O CASO E. Eu não consigo nem fazer um dia inteiro... Apresentação de pacientes – passagem ao ato – clínica lacaniana –psicose ordinária

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  • 7/30/2019 O CASO E. Eu no consigo nem fazer um dia inteiro... Apresentao de pacientes passagem ao ato clnica laca

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    O CASO E.

    Eu no consigo nem fazer um d ia inteiro...

    Apresenta o de pac ientes pa ssag em ao a to clnic a lac aniana

    psicose ord inria

    Carmen Silvia Ce rvelatti

    A construo deste caso foi provocada por uma apresentaode pacientes, feita por Sandra Grostein no Hospital do Servidor Pblicodo Estado d e So Paulo, em a tividade c onjunta c om a Se o Clnicada CLIPP Clnica lacaniana de atendimento e pesquisas empsicanlise. Posteriormente, na discusso do caso, trabalhamos

    principalmente a questo do diagnstico, associada passagem aoa to. Este traba lho tamb m inc lui, alm da entrevista e d a d iscusso d ocaso, as primeiras entrevistas preliminares, pois a paciente foiencaminhada pelo Hospital para ser atendida por uma psicanalista daSeo Clnica 1, Perptua Medrado Gonalves. Este texto foi elaboradoa partir das discusses deste caso no Ncleo de Pesquisas da SeoClnica.

    Estou c hegand o no limite

    E. tem 26 anos, func ion ria pblic a e estava de lic en a md ic ana ocasio da entrevista de Apresentao de pacientes. Foi internadameses antes e depois era atendida semanalmente no ambulatrio doHospital. Anos antes houve outra internao, as duas por tentativa desuicdio.

    No incio da entrevista disse se sentir diferente das outras pessoas,achava difcil ao namorado agentar a labilidade de seus estados:cada hora eu t de um jeito. Falo muito, choro muito. um excesso.Com o dec orrer da entrevista fic ou evidenc iad a a po ssibilidad e deuma nova p assag em a o a to: nas duas vezes eu c heg uei no limite , estou

    chegando de novo. Questionada sobre o que era chegar ao limite,respond eu d e a lgum as ma neiras:

    - c hega uma hora que o s pensam entos toma m c onta ... come aa fazer parte dos meus dias, dos meus minutos, extremamente

    1A Seo Clnica da CLIPP constituda por uma rede de psicanalistas que atendetod os os pa c ientes que a proc uram , dand o p referncia a os de ba ixa rend a ,encaminhados por instituies pblicas. Possui as atividades de Apresentao dePacientes, Discusso dos casos da Apresentao de Pacientes, Discusso clnica decasos e Discusso terica sobre a clnica. Alm disso, conta com um Ncleo de

    Pesquisas, coordenado por Carmen Silvia Cervelatti, que acolhe as questes dospa rtic ipa ntes, referentes c lnic a psic ana ltic a de orienta o lac aniana .

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    obsessivo... Arrumar a casa, sair de casa para mim horrvel... Notrab alho fic ava horas me pe rguntando po rque tinha q ue fazer naq uelaseq nc ia , e no fa zia . s vezes a minha d ireto ra dava um g rito c om igoou p ed ia p ara eu fazer outra c oisa e a eu sa ia d aquilo.

    - desistir, desistir de tentar, desistir de fazer esforo ... Por isso

    acho q ue o nico jeito m orrendo ... no tem escap atria.

    O encontro c om a psica nlise

    como se estivesse tudo classificado em frases... que no sominhas... que eu escutei... No loucura... so frases que eu escutei.So frases que fic am em sua c abe a e rea parec em insistenteme nte e omod o c omo funcionam ac ab aram po r c onduzi-la pa ssag em a o a to.A p siquia tra do Hosp ita l ped iu que esc revesse uma frase p ara c ada d ia .

    Nesta entrevista, a paciente mostrou como sua vida consistia

    numa srie de frac assos, imp otnc ias e desistnc ias. Consideramo s quea insero d o pe dido da psiquiatra no d ec orrer de sua fala, ao mesmotempo quer dizer do sintoma e aponta a um espao de construopossvel, quando analisamos a entrevista como um todo. Para introduzira direo do tratamento e a questo central deste trabalho,rep rod uzimos aqui o com entrio de Yasmine Grasser2 na Conveno d eAntibes: o analista deve restituir ao p sic tico a lg ic a de sua inven o,o que alarga um pouco o circuito, evita-lhe as passagens ao ato epermite-lhe entra r finalmente num la o soc ia l .

    Ao fina l da entrevista , dep ois de esc uta r a p ac iente e a ma neira

    c omo ordenou seu disc urso, a ana lista d a Ap resenta o de pac ienteslhe prop s a c onstru o de estrias c om a s frases, aprop riando-sedelas. Foi uma aposta : ao esc rever, ao d ar um sentido a o que estsolto, encadeando frases em uma estria, poderia aparecer algo desimb lico e de pa rticula r desse sujeito .

    Acreditamos que esta proposta acarretou efeitos que semostraram importantes frente possibilidade da passagem ao ato.Primeiramente, a paciente prontamente acolheu o encaminhamentopara a CLIPP.

    Na primeira entrevista, agora com a analista da Seo Clnica,

    ela comenta que h momentos em que est bem, e em outros no.Tem dia q ue funciono b em e em outros no . Ca da vez me d o umdiagnstico, nesses quatro anos que fao tratamento (inclusivepsicoterapias). O Dr. A. d isse q ue a suspeita d iagnstica d e Distrbiodo Humo r e d a Afetividade. No mesmo d ia me sinto a leg re e triste. Ma sno me encaixo no diagnstico de PMD. A pac iente tinha c rises dec horo, chorava muito e vomitava, tanto em c asa c omo no trab alho. Agota d g ua foi que emp restei o c arro p ara o c unhad o e ele c ap otou.

    2 MILLER, J.-A. [et al.]. La psicosis ordinaria: la convencin de Antibes. Buenos Aires:Paids, 2003, p. 310.

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    Me senti responsvel. Meu pai fala que arma e carro no se empresta,mata.

    Depois de algumas entrevistas, E. chegou ao consultrio com ame e um papel contendo uma lista de prioridades acrescida deaes, por sinal bastante lgicas, que deveria empreender para

    solucionar seus problemas e dificuldades de organizar-se na vida.Entregou o papel ana lista e p ed iu pa ra incluir a m e nas suas sesse s.A a nalista ac olheu sua d emand a e a pa c iente c onfessou uma mentira:que estava junto no acidente ocorrido com o cunhado. Ao agir destamaneira, ela havia desobedecido ao dito do pai: carro uma arma,no se emp resta .

    importante salientar que para E. os ditos do pai tm valor deverda de toda 3, dentre eles destac amo s: Voc no pod e andar com a sp rp rias pernas; O q ue e la tem PMD, igua l a v; Ela no va i terminara faculdade, etc. Ela disse: Eu tenho um problema muito srio com o

    meu pai, o que ele fala eu no consigo afastar de mim ... o que asoutras pessoas falam tambm, mas o que ele fala machuca. Ela noconsegue se livrar das sentenas e a pessoa do pai uma presenaconstante. Muitas das coisas que fez ou tentou fazer foram ora paraafirmar, ora para denegar suas frases, modo este caracterstico daneurose histrica; porm so frases-mandamento, mostram-seabsolutamente verdadeiras, dizem o que ela mas no funcionamcomo significante-mestre.

    Pendurada no Outro

    Na clnica borromeana, do Outro que no existe, nem sempre seconsegue um sim ou no para a psicose ou para a neurose, as classesso contnuas, prevalecendo o mais ou menos 4. Nos defrontamoscom pacientes nos quais localizamos algo de psictico, ora parecemneurticos e ora parecem psicticos, assim se apresentam os casos depsico ses ordinrias, tal qua l propom os o d iagnstico de E.. H um Outroconstitudo em muitas situaes de sua vida, contudo acaba pormostrar-se insuficiente. No momento mesmo da passagem ao ato huma excluso, um corte radical do Outro, diferentemente do acting-

    out. O ato, para Lacan, est no lugar de um dizer e na passagem aoato se abandonam os equvocos do pensamento, da palavra e dalinguagem pelo ato, assim como a toda dialtica de reconhecimento;

    3 Cf M iller, J.-A. Prod uzir o sujeito? in Ma tem as 1. Rio d e Jane iro: Jorge Zaha r Ed ., 1996,p. 158: Enquanto resposta do real um dito pelo qual o sujeito se deduz -, o dito nosujeito psictico tem a caracterstica de dizer a verdade toda, ou seja, um-saber cuja

    nica sa da reto m -lo p a ra si.4 Cf Miller, J.-A in MILLER, J.-A. [et al.]. La psicosis ordinaria: la convencin de Antibes.Bueno s Aires: Pa ids, 2003, p. 202.

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    cria uma situao sem sada a respeito do Outro. [...] No corao dequa lquer ato h um no !. Um no proferido ao Outro. 5

    A favor do diagnstico de E. como um caso inclassificvel ou depsic ose o rdinria, a c resc entamos a no identificao d e um momentoem sua vida que institusse um antes e um depois, como acontece no

    desenc ad ea mento . Trata -se m uito m ais de enga nche-de senga nche doOutro.

    Quanto aos casos inclassificveis: Ficar pendurado no Outro suficiente para lhes permitir identificaes aos modelos sociais quedependem do funcionamento edipiano. Isto porm no basta parajustifica r um a neurose e por isso t il p render-se aos nfimos deta lhesc lnicos que podem c hama r a a ten o pa ra o lado da p sic ose. Essesdetalhes no concernem os distrbios de linguagem, mas os efeitosclnicos a mnimade a lgo destoa nte na a ma rra o RSI 6 .

    As crises, que culminaram em tentativa de suicdio e internao,

    aconteceram num movimento constante e crescente, paralisando-a,deixando-a s c om seus pensamentos, ob sessivame nte c om as frases, amerc da angstia. Frente paralisia, uma ao impulsiva praticadac omo tenta tiva e xtrema p ara sa ir das garras do imperativo do pensar.

    Ela se desorganiza nas tarefas cotidianas (no trabalho, na casa,na higiene). Por vezes, uma atitude ou outra cumpre a funo deestabelecer um c erto limite, como o g rito d e sua Direto ra , por exemplo;porm, a eficcia dura pouco, denotando uma dificuldade de algofuncionar verdadeiramente como um ponto de basta, evidncia deuma debilidade na estrutura. O nico limite est na tentativa de

    suicdio: nas duas vezes eu c heg uei no limite , o nico jeito mo rrend o.Tamb m busc ou a poios: nos d itos do p a i, na fac uldade, no

    trab alho, na m e, no namorad o e numa em pregad a; ab and onando -osem seguida , sempre com a frase Com o uma mo a d e vinte e seis anosprec isa de muleta ?.

    O escrito de suas prioridades, que ela entregou analista, mostraa necessidade da materialidade, da concretude. Nos momentos foradas c rises, ela a ssume ta refa s no c ot idiano , se relac iona c om as pessoa scomo todo mundo faz. H algum limite, h alguma barreira ao gozodevastador mas parece no possuir valor flico, pois se perde,

    provisrio. Se nada a protege, tem que ser concreto, tem que ser daordem da c oisa mesma e d o a gir, no do simb lico.

    Sua demanda de alvio de sofrimento residiu em conseguir fazerum dia inteiro: eu no consigo fazer nem um dia inteiro, quanto maisuma faculdade [veja o dito do pai]. Por vezes, atividades simples doc otidiano so fonte d e g rand e sofrimento :

    De porque em porque, eu no saio do lugar. Por exemplo, s vezes euno conseguia tomar banho porque ficava perguntando porque eu ia tomar

    5 MILLER, J.-A. Jacques Lacan: observaciones sobre su concepto de pasaje al acto,

    in Infortunios del ac to analtico. Buenos Aires: Atuel, 1993, p. 47.6 Forbe s, J. (org). Ca sos raros, inc lassific veis da c lnica psica na ltica Conversa o d eArcachon, So Paulo: Coleo Biblioteca Freudiana, p. 14.

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    ba nho ou fic ava de sc revend o c omo seria tomar o banho .... 2 horas em p naporta fa zend o na da .... Teve uma vez que eu me d ispus a fazer um d ia inteiro,acordar, lavar loua, o que todo mundo faz. No final do dia, eu estavaexausta. Eu chorei muito... sentia dores no corpo todo... dormi 14 horas. [...] absurdo a energ ia que g asto nisso. (Entrevista d a Ap resenta o de pac iente s)

    Para aquilo se mostra insuficiente para dar-lhe uma sustentaosubjetiva, na ausncia de algo efetivo que conserve os trs registrosenlaados e faa funo de grampo ou fivela, a paciente consegueeleg er solue s pa ra seu sofrime nto , po rm so frouxas - puro e xerc c ioracional, do tipo auto-ajuda, que ela colhe no Outro do discurso dosenso comum, mas que no faz efeito de parar o automatonde seuspensame ntos, o sem-limite.

    Frente ao todo-dito do pai, ela se confessa e o afirma em suaperic ulosidade: c a rro uma arma . Confessou p ara duas testem unhas, am e e a ana lista. Ainda ma is, conside ram os c omo um momento c rucial

    fazer o pedido para que a me entrasse com ela na sesso de anlise.Mas ser que as duas (me e analista) funcionaram comotestemunhas? Para qu as duas? Quando a analista docilmenteacolheu o pedido: preciso das duas, prestou-se a um uso, qual?Podemos levantar a hiptese de necessitar um acrscimo, mais umadefesa contra as frases-mandamento da pessoa do pai, pois aexistncia da me mostrou-se insuficiente para fazer barreira relaoincestuosa entre a filha e o pai, prevalecendo o funcionamento prprioao registro do imaginrio. Neste registro, a ambigidade, a hincia darelao imaginria exigem alguma coisa que mantenha relao,

    fun o e d istnc ia . o sentido mesmo do c omplexo de d ipo, [...] querdizer que a relao imaginria, conflituosa, incestuosa nela mesma,est destinada ao conflito e runa. Para que o ser humano possaestabelecer a relao mais natural, aquela do macho com a fmea, preciso que intervenha um terceiro, (Um-Pai), a ordem que impede acoliso e o rebentar da situao no conjunto est fundada naexistnc ia d esse nome d o p a i. 7

    A d ific ulda de nos c uida do s e na integridad e do corpo , as do res eo gasto excessivo de energia que aparecem quando o corpo est aservio da vida, o entregar-se morte so pontos que localizam

    transtornos no reg istro d o imaginrio.A seqncia: sugesto da escrita de frases em uma estria;indicao para anlise pela psiquiatria do Hospital; a escrita daspriorida de s eleg ida s pa ra orga nizar sua vida e a ac olhida da dema ndade incluir a me para confessar resultou numa modificao importantena maneira de conduzir sua vida. Ela conseguiu fazer um dia inteiro evoltou a assumir responsabilidades. Porm, consideramos como umefeito p rovisrio, que a fasta a possib ilidade d e p assagem ao a to, comooutras vezes mostrou ser. Enfim, um efeito teraputico?

    7 LACAN, J. Seminrio 3 As psicoses. Rio d e Ja ne iro: Jorge Zaha r Ed., 1985, p. 114.

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    Participantes da discusso do caso no Ncleo de Pesquisas da SeoClnica da CLIPP: Alessandra Fabbri, M. Ceclia P. Q. Telles, Clia B.Siqueira, Luciana Carvalho Rabelo, Perptua Medrado Gonalves eYra Valione.

    Texto a presentado no II Enc ont ro Ame ric ano Os resultadosteraputicos da psicanlise novas formas da transferncia . BuenosAires, agosto de 2005.