobre um conceito historicizado em sua essência, que se transforma em cânone atem-poral e permanece indissoluvelmente ligado à própria história da literatura ocidental.

Eloá di P/erro Heise

Wilma Patrícia Maas é professora de literatura alemã na UNESP de

Araraquara. Estudiosa da obra de Goethe e Friedrich Schlegel, tem

trabalhos publicados nas áreas de hermenêutica literária, história e

historiografia da literatura.

Capa: Vicente Pimenta, sobre imagens fractais.

"Um romance perfeito deveria ser uma obra de

arte muito mais romântica do que o Wilhelm

Meister; mais moderna e mais antiga, mais filo­

sófica, mais ética e mais poética, mais política,

mais liberal, mais universal, mais social."

(Friedrich Schlegel)