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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
O CASO DEKUNJALI MARAKKAR: UMA ANÁLISE CONCEITUAL ACERCA DAS PRÁTICAS DE RAPINA REALIZADAS NA REGIÃO DO
MALABAR NO FINAL DO SÉC. XVI.
CURITIBA 2009
VICTOR OLIVEIRA PUCHALSKI
O CASO DEKUNJALI MARAKKAR: UMA ANÁLISE CONCEITUAL ACERCA DAS PRÁTICAS DE RAPINA REALIZADAS NA REGIÃO DO
MALABAR NO FINAL DO SÉC. XVI.
Monografia apresentada como requisito parcial para conclusão do Curso de Licenciatura e Bacharelado em História, do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná.
Orientadora: Profª. Drª. Andréa Carla Doré
CURITIBA 2009
Agradecimentos Os agradecimentos sempre são complicados. Pessoas importantes sempre acabam sendo excluídas. Sendo assim, pretendo assumir a postura de agradecer somente as pessoas que realmente foram importantes para a produção deste trabalho. Portanto, o agradecimento aos meus pais e familiares vai estar subentendido. Em um primeiro lugar gostaria de agradecer a Tiago Bonato, por ter acompanhado todo meu percurso acadêmico, sendo um grande amigo e parceiro para todas as horas. Principalmente se elas envolverem aventuras silvestres. Agradeço por ter tornado as tarde sempre mais divertidas e por fornecer grandes torneios de pôquer nos finais de semana, que sempre aliviavam o stress do dia a dia. De uma maneira geral ele me ensinou a ver o mundo de uma maneira mais simples, e mais clara do que eu via antigamente. Agradeço igualmente a Tiago Stadler por ter sempre me apoiado em todas as situações, tanto acadêmicas quanto pessoais. Seus conselhos sempre diretos e sem meias verdades ajudaram a perceber alguns erros e construir grande parte deste trabalho. Agradeço o tempo que disponibilizou para ler e aconselhar sobre este trabalho, assim como as construtivas conversas teóricas sobre Kant, Nietzsche e Michael Jackson. Ivan Gavioli foi outro personagem histórico na construção deste trabalho. Foi um grande companheiro de viagens, e um poderoso conselheiro. Ele me ensinou a ser uma pessoa muito mais paciente, e a não “chorar pelo leite derramado”. Se há uma pessoa que realmente merece um grande agradecimento, esse alguém é Fernanda Cruzetta. Ela me ensinou que em 24 horas é possível fazer muito mais coisas do que pensava ser possível, e que disciplina é instrumento indispensável ao historiador. Além de professora de francês, corretora de textos, psicóloga e amiga, ela ainda foi pra mim a melhor namorada que uma pessoa poderia ter. Dedico a você este trabalho. A minha orientadora Andréa Doré por ter sido muito mais do que uma professora foi uma amiga que não me deixou desistir da temática da pirataria, apesar da falta de bibliografia, de fontes e muitas vezes de animo em realizar o trabalho. Agradeço muito pela confiança.
Se o ditado diz “diga-me com quem andas, e te direi quem és” acredito estar em boas mãos. Obrigado a todos.
ÍNDICE
RESUMO ....................................................................................................................................................2
INTRODUÇÃO ..........................................................................................................................................3
1. A PROBLEMÁTICA NA CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE PIRATARIA..............................5
1.1 - SOBRE A DISTINÇÃO EUROPÉIA ENTRE CORSO E PIRATARIA.........................................................5
1.2 A PARTICULARIDADE DA PRESENÇA PORTUGUESA ÁSIA..............................................................10
2. POLÍTICA E RELIGIÃO NA PRÁTICA DO CORSO PORTUGUÊS..........................................15
2.1 – A LEGITIMAÇÃO RELIGIOSA. ......................................................................................................15
2.2 – A POLÍTICA ORIENTAL DE DOM MANUEL. .................................................................................18
2.3 A PRÁTICA DOS CARTAZES.............................................................................................................23
3. AS RAPINAS NO MALABAR............................................................................................................26
3.1 – KUNJALI MARAKKAR E A SOCIEDADE MALABAR .......................................................................26
3.2 AS OUTRAS VISÕES SOBRE DO CASO DE KUNJALI MARAKKAR......................................................30
3.3 A UTILIZAÇÃO DO TERMO PIRATA PELOS CRONISTAS PORTUGUESES............................................33
CONCLUSÃO ..........................................................................................................................................37
2
Resumo A prática da pirataria sempre foi constante em todos os mares do mundo, e sua história toa velha quanto a própria navegação. Ao mesmo tempo, a abordagem do tema sempre chega a nós por meio de literaturas e filmes, que nem sempre abordam a questão problematizando os seus agentes. O trabalho aqui apresentado tem por objetivo apresentar a visão portuguesa sobre as práticas de rapina realizadas na região do Malabar, sudoeste da Índia, problematizando a dificuldade de compreensão das dinâmicas orientais pelas fontes lusitanas do século XVI. Para exemplificar a questão, a exibição do personagem Kunjali Marakkar pelas fontes portuguesas as quais o identificavam como pirata. Por outro lado, a versão asiática dos fatos propõe que o personagem seja um herói, símbolo da resistência contra a tirania portuguesa. A questão central do trabalho não é a caracterização do personagem, mas sim a percepção portuguesa sobre ele. Esse personagem não representa somente um praticante de rapina, mas também um símbolo da complexa dinâmica asiática que é sumariamente ignorada pelos cronistas portugueses rotulando-o como corsário ou pirata. Palavras-chaves: Corso, Pirataria, Kunjali Marakkar, Império Português.
3
INTRODUÇÃO
Alguns meses atrás, a mídia jornalística de todo o mundo focou seus olhos sobre
o caso do roubo de um superpetroleiro internacional por piratas muçulmanos atuantes
na costa da Somália.1 O choque e a repercussão dessa notícia em todo o mundo revelou
uma certa ignorância mundial sobre a existência de tais práticas de rapina no oriente,
sobre a sua história e suas transformações. No entanto, o senso comum nos permite
saber que a prática da pirataria não é nova. Em grande medida, o tema sempre nos
aparece como pano de fundo para romances e aventuras literárias. Da Odisséia2 de
Homero até as produções cinematográficas como Os Piratas do Caribe, vemos o tema
ser abordado de maneira simplória e maniqueísta, sem contextualizar suas raízes sociais
ou problematizar os conflitos diplomáticos dos quais provém. É um dos objetivos deste
trabalho ampliar a discussão sobre a temática apresentando e problematizando a visão
de alguns cronistas portugueses sobre como a questão das rapinas nos mares era vista no
Império Português Asiático do século XVI.
No primeiro capítulo deste trabalho, foi exposta uma evolução do termo
pirataria na historiografia disponível, a fim de posteriormente, contrapor com o
conceito de corso: diferenciados principalmente pela questão legal de uma construção
jurídica do século XIII, e pela legitimação que os ataques de rapina ganharam a partir de
então. A particularidade portuguesa entrará como um contraponto a essa questão, pois
suas legitimações, diferentemente do resto da Europa, se baseará em preceitos religiosos
e culturais.
O contexto sobre as práticas de rapina realizadas pelos portugueses no Oriente
foi a temática do segundo capítulo. Essas práticas eram legitimadas por aspectos
religiosos, que desde as guerras de reconquista embasavam a guerra contra os
muçulmanos colocando-a em aspectos de guerra santa. Neste capítulo é abordado
também diversas questões referentes às políticas orientais de D. Manuel, que vieram
construir as primeiras diretrizes sobre a presença lusitana no Oriente. Neste sentido, a
prática dos cartazes possuía papel importante. Esse documento representava um salva-
1 Folha Online, dia 18/11/2008. 2 “Estrangeiro, na verdade parece-me que não conheces os muitos jogos, em que se exercitam os homens; assemelha-te a um capitão de piratas, que vai e vem com a nau de muitos remos, lembrado só da carga e atento às mercadorias – fruto de suas rapinas. Não, tu não tens a aparência de um atleta.” HOMERO. Odisséia. Tradução do grego feito pelos padres Padres E. Dias Palmeira e M. Alves Correia. Livraria sá da Costa, Lisboa, 1994. Canto VIII.
4
conduto para a passagem de mercadores com o consentimento português e uma
proibição para o transito de gêneros por mercadores muçulmanos.
O terceiro capítulo diz respeito às práticas de rapina nos mares do Malabar. Essa
perspectiva foi observada a partir de fontes portuguesas e fontes asiáticas que tratassem
das rapinas dos mares, em especial o caso de um personagem especifico chamado
Kunjali Marakkar. Esse personagem é de grande importância por possuir uma
caracterização diferente conforme a abordagem que lhe é dada: pirata tirano pelo lado
português, e herói da resistência contra a dominação portuguesa sob a perspectiva
asiática. A análise dos termos pirata e corso utilizado pelo cronista Diogo do Couto foi
a questão central deste capítulo, discorrendo sobre a relação destes termos com a
particularidade da sociedade asiática exposto nos textos de Geniviève Bouchon e Luis
Filipe Thomaz.
5
1. A PROBLEMÁTICA NA CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE PIRATARIA.
1.1 - Sobre a Distinção Européia entre Corso e Pirataria.
O conceito de pirataria ou de práticas da pirataria esteve sempre presente na
história da humanidade. Contudo, é a partir do século XVIII que as rapinas nos mares
ganharam um espaço considerável na literatura ficcional na forma de romances de
aventura, e no século XIX, explodem como sucesso de edições. Exemplo desse sucesso
são as diversas reedições de Robinson Crusoé – obra escrita por Daniel Defoe, em 1717
–, A Ilha do Tesouro – escrita por Robert Louis Stevenson em 1883 – e por fim as
diversas obras de Emilio Sálgari como o Corsário Negro e os Piratas da Malásia,
escritos na virada do século XIX para o XX. Grande parte desta produção ficcional fora
reproduzida das mais diversas maneiras até o século XXI, como as últimas produções
Hollywoodianas dos Os Piratas do Caribe, produzido em 2003.
A inegável popularidade dos romances sobre esse tema nos remete ao primeiro
quarto do séc.XVII, período de grande afluxo de europeus principalmente para América.
Essas viagens intercontinentais faziam dos relatos de aventura nos mares um sucesso
garantido, como a obra Os Bucaneiros da América, de Alexander Oliver Exquemilin,
que teve diversas edições em vários idiomas.3 Nesta obra o autor descreve na forma de
um diário uma narrativa confessional onde, como pirata-cirurgião, participa de diversas
embarcações piratas nos mares do caribe dentre os anos de 1645 a 1700.4 EXQUEMILIN
descreve em seu livro diversas paisagens que visitou, as populações que encontrou e,
principalmente, as façanhas de diversos piratas com quem teve contato, entre eles os
famosos Henry Morgan e François L’Ollonais. Pela sua grande riqueza de detalhes,
esse livro se tornou um grande sucesso desde seu lançamento, na segunda metade do
século XVII, e até os dias de hoje tem um valor especial para o estudo da pirataria no
caribe.
A obra de Exquemilim representa a primeira grande propagação da temática da
pirataria entre o público leitor. A pirataria, contudo, já era uma prática comum, mas é
somente com a obra Os Bucaneiros da América que se inicia a grande divulgação da
temática, tornando-a conhecida por toda a Europa e América, conquistando assim,
grande parte do imaginário popular.
3 EXQUEMELIN, A. O. Os Bucaneiros da América. Porto Alegra, Artes e Ofícios, 2007. Primeira edição: EXQUEMELIN, Alexander Oliver. Der Americaensche Zeerovers, 1678. 4 Ibidem, p.9.
6
Em 1717, quase quarenta anos após a obra de EXQUEMILIM, Daniel Defoe lançou
seu romance Robinson Crusoé, que logo se tornou um grande sucesso. DEFOE inaugura
na literatura um estilo “narrativo semi-verídico de depoimento-reportagem”5, onde
utiliza de confissões de criminosos e condenados para abastecer-se de fatos que
utilizaria em seus romances. Apesar da obra Robinson Crusoé não tomar a pirataria
como tema principal, ela a utiliza como temática de fundo, presente no universo em que
está inserido o personagem principal, o náufrago Robinson Crusoé.
Os dois autores citados – Daniel Defoe e Alexander Exquemilim – produziram
relatos semi-verídicos com grande riqueza de detalhes a respeito das práticas de rapina.
Entretanto, não podemos considerar essas obras nada mais do que literatura de aventura,
pois, obviamente, esse era o objetivo dos autores. Enquanto EXQUEMELIM pretendia
fazer uma obra descritiva (que nos lembra um diário), Daniel Defoe produziu um
romance de entretenimento.
Contudo, surge, em 1724, uma obra que tinha como finalidade tornar público um
catálogo com os nomes dos mais notórios piratas de sua época, assim como as práticas
de pirataria realizadas na região do Caribe. O título da obra – História Geral dos
Roubos e Assassínios e dos mais Notórios Piratas [...] – indica que ela tenha sido a
primeira destinada a expor uma história, ou uma catalogação, sobre essas práticas de
rapina nos mares. 6
Esses importantes livros dos séculos XVII e XVIII formam uma primeira
geração de produções sobre a pirataria, ou seja, é a partir destes primeiros escritos que
se cria uma tradição temática que tenderá a se reproduzir em larga escala durante todo o
século XIX. Nesse século, toda a produção sobre a temática da pirataria foca-se quase
que exclusivamente na América, negligenciando outros continentes, como África, e
Ásia. O grande exemplo é a famosa obra de Robert Louis Stevenson, A Ilha do Tesouro,
escrita em 1883, responsável por formular a famosa imagem do pirata da perna de pau,
dos tesouros enterrados em ilhas desertas, dentre outras ficções.
Entretanto, a questão central aqui é a abordagem sobre a construção do conceito
de pirataria exposto por esses autores. A literatura citada se concentra somente sobre o
estudo da prática exclusiva de pirataria, não citando ou diferenciando outros tipos de
5 Ibid., p.13 6 A obra é assinada por Charles Jonhson, mas ,entretanto, alguns estudos de Manuel Schonhorn e Christopher Hill articulam esta obra a conjuntura ideológica do período e concluem que a possível autoria seja do próprio Daniel Defoe. Ver GUERREIRO, Luis R. O Grande Livro da Pirataria e do Corso. Lisboa, Temas e Debates, 1997, p.292. e JOHNSON, Charles. Uma História Geral dos Roubos e Crimes de Piratas Famosos [...]. tradução, E. San Matin. Porto Alegre, RS, Artes e Ofícios, 2003, p.9.
7
rapinas nos mares como o corso. Sendo assim, essa literatura de grande divulgação seria
uma das razões da confusão de termos entre pirataria e corso, sendo erroneamente
utilizados como sinônimos. O que esses autores construíram foi um modelo romântico
de pirata, muitas vezes reproduzido pela historiografia, sem a preocupação da análise
dos casos específicos e dos contextos particulares de cada situação ou região.
A questão da pirataria na América, apresenta em si uma particularidade: ela
representa as pilhagens ou atos de rapina entre europeus, ou seja, todos os personagens
retratados eram de procedência européia e, sendo assim, detinham uma série de
costumes, tradições e, muitas vezes, religião comum. De acordo com a literatura do
século XVII, o que caracterizava esses homens como pirata era o desvinculamento que
tinham de seus Estados e a busca constante de riquezas. EXQUEMILIM coloca que os
piratas eram “[...] homens que conduziam suas ações e negócios sem buscar nem acatar
aprovação ou restrições impostas por leis de qualquer príncipe ou soberano” 7.
A produção historiografia do século XX, diferentemente da abordagem clássica
do século XVIII sobre rapina nos mares, busca ampliar a questão da pirataria para
outras regiões do mundo, não a restringindo somente a América. Phillip Gosse, autor de
História da Pirataria 8, divide seu livro em distintas regiões a fim de formular uma
história geral da prática da pirataria no mundo, iniciando com os piratas barbarescos do
norte da África, nos séculos XVI e XVII, até os piratas orientais do século XIX.
Entretanto, antes de abordar sobre as diferentes práticas de pirataria no mundo,
Phillip Gosse define suas considerações sobre o conceito de pirataria, buscando
construir um modelo capaz de abranger de uma forma total todo o tipo de rapina nos
mares. Para GOSSE (1954) o pirata é
No geral [...] um ladrão dos mares é aquele que, através de uma violência explícita, toma violentamente os bens de outra pessoa em alto-mar, especificamente aquele que tem como ofício cruzar os mares para roubar ou pilhar; assim como aquele que rouba num porto.9
Tendo em vista que o objetivo deste autor era analisar a pirataria, ele não se
preocupou em definir um conceito de corso, mas nos problematiza a questão conceitual
citando o caso do famoso corsário inglês Francis Drake:
Outra dificuldade foi a de determinar quem era pirata e quem não era. No geral, isso foi fácil de resolver, mas existem casos limites que desafiam todas as definições.[...] é difícil determinar, por exemplo, se Francis Drake era um pirata ou não. Um espanhol do século XVI teria respondido
7 EXQUEMELIN, A. O. Op. Cit. p. 69. 8 GOSSE, Phillip. Histoire de la Piraterie. Paris, Payot. 1954. 9 Ibid., p. 06. (tradução livre)
8
isso por uma afirmação vigorosa. Mesmo o inglês mais patriota é obrigado a admitir que as primeiras viagens do herói da época de Elizabete na América foram a mais pura pirataria, apesar de que, na maioria dessas viagens, Drake foi efetivamente, ou por implicação, portador de uma comissão proveniente da Coroa.10
A definição de GOSSE, apesar de ser mais contemporânea que os romances do
século XVIII, ainda não deixa clara a distinção entre as práticas de pirataria e essas
práticas que provinham de uma comissão da Coroa. Entretanto podemos perceber que
essa diferenciação é extremamente delicada, de fronteiras manipuláveis, podendo mudar
de acordo com a ocasião do personagem.
Jean-Pierre Moreau, arqueólogo francês, estuda o tema da pirataria caribenha
desde seus primórdios no séc. XVI, buscando em diversas fontes uma análise mais
profunda sobre o tema. Como já é de costume na historiografia sobre esse tema, na parte
introdutória do seu livro, é exposto uma discussão a respeito das definições de pirata e
de corsário. Segundo MOREAU, o termo pirata já era utilizado na bacia mediterrânea
desde o Império Romano e já nessa época era considerado como tal aquele que pilhava o
navio de outrem, sem respeito ao direito de propriedade. 11 O autor também afirma que
o pirata seria um “empreendedor privado” que navegava nos mares em busca de
somente uma coisa: pilhar. Sendo assim, para este autor, o direito de propriedade, ou o
desrespeito a este direito, é o centro da discussão teórica.
Já o início da utilização do termo corso, segundo MOREAU, remete ao fim da
Idade Média, nas lutas entre as províncias da península Itálica. O corso seria uma
prática de rapina legitimada por um poder constituído: uma “pirataria legal”. O autor
nos explica que existiam duas ocasiões em que essas práticas de rapina eram
consideradas legais: em caso de guerra declarada, quando os navios corsários poderiam
abordar os navios inimigos – desde que dessem à autoridade dirigente sua comissão; ou
a prática poderia ser autenticada por uma carta de represália ou de marca, que era
conseguida por um navegador particular caso seu navio fosse vítima de assalto em alto
mar. Esta carta de marca dava ao mercador particular o direito de atacar navios
estrangeiros de determinada região, ou precedência. Esse sistema representava uma
espécie de “indenização”, concedida pelo Estado ao mercador pelas produtos perdidos e
embarcações avariadas. O corso, segundo MOREAU, formaria uma espécie de “Lei de
Talião” dos mares, onde a perspectiva de vingança (vendetta) àqueles que
10 Ibidem, p.06 (tradução livre) 11 MOREAU, Jean-Pierre. Une Histoire des Pirates: de mer du sul à Hollywood. Points, Paris. 2007, p.23.
9
desrespeitavam o direito de propriedade era o seu principal embasamento. Ao retornar
ao porto de origem,o corsário dava à autoridade capacitada a parte do espólio que lhe
cabia e entregava para julgamento os aprisionados.12 Podemos perceber que a
explicação dos termos pirataria e corso são expostos como diferentes na concepção de
MOREAU, onde a legalidade das suas ações perante um Estado formava o termo
diferenciador.
A criação de uma jurisprudência para a questão dos mares, assim como a
separação legal entre piratas e corsários é exposta por Luis. R. Guerreiro na sua obra
Grande Livro da Pirataria e do Corso. Segundo o autor:
A partir do século XI surgiram diversas coletâneas de regras e usos tendentes a harmonizar os interesses das partes envolvidas nas actividades marítimas. [...] A disperssão e heterogeneidade dos preceitos relativos ao tráfico marítimo acumulados ao longo dos séculos, não facilitava a sua regulamentação. Em Barcelona nos fins do século XIII ou no decurso do século XIV, foi dado um primeiro passo com vista a superar tal estado de coisas. As normas legais usadas em diversas cidades mediterrânicas foram então agrupadas num único volume intitulado Llibre de consolat dels fets maritims. A obra sistematiza os princípios reguladores do direito marítimo internacional e tem sido considerada como o código mais completo consagrado ao assunto na sua época.13
A explanação da progressão desta legislação e as diversas adaptações que foram
realizadas ao longo dos séculos formam uma questão interessante, mas que não será
abordada neste trabalho. Basta-nos saber que a criação desta legislação própria pra tais
práticas de rapina fora criada nesta conjuntura mediterrânico-medieval, e que foram
alteradas de acordo com as realidades de cada região européia.
A fim de simplificar as diferenças, GUERREIRO define, por comparação, a
distinção entra as práticas de pirataria e corso, onde
[O pirata,] motivado em exclusivo por prementes necessidades materiais, ou movido por um furor aquisitivo raramente limitado por qualquer espécie de consideração ética, ataca indiscriminalmente as vítimas, sem atender a sua naturalidade, condição ou religião. Em contrapartida, o corsário munido de uma carta de marca ou represália, actua dentro da legalidade. Dedica-se à prática do corso de forma episódica, a fim de resolver um litígio de ordem pessoal quanto lhe é denegada justiça em país estrangeiro.14
Sendo assim, podemos perceber que, apesar das diferentes visões sobre a mesma
questão, há um consenso entre estes autores sobre as definições de corso e pirataria.
Todos, de certa maneira, colocam a pirataria como a prática de pilhagem ausente da
tutela do Estado; ao contrário do corso, que seria a versão legal da mesma prática.
Todavia, GUERREIRO problematiza a questão em casos onde a jurisprudência das
12 Ibid., p.24. 13 GUERREIRO, Op. Cit, p.48. 14 Ibid., p.06.
10
práticas de rapina é superada. Exemplo disso, segundo o autor, é a oposição secular
entre a Cristandade e o Islã, onde a intromissão dos assuntos religiosos levava a essa
superação da jurisprudência 15. Segundo GUERREIRO, muitas vezes a razão para as
rapinas entre os dois grupos era de índole religiosa, as quais não eram apoiadas por uma
jurisdição específica, tornando a linha legal de separação entre as práticas insustentável.
Nesta situação, entre as armadas nacionais e as esquadras piráticas, entre as batalhas navais e as incursões piráticas ou corsárias, a distinção era escassamente perceptível.[...] Eis pois como a barreira que separa a pirataria e o corso em termos jurídicos era facilmente superada, justificando-se de certo modo a relação de sinomínia estabelecida entre as noções.16
Sendo assim o que podemos concluir desta analise da historiografia geral sobre o
tema das rapinas dos mares é que a prática da pirataria, entendido com a pilhagem
anárquica de qualquer embarcação ou porto, seria mais antiga e mais ampla que a
prática do corso. Esta, por outro lado, foi construída a partir da elaboração jurídica
surgida em um contexto mediterrânico-medieval do século XIII. O corso, assim como
as legislações que o separavam da pirataria, foi automaticamente transferido para o
âmbito intercontinental no século XV, assim como todas as formas de controle estatal
tipicamente mercantilista do período. Segundo Francisco Falcon, essa transferência das
legislações e práticas dos Estados modernos para o ambiente americano “aparece sob a
forma de controle pelo Estado de todo o fluxo do comércio exterior, fiscalizando-o,
regulamentando-o, limitando-o.”17
Todavia, em casos onde a presença européia é parcial ou inexistente, o conceito
de corso se torna desencarnado, pois tal denominação traz em si um embasamento legal
inserido exclusivamente no contexto europeu. Essa prática possuía uma genealogia de
construções jurídicas criadas a partir de uma perspectiva cultural mediterrânico-
medieval, e possivelmente não transferível para outras culturas dotadas de outros
valores sócio-jurídicos.
1.2 A Particularidade da Presença Portuguesa Ásia.
O império português, em sua progressiva expansão para a Ásia nos séculos XV e
XVI, entrou em contato com uma série de civilizações que em grande medida não
partilhavam da cultura européia, possuindo possivelmente uma dinâmica própria de
interpretações das práticas de rapina. Nesta discussão a presença portuguesa na Ásia se
15 Ibid., p.07. 16 Idem. 17 FALCON, Francisco. Mercantilismo e Transição. São Paulo, Brasiliense, 1985, p.83.
11
destaca como um caso interessante e bem diferente do universo atlântico citado
anteriormente. Segundo Geniviève Bouchon,
as navegações de alto-mar eram no Atlântico o único feito dos europeus que aí reinavam como dominadores. Entrando nas águas do oceano Índico, os portugueses adentraram num mundo marítimo organizado já há muitos séculos, e nos tráficos desenvolvidos num espaço gigantesco, perfeitamente dominados por sociedades mercantis fortemente estruturadas”18.
A realidade asiática se difere em diversos pontos do contexto americano
analisado anteriormente, pois a presença portuguesa na Ásia representava um contato
entre civilizações distintas, que possivelmente não derivavam de uma mesma tradição
cultural, nem religiosa, nem jurídica.
A historiografia mais contemporânea sobre a presença portuguesa no oriente
tende a rever e contrapor uma visão tradicionalista, maniqueísta e eurocêntrica da
tradicional historiografia portuguesa, buscando aprofundar os estudos sobre a história da
Ásia e sua relação com os portugueses. Um primeiro exemplo dessa visão sobre a
presença portuguesa na Ásia é do historiador indiano Sanjay Subrahmanyam, que
procura retratar o encontro dos conjuntos culturais entre Europa e Ásia de uma
perspectiva menos eurocêntrica. Segundo SUBRAHMANYAM o mundo asiático
não era um mundo estático. Era caracterizado pela transformação, por vezes quase imperceptível, por vezes bem visível, em ambos os casos ao nível institucional e funcional. Para entender as acções portuguesas na Ásia, portanto, e para compreender as acomodações que tiveram que fazer, assim como as rotas que usaram, é preciso ir mais longe do que descrever o ‘palco asiático’ no qual foram atores. Pelo contrário, é necessário considerar o problema das dinâmicas da história asiática ao longo desses duzentos anos.19
Sendo assim, Sanjay Subrahmanyam busca dar mais atenção à história asiática a
fim de compreender suas relações com o mundo europeu, explicando que a presença
portuguesa era de certa forma, somente mais um corpo conflitante no turbulento palco
asiático.
As produções feitas acerca da temática do corso e da pirataria nunca foram
tradicionais na historiografia sobre o império português, ao contrário do que se tem
sobre o corso inglês, francês e espanhol.20 Todavia, atualmente têm-se desenvolvido
análises sobre o tema, buscando compreender como essas práticas eram inseridos no
ambiente asiático, e como elas atendiam às políticas dos dirigentes portugueses. A
18 BOUCHON, Geneviève. “L’Ocean Indien à l`époque de Vasco da Gama” In: Maré Liberum, 1, 1990, p.71. (tradução livre). 19 SUBRAHMANYAM, Sanjay. Império Português Asiático 1500-1700. Uma História Política e Econômica. Lisboa, DIFEL, 1995, p.14. 20 GUERREIRO, Op. Cit, p. 07.
12
consideração que gostaria de expor aqui é de como foi desenvolvido o conceito de corso
e de pirataria por essa recente historiografia.
Um autor que se destaca sobre o exame das práticas de rapina na porção asiática
do Império Português é Luis Filipe Thomaz, que aborda a questão para compreender
diversos aspectos da política portuguesa na Ásia. O autor explica em seu artigo “Do
cabo Espichel a Macau: vicissitudes do corso português”, que o corso português já
existia dentro da esfera européia, derivado de problemas diplomáticos com a França e
Castela.21 Esta prática era compreendida, como era de costume no universo europeu,
onde os comerciantes lesados “considerava-se no direito de se ressarcirem por suas
próprias mãos fazendo presas à outra parte, bastando-se aos participantes em tal caso
munir-se de uma carta de marca passada pelo soberano” 22.
Por outro lado, o artigo de THOMAZ (1993) chama a atenção para a peculiaridade
da ação corsária entre cristãos e muçulmanos, prática essa em que os portugueses
estavam envolvidos desde as guerras de reconquista no século XIII23. É necessário,
entretanto, fazer um parêntese para a explicação desta diferente perspectiva sobre o
corso português.
Enquanto para o corso entre as potências européias era necessário uma carta de
marca ou autorização do soberano para manter a operação de rapina na legalidade, o
corso entre muçulmanos e cristão “era ipso facto legal, não se carecendo de carta de
marca para o terno lídimo.”24 Essa perspectiva era, segundo THOMAZ (1993), causada
pelos ideais cruzadisticos incrustados na comunidade portuguesa, e que serão analisados
no próximo capítulo, ao tratar das peculiaridades do contexto português na Ásia.
Todavia, interessa-nos neste capítulo compreender que esse espírito cruzadístico
em teoria embasava a legitimidade dessas práticas de rapina contra os muçulmanos.
Essa será a principal diferença abordada entre a prática do corso intra europeus, e a
prática do corso contra os muçulmanos.
Em outro artigo, Luis Filipe Thomaz indaga sobre as formas de controle dos
portugueses nos mares no Índico. Logo de início, o autor nos lança definições
conceituais sobre pirataria e corso, que procura aprofundar a clássica forma de
separação entre legais e ilegais, os piratas e corsários. Sobre a definição de corso,
21 THOMAZ, Luís Filipe F. R. “Do cabo Espichel a Macau: vicissitudes do corso português” In: As relações entre a Índia Portuguesa, a Ásia do Sueste e o Extremo Oriente. Actas do VI Seminário Internacional de História Indo-Portuguesa. 1993, p.540 22Ibid., p.541 23Ibid., p. 544 24Ibid., p.542
13
THOMAZ (1999) expõe que existiam dois tipos da mesma forma de prática: O corso de
orientação militar ou estratégico; e o corso de orientação econômica.25 O último seria,
simplesmente, uma prática impulsionada pelo Estado a fim de aumentar suas receitas
com pilhagens e com espólios de suas batalhas. Por outro lado, a orientação militar ou
estratégica do corso, era, segundo o autor, uma versão mais sofisticada, utilizada para
bloquear um inimigo, inibindo-o de comerciar e ou navegar nos mares.26
O corso economicamente orientado, segundo THOMAZ (1999), é uma variante
um pouco mais evoluída da prática da pirataria, podendo ser comum em organizações
comunitárias de navegadores armados. Essas comunidades teriam como forma de
fazenda quase exclusiva as pilhagens e saques feitos a outras comunidades. O sultanato
de Malaca, no sudeste asiático, é um exemplo de Estado fundado com bases neste corso
economicamente orientado. 27 Sendo assim, podemos deduzir que o corso como prática
econômica já era conhecido e praticada nos mares do Índico, e que esta atividade
praticada pelos portugueses não traziam de fato nenhuma novidade para os povos
asiáticos.
O corso politicamente orientado, por outro lado, era estritamente ligado a
concepções mercantilistas. Esta prática, muito mais complexa que sua versão
econômica, escolhia estrategicamente suas vitimas e compreendia os aliados de seus
inimigos como inimigos, e, portanto, como alvos em potencial. 28 Esta versão era muito
mais comum nos conflitos entre comunidades Européias: vale lembrar a célebre frase de
Luis XIV “o corso é a metade da guerra”. Apesar de Luis Filipe Thomaz (1999) separar
em denominações diferentes, é possível compreender que as três formas de corso –
estratégico, econômico e político – muitas vezes estavam unidos em uma mesma
prática, almejando os três objetivos ao mesmo tempo. Os problemas surgem quando
essas práticas dificultavam as transações comerciais entre os reinos. GUERREIRO, cita
um exemplo do qual pode-se perceber o problema:
Em 1454, os mercadores de Playmouth tinham suspendido suas navegações para a cidade do Porto com receio de serem apresados. Temiam, com razão, virem a ser objeto de represália motivadas por diversas capturas de navios portugueses efectuadas por corsários ingleses. A concessão de um salva-conduto pelas autoridades de Portugal permitiu-lhes reatar a atividade com aquela cidade.29
25 THOMAZ, Luís Filipe F. R. “Portuguese Control over the Arabian Sea and the Bay of Bengal: A Comparative Study” In: Comerce and Culture in the Bay of Bengal, 1500-1800. Ed. Om Prakash & Denys Lombard. 1999. 26 Ibid., p. 116. 27 Ibid., p.117. 28 Ibid., p. 118. 29 GUERREIRO, Op. Cit. .50.
14
A concessão de salva-condutos era, portanto, a solução encontrada para não
transformar a guerra do corso, em uma onda de violência endêmica. Essa prática de
ceder salva-condutos a potências aliadas será largamente utilizada no Oriente, onde com
o nome de cartazes, buscava de regulamentar e controlar o comércio muçulmano. Essa
importante prática portuguesa será devidamente aprofundada no próximo capítulo deste
trabalho.
A pirataria pelo lado português, entendida como a prática de rapina não-
autorizada por nenhum Estado, não tem ainda significados estudos, não podendo
garantir que tenha ou não casos de portugueses que tenham tentado seguir a carreira de
pirataria na Índia. Entretanto alguns casos revelam a existência de personagens
portugueses que se utilizavam das práticas de rapina nas encostas litoral Asiático. É o
caso de António de Faria, personagem exposto no relato de Fernão Mendes Pinto
chamado Páginas da Peregrinação, primeira edição em 1604:
Quando António de Faria se achou de todo prestes, partiu daqui de Patame no sábado, 9 de março de 1540, e dirigiu-se para o nor-noroeste, em direção ao reino de Champá, na intenção de descobrir nele os portos e angras daquela costa, e aí, por qualquer forma, refazer-se com uma boa pilhagem com algumas coisas de que vinha falto, porque como a sua saída de Patame fora um pouco apressada, não vinha tão bem provido do necessário que não houvesse mister refazer-se de muitas outras coisas, principalmente de mantimentos, e munições, e de pólvora.30
Assim como este personagem, outros são expostos pela historiografia, em casos
diferentes. Alguns ao chegar à Índia, acabavam por rebelar-se devido a diversos
motivos, contra o Estado português. SUBRAHMANYAM (1995) cita o exemplo de
Gonçalo Souza Coutinho, um fidalgo português que armava navios para missões
corsárias no golfo de Bengala e por causa de uma acusação de assassinato, foge em
1542 após vender seus bens, com “sua mulher e os seus filhos e fugiu para o território
de Bijapur, onde se converteu ao Islão” 31 .
A rapina do lado muçulmano, ou asiático, é também de grande relatividade. O
relato de Fernão Mendes Pinto, faz menção a um “ladrão guzerate, por nome Coja
Acém”32, que apesar de roubar de António de Faria diversas mercadorias, é retratado em
diversos capítulos como “corsário Coja Acém”33.
30 PINTO, Fernão Mendes. Páginas da Peregrinação. Lisboa, Ed. Verbo/RTP. 1972, p.47. 31 SUBRAHMANYAM, Op. Cit. p.357-358. 32 PINTO, Op. Cit., p.68. 33 Ibid. Os capítulos 40, 58, e 59 retratam especificamente a empresa de António Faria contra o chamado “corsário” Coja Acém.
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Outro caso em específico é de Kunjali Marrakar. O tratamento dado pelas fontes
portuguesas sobre este personagem o colocam na posição de um pirata. O laconismo de
fontes asiáticas sobre esse personagem não nos revelam posição contrária, sendo,
portanto, compreensível que grande parte da historiografia tradicional portuguesa o
compreenda como um pirata. Entretanto segundo as propostas interpretativas de
BOUCHON e SUBRAHMANYAM sobre a Índia – onde devemos compreender a dinâmica
oriental como estruturada em si mesma e pré-existente a presença portuguesa – devemos
dar uma maior atenção para utilização destes termos ocidentais, para caracterizar
personagens orientais. Sendo assim, no terceiro capítulo, será resgatada esta discussão
conceitual para a análise especifica das fontes portuguesas que caracterizavam Kunjali
como um pirata, visando a compreensão da utilização do termo.
A conclusão parcial que pode tirar desta pequena análise sobre as práticas de
rapina, e suas definições no império português asiático, é que, em primeiro lugar, tanto
as práticas do corso quanto da pirataria eram ambas utilizadas em larga escala tanto na
Europa quanto na Ásia. O que diferenciava tais práticas eram os objetivos almejados e,
principalmente, os diferentes argumentos que as legitimavam. No caso europeu, as
jurisprudências criadas a partir do século XIII visavam à regulamentação destas práticas
de rapina, que apoiadas por seus respectivos Estados formavam sua legitimação. Na
particular rivalidade entre portugueses e muçulmanos, essa legitimidade é apresentada
como “ipso facto” legal, ou seja, um direito tradicionalmente instituído desde as guerras
de reconquista, validamente embasado pelo sacerdote superior, o papa. Portanto, a
relatividade dos termos pirataria e corso, quanto à localidade, período e contexto
justifica um maior cuidado em sua utilização. Os termos citados não podem ser
utilizados genericamente sem compreender a conjuntura do período o qual estão
envolvidos os participantes.
2. POLÍTICA E RELIGIÃO NA PRÁTICA DO CORSO PORTUGUÊS.
2.1 – A Legitimação Religiosa.
A tomada de Ceuta pelos portugueses, em 1415, é a primeira conquista lusitana
fora do continente europeu, demarcando, mesmo sem o saber, o início da expansão
portuguesa. As ações bélicas contra os muçulmanos e as mercadorias apreendidas como
espólio de batalha estimularam o aparecimento de práticas de rapina na bacia
Mediterrânica na região do estreito de Gibraltar e na costa magrebina. Para GUERREIRO,
16
essa hostilidade nos mares entre cristãos e muçulmanos inaugurava um ambiente
promissor para todo tipo de aprisionamento nos mares, “legitimados” ou não: “Para
piratas e corsários, a instabilidade das relações internacionais, conjugada aos vultosos
fluxos de tráfico, proporcionava-lhes um mundo de oportunidade que não hesitavam em
explorar”34. Segundo o autor, três fatores estimulavam a aristocracia portuguesa às
práticas de rapina: o orgulho belicoso, o fanatismo religioso e os lucros que tais práticas
traziam.35
O corso entre portugueses e muçulmanos, se inicia oficialmente na frota de
D.Dinis, entre 1317 e 1319, durante os conflitos de reconquista da Península Ibérica,
dominada até então por povos de origem árabe. Esta primeira frota se dirigia ao mar das
Éguas – na costa magrebina – com um duplo objetivo: “necessidade de defesa territorial
contra as razzias dos corsários da Barberia, [...] e ao mesmo tempo que marca posição
de patrulha no Estreito [de Gibraltar]”36. Manuel Pessanha, o particular que armou os
navios para D.Dinis, chamava seus homens de ‘“meus corsários’ em pé de igualdade
com a frota real. E uma das cláusulas do referido contrato autoriza Pessanha a dedicar-
se a atividades de corso.”37 Essa primeira investida lusitana com o objetivo de corso
contra os inimigos da fé cristã foi incentivada e legitimada pelo Papa João XXII.38
Segundo Luis Filipe Thomaz neste momento a expansão portuguesa possuía
causas formais, ou ideológicas, que, herdadas da reconquista ibérica, perpetuaram-se ao
longo da expansão marítima portuguesa no Oriente. A idéia de reconquista da península
ibérica se soma com o sentimento de cruzada, que em uma
versão modificada, alargada quanto ao objecto, que passa a ser, indistintamente todo o Dar-ul-Islam, o território muçulmano na sua totalidade, mas restringida quanto ao sujeito, porque posta ao serviço da política expansionista de um Estado nacional. [...] é uma rivalidade entre dois blocos políticos culturais e econômicos, organizados cada um em torno de seu credo. [...] Lutar pela religião não é, pois, lutar por algo de ideal e exterior a sua sociedade, mas pelo elemento central da sua própria individualidade cultural – logo, pela subsistência como entidade coletiva. 39 Esse sentimento anti-islâmico era amplamente apoiado pela elite clerical, a qual
utilizava vários argumentos baseados em leituras interpretativas da Bíblia, para
demonstrar a superioridade cristã.
34 GUERREIRO. Op. Cit, p.53. 35 Ibidem, p. 55. 36 RILEY, Carlos. “Ilhas Atlânticas e Costa Africana”. In: BETHENCOURT, F.; CHAUDHURI, K. História da Expansão Portuguesa: A Formação do Império (1415-1570). Lisboa: Temas e Debates, 1998. V.I, p.140. 37 GUERREIRO, Op. Cit. p.55. 38 RILEY, Op. Cit. p. 140. 39 THOMAZ, Luis Filipe. De Ceuta a Timor. Lisboa: DIFEL, 1994, pp.7 e 8.
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O Deus Eterno diz ao povo de Israel: ‘Vocês ficarão com as riquezas do Egito, da Etiópia e dos moradores de Sebá, [...] Vocês os derrotaram, e eles serão seus escravos; e, presos com correntes, irão andando atrás de vocês [...]. (45,14, Is)
A expansão portuguesa pelo noroeste da África é estimulada por um interesse da
Santa Sé nas descobertas portuguesas. Esse interesse era manifestado por declarações e,
principalmente, através de bulas papais: documentos oficiais que expressavam a
vontade do sumo pontífice junto a instâncias jurídicas internacionais cristãs.40 Essas
diversas bulas significaram mais do que a legitimação das conquistas pela Igreja.
Significaram a partilha do mundo e a restrição à livre circulação nos mares.41 Dentre
essas bulas, BOXER destaca três: “a Dum Diversas de 18 de junho de 1452, a Romanus
Pontifex de 8 de junho de 1455, e a Inter Coetera de 13 de março de 1456”42, sendo a
Romanus Pontifex a mais importante, pois segundo BOXER, “foi muito justamente
denominada a carta do imperialismo português”,43dando sanção ao monopólio
português nos mares. Essa bula, expedida por Nicolau V,
decreta e declara, motu prorpio, que tal monopólio realmente diz respeito não só a Ceuta e às regiões já conquistadas pelos portugueses, como também a quaisquer outras descobertas que possam ocorrer no futuro, ao sul do Bojador e [cabo] Não, e até as Índias. A legitimidade de quaisquer medidas tomadas pela Coroa portuguesa para salvaguardar o monopólio é explicitamente reconhecida pelo papa.”44
Os questionamentos feitos pelas potências européias excluídas desse monopólio
marítimo geraram diversos ataques aos territórios portugueses. Segundo Nelson
Verrissimo era comum no século XVI as incursões corsárias de ingleses, franceses e
holandeses nos territórios além-mar:
Os mares do Porto Santo e da Madeira encerram imensas histórias de piratas e corsários que, durante séculos ameaçavam os navios carregados de mercadorias e populações indefesas. [...] Franceses e ingleses desencadearam, nesta época, freqüentes ofensivas corsárias contra navios e posseções de Portugal e Espanha, devido a fortes rivalidades políticas e religiosas existentes entre esses paises, em especial, a contestação do mare clausum, aprovado pelo tratato de Tordesilhas.45
Sendo assim, as bulas papais davam aos portugueses uma legitimidade para
impulsionar as atitudes corsárias sobre todos aqueles que se opunham à autoridade
cristã. Essa legitimação religiosa foi carregada pelos portugueses até os mares do
40 GUERREIRO. Op. Cit, p. 61. 41 BETHENCOURT, F. “A Igreja”. In: BETHENCOURT, F.; CHAUDHURI, K. História da Expansão Portuguesa: A Formação do Império (1415-1570). Lisboa: Temas e Debates, 1998. V.I p.173. 42 BOXER, O Império Marítimo Português 1415 - 1825. Cia das Letras. São Paulo, SP. 2006, p. 37. 43 Idem 44 Ibidem, p. 38. 45 VERISSIMO, Nelson. Piratas e Corsários nos Mares do Arquipélago da Madeira na Segunda Metade do Século XVI. In: MENESES, Avelino de Freitas. Portos, Escalas e Ilhéus no Relacionamento entre Ocidente e Oriente. Actas do Congresso Internacional Comemorativo do Regresso de Vasco da Gama a Portugal. 2º Volume. 2001, pp.11 e 12.
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Oceano Índico, e somadas com às questões imperiais de D.Manuel I, formavam uma
orientação político-religiosa denominada “Política Oriental”.
Esta é, justamente, a principal questão que pretendo abordar neste capítulo: a
prática do corso como forma de tentativa de domínio dos mares da Ásia, assim como
seus diversos objetivos.
2.2 – A Política Oriental de Dom Manuel.
O século XVI em Portugal se inicia sob o reinado de Dom Manuel I (1495-
1521), que carregava consigo diversas orientações político-ideológicas com relação aos
territórios além-mar. Tratar das políticas deste primeiro período da presença portuguesa
na Ásia significa compreender quais eram as posições políticas e diplomáticas iniciais
da chamada “política oriental” dos portugueses, assim como apreender como essa
política interferiu na dinâmica das sociedades asiáticas.
Segundo a baliza temporal feita pelo historiador K. L. Chaundhuri46, o recorte
1500-1560, representa respectivamente o período inicial dos grandes feitos portugueses
e o apogeu da presença lusitana no Oriente. O período do reinado de D.Manuel (1495-
1521) é caracterizado pelas políticas destinadas à recém descoberta rota do Cabo,
inaugurada por Bartolomeu Dias em 1488 e à chegada às Índias por Vasco da Gama em
1498. Essas “Políticas Orientais” definiram as diretrizes básicas que viriam a conduzir
as atividades portuguesas no Oriente. Grande parte destas orientações provenientes das
“Políticas Orientais” já se esboçavam desde os primórdios da expansão portuguesa, mas
foi somente durante o reinado de D. Manuel que estas políticas se tornam passíveis de
realização, por mais utópicos que fossem seus objetivos.47
A aversão ao muçulmano, trazida como aspecto cruzadístico desde as guerras de
Reconquista, forma o pano de fundo ideológico em que são construído os objetivos de
D. Manuel no século XVI. Dentre esses objetivos, temos a busca pelo reino perdido do
Preste João – suposto reino que poderia se aliar aos portugueses para aniquilar as forças
muçulmanas – e a dominação da rota das especiarias. Este objetivo se realizaria
46 Trata-se de uma baliza sobre a história de Portugal: “1500-1515 Período dos feitos marítimos; 1515-1560 Período do apogeu do poderio marítimo; 1560-1600 O reavivar do comércio no mar vermelho e da criação da rota ao Japão.” Ver CHAUNDHURI, K. L. Trade and Civilization in the Indian Ocean, Cambridge, 1985, p.66. Apud SUBRAHMANYAM, Sanjay. Comércio e Conflito: A Presença Portuguesa no Golfo da Bengala. 1500-1700, P. 155. 47 Um desses objetivos utópicos era a proposta de Duarte Galvão de desviar o curso do Rio Nilo a fim de estrangular com o Egito, tornando possível a conquista da Terra Santa. Ver THOMAZ, Luis Filipe F. R. “A Idéia Imperial Manuelina” In: DORÉ, Andréa; LIMA, Luis Filipe S.; SILVA, Luis Geraldo. Facetas do Império na História. SãoPaulo: Aderaldo & Rothschild ; Brasília, DF : Capes, 2008, p. 52-53.
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substituindo a rota do mar Vermelho pela rota do Cabo, formando um projeto duplo
capaz de assegurar o monopólio Português das especiarias e, ao mesmo tempo,
estrangular o comércio muçulmano no mar Vermelho. 48 Segundo THOMAZ (1994):
A idéia não era então neutralizar a rota do Mar Vermelho, mas sim dominá-la. [...] Podemos inferir isto do facto de em 1486 ter enviado uma embaixada à Etiópia e outra a Calecut, Ormuz e Sofala, o que demonstra claramente que seu plano era bivalente: por um lado fazer uma aliança com o Preste João para a conquista do Norte da África; por outro lado, participar no comércio do Oceano Indico.49
O oceano Índico era até o século XV dominado em grande parte por mercadores
mouros (como eram genericamente chamados os muçulmanos), assim como o mar
Vermelho. A descrição de Fernão Lopez de Castanheda sobre a cidade de Calicute,
realizada em 1551, nos dá uma pequena noção de um dos mais importantes portos da
Índia:
E como eram grãdes mercadores & muy grosso trato, veose a fazer mayor escala & a mais rica de toda a Índia, por que nela se achava toda especiaria, droga, noz & maça que podia desejar [...] era povoada de gentios de diversas seitas & de mouros grandes mercadores: e tão ricos q avia algus q tinhão cincoeta naos, & não avia anno q não viessem a este porto seyscetas naos & dahi pra cima 50.
A viagem de Pedro Álvares Cabral em 1500, inaugurou as transações comerciais
entre Portugal e as Índias. Cabral carregava ordens de tratar com os poderes do Malabar
e negociar mercadorias, além de ter sido encarregado de capturar ou aprisionar “os
navios árabes que fossem encontrados a fazer comércio na Índia, enquanto os navios
Indianos estariam livres de qualquer ataque.”51 Desta viagem, o historiador Indiano
Kirti Chaudhuri destaca uma passagem das ordens de D. Manuel, onde o monarca
coloca os mouros como “inimigos da fé sagrada com os quais ‘nós temos
continuadamente guerra [...] assi pela obrigação que isso deve ter todo o rei católico,
como porque a nós vem quasi por sucessão’” 52.
Essa hostilidade aos seguidores de Alá, presente nas ordens de Cabral, não é
uma novidade ideológica do reinado de D.Manuel. A questão que pretendo expor aqui é
como certas atitudes tomadas pelo rei e seus governantes conciliavam o fervor religioso
com a diplomacia político comercial. A associação entre as políticas portuguesas na
48 THOMAZ, Luis Filipe F. R. “A Idéia Imperial Manuelina” Op.Cit. , p. 52-53. 49 THOMAZ, De Ceuta a Timor. Op. Cit, p. 193. 50 CASTANHEDA, Fernão Lopez de. História do Descobrimento & Conquista da Índia pelos Portugueses (1.ª ed. Coimbra, 1551- 1561). Livro I Capitulo XIII. 51 CHAUDHURI, K. “O Estabelecimento no Oriente.” In: BETHENCOURT, F.; CHAUDHURI, K. História da Expansão Portuguesa: A Formação do Império (1415-1570). Lisboa: Temas e Debates, 1998. V.I , p.173. 52 COSTA, Abel Fontoura da. “Os sete únicos documentos de 1500, conservados em Lisboa, referentes à viagem de Pedro Álvares Cabral”, Lisboa, Agencia –Central das Colônias. 1940. p.38. Apud: CHAUDHURI, K. L. “O Estabelecimento no Oriente”. Op. Cit., p.173.
20
Índia com o aspecto cruzadístico era fundamental, interferido, inclusive, nas relações
diplomáticas entre as lideranças asiáticas e os portugueses. Para exemplificar, permite-
se citar novamente o exemplo de Pedro Álvares Cabral que, após ser sido autorizado a
negociar em Calicute pelo Samorim, capturou um navio muçulmano ricamente
carregado que tentava sair do porto. Tal atitude causou revolta na população da cidade
que ataca os comerciantes portugueses. Em resposta, a armada de Cabral abriu fogo
contra a cidade de Calicute prejudicando para sempre a diplomacia entre Portugal e o
mais importante porto do Malabar. 53
A revelação da supremacia moura nos mares do Índico, e os problemas causados
pelo descuido diplomático abateram o conselho real de D.Manuel, formando certa
oposição à “política oriental”. Essa oposição tornou os planos de conquista do Oriente
Próximo como utópicos demais sugerindo assim que a presença lusitana deveria se
limitar somente ao Atlântico e ao norte da África. Contudo, segundo THOMAZ,
Há boas razões para acreditar que foram as crenças messiânicas do circulo do soberano que determinaram o prosseguimento da aventura. Talvez ele tenha contado com o apoio imprevisto de comerciante genoveses e florentinos estabelecidos em Lisboa ,que ardiam de desejo em desbancar Veneza que, ainda por razões diferentes, se mostravam tão otimistas quanto D.Manuel com relação a nova rota marítima54.
Sendo assim, a “política oriental” imperialista de D.Manuel, apesar de não
agradar a maioria de seu conselho, prosseguiu, sendo vista como uma medida
autocrática que comprova a elasticidade do sistema de governo do período.55
A asfixia do Oriente Próximo, ocasionada pelo bloqueio do Mar Vermelho56 é a
política principal a ser desenhada nos primeiros anos da presença portuguesa no
Oriente. Esta política possibilitava a realização de objetivos primordiais da “política
oriental”: a transferência da rota das especiarias do mar Vermelho para a rota do Cabo;
53 Ver: BARROS, João. Décadas da Ásia – Dos feitos que os portugueses fizeram no descobrimento e conquista dos mares e terras do Oriente (1.ª ed. 1552-1563), 6.ª ed. Por Hernani Cidade & Manuel Múrias, 4 vol. Lisboa: Agência Central das Colônias, 1945-1948. Primeira Década, Livro V, Capitulo VII e CASTANHEDA, Fernão Lopez de. História do Descobrimento & Conquista da Índia pelos Portugueses (1.ª ed. Coimbra, 1551- 1561). Livro I Capitulo XXXIX. e BETHENCOURT, F.; CHAUDHURI, K. História da Expansão Portuguesa: A Formação do Império (1415-1570). Op. Cit., p.173. 54 THOMAZ, Luis Filipe F. R. “A Idéia Imperial Manuelina” In: DORÉ, Andréa; LIMA, Luis Filipe S.; SILVA, Luis Geraldo. Facetas do Império na História. SãoPaulo: Aderaldo & Rothschild ; Brasília, DF : Capes, 2008, p. 55. 55THOMAZ, De Ceuta a Timor . Op. Cit, p. 194 56 Importante salientar que os planos de bloqueio do mar vermelho não eram uma inovação do governo de D.Manuel. A idéia já havia alguns séculos de idade, inicialmente decretado pelo papa Alexandre III em 1179. Entretanto é somente após a descoberta da rota do cabo que se pode pensar pela primeira vez em bloquear o “Estreito de Meca” sem prejudicar a transição das especiarias para a Europa. Ver. THOMAZ, Luis Filipe F. R. De Ceuta a Timor. Op, Cit., p. 195.
21
o fim do monopólio muçulmano no comércio asiático; e a asfixia ou enfraquecimento
do Oriente Próximo. Com estes objetivos realizados, pretendia D.Manuel empossar seu
título de imperador após a conquista de Jerusalém. 57 Para tal empresa, era necessário
que o Estado da Índia definisse seu papel marítimo no Oceano Índico, ou seja, era
necessário que se impusesse como potência marítima e edificasse “portos-seguros” para
a transição de mercadorias e abastecimento de tropas e suprimentos. Segundo Kirti
Chaudhuri:
Durante as duas primeiras duas décadas do século XVI, a política imperial portuguesa foi dominada por três objetivos: a diversão do comércio de especiarias transoceânico de Alexandria e Veneza para Lisboa e Antuérpia; a tentativa de controlo das cidades-estados da África Oriental, incluindo o comércio de ouro de Sófala; e a eliminação dos comerciantes muçulmanos do mar Vermelho e dos portos do Malabar.58 Para tal empreendimento, segundo THOMAZ, a presença de Afonso de
Albuquerque foi essencial. Albuquerque partilhava das noções medievais de crenças
messiânicas como a queda eminente do “Sultanato da Babilônia” e a dominação de todo
o Oriente Próximo pelos portugueses. Messianismos à parte, Afonso de Albuquerque
tomou medidas mais pragmáticas com relação à presença portuguesa na Ásia, muitas
vezes agindo sem o consentimento real, pois se baseava em seus conselheiros italianos
e, sobretudo, asiáticos, os quais conheciam muito melhor a realidade asiática que os
conselheiros reais em Lisboa.59
Uma das principais medidas tomadas por Albuquerque foi a tomar a estratégica
cidade de Goa, na Índia, e torná-la a capital administrativa dos planos imperiais.
RODRIGUES completa:
O estabelecimento de uma base militar nesse centro estratégico possibilitava ao recém-criado ‘Estado da Índia’ exercer um mais apertado controle sobre as rotas comerciais que através do Mar Arábico ligavam os principais centros produtores e distribuidores do subcontinente indiano ao Golfo Pérsico e ao Mar Vermelho.60
Além da cidade de Goa, Albuquerque conquistou também as cidades de Ormuz
(portas do golfo Pérsico) e de Malaca (principal passagem marítima entre o oceano
Indico e o Pacífico), formando uma triangulação de importantes portos no Índico e
construindo uma base sólida para a presença portuguesa na Ásia. No sentido estratégico
a prática do corso no Índico buscou unir as perspectivas imperiais de ferir ou
57 THOMAZ, “A Idéia Imperial Manuelina”. Op. Cit, p. 57. 58CHAUDHURI, K. L. “O Estabelecimento no Oriente” Op. Cit, p.173. 59 THOMAZ, De Ceuta a Timor. Op. Cit, p. 197 60 RODRIGUES, Vitor Luís G. Da Goa de Albuquerque à Goa Seisentista: Aspectos da Organização Militar da Capital do “Estado da Índia”. In: Revista Militar. Vol. 51: Lisboa, 1999, p.60
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enfraquecer a presença muçulmana no Oriente sem ferir ou desagradar as vertentes
econômicas que apoiavam a política oriental,
desse mecanismo era peça essencial o corso. Não controlando a produção de especiaria, restava aos Portugueses como único meio de impedir o seu escoamento para o Estreito era interceptá-la no mar; e a violência tinha ai o seu papel, já que o exemplo de má fortuna de uns podia dissuadir os demais.61
A prática corsária contra os muçulmanos era, portanto, a encarnação pragmática
dos objetivos portugueses na Ásia. Diogo do Couto, cronista português do século XVI,
descreve em sua obra O soldado Prático algumas fases da progressão da atividade de
rapina pelos portugueses no Índico do ínicio do século XVI:
Antes que tivéssemos na Índia fortalezas e nas primeiras armadas que os reis de Portugal mandaram [...] que lhe podiam nossas armadas impedir aquele comércio e romagem da nefanda casa de Meca (que em tudo tinham os nossos reis o primeiro intento sempre na honra de Deus Nosso Senhor), como para fazer presas nas naus dos Mouros, que eles tratavam de mandar extinguir da Índia, pera com mais facilidade mandar prantar por ela a lei do Santo Evangelho; 62
[...]
e pêra isso mandou depois armadas deputadas pera andarem naqueles estreitos, de que em umas delas veio por capitão-mor o grande Afonso de Albuquerque, que começou a fazer guerra a ambos aqueles estreitos.
E depois que el-rei D.Manuel tratou de mandar fazer assento na Índia, que tomaram os nossos pé nela, e começaram a fundar fortalezas, não tinha o viso-rei, que a isso veio, mais rendimento que as presas do estreito de Meca, aonde todos os iam nossos galeões. E depois D.João, de gloriosa memória, mandou a seus governadores que continuassem esta guarda do estreito do Mar Roxo, tanto em vitupério e afronta da lei de Mafamede, quanto para proveito e rendimento do Estado da Índia, que sempre (té que perdeu este bom costume) sustentou suas armadas destas presas, porque a Índia não tinha outro rendimento. 63 [...]
Os reis vizinhos andavam assombrados com a potência das nossas caravelas; [...] de maneira que podíamos dizer que em cada galeão tínhamos uma fortaleza no mar, com que se assombravam o mundo todo. [...] Pois tudo isso se fazia com a ajuda das presas do estrito de Meca; [...]64 Sendo assim, pudemos perceber que, em um primeiro momento, Diogo do
Couto revela que a legitimação para a guerra contra o muçulmano se apoiava em
preceitos religiosos. Posteriormente, o autor ressalta exalta a importância dos lucros
gerados a partir da apreensão de mercadorias no mar Vermelho e sua indispensável
importância para o Estado da Índia. Por fim, Diogo do Couto expõe a valorização da
intimidação portuguesa sobre as populações do Índico, demonstrando a importância
desta prática para as políticas imperiais.
61 THOMAZ, Luís Filipe F. R. Do cabo Espichel a Macau: vicissitudes do corso português. In: As relações entre a Índia Portuguesa, a Ásia do Sueste e o Extremo Oriente. Actas do VI Seminário Internacional de História Indo-Portuguesa. 1993. p.18 62 COUTO, Diogo do. O Soldado Prático. Lisboa: Ed. Coleção Sá da Costa, 1980. p.152 63 Idem. 64 Ibid., p.153.
23
A questão do corso, mesmo encarnando em si diversos aspectos da “política
oriental”, causava divergências políticas entre os diferentes governantes portugueses
que o Estado da Índia teve ao longo dos anos. Segundo THOMAZ:
Seja como for, a política do Estado da Índia estava assim em contínua tensão entre dois pólos: promover o corso, por forma a assegurar a rentabilidade máxima à carreira da Índia e o máximo de espólio ao erário público; ou combatê-lo, reduzindo-o ao mínimo indispensável, por forma a garantir as relações pacíficas necessárias ao bom curso do comércio regional.65
A proposta adotada por Afonso de Albuquerque, por exemplo, caracterizava-se
como imperialista, pois entendia entendendia a prática do corso como uma estratégia de
guerra e dominação dos muçulmanos. Casos opostos ao de Afonso de Albuquerque são,
por exemplo, os de D. Francisco de Almeida (1505-1509) e de Lopo Soares de
Albergaria (1515-1518) que tinham uma visão mais liberal da prática do corso no
Índico, proporcionando um aumento significativo das receitas reais. Segundo THOMAZ,
esta diferença de visões sobre a pratica se dá pela ociosidade de tropas e frotas na Índia.
No período de grandes conquistas –como foi o caso de Albuquerque –, as frotas eram
amplamente utilizadas para o fim de batalhas. Em períodos de paz mais belicamente
estáveis estas frotas ociosas eram postas a guardar e a caçar embarcações muçulmanas. 66 Sendo assim, a prática do corso português foi neste primeiro período, uma balança de
valores ideológicos e políticos que poderiam variar de acordo com as pretensões
governamentais vigentes no momento.
2.3 A Prática dos Cartazes
O poder exercido pelos portugueses nos mares do Índico era evidenciado, no
século XVI, na prática de emissão de documentos chamados cartazes. Esses
documentos consistiam, segundo Andréa Doré, em
uma espécie de salva-conduto concedido a reinos aliados para que pudessem dispor de um número de navios e de viagens pré-determinado pela Coroa portuguesa. O interesse dos portugueses se fixava, sobretudo, em coibir a ação dos mercadores no mar Arábico, e a fim de impedir que a pimenta seguisse o caminho do Estreito de Meca e chegasse as portas do Mediterrâneo. 67
Essa prática tinha como objetivo principal a vigilância sobre o transporte de
mercadorias por muçulmanos, garantindo, dessa forma, o domínio português sobre o
tráfico de itens de primeira instância – como a pimenta. Ao mesmo tempo, esses “salva-
condutos” coibiam a passagem de mercadores muçulmanos para o Mar Vermelho,
65 THOMAZ, 1993.Op. Cit. p.23 66 Idem. 67 DORÉ, Andréa. Império Sitiado. São Paulo: Alameda, 2009 (no prelo), p.129.
24
atitude que evidenciava os objetivos manuelinos de estrangulamento do Oriente
Próximo.
Esta estratégia portuguesa funcionava ao mesmo tempo como manutenção do
monopólio da rota do Cabo e também como pretexto para a pilhagem dos muçulmanos
que não possuíssem os cartazes. João de Barros, cronista do século XVI, explica o que
ocorria se um mercador estivesse sem o “salva-conduto”:
Quanto à Navegação, foi sempre tam grande a potência de nossas armadas naquelas partes orientais, que por sermos com elas senhores dos seus mares, quem quere navegar, ora seja gentio, ora mouro, pera segura e pacificamente o poder fazer, pede um salvo-conduto aos nossos capitães que lá andam, ao qual eles comumente chamam cartaz; e se este infiel é achado, não sendo dos lugares onde temos fortalezas, ou que estão em nossa amizade, com justo título o podemos tomar de boa guerra.68
Portanto, a posse de um cartaz português era uma garantia de que a embarcação
não seria atacada e pilhada. Por outro lado, a transação de mercadorias sem a devida
autorização portuguesa, era a legitimação necessária para o ataque da embarcação.
Sendo assim, o corso e a política dos cartazes andavam justapostos na mesma coerência
de combate ao infiel, atendendo assim, simultaneamente, aos objetivos de monopólio
das mercadorias via rota do cabo e aos aspectos cruzadisticos de luta contra o inimigo
da fé cristã.
É interessante ressaltar que a palavra cartaz, segundo THOMAZ, é um
neologismo da palavra árabe qirtâs, que significa papel ou documento. 69 O autor expõe
também que essa documentação já se apresentava em diversos reinos árabes, e que fora
levado à Ásia pela expansão do Islã. A diferença principal que THOMAZ destaca entre
esses documentos muçulmanos e os emitidos por portugueses no século XVI é a ênfase
na proibição de circulação de certos itens, como armas e cavalos, por navegadores
mouros.70 Entretanto, a lógica era a mesma: promover a aliança com os portugueses por
meio da concessão desses “salva-condutos” e proibir, no geral, o comércio dos
opositores.
Apesar da obtenção de cartazes pelos mouros ser compreendida como uma
segurança contra as rapinas portuguesas, nem sempre os “salva-condutos” eram
respeitados, como nos denuncia Zinadim, em um manuscrito árabe do século XVI
intitulado “o Mimo do Campeão da Fé”:
68 BARROS, João. Décadas da Ásia. Op. Cit. Primeira Década, Livro IV, Capítulo primeiro. 69 THOMAZ, Luis Filipe F. R. Precedents And Parallels Of The Portuguese Cartaz System. In: The Portuguese, Indian Ocean And European Bridgeheads 1500-1800. Editado por Pius Malekandathil e Jamal Mohammed. 199_, p. 75. 70 Ibid., p.78.
25
A princípio os franges [como eram chamados os portugueses pelas fontes árabes] respeitavam os portadores de seus cartazes e seguro, sem prejudicaram os capitães dos navios que os tinham, a não ser por outros motivos especiais; mas no ano de 1552 em diante, aproximadamente, passaram a dar o cartaz no momento da partida da viagem, mas logo que entravam no alto mar, apresavam-lhes o navio – apesar de estarem munidos dos devidos cartazes – e suas fazendas, matavam os muçulmanos que neles encontravam, e outros mais tripulantes, com requinte de crueldade, quer degolando-os, quer afogando-os, atando-lhes uma corda [ao pescoço], e eram raros os que escapavam dessas atrocidades e não era lançados ao mar.71
Podemos perceber que, apesar da política dos cartazes buscar regulamentar as
práticas de pilhagem, era ainda o aspecto religioso que dominava. E que este era
reconhecido pelas fontes não portuguesas como uma afronta, ou atrocidade.
Essa política seguiu, durante quase todo o século XVI, como uma prática fixa
da tentativa do controlo português no Índico. Segundo Kirti Chandhuri, “A política
portuguesa na Índia Ocidental entre 1515 e 1560 incluía três métodos clássicos de
controlo da expansão naval: a fortaleza e a feitoria, a armada e os cartazes.”72
A questão da quantidade de cartazes expedidos pelos diferentes governantes do
Estado da Índia e do funcionamento desta prática em diferentes momentos e regiões do
Império não será aprofundada neste trabalho. Entretanto, o que nos interessa reter sobre
política dos cartazes é que a partir delas, formulava-se uma legitimação mais
pragmática para as rapinas portuguesas, mesmo que se coninuasse a fundamentar tais
rapinas em questões religiosas.
Ao longo deste capítulo, foram elencadas três questões que legitimavam a
prática do corso português – religiosa, política e econômica. Contudo, não é possível
analizá-las isoladamente. A questão religiosa integra as outras duas, formando o aspecto
ideológico dominante, tanto da “política oriental” iniciada por D.Manuel, como da
manutenção do monopólio lusitano por meio dos cartazes.
Todavia, percebemos que a dominação portuguesa não era plenamente aceita
pelas forças muçulmanas da Ásia. As fontes não-portuguesas, como o relato de
Zinadím, provam que grande parte destas ações de rapina “legitimadas” eram
reconhecidas como tirânicas pelo lado não-cristão da população asiática. O discurso
legitimador apresentado pelas fontes portuguesas se apoiava em uma ideologia
cruzadística cristã, que só tinha sentido para embasar as práticas portuguesas,
considerando todas as formas de rapina sofridas pelos portugueses como ilegítimas ou
piráticas. Sendo assim, a relativização da legitimidade deve ser levada em consideração
71 ZINADÍM, A História dos Portugueses no Malabar. Tradução de David Lopes, Lisboa: Antígona, 1998, p.93. 72 CHAUDHURI, K. L. “O Estabelecimento no Oriente”. Op. Cit., p.179.
26
para a análise das práticas de rapina nos mares do Índico, visto que grande parte das
fontes que tratam sobre o assunto são portuguesas, e, portanto, tendenciosas.
3. AS RAPINAS NO MALABAR 3.1 – Kunjali Marakkar e a sociedade Malabar
A região do Malabar, geograficamente localizada entre monte Delli e o cabo
Comorin – atualmente a região do Querala na Índia –, representou uma região
conturbada ao longo de toda a presença portuguesa no Oriente. Segundo Geneviève
Bouchon, essa região possuía, assim como o todo o Oriente, uma dinâmica própria,
onde sua compreensão é indispensável para o entendimento das relações entre
portugueses e asiáticos. 73
Esta pequena região no sudoeste da península Indo-gangética era dividida em
diversos potentados, os quais eram regidos por lideranças locais, chamados Rajah, que
disputavam entre si a soberania da região. Dentre esses potentados, destacam-se três: a
região de Calicute, cujo líder era chamado de Samorim Rajah (ou simplemente
Samorim); a região de Cochim, localizada ao sul de Calicute; e o reino de Eli, na região
norte, cuja principal cidade era Cananor. 74
Calicute, nos séculos XV e XVI, destacava-se como a grande potência comercial
e militar da região. Grande parte deste sucesso, segundo ZINADIM, deveu-se à união
entre o Samorim e as elites comerciais muçulmanas, que haviam se instalado na região
no século IX.
[...] porém mais poderoso do que eles, e de maior fama, é o samorim, cujo domínio vai de a outro reino; e é grande soberano graças ao favor do islamismo, e ao seu amor pelos muçulmanos, e ao modo liberal como os trata, sobretudo sendo estrangeiros. 75
Estas elites muçulmanas eram divididas, segundo BOUCHON, em Mapillas – os
mouros da terra, que eram em grande parte comerciantes – e Padexis – mouros de Meca,
perseguidos pelos portugueses.76
73 BOUCHON, “L’Ocean Indien à l`époque de Vasco da Gama” Op. Cit., p.71. 74 PANIKKAR, K. M. Malabar and the Portuguese. New Delhi: Ed. Voices of India. 1997, pp. 10 a 14. 75 ZINADÍM, Op. Cit., p. 43. 76 BOUCHON, Geneviève. “Reis e Piratas no Malabar: O Jogo da Guerra Marítima ás Vésperas da Segunda Expansão Européia.” In: DOMINGUES, Francisco Contente; BARRETO, Luís Filipe (Dir.), A Abertura do Mundo – Estudos de História dos Descobrimentos Portugueses, Vol. II, Ed. Presença, Lisboa, 1987, p. 140.
27
A união entre a elite comercial muçulmana e as lideranças locais era relativa,
pois a organização social do Malabar era baseada na separação entre o círculo político e
o econômico. Esta divisão, segundo BOUCHON,
evitava que esses últimos [os comerciantes] tivessem que tomar partido nas lutas dinásticas e territoriais, conferindo a liberdade de assegurar, através das armas, a defesa de seus próprios interesses, sobretudo o que dizia respeito ao domínio marítimo.77
A presença constante dessa elite comercial muçulmana em Calicute, o mais
próspero porto da Índia, foi o aspecto central das desavenças diplomáticas entre esta
cidade e Portugal. No relato de ZINADÍM, constam, até a década de 1580, seis vezes em
que é declarada guerra ente os lusitanos e o Samorim.78 As razões desses conflitos são
variadas, mas sempre remontam ao conflito endêmico, explorados no capítulo anterior,
entre a Cristandade e o Islã.
A pressão portuguesa no Malabar fez as ricas elites comerciantes Mapilla
pegarem em armas e se reunirem com planos secretos para derrotarem os portugueses.
A expulsão dos portugueses de Calicute, em 1524, fez desta coligação um sucesso.
Segundo BOUCHON,
Esta vitória veio reanimar as esperanças das comunidades muçulmanas, que se agruparam por algum tempo ao redor do Samorim. Este concedeu ao seu chefe o título de Cunhale (Kunjali) – o Bem-Amado – sob qual ficaram célebres alguns dos seus capitães. 79 De acordo com BUCHON, é nesse contexto que, pela primeira vez, surge o
personagem Kunjali Marakkar, retratado nas fontes portuguesas como Cunhale Marcá
ou Cutinale Marcá. Esses nomes são utilizados em diversas passagens da crônica
Décadas da Ásia, de autoria de João de Barros e de Diogo do Couto, obra onde é
retratada a história dos portugueses no continente asiático. O nome Kunjali Marakkar,
segundo o autor indiano PANIKKAR, refere-se a um título hereditário de navegadores
muçulmanos que se aliavam às potências do Malabar, principalmente ao Samorim, líder
de Calicute. Ao total, até o final do século XVI, houve quatro gerações de Kunjali
Marakkar, todas citadas pelas fontes portuguesas sob o nome de “Cunhale Marcá”. 80
O nome de Kunjali, sob a grafia de “Cutiale”, é citado pela primeira vez nas
fontes portuguesas por João de Barros, no contexto das negociações com o Samorim
77 Idem. 78 Esses conflitos são encontrados em toda a obra de ZINADÍN. Como exemplo cito o nome do capítulo XI chamado “Paz entre o samorim e os franges pela quinta vez”, e do capítulo XII “Razões da guerra entre o samorim e os franges, e apresto de galés para os combater”, formulando a idéia de que houveram no mínimo seis guerras declaradas entre os lusitanos e o Samorim. Ver ZINADÍM, Op.Cit. 79 BOUCHON, ““Reis e Piratas no Malabar.” Op. Cit., p. 141. 80 PANIKKAR, Op. Cit., p. 136.
28
sobre a região de Panane, local visado pelos portugueses para a construção de uma
feitoria:
E a maior detença que houve foi em dar pendor a alguas naus, no qual tempo ele assentou com Tristão da Cunha que de passada quando se viesse, veria em sua companhia, e dariam em Panane, um lugar del-Rei de Calecute, por ter nova que naquele porto carregavam alguas naus de mouros, em guarda das quais estavam quatro capitães do Samori, de que o principal era um mouro, homem de sua pessoa, per nome Cutiale.81
Nessa passagem de João de Barros percebemos que o “Cutiale” foi visto como
sendo um capitão do Samorim. Essa perspectiva de associar o personagem a uma
patente militar ocorre mais de uma vez, sendo observada também na segunda Década.
Entretanto, na quarta Década, há uma mudança no nome de Kunjali, tanto na grafia
quanto na denominação que lhe é dada:
Antes que o Governador partisse para Dio, deixou Manuel de Sousa em guarda da costa do Malavar, da qual, por pouca vigia dos nossos, saiu de Panane Cunhale Marcar, mouro cossairo, sobrinho de Pate Marcar, com oito fustas bem armadas; e navegando para Coromandel, no Cabo de Comori achou de noute surto um bargantim nosso com um falcão e seis berços, em que havia dezoito portugueses e três bombardeiros, e saía de Coulão a dar guarda às naus dos mercadores daquela terra, que vinham carregadas de arroz.82
Neste trecho das Décadas, podemos perceber que “Cunhale Marcá” é referido
como um “mouro cossairo”, e não mais como um capitão do Samorim. Essa nova
denominação – de corsário – será perene nos escritos de Diogo do Couto, cronista que
continuou as Décadas de João de Barros.
A história dos personagens da dinastia de Kunjali é, de acordo com historiador
indiano PANIKKAR, retratada juntamente com a narrativa das diversas desavenças
diplomáticas entre portugueses e o Samorim de Calicute. Tais desavenças foram
comuns durante todo o século XVI.83
Segundo BOUCHON, a segunda metade do século XVI marca o início de diversas
batalhas internas entre os Rajás hindus, assim como os conflitos desses reinos malabares
com os grandes reinos do interior: Bisnaga (1565) e Guzerate (1572). 84 Este momento
bélico, que envolvia hindus, muçulmanos e cristãos, é chamado pela historiografia
especializada de “Guerra do Malabar”, retratada principalmente pelas crônicas de
Zinadím.85
É neste momento que, segundo BUCHON, 81 BARROS, Op. Cit. Segunda Década, Livro I, Capítulo VI. 82 Ibid., Quarta Década, Livro IV, Capítulo XXV. 83 PANIKKAR, Op. Cit. A questão das guerras entre Calicute e os portugueses é abordada nos três primeiros capítulos do livro. 84 BOUCHON, “Reis e Piratas no Malabar” Op. Cit., p.142 85 Ibid., p.144.
29
os cronistas lusitanos qualificaram de acto de pirataria qualquer operação dirigida contra os portugueses [...]. Ao disputar aos portugueses o domínio do oceano Índico, os chefes Mapilla encontravam ocasião para emanciparem da tutela dos reis. As tentativas de independência são bastante significativas sob este ponto de vista.86
Durante a Guerra do Malabar, os portugueses, para forçar os acordos de paz com
Calicute, bloqueavam os portos da cidade. Essa medida fazia com que os suprimentos
não chegassem à cidade, o que estimulava a população a pressionar o Samorim para a
negociação da paz com os portugueses. Entretanto, ao mesmo tempo em que uma
parcela da população pressionava o Samorim, outra parcela, principalmente as
comunidades muçulmanas, procurava uma maneira de revidar a ameaça lusitana. É
nessa conjuntura que Kunjali Marakkar se sobressai como um líder muçulmano,
exercendo uma autoridade paralela à do Samorim. 87
A construção de uma cidadela fortificada na foz do rio Pudepatão por Kunjali
aumentou seu poder. É a partir desse momento específico, que o navegador muçulmano
passou a disputar a hegemonia local com seu antigo protetor, o Samorim. No final do
século XVI, Kunjali atingiu o máximo do desrespeito com Samorim, segundo Diogo do
Couto:
Já ElRey, seu tio a quem o Çamorin succedeo, estava tão escandalizado das coisas do Cunhale que, antes que moresse lhe disse que se queria reinar em paz, havia de fazer duas cousas: a primeira era ser sempre amigo dos Portugueses; e a outra era destruir o Cunhale, porque por tempos não lhe viesse a tomar o reino, a se fazer senhor do Malabar.[...] Succederam este ano estas duas cosas: huma cortar este tyranno o rabo ou a orelha a num elefante, em que ElRey costumava cavalgar [...] a outra foi cortarem huns Mouros o membro genital a hum Naire, e metterem-lho na boca, que he a maior abominação que se podia fazer a esta casta. [...] E juntou-se mais a isto, haver anos que não lhe pagava os quintos das presas que suas armadas faziam[...] E sobre tudo ter tomado tamanho brio, que se intitulava Rey dos Mouros do Malabar, e Senhor de toda o mar da Índia [...]88
Em 1595, Kunjali Marakkar, o quarto da dinastia, assume a liderança marítima
da frota naval construída a partir das rapinas dos mares do Malabar. Com a resistência
portuguesa enfraquecida pelas guerras do Malabar, Kunjali se torna mais eficaz e
poderoso que seu predecessor, causando severos danos a diversas comunidades da
região. Essas razões foram suficientes para que o Samorim de Calicute procurasse os
portugueses, a fim de criar uma aliança contra o Kunjali. É iniciada a “empresa do
Cunhale”, título dado por Diogo do Couto à caça ao “cossario”, retratada em vários
86 Idem. 87 Ibid. p.145. 88COUTO, Diogo do. Décadas da Ásia. Op. Cit. Década XII, Livro I, Capitulo XVIII.
30
capítulos da Década XII.89 O poder do personagem era tanto, que foram necessárias
duas investidas dos portugueses e indianos para cercar sua fortaleza e obrigá-lo a se
entregar.
Diogo do Couto narra como foi dada a sentença após a captura, em 1598, desse
personagem: “mas tanto que se foi achando melhor, mandando os Desembargadores,
que verbalmente sentenciassem a morte Cunhale por levantado a seu Rey e senhor
natural, e por pirata inimigos de Christãos.”90
É neste momento que ocorre a passagem da caracterização do personagem, de
“cossario” para a categoria de “pirata inimigo de Christãos”. Kunjali é então decapitado
em Goa, e seus membros espalhados em diversas praças portuguesas. Esta versão dos
fatos está de acordo com a leitura direta das fontes portuguesas, as quais, segundo
BOUCHON, depreciavam todos os personagens que se opusessem ao Império
Português.91
3.2 As outras visões sobre do caso de Kunjali Marakkar A utilização dos termos corsário e pirata na caracterização do personagem
Kunjali Marakkar reflete a intenção dos cronistas portugueses em depreciar a imagem
daquele personagem, citado como “traidor” e “pirata”.
Entretanto, a historiografia produzida por PANIKKAR, revela uma outra visão
sobre o personagem que, ao contrário da visão portuguesa, enaltece-o como um herói
que lutava contra a tirania portuguesa. O próprio autor faz uma análise sobre a
historiografia portuguesa e sobre a utilização do termo pirata para a definição do
personagem:
É de praxe que escritores europeus, seguindo os historiadores portugueses, chamem-no de ‘pirata’. Os portugueses davam estas denominações porque alegavam que somente eles tinham o direito de navegar nos mares em virtude do título que o Rei de Portugal se auto proclamava. Para eles, qualquer pessoa que questionasse seus direitos nos mares era considerado pirata. [...] É somente por isso que os Kunjali`s são considerados ‘piratas’. Eles eram almirantes do Samorim. Eles ganharam sua terra e sua autoridade dele, e sob ele. Até o título Kunjali Marakkar foi concebido por ele. Eles detinham uma posição de prestigio igual aos lideres Naires. Eles pagavam impostos ao Samorim e recebiam suas ordens; como os Portugueses descobriram. Chamar um oponente de ‘pirata’ pode ser uma maneira fácil de descreditá-lo; mas uma família de gerações de comandantes navais, que lutaram com sucesso contra os portugueses durante um século sob ordens de seu Rei, não pode ser desprezada de maneira sumária. 92
89 Dos sessenta e três capítulos contidos na década XII de Diogo do Couto, dezessete capítulos tratam sobre a “empresa do Cunhale”, desde sua traição ao Samorim, das negociações feitas na aliança entre Calicute e os Portugueses, a narrativa dos ataques e da sentença do personagem. 90 COUTO, Diogo do. Décadas da Ásia. Op. Cit. Década XII, Livro IV, Capítulo XI. 91 BOUCHON, Reis e Piratas no Malabar… p. 142. 92 PANIKKAR, Op. cit., (tradução livre) p. 143.
31
Como vimos anteriormente, apresentava-se nos relatos lusitanos um discurso de
pertencimento dos mares aos portugueses. Tal premissa era legitimada por uma série de
questões religiosas, que incluíam bulas papais e tratados marítimos. Sendo assim, a
tendenciosidade das fontes portuguesas partia do princípio de que todos que não
respeitassem esse direito fossem infratores ou, neste caso, piratas.
São diversos os argumentos que podem ser levados em consideração para
contrapor a visão portuguesa sobre o caso de Kunjali. PANIKKAR levanta a importância
da compreensão do contexto no qual os personagens estão inseridos para o
entendimento de suas atitudes. A questão da permanência da dinastia dos Kunjalis,
durante quase um século, sob a tutela do Samorim e a estranha e rápida ruptura Kunjali
IV e seu protetor não são problematizadas pela historiografia, provavelmente pela falta
de fontes asiáticas relacionadas ao objeto. BUCHON, apesar de aceitar a denominação de
Kunjali como um pirata, denuncia diversos aspectos conjunturais que devem ser
levados em consideração, como a guerra do Malabar, os atritos internos entre as
potências da região – principalmente entre Calicute e Cochim –, a pressão portuguesa
sobre a figura do Samorim e a própria distinção entre as comunidades muçulmana e
hindu. 93
Seguindo a linha de PANIKKAR, o contexto da traição de Kunjali IV ao seu
soberano, o Samorim – denunciada pelas fontes portuguesas – pode ser relativisado. A
aliança entre o Samorim e os portugueses, feita em 1597,94 pode ser interpretada,
hipoteticamente, como uma traição do Samorim a toda a comunidade muçulmana, pois
esta continuava a sofrer com os ataques portugueses, independentemente dos acordos
diplomáticos. A ascensão do Kunjali como liderança muçulmana regional pode
caracterizar uma cisão entre as políticas hindus do Samorim e as políticas muçulmanas,
que outrora representavam uma relação de simbiose de mútua proteção. Entretanto, a
escassez de fontes asiáticas não nos permite confirmar tal hipótese. Mas outras, como o
manuscrito de ZÍNADIM, podem dar pistas para uma interpretação muçulmana sobre o
caso.
ZINADÍM, cronista muçulmano, produz um manuscrito árabe, no século XVI, no
qual descreve a visão muçulmana sobre a região do Malabar. Em determinado trecho de
93 BOUCHON, Op. Cit., 142-145. 94 PANIKKAR, OP. Cit., p.140 -141.
32
seu relato, o autor expõe algumas atitudes portuguesas em relação à região de Calicute e
as repercussões destas ações sobre a comunidade muçulmana:
Em seguida, na monção de 1582 ou 1583, os franges recrudesceram nos seus ataques contra os súditos do Samorim, moradores de Calicut, Porto Novo, Capacate, Pandarne, Tiracole, e Panane, e prosseguiram suas hostilidades até o fim da monção; o comércio dos muçulmanos definhou até mesmo com as povoações vizinhas, e o Samorim deixou de receber arroz de Tolinade; daí uma grande fome, como nunca houvera nos sobreditos portos. [...] Os franges continuaram a apresar os navios e galés, e a situação tornou-se intolerável. Queira Deus, nosso Senhor, fazer sair desta cidade os opressores dos seus moradores; dá-nos da tua parte um protetor; dá-nos um defensor.95
O relato de ZINADIM nos possibilita compreender o quanto era prejudicada a
comunidade muçulmana pelos ataques portugueses. Tanto o é que, ao final deste
trecho, ZINADÍM clama por um protetor, um defensor ou mesmo um representante da
causa muçulmana.
Não pretendo aqui argumentar que Kunjali Marakkar tenha assumido a posição
de herói da comunidade muçulmana, ou mesmo que tal personagem tenha sido
inspirado pelos escritos de ZINADÍM – até mesmo porque não se sabe ao certo o quanto
sua obra foi divulgada no período em que foi escrita. No entanto, é visível no relato de
ZÍNADIM a falta de um representante dos interesses muçulmanos na costa do Malabar.
PANIKKAR, por sua vez, ao final do seu capítulo destinado à descrição da “Queda
dos Kunjalis”, expõe, em tom de heroísmo, a epopéia realizada por esses quatro
personagens, os quais representaram, segundo ele, uma resistência contra a tirânica
dominação portuguesa.
Não há dúvidas que as vidas destes Chefes refletem a glória e a honra de todo o Malabar; suas memórias contra a tirânica frota naval Portuguesa, marcam sem dúvida um grande capítulo na história do Malabar.96
Não é o objetivo deste capítulo absolver o personagem, nem mesmo caracterizá-
lo como “pirata”, “corsário” ou mesmo “herói” do Malabar. A questão que procuro
promover aqui é a relativização das fontes portuguesas, que muitas vezes são os únicos
recursos utilizados por historiadores para retratar a história do Malabar. Essa
perspectiva de relativizar as fontes portuguesas e abordar fontes asiáticas para uma
melhor compreensão da história da Ásia já é reconhecida na historiografia pelos nomes
de Geneviève Buchon e Luis Filipe Thomaz. No entanto, tomando como objeto o caso o
caso de Kunjali, pudemos perceber que tal perspectiva historiográfica ainda está em fase
de desenvolvimento, pois muitos aspectos ainda devem ser esclarecidos.
95 ZINADÍM, Op. Cit. p. 107. 96 PANIKKAR, Op. Cit. p.146.
33
3.3 A utilização do termo pirata pelos cronistas portugueses O termo ‘pirata’ é utilizado duas vezes pelo cronista português Diogo do Couto.
Ambas as utilizações do termo aparecem na descrição do julgamento do personagem
Kunjali Marakkar IV, que ocorreu no final do século XVI. A caracterização dos seus
antecessores foi igualmente exposta nas Décadas da Ásia, mas nem sempre relacionada
com o termo ‘pirata’. Como já mencionado, João de Barros, primeiro cronista a se
dedicar a escrever a história dos portugueses no Oriente, inicia as Décadas da Ásia.
BARROS é o primeiro cronista oficial que cita um personagem da dinastia dos Marakkar.
Segundo este cronista, Kunjali – citado como “Cutiale” – era um dos “quatro capitães
do Samori, de que o principal era um mouro, homem de sua pessoa, per nome
Cutiale”97. Após a escrita de duas Décadas, João de Barros é substituído por Diogo do
Couto, o qual iniciou seus trabalhos como guarda-mor da Torre do Tombo, em Goa, em
1595. COUTO escreve nove Décadas, das quais a última, a Décima Segunda, trata da
“Empresa do Cunhale” – nova grafia de Kunjali Marakkar –, sendo este o Kunjali IV.
Diogo do Couto, ao contrário de João de Barros, denomina Kunjali de “mouro
cossario”98. É interessante ressaltar que não há um motivo evidente sobre a mudança de
denominação de Kunjali, que passou de capitão para corsário. Entretanto, é provável
que, pelo período que Diogo do Couto esteve como guarda-mor da Torre do Tombo –
para onde convergia toda a documentação referente ao Estado da Índia –, o cronista teve
tempo de estudar o caso e buscar compreender a relação do personagem com o Samorim
de Calicute. Percebe-se que Diogo do Couto revela conhecer o conceito de corso, no
qual um personagem, munido de legitimidade de uma autoridade – no caso o Samorim –
realiza práticas de rapina repassando parte dos lucros ao seu soberano. 99 Entretanto,
com base na discussão feita no primeiro capítulo, cremos que, apesar do conceito de
corso ser aplicado à situação do Samorim com os Kunjalis, esse termo não existia na
Índia; ele foi criado em um contexto mediterrânico-medieval – século XII – e, portanto,
só pode ser compreendido claramente por europeus.
No relato de ZINADÍM, podemos perceber que, apesar do autor citar Cunhale, ele
não o denomina como corsário nem como capitão:
Neste ano [1524] os moradores de Darmapatam, Iracole, Cananor, Tirungar, Eli e Chombá, acordaram na resistência e guerra a fazer aos franges. Igualmente neste ano alguns principais de
97 BARROS, João. Op. Cit. Segunda Década, Livro I, Capítulo VI. 98 COUTO, Diogo do. Op. Cit. Quarta Década, Livro IV, Capítulo XXV. 99 A discussão sobre o termo é feita no primeiro capítulo.
34
Cochim, entre os quais Ahmede Mercar, e seu irmão Cunhale Mercar, e seu tão materno Mohamede Ali Mercar e seus partidários quiseram combater contra os franges, e para isso saíram de Cochim e juntaram-se aos correligionários de Calicut.100
Mais uma mudança em relação à denominação de Kunjali ocorre no final da
“empresa do Cunhale”, narrada por Diogo do Couto. De “cossario” o personagem passa
à categoria de “pirata”. Esta mudança pode ser explicada pela transformação das
relações no período: após a aliança do Samorim com os portugueses Kunjali tornava-se,
aos olhos portugueses, um pirata autóctone, inimigo de todas as lideranças locais. 101
Assim como o termo “cossario”, o termo “pirata” também traduz uma série de
significados construídos ocidentalmente, que foram adotados para a caracterização do
Kunjali segundo a interpretação da autoria portuguesa.
Segundo BOUCHON, na Índia, especificamente no Malabar, havia uma dinâmica
própria onde a questão política – pertencente às castas hindus – era separada da questão
comercial – dominada pelos muçulmanos. 102 A relação entre Kunjali e o Samorim foi,
portanto, um vínculo diferente do que se teve entre soberanos e corsários europeus.
As relações entre os líderes locais do Malabar com os líderes muçulmanos eram
passíveis de mudanças de autoridade protetora, diferentemente da teoria corsária
européia, a qual não presume que um corsário vá trocar livremente de soberano. A razão
da mudança de protetores é ainda um mistério para a historiografia, entretanto, pode-se
supor que a aliança do Rajá de Cochim com os portugueses, já nos primeiros anos da
presença lusitana no Oriente, tenha ocasionado a saída de Kunjali para paragens menos
associadas com os portugueses, como foi o caso de Calicute.
Outro ponto interessante para contrapor o corso europeu com a dinâmica social
asiática é questão de uma legitimação, seja ela na forma de acordo, legislação ou mesmo
ideológica – como era no caso português. O caso asiático não possui legislação, nem
mesmo um soberano fixo, tornando difícil a utilização do termo corso para determinar
essa peculiar relação asiática de rapina.
Dessa medida, podemos refletir sobre a tradução das dinâmicas sociais asiáticas
pelos olhos ocidentais lusitanos, que na forma de crônicas, ou relatos de viagem,
expuseram com suas palavras os ocorridos nas regiões mais remotas do Império.
Segundo Stephen Greenblatt, os relatos de viagem eram permeados de “representações”,
ou seja, filtragens dos acontecimentos por olhos ocidentais que produziam uma
100 ZINADIM, Op. Cit., p.70, 71. 101 GUERREIRO, Op. Cit. p.146 102 BOUCHON, “Reis e Piratas no Malabar”, Op. Cit, p.140.
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representação que, de acordo com a autoria, explicava os fatos ou objetos utilizando-se
do aparato intelectual reconhecido por sua “comunidade discursiva”103. 104 Apesar de
GREENBLATT tratar de relatos de viagem, nos quais a utilização da visão é um aspecto
importante, a teoria de “representação” exposta por este autor pode também ser utilizada
na retratação dos cronistas do Império.
De forma semelhante, Roger Chartier coloca o termo “representação” como uma
relação entre uma imagem presente e um objeto ausente, uma valendo pelo outro porque lhe é homóloga [...] por um lado, a representação faz ver uma ausência, o que supõe uma distinção clara entre o que representa e o que é representado; de outro, é a apresentação de uma presença, a apresentação pública de uma coisa ou de uma pessoa.105 Diogo do Couto, apesar de não ter tido contato visual com grande parte dos
feitos que narra, traduz, na construção de uma “história verdadeira”, os relatos de
pessoas e documentos que chegavam a ele. Dessa forma, ele conduzia um discurso
oficial, voltado a um público português, utilizando-se de termos, como pirata, para
traduzir a complexa dinâmica asiática. Sendo assim, o personagem Kunjali era, sob a
ótica portuguesa, um pirata. Mas isso não significa que a ótica asiática o via também
desta maneira. Como já mencionado, a falta de fontes nos impede de inferir conclusões
definitivas sobre o caso de Kunjali, entretanto, isto não nos impede de problematizar a
questão.
Diversos aspectos da história do Império Português são analisados
exclusivamente sob a ótica lusitana, devido a grande disponibilidade de fontes
portuguesas sobre o período. Entretanto, a recente historiografia procura problematizar
as questões referentes à história da Ásia, buscando em fontes orientais outros recursos
para a compreensão da dinâmica asiática. Dessa medida, a explanação feita a partir de
fontes não portuguesas sobre o caso da caracterização de Kunjali Marakkar, reflete a
relativização do discurso lusitano. A denominação do personagem como pirata por
Diogo do Couto explicita que as mudanças conjunturais do período e as relações entre
os portugueses e os lideres locais – como o Samorim –, influenciavam no discurso
oficial.
103 O termo comunidade discursiva não é utilizado por Greenblatt, mas é mencionado e explicado por Maingueneau na suas considerações acerca da análise de discurso. Neste caso a “comunidade discursiva” seria o público português do século XVI. Ver MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em Análise do Discurso. Campinas, SP: Pontes, 1989. 104 GREENBLATT, Stephen. Possessões Maravilhosas. São Paulo : Edusp, 1996. Apud. DORÉ, Andréa. Op. Cit. p.107. 105 CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estud. av. [on-line]. 1991, vol.5, n.11, pp. 173-191.
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Sendo assim, aceitar cruamente o discurso de Diogo do Couto significa ignorar
toda a lógica da dinâmica social asiática – discutida principalmente nos textos de
Geneviève Bouchon e Sanjay Subrahmanyam–, substituindo-a por um modelo
explicativo construído ocidentalmente que, não necessariamente, traduz a lógica das
relações asiáticas entre as comunidades muçulmanas marítimas mercantis com as
lideranças locais hindus.
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CONCLUSÃO
As conclusões que se chegam a partir da análise do caso de Kunjali Marakkar
são poucas em relação a grande quantidade e questões que ele levanta. A discussão gira
em torno de novas interpretações sobre a presença lusitana no meio asiático e significa a
ampliação da abordagem que vem sendo construída por diversos autores europeus e
asiáticos.
A linha de pesquisa produzida por Geniviève Bouchon, assim como as
contribuições historiográficas de Luis Filipe Thomaz e Sanjay Subramahnyam, revelam
que é de suma importância conhecer a lógica asiática para se compreender as ações
portuguesas nesse meio. Para tal interpretação é sumária a utilização de fontes asiáticas,
que formam um contraponto às fontes portuguesas – utilizadas durante anos pela
historiografia como único relato sobre a presença portuguesa no Oriente.
O caso de Kunjali Marakkar forneceu um bom exemplo disto. A utilização dos
termos pirata e “cossário” utilizadas por Diogo do Couto em diferentes ocasiões,
demonstram a necessidade da mudança do discurso diante de uma significativa
mudança de conjuntura. No caso essa mudança foi relativa às positivas negociações
diplomáticas entre lusitanos e o líder de Calicute, o Samorim, no final do século XVI. A
crônica de Diogo do Couto – Décadas da Ásia – apresenta portanto uma visão parcial e
tendenciosa das práticas de rapina no ambiente do Malabar do século XVI, que,
obviamente a favor dos portugueses, interpreta que tal personagem era um traidor
inimigos não só dos cristãos mas de todos os nativos do Malabar.
Por outro lado, ZINADÍM – sendo uma fonte árabe do mesmo período – revela o
lado pouco divulgado da presença portuguesa: a tirania dos ataques legitimados pelas
ideologias religiosas e imperiais, voltado, principalmente sobre a comunidade
muçulmana. Tal relato, apesar de não se referir diretamente a Kunjali, descreve a
necessidade de uma liderança para atender os interesses muçulmanos, revelando assim,
que a presença de lideranças locais, tais como Kunjali eram reflexos da opressão
portuguesa nos mares do Malabar. De uma mesma maneira, a historiografia indiana
representada por PANIKKAR revela que tal personagem, caracterizado como um pirata
traidor para a historiografia lusitana, é compreendido como um herói na região símbolo
da resistência muçulmana aos portugueses.
Sendo assim, a dualidade de interpretações e a falta de acesso a fontes asiáticas
sobre o personagem nos impedem de tirar qualquer tipo de conclusão a respeito do
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personagem ou mesmo de sua importância na sociedade Malabar. Entretanto a
qualificação portuguesa de Diogo do Couto merece algumas considerações: A
adaptação dos conceitos de corso e pirataria pelo cronista português refletem uma
representação ocidental da dinâmica asiática, que não necessariamente reflete o
verdadeiro significado do personagem dentro da sociedade do Malabar. Ou seja, aceitar
a denominação de Kunjali Marakkar de corsário, ou mesmo pirata, significa ignorar
toda uma dinâmica própria da sociedade asiática.
Sendo assim, podemos concluir que a análise da denominação feita por Diogo do
Couto representa uma visão ou uma interpretação portuguesa que procurava traduzir a
complexa dinâmica social oriental. Essa denominação não pode ser repercutida pela
historiografia sem uma problematizarão sobre a dinâmica social da relação entre
comunidades cristãs, islâmicas e hindus, existentes na região do Malabar.
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