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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS PROGRAMA DE MESTRADO EM PSICOLOGIA ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO LINHA DE PESQUISA: INTERVENÇÕES CLÍNICAS E SOCIAIS DA PARANÓIA À PSICOSE ORDINÁRIA Núcleo Universitário Coração Eucarístico LUCIA MARIA DE LIMA MELLO Belo Horizonte 2006

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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE MINAS GERAISPROGRAMA DE MESTRADO EM PSICOLOGIA

    REA DE CONCENTRAO: PROCESSOS DE SUBJETIVAOLINHA DE PESQUISA: INTERVENES CLNICAS E SOCIAIS

    DA PARANIA PSICOSE ORDINRIANcleo Universitrio Corao Eucarstico

    LUCIA MARIA DE LIMA MELLO

    Belo Horizonte2006

  • LUCIA MARIA DE LIMA MELLO

    DA PARANIA PSICOSE ORDINRIANcleo Universitrio Corao Eucarstico

    Dissertao apresentada ao Programa de Mestrado em Psicologia da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtendo do ttulo de Mestre em Psicologia.

    rea de Concentrao: Processos de SubjetivaoLinha de Pesquisa: Intervenes clnicas e sociais

    Orientadora: Doutora Ilka Franco Ferrari

    Belo Horizonte2006

  • FICHA CATALOGRFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais

    Mello, Lucia Maria de Lima.

    M527p Da parania psicose ordinria / Lucia Maria de Lima Mello. Belo Horizonte, 2006. 108 f. Orientador: Profa. Dra. Ilka Franco Ferrari.

    Dissertao (mestrado) Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais, Instituto de Psicologia.

    Bibliografia.

    1. Parania. 2. Psicose. I. Ferrari, Ilka Franco. II. Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais. Instituto de Psicologia. III. Ttulo.

    CDU: 159.964.2

    Bibliotecria Valria Ins Mancini CRB -1682

  • Lucia Maria de Lima Mello

    Da parania psicose ordinria

    Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado em Psicologia da Pontifcia

    Universidade Catlica de Minas Gerais como requisito parcial para a obteno do

    ttulo de mestre em Psicologia, Belo Horizonte, em 06 de maro de 2006.

    Dra. Ilka Franco Ferrari (Orientadora) PUC Minas

    Dra. Elisa Alvarenga

    Dr. Luis Flvio Couto PUC Minas

  • RESUMO

    Pesquisa terica em psicanlise dos conceitos de parania, psicose e psicose

    ordinria. O autor de referncia Jacques Lacan e a investigao conduz ao

    desenvolvimento histrico dos conceitos, alm de examinar seus efeitos sobre a

    subjetividade. O objetivo delimitar, diferenciar e perceber as modificaes sofridas

    pelo sujeito e o Outro na psicose. O mtodo utilizado foi da leitura terica

    comentada, no qual o resultado forneceu subsdios para uma compreenso mais

    ampla do trabalho na clnica contempornea.

    Palavras-chave: Parania, psicose, psicose ordinria, sujeito, Outro, inconsciente,

    imaginrio, simblico, real.

  • ABSTRACT

    Theoretical research in psychoanalysis of the concepts of paranoia, psychosis and

    ordinary psychosis. The reference author is Jacques Lacan and the investigation

    leads to the historical development of the concepts beyond examining their effects on

    the subjectivity. The goal is to delimit, to differentiate and to perceive the

    modifications suffered for the subject and the Other in the psychosis. The used

    method was the commented theoretical reading in which the result supplied subsidies

    for an enlarger understanding of the work in the contemporary clinic.

    Key-words: Paranoia, psychosis, ordinary psychosis, subject, unconscious,

    imaginary, symbolic, real.

  • SUMRIO

    1 INTRODUO...................................................................................... 08

    2 A PARANIA LINHA DIVISORA DE GUAS ........................ 17

    2.1 A PSIQUIATRIA CLSSICA.................................................................. 17

    2.1.1 Jacques Lacan e a psiquiatria clssica .......................................... 19

    2.1.2 Psicose infantil e a psiquiatria clssica ......................................... 23

    2.2 A LINHA DIVISORA EM FREUD .......................................................... 26

    2.3 O DIVISOR DE GUAS EM LACAN .................................................... 34

    3 O COGITO PARANICO - EU PENSO, LOGO ELE GOZA

    - E OS CONCEITOS LIMITES ............................................................

    39

    3.1 O IMAGINRIO ..................................................................................... 43

    3.2 O SIMBLICO ....................................................................................... 46

    3.3 O REAL ................................................................................................. 55

    4 A PSICOSE ORDINRIA ................................................................. 63

    4.1 SE O OUTRO NO EXISTE ... ............................................................. 68

    4.2 A DIALTICA ENTRE TIPOS CLNICOS E PSICOSE ORDINRIA ... 73

    4.2.1 Esquizofrenia .................................................................................... 75

    4.2.1.1 Debates sobre a esquizofrenia ..................................................... 75

    4.2.2 Melancolia ......................................................................................... 77

    4.2.2.1 Debates sobre a melancolia ......................................................... 78

    4.2.3 Mania .................................................................................................. 79

    4.2.4 Parania ............................................................................................. 81

    4.2.4.1 Debates sobre a parania ............................................................. 82

    4.3 A DIREO DA CURA ......................................................................... 86

  • 5 A PSICOSE QUESTO DO SUJEITO E DO FALASSER

    (PARLTRE) ............................................................................ 90

    5.1 PRODUZIR O SUJEITO? ...................................................................... 91

    5.2 UNERKANNTE EM LACAN .................................................................. 95

    5.3 FORCLUSO ........................................................................................ 96

    6 CONCLUSO ...................................................................................... 101

    REFERNCIAS ....................................................................................... 103

  • 81 INTRODUO

    O tema desta dissertao ser circunscrito ao mbito da aporia psicanaltica

    nas duas dimenses contidas nessa palavra: enquanto passagem - significado

    etimologicamente advindo de poros e enquanto ausncia de passagem e de sada

    indicado pelo prefixo deste termo. H, portanto, de um lado, a passagem, travessia

    de conceitos ao lado da permanncia de elementos e, por outro, o impossvel, o

    limite da resposta. O trabalho com a aporia psicanaltica pde ser demonstrado

    atravs de um corpo terico cujos limites implicaram a formalizao de uma

    escritura, reexaminada por Lacan durante seu ensino (MILLER, 1998). Entretanto,

    em lugar do impasse, a orientao lacaniana prope ao sujeito a mudana

    discursiva, a pesquisa e a conversao sobre seus limites conceituais.

    A psicose, particularmente a parania, foi situada por alguns autores como

    um divisor de guas na histria da psicanlise, investigada desde 1896 nos estudos

    pr-psicanalticos por Sigmund Freud, e amplamente estudada por Jacques Lacan a

    partir de sua tese de doutorado, em 1935. A tese constituiu para o autor um limite e

    um ponto de passagem entre epistemologias distintas - da psiquiatria clssica para a

    psicanlise.

    As definies da parania situadas em tempos diferentes, desde as primeiras

    construes psicanalticas de Freud e Lacan, chamam a ateno: em 1895, no

    Rascunho H (1969), Freud a define como psicose intelectual e como um modo

    patolgico de defesa verificado pelo contedo inalterado das representaes,

    inconciliveis para o eu e pela projeo das representaes para o mundo externo.

    A idia delirante uma cpia da idia rechaada ou o oposto dela (megalomania)

    (FREUD, 1969, p.283). A leitura do captulo III da histria de Schreber, conforme

  • 9indicam alguns psicanalistas, permite localizar em Freud indicativos a respeito da

    questo essencial da parania, situada na formao dos sintomas mais do que nos

    complexos ou fantasias (SCHEJMAN, 2004). A contribuio freudiana para o tema

    da parania foi fundamental como suporte de quase todo o desenvolvimento das

    concepes psicanalticas posteriores sobre a psicose. Entretanto, ele estabelece

    um impasse ao manter at o fim de sua vida a indicao de que no havia aplicao

    da psicanlise para a clnica da psicose.

    Lacan, em 1932, dir que:

    Podemos conceber a experincia vivida paranica e a concepo do mundo que ela engendra como uma sintaxe original, que contribui para afirmar, pelos elos de compreenso que lhe so prprios, a comunidade humana. O conhecimento desta sintaxe nos parece uma introduo indispensvel compreenso dos valores simblicos da arte e, muito particularmente, aos problemas do estilo [...] problemas sempre insolveis para toda antropologia que no estiver liberada do realismo ingnuo do objeto. (LACAN,1987, p. 380)

    Em 1948, em A agressividade em psicanlise, Lacan (1998) investiga o

    estatuto original do eu narcsico, supostamente paranico, capturado pela imagem

    ideal do outro, imagem simultaneamente amada e odiada. Por outro lado, esse

    estatuto original do eu ser diferenciado da psicose como estrutura, portanto

    conduzindo diferenciao entre o eu e o sujeito. Esses conceitos iniciais foram

    repensados, relidos, modificados pelos prprios autores em decorrncia do

    desenvolvimento das respectivas investigaes e da contribuio de outros

    psicanalistas. A investigao nesse campo, dentre outros caminhos, pode ento

    indagar tanto as transformaes sofridas na causalidade, nos sintomas da psicose e

    da parania, quanto suas conseqncias para a teoria psicanaltica e para a clnica

    contempornea.

    O trabalho lacaniano sobre o tema da psicose encontra-se diferenciado nos

    dois momentos e decorre de formalizaes mais amplas, no excludentes,

  • 10

    comparativamente quelas de Freud - conforme perspectiva que ser desenvolvida

    nos prximos captulos - pensadas a partir de epistemologias diversas, ou seja, o

    estruturalismo, seguido da lgica e da topologia. Essa partio, nem sempre

    rigorosamente datada, em dois grandes momentos do ensino de Lacan, foi proposta

    por Jacques-Alain Miller (2003) e por vrios autores do Campo Freudiano. Estes

    situam ainda alguns Seminrios como pontos de toro, passagem, novas

    perspectivas abertas pelo exame exaustivo de questes cruciais, tais como o

    conceito de inconsciente, o lugar do sintoma, o estatuto do ser e do sujeito, o objeto

    e o gozo.

    No primeiro ensino, a psicose representa uma das estruturas clnicas

    demarcada por uma causa precisa, a forcluso do primeiro significante, o Nome-do-

    Pai. Partindo desse ponto de ruptura, que Lacan nomeia desencadeamento, trs

    efeitos diversos sero reconhecidos: parania, esquizofrenia e melancolia. Essas

    manifestaes no constituem quadros clnicos tomados apenas descritivamente,

    mas indicam posies subjetivas passveis de trnsito dentro da mesma estrutura.

    Nessa concepo, o sujeito do inconsciente pensado a partir dos registros

    simblico e imaginrio, do registro flico, portanto da linguagem, e do discurso do

    Outro, o que conduz prtica do deciframento na referncia neurose. O sintoma

    consistir um uso particular do simblico que fixa o sujeito em determinados modos

    de gozo.

    A pesquisa lacaniana considerada no registro do real conduzir releitura

    das posies subjetivas, sem, entretanto, exclu-las, mas concebendo-as como

    modalidades particulares de enlaamento das proposies real, simblico,

    imaginrio. O conceito de inconsciente tambm se modifica, pois no segundo ensino

    torna-se escritura, letra de gozo que comporta afetos fora da apreenso pela

  • 11

    linguagem. Na perspectiva topolgica, a partir das referncias aos ns borromeanos,

    Lacan estuda sintomas diversos de origem simblica, que se inscrevem no real e

    so concebidos como antinmicos ao sentido, lei. Portanto, a prevalncia no

    do ser, que como efeito de palavra pulsava, representado como falta-a-ser. A noo

    inicial de estrutura da linguagem modificada em escrituras discursivas, um discurso

    sem palavras. A partir de novos paradigmas clnicos, Lacan prope o exame dos

    empregos particulares de alingua (lalangue), localizvel em um tempo anterior ao

    cdigo de linguagem e fora da comunicao. Nesse tempo, a referncia a psicose.

    O corpo terico da psicanlise assim modificado em seus fundamentos,

    atravs da investigao lacaniana, em decorrncia da mudana de axioma, quando

    examinado atravs das perspectivas diversas, nos registros do simblico, imaginrio,

    real. Essa mudana permite tanto reler o primeiro paradigma freudiano, a psicose

    extraordinria de Schreber, quanto examinar uma nova questo preliminar

    descortinada pela noo de psicose ordinria.

    A psicose ordinria um nome que representa as formas contemporneas da

    psicose, e que difere da psicose extraordinria porque acarreta tanto uma

    multiplicidade de solues tais como a psicose tratada, compensada, suplementada,

    no desencadeada, medicada, quanto a ausncia de desencadeamento tpico, ou

    seja, sem fenmenos elementares e grandes construes delirantes. A psicose

    ordinria representa, segundo a expresso de Eric Laurent (1999, p.16), citada na

    Conveno de Antibes, formas de desligamentos progressivos do Outro que

    demonstram um encontro com o real sem mediao simblica ou imaginria.

    Da parania psicose ordinria um ttulo que pretende percorrer e indagar

    momentos diferentes da contribuio de Jacques Lacan para o tema da psicose,

    fundamental para a abordagem da clnica psicanaltica contempornea. A

  • 12

    dissertao situa duas perguntas que decorrem desse percurso histrico sobre o

    tema:

    1. A psicose ordinria, contempornea, apresenta formas de desligamentos

    progressivos do Outro, mas a parania parece tentar responder a um paradoxo: Se

    h forcluso, h resposta do Real, e esta no pertence ao Outro. De que modo

    ocorre a aparente conciliao entre a resposta do real e o Outro?

    2. Considerando as Conversaes de Antibes e Arcachon, assim como as

    conversaes promovidas atualmente pelo Campo Freudiano, quais as implicaes

    para o manejo do tratamento do sujeito psictico?

    O procedimento metodolgico que se utilizar nesta dissertao ser a

    pesquisa terica comentada. Jacques Lacan ser o autor de referncia central para

    a pesquisa, mas, tambm, sero consultados autores contemporneos que

    desenvolveram seus escritos a partir da orientao lacaniana. A pesquisa terica

    ser ilustrada por exemplos colhidos na prtica institucional e particular de casos

    clnicos publicados e debatidos nas Conversaes nacionais e internacionais, a

    partir das apresentaes de pacientes.

    O tema ser desenvolvido em quatro captulos, aps uma breve introduo:

    Captulo 2. A parania - linha divisora de guas

    O captulo dois abordar o conceito de parania atravs do sintagma um

    divisor de guas, empregado por Lacan (1985) no Seminrio 3, que enuncia alguns

    limites conceituais. A parania pode representar um dos exemplos da diferena

    conceitual entre Freud, Lacan e a psiquiatria clssica, entre Lacan e Freud, entre os

    diferentes tempos do ensino lacaniano. A parania foi introduzida na nosologia

    alem como um delrio sistematizado primitivo, limitado a uma perturbao

    intelectual, e estudada inicialmente na psiquiatria clssica como um delrio sem

  • 13

    evoluo para a desagregao e a demncia (MAZZUCA, 2004, p.56). Na

    psicanlise, a parania foi introduzida como psicose extraordinria, na qual sua

    etiologia, seus sintomas, sua clnica foram demonstrados a partir da manifestao do

    conceito de defesa, dos fenmenos elementares e do desencadeamento. Deve-se,

    portanto, examinar os conceitos que compuseram o histrico da parania e que

    serviram de demarcao e passagem dentro do corpo terico da psicanlise. H que

    se diferenciar a estrutura clnica do narcisismo original e extrair desse contraponto

    possveis conseqncias.

    Captulo 3. O cogito paranico - Eu penso, logo ele goza - e os conceitos limites

    Nesse captulo, ser desenvolvido o cogito, o modo de pensar privilegiado na

    parania, tal como foi proposto por Miller (1996). Localizado inicialmente na dupla

    posio de Schreber, na dupla recusa da falta-a-ser, pois se o gozo situado no

    lugar do Outro, ocorre identificao do gozo e do saber. Na parania, o pequeno a e

    o Outro confluem, o que manifestado no sentimento, na certeza de que o Outro

    goza do sujeito. Em decorrncia disso, surge a confluncia das metforas delirantes,

    que promovem as substituies nos efeitos do sentido, e da metonmia do gozo. A

    agressividade e as passagens ao ato paranicos decorrem da peculiaridade desse

    cogito, enquanto a escritura do gozo fora da palavra surge na clnica quando

    evidencia que o sujeito paranico inventa-se como causa de um desejo infinito.

    A parania examinada atravs dos trs registros que demarcaram o ensino

    de Lacan - Imaginrio, Simblico, Real - e de cada um deles o autor demonstra

    solues subjetivas diversas. Entretanto, um modelo que se apia no

    desencadeamento e no Outro encontra um limite para se considerar as psicoses fora

    do desencadeamento. A mudana de axiomtica lacaniana promove novas

    perspectivas para o sintoma.

  • 14

    Captulo 4. A psicose ordinria

    A psicose ordinria foi discutida inicialmente nas Conversaes de Antibes e

    Arcachon na Frana, em 1998 e 1999. Essas Conversaes foram realizadas por

    psicanalistas do Campo Freudiano que investigaram, luz das ltimas contribuies

    do ensino de Lacan, vrios exemplos da clnica da psicose contempornea. Dentre

    os novos conceitos estudados, destacam-se as psicoses fora do desencadeamento,

    que privilegiam um enfrentamento do sujeito com o vazio da significao e um

    surgimento, um comeo, por vezes sutil, imperceptvel, que pode ser confundido

    com sintomas de natureza diversa, que afetam o corpo. Embora as diferentes

    posies subjetivas entre esquizofrenia, parania e melancolia permaneam, a

    psicose ordinria ressalta, privilegia a pluralizao dos nomes, dos usos possveis

    da letra.

    Destaca-se, nesse momento, a investigao sobre uma perspectiva comum

    entre neurose e psicose: o vazio enigmtico de significao e o enigma do gozo.

    Nessa zona de interseo, o sinthoma tem lugar. (MILLER, 1997)

    A investigao abordar as principais questes tericas que decorrem da

    mudana de perspectiva lacaniana: novas formas de suplncia, outro conceito de

    sintoma, a utilizao do conceito de alingua (lalangue). Como conseqncia disso,

    tem-se um manejo que considera a clnica como constituda por sucessivos

    desligamentos e religamentos entre os trs registros e que privilegia os modos de

    conexo singulares. Esto em jogo as suplncias sinthomticas e os nomes. Os

    exemplos clnicos advm das Conversaes de Arcachon e Antibes e dos trabalhos

    clnicos, publicados pelo Campo Freudiano, que demonstram a perspectiva da

    psicose ordinria. As Conversaes constituem tentativas de formalizao das

    questes que ficaram em aberto e foram colhidas nos Seminrios de Lacan, nos

  • 15

    anos de 1970 a 1975. Portanto, trazem a marca da incompletude, de um trabalho

    que se realiza no campo do real. Simblico, Imaginrio, Real so revistos como

    essncia do n borromeano.

    A releitura dos conceitos de ego e personalidade, promovida por Lacan no

    Seminrio Le sinthome, contribui decisivamente para diferenciar comunicao e

    nominao, porque os acontecimentos de corpo, um corpo afetado pelo gozo,

    promovem a falha nos efeitos de sentido.

    Captulo 5. A psicose questo do sujeito e do falasser (parltre)

    A pesquisa promovida na clnica psicanaltica da psicose, ao mesmo tempo

    em que conduz ao estudo do real, disjunto do saber, delineia que: A psicose

    questo de sujeito pois ela assim mesmo nos conduz aos confins de sua

    produo (MILLER, 1996, p.160), ou seja, o objeto na condio de puro real obriga

    o sujeito psictico a um trabalho incessante de invenes, remdio ou soluo que

    constituem formas diversas de comentar uma mesma estrutura.

    Lacan traz uma contribuio fundamental para o captulo do pensamento

    humano quando indaga e examina os limites do pensamento em um dilogo

    constante com filosofia concluindo sua obra por esse exame nos registros do real,

    simblico e imaginrio. Com isso demonstra a falha irremedivel, o limite do

    pensamento no gozo, no corpo, na impossibilidade da relao sexual, na falta de um

    significante no campo do Outro, em um conjunto de experincias que afetam o

    sujeito, mas que se encontram fora de sentido, podendo ser diversamente

    nomeadas. O pensamento encontra seu limite no real resultando para o humano

    duas possibilidades ou a loucura ou a debilidade do mental. Essa uma questo

    que Lacan deixa como herana para ser trabalhada pelo campo freudiano.

  • 16

    Em decorrncia da mudana de axioma na obra de Lacan, o estatuto do

    sujeito implicar outro lado, outra face, cujo gozo e corpo implicam outra relao

    com o tempo. Se o sujeito como efeito do significante sem substncia, o ser falante

    encontra seu estatuto na materialidade do corpo. Trata-se de uma das

    conseqncias da estrutura no real, que tem efeitos decisivos sobre a clnica

    contempornea.

    6 Concluso

    O percurso histrico no tema da parania psicose ordinria implica o exame

    de hipteses e termina por ensinar que a clnica do real descortina novas

    perspectivas que contribuem para aclarar o paradigma constante: a disjuno entre

    o sujeito e o Outro.

  • 17

    2 A PARANIA LINHA DIVISORA DE GUAS

    A parania foi um dos conceitos que a epistemologia psicanaltica herdou da

    psiquiatria clssica. Entretanto, trata-se de uma herana cuja histria marcada por

    descontinuidade e sucessivas reformulaes, por vezes representativas de uma

    linha divisora de guas, sintagma utilizado por Lacan (1981, p.12) em 1955.

    Determinante tambm das diferenas estabelecidas por esse autor entre psiquiatria

    e psicanlise, das diferenas entre Freud e a psiquiatria, entre Lacan e Freud. A

    psicanlise mantm, at a atualidade, interlocuo com a psiquiatria e esse debate

    que assume contornos marcados pela dissimetria e rupturas, circunscreve,

    necessariamente, a psicose, sua clnica e tratamento.

    2.1 A PSIQUIATRIA CLSSICA

    Um breve histrico da parania a partir de seu ponto de origem - a psiquiatria

    clssica - fornece esclarecimentos interessantes. Alguns autores representativos de

    duas principais escolas de psiquiatria europias, alem e francesa, so escolhidos

    para elucidar essa perspectiva na vastido oferecida pelas diversas vertentes da

    psiquiatria.

    A escola alem, no incio do sculo XIX, utilizava os termos Wahnsinn

    (mania, loucura, demncia, delrio), Verrckheit, (loucura, demncia), e parania

    ao descrever uma sndrome delirante e alucinatria, sem dficit intelectual, crnica e

    relativamente sistematizada. Essa concepo, advinda de J. C. Heinroth, em 1918,

    era partilhada por grandes nomes da psiquiatria da poca. Em 1845, W. Griessinger,

  • 18

    considerado o fundador da escola psiquitrica alem, prope uma nosologia que

    considerava a precedncia do surgimento da Verrckheit associada um perodo

    primrio de perturbao afetiva, com sintomas melanclicos e manacos. Alm disso,

    propunha um modelo do funcionamento mental: h representaes em luta para

    ocupar o campo da conscincia e transformar-se em atos. O eu se modifica segundo

    o tempo e as circunstncias, e esse modelo aplicado loucura (MAZZUCCA,

    2004). Essa concepo, retomada posteriormente por Freud na perspectiva da

    psicanlise, surge em outro contexto do eu e das representaes inconscientes, no

    mais do indivduo.

    A nosologia de Griessinger construda sobre a noo do ciclo unitrio das

    psicoses, ou seja, a idia de formas clnicas diversas que seriam fases sucessivas

    de uma mesma enfermidade Essa concepo tambm partilhada por Pinel e

    Esquirol, embora estes defendessem a idia da loucura como um gnero unitrio e

    cada entidade clnica como formas sucessivas de degradao involutiva.

    (MAZZUCCA, 2004)

    R.von Krafft-Ebing, em 1879, define a parania como uma sndrome de

    delrios crnicos sistematizados, na qual as representaes apresentam coerncia

    interna, diferenciada das formas agudas. Em 1899 - essa data varivel segundo

    as edies de seu Tratado de psiquiatria - Emil Kraepelin prope uma delimitao

    precisa do termo parania, separando-a definitivamente das formas agudas, dentre

    as quais era confundida com manifestaes diversas da esquizofrenia. Kraepelin

    define a parania como:

    grupo de casos segundo os quais se desenvolve, precoce e progressivamente, um sistema delirante inicialmente caracterstico, permanente e inquebrantvel, mas com total conservao das faculdades mentais, e da ordem dos pensamentos da vontade e da ao. (MAZZUCCA, 2004, p.60)

  • 19

    A psiquiatria francesa, atravs de P. Srieux e J. Capgras diferencia e

    acrescenta s descries de Kraepelin formas de delrios interpretativos e

    reivindicativos, que permitiro Clrambault o esclarecimento dos delrios

    passionais, diferenciados dos delrios de reivindicao, de cime e da erotomania

    (MAZZUCCA, 2004). Acrescenta-se a contribuio de Clrambault para a

    erotomania, como a iluso delirante de ser amado, e para o diagnstico de psicose

    fundamentado nas formas do surgimento dos delrios, no automatismo mental

    descrito como fenmeno primordial - e diferenciado das formas de psicose em que

    predomina a alucinao crnica.

    Em alguns manuais de psiquiatria encontra-se a descrio pormenorizada dos

    delrios crnicos, diferenciados pelas formas evolutivas deficitrias. No captulo

    referente a esses delrios, a parania tratada de forma secundria. Diferenciada da

    esquizofrenia, sua manifestao reconhecida nos delrios sistematizados,

    passionais e de reivindicao, sem evoluo deficitria. (EY, 1969)

    2.1.1 Jacques Lacan e a psiquiatria clssica

    Em 1932, Lacan (1987) publica sua tese de doutorado em medicina: Da

    psicose paranica em suas relaes com a personalidade. No captulo I, esclarece

    que, em 1818, o termo parania foi empregado pela primeira vez na Alemanha por

    Heinroth e em seguida desenvolvido pelas trs escolas de psiquiatria europias,

    alem, francesa e italiana. Lacan contundente em sua crtica ao sentido e emprego

    do termo, e cita Sglas quando este diz que a parania era uma palavra que em

    psiquiatria tinha a significao mais vasta e pior definida (LACAN, 1987, p.10) e

    que era a noo mais inadequada clnica.

  • 20

    Ressalta que, para kraepelin, a entidade da afeco se depreende do estudo

    de sua evoluo, que exclui a evoluo demencial sem causa orgnica subjacente.

    Lacan reconhece no trabalho desse autor o rigor nosolgico de sua obra, a

    maturidade do trabalho de delimitao conceitual da parania.

    Ele comenta Krestschmer e sua contribuio para o estudo dos delrios

    paranicos, ao diferenciar nas causas dos delrios trs elementos: o carter, o

    acontecimento vivido, o meio social - e destacando as reaes psquicas aos

    acontecimentos, seu carter vital e o valor significativo.

    Quanto a Jaspers, Lacan diz da ateno especial que aquele autor concedeu

    ao estudo das experincias paranicas, observando os sentimentos marcados por

    expectativa indefinida, inquietude, desconfiana, tenso, sentimento de perigo

    ameaador, estado de temor, pressentimento. Comenta o conceito maior de

    Jaspers, o processo psquico, que representa uma mudana na vida psquica do

    doente, no qual as iluses desempenham um papel preponderante. Diferencia ainda

    processo psquico das reaes, fases e perodos, dos processos fsico-psictico,

    alm de estudar os delrios de cime, diferenciados das idias de perseguio e sua

    interferncia na personalidade.

    A tese de doutorado de Lacan (1987, p.354), que teve na fenomenologia um

    marco de reflexo e Karl Jaspers como autor de referncia, apia uma parcela dos

    argumentos na psiquiatria alem, embora as referncias ao seu mestre Clrambault

    o acompanhem para alm da tese em grande parte do seu primeiro ensino. Essa

    tese indagou a psicose paranica sob a gide dos conceitos de personalidade e

    desenvolvimento, a partir dos quais o autor prope os conceitos de parania de

    autopunio e de reivindicao. Inicia, entretanto, no captulo II, o emprego de

    conceitos psicanalticos freudianos, tais como libido, objeto, investimento,

  • 21

    narcisismo, incorporao, identificao, inconsciente. A conseqncia desse

    emprego interessante, pois o conceito de personalidade, tal como consta na frase

    desenvolvimento da personalidade do sujeito, depois de ser examinado em

    diferentes perspectivas a partir da anlise dos sintomas clnicos, remanejado,

    adquirindo o sentido de acontecimentos da histria, progressos da conscincia e

    reaes ao meio social. Evidencia-se na tese a sutil travessia entre dois campos

    epistmicos.

    O estudo pormenorizado do caso Aime conduz hiptese da parania de

    autopunio, na qual so diferenciados o diagnstico, prognstico, profilaxia e

    tratamento. O incio da psicose brutal, no qual surge o perodo de estado com a

    sistematizao do delrio e os fenmenos elementares, como iluses da percepo,

    da memria e sentimento de transformao do mundo externo, dentre outros. As

    idias de perseguio so prevalentes, nas quais o perseguidor (amado-odiado)

    sempre do mesmo sexo que o sujeito. As idias de cime, grandeza e a erotomania

    apresentam o carter do platonismo ou idealismo apaixonado. Lacan observa ainda

    a importncia das reaes agressivas e a satisfao da pulso auto-punitiva,

    realizada com a pulso agressiva.

    Em 1948, no artigo A agressividade em psicanlise, Lacan (1998, p.113)

    reexaminar a questo da tendncia agressiva nos estados significativos da

    personalidade que so as psicoses paranides e paranicas, tratando a primazia do

    ato agressivo ao desfazer a construo delirante.

    Uma das grandes questes presentes na tese de Lacan (1987) o exame

    das relaes da parania com a personalidade. Em suas concluses crticas,

    dogmticas e hipotticas, diferencia trs indicaes de pesquisa diversas, que sero

  • 22

    retomadas e reexaminadas pelo prprio autor, mas tendo a psicanlise como

    referncia terico-clnica.

    Quanto ao tratamento, Lacan argumenta que a psicanlise oferece a tcnica

    que permite maior aproximao do estudo experimental do sujeito. Suas concluses

    hipotticas so interessantes porque renem numa s frase termos que pertencem

    fenomenologia e psicanlise. Essas hipteses tm o mrito de elucidar tanto o

    conceito de psicose paranica, quanto um estudo realizado em um ponto de

    passagem entre dois campos tericos, tal como se depreende da citao:

    A parania de autopunio e parania de reivindicao formam um grupo especfico de psicoses, que so determinadas, no por mecanismo dito passional, mas por parada evolutiva da personalidade no estdio gentico do Superego. (LACAN,1987, p.357)

    Lacan indica ainda, como hipteses de pesquisa, as idias delirantes

    hipoconcracas e os temas delirantes de significao homossexual, como sintomas

    que podero fornecer esclarecimentos nosolgicos e clnicos. Alm disso, prope

    que seu mtodo possa apreciar diferencialmente: as situaes vitais e infantis que

    determinam a psicose; os tipos de estrutura conceitual pr-lgica, revelados pela

    psicose, e as pulses agressivas e homicidas que implicam a responsabilidade do

    sujeito.

    Efetivamente, Lacan retornar em diversos momentos de seu ensino s

    hipteses propostas em 1935 e extrair contribuies tanto para o tema da psicose e

    da parania, quanto para a psicanlise de modo mais amplo. As conseqncias

    dessa releitura de sua prpria tese repercutiram e modificaram a experincia

    psicanaltica. O pargrafo extrado de seu Seminrio de 1975, Le sinthome, elucida

    essa afirmao e contribui para justificar o ttulo do captulo da presente dissertao:

    Houve um tempo, antes que eu estivesse na via da psicanlise, no qual caminhei numa certa via, aquela de minha tese Da psicose paranica em suas, eu disse, relaes com a personalidade. Se,

  • 23

    durante muito tempo, resisti sua publicao, simplesmente porque a psicose paranica e a personalidade como tais no tm relao pela simples razo que so a mesma coisa. (LACAN, 2005, p.53, traduo nossa)

    Em seguida, ele esclarece que os trs registros, imaginrio, simblico e real,

    possuem uma mesma consistncia, portanto, continuidade, o que demarca e

    diferencia a psicose paranica no segundo momento de seu ensino. Essa questo,

    que ser desenvolvida nos prximos captulos da dissertao, justifica a afirmao

    de que a parania opera uma linha divisora de guas entre Lacan e a psiquiatria

    clssica.

    2.1.2 Psicose infantil e a psiquiatria clssica

    O Manual de psiquiatria infantil de J. de Ajuriaguerra (1985), professor do

    Collge de France e Coordenador do Servio Mdico-pedaggico em Genebra,

    constitui mais uma referncia para a pesquisa sobre o histrico da parania a partir

    das contribuies da psiquiatria clssica.

    O aspecto prevalente para o tema advm das indagaes de Lacan, em 1932,

    sobre a determinao da psicose na infncia, retomadas em 1967, na Allocutions sur

    les psychose de lenfant (2001), assim como sobre os pontos de fixao da libido,

    anteriormente estudados por Freud, questo que mereceu a pesquisa e indagao

    mais ampla de vrios psicanalistas ps-freudianos, como se ver a seguir.

    No captulo inicial sobre a histria e as origens da psiquiatria infantil,

    Ajuriaguerra (1985) informa que seus precursores foram educadores, como o

    beneditino Ponce de Lon que, no sculo XVI, escreveu os primeiros ensaios sobre

    a educao de surdos-mudos. No sculo XIX, Seguin e Pestalozzi trouxeram

    contribuies sobre o trabalho educativo com crianas retardadas e idiotas, seguido

  • 24

    de Esquirol e Claparde em 1898, em uma perspectiva mais ampla da psiquiatria

    geral. Alm do trabalho educativo, a psiquiatria infantil teve, desde seu incio, uma

    abordagem pluridimensional, encontrando-se na encruzilhada de diversas

    disciplinas, tais como: pediatria, neurologia, pedagogia, sociologia, psicologia.

    As contribuies da pesquisa psicanaltica para a clnica com crianas

    decorreram dos trabalhos de Anna Freud, Melanie Klein, Winnicott a partir de 1935.

    Alm da psicanlise, a psiquiatria infantil se enriqueceu com a psicologia gentica de

    Piaget e Wallon.

    O captulo dedicado psicose infantil comporta as descries da

    esquizofrenia infantil, a partir dos trabalhos de H. Poter, em 1933, e do autismo

    infantil descrito por L. Kanner em 1943. Todavia, interessante a afirmao de

    Ajuriaguerra de que so encontrados com freqncia tipos de sentimentos delirantes

    e episdios confuso-onricos infantis, embora se discuta a existncia de delrios

    sistematizados na criana, conjetura no verificada.

    A curiosidade que no h qualquer meno parania na criana. Com

    respeito psicose infantil, a encruzilhada de diversas disciplinas verificvel tanto

    em Ajuriaguerra, quanto em outros autores que contribuem para o Manual de

    psiquiatria infantil. A despeito da amplitude das investigaes e descobertas

    psicanalticas mencionadas naquela publicao, a psicanlise referida como uma

    prtica que aborda a perspectiva do desenvolvimento do indivduo, afirmao

    contraposta s pesquisas de Freud e Lacan.

    Essa ausncia de especificidade da parania na criana tambm

    encontrada nos psicanalistas ps-freudianos, conforme demonstra a resenha

    elaborada por Michel Ledoux (1984), Conceptions psychanalytiques de la psychose

  • 25

    infantile, na qual o autor destaca nos ps-freudianos, aps examinar treze autores,

    diferentes orientaes psicanalticas sobre o tema.

    Nessa resenha, menciona particularmente a esquizofrenia, o autismo e a

    debilidade, cujos sintomas so mais claramente manifestos e, portanto, passveis de

    um diagnstico preciso. O autor, quando se refere psicose infantil de forma mais

    ampla, descreve-a no singular, em suas relaes com a famlia, a pulso, as

    fantasias parentais, a sociedade e a cultura.

    Essa perspectiva, que de certo modo se coaduna com aquela encontrada

    pela psiquiatria infantil, corroborada por Lacan, guardadas as devidas diferenas,

    quando este se refere psicose infantil. Sua Allocutions sur ls psychoses de lenfat

    (2001), de 1967, fornece elementos fundamentais que constituem indicaes muito

    precisas para uma pesquisa sobre a psicose infantil. Dentre eles, destaca-se a

    psicose assistida nas instituies, a questo da liberdade, a angstia, o gozo, a

    identificao e, sobretudo, as devastaes sofridas pela criana em decorrncia da

    resposta ao lugar de objeto que seu corpo pode ocupar na fantasia materna.

    Essas sugestes de Lacan foram tomadas a srio por diversos psicanalistas

    que investigam e acolhem a psicose infantil, como se pode notar nos trabalhos de

    Rosine e Robert Lefort, Maud Mannoni e nas publicaes dos grupos de pesquisa

    europeus e americanos que compem os Institutos do Campo Freudiano, tais como:

    Rede Cereda, Rseau International Dinstituitions Infantiles (RI 3), Antenne 110, Le

    Courtil, Diagonal hispanohablante, P.I.P.O.L, Ncleo de pesquisa em psicanlise

    com crianas do Instituto de psicanlise e sade mental de Minas Gerais.

    A extenso desses trabalhos muito ampla e um comentrio mais

    elucidativo sobre a riqueza dessa temtica ultrapassaria os limites desta dissertao.

  • 26

    Retornando a Lacan, encontra-se a afirmao reiterada de que a parania

    no verificvel na criana, embora a psicose infantil revele matizes cada vez mais

    surpreendentes e se apresente mesclada por construes delirantes e sintomas

    corporais que se manifestam claramente, conforme asseveram as publicaes mais

    recentes. Essa tambm uma questo que possibilitaria uma outra pesquisa e que

    ultrapassaria os limites desta investigao.

    2.2 A LINHA DIVISORA EM FREUD

    A obra de Sigmund Freud, criador da psicanlise, escrita no perodo de 1894

    a 1938, encontra-se impressa a referncia dos livros publicados em portugus -

    em 23 volumes.

    Considerando a precocidade e amplitude dos artigos de Freud que tratam do

    tema da parania, optou-se por agrupar esses artigos em trs grandes momentos e

    demarcar-lhes as diferenas. oportuno assinalar que nessa obra vasta

    assinalvel um ponto de toro, representado pelo estabelecimento do conceito de

    pulso de morte em 1919-20, promotor de uma mudana significativa na construo

    terica da psicanlise freudiana e sua incidncia nos artigos escritos posteriormente

    data.

    O primeiro registro da parania em Freud (1977) surge no Rascunho H, de

    1895, no qual a parania descrita por Freud como um modo patolgico de defesa

    do aparelho psquico, diante de representaes inconciliveis com o eu e que so

    projetadas para o mundo exterior. Esse modo patolgico de defesa foi encontrado

    por Freud tambm na histeria, na neurose obsessiva e na confuso alucinatria. No

    Rascunho K (1977), de 1896, examina o sintoma primrio que formado pela

  • 27

    desconfiana. O elemento bsico o mecanismo da projeo, mas na parania a

    represso se faz aps um pensamento complexo e consciente que implica a recusa

    da crena.1

    No perodo de 1893 a 1906, Freud ir pouco a pouco esclarecer os modos de

    defesa e recalque, distinguindo progressivamente daqueles apresentados pela

    neurose obsessiva, pela histeria, pela parania e pela demncia precoce.

    O que chama a ateno nos artigos que compem esse primeiro momento

    que, embora Freud utilize a palavra etiologia e descreva uma experincia primria

    dos sintomas, o sentido desse termo difere daquele tomado pela psiquiatria. Ele

    situa a etiologia como causa sexual, tal como encontra na Anlise de um caso de

    parania crnica e nas Novas pontuaes sobre as neuropsicoses de defesa, de

    1896. Segundo Freud (1969, p.183), na etiologia da parania encontram-se as

    mesmas vivncias sexuais da primeira infncia da histeria e neurose obsessiva.

    O conceito de defesa que est presente desde os primrdios das descobertas

    freudianas ser retomado e relido nos dois tempos do ensino de Lacan. Destaca-se

    a leitura que este conduz, em 1959, do Cap. VII do Projeto para uma psicologia

    cientfica, quando demonstra que, no incio da vida de uma pessoa, as oposies

    entre princpio do prazer e princpio de realidade acarretam a defesa como um

    fundamental elemento de ligao, de algo que pode ser identificado pela

    conscincia. Nos processos internos, o sujeito recebe apenas sinais de prazer ou

    pena. O objeto hostil, a dor, s sinalizado na conscincia, quando faz o sujeito

    soltar um grito que, por sua vez, cumpre a funo de descarga. Com isso, Lacan

    (1997) demonstra que a defesa comea a existir antes do recalque, e vem constituir

    um paradoxo da relao ao real, posto que o inconsciente no revela outra estrutura

    1 Na obra de Freud, o termo Verdrngung, traduzido por represso, significa recalque

  • 28

    seno a da linguagem. A dor e o grito surgem como trao, sinal diferencial entre

    prazer e realidade, mas situado fora do inconsciente, no real.

    O segundo marco diferencial sobre a parania na obra freudiana pode ser

    encontrado em 1911 (1969), nas Notas psicanalticas sobre um relato autobiogrfico

    de um caso de parania (Dementia paranoides) - anlise da autobiografia de Paul

    Daniel Schreber. Nesse momento, Freud (1969) apresenta argumentos sobre a

    parania que, por sua relevncia, foram reexaminados e ampliados em seus artigos

    subseqentes, assim como por diversos autores psicanalticos. Esses elementos

    possuem o mrito de jamais serem apenas descritivos e a anlise dessa

    autobiografia tornou-se, segundo o desenvolvimento que lhe conferiu Lacan, o

    primeiro paradigma sobre o tema da parania demonstrado pela psicanlise.

    As tentativas de interpretao, que tm como referncia esse texto mpar,

    apiam-se no que Freud nomeia sua tcnica psicanaltica habitual. Utilizando-se

    dessa tcnica, indcio de um procedimento padro, ele parte das declaraes

    delirantes do paciente e se deixa guiar por sua frase, sua maneira paranica de

    expresso, assim como pela causa ativadora da enfermidade, que na parania

    situada na manifestao da libido homossexual e na defesa projetiva contra esse

    desejo. No caso de Schreber, os objetos desse desejo foram o mdico Fleschsig e

    Deus. A luta inicial contra a realizao de desejo assinttica (FREUD, 1969, p.68)

    sucumbe na metamorfose dA mulher de um Deus absoluto, e os sintomas decorrem

    da luta de Schreber contra seus impulsos. A emasculao tornava-se consoante

    com a Ordem das coisas.

    Em outros momentos de seu artigo, Freud reafirmar que a etiologia sexual

    bvia na parania e que esse desejo se manifesta em uma gramtica prpria,

    demonstrada no sexo masculino em trs proposies: eu no o amo; eu o odeio;

  • 29

    ele me odeia, desdobrada em ele me persegue. Portanto, os delrios de

    perseguio decorrem da percepo externa de ser amado e, nessa gramtica,

    Freud diferencia trs manifestaes delirantes: os delrios de cime contradizem o

    sujeito; os delrios de perseguio contradizem o predicado; a erotomania, contradiz

    o objeto.

    As projees delirantes dos quatro delrios principais - perseguio,

    erotomania, cime e megalomania - surgem em consonncia com essa gramtica

    subjetiva e constituem para Freud a caracterstica principal da formao de sintomas

    na parania.

    Freud situa na parania a fixao da libido entre o auto-erotismo e o

    narcisismo, a megalomania e o desligamento progressivo da libido anteriormente

    investida em outras pessoas. Esse movimento silencioso e s inferido por

    acontecimentos subseqentes, o que conduz Freud a demarc-lo como um

    mecanismo essencial e regular de toda represso, 2 no sem advertir que o que foi

    internamente abolido retorna desde fora, indicativos de outro mecanismo diverso da

    represso. Ao mencionar este outro mecanismo, Freud utiliza o termo alemo

    Verwerfung, mas cujo emprego difere da traduo e da preciso que Lacan confere

    posteriormente.

    ainda importante a afirmao freudiana de que a parania deve ser

    mantida como um tipo clnico independente (FREUD, 1969, p.100), apesar de notar

    em alguns casos a presena de caractersticas esquizofrnicas. Ele conclui seu

    artigo ratificando as duas teses principais sobre a teoria da libido nas neuroses e

    nas psicoses (p.104) que desenvolver posteriormente nos textos metapsicolgicos:

    Neurose e psicose e A perda da realidade na neurose e na psicose. Deve-se

    2 Escrita entre aspas no texto em portugus (1969b, p.90)

  • 30

    ressaltar que no ps-escrito s Notas psicanalticas sobre um relato autobiogrfico

    de um caso de parania (Dementia paranoides) Freud faz um breve comentrio

    sobre a ligao entre as crenas delirantes e sua relao com a mitologia, j tratada

    anteriormente, e qual ele acrescentar novos elementos em artigos subseqentes.

    Podem ser reunidos nesse segundo momento os Artigos sobre

    metapsicologia, de 1915, nos quais Freud trabalhar intensamente os conceitos de

    inconsciente, pulso, recalque. Destacam-se, nesse momento, trs artigos: Luto e

    melancolia (1969), no qual, em decorrncia do trabalho sobre os investimentos

    libidinais e as identificaes regressivas que formam o ncleo do supereu, ele dir

    que os impulsos hostis contra os pais surgem na parania como o cerne dos delrios

    de perseguio.

    O segundo destaque Um caso de parania que contraria a teoria

    psicanaltica da doena (1969). O interesse maior desse artigo que se trata de um

    caso de parania feminina que permite a Freud a confirmao do conceito formulado

    em sua anlise de Schreber, da ligao entre parania e homossexualismo. Esse

    artigo permite a Freud articular ainda as fantasias sexuais, a inrcia psquica e a

    fixao (adesividade da libido), e trabalhar o tema das fantasias primevas e o papel

    preponderante da me, ou sua representante, no delrio, como uma personagem

    observadora, perseguidora hostil e malvola. Freud menciona o rudo acidental, que

    desempenha o papel de fator provocador nessa fantasia, uma variante da causa

    acidental mencionada anteriormente e que mereceu vrias consideraes

    interessantes.

    Outro artigo representativo desse perodo Sobre o narcisismo: uma

    introduo, no qual a nfase recai no trabalho sobre a diferena sexual, a funo de

    ideal, a diferena entre libido do eu e do objeto, e onde ele dir que encontra a

  • 31

    freqente acusao da parania por um dano ao ego e frustrao dos ideais

    (FREUD, 1969, p.118). A voz do supereu manifesta-se nos delrios de ser notado ou

    vigiado, que constituem sintomas prevalentes nas doenas paranides (p.112),

    alm de voltar a destacar a libido de natureza homossexual, verificada nos delrios.

    O terceiro marco diferencial da parania, na obra freudiana, encontra-se em

    quatro artigos e um verbete, situados depois de 1919. O que motivou o agrupamento

    que, nesses artigos, a parania aparece mencionada de forma mais genrica, ao

    mesmo tempo em que Freud enuncia claramente a dvida quanto aos efeitos

    promovidos pela psicanlise no tratamento da psicose.

    No artigo Alguns mecanismos neurticos no cime, na parania e no

    homossexualismo, de 1922, Freud (1969, p.273) diferencia trs graus de cime:

    competitivo ou normal; projetado; delirante. Este ltimo encontrado nas formas

    clssicas da parania e ocorrem como defesa contra os impulsos homossexuais. Ele

    afirma que os casos de parania no so sensveis investigao analtica e, em

    seguida, cita dois fragmentos de parania que lhe permitem reafirmar que os

    paranicos projetam o que no desejam reconhecer em si prprios e que as

    fantasias homossexuais constituem o cerne desse tipo de cime. O interesse maior

    recai no trabalho dos sonhos paranicos e ele diz que: Um sonho pode

    representar uma fantasia histrica, uma idia obsessiva ou um delrio (p.278).

    No verbete Psicanlise, em 1926, Freud (1969) categrico ao afirmar que a

    influncia da psicanlise no tratamento da demncia precoce e da parania

    duvidosa.

    Na Conferncia XXXIII, em 1932, Feminilidade (1969), menciona a libido

    dirigida me na forma de fixao pr-edipiana, verificada nos casos de parania de

    cimes em mulheres.

  • 32

    Em O humor, de 1927, Freud (1969) afirma que as idias de perseguio se

    formam precocemente e persistem por longo tempo sem se manifestarem, at

    surgirem como resposta a um determinado acontecimento precipitante e especfico.

    Encontra-se aqui uma variante da abordagem da causa acidental mencionada

    anteriormente.

    Nesse artigo de 1927 - trata-se de uma suposio - encontram-se alguns

    elementos que resultaram na investigao posterior de Lacan sobre as psicoses fora

    do desencadeamento e sobre o conceito de desencadeamento a partir do encontro

    com um significante no registro simblico, o que representou uma contribuio

    decisiva para o estudo do tema.

    Nessa breve resenha da obra de Freud, h que se destacar o termo

    represso que, como foi mencionado anteriormente, passa a ser colocado entre

    aspas a partir de 1915 ou destacado como uma outra modalidade de represso, a

    represso primria, um rechao de certos desejos. No se encontram na obra de

    Freud, em portugus, maiores esclarecimentos sobre esse emprego, mas parece

    fundamental coment-lo, pois constituiu motivo de pesquisa de outros autores,

    principalmente Jacques Lacan.

    Trata-se do termo alemo Verwerfung, que foi destacado por Lacan, em seu

    primeiro ensino, como um conceito diferencial na clnica da psicose. O conceito de

    Verwerfung utilizado por Freud (1969) desde As psiconeuroses de defesa, de

    1894, nas quais o eu rechaa (verwirft) a representao insuportvel. Lacan

    enfatizar a Verwerfung como responsvel pela represso primria, pois

    necessrio considerar um mais alm da represso que primitivamente a constitui

    (MALEVAL, 2002). Freud emprega essa palavra, em pocas diferentes,

    descrevendo-a das seguintes maneiras: 1. como um juzo do eu gerando uma

  • 33

    ruptura com a realidade impossvel de assumir. 2. como rechao das fantasias

    incestuosas da puberdade. 3. associada transferncia negativa, como sinnimo de

    represso. 4. como fundamento da conscincia moral. 5. como fundadora de uma

    culpabilidade originria articulada noo de supereu.

    Jean-Claude Maleval (2002), dentre outros autores, dedica em sua tese La

    forclusin del nombre del padre uma extensa investigao do termo, esclarecendo

    que se trata de uma palavra originalmente advinda da filosofia de Brentano,

    demarcando ainda as diferenas e analogias entre o emprego freudiano e lacaniano.

    Para Freud, o sentido do termo era diversificado e extenso, no necessariamente

    utilizado para tratar da parania e da psicose, enquanto para Lacan, era restrito

    psicose, conotao jurdica atribuda palavra em francs o que lhe permite a

    traduo por forcluso de um significante primordial, chamado por ele, dentre outros

    nomes, de Nome-do-Pai.

    A parania surge muito cedo na obra freudiana como investigao, mas

    demarcando um limite com a psiquiatria atravs do termo etiologia, considerada

    como sexual segundo o criador da psicanlise. Entre Freud e Lacan, o conceito de

    Verwerfung o que parece demarcar o limite das distintas concepes da parania.

    Evidentemente, so termos representativos, e no se pode restringir a amplitude de

    duas grandes obras a dois conceitos, pois se trata apenas de exemplos colhidos nos

    pontos de interseo dentro da abrangncia oferecida pelas construes

    psicanalticas desses dois autores.

    Outro exemplo da Verwerfung como um limite conceitual entre Freud e Lacan

    foi a leitura e o contraponto conduzidos por este em torno do caso O homem dos

    lobos em Histria de uma neurose infantil (1976) e comentado em mais de uma

    publicao para Freud. Trata-se de um caso de neurose obsessiva, entretanto,

  • 34

    curiosamente, Lacan (1985, p.21) afirma no Seminrio As psicoses que o texto

    desse caso clnico sem ambigidades e que O homem dos lobos testemunha

    tendncias e propriedades psicticas na curta parania que far entre o fim do

    tratamento de Freud (...). Essa clnica exemplar, pois dela Lacan extrair o

    conceito de Verwerfung para demarcar que tudo que recusado na ordem

    simblica, reaparece no real e fazer do conceito um marco diferencial entre a clnica

    da neurose e da psicose.

    2.3 O DIVISOR DE GUAS EM LACAN

    O trabalho de Jacques Lacan constitudo por sua tese de doutorado em

    psiquiatria, artigos diversos e artigos reunidos em duas publicaes mais

    abrangentes, Escritos (1998) e Outros Escritos (2001), alm das lies de seu

    ensino publicadas em 24 livros, parte dos quais esto publicados em portugus,

    compreendendo o perodo de 1934 a 1978.

    A formalizao dos conceitos lacanianos sobre a psicose decorre das

    reflexes e mudanas efetuadas nos dois momentos de seu ensino, que so

    demarcados por epistemologias diversas, sendo a primeira estruturalista, seguida da

    topologia e da lgica. A clnica da psicose, na perspectiva lacaniana, trabalhada

    diversamente atravs de trs paradigmas, dois quais dois esto situados no campo

    da literatura, o que lhe franqueou articulaes com o estilo, a letra, a obra. Schreber,

    Lol. V. Stein - personagem de um romance da escritora francesa Marguerite Duras -

    e o escritor irlands James Joyce, so exemplos que permitiram a Lacan extrair e

    demonstrar lies clnicas. (NAVEAU, 2004)

  • 35

    Demarcado em dois momentos distintos, cuja datao nem sempre precisa,

    o ensino lacaniano foi diferenciado em dois algoritmos, segundo o que esclarece a

    exposio de Miller (2003). No primeiro, a referncia a lingstica estrutural, na

    qual o trabalho recai sobre as relaes entre o significante e o significando. O

    inconsciente histria, portanto expresso do conjunto dos efeitos de sentido H um

    perodo intermedirio, no qual alguns artigos representam um momento de toro e

    passagem, tais como: tais como: Langoisse (2004); Los nombres del padre (2005);

    Os quatro conceitos fundamentais em psicanlise. O segundo algoritmo, situado

    mais alm do inconsciente, marca uma barra, uma separao entre o real e tudo o

    que seria sentido e saber. A neurose seria representativa do primeiro ensino, e a

    psicose, do segundo.

    Se a referncia inicial o inconsciente estruturado como uma linguagem,

    haveria trs organizaes clnicas - neurose, perverso e psicose - portanto

    estruturas subjetivas distintas. A parania seria representativa de uma das

    manifestaes da psicose, e esta estrutura seria diferenciada das demais pela

    presena da forcluso, da Verwerfung, como diz em 1956:

    De que se trata quando falo da Verwerfung? Trata-se da rejeio de um significante primordial em trevas exteriores, significante que faltar desde ento nesse nvel. Eis o mecanismo fundamental que suponho na base da parania. Trata-se de um processo primordial de excluso de um dentro primitivo, que no o dentro do corpo, mas aquele de um primeiro corpo de significante (LACAN, 1985, p.174)

    Nesse perodo, ele enuncia algumas questes importantes: 1. na parania, diferente

    da esquizofrenia, h uma relao de alienao imaginria do eu. 2. tomar o

    imaginrio pelo real o que caracteriza a parania. 3. a injria um termo

    destacado como essencial na fenomenologia clnica da parania.

    No Seminrio A tica da psicanlise, de 1959, Lacan (1988) far articulaes

    sobre a crena e a descrena no sujeito paranico, que sero retomadas em 1964,

  • 36

    no Seminrio Os quatro conceitos fundamentais da psicanlise, tal como se v na

    lio de 10.06.64.

    No fundo da prpria parania, que nos parece no entanto toda animada de crena, reina esse fenmeno de Unglauben. No no crer nisso, mas a ausncia de um dos termos da crena, do termo em que se designa a diviso do sujeito. (LACAN, 1985, p.225)

    A articulao da crena, da descrena e da escritura resultam em uma

    importante reflexo sobre a letra, a palavra e o corpo, que encontraro no Seminrio

    Le sinthome, de 1975, seu desenvolvimento mais expressivo, posto que o sujeito

    concebido como um efeito do real.

    No Seminrio Los nombres del padre (2005), de 1963, e em R.S.I. (1974,

    p.23), de 1974, trabalhar a incidncia da voz, do olhar do Outro, e o congelamento

    do desejo para o sujeito paranico. A redefinio de sintoma como o que, do

    inconsciente, pode se traduzir por uma letra franquear os desenvolvimentos

    posteriores, necessrios construo do terceiro paradigma clnico - James Joyce.

    O segundo algoritmo lacaniano encontra-se ainda em processo de

    formalizao pelo Campo Freudiano, mas decorre das vias abertas pelos Seminrios

    Mais, ainda (1985) e Le sinhome (2005). Mais especificamente rene as idias

    contidas nos seminrios 18 at 24. O conceito de inconsciente modificado e a

    psicanlise lacaniana passa a ser definida como uma experincia do real.

    Na resenha e comentrios sobre as contribuies lacanianas elaborados por

    ric Laurent (1995), o autor assinala que de 1936 a 1976, a cada dez anos, houve

    no ensino de Lacan, uma reformulao sobre as psicoses. Nesse vasto perodo,

    destacam-se seminrios ou momentos nos quais so localizados artigos

    fundamentais: O Seminrio 3, As psicoses (1985), no qual ele trabalha a noo de

    inconsciente estruturado como uma linguagem, introduz o termo desencadeamento

    e a concepo de descontinuidade, posto que o significante descontnuo. Nos

  • 37

    Escritos, em 1958, o texto De uma questo preliminar a todo tratamento possvel da

    psicose (1998), no qual a questo preliminar o conceito de forcluso do

    significante Nome-do-Pai e seus efeitos como dano que o sujeito tenta inutilmente

    reparar. Acrescenta-se que as observaes de Lacan sobre o jogo da coao a

    pensar e sobre o pensar em nada, investigado no relato de Schreber, trazem

    importante desenvolvimento para o entendimento do mecanismo do delrio e o

    pensamento inconsciente.

    Laurent destaca o perodo de 1964 a 1969 como muito rico em textos sobre a

    psicose, sublinhando que no Seminrio 11 que se encontra a primeira referncia

    de Lacan sobre a psicose infantil em um novo enfoque, a partir do posicionamento

    da criana psictica como resposta fantasia de sua me.

    Os Seminrios proferidos em torno de 1976 produzem nova orientao que

    permite repensar formas diversas de estabilizao nas psicoses. Se a lingstica

    serviu para trabalhar o lao entre os primeiros significantes, a topologia, por outro

    lado, surgiu nesse perodo como instrumento para pensar o significante sozinho. O

    Um da exceo, que fixa um gozo como letra e, nesse sentido, dispensa o Outro da

    linguagem. Essa mudana no se faz de modo aleatrio. Trata-se, como diz Maleval

    (2002, p.133), de um esforo de rigor para captar de forma cada vez mais fina a

    definio de estrutura do sujeito.

    O conceito de parania e de psicose acompanha esse vasto movimento

    terico e ainda se faz presente como ponto de reflexo em Lacan, no Seminrio

    XXIII, quando afirma que o imaginrio, simblico, real so de uma s e mesma

    consistncia e no que consiste a psicose paranica. Autores diversos, de

    diferentes pases, tm procurado trabalhar essa questo. Mazzucca (2000) indaga

    tanto a significao no real, que leva ao trabalho sobre a parania, quanto indaga

  • 38

    sobre a continuidade, a solda dos trs registros. Por outro lado, Naveau (2002)

    argumenta que a parania ficaria ausente da lgica do n borromeano porque a

    parania supe uma hierarquia, uma ordem, e a topologia dos ns se ope lgica

    do significante.

    Esse debate ser retomado nos captulos seguintes, porm se conclui, da

    breve pesquisa terica exposta neste captulo, que os conceitos psicanalticos no

    podem ser tomados isoladamente. Devem ser considerados tanto em Freud, quanto

    em Lacan, no contexto histrico em que foram pensados, assim como no incessante

    trabalho de leitura, de inscrio retroativa, trabalho que a psicanlise nomeia a

    posteriori, que uma das tradues possveis do termo freudiano, Narchtrglich. O

    tempo, aqui, no cronolgico, mas da lgica do inconsciente, lgica subjetiva.

    Em uma ampliao da perspectiva, a psicose, e no apenas a parania, ser

    tratada no ltimo ensino de Lacan como conceito que faz parte de um dos vetores

    que conduziro mais alm do inconsciente, e por isso mesmo, tomada como limite,

    ponto de passagem, travessia terica para uma dimenso indita da psicanlise. A

    parania ser ento reexaminada por vrios autores luz do segundo tempo do

    ensino de Lacan.

  • 39

    3 O COGITO PARANICO: EU PENSO, LOGO ELE GOZA - E OS

    CONCEITOS LIMITES

    No incio de um dos captulos de seu livro de memrias, Schreber diz:

    Dizem que eu sou paranico e dizem que os paranicos so pessoas que relacionam tudo a elas. Nesse caso, eles se enganam, no sou eu que relaciono tudo a mim, ele que relaciona tudo a mim, esse Deus que fala sem parar no interior de mim mesmo por meio de seus diversos agentes e prolongamentos. (LACAN, 1985, p.157)

    O cogito paranico, modo de pensar privilegiado na parania, tem no

    testemunho de Schreber um exemplo bastante contundente. Jacques-Alain Miller

    (1996, p.158) escreve a frase que foi colhida e citada no ttulo deste captulo. Deve-

    se ressaltar o termo certeza como aquele que permitiu a Lacan esclarecer o cogito

    cujo segredo uma forcluso. A certeza do delrio, da interlocuo delirante,

    manifesta-se em gozo carregado de significao, absoluta, infinita, presente no

    testemunho de algo que tomou a forma da palavra e fala ao sujeito. O mundo perde

    sua neutralidade, no h lugar para a contingncia, para o acaso, e tudo faz signo

    para o sujeito.

    Percorrer a significao do delrio e esclarecer o fenmeno psictico e seu

    mecanismo foi o ponto de partida do extenso trabalho de investigao lacaniana,

    situado tanto na tese de doutorado de Lacan sobre as relaes entre parania e

    personalidade, publicada em 1935, quanto nas indagaes advindas da concluso

    dessa tese e que se encontram nos artigos de 1946, 1948, dentre outros.

    Em data um pouco anterior a 1935, houve um encontro de Lacan com o

    surrealismo francs, mencionado no artigo De nossos antecedentes, no qual h uma

    retrospectiva dos trabalhos que acompanharam sua entrada em anlise e sobre a

  • 40

    tese que se desenvolveu sob a rubrica conhecimento paranico, mencionando os

    nomes de Dali e Crevel, alm da parania crtica.

    A esse respeito, deve-se registrar que, em 1930, o pintor Salvador Dali define

    sua pintura construda atravs do que nomeia mtodo paranico-crtico, sobre o

    qual desenvolver vrios artigos. Dali (1994, p.3) descreve um mtodo espontneo

    de conhecimento irracional baseado em fenmenos delirantes, no qual pretende

    sistematizar seus delrios concebendo a parania como exaltao orgulhosa de mim

    mesmo. Nesse sentido, visava a vigncia do sonho em viglia, alm da explorao,

    organizao crtica e ativa do pensamento paranico no campo da arte. Em uma

    crnica publicada recentemente, Herbert Waschberger (2005) menciona o elogio de

    Dali tese de Lacan e indaga as repercusses desse encontro para o incio das

    elaboraes lacanianas sobre a parania.

    Vinte anos aps a tese, o trabalho mais extenso de Lacan sobre a psicose

    privilegia ainda indagaes sobre a parania. O livro de memrias de Paul Daniel

    Schreber, publicado em 1903, e o trabalho j desenvolvido anteriormente por Freud,

    em 1909, subsidiaram algumas hipteses essenciais sobre esse tema - dentre elas o

    conceito de forcluso e de desencadeamento.

    No ltimo ensino, surge uma outra leitura da psicose, problematizada mais

    amplamente, sob uma perspectiva decorrente de outra axiomtica, no recurso

    lgica, topologia, a outro conceito de inconsciente e de sujeito, a outro interlocutor

    e outra obra: a do escritor irlands James Joyce. O pensamento encontra seu limite.

    Freud considerou, ao longo da construo psicanaltica, cinco temas

    diretamente relacionados com a parania: o conceito de defesa; o mecanismo do

    recalque; a teoria do narcisismo e da libido; a eleio homossexual do objeto; a

    perda e a reconstituio da realidade. Lacan, a partir do Seminrio 3, desenvolve os

  • 41

    temas: os fenmenos elementares, mas diferenciados dos fenmenos propostos

    anteriormente por Clrambault; a forcluso do Nome-do-Pai; os transtornos da

    linguagem; as formas de desencadeamento; as construes delirantes; a

    emergncia de A mulher ; a transferncia do sujeito psictico.

    A autobiografia de Schreber, publicada em 1903, destinou-se, por vontade de

    seu autor, contribuio valiosa para a pesquisa cientfica. Segundo palavras

    extradas do extradas do prlogo de sua autobiografia:

    Creio que poderia ser valioso para a cincia e para o conhecimento das verdades religiosas possibilitar, ainda durante a minha vida, quaisquer observaes da parte de profissionais sobre meu corpo e meu destino pessoal. (SCHREBER, 1995, p.23)

    Freud (1969, p.33) justifica seu interesse por esse livro nico afirmando, em

    1911, que um relatrio escrito ou uma histria clnica impressa podem tomar lugar

    de um conhecimento pessoal do paciente. A autobiografia contm elementos que

    permitem situar tanto os principais temas pesquisados por Freud e Lacan sobre a

    parania, quanto subsidia observaes sobre a analogia entre crena delirante e

    mitologia, desenvolvidas por Freud em seu ps-escrito e retomado em outros

    trabalhos posteriores. Portanto, a contribuio valiosa almejada por Schreber

    ultrapassa o mbito do caso clnico e se estende ao campo do mito, da crena, da

    cultura.

    Quando discute a causalidade essencial da loucura nas Formulaes sobre a

    causalidade psquica, em 1946, Lacan (1998, p.163) reafirma, a propsito do debate

    sobre sua tese, que no podemos esquecer que a loucura um fenmeno do

    pensamento. Seguindo as hipteses freudianas, a causalidade da parania foi

    localizada inicialmente por Lacan na identificao narcsica, na qual a relao com a

    imagem rene a alienao de um Eu primordial e o sacrifcio suicida. Lacan

    estabelecia assim a analogia e a diferena entre o estatuto original do sujeito, como

  • 42

    capturado pela imagem do outro, e a estrutura fundamental da loucura. Miller (1998,

    p.258) teceu consideraes em torno dessa questo lacaniana, de que o narcisismo

    a parania e, nesse sentido, vale para todo sujeito.

    Ainda segundo Miller (2003), em Schreber tem-se a referncia de que o

    pensamento gozo, considerando que o incessante pensar est vinculado a uma

    cogitao articulada, cujo ponto de basta demarcado por instantes limitados que

    do lugar ao pensar em nada, breves momentos de silncio que no caso de

    Schreber faz cessar a rplica. O silncio surge como funo de corte que tem por

    efeito apaziguar a interlocuo delirante.

    O cogito paranico na obra de Lacan pode ser lido em dimenses diferentes,

    tributrias das modificaes nas concepes de sujeito, portanto, de inconsciente e

    gozo desenvolvidas ao longo de seu ensino. Isso equivale a considerar a parania e

    os tratamentos propostos ao gozo nos trs registros: Imaginrio, Simblico e Real.

    Lo simblico, lo imaginrio y lo real (2005) foi o ttulo de uma palestra

    proferida por Lacan (2005) em 1953, na qual aborda pela primeira vez essa trade de

    nomes aos quais dedicar, por aproximadamente trs dcadas, um trabalho de

    reviso conceitual at a poca de seu ltimo ensino. Considerar a parania na

    diversidade dessa perspectiva permite situar a evoluo de um conceito, seus limites

    e demarcar-lhes os pontos de passagem.

    Entretanto, h em Lacan o que Miller nomeia de paradigma constante, que

    deve ser considerado, ou seja, o sujeito no pode ser conceituado sem a

    dependncia ao discurso do Outro. Trata-se de um princpio que repercute sobre

    diversos nveis da teoria psicanaltica, mesmo quando Lacan (2003) privilegia em

    seu trabalho o resduo de uma operao significante, que o objeto a.

  • 43

    Considerando esse paradigma, examina-se na parania o estatuto do sujeito, do

    Outro, do objeto e do sintoma.

    3.1 O IMAGINRIO

    O momento histrico no ensino de Lacan, no qual a investigao recai

    preferencialmente sobre o registro imaginrio pode ser situado entre a publicao de

    sua tese e o artigo sobre agressividade, de 1935 a 1948. A pesquisa do estdio do

    espelho e o estudo dos conceitos de identificao e alienao especular, dentre

    outros situam a parania na perspectiva do narcisismo freudiano e das hipteses

    sobre a agressividade, expresso da alienao imaginria do eu, reafirmada at o

    Seminrio 2, em 1955.

    Esse eu o outro do espelho imaginrio, o eu ideal, simultaneamente amado

    e odiado, que foi investigado por Lacan em sua tese atravs do caso de Aime. No

    Seminrio 3, ele tentar cernir a dimenso desse dilogo com o outro, destacando o

    valor central da indagao Quem fala? na parania. Isto porque essa pergunta

    ressurge de diversas maneiras em alguns sujeitos, como resposta marcada pela

    certeza: nos delrios querelantes, nos delrios de cime e perseguio, nos quais o

    significante tomado no sentido material e as palavras ganham um significado

    especial; quando a frmula verbal se repete, repisa numa insistncia estereotipada;

    ou na certeza do conhecimento paranico que se faz pela via da rivalidade e do

    cime.

    A imago foi o operador privilegiado do registro imaginrio e do encontro com a

    imagem do duplo, representado pelo eu ideal. O imaginrio tem dois caminhos: o

    primeiro, a estrutura formal do eu e a paixo narcsica; e o segundo, lugar de

  • 44

    retorno. Na psicose, retorna vindo de fora, nas interpretaes delirantes paranicas,

    no corpo despedaado do sujeito esquizofrnico, e sobretudo na captao da

    imagem na dialtica das identificaes. Imagem que, na psicose, toma consistncia

    de realidade.

    Em 1948, no Seminrio sobre A agressividade em psicanlise, Lacan (1998)

    desenvolve sua Tese IV em torno do argumento de que a agressividade

    corresponde a um modo de identificao narcsica e que esta determina a estrutura

    formal do eu. Nesta enfatiza, por um lado, a parania de autopunio na qual o ato

    desfaz a construo delirante, e por outro, situado no ponto culminante da reao

    agressiva, enfatiza o kakon obscuro, ou seja, a destrutividade dirigida imagem do

    duplo. Essa paixo desvairada seria mediadora e ao mesmo tempo realizaria a

    opresso imposta pelos imperativos do supereu. Nesse perodo, o tratamento ao

    gozo, conforme indicado por Lacan, e os casos clnicos estudados pareciam indicar-

    lhe, localiza-se na passagem ao ato e nas diversas formas que a reao agressiva

    pode assumir para o sujeito paranico.

    A incidncia do supereu como um imperativo que oprime e coage o sujeito foi

    verificada por Lacan desde o tempo de sua tese, na esfera dos fenmenos impostos.

    Em 1959, no Seminrio A tica da psicanlise, foi problematizada como uma

    questo fundamental que faz parte dos princpios do prazer e realidade postulados

    por Freud, at constituir-se nos paradoxos da tica, pois participa das questes que

    constituem o bem e mal para um sujeito. No ltimo ensino, Lacan volta a indagar a

    voz como uma das faces do objeto, que na psicose no destacada do campo do

    Outro. Ele trabalha tanto a voz do supereu quanto instiga o analista a considerar a

    voz do Outro a que ele d corpo.

  • 45

    O captulo relativo ao supereu e sua participao nessa estrutura

    importante, mas considerado em sua vastido, ultrapassaria os limites do tema aqui

    tratado, motivo pelo qual ser apenas em breves momentos mencionado.

    O estdio do espelho, terreno inicialmente privilegiado do imaginrio,

    trabalhado por Lacan na diferena entre organismo e corpo visual, e seus avatares

    perceptivos, mas marcado por uma funo vital, pois a imagem corporal qual o

    sujeito se identifica tem valor de vida. (MILLER, 2004, p.59)

    Entretanto, para Schreber a regresso imaginria e a fragmentao da

    identidade, produtos da forcluso, surgem na revelao da prpria morte que fora

    anunciada nos jornais. A morte do sujeito marca em determinado momento a relao

    de Schreber com seus semelhantes. O gozo concebido por Lacan, como especular

    e narcsico, pode ser lido principalmente nos fenmenos de corpo apresentados na

    psicose.

    Quando posteriormente Lacan revisita o estdio do espelho e mais

    amplamente o imaginrio pela perspectiva do registro simblico, do significante

    Nome-do-Pai, desvela a mortificao intrnseca da regresso imaginria, signo de

    um gozo mortfero com a imagem. Com isso, modifica os limites conceituais de

    narcisismo trabalhado nessa poca e as hipteses que lhe eram correlatas.

    A regresso imaginria e a erotizao delirante da imagem, produtos da

    forcluso, encontram na frase de Schreber - Um cadver leproso conduzindo um

    outro cadver leproso - um testemunho eloqente. Nesse instante, o gozo passa a

    ser concebido por Lacan como especular e narcsico, lido principalmente nos

    fenmenos de corpo apresentados por Schreber.

    Miller (1998, p.261), em seu Seminrio Los signos del goce, tece comentrios

    pertinentes sobre a releitura do imaginrio conduzida por Lacan at o final de seu

  • 46

    ensino, dos quais particulariza-se a expresso parania dirigida: quando o nome

    da insgnia era imago, Lacan considerava a psicanlise como uma parania

    dirigida. Essa expresso se justifica porque uma psicanlise examina, faz esgotar o

    valor das diferentes identificaes ideais que incidiram na histria do sujeito.

    Acrescenta-se que no final do Seminrio de 1960, A transferncia, Lacan dir que o

    trabalho de luto um dos elementos que antecede e conduz ao final de uma

    anlise; luto das identificaes, dos ideais, das perdas reais - marcas dos traos

    que foram um a um percorridos na experincia analtica.

    A partir do Seminrio Mais ainda e nos textos em torno de 1972, Lacan (1985)

    ir decompor a questo do que faz o Um, a identificao, e destacar outro estatuto

    do objeto a, quando esclarece que sob o hbito do corpo h o objeto e o que faz

    esse corpo agentar-se como imagem o resto. A releitura promovida no registro do

    imaginrio se insere no movimento maior do trabalho conceitual da psicanlise

    lacaniana, como se ver a seguir. A identificao se dirigir a um nome, e o

    pensamento incluir seu limite de comunicao no gozo do corpo, na impossibilidade

    de escrever a relao sexual.

    3.2 O SIMBLICO

    A partir de 1955-58 e da referncia fornecida pela dupla noo de significao

    do falo, Lacan distingue progressivamente as noes de eu ideal e ideal do eu.

    Nesse perodo, que alcana o Seminrio de 1962, A identificao, a causalidade

    significante atribuda ao simblico, o operador o falo, e a fantasia, passvel de

    representar a conjuno das funes simblica e imaginria. O drama da loucura

    situado na relao do homem com o significante encontra-se desenvolvido no artigo

  • 47

    De uma questo preliminar a todo tratamento possvel da psicose. Esse artigo foi

    escrito na mesma data que o Seminrio 3: As Psicoses, no qual o conceito de

    forcluso do significante Nome-do-Pai ser um dos fundamentos conceituais

    demonstrados no desencadeamento. A funo Nome-do-Pai opera como ponto de

    basta na ordem simblica, pois o significante que detm o deslizamento infinito da

    cadeia. Quando h forcluso do S1, a metfora delirante vem substituir a metfora

    paterna. Com isso, Lacan demonstra que a psicose determinada pelo significante.

    Miller (1996) destaca alguns aspectos fundamentais do texto de Lacan que

    devem ser brevemente comentados:

    1. a psicose uma estrutura, noo bsica que dar suporte s construes

    lacanianas que viro em seguida;

    2. a importncia dos esquemas: O esquema L demonstra um sujeito diante

    das questes propostas por sua existncia. O esquema R, o sujeito e o jogo dos

    significantes. O esquema I, a dupla curva da hiprbole e assntota, atravs da qual

    demonstra que o estado terminal da psicose no o caos petrificado. Os esquemas

    representam um segundo momento na obra de Lacan, e talvez o mais decisivo no

    tempo do primeiro ensino, que consiste em trabalhar, esquematizar as articulaes

    entre o Simblico, o Real e o Imaginrio.

    3. a transferncia como fator que precipitou o sujeito Schreber na psicose,

    questo que no constitui um ponto pacfico, pois o prprio Lacan acrescenta a esse

    respeito novas indagaes. A transferncia erotmana ou persecutria faz parte do

    tratamento do sujeito psictico, particularmente no paranico, e representa um

    elemento importante na direo do tratamento, como se ver a seguir.

    Foi preciso que historicamente Lacan ultrapassasse o debate com a dialtica

    hegeliana, que marcou o estudo da parania na perspectiva do estdio do espelho,

  • 48

    para iniciar o perodo de referncia lingstica estrutural, particularmente noo

    de inconsciente estruturado como uma linguagem e de sujeito do inconsciente. Esse

    foi o marco decisivo para a nfase atribuda ao registro do simblico nesse perodo.

    A leitura do Caso Schreber foi essencial para o estudo da psicose a partir do

    estudo desenvolvido por Freud, em 1909, sobre a autobiografia de Paul Daniel

    Schreber. Alguns captulos dessa autobiografia so comentados ao longo do

    desenvolvimento das hipteses lacanianas no Seminrio 3. Nessa poca,

    prevalente a questo flica, o Nome-do-Pai, de onde decorrem as diferenas entre

    gozo flico e gozo do Outro, e o determinismo simblico do desencadeamento. H

    na psicose o encontro com Um pai que promove o surgimento dos fenmenos

    elementares: neologismos, delrios, alteraes da linguagem. Lacan modifica a lista

    proposta por Clrambault porque na perspectiva da psicanlise, ao examinar a

    noo de inconsciente estruturado como uma linguagem, considera os fenmenos

    elementares em outra epistemologia, outra causalidade.

    No Caso Schreber destacada a relevncia da escrita para o sujeito psictico

    como possibilidade no tratamento de um gozo que o invade e o abandona. A escrita,

    que ser repensada no tempo de seu segundo ensino, foi considerada desde essa

    poca por Lacan:

    A introduo da categoria de sujeito pelo psicanalista leva, em primeiro lugar, a considerar o texto psictico como fico e distribuio de gozo, e, em segundo, valorizar essa funo do texto, no como uma exibio de identificaes, mas, propriamente falando, como um esvaziamento do gozo. (LAURENT, 1995, p.189)

    Lacan (1985, p.20) inicia a construo do Caso Schreber no Seminrio 3

    apontando a decifrao champollionesca que Freud opera nesse livro nico,

    traduzindo-o e com isso revelando um idioma esquecido. Entretanto, alerta que o

    sujeito psictico ignora a lngua que fala. Se o inconsciente permanece excludo

  • 49

    para o sujeito porque ele aparece no real. Esse o efeito da Verwerfung, do que

    recusado na ordem simblica.

    Indaga o papel central da alucinao verbal na parania e empenha-se por

    descrever a natureza do delrio, pois no contedo do tema delirante de Schreber

    sobre os nervos e raios divinos haveria uma analogia com as estruturas de troca

    interindividual da economia intrapsquica. As palavras adquirem uma significao

    irredutvel e a frase, plena de neologismos, nos quais se observam os fenmenos de

    intuio delirante a lngua fundamental na qual a palavra do enigma traduz uma

    experincia particular - e a frmula, que demonstrada nas repeties, na

    insistncia estereotipada, no ritornelo.

    Para Clrambault, o eco do pensamento era considerado um dos

    fenmenos do automatismo mental que Lacan interpreta como uma perturbao do

    enunciado com a enunciao, pois verifica que enquanto o sujeito paranico

    prdigo em enunciados, ele no pode lidar com a enunciao, com os lapsos e por

    esse motivo eles vm de fora. O trnsito da mensagem para o cdigo e do cdigo

    para a mensagem fica destrudo, impossibilitado devido forcluso. Segundo Lacan

    (1999), os fenmenos de vozes substituem essa deficincia. No h na psicose um

    Outro do qual o sujeito receba sua prpria mensagem invertida. Portanto os lapsos,

    os tropeos, os mal-entendidos, os engodos da linguagem no dividem o sujeito.

    nesse ponto que Lacan comenta de outro modo a estrutura do discurso

    paranico, na gramtica de trs tempos que justifica o delrio de perseguio: no

    sou eu que o amo; eu no o amo, eu o odeio ; ele me odeia . Ele diferencia o

    delrio de cime paranico - marcado pelo gozo malfico vindo do Outro - da

    erotomania - no delrio de ser amado - mas enfatiza o ponto em comum entre esses

    dois delrios que a certeza como postulado fundamental.

  • 50

    No fundamento da parania alguma coisa tomou a forma de palavra falada,

    que lhe fala (LACAN, 1985, p.52), como anteriormente Freud construra no

    movimento de negao e projeo, extraindo os trs tempos da gramtica do

    testemunho de Schreber.Entretanto a partir de 1958, nos artigos sobre psicose que

    compem os Escritos, Lacan estabelece uma diferenciao, pois em vez de

    privilegiar o mecanismo de projeo enfatizado por Freud e pelos ps-freudianos,

    trabalha a resposta que vem no real.

    A posio de exterioridade dessa fala demonstra que a palavra forcluda no

    registro do simblico reaparece no real como uma significao que no remete a

    nada, mas que, ao mesmo tempo, diz respeito ao sujeito. Lacan aponta uma relao

    especfica do sujeito com um saber que o persegue, pleno de certeza, mas que por

    no haver do lado do sujeito nem falta nem diviso subjetiva, faz repercutir como

    Unglaube, a descrena, o inacreditvel. Evidentemente, h o inacreditvel do lado

    da neurose, mas este de outra natureza, surge como encontro marcado com a

    tiqu, como demonstra o belo exemplo citado por Freud no artigo de 1935, Um

    distrbio de memria na Acrpole.

    Na psicose, o Outro que est excludo na dimenso do campo simblico

    reaparece no real, e em decorrncia dessa excluso, surge como gozo do Outro e

    adquire ento sua materialidade real, absoluta. Em Schreber, o fenmeno do gozo

    aparece como algo que o invade e o dilacera. A resposta subjetiva um urro terrvel.

    Em outros momentos, surge para o sujeito como alternncia entre a obrigao de

    pensar, que corresponderia alienao, intercalada pelo pensar em nada, tentativa

    sempre fracassada de separao. Curiosamente, tambm se verifica na psicose um

    apelo castrao, mas que no pode se realizar no registro simblico e se reitera

  • 51

    incessantemente no real, num eterno presente, justificativa das passagens ao ato.

    (MILLER, 1998)

    Essa excluso fundamental, Freud a havia trabalhado em outros termos como

    uma presena ou ausncia da Bejahung, afirmao primeira, correlacionada a uma

    incluso do significante, e a Ausstossung, o exerccio do princpio da realidade, que

    diferencia simblico e real. Esse juzo de existncia simblico inscreve a castrao

    no lugar do Outro, segundo a leitura e a traduo promovidas por Lacan dos termos

    freudianos. O mecanismo da psicose, a Verwerfung, exclui toda a possibilidade de

    uma eliso significante, portanto, de uma Bejahung/Ausstossung. A forcluso vem

    demonstrar o lanamento para fora do no assimilvel da primeira inscrio, o no

    funcionamento do juzo de existncia na psicose e, ao mesmo tempo, permite

    localizar as formas de desencadeamento. Vale ressaltar que a diferenciao

    promovida por Lacan entre as formas de excluso neurtica e psictica foi

    fundamental para a psicanlise, porque diferente da neurose, a forcluso psictica

    irreversvel e impede a reapropriao do sentido. Ao sujeito psictico resta a

    alternativa da compensao imaginria ou a metfora delirante.

    O Nome-do-pai conceituado por Lacan (1998, p.564) em De uma questo

    preliminar a todo tratamento possvel na psicose, faz referncia aos mitos freudianos

    do dipo, Totem e Tabu e acarreta para alguns autores uma conotao religiosa, a

    do Pai da ordem simblica. A forcluso na psicose incide diretamente sobre esse

    significante, o Nome-do-Pai, provocando um furo correspondente no lugar da

    significao flica. Schreber demonstra que na ausncia do pai simblico h o

    encontro com o pai real, fora da lei, o Deus terrvel gozador, presente na temtica do

    delrio. Ao furo no Outro corresponde o dano representado pela expresso

    assassinato dalmas.

  • 52

    Quando est escrito no campo do Outro, o Nome-do-Pai permite ordenar o

    universo do senti