30
INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Mestrando: ANDRÉ LUIZ SICILIANO (IRI-USP) ARTIGO: “O CASO DE BELO MONTE NA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS: ANÁLISE EM DOIS NÍVEIS” São Paulo, SP Outubro/2011

O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): Análise em dois níveis

Embed Size (px)

DESCRIPTION

O governo brasileiro recentemente iniciou as obras para a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu, Estado do Pará. A construção dessa usina irá forçar a remoção de milhares de pessoas de suas terras, inclusive a remoção de índios de seus respectivos Territórios Indígenas devidamente reconhecidos pelo governo brasileiro. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, visando proteger os direitos dos povos indígenas, concedeu uma Medida Cautelar solicitando ao governo brasileiro a imediata suspensão das obras da Usina, a fim de que fossem evitados danos irreparáveis aos direitos humanos das comunidades indígenas afetadas. O resultado desse embate foi um enorme retrocesso nas relações entre o governo do Brasil e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e o possível enfraquecimento desta no sistema internacional.

Citation preview

Page 1: O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): Análise em dois níveis

INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Mestrando: ANDRÉ LUIZ SICILIANO (IRI-USP)

ARTIGO:

“O CASO DE BELO MONTE NA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS

HUMANOS: ANÁLISE EM DOIS NÍVEIS”

São Paulo, SP

Outubro/2011

Page 2: O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): Análise em dois níveis

Índice

Resumo.....................................................................................................................................03

Objetivo....................................................................................................................................03

Introdução.................................................................................................................................04

Ambiente Internacional............................................................................................................06

Ambiente doméstico.................................................................................................................12

Urgência energética......................................................................................................12

Histórico de Belo Monte..............................................................................................14

Outros interesses...........................................................................................................17

A recente polêmica.......................................................................................................18

O Relatório dos Especialistas...........................................................................19

Ameaça aos Direitos Humanos (dos indígenas)...............................................20

Direitos Humanos.....................................................................................................................25

A Revogação da MC-382/10....................................................................................................26

Conclusão.................................................................................................................................27

Bibliografia...............................................................................................................................29

Page 3: O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): Análise em dois níveis

Resumo

O governo brasileiro recentemente iniciou as obras para a construção da Usina

Hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu, Estado do Pará. A construção dessa usina irá

forçar a remoção de milhares de pessoas de suas terras, inclusive a remoção de índios de seus

respectivos Territórios Indígenas devidamente reconhecidos pelo governo brasileiro. A

Comissão Interamericana de Direitos Humanos, visando proteger os direitos dos povos

indígenas, concedeu uma Medida Cautelar solicitando ao governo brasileiro a imediata

suspensão das obras da Usina, a fim de que fossem evitados danos irreparáveis aos direitos

humanos das comunidades indígenas afetadas. O resultado desse embate foi um enorme

retrocesso nas relações entre o governo do Brasil e a Comissão Interamericana de Direitos

Humanos e o possível enfraquecimento desta no sistema internacional.

Objetivo: O presente artigo tem o propósito de demonstrar que a análise minunciosa do

ambiente doméstico por uma instituição internacional é absolutamente necessária, não apenas

para se alcançar os objetivos pretendidos, mas, principalmente, para evitar que suas ações

desencadeiem resultados indesejados.

Palavras-chave: “Comissão Interamericana de Direitos Humanos”, “Belo Monte”, “Jogo de

dois níveis” e “Comunidades indígenas”.

Page 4: O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): Análise em dois níveis

Introdução

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), visando proteger

comunidades indígenas localizadas na Volta Grande do rio Xingu, concedeu, em 1º de abril

de 2011, Medida Cautelar de nº382/2010 (MC-382/10), solicitando ao governo brasileiro que

suspendesse as obras da Usina Hidrelétrica de Belo Monte (UHE-Belo Monte), para que não

houvesse risco de dano irreparável às comunidades que serão atingidas pelas obras da usina.

No dia 05 de abril, o governo brasileiro, por meio do Ministério das Relações Exteriores,

emitiu nota de nº142/2011, dizendo que considerava a MC-382/10 injustificável e

precipitada. Dois dias depois, o governo brasileiro retirou a indicação do ex-ministro Paulo

Vannuchi como candidato brasileiro para integrar a Comissão Interamericana de Direitos

Humanos, o que foi percebido como uma retaliação brasileira ao órgão internacional1. A

decisão do governo brasileiro foi considerada por parte da sociedade como truculenta e

equivocada, incompatível com o que se esperava de um governo democrático.

O impasse verificado não se trata, evidentemente, de oposição entre interesses

doméstico e estrangeiro, pois a CIDH defende, legitimamente, interesses de comunidades

brasileiras, que, no entanto, não têm força suficiente no ambiente político interno. Ou seja, o

confronto ocorre entre grupos nacionais, sendo que um deles é representado pela CIDH, que é

órgão do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos2. Embora os interesses

em questão digam respeito apenas a brasileiros, sejam dos atingidos pelas obras da Usina ou

dos beneficiados por ela, a questão da defesa dos direito humanos é matéria de interesse

1 “Cotado para ser o candidato do Brasil ao cargo de representante brasileiro na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), vinculada da Organização dos Estados Americanos (OEA), o ex-ministro Paulo Vannuchi teve a indicação retirada no último dia 7 de abril. A mudança ocorreu dois dias depois que a Comissão emitiu uma recomendação para o governo brasileiro suspender as obras da Usina Hidrelétrica Belo Monte, no Pará.” Fonte: Agência Brasil, in http://exame.abril.com.br/economia/brasil/noticias/brasil-retira-candidatura-de-vannuchi-para-cargo-na-oea.

2 O Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos é composto, basicamente, pelos seguintes instrumentos normativos: Carta da OEA, 1948; Declaração Interamericana dos Direitos e Deveres do Homem, 1948; Declaração de San Tiago, 1959; Protocolo de Buenos Aires, 1967; Pacto de San José da Costa Rica, 1969; Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos; e Protocolo de San Salvador, 1988; Protocolo de Cartagena das Índias, 1985; e Protocolo de Washington, 1992.

Page 5: O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): Análise em dois níveis

global3, o que faz do episódio em tela um excelente exemplo de como a política doméstica e

as relações internacionais podem ser imbricadas.

Analisando o caso concreto, pode-se concluir que a estratégia adotada pela CIDH

levou o governo a adotar uma postura de divergência4, não acolhendo seus pedidos e

adotando postura de distanciamento da em relação a ela. Atentando para essa problemática, e

analisando a questão sob os dois níveis de análise (Putnam, 1988), o que restará demonstrado

a seguir é que: i) em nível internacional, o governo brasileiro não correspondeu às

expectativas no que se refere à proteção dos direitos humanos, adotando uma postura de

divergência em relação à CIDH; e ii) em nível doméstico, o governo brasileiro agiu de forma

coerente e previsível, em consonância com a vontade da maioria dos eleitores. Por sua vez, a

CIDH agiu de acordo com os novos valores da ordem global, mas ignorou o cenário e as

forças domésticas nacionais e permitiu que houvesse o embate direto com o governo

brasileiro. A divergência entre a postura do governo brasileiro e o pedido da CIDH fez com

que a CIDH revogasse sua Medida Cautelar, o que demonstra o desgaste a que a CIDH se

submeteu.

Embora a reconsideração da edição da MC-382/10 demonstre uma inflexão acertada

por parte da CIDH, que se coloca em direção a uma base mais sólida para a futura decisão de

mérito do caso, resta evidenciado o enfraquecimento político da entidade no episódio.

Portanto, é imprescindível analisar os fatores que criaram essa situação para que se possa

buscar, no futuro, um posicionamento estratégico mais eficiente na defesa dos Direitos

Humanos no continente americano.

3 Especialmente depois de ter sido objeto da Resolução 217 A (III), da Assembleia Geral das Nações Unidas, 10 de Dezembro de 1948. “Declaração Universal dos Direitos Humanos”.

4 O conceito de convergência e divergência aqui adotado é o utilizado por BOTCHEVA, Liliana e MARTIN, Lisa. 2001. In “Institutional Effects on State Behavior: Convergence and Divergence”. International Studies Quarterly, vol. 45, nº 1. March.

Page 6: O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): Análise em dois níveis

Ambiente Internacional

O Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos é composto pela Corte

Interamericana de Direitos Humanos, pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos,

ambas pertencentes ao arcabouço institucional da Organização dos Estados Americanos5, e

por diversos tratados específicos6. Essa especialização temática em âmbito internacional

permitiu uma atuação mais precisa e mais efetiva para a proteção dos Direitos Humanos no

continente americano, que teve enorme projeção regional com o fim das ditaduras militares

na América Latina, no final do século passado. Historicamente, a CIDH atuou de maneira

exemplar em diversos casos, tais como no de Barrios Altos (Peru, 1991) e Araguaia (Brasil,

2001), em que as demandas foram levadas à Corte Interamericana de Direitos Humanos, com

ampla repercussão internacional e influência significativa, tanto política, quanto judicial, em

seus respectivos âmbitos domésticos.

Entre o final do século XX e o início do século XXI, percebe-se a conformação de

uma nova ordem global7, composta pela multiplicidade de instituições e de locais para o

diálogo, em que temas como direitos humanos, meio ambiente, normatização financeira,

dentre outros, tornam-se cada vez mais autônomos em relação aos Estados Nacionais. Os

padrões que sustentam essa ordem global, segundo Rosenau, podem ser divididos em três

níveis de atividade: i) o nível ideal, ou intersubjetivo, que seria o dos valores e das ideias; ii)

o nível comportamental, ou objetivo, que seria o da forma de agir; e iii) o nível agregado ou

político, que seria o da governança, das normas, das instituições, que orientam as políticas

decorrentes dos padrões das ideias e dos comportamentos. A ordem global, portanto,

apresenta-se como indivisível, pois seus três níveis se inter-relacionam, impedindo que

alguma causa, ou alguma consequência que se pretenda estudar, seja perfeitamente isolada.

Desse modo, considerando a nova ordem global, em que homicídios, torturas,

desaparecimentos e cárceres promovidos por governos ditatoriais deixaram de ser a tônica na

realidade americana, a CIDH buscou ocupar um novo espaço de atuação, atendendo a

5 Conforme Carta de Havanna, 1948 (Criação da OEA).

6 Pacto de San José, 1969; Protocolo de San Salvador, 1988; Convenção sobre o Reconhecimento dos Direitos Civis e Políticos à Mulher; Carta Internacional Americana de Garantias Sociais, dentre outros.

7 Rosenau, James N. “Governance, order, and change in world politics”. Rosenau, James & Czempiel, Ernst-Otto (eds.). Governance without government: Order and Change in World Politics. Cambridge University Press, 2000, pp. 1-29.

Page 7: O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): Análise em dois níveis

solicitações de minorias que se veem reprimidas pelos seus governos e cujos direitos

humanos estejam ameaçados. No Brasil, este novo posicionamento da CIDH se materializou

na defesa dos povos indígenas do Xingu perante o Estado brasileiro. Essa guinada é

pertinente e necessária, e condiz com os novos valores e desafios da humanidade, tais como o

desenvolvimento sustentável e a democracia cosmopolita8, que, segundo Archibugi (2004),

consiste na ampliação e no aprofundamento da participação de cidadãos e de grupos de

pessoas em âmbito global, desencadeando certo enfraquecimento do Estado Nacional

enquanto representante legítimo e unitário do interesse das pessoas.

O fenômeno observado no caso de Belo Monte demonstra que certas comunidades

interessadas em um número considerável e crescente de questões específicas não

necessariamente coincidem com as fronteiras territoriais dos estados, bem como que a

globalização produz novos movimentos sociais engajados em questões que afetam outros

indivíduos e comunidades, mesmo que estes estejam geograficamente e culturalmente muito

distantes de sua própria comunidade política. Desta forma, o framework observado no caso

concreto é o mesmo que o tratado por Rosenau (2000), quando identifica o processo de

Fragmegration9, que consiste no quadro de fragmentação do Estado, cumulado com o de

integração de grupos sociais. A fragmentação se verifica quando os grupos e os indivíduos

deixam de ter no Estado a expressão legítima de seus interesses, de modo que passam a agir

de forma autônoma em defesa de seus interesses, que não mais são atendidos pelos Estados.

Isso é exatamente o que se verifica na questão de Belo Monte, em que grupos

indígenas locais se manifestam contra a opinião e às iniciativas do governo brasileiro quanto

ao uso dos recursos da região da Volta Grande do Xingu, no Pará10. Tais grupos, por sua vez,

identificam-se com outros grupos igualmente isolados em outros Estados, de modo que

ambos se unem para obter maior força, num movimento de integração entre os pares de

diversas regiões, ou nações. Observa-se, ainda, que esses indígenas brasileiros da região do

Xingu se uniram a indígenas da região de Rondônia e também do Peru11 para, com maior

8 Archibugi, Danielle. “Cosmopolitan Democracy and its Critics”. European Journal of International Relations, vol. 10, no3. September, 2004, pp. 437-473.

9 Rosenau, James N. “Norms”. Along the Domestic-Foreign Frontier. Exploring governance in a turbulent world. Cambridge University Press, 2000, pp. 174-188. 10 In: http://www.socioambiental.org/esp/bm/index.asp

11 In: http://www.survivalinternational.org/ultimas-noticias/7070

Page 8: O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): Análise em dois níveis

envergadura, manifestarem-se na esfera internacional12 contra os projetos de uso de suas

terras pelos seus respectivos governos nacionais. Assim, temos a fragmentação dentro do

Estado (vertical) e a integração social (horizontal), tal como apontado por Rosenau. Nesse

contexto, provoca-se a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que passa a ter o

dever de agir em defesa dos direitos humanos das minorias afetadas, no caso, de alguns povos

indígenas da região do rio Xingu.

É de se observar que a governança existente a nível local não atendeu às demandas

deste mundo global, que clama por uma diligência muito maior no que diz respeito aos

direitos humanos. Destaque-se, entretanto, que não existe uma governança supranacional,

global ou regional, legitimada para resolver estas novas questões, de modo que se verifica um

desencontro entre a vontade da comunidade internacional e a operacionalidade da autoridade

local e, enquanto não houver convergência, uma irá se sobrepor à outra.

Essa interação entre instituições domésticas e internacionais (Drezner, 2003) possui

duas dimensões: a primeira é a forma como as instituições internacionais são utilizadas para

influenciar a política doméstica, que pode ocorrer através do estabelecimento de pactos, da

coerção ou da persuasão (no caso, foi a tentativa de coerção materializada na MC-382/10); a

segunda dimensão define quais atores usam a instituição internacional para alcançar seus

próprios fins (em Belo Monte, foram as comunidades indígenas citadas na MC-382/10).

Entretanto, existe a possibilidade de atores externos usarem as instituições internacionais para

influenciar a política doméstica de outros países, o que também ocorre com frequência13.

Andrew P. Cortell e James W. Davis Jr., em artigo publicado em 199614, também

abordam o como as instituições internacionais podem ser usadas por agentes nacionais na

defesa de seus próprios interesses, com a finalidade de implementar mudanças domésticas

que sozinhos não teriam condições de realizar. Liliana Botcheva e Lisa L. Martin15, por sua

12 In: http://www.nytimes.com/2010/04/11/world/americas/11brazil.html?ref=world

13 Drezner, Daniel W. (Ed.). “Introduction: The Interaction of International and Domestic Politics”. Locating the Proper Authorities: The Interaction of Domestic and International Institutions. Ann Arbor: Michigan University Press, 2003, pág. 02.

14 Cortell, Andrew P. e Davis Jr., James W. D. “How do international institutions matter? The domestic impact of international rules and norms”. International Studies Quarterly, 1996, 40, pp. 451-478.

15 BOTCHEVA, Liliana; MARTIN, Lisa. “Institutional Effects on State Behavior: Convergence and Divergence”. International Studies Quarterly, vol. 45, nº 1. March 2001.

Page 9: O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): Análise em dois níveis

vez, analisam que tipo de efeitos as instituições internacionais podem produzir sobre os

Estados em determinado tipos de circunstâncias, classificando esses comportamentos como

convergentes ou divergentes. Ambos os trabalhos se debruçam sobre a interação crescente

entre as esferas doméstica e global e sobre as variantes dessa interação, quando é maior ou

menor, quando é mais ou menos eficiente e sob quais justificativas.

Botcheva e Martin (2001) chamam a atenção para um outro aspecto da interação entre

as esferas doméstica e internacional, que é o da influência das instituições internacionais na

postura que os Estados adotam perante o sistema internacional. Segundo as autoras, existem

casos em que as instituições incentivam a cooperação, influenciando os Estados a cooperarem

em circunstâncias em que eles normalmente encontrariam grandes dificuldades para isso, de

modo a gerar um efeito de convergência entre os atores internacionais. Em outros casos, em

que os Estados não percebem tão fortemente esse incentivo à cooperação, simplesmente

optam por não cooperar e verifica-se o efeito de divergências entre eles.

Para que haja convergência, argumentam, é preciso que os Estados percebam a

existência de externalidades substanciais que podem gerar altos custos de deserção, pois

dessa forma, haveria incentivo para a cooperação. No caso em tela, o histórico recente do

Brasil em temas ligados aos direitos humanos (postura do STF no caso Araguaia, que não

incorporou no ordenamento juridico brasileiro a tipificação de desaparecimento forçado, ou

mesmo a postura brasileira no caso Batisti), certamente é um bom indicativo de que a

retaliação moral externa não é considerada uma externalidade substancial. Assim, além das

baixas externalidades no cenário internacional, haveria um enorme custo doméstico

decorrente de eventual interrupção da obra da UHE-Belo Monte, que será mais bem

detalhado a seguir quando for analisado o ambiente doméstico.

Quanto às baixas externalidades no cenário internacional, vale esclarecer que não se

trata de relativizar os direitos humanos enquanto conjunto de valores, enquanto marco teórico

ou enquanto instituto normativo, mas de compreender que em cada situação a abordagem

deverá ser feita de modo específico, visando obter um resultado ótimo. Há que se considerar,

por exemplo, que lidar com um problema relacionado aos direitos humanos em Honduras é

muito diferente do que lidar com um problema semelhante no Peru, no Brasil, ou no Canadá.

Há numerosas diferenças que tornam cada situação particular, tanto em nível doméstico como

em nível internacional, tais como, o histórico de cooperação de cada Estado com as

instituições internacionais, o comprometimento de cada Estado com o Sistema Internacional

Page 10: O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): Análise em dois níveis

de Proteção aos Direitos Humanos, o espaço para diálogo em âmbito doméstico, a existência

e a efetividade de instituições internas, ou, mesmo, o poder de cada Estado no sistema

internacional.

Assim, uma atuação em Honduras provavelmente exigirá uma intervenção externa

consentida, dada a falta de estrutura mínima para uma resolução eficiente, enquanto que no

Canadá o simples questionamento promovido por uma instituição internacional poderá levar

ao debate de ideias que, provavelmente, possibilitará uma solução satisfatória em âmbito

doméstico. Entretanto, se a discussão fosse sobre proteção aos Direitos Humanos nos Estados

Unidos, dado o histórico norte-americano de adotar uma postura autonomista e soberanista,

bem como o seu incomparável poder internacional, provavelmente, nenhuma atitude adotada

pelo Sistema Internacional de Proteção aos Direitos Humanos seria eficiente.

E é nessa complexidade que a Governança Global16 se desenvolve, com a

multiplicidade de atores e de instituições que se inter-relacionam, com pesos diferentes,

buscando certa padronização de valores, conforme a possibilidade de cada local. Significa

dizer que, dentro dessa multiplicidade, cada instituição ou Estado deve considerar não apenas

os fatores que lhes são intrínsecos, mas também os fatores que influenciam e determinam a

atuação dos outros atores com quem interagem, sob pena de provocar reações adversas e

indesejadas.

Observa-se, no caso de Belo Monte, que dois fatores foram determinantes para que a

reação do governo brasileiro à solicitação da CIDH fosse das mais indesejadas, um externo e

um doméstico: o primeiro, foi a inovação no padrão de atuação da CIDH, que

originariamente atuava em casos de torturas, homicídios, chacinas, desaparecimentos,

cárceres, etc. e passou a atuar com a questão da proteção a povos nativos e da defesa do meio

ambiente, fato reconhecido pelo próprio secretário-geral da Organização dos Estados

Americanos, José Miguel Insulza:

“Quando a comissão de direitos humanos começou a atuar nesses

temas, quase como um tribunal, ainda que não tenha força

obrigatória, os temas de que falava eram homicídio, tortura,

desaparecimento, cárcere, etc. O surgimento dos temas ambientais e 16 Dingwert, Klaus & Pattberg, Philipp. “Global governance as a perspective on world politics”. Global governance – A review of multilateralism and international organization, vol. 12, no 2. April-June 2006, pp. 185-203.

Page 11: O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): Análise em dois níveis

dos povos nativos abre um espaço que deve ser tratado com muito

cuidado. Não creio que nenhum governo democrático tenha a

intenção de criar problemas aos seus povos nativos.

Acho que o pior que se pode fazer neste caso é exacerbá-lo e tratar o

tema como se um fosse a vítima, e os outros a ditadura, como ocorreu

a princípio. Espero que Belo Monte sirva para calibrar bem a coisa e

entender que, quando se trata de projetos dessa envergadura, a

CIDH pode perfeitamente chegar aos governos para dar assessoria,

opiniões, mas não tratar como um tema semijudicial.” 17

É preciso fazer uma consideração importante sobre essa mudança de atuação, pois se,

por um lado, essa nova postura reflete adequadamente os novos valores dessa ordem global,

por outro, ainda não se sabe qual o tamanho e a força do apoio que a comunidade

internacional dará à CIDH em sua nova modalidade de atuação. Percebe-se que, certamente,

não será igual aos dados aos temas anteriores. Prova disso é o discurso do secretário-geral da

OEA, que acredita que a postura da CIDH foi equivocada e que deve ser revista:

“Tenho a impressão de que o governo brasileiro apresentou alguns

antecedentes e que provavelmente a comissão revise a sua decisão.

Agora, como vai revisar eu não posso dizer, porque não estou

autorizado. Espero que o faça, sinceramente. Acho que quando

falamos de algo com a envergadura de Belo Monte, as coisas

provavelmente teriam que ser vistas e conversadas com muito mais

calma, essa é a minha opinião.”18

17 José Miguel Insulza, Secretário-Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), in “‘CIDH da OEA deve revisar decisão sobre Belo Monte’, afirma secretário-geral”, Portal G1, Notícias, 04 de maio, 2011.

18 Idem.

Page 12: O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): Análise em dois níveis

O segundo fator determinante para a reação do governo brasileiro à solicitação da

CIDH foi o elevadíssimo custo doméstico que a decisão de suspender as obras do AHE-Belo

Monte acarretaria e que, muito provavelmente, não foi previamente identificado pela CIDH.

Ambiente doméstico

A urgência energética

A potência instalada do Sistema Integrado Nacional (SIN), que é a potência máxima

de energia elétrica que hipoteticamente se poderia produzir, como é sabido, deve

corresponder, aproximadamente, ao dobro da demanda nacional, pois a produção média real

corresponde a pouco mais da metade da capacidade instalada e isso se deve a diversos

fatores, seja ao regime de chuvas, ao regime de ventos, à manutenção de equipamentos, à

impossibilidade técnica de cada planta operar constantemente em capacidade plena, etc. A

potência instalada no SIN prevista para dezembro de 2011 é de 118.375Mw19 e a demanda

energética do SIN prevista para o mesmo período é de aproximadamente 58.000Mw20. Ou

seja, em 2011, não sobra, nem falta, energia elétrica ao SIN. O país, entretanto, experimenta

crescimento regular e o parque energético precisa ser ampliado para que não haja o

estrangulamento do sistema. Para o ano de 2019, a demanda prevista é de 85.000Mw21 (já

descontada a redução ocasionada pela crise econômica mundial de 2008/2009), o que

significa que a potência instalada deverá ser de aproximadamente 170.000Mw, ou seja, o

Brasil precisa acrescentar 50.000Mw ao seu sistema nos próximo 7 (sete) anos.

A produção de energia elétrica estimada em Belo Monte é de mais de 11.000Mw/h (3ª

maior do mundo), em uma região cujo regime de chuvas é inverso ao do Sul/Sudeste. Ou

seja, quando o sistema hidrelétrico do Sul/Sudeste está sob o período de chuvas, com

reposição dos reservatórios e aumento da capacidade de geração de energia, o sistema

hidrelétrico do Xingu estará no período de seca. Quando o sistema hidrelétrico do sudeste

19 Projeção apresentada pelo prof. Ildo Luís Sauer, Diretor do Instituto de eletrotécnica e energia da USP, em palestra realizada em 08 de junho de 2011, no auditório da Biologia, do campus da Cidade Universitária-SP.

20 Idem.

21 Idem.

Page 13: O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): Análise em dois níveis

estará sob o regime de seca, com restrições energéticas, o do Xingu estará no de chuvas, com

abundante produção energética. Além disso, o custo da energia hidroelétrica ainda é o mais

vantajoso dentre todos os modelos, custando R$78,00/MWh22. Outras vantagens das usinas

hidroelétricas para o SIN é que sua produção energética é relativamente intensiva, uma única

usina produz grande quantidade de energia, e trata-se de uma energia considerada limpa, com

baixa emissão de gases causadores do efeito estufa no longo prazo.

Em relação à produção de energia eólica, é importante esclarecer que ela representa,

hoje, 0,5% de toda a energia produzida no país, ou seja, 900Mw/h. Estima-se que em 2015,

caso todos os 164 (cento e sessenta e quatro) projetos existentes sejam concluídos e entrem

em operação, teremos 5.300Mw/h (ou 4%)23. Além disso, vale salientar que, tal como as

chuvas, os ventos também não são constantes e que, via de regra, quando há chuvas, não há

ventos; quando há ventos, não há chuva. Ou seja, a quantidade de energia elétrica planejada

de origem eólica é muito pequena em relação às necessidades do país.

Em verdade, há uma enorme defasagem no planejamento de geração energia eólica no

Brasil. Caso tivesse ocorrido a opção política24 de se investir em energia eólica há 10(dez) ou

15(quinze) atrás, hoje talvez fosse possível considerar substituir a energia que Belo Monte vai

agregar ao SIN por energia eólica, mas o fato é que esse investimento não ocorreu e não é

possível atender à demanda prevista para os próximos 7 anos sem que Belo Monte entre em

operação.

A energia nuclear, igualmente, represente muito pouco ao SIN, porque a entrada em

funcionamento da Usina Nuclear de Angra III irá somar apenas mais 1.400Mw. Além disso,

o recente episódio de Fukushima torna politicamente impraticável inverter elevado montante

de recursos na produção de energia nuclear. Como se percebe, sem muita dificuldade, a

questão energética no Brasil, quanto ao aumento da capacidade instalada, é crítica. E outras

fontes de energia renovável, como a eólica ou nuclear, produzem muito pouca energia

quando comparadas à hidroelétrica. Existem alternativas mais poluentes, como as

22 Idem.

23 Folha de S. Paulo, 19 de abril de 2011, Caderno Mercado, p. B5.

24 Há dez anos, o custo do MW/h eólico era significativamente mais alto do que o de hoje, de modo que sua escolha seria uma opção política, não econômica.

Page 14: O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): Análise em dois níveis

termelétricas, mas cada vez mais se torna impopular projetar a produção futura de energia a

partir de fontes não renováveis.

Some-se a isso o peso político que envolve o tema e os interesses econômicos, pois

considerando que a construção de hidroelétricas será realizada por empresas como Queiroz,

Galvão, Camargo Corrêa, OAS, dentre outras, pode-se perceber o quanto a tramitação no

Congresso Nacional será influenciado pelo lobby dessas grandes empreiteiras. A energia

eólica ainda carece dessa “virtude” política. Acrescente-se, ainda, o episódio do apagão

elétrico de 2001, que permanece na memória do eleitorado nacional e, evidentemente,

transforma a questão da infraestrutura para produção de energia elétrica um dos temas mais

caros aos políticos brasileiros.

Histórico de Belo Monte

A construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte25 vem, há muitos anos,

despertando fervorosas discussões nos meios políticos e acadêmicos brasileiros,

recrudescendo posições desenvolvimentistas, humanitárias, preservacionistas, nacionalistas e

tantas outras. Justamente por esta questão ser tão complexa, talvez seja possível explorar suas

diversas facetas e revelar o entrelaçamento dos interesses que compõe o quadro que se

esconde por baixo de posições dogmáticas e, às vezes, ingênuas. O projeto original,

denominado Kararaô, foi produzido ainda no período militar e previa um reservatório 3(três)

vezes maior, com maior aproveitamento hidrelétrico, mas com impactos ambientais e sociais

inaceitáveis.

Para compreender os conflitos despertados por esse projeto é preciso analisar com

mais cuidado a região em que está inserido: a área em litígio situa-se ao norte do estado do

Pará, próximo a Altamira, a Carajás, a Serra Pelada e ao sul da rodovia Transamazônica (BR-

230) e está inserida em uma região de enorme riqueza mineral, pois nessa região se

encontram as maiores jazidas de minérios metálicos do país26 e, um pouco ao sul, encontram-

se impressionantes reservas medidas de minério de estanho, manganês, níquel, cobre e

25 Vídeo institucional de apresentação do projeto do AHE de Belo Monte, produzido pelo governo: http://www.youtube.com/watch?v=Z0eCshTvJ9g

26 Magnoli, D. e Araújo, R., Geografia - a construção do mundo, Geografia geral e do Brasil, Ed. Moderna, 1ª Ed., 2005. pág.67.

Page 15: O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): Análise em dois níveis

bauxita27. A chamada Volta Grande do Xingu, que será afetada pelas obras da Usina

Hidrelétrica de Belo Monte, encontra-se situada entre a Serra dos Carajás e o Rio Amazonas,

distante aproximadamente 200 km de cada. Esta é uma região de Floresta Amazônica,

situada no Planalto da Amazônia Oriental, também riquíssima em sua diversidade

biológica28, onde vivem entre 282229 e 600030 índios e onde estão demarcadas 8 Terras

Indígenas31.

Conforme dados informados no Estudo de Impacto Ambiental do Aproveitamento

Hidrelétrico de Belo Monte (EIA-AHE Belo Monte, 2009)32, a área alagada será de

aproximadamente 400km2, dos quais cerca de 200km2 são naturalmente alagados nos

períodos de cheia dos rios. Isso significa que o lago previsto para o aproveitamento

hidrelétrico em pauta é 1/3(um terço) do tamanho daquele inicialmente previsto, na década de

1980, em projeto rejeitado pela sociedade brasileira à época. A capacidade de

Aproveitamento Hidrelétrico de Belo Monte (AHE - Belo Monte) prevista é de

11.233,1MW33, permitindo gerar 4.796MW médios de energia firme34. A média de energia

firme é a quantidade média de energia mensal garantida ao longo de um ano, pois os períodos

de chuva e de estiagem influenciam significativamente na produção energética, havendo

maior produção durante as chuvas e menor durante a estiagem. A produção mínima mensal

produzida ao longo do ano é a chamada média de energia firme, ou seja, a quantidade mensal

com a qual o SIN poderá contar ao longo do ano, independente da regularização da vazão do

rio Xingu.

27 Idem.

28 Revista do Departamento de Geografia, n.4, São Paulo: FFLCH-USP, 1992. P.30; Geografia do Brasil (Encarte).

29 EIA – Belo Monte, 2009, p.23/24, vol. 23.

30 No EIA, estima-se 3,4 pessoas por família, em Santos, Sônia Maria S.B.M. e Hernandez, Francisco del M., Painel de especialistas – Análise crítica do EIA do Aproveitamentento Hidrelétrico de Belo Monte, Belém, 2009, pág.29, estima-se 7 pessoas por família.

31 Relatório de Impacto sobre o Meio Ambiente – RIMA A.H.E. Belo Monte, pág. 30;

32 O nome “Usina Hidrelétrica” foi substituído por “Aproveitamento Hidrelétrico”, ambos significam o conjunto de obras que serão realizados na região do Volta Grande do Xingu para obtenção de energia elétrica proveniente da força das águas do rio Xingu.

33 Relatório de Impacto Ambiental – RIMA, Eletrobrás e Ministérios de Minas e Energias, Maio/2009, p.07.

34 XXVII Seminário Nacional de Grandes Barragens. Belém/PA, 03 a 07 de junho de 2007. In AHE Belo Monte – Evolução Dos Estudos. P. 01.

Page 16: O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): Análise em dois níveis

Ainda segundo o governo, o AHE-Belo Monte será integrado ao SIN, permitindo que

a energia produzida seja direcionada para outras regiões do país, de modo que todas as

regiões do país se beneficiem do projeto. Para compreender os significados desses números,

basta dizer que a capacidade instalada de Itaipu, que é uma usina binacional (apenas 50% é

nacional), é de 14.000MW (com 7.590MW médios de energia firme35). Os projetos existentes

para aproveitamento do potencial energético eólico do Nordeste brasileiro, segundo o Centro

Brasileiro de Energia Eólica, em torres de 50 metros, somam aproximadamente

5.300MW/h36.

Outro aspecto relevante, é que a região que será afetada pelas obras do AHE-Belo

Monte abriga uma população bastante heterogênea. Historicamente, o vale do Xingu e a

região de Altamira se destacam por importantes fluxos migratórios37, que envolve: i) cerca de

9 (nove) povos indígenas nativos, que habitam Terras Indígenas, quase todas regularmente

demarcadas; ii) população ribeirinha, descendentes de imigrantes nordestinos do ciclo da

borracha, que sobrevivem da caça e da pesca; iii) população rural e urbana da periferia da

cidade de Altamira; e iv) população indígena em isolamento voluntário, que são grupos

nômades que perambulam pela região e de raríssimo contato com os demais povos38. A área

afetada inclui Terras Indígenas (TI), Reservas Extrativistas (Resex), áreas rurais e urbanas

dos municípios de Altamira, de Vitória do Xingu, de Senador José Porfírio e de Anapu.

Essa diversidade não se reflete apenas na composição étnica, mas também nos

constantes conflitos de interesse na região, desde a exploração de minérios à pecuária, da

coleta seletiva à indústria madeireira, dos direitos dos povos indígenas de permanecerem em

seu habitat, preservando sua cultura e seus costumes, ao garimpo ilegal e predatório39. No

35 Dados publicados por Itaipu Binacional, em junho de 2011, referente a média dos últimos cinco anos, disponível em: http://www.itaipu.gov.br/sala-de-imprensa/noticia/projecao-itaipu-devera-fechar-2011-com-mais-de-90-milhoes-de-mwh

36 Centro Brasileiro de Energia Eólica (CBEE) – Atlas Eólico do Nordeste (WANABE 2), in http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/meio-ambiente-energia-eolica/energia-eolica-15.php

37 Sônia Maria S.B.M. e Hernandez, Francisco del M., Orgs. “Painel de especialistas – Análise crítica do EIA do Aproveitamentento Hidrelétrico de Belo Monte”, Belém, 2009, p.29.

38 Vídeo utilizado como prova pela sociedade civil acerca de existência de povos em isolamento voluntários: http://www.youtube.com/watch?v=DOGMpcUXSEI

39 Outro caso recente de garimpo ilegal em reservas indígenas na Bacia do Xingu, em http://oglobo.globo.com/cidades/mat/2010/11/10/garimpo-de-ouro-ilegal-nas-terras-dos-indios-kaiapos-fechado-no-para-922993933.asp

Page 17: O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): Análise em dois níveis

caso de Belo Monte, embora as comunidades indígenas do Xingu tenham direitos legítimos a

defender, existem muitas outras comunidades e muitos outros interesses que se apropriam dos

argumentos e da discussão, o que torna a situação, politicamente, significativamente mais

complexa.

Interesses outros

Dentre os que defendem a construção da UHE-Belo Monte, há importantes indústrias

eletrointensivas ligadas a exploração mineral, especialmente a do alumínio. Conforme

apontado acima, a região é riquíssima em minérios, mas apresenta como principal entrave ao

seu desenvolvimento a limitada oferta de energia. Não é coincidência que as indústrias

eletrointensivas – não apenas às ligadas à produção de alumínio, mas também as ligadas à

indústria de cimento, e à produção siderúrgica - estão entre os principais investidores no setor

elétrico do país, e as empresas que formam o consórcio que disputou o leilão de Belo Monte

comprovam isso: Vale, Neoenergia, Votorantim Alumínio e Andrade Gutierrez40. Glenn

Switkes, que foi coordenador da ONG International Rivers Network, já alertava, em 2002,

que as empresas de alumínio utilizam 8% de toda a energia elétrica do país e cerca de 2% no

mundo. Se falarmos em alternativas energéticas, não existe uma alternativa para uma grande

fábrica de alumínio.

O mesmo autor, em trabalho apresentado em 2003, esclareceu que:

“Mais da metade da produção mundial de alumínio depende das

hidrelétricas para fornecer a imensa quantidade de energia necessária

ao processo de eletrólise, que foi desenvolvido separadamente por

Charles Martin Hall e Paul Héroult em 1886. O processo transforma a

alumina (óxido de alumínio) em alumínio fundido. A enorme

quantidade de energia utilizada na indústria do alumínio é o principal

fator que determina a rentabilidade das novas usinas de fundição.

Embora o minério de bauxita e a alumina possam ser enviados a

qualquer refinaria de alumínio primário no mundo inteiro a custos

accessíveis, a energia elétrica não pode ser transportada para outros

40 http://www.socioambiental.org/esp/bm/esp.asp

Page 18: O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): Análise em dois níveis

continentes. Sendo assim, o acesso à energia de baixo custo é um fator

determinante para o estabelecimento de novas usinas de fundição. (...)

A indústria do alumínio é o maior consumidor mundial de energia

elétrica. (...) A produção dos lingotes de alumínio equivale à cerca de

7% de toda a energia consumida na indústria mundial.”

(Switkes, Glenn, 2003. A conexão hidrelétricas e alumínio, p.3)

A construção da Usina de Belo Monte é um evidente aceno para que essas indústrias

eletrointensivas retomem os planos de investimentos no norte do Brasil, porque o país

oferecerá, em breve, energia suficiente e a baixo custo. O mercado compreendeu o gesto e,

não sem propósito, recentemente a Alcoa firmou um protocolo de intenções com a chinesa

China Power Investmient Corporation (CPI) para investir na região41. Isso, na verdade, não é

fato novo, pois no caso de Tucuruí, inaugurada em 1984, cujo reservatório alagou área de

aproximadamente 2.860 km2, metade da energia gerada vai para as fábricas Alumar (São Luís

- Alcoa, Billiton, Alcan) e Albrás (Companhia Vale do Rio Doce, consórcio japonês inclusive

a Nippon Amazon Aluminum Company). Mais de 24.000 pessoas foram deslocadas, e houve

impactos sérios na qualidade de vida de milhares de pescadores e agricultores de várzea à

jusante. O povo indígena Parakanã foi reassentado duas vezes (devido a erros de engenharia

quanto ao cálculo da área de inundação da sua reserva). Os indígenas Gavião também foram

atingidos. Estima-se que as fábricas receberam entre US$193 milhões - $411 milhões por ano

em energia subsidiada42.

A recente polêmica sobre Belo Monte

No caso de Belo Monte, dois problemas substanciais foram levantados: 1- A produção

de um Relatório por especialistas que desqualificaria totalmente o EIA/RIMA apresentado

pelo governo e aponta a inviabilidade técnica, ambiental e social do projeto; e 2- Que haveria

grave ameaça aos direitos humanos dos povos indígenas, que motivou um pedido de parte da

Comissão Interamericana de Direitos Humanos ao governo brasileiro para a imediata

suspensão das obras.

41 http://oglobo.globo.com/economia/mat/2011/01/18/alcoa-vai-explorar-projetos-de-aluminio-com-chinesa-cpi-923538421.asp

42 Switkes, Glenn. International Rivers Network. Para o Debate Internacional Estratégico sobre a Indústria de Alumínio, São Luís de Maranhão, Brasil, 16-18 de outubro de 2003. P.14.

Page 19: O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): Análise em dois níveis

Relatório de especialistas43

O Relatório, intitulado “Painel de especialistas – análise crítica do Estudo de Impacto

Ambiental do Aproveitamento Hidrelétrico de Belo Monte”, foi produzido por especialistas

vinculados a diversas instituições de ensino e pesquisa, que identificam e analisam, de acordo

com a sua especialidade, graves problemas e sérias lacunas no EIA de Belo Monte. Trata-se

de um rico documento acadêmico, que desconstrói o Estudo de Impacto Ambiental e o

Relatório de Impacto ao Meio Ambiente produzidos pelo Governo. Apresenta críticas

contundentes, aponta deficiências metodológicas e imprecisões das mais diversas. Em que

pese tudo isso, a utilidade deste documento se demonstrou extremamente limitada.

O primeiro equívoco, que de plano chama atenção, é que quando se intitula um

relatório de um Painel de Especialistas, supõe-se que haja especialistas em todas as áreas

cobrindo os mais diversos ramos do projeto. Entretanto, metade da equipe é composta por

biólogos (sete) e antropólogos (seis), tendo apenas 2 (dois) economistas, 2 (dois) cientistas

sociais, 1 (um) oceanólogo, 1 (um) médico, 3 (três) que não é possível identificar a formação,

1 (um) engenheiro elétrico, 1 (um) engenheiro mecânico que trabalha com geografia humana

e ocupação do espaço e apenas 1 (um) engenheiro civil. E aquilo que se poderia pressupor de

uma equipe com tal formação se confirma com a leitura do estudo, muita qualidade em

alguns aspectos (biológico e antropológico, especialmente), muito pouca em outras

(engenharia, especialmente), o que prejudica sobremaneira o potencial impacto do estudo na

sociedade.

O segundo equívoco consiste no fato de o relatório apenas apontar os defeitos sem

oferecer melhores respostas. Por exemplo, ao demonstrar que o número de pessoas atingidas

está subestimado não se informa qual seria o número correto, ou seja, apenas aponta as

disparidades entre o estudo do governo e outros provavelmente mais precisos. Além disso, a

intencionalidade do discurso tão criticada pelos especialistas, está também fortemente

presente no próprio painel, pois é inegável que a motivação do painel, antes mesmo de ter os

trabalhos iniciados, era a de buscar argumentos para rejeitar os estudos do governo. Observa-

se que o painel é restrito a dizer que o estudo produzido pelo governo é impreciso, mas os

dados supostamente verdadeiros não são apresentados.

43 O documento “Painel de Especialistas: Análise crítica do EIA-AHE Belo Monte” encontra-se disponível, na íntegra, em: http://www.socioambiental.org/banco_imagens/pdfs/Belo_Monte_Painel_especialistas_EIA.pdf

Page 20: O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): Análise em dois níveis

Portanto, o melhor resultado que este painel de especialistas pode vir a produzir seria

convencer o governo a revisar seus estudos, provavelmente pelas mesmas pessoas que os

elaboraram, o que não iria alterar substancialmente o curso das coisas. Certamente, caso

houvesse melhor equilíbrio na composição da equipe de especialistas e se o relatório fosse

apresentado como um Estudo de Impacto Ambiental substitutivo, poder-se-ia obter um peso

político muito maior a favor da não execução da obra.

Por fim, existe uma limitação que é intrínseca ao painel de especialista, qual seja, que

o painel apresentado não se ocupa do dilema que o governo enfrenta, apenas refuta os dados

técnicos do projeto que foi apresentado. É preciso esclarecer, contudo, que o governo,

juntamente com a deliberação do Congresso Nacional, ao decidir executar uma obra, adota

uma posição política, considerando diversos fatores de âmbito nacional, sejam eles técnicos,

econômicos ou sociais. Caso o painel de especialista oferecesse, por exemplo, uma

alternativa tecnicamente melhor para resolver o eminente gargalo energético do país,

conciliando isto à proteção ao meio ambiente e aos direitos humanos das comunidades

indígenas, certamente se abriria um novo diálogo, pois a sociedade brasileira seria

apresentada a uma nova situação em que não haveria a dicotomia entre produção de energia e

o resguardo aos direitos humanos dos povos indígenas.

Os especialistas que desenvolveram o painel, entretanto, não pretenderam resolver o

problema do país, o que teria sido uma contribuição infinitamente maior, mas apenas

ofereceram um ponto de vista técnico considerando a situação regional. Não ofereceram uma

alternativa viável e realista ao dilema político, limitaram-se a apresentar um crítica técnica,

permitindo, assim, que a decisão permanecesse na esfera política.

Ameaça aos direitos humanos (dos povos indígenas)

A concessão da Medida Cautelar 382/2011 pela Comissão Interamericana de Direitos

Humanos despertou grande polêmica e por isso merece ser analisada também sob uma

perspectiva doméstica. O pedido da CIDH encaminhado ao governo brasileiro solicitava a

imediata suspensão do processo de licenciamento da UHE de Belo Monte e que se impedisse

a realização de qualquer obra material de execução das obras até que se observassem as

seguintes medidas:

“(1) realizar processos de consulta, em cumprimento das obrigações

internacionais do Brasil, no sentido de que a consulta seja prévia, livre,

Page 21: O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): Análise em dois níveis

informativa, de boa fé, culturalmente adequada, e com o objetivo de

chegar a um acordo, em relação a cada uma das comunidades

indígenas afetadas, beneficiárias das presentes medidas cautelares;

(2) garantir, previamente a realização dos citados processos de

consulta, para que a consulta seja informativa, que as comunidades

indígenas beneficiárias tenham acesso a um Estudo de Impacto

Social e Ambiental do projeto, em um formato acessível, incluindo a

tradução aos idiomas indígenas respectivos;

(3) adotar medidas para proteger a vida e a integridade pessoal dos

membros dos povos indígenas em isolamento voluntário da bacia

do Xingu, e para prevenir a disseminação de doenças e epidemias

entre as comunidades indígenas beneficiárias das medidas cautelares

como consequência da construção da hidroelétrica Belo Monte, tanto

daquelas doenças derivadas do aumento populacional massivo na zona,

como da exacerbação dos vetores de transmissão aquática de doenças

como a malária.”

(os grifos adicionados)

Entretanto, em que pese a correta motivação dos membros da CIDH e o louvável

objetivo, a decisão tomada contém gravíssimos erros, inclusive o de negligência quanto a

proteção dos direitos humanos de uma grande população atingida pelas obras da UHE de

Belo Monte. A decisão da CIDH ignora que existem na região mais de cem mil pessoas que

serão atingidas pelas obras da UHE de Belo Monte, que sofrerão “a exacerbação dos vetores

de transmissão aquática de doenças”, que serão desabrigados, que terão que ser

reacomodados, reinseridos em suas atividades econômicas, ter suas famílias reacomodadas,

etc. Dentre essas pessoas, existem milhares de agricultores e de ribeirinhos atingidos44, em

situação de extrema fragilidade econômica e social. Existem comunidades miscigenadas, nas

quais não é possível determinar quem são indígenas e quem são ribeirinhos. E, também

44 Muitos agricultores e ribeirinhos tem situação de extrema fragilidade, fato registrado pelo Ministério Público e amplamente divulgado pela sociedade civil, veja em: http://www.xinguvivo.org.br/2011/04/20/mp-recomenda-respeito-aos-direitos-dos-agricultores-e-ribeirinhos-na-regiao-de-belo-monte/

Page 22: O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): Análise em dois níveis

dentre essas pessoas, existem cerca de 2.800 índios, que são os únicos com os quais a CIDH

se ocupou.

O argumento de que a fragilidade dos povos indígenas seria maior do que a dos outros

povos absolutamente não se sustenta, tampouco justifica que CIDH não tenha se ocupado dos

demais povos afetados45. Em primeiro lugar, porque frente ao governo brasileiro qualquer

população local é igualmente frágil, dada a disparidade de poder entre governados e o

governo. Em segundo, porque dentre os afetados pelas obras há numerosos povos não-

indígenas, ribeirinhos, população rural e urbana das cidades próximas, que igualmente não

têm acesso às informações e igualmente não têm assegurado o direito de discutir e de

compreender o projeto e o impacto deste em suas vidas. Em terceiro, a questão do idioma

também não se justifica enquanto argumento de maior fragilidade, pois os povos indígenas

têm representantes capazes de dialogar com o governo, com instituições, com organismos

internacionais, de compreender documentos, de se articular com outros grupos nacionais e

estrangeiros. O próprio requerimento feito pelos indígenas à Comissão Interamericana de

Direitos Humanos é evidência de sua capacidade de intelecção e de articulação com outros

povos não-indígenas.

Evidentemente, seria louvável se o governo brasileiro, num exemplo democrático,

providenciasse a tradução do EIA/RIMA para os talvez 9 (nove) idiomas indígenas das

comunidades afetadas, isso tornaria o diálogo mais franco. A CIDH não pode, entretanto,

exigir isso como requisito para execução da obra, pois: i) O único idioma oficial no Brasil é o

português; e ii) ela mesma não traduziu sua decisão para os idiomas dos povos a que visa

proteger. Da mesma forma, a Organização Internacional do Trabalho também não traduziu a

sua Convenção sobre os povos Indígenas e Tribais para todos os idiomas dos povos afetados

por ela, a OEA, igualmente, não traduz seus documentos para que todas as minorias das

Américas possam compreendê-la e, pelos mesmos motivos, o governo brasileiro tão tem o

dever de traduzir os documentos oficiais para idioma que não seja o português, embora, frise-

se, seria muito bom que o fizesse.

A decisão da CIDH, enquanto visa proteger cerca de 2800 pessoas indígenas, ignora

aproximadamente outras 97.000 pessoas, igualmente afetadas e isso enfraquece sobremaneira

45 Depoimento de não-indígenas, membros de uma das comunidades que será atingida pelas obras da UHE de Belo Monte, em: http://www.xinguvivo.org.br/2010/12/21/video-belo-monte-violando-direitos-das-comunidades-no-rio-xingu/

Page 23: O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): Análise em dois níveis

seu posicionamento. É certo que apenas os indígenas recorreram à CIDH (o que, aliás, nos

sugere que talvez não seja esta a parcela mais frágil dentre os afetados), mas a CIDH deve

investigar a denúncia in loco e, ao fazê-lo, não pode ignorar a realidade que presencia e,

considerando a possibilidade deveria agir moto próprio46, deveria estender sua atenção a

todos aqueles que tenham seus direitos humanos potencialmente afetados com as obras da

UHE de Belo Monte, mesmo que isso envolva grupos que não foram os autores do apelo,

como, por exemplo, os habitantes da comunidade do Morro do Félix ou de São Sebastião47.

É inegável que os indígenas têm um status e uma condição diferente dos demais

brasileiros e isso está assegurado, tanto na Constituição Federal do Brasil, como em

legislação específica48. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,

línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente

ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens

(CF/1988, art.231, e ss.). Além disso, suas terras são consideradas inalienáveis e

indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis (CF/1988, art.231, pár.4º.), exceto para

os casos de pesquisa, lavra de riquezas minerais e aproveitamento hidrelétrico, todos quando,

e se, aprovados pelo Congresso Nacional(CF/1988, art.231, pár.3º.). Vale dizer, a legislação

brasileira reconhece que o índio, diferente dos demais brasileiros, tem no meio ambiente em

que vive, na natureza que o cerca, não apenas a sua forma de sobrevivência (pois muitos

outros brasileiros sobrevivem da caça, da pesca, em condições de subsistência), mas

principalmente sua cultura, sua estrutura social e sua fé.

A organização da vida indígena está intrinsecamente ligada ao meio ambiente, seus

valores, a estrutura de suas tribos, tudo depende da natureza que os cercam. Porém, para o

Brasil, mais importante do que isso são as riquezas minerais da terra e o aproveitamento

46 Conforme previsto no artigo 24, do Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

47 Lisa Feder, antropóloga, narra o seu contato com algumas comunidades do Xingu, em: http://www.fvhd.org.br/forum/topics/os-ribeirinhos-do-medio-xingu

48 Convenção n.169 da OIT sobre povos indígenas e tribais, da qual o Brasil é signatário. (http://www.oas.org/dil/port/1989%20Conven%C3%A7%C3%A3o%20sobre%20Povos%20Ind%C3%ADgenas%20e%20Tribais%20Conven%C3%A7%C3%A3o%20OIT%20n%20%C2%BA%20169.pdf)

Page 24: O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): Análise em dois níveis

hidrelétrico desses rios. Mesmo que pareça absurda, essa é a verdade positivada no texto

constitucional. Estes são os valores da sociedade brasileira refletido em suas leis49.

Portanto, a discussão sobre direitos indígenas demonstra-se superada.

Democraticamente superada. Na região da Volta Grande do Xingu, existem Terras Indígenas

demarcadas que deveriam ser protegidas por se tratarem de terras indisponíveis e

inalienáveis. Entretanto, a discussão no Congresso Nacional teve o seu momento e prevaleceu

o entendimento de que o aproveitamento hidrelétrico para obtenção de energia é mais

importante para o país e, consequentemente, que isso justificaria a utilização excepcional das

Terras Indígenas para este fim.

Assim, a discussão que permanece quanto aos Direitos Humanos não diz respeito

apenas aos índios, mas a todos os seres humanos que habitam a região da Volta Grande do

Xingu e que serão igualmente afetados pelas obras da UHE de Belo Monte.

Caso pretendesse se ater a defesa dos povos indígenas, deveria ter a Comissão

Interamericana de Direitos Humanos se debruçado sobre a questão da constitucionalidade do

parágrafo terceiro do artigo 231 da Constituição Federal, bem como sobre a discussão que

ocorreu, e que se encerrou, junto ao Congresso Nacional. É inegável, contudo, que o texto

constitucional parece desatualizado e desumano, incompatível com a superação das crises

soberanistas do período militar e, especialmente, com o desenvolvimento tecnológico

experimentado, quanto mais quando observada a evolução da sociedade brasileira nos últimos

20 (vinte) anos. Sendo assim a CIDH deveria estar questionando a sociedade brasileira, de

forma mais direta, sobre os valores eleitos e positivados em sua Carta Magna e sobre a forma

como se está tratando a questão dos direitos humanos dos povos indígenas, especialmente

sobre a inalienabilidade de suas terras, sem exceções. Destaque-se que este é um

questionamento a ser feito à sociedade brasileira, não ao seu governo. Essa discussão,

contudo, jamais foi proposta.

49 Vide Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, Título VIII – Da Ordem Social, Capítulo VIII - Dos Índios, art. 231, e ss.

Page 25: O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): Análise em dois níveis

Direitos Humanos

É imperioso frisar que nenhum desenvolvimento econômico pode justificar a não

observância estrita da proteção aos direitos humanos. A área que será direta ou indiretamente

afetada, conforme mencionado acima, contém povos indígenas, população não indígena

ribeirinha, população rural e urbana de alguns municípios e todos, sem exceção, devem ter

protegidos os direitos que a Constituição Federal e, principalmente, que os Direitos Humanos

em âmbito internacional lhes asseguram. Além disso, não se pode admitir que no Brasil, país

reconhecidamente democrático, o processo de debate de projetos com a população seja

restrito, que suas instituições sejam manipuladas, ou que seus procedimentos sejam

adulterados para favorecer qualquer grupo de interesses. O Ministério Público, o Congresso

Nacional, a FUNAI, o IBAMA, as Organizações Não-Governamentais, o Poder Judiciário e,

sem dúvida alguma, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, devem exercer

vigilância permanente sobre cada passo dado pelo governo e assegurar que nenhum dos

atingidos tenha seus direitos, de qualquer natureza, violados. Toda e qualquer forma de

aumentar a accountability50 das ações do governo deve ser estimulada.

Os fatos que motivaram a outorga da MC-382/10 são prova de que o governo não

dialoga devidamente com a sociedade civil, bem como que, por vezes, impõe seus projetos

com certa brutalidade51. Há que se considerar, mesmo assim, que houve evolução nos últimos

anos e que atualmente a sociedade brasileira experimenta um novo patamar em sua relação

com governo brasileiro, embora haja limites claros a esse diálogo. Basta observar a própria

revisão do projeto de Belo Monte, reduzindo-se para quase um terço o tamanho do

reservatório previsto no projeto inicial, a fim de diminuir o impacto ambiental. O projeto

inicial alagaria boa parte da área indígena Paquiçamba e do vale do rio Bacajá (ambos agora

preservados). Isso resulta em 0,04 km2 alagados por MW instalado – uma das melhores

relações do país para empreendimentos implantados acima de 1.000 MW de potência

50 Grant, Ruth W. & Keohane, Robert. “Accountability and Abuses of Power in World Politics”. The American Political Science Review, vol. 99, nº 1, February 2005, pp. 29-43. 51 A opinião de parte da sociedade civil que vê brutalidade nas atitudes do governo é bem ilustrada por Darci Bergmann em: http://darcibergmann.blogspot.com/2011/04/governo-brasileiro-impoe-belo-monte-com.html

Page 26: O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): Análise em dois níveis

instalada52. Além disso, mesmo que controversos, oficialmente foram promovidos encontros

para diálogo com a população53.

A revogação da MC-382/10

Em 29 de julho de 2010, a CIDH reavaliou a MC 382/10 com base na informação

enviada pelo Estado brasileiro e pelos peticionários, e modificou o objeto da medida,

solicitando ao Brasil que:

1) Adote medidas para proteger a vida, a saúde e integridade pessoal

dos membros das comunidades indígenas em situação de isolamento

voluntario da bacia do Xingu, e da integridade cultural de

mencionadas comunidades, que incluam ações efetivas de

implementação e execução das medidas jurídico-formais já

existentes, assim como o desenho e implementação de medidas

especificas de mitigação dos efeitos que terá a construção da represa

Belo Monte sobre o território e a vida destas comunidades em

isolamento;

2) Adote medidas para proteger a saúde dos membros das

comunidades indígenas da bacia do Xingu afetadas pelo projeto

Belo Monte, que incluam

(a) a finalização e implementação aceleradas do Programa

Integrado de Saúde Indígena para a região da UHE Belo Monte, e

(b) o desenho e implementação efetivos dos planos e programas

especificamente requeridos pela FUNAI no Parecer Técnico 21/09,

recém enunciados; e

52 XXVII Seminário Nacional de Grandes Barragens. Belém/PA, 03 a 07 de junho de 2007. In AHE Belo Monte – Evolução Dos Estudos. P. 14-15. 53 Registro de reunião ocorrida em 2007, como fórum de diálogo com a comunidade: http://www.prpa.mpf.gov.br/news/2007/mpf-registra-questionamentos-da-populacao-sobre-belo-monte

Page 27: O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): Análise em dois níveis

3) Garantisse a rápida finalização dos processos de regularização das

terras ancestrais dos povos indígenas na bacia do Xingu que estão

pendentes, e adote medidas efetivas para a proteção de mencionados

territórios ancestrais ante apropriação ilegítima e ocupação por não-

indígenas, e frente à exploração ou ao deterioramento de seus recursos

naturais.

(grifos e destaques adicionados)

Adicionalmente, a CIDH decidiu que o debate entre as partes no que se refere a

consulta previa e ao consentimento informado em relação ao projeto Belo Monte se

transformou em uma discussão sobre o mérito do assunto, reconhecendo que transcende o

âmbito do procedimento de medidas cautelares. Esta nova postura da CIDH demonstra-se

mais apropriada do que a anterior, pois se dedica a temas significativamente menos

controversos e é baseada em decisões domésticas. Embora se distancie da atuação universal

que pretendia adotar, essa nova postura possivelmente trará resultados mais eficientes.

Permitindo ao governo voltar a adotar posturas convergentes no âmbito do Sistema

interamericano de Proteção aos Direitos Humanos.

Conclusão

O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos pode ser

análisado por dois viéses: internacional e doméstico. Pelo primeiro, observa-se que a CIDH

inovou em seu foco de atuação, passando a agir em questões que correspondem às demandas

apresentadas pela nova ordem global. Tais demandas, contudo, ainda não haviam sido

testadas e legitimadas frente a governos nacionais o que, possivelmente, deixou a CIDH em

posição menos favorável no enfrentamento em que se lançou contra o governo brasileiro ao

editar a MC-382/10.

Pelo segundo, observa-se que, considerando a pletora de interesses envolvidos sobre o

caso de Belo Monte, o governo brasileiro, com a aprovação do Congresso Nacional, decidiu

levar a diante o projeto da UHE-Belo Monte. Neste aspecto, vale dizer que, por maiores que

fossem os custos envolvidos nessa decisão, e após intenso debate político, a opção adotada

Page 28: O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): Análise em dois níveis

foi pelo prosseguimento das obras. Além disso, outro ponto que mereceria maior cuidado é a

força que o Brasil veio a adquirir recentemente na arena global, que o deixou muito menos

sujeitos à influência dos agentes internacionais e, por consequência, fortalecido no embate em

que se viu lançado contra a CIDH.

Não causa espanto, portanto, que a decisão da CIDH de editar a MC-382/10,

solicitando ao governo brasileiro a imediata suspensão das obras de Belo Monte, tenha levado

o governo brasileiro a adotar uma postura divergente, soberanista e refratária à atuação da

CIDH. No momento seguinte, ao revisar sua decisão e ao retroceder quanto ao pedido feito

ao governo brasileiro, a CIDH reconhece a decisão do governo de prosseguir com as obras de

Belo Monte, mas sinaliza que permanecerá vigiando a estrita proteção aos direitos humanos

das comunidades afetadas pelas obras.

Este novo posicionamento adotado após a revogação da MC-382/10, de vigilância e

não de controle, permite a CIDH continuar diálogando com o governo brasileiro e, mais

importante que isso, possibilitará o acompanhamento das obras e a supervisão internacional

quanto à proteção dos direitos humanos das pessoas afetadas pela obra. Embora a CIDH

adote, agora, uma postura menos vanguardista e menos ambiciosa, a mudança de estratégia

facilita para que a reação do governo brasileiro seja de convergência em relação ao Sistema

Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos.

Page 29: O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): Análise em dois níveis

Bibliografia:

Archibugi, Danielle. “Cosmopolitan Democracy and its Critics”. European Journal of International Relations, vol. 10, no3. September, 2004, pp. 437-473.

Bergmann, Darci em: http://darcibergmann.blogspot.com/2011/04/governo-brasileiro-impoe-belo-monte-com.html.

Botcheva, Liliana; Martin, Lisa. “Institutional Effects on State Behavior: Convergence and Divergence”. International Studies Quarterly, vol. 45, nº 1. March 2001.

Carta de Havana, 1948.

Centro Brasileiro de Energia Eólica (CBEE) – Atlas Eólico do Nordeste (WANABE 2), in http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/meio-ambiente-energia-eolica/energia-eolica-15.php .

Constituição Federal da República do Brasil, 1988.

Convenção n.169 da OIT sobre povos indígenas e tribais.

Cortell, Andrew P. e Davis Jr., James W. D. “How do international institutions matter? The domestic impact of international rules and norms”. International Studies Quarterly, 1996, 40, pp. 451-478.

Declaração de José Miguel Insulza, Secretário-Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), in “‘CIDH da OEA deve revisar decisão sobre Belo Monte’, afirma secretário-geral”, Portal G1, Notícias, 04 de maio, 2011.

Declaração Interamericana dos Direitos e Deveres do Homem, 1948.

Dingwert, Klaus & Pattberg, Philipp. “Global governance as a perspective on world politics”. Global governance – A review of multilateralism and international organization, vol. 12, no 2. April-June 2006, pp. 185-203.

Drezner, Daniel W. (Ed.). “Introduction: The Interaction of International and Domestic Politics”. Locating the Proper Authorities: The Interaction of Domestic and International Institutions. Ann Arbor: Michigan University Press, 2003.

Estudo de Impacto Aambiental – Belo Monte, 2009, Ministério de Minas e Energias.

Grant, Ruth W. & Keohane, Robert. “Accountability and Abuses of Power in World Politics”. The American Political Science Review, vol. 99, nº 1, February 2005, pp. 29-43.

Jornal Folha de S. Paulo, edição de 19 de abril de 2011, Caderno Mercado, p. B5.

Jornal O Globo. Edição de 10 de novembro de 2010, Caderno Cidades.

_____. Edição de 18 de janeiro de 2011, Caderno Economia.

Page 30: O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): Análise em dois níveis

Magnoli, D. e Araújo, R., Geografia - a construção do mundo, Geografia geral e do Brasil, Ed. Moderna, 1ª Ed., 2005.

Pacto de San José da Costa Rica, 1969.

Palestra apresentada pelo prof. Ildo Luís Sauer, Diretor do Instituto de eletrotécnica e energia da USP, em 08 de junho de 2011, na Cidade Universitária-SP.

Povos em isolamento voluntário na região do Xingu, vídeo utilizado como prova de sua existência pela sociedade civil em: http://www.youtube.com/watch?v=DOGMpcUXSEI .

Projeto do AHE - Belo Monte, vídeo institucional produzido pelo governo brasileiro: http://www.youtube.com/watch?v=Z0eCshTvJ9g .

Protocolo de San Salvador, 1988.

Registro de reunião ocorrida em 2007, como fórum de diálogo com a comunidade: http://www.prpa.mpf.gov.br/news/2007/mpf-registra-questionamentos-da-populacao-sobre-belo-monte .

Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

Relatório de Impacto sobre o Meio Ambiente – RIMA A.H.E. Belo Monte, Ministério de Minas e Energia.

Resolução 217 A(III), da Assembleia Geral das Nações Unidas, 10 de Dezembro de 1948. “Declaração Universal dos Direitos Humanos”.

Revista do Departamento de Geografia, n.4, São Paulo: FFLCH-USP, 1992. P.30; Geografia do Brasil (Encarte).

Rosenau, James N. “Governance, order, and change in world politics”. Rosenau, James & Czempiel, Ernst-Otto (eds.). Governance without government: Order and Change in World Politics. Cambridge University Press, 2000, pp. 1-29.

Rosenau, James N. “Norms”. Along the Domestic-Foreign Frontier. Exploring governance in a turbulent world. Cambridge University Press, 2000, pp. 174-188.

Sônia Maria S.B.M. e Hernandez, Francisco del M., Orgs. “Painel de especialistas – Análise crítica do EIA do Aproveitamentento Hidrelétrico de Belo Monte”, Belém, 2009.

Switkes, Glenn. International Rivers Network. Para o Debate Internacional Estratégico sobre a Indústria de Alumínio, São Luís de Maranhão, Brasil, 16-18 de outubro de 2003.

XXVII Seminário Nacional de Grandes Barragens. Belém/PA, 03 a 07 de junho de 2007. In AHE Belo Monte – Evolução Dos Estudos.