O Cavaleiro Da Concordia

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JORGE ELIAS

CAVALEIRO DA CONCRDIAOHOMEM DO OUTRO MUNDO

Copyright by: Racional-Grfica Editora Ltda.Este volume foi composto e impresso naRacional-Grfica Editora Ltda.- DISTRIBUiO INTERNA

RACIONAL GRFICA EDITORA LTDA.

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Para Joo Roberto Kelly, Z Ketty, Vicente Paulo de Mattos, Orlando Dias, Paulo Bob, Jos Ventura, Orestes e Robertinho Golden Soy. Msicos, compositores e. cantores. Ventos Racionais a embalar a vida com suas canes. Momentos de poesia, ternura e xtase; Para Wilton Franco que me levou do jornal para televiso. Padrinho, conselheiro e amigo; Para Jos Louzeiro que me trouxe "fora" da televiso para o livro. Irmos de duras jornadas, incentivador incansvel e perseguidor rigoroso; Para Maurcio Gaze, Jos Petros e Luiz Srgio. Amizades sinceras, solidificadas nos momentos difceis de minha vida .

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ANTES, UMA ADVERTNCIA

S

e a situao poltica do Presidente Jos Sarney era difcil, frente do

Executivo, em dezembro do ano passado, o mesmo no poderia se

afirmar trs meses depois. Coincidncia ou no, o Governo Jos Sarney se fortaleceu, logo aps a visita do Mestre Manoel Jacintho Coelho ao Presidente, no Palcio da Alvorada, em Braslia. A completa e surpreendente modificao do quadro poltico brasileiro, possibilitou a Jos Sarney realizar todas as suas vontades, aprovando, entre os Constituintes, por margem substancial de votos, tudo aquilo que desejava: a vitria do presidencialismo como regime de governo e o mandato de cinco anos para Presidente da Repblica. Mas quem seria Manoel Jacintho Coelho, esse homem de 85 anos de idade, autor de uma obra de quase 800 livros, idolatrado por mais de cem milhes de brasileiros, os quais se vestem de branco e o tratam de PAI e GRANDE MESTRE? Teria ele poderes suficientes para modificar o destino poltico do Pas, com a mesma facilidade que consegue aparecer e reaparecer, simultaneamente em vrios lugares, realizando curas de molstias tidas como incurveis? Verdade ou no, as portas dos palcios sempre estiveram abertas para Manoel Jacintho Coelho e os ocupantes do poder sempre ronronaram aos seus ps.

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No s por sua fora poltica incontestvel, mas tambm por seus poderes h muito alardeados. No foi -toa que a principal figura poltica da histria republicana do Brasil, o Presidente Vargas, tornou-se amigo e confidente dele e at bateu cabea no gong da Tenda Esprita Francisco de Assis, no Mier. O livro que o senhor e a senhora tm nas mos no um trabalho especfico de Cultura Racional, nem pretende mostrar aos incrdulos, aos crentes e aos religiosos mais fervorosos, a luz da razo, o caminho da salvao e da eternidade. Longe de mim tamanha pretenso. Quem quiser continuar estudando Cultura Racional, ter de faz-lo atravs dos Livros UNIVERSO EM DESENCANTO, uma obra gigantesca, valiosssima, atravs da qual os Racionais afirmam que esto alicerando a construo de um mundo novo, aquele que ser habitado, segundo eles prprios, pela civilizao do Terceiro Milnio. No se trata tampouco de um retrato biogrfico do Mestre Manoel Jacintho Coelho. As biografias no me fascinam, nem me encorajam. Quase sempre so cansativas, entediosas. Na maioria das vezes, pretensiosas, dirigidas. E no raro, encomendadas para o lustro e glria de quem alcanou o sucesso, o poder e a fama, sem predicados ou mritos. No me prestaria a esse tipo de trabalho, at por temperamento. No toparia participar da feitura de um retrato retocado, de cores plidas, esmaecidas, deformado e irreal. Nem o Mestre Manoel Jacintho, pelo muito que lhe conheo, iria desej-lo. Quem arrasta atrs de si milhares de seguidores, transmitindo ensinamentos, lecionando corajosas lies, no precisa de biografias, nem de retratos retocados. Vale por aquilo que prega, pelo que ensina, pela imagem que empresta, pela rvore que planta, por suas revelaes e aquilo que realiza.8I

Agora, se a senhora ou o senhor desejam saber um pouco mais desse HOMEM, de sua histria e dos muitos episdios que contam sobre ele, de seus poderes, de sua fora, do incio de tudo, devem ler o livro. Fica aqui o meu convite. Se a curiosidade for muito grande, por certo vo devor-lo. Os caminhos percorridos por Manoel Jacintho Coelho foram to surpreendentes quanto as suas atuais aparies. O CAVALEIRO DA CONCRDIA nasceu da minha amizade com o Mestre Manoel Jacintho Coelho, da sugesto dele, bem como da cobrana de nossos amigos. Rene, numa linguagem simples, sem pretenses literrias, passagens da vida do Mestre Racional e fatos ocorridos com ele, antes e aps o surgimento da Cultura Racional. Muitos destes episdios foram contados pelo prprio Mestre Manoel e por certo teriam sido varridos pelo tempo, no fosse a sua privilegiada memria. Outras foram colhidas por mim, aqui e ali, nas minhas andanas, com muito carinho e interesse. De uma coisa estejam certos: O CAVALEIRO DA CONCRDIA vai aproxim-los ainda mais do homem Manoel Jacintho Coelho. Descortinar, atravs da leitura, um universo mgico, repleto de colorido e energias. Vai ajud-lo a compreender a obstinao e a inabalvel coragem de construir deste escritor Racional e tambm a dimenso de seu trabalho: envolvente, puro e branco como as roupas que vestem aqueles que decidiram segui-lo. A advertncia est feita. Venha, vamos iniciar a viagem. O autor.

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I parte

A LTIMA CARTADA

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oite inteira, as mulheres estiveram ali, exibindo a iluso de seus decotes. Enquanto havia msica, deslizaram pelo salo, jogando

beijos aos freqentadores mais tmidos e lanando olhares furtivos aos furtiv mais escolados. Mas acabaram indo embora com o passar das horas, ram algumas acompanhadas outras, no, deixando no ar a seduo de seus perfumes, bem como a lembrana de seus vestidos rodados. Agora, o Bar dos Carmelitas, um barulhento caf-concerto, instalado na Rua Moraes e concerto, Vale, na Lapa, vai ficando deserto. Apenas alguns msicos retardatrios e, ainda se misturam aos garons, empenhados no recolhimento das garrafas e copos espalhados sobre as mesas. Terno azul-marinho bem cintado, camisa de seda branca, gravata marinho de "tussot" e sapato preto de salto carrapeta, Manoel Jacintho Coelho ato retoma do banheiro, onde fra lavar o rosto, tentando afastar o sono e diminuir o cansao. Aquela noite havia sido diferente para ele, apesar da rotina. Durante o tempo em que permanecera abraado ao violo de sete vio cordas, divertindo bomios, mulheres, artistas, polticos, jornalistas, malandros e, principalmente, otrios, muita coisa aconteceu.

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Por alguns instantes, tivera a estranha sensao de estar saindo de seu prprio corpo, evaporando, depois partindo e encontrando um outro mundo. Tudo aconteceu de forma inesperada, incontida, e porque no dizer, avassaladora. Seu corpo comeou a ficar adormecido, como estivesse anestesiado. Ainda reagiu, respirando fundo. Quis falar, pedir ajuda, mas no conseguiu. Parecia flutuar no ar denso de fumo e de muitas fragrncias do Bar dos Carmelitas. E embora soubesse que algo de anormal, de muito srio, de novo e tambm diferente estivesse acontecendo, tinha a certeza: no havia perdido a conscincia, tanto que continuava dedilhando o violo, sem perder o compasso do samba de Ismael Silva, cantado por um crooner mulato, alto e forte, voz quente de lirismo e conhaque: - Se voc jurar! Que me tem amor! Eu posso me regenerar! Mas se para fingir mulher! A orgia assim no vou deixar. Assim permaneceu algum tempo, solto no espao. Wanda, amiga da Olvia, danarina do Cabar Royal Pigalle, aps observ-lo, comentou com Ceci, aquela que se tornaria, no futuro, o grande amor de Noel Rosa: - Olha s o Manoel. Hoje ele deve estar muito romntico. Desde que comeou a tocar est com os olhos fechados. Diante da observao da companheira, Ceci apenas sorriu. Depois balanou a cabea, concordando. Aquelas pobres mulheres da Lapa, to jovens, to bonitas e to carentes, ali estavam todas as noites, arrastando suas vidas pela pista de dana. Mais que um par constante, um cavalheiro bonito e bem arrumado, para enla-las pela. cintura, num rodopio elegante, ao ritmo da cano, sonhavam com um lar, um marido, filhos e uma famlia. A cada manh, porm, despertavam do sonho, sobre os lenis manchados de pecados e amarrotados dos hotis pouco recomendados da Rua Conde Lage. Nas bolsas, alguns trocados a mais.

Nos rostos, as marcas da decepo. Encerrado o transe, concluda a viagem de volta, Manoel Jacintho Coelho no escondia: estava atordoado. Perplexo, no sabia o que fazer nem tampouco o que contar. Imaginava apenas o fim daquela situao, daquele estado aflitivo, inexplicvel. Foi quando um forte assovio invadiu-lhe os ouvidos, um assovio ensurdecedor, bem parecido com aqueles emitidos pelos rdios antes da sintonizao. Surgiram, ento, diante de seus olhos, as terrveis imagens da tragdia. Sem perder tempo, procurou uma cadeira e tratou de sentar. Ouviu os estampidos dos tiros. Foram quatro, pde contar um-a-um. Seguiram-se os gritos de pavor e o corre-corre no cabar. Homens e mulheres buscavam a escada, desesperados, querendo fugir. Uns tropeavam, caindo. Outros, no. Corriam e saltavam sobre os que estavam no cho. O tumulto estava generalizado, o pnico estabelecido. Trs dos tiros haviam atingido um homem de terno branco, ele gemia de dor e ia se curvando, segurando o peito e a barriga. Logo o sangue manchou-lhe o terno e as mos, aumentando-lhe ainda mais a aflio. Manoel esforou-se tentando reconhecer aquele homem, cujo rosto lhe era familiar. Foi quando algum bateu-lhe nas costas, cantando e interrompendo-lhe a viso: Meu Deus, eu ando com o sapato furado! Tenho mania de andar engravatado! Minha cama um pedao de esteira! Uma lata velha me serve de cadeira ... Identificou o samba e a voz. O samba era Cabide de Molambo,~:.~ I

de Joo da Baiana, um velho amigo, mostrando com' humor, um tipo miservel, mas bastante comum nos bares e . na boemia da cidade. A voz, de um outro companheiro: Aristides Jnior de Oliveira,

o Moleque-diabo:- Ento, Manoel, vamos embora? A festa acabou ...15

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- Moleque, no sei o que est acontecendo comigo. Difcil de explicar, foi tudo muito estranho. - De que voc est falando, Manoel? Eu no estou entendendo nada ... - Vamos embora, Moleque. No caminho, eu lhe conto tudo. Certo? - Podemos dar uma paradinha no Capela. E ali comer qualquer coisa ... - Est bem, Moleque. Vamos at l.

razovel, o melhor bife com fritas da cidade. A conversa se tornara to interessante que eles nem perceberam, bem prximo, um bbado discutindo com a sombra, debaixo de um poste de iluminao a gs: - Voc tem de parar de me seguir ... o que voc quer de mim ... A caminhada, porm, foi interrompida. Diante dos olhos de Manoel surge novamente o rosto do homem de terno branco, cujas cenas da morte lhe foram antecipadas, ainda nas dependncias do Bar dos Carmelitas. O msico estremece, pra, empalidece. Comea a suar frio, sua expresso de pavor. Ao seu lado, Moleque-diabo quer saber o que est acontecendo, mas Manoel no consegue falar. O homem baleado no geme mais nem demonstra sentir dores. Sorri e fala, num tom debochado. Apenas Manoel escuta: - No queria saber meu nome, Manoel? Estou aqui para isso, dizer quem sou. Realmente voc me conhece de alguns carnavais. Tenho danado muito ao som de seu violo, pergunte ao amigo, o Moleque-diabo, a quem voc escolheu para as confidncias. Meu nome Octvio Jos Pinto. Mas na Lapa, na roda da malandragem, ganhei um apelido: Meia-noite. Segue-se uma forte gargalhada e o rosto de Meia-noite desaparece. No ar paira a fragrncia francesa do perfume predileto do malandro. No cho, reluzente, um monograma feito em ouro, com as iniciais do nome dele.

2Unhas polidas e anel de chuveiro, jaqueto de tropical ingls, num tom cinza-claro, Aristides Jnior de Oliveira, o Moleque-diabo - apelido que ganhou por suas qualidades de msico inigualvel de qualquer instrumento de corda - logo se apressa. Acomoda com todo cuidado, num estojo de veludo preto, o bandolim importado, e acena para o companheiro: - Estou pronto Manoel, vamos? Essa hora j no difcil de se conseguir uma cadeira num restaurante. E o Largo da Lapa, aparentemente intransitvel, no incio da noite, aos poucos vai ficando deserto. Ao apagar das luzes, a Lapa, porm, no menos barulhenta nem menos alegre. O vozerio de sua gente ainda pode ser ouvido distncia, vindo dos bares, dos cafs, das penses de mulheres e tambm dos cabars. Os dois msicos descem pelas caladas estreitas e pecaminosas da Rua Moraes e Vale, na direo do mal-afamado Beco dos Carmelitas, onde mora o poeta Manoel Bandeira. Protegidos pelas sombras das paredes dos antigos sobrados, seguem para o Largo da Lapa, onde o bonde faz a curva e fica o Capela, restaurante que serve, por preo16

3Bem prximo dali, um dos maiores amigos de Meia-noite, o Miguelzinho Camisa Preta - assim chamado por s usar camisa dessa cor - encontrava-se em apuros. Valente, bom de briga, apesar de sua baixa estatura - 1 ,64m de altura e 54 quilos de peso - ele est sendo retirado do interior do Cabar Novo Mxico, por uma mulher,17

Rosinha, uma ex-bailarina, muito ciumenta. E ela no faz por menos, castiga o companheiro com belisces, xingamentos, puxes de orelha e empurres. Dominado pelo corao, Miguelzinho no esboa a menor reao. Pelo contrrio, cabisbaixo, apanha em silncio. E enquanto o txi no vem, multiplicam-se os golpes. Rosinha est furiosa. Do outro lado da Avenida Mem de S, oito marinheiros divertem-se. com a situao. Chegam a se contorcer em gargalhadas e gritam, vez por outra, para a mulher: - Bate mais, ele gosta ... bate mais, ele gosta ... Miguelzinho continua calado. Aguarda um txi. Quando o primeiro se aproxima, ele no perde tempo: lana sua frente e trata de par10. Embarca a mulher, sem perda de tempo, e fala ao motorista: - O senhor pode manter o motor ligado. Vou ali e no demoro. De fato no perdeu muito tempo. gil como um gato, mestre na capoeira, senhor na malandragem, foi logo colocando as mos no cho, derrubando os trs primeiros. Os outros trs se assanharam, no acreditavam no que estavam vendo. Resultado: receberam igual tratamento. Solto no espao, mos no cho, pernas girando no ar, como ps de moinho. Miguelzinho bate forte, massacrando os adversrios. Ao final da briga, cinco deles estavam no cho, necessitando de socorros mdicos. Os trs outros, aps terem se certificado de que a briga era ruim, embarcaram no primeiro p-de-vento, descendo a Avenida Mem de S, rumo ao Passeio Pblico. O cantor Francisco Alves, o Chico Viola, na porta da Leiteria Boi, ficou sem entender nada. E indagou do compositor Nilton Bastos, ao seu lado: - Tem algum navio pegando fogo por a? .. Miguelzinho durante a briga havia sujado um pouco da manga do palet bege, o que no acontecia quando brigava contra dois, trs ou quatro adversrios, por isso de volta ao txi continuou apanhando.

Sob o pretexto de que "eu no quero voc brigando na rua como um vagabundo, sujando a roupa que eu lavo", Rosinha continuou castigando o companheiro. Ela pretendia a qualquer custo, tirar seu homem daquele lugar, afast-lo da malandragem, da boemia, dos cabars, das penses das decadas, o que ia conseguir anos depois.

4- Eu vi o malandro morrendo, Moleque. Foram trs tiros. - Que malandro, Manoel... que loucura essa? Voc est precisando de um mdico, isso deve ser cansao, procure dormir um pouco mais e se alimentar melhor ... - Moleque, eu sei do que estou falando. No estou doente nem tampouco delirando. O que vi no foi um sonho nem um pesadelo. Foi uma viso, antecipando-me um acontecimento, da a minha preocupao. Gostaria de evit-lo, mas no posso faz-lo. No gosto de derramamento de sangue. Sou um msico, um homem de sensibilidade, portanto, avesso a qualquer tipo de violncia, embora saiba que ela exista, principalmente aqui na Lapa. Moleque-diabo no consegue esconder a curiosidade. Acompanha, com muita ateno, as palavras de Manoel: - O Meia-noite vai morrer, no demora muito, Moleque. Quem vai mat-lo, eu no sei. Mas ele ser assassinado. A viso que tive, e que acabou me deixando neste estado, antecipavam-me as cenas do crime. Diante da afirmao do Manoel Jacintho Coelho, Moleque pra. Descrente das revelaes, procura convenc-lo de que elas no so verdadeiras, palpveis. Teriam sido, no seu entendimento, uma alucinao, como tantas outras ocorridas com diversas pessoas:

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- Manoel, voc pode at ficar aborrecido comigo, mas no acredito nessa histria de crime. No me venha com absurdos, coisas do outro mundo. No acredito em espiritismo, macumba, olho grande. Tenho por hbito trabalhar, ao invs de rezar. Se fico por a rezando, meu Deus, agradecido pelas oraes, no vai me dar o que comer. Ponho minha f no trabalho. Alis, o trabalho tem sido o meu Deus e tambm a minha salvao. Com esse bandolim fao da msica a minha orao. Depois, o Meia-noite j abandonou essa vida de malandragem, de boemia. Est morando com uma mulher, a Arminda, l na Rua Assis Carneiro, na Piedade. E levando uma vida tranqila como chefe de famlia. Regenerou-se mesmo, voc acredita, Manoel? - Acredito. Como tambm acredito naquilo que vi. Moleque-diabo sorri. Vai ser difcil demover daquela idia e comeava a se preocupar com o amigo: - Ser que Manoel vai continuar tendo essas alucinaes? Indagou a si prprio, em silncio. No fundo, aquela histria do assassinato de Meia-noite lhe impressionara bastante, mas havia decidido: ia manter os ps firmes e no daria o brao a torcer. Sabia que Manoel tinha uma tenda esprita, a Tenda Esprita Francisco de Assis, l na Rua Lopes da Cruz, 89, no Mier, e talvez por culpa do espiritismo, nem estivesse com o juzo perfeito. Por um momento, pensou mesmo que devia procurar o Meia-noite e lhe contar toda a histria, mas logo mudou de idia, temendo parecer ridculo: - O Meia-noite no ia acreditar em nada disso e, por certo, at zombaria de mim ... Manoel ainda pediu a Moleque-diabo que fosse procurar Meia-noite, alert-lo para o perigo. Mas Moleque tratou de colocar um p atrs:20

- Manoel, sai dessa. O Meia-noite eu conheo bem. Quando voc acabar de contar essa histria, ele vai rir na sua cara. O homem no acredita em Deus nem no diabo, mas no "fogareiro" que leva sempre na cintura e que tem mandado muito valente dessa vida para outra. 5

E era verdade. Branco, valente e bonito, Meia-noite havia se tornado, em pouco tempo, no maior matador que a Lapa conhecera. Convicto da sua condio de malandro, mantinha a palavra, cumprindo sempre aquilo que havia prometido. Era autntico e possua muita personalidade. Sabia respeitar os mais fracos, no mexia com mulheres dos outros e s brigava quando era provocado. Tornou-se amado pelas decadas, temido pelos policiais e respeitado pelos bomios. Vestia-se muito bem. Durante o dia no dispensava uma camisa de seda pura nem tampouco um leno no pescoo, a cala boquinha de panam e o chinelo "charlot". noite, metia-se sempre num elegante terno claro, de preferncia branco, os sapatos de bico fino e saltos carrapeta. Na cabea, o chapu de panam. Vivia do carteado: da ronda, do sete-e-meio e do montinho ingls, modalidades de jogo preferidas pela malandragem. Nas horas vagas realizava cobranas para os banqueiros de bicho Pascoal e Alberto, ambos do Mangue. noite, protegia os cabars, os cassinos, as penses das mulheres da ao dos desordeiros e tambm dos maus pagadores, multiplicando a receita. Embora pertencesse a uma tima famlia, Meia-noite ingressara muito cedo na malandragem, influenciado por filmes policiais.21

Ainda no havia completado dezesseis anos e j freqentava os piores antros do Catumbi, do Mangue, da Praa Onze e tambm da Lapa. Nas suas costas pesavam a autoria de mais de quinze crimes de morte. O ltimo deles, tivera como vtima um guarda civil e ocorrera no Largo da Lapa. Levado a julgamento, acabara absolvido. E, a partir da, decidira abandonar, de uma vez por todas a malandragem. Montara um armarinho na Rua Laura de Arajo, no Mangue, e passara a explorar com bons lucros, a venda de balas nos trens da Central do Brasil. Para muitos, estava regenerado, como acreditava o prprio Moleque-diabo.

- Como foi bom lhe encontrar, preciso muito falar com a Celeste. H pouco a Margot perguntou por ela ... Foi o bastante. Moleque fechou o rosto, demonstrou claramente o seu descontentamento. No escondia: estava apaixonado por Celeste, uma portuguesa rechonchuda, de pernas grossas, rolias e cabeludas. Ela era danarina do Avenida, mas ele a levara para casa e pensava transform-la em sua esposa. Mas Bianca parecia disposta a provoc-lo, talvez por inveja da amiga que conseguira um lar, uma famlia. Sorridente, insistiu: - Lembra da Bia, aquela que tinha casa l na Joaquim Silva. Ela tambm casou. S que foi com um aviador americano. Um homem

6Durante o jantar no Capela, Manoel Jacintho Coelho ainda se mostrava inquieto, tenso e preocupado. E contava detalhes do crime que iria ocorrer. Dessa forma buscava, decididamente, convencer o amigo a lev-lo casa de Meia-noite. Moleque-diabo, porm, mantinha-se irredutvel. Com a aproximao de Margot, uma francesa de meia idade, simptica, fornida de corpo, tiveram de mudar de assunto. Dona de uma das melhores penses de mulheres da Rua Joaquim Silva, a Imperial, Margot parecia uma verdadeira matrona e estava acompanhada de 8ianca, mulher bonita, a quem os bomios tratavam de LiIi das Jias. Seios pequenos e erguidos, cintura de vespa, dentes brancos e perfeitos, pele clara e aveludada, lbios grandes e carnudos, Bianca se tornara famosa por levar muitos figures runa. Foi ela quem se adiantou, cumprimentando os msicos. A seguir, virando-se para Moleque-diabo, disse: 22

alto, bonito, forte. Branco e de olhos azuis. Foi morar nos Estados Unidos e tudo. Indignado, Moleque nada respondeu. Mas levantou-se da mesa. Colocou o chapu na cabea e despediu-se de Manoel: - Eu te procuro na repartio. No vou ficar aqui aturando essa mulher. Estou cansado, com sono. Melhor ir dormir. Logo que Moleque partiu, Bianca levantou-se da mesa. Empurrou a cadeira, deu uma rabanada, desaprovando o comportamento de Moleque. E murmurou: - S porque msico pensa que tem o rei na barriga. Vai mesmo, o diabo que o carregue. Depois, foi juntar-se a Margot que ocupava outra mesa.

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Sem perder a calma, Manoel Jacintho Coelho terminou de jantar. Depois, como se nada tivesse acontecido, chamou o garom e pediu a conta. Aps o pagamento, levantou-se. Pegou o chapu e o violo, cumprimentou o reprter Carlos Lacerda, do Correio da

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Manh - aquele que arrastaria, anos depois, Vargas ao suicdio e se tornaria, ainda mais para o futuro, um hbil e eloqente poltico, e tambm governador. Finalmente, ganhou a rua. Caminhou um pouco, mas antes de embarcar para o Mier, onde morava, sentiu vontade de tomar um cafezinho. Foi at Indgena, ponto de encontro dos comunistas e integralistas da poca. L estavam conversando animadamente, como pde observar, alguns conhecidos: Agildo Barata, Plnio Salgado, Santiago Dantas e o pintor Cndido Portinari. Ainda de cabelo castanho escuro o jornalista e escritor Jorge Amado. Acenou, saudando a todos, tomou o caf e foi embora. Parecia refeito das sensaes estranhas que havia sentido. E as imagens da tragdia j no lhe incomodavam mais. Estava leve e purificado, tranqilo. O sono e o cansao haviam desaparecido. Sentiu vontade de ir andando, andando, olhando as pessoas, procurando ajud-las. Sentiu-se um homem feliz, completo, realizado. Mesmo assim decidiu ir para casa descansar. s 11 horas estaria no Palcio do Itamaraty, na Rua Larga de So Joaquim, hoje Avenida Marechal Floriano, prximo a Central do Brasil. Voltaria sua vidinha de funcionrio do Ministrio das Relaes Exteriores. Ao pensar em relaes exteriores, sorriu. E disse: - Tenho sido um homem de relaes exteriores mesmo.

As alucinaes seriam em razo do espiritismo? E o Meia-noite, ia morrer mesmo? Outro fato tambm o atormentava: o da Margot estar procurando Celeste: - Tantas mulheres na vida e essa cafetina procurando logo a minha ... Moleque-diabo gostaria de esquecer tudo aquilo e dormir um sono solto, livre de preocupaes, mas no podia. Estava impressionado. Sabia que na Lapa do dinheiro fcil, dos cassinos tolerados, da prostituio consentida, das mulheres bonitas, dos malandros convictos, dos bomios incorrigveis, tudo podia acontecer. Acobertada pela escurido das longas noites alegres, a Lapa vivia engolindo muita gente, liquidando homens e massacrando mulheres, nas suas casas suspeitas, nos cabars freqentados, nos cassinos famosos.

9Os dias se passaram. Manoel Jacintho Coelho at j havia esquecido daquela histria da morte de Meia-noite. O trabalho, a famlia, a Tenda Francisco de Assis, os necessitados e outros afazeres consumiam as suas horas. E, embora tivesse vontade, no dispunha de tempo para saborear um bom vinho do porto, do Adriano Ramos Pinto, ou de deixar descer, garganta abaixo, uma deliciosa cerveja Cascatinha, bem gelada. O violo encapado, estava em casa, guardado com todo o cuidado. Filho de msicos - Manoel, o pai, era maestro, e Rosa, a me, era professora de piano - Manoel herdara o talento dos dois, bem como o amor de ambos pela msica. Sonhava em poder reunir, aquela ocasio, despreocupado, em sua casa, todos os seus amigos msicos, semanalmente, numa espcie de recital. 25

8Ao contrrio de Manoel, Moleque-diabo no ia conciliar o sono naquele fim de madrugada e incio de manh. Pensativo, rolaria na cama de um lado para outro, tomado de angstia, tristeza e revolta. Apertando o travesseiro contra o rosto, indagaria a si prprio: - Por que essa histria de crime? Manoel estaria doente?24

Por certo, l estariam o maestro Luperce Miranda, o Jacob do Bandolim, o Ciro Monteiro, o Altamiro Carrilho, a Odete Amaral, o Luiz Americano, a pianista Carolina Cardoso de Menezes e tambm o Aristides Jnior de Oliveira, o Moleque-diabo. Bastou pensar nele e o homem apareceu. Manoel deixava o vestbulo da biblioteca, no andar trreo do Palcio do Itamaraty, onde trabalhava, quando avistou Moleque-diabo caminhando apressado, contornando o lago e buscando alcanar a varanda para procur-lo. Estava nervoso, apavorado, podia-se notar, distncia, atravs de sua fisionomia abatida. Ao contrrio das vezes anteriores, no trazia consigo o bandolim, mas um jornal. Ao encontr-lo, no chegou a cumpriment-lo. Foi logo dizendo: - Veja a desgraa, Manoel. Veja, veja, veja ... Sem entender ao certo do que falava Moleque, Manoel pegou o jornal. E ali estava a notcia:"MORREU MEIA-NOITE"

Quando concordou em participar daquela festa em sua homenagem, como despedida da vida bomia, da malandragem das noites da Lapa, fez algumas restries. Pediu que tudo fosse feito de forma discreta, sem alaridos, algazarras ou desordem. Na verdade, pretendia rever os amigos, abra-los, apertar a mo de todos e se despedir pessoalmente de cada um. Seria bonito, comovente e sincero. Havia iniciado uma nova vida, mais tranqila, menos arriscada, dedica da mulher, voltada ao lar e famlia. Para ele a vida bomia no fazia mais sentido. Todos concordaram. Mas Fala, um sargento naval, de quem era concorrente no negcio de venda de balas nos trens, ali estava quebrando o acordo, ignorando suas ponderaes. E botava a boca no mundo, anunciando sua chegada: - O Meia-noite est presente, viva o Meia-noite ... No perdeu tempo. Aborrecido, caminhou em direo ao homem e tratou de repreend-lo. E decidiu: no ia ficar ali nem participaria de festa nenhuma. Mas, ao atravessar o salo, rumo s escadas, ouviu os tiros. Fra alvejado, estava ferido. Trs tiros o atingiram: na barriga, no peito e no brao esquerdo. Um outro tiro, acabou atingindo o comercirio ngelo Millozi que ali se divertia e nada tinha com a confuso.Meia-noite nem chegara a vislumbrar o homem que empunhava o

E mais:"TRS TIROS COLOCARAM FIM NA VIDA E NA CARREIRA DE CRIMES DO MAIS VALENTE MALANDRO QUE A LAPA CONHECEU." 10

revlver, baleando-o. E muito menos identific-lo. Sabia apenas que ele estava misturado a um grupo de outros homens,. entre a chapelaria e o corredor de acesso ao quarto usado pelas bailarinas para a troca de - O Meia-noite est presente!. .. Viva o Meia-noite ... Assim que entrou no Cabar Brasil Dourado, na parte superior do sobrado n 10, da Rua da Lapa, naquele final de madrugada, recebera estrondosa saudao. Aps os ''viva Meia-noite" seguiram-se as palmas, fato que acabou por surpreend-lo e contrari-la. Aquilo no havia sido combinado, no estava em seus planos, muito menos a seu gosto.27

roupas. Quisera se defender, revidar a agresso. Vida inteira fra assim. No provocava ningum, mas se provocado, revidava com o dobro da violncia. Mas quela altura era impossvel, sangrava muito e sentia fortes dores.

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Grande confuso verificou-se no cabar. Clientes e empregados, homens e mulheres, alheios ao que acontecia, apavorados com os tiros, tratavam de correr, rumo escada, tentando alcanar a rua. Era pnico, a desgraa. Muitos conseguiram, outros no. Acabaram pisoteados e feridos. Meia-noite conseguiu encontrar foras para descer tambm. Na rua, sentou-se no meio-fio e ali aguardou, em silncio, a chegada do txi para o pronto-socorro. Na calada, o sangue escorrendo. Lembrou de Arminda Mattos, a mulher, a quem deixara em casa, na Piedade, e murmurou baixinho: - Doce Arminda. Tive de brigar com ela para poder vir cavar a minha prpria sepultura. Arminda no queria que Meia-noite voltasse Lapa, mas, diante da imposio dela, ele pensou: - Um malandro no deve deixar se dominar, mesmo estando regenerado. Brigou com ela. E agora estava ali, a caminho do hospital, baleado, beira da morte. Apostara alto e perdera a ltima cartada. Alis, essa seria a sua ltima frase, dita ao mdico que ia oper-la - Eu perdi a ltima cartada, doutor. O que Meia-noite no viu nem chegou a saber, foi que Arminda, sua adorada mulher, morreu com ele. Os dois agonizantes, estendidos sobre as macas, ainda se cruzaram nos silenciosos corredores do hospital, por onde passa um pedao de dor e sofrimento de toda a cidade. Inconformada com a briga que tivera com o companheiro, Arminda chegou concluso de que Meia-noite no ia abandonar a boemia nem tampouco a malandragem. Diante desta certeza, preferiu o suicdio, tomando veneno. Socorrida foi levada tambm para o pronto-socorro, onde ambos encontraram a morte no mesmo horrio.

Ao inteirar-se das circunstncias das mortes de Meia-noite e Arminda, Manoel Jacintho Coelho ficou arrepiado. Um forte vento soprou-lhe as costas. E novamente seus ouvidos foram invadidos pelo zumbido irritante do rdio mal sintonizado. Quis evitar a sensao de antes, mas fra impossvel. Antes de perder de todo a conscincia, ainda pde ouvir aquele samba de Ismael, o mesmo que tocava aquela noite, no Bar dos Carmelitas: Se voc jurar/ Que me tem amor/ Eu posso me regenerar/ Mas se pra fingir mulher/ A orgia assim no vou deixar.

11Olhos entumecidos, esbugalhados, de lgrimas e de sono, Aristides Jnior de Oliveira, o Moleque-diabo, lamenta: _ Manoel, eu devia ter ouvido o conselho. A tragdia bem que podia ter sido evitada. Agora, resta-me velar o corpo do companheiro na Capela Frei Fabiano de Cristo, ali na Praa da Repblica. E acompanh-lo, amanh, ltima morada, no Cemitrio de So Francisco Xavier, no Caju. Manoel parecia-lhe alheio, desligado, num outro mundo, desatento ao desabafo de Moleque. Este, sem saber o que estava acontecendo, achando tudo muito estranho, tratou de sacudi-lo: - Manoel, Manoel, voc est dormindo? _ No, Moleque. Tentando salv-la. Abre o olho, voc tambm ter urna morte violenta. UM ANO DEPOIS, DIVULGAVAM AOS JORNAIS "Inconformado por ter sido abandonado pela companheira, a bailarina Celeste Maria, por quem estava perdidamente apaixonado,29

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o conhecido msico Aristides Jnior de Oliveira, o Moleque-diabo, acabou se suicidando. Ontem de manh, aps ingerir pesada dose de formicida, ele pulou do 30 andar do Prdio dos Correios, na Rua 10 de1. 2. Maro, no Centro, onde trabalhava."

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II parteUMA PEDRA NO CAMINHO

I

niciada em So Paulo, com o apoio da oligarquia da burguesia do

caf, a revoluo de 1932 no alcanou seus verdadeiros objetivos: o fim do Governo Provisrio e o afastamento de Getlio Vargas da chefia daquele governo. Muito pelo contrrio, a vitria militar sobre os rebeldes acabou garantindo a Vargas enorme prestgio, o desejado poder e tambm grande influncia sobre a Assemblia Constituinte que iria se instalar em novembro do ano seguinte. Vitorioso, cheio de caprichos e marcas pessoais, Vargas tornou-se inabalvel s crticas de seus adversrios polticos, embora acusado de caudilho, maquiavlico e oportunista. Pulsos fortes e passos medidos, decidiu ir em frente, tresandando a gua de colnia inglesa e dando continuidade a sua festejada e irreversvel trajetria. Sem dvida, havia conquistado invejvel posio: a do mais importante poltico brasileiro, uma espcie de smbolo da emancipao nacional. Aquele que ia criar, num futuro prximo, um Brasil forte, unido, altaneiro, novo e soberano, edificado sobre os alicerces e pilares de um trabalhismo que comeava a florescer.

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Mas, por trs daquela figura risonha, sempre impecavelmente vestida, do azul fio de fumo de seu charuto sem i-aceso, pairava no ar uma inevitvel e permanente ameaa: a de uma ditadura cruel, caprichosa, mas sombria como todas as outras ditaduras .. Ao pensar nisto, Manoel Jacintho Coelho ficava totalmente arrepiado, preocupado, pensativo. O futuro histrico, o rumo poltico do Pas e o destino do povo brasileiro parecia desfilar diante de seus olhos, atravs de cenas coloridas com todos os matizes da vida. Os fatos e suas evolues lhe eram quase sempre antecipados. Para isto, bastava apenas que fechasse os olhos e pronto: estava tudo ali, exatamente como ia acontecer, numa tela de cinema, imensa e natural. Muitas vezes ficou amedrontado e teve vontade de fugir. Outras, no. Sua curiosidade se tornara maior do que o medo que inicialmente lhe assustava tanto. Com o passar do tempo, a coisa havia se modificado. Agora, tomado de coragem cvica, estava disposto se inteirar definitivamente de tudo que ia acontecer. Se o inesperado lhe surpreendia, o espetculo lhe agradava. O zumbido da comunicao e contato do outro mundo em sintonia passou a se transformar numa enorme e cintilante cascata de luz. Uma luz que variava de cor, tonalidade, tamanho e intensidade. Quase sempre comeava prateada, de um brilho profundo, encantador. Depois dava lugar ao azul. Inicialmente o claro, a seguir o escuro, vivo, forte, misterioso. Do azul-real passava ao azul-turqueza e outros tons azulados. A seguir aparecia o amarelo, tambm varivel, at o dourado. Depois o verde-alface, o verde-bandeira, o verde-oliva, o verde-escuro. No crepitar do vermelho, o espanto, o grito e o claro: - Manoel, a fase do pensamento est para terminar. Encerrada a fase do pensamento, a natureza vai deixar de alimentar o pensamento dos pensadores. E por falta do alimento natural, o pensamento de34

todos vai comear a enfraquecer. Portanto, prepare-se. Com a mudana de fase, voc vai iniciar a construo de um mundo novo, um Mundo Racional, real e verdadeiro. Anote, Manoel: at 1935, a natureza ser governada pelas energias eltricas e magnticas. Depois, no. A natureza vai mudar, passando a ser governada pela Energia Racional, pelo raciocnio. Morna, forte, grave, a voz masculina vai rasgando o Universo, advertindo e orientando: - Estamos em 1933, Manoel. Faltam apenas dois anos. Tenha pacincia. Em muito breve voc vai conhecer o caminho do desenvolvimento do raciocnio e ter de ensin-lo, atravs de um Livro, a toda a humanidade. Lembre-se: voc no pertence a esse mundo. Vestiu a carcaa de bicho para cumprir dignificante e salvadora misso: a da Racionalizao dos povos. Quando chegar o grande momento tudo vai ficar bem claro e luminoso. Deixe de lado a preocupao, fique calmo. Procure viver normalmente como um habitante da Terra. Estou falando de seu mundo, procurando orient-lo, de modo voc possa percorrer com muita rapidez, o caminho que lhe foi destinado. Esperana e mistrio no olhar. Manoel Jacintho Coelho contempla o espao, rosto molhado de suor, braos abertos, numa demonstrao de ternura, bondade e dedicao. No clice do saber, as lies de um Universo mgico: - O Livro que voc vai escrever, Manoel, ser definitivo. Vai mostrar o princpio e o fim do mundo, o caminho da luz e da eternidade, a estrada da salvao. Revelar conhecimentos para que todos possam voltar ao seu mundo de origem: a Plancie Racional. O Livro ser a verdadeira luz do animal Racional, a energia que vai impulsion-lo para o conhecimento. Portanto, no se esquea, Manoel: as revelaes contidas neste Livro jamais podero ser usadas para

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o comrcio e a explorao. Devero ser usadas para a salvao de todos e tambm para proporcionar aos Racionais a volta ao seu mundo de origem, para indic-los o caminho da redeno e da vida eterna.

Mangabeira, Artur Ribeiro, Assis Brasil, Temstocles Cavalcanti, Prudente de Moraes Filho, Carlos Maximiliano Pereira dos Santos, Agenor de Reune, Francisco Jos de Oliveira e o General Gis Monteiro. Trabalhavam empurrados por um desejo: o da realizao de uma profunda mudana na vida nacional. Cauteloso, mas pragmtico, Vargas acompanhava de perto os trabalhos da Comisso da Constituio e a feitura do anteprojeto. Sua permanncia no governo dependeria dos constituintes e ele sabia disto. Da a importncia de sua permanncia, da sua assiduidade, da sua habilidade poltica. Discreto, apesar do sorriso, Vargas procurava no se abrir, nem se expor. Jogava, s vezes, hesitante, noutras, conivente. Solitrio e obstinado na sua desmedida ambio poltica no recuava um milmetro sequer. Sem receio ou remorso, no poupava nem a amizade de seus seguidores mais fiis, transformando-os em mamulengos de suas inconfessveis intenes e peas azeitadas de suas engendradas manobras polticas.

13Endereo chique da nobreza e tambm palco de grandes e inesquecveis festas durante o Segundo Imprio, o Palcio do Itamaraty, sede dos trs primeiros Governos Republicanos, passou a abrigar, por determinao do Governo Provisrio, a comisso encarregada daI

elaborao do anteprojeto da Nova Constituio. Como funcionrio do Ministrio das Relaes Exteriores, instalado naquele palcio, Manoel passou a acompanhar o trabalho dos comissionrios e tambm a ajudlos. Logo tornou-se amigo do Ministro Afrnio de Meio Franco, nomeado Presidente da Comisso da Constituio. E como amizade implica, muitas vezes, em pedidos e solicitaes, Manoel no tinha mais hora para chegar e sair do trabalho, servindo ao amigo. Como todo brasileiro, alimentava um sonho: o da reconstitucionalizao do Pas. Nos longos corredores de pisos trabalhados em mrmores e nos amplos sales de sancas douradas do Palcio do Itamaraty, o movimento tornou-se intenso com o passar dos dias, aps a instalao da Comisso. Alm do Ministro Afrnio das Relaes Exteriores, dois outros Ministros passaram a trabalhar ali: Oswaldo Aranha, da Fazenda (antes fra da Justia), e Jos Amrico de Oliveira, da Viao e Obras Pblicas. Alm deles, faziam parte da Comisso outros polticos famosos, intelectuais e juristas. Nomeados por Vargas, l estavam Joo

14Transpondo todos os obstculos possveis e buscando solues simples e desejadas para os problemas de sua vida, Manoel Jacintho Coelho traara o seu prprio caminho. Dono de um idealismo contagioso, discreto e obstinado, logo tratou de alargar os seus passos, aproveitando o mximo de sua vitalidade: - O trabalho dignifica o homem - repetia, quase sempre, sem despregar os olhos daquilo que estivesse fazendo. Sempre preso a objetivos elevados e com enorme capacidade de realizao tornou-se estimado por seus colegas de trabalho, os quais no lhe poupavam elogios:

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1.II1

II- Ah!... Seu Manoel... ele executa as tarefas com o mximo de rigor, empenho e dedicao. E tambm se adapta, com a maior facilidade, a qualquer tipo de trabalho. Parece mesmo ter nascido para servir. raciocnio. Senhor de uma vida muito rica em acontecimentos singulares e tambm inesperados, Manoel no tinha mais preocupaes nem seI

Buscava a paz, o sossego e a luz. Gostaria de p"er se deitar numa rede, esquecido, embalado pela suave brisa da tarde e acompanhar despreocupado, a queda indecisa da luminosidade do crepsculo. De ficar longe da cidade, da boemia inconseqente, sentimental e nostlgica. O excesso de trabalho, sabia, oprimira o cavaquinho, deixando seu velho violo surdo, mudo e amargurado. Mas naquela tarde morna de abril seria diferente. A Comisso da Constituinte suspendera o trabalho mais cedo, permitindo-lhe um pouco mais de tempo para o descanso. Ao deixar o Palcio do Itamaraty, as cigarras ainda cantavam nos oitizeiros na Rua Larga de So Joaquim e um vento moleque varria a rua em toda a sua extenso. Na calada, parou um pouco. Abriu o palet e passou o leno no rosto. Pensou em dar uma chegadinha ao Caf Paraso, tomar um copo de gua bem gelada e tambm um caf. Depois, bem. Depois seguiria at a Avenida Central (hoje Rio Branco), rumo praia. Estava ansioso de mar, de um mar cheio de lirismo e energias, de grandes ondas barulhentas, quebrando sobre as pedras e esparramando-se em espumas. Um mar misterioso, soluando, crescendo, bramindo de soluo. Deixou-se seduzir pelo cheiro do mar, cada vez mais forte. Ouviu o barulho de ps rangendo na areia e sentiu o calor de um sol abrindo s suas costas, naquele cu de final de tarde e incio de noite. Desejou ser o mar. Imprevisvel. Incapaz de ficar parado. 15 Filho de msicos, Manoel fra recebido, gerado e crescido ao som das valsas, das polcas, das mazurcas e modinhas.

Aceita, com

muita naturalidade,

aquilo que os

sentimentos ditam, principalmente as intuies, ou melhor, o

importava com os riscos. Recebia e assimilava os conselhos, as lies e as normas que lhe eram ditadas atravs do Universo, procurando adapt-las a sua prpria vida. Indiferente aos preconceitos de poca, convivia, sem receio, com pessoas das mais diferentes camadas sociais. Da mesma forma que impunha sua presena entre Ministros, com sugestes inteligentes, fazia sua ausncia se tornar sentida entre os bomios da cidade: - Voc sabe onde tem andado o Manoel, aquele do violo de sete cordas? O homem desapareceu, evaporou. H mais de trs semanas que no aparece por aqui, o pessoal tem reclamado muito a falta dele. Voc tem notcias do Manoel, Joo da Baiana? -' No, Donga. Eu no tenho notcias do Manoel. H bastante tempo que no cruzo com ele. O homem ultimamente no tem aparecido aqui na Lapa nem tampouco visitado a Tia Ciata, como fazia sempre. Na verdade, Manoel Jacintho Coelho andava muito atarefado. Deixava o trabalho tarde, faminto, cansado, pensando apenas num banho e descanso. Como um estranho prncipe dos aflitos dedicava o pouco tempo que tinha atendendo aos necessitados na Tenda Esprita Francisco de Assis, na Rua Lopes da Cruz, 89, no Mier.

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Nascera no dia 30 de dezembro de 1903, na Rua Baro do Iguatemi, . na Cidade Nova, nas proximidades da Rua do Matoso e da Praa da Bandeira. Noite de vero, cu aberto e estrelado. Durante o parto, sua me, a professora de piano Rosa Santos, fra assistida por uma vizinha, dona Maria Amlia, a negra Amlia Baiana, filha de escrava, beneficiada pela Lei do Ventre Livre, cuja preocupao, agora, era ajudar aos outros a nascer. Logo que sentiu as primeiras dores, dona Rosa mandou cham-la. Predisposta caridade, sorriso largo, Amlia Baiana no demorou, tratando de atend-la. Alm da arte de forno e fogo, aquela mulher, como poucas pessoas, dominava os segredos da vida. Sua presena acalmou dona Rosa. Mangas de camisa, gravata borboleta, o maestro Manoel, o pai, procurava ajud-la, embora inquieto e nervoso. - Traga um pano limpo. Pegue gua e coloque pra ferv, vamo precis - pedia Amlia. O menino Manoel no demorou a nascer, o parto fra normal. Ao ampar-lo, Amlia Baiana sorriu de felicidade. Beios largos, testa suada, mo negra segurando o menino pelas pernas, ela berrou, num misto de contentamento e esperana: - hom, hom, Rosa ... vai lut pelus homs. Ele trs um canto de am, de paz, de concrdia e de liberdade ... Dona Rosa no disse nada, apenas fechou os olhos, deixando-se levar pelos acordes de uma doce e suave melodia que lhe chegara aos ouvidos. Emocionada, Amlia Baiana comeou a chorar, boca aberta, garganta vermelha de tanto gritar verdades. Seu choro rasgaria a calma. 40

Sua voz negra e pungente atravessaria o vento, anunciando que o menino que acabara de nascer trazia uma mensagem do Universo e era o smbolo da unio das raas, porque preto e branco so iguais. No ar pairava um vago sentimento de beno. No cu, um espetculo de luz. Um meteorito em forma de estrela descera sobre a Terra, indo cair bem em frente casa do menino que nascera. A noite quente de surpresa e curiosidade logo arrastaria uma multido ao local. O prefeito, a mulata e o general. L estavam todos. Alfaiates, marceneiros, macumbeiros, funcionrios pblicos, sapateiros, jornalistas, advogados, polticos, chacareiros, pedreiros, engraxates, doceiras, lavadeiras, malandros, comerciantes e costureiras - iam apressados, rumo Praa da Bandeira, cobrindo com seus passos o calamento das ruas e o desenho das caladas. O maestro Manoel estava feliz. Aps esvaziar uma caneca de vinho, acendeu um charuto e chegou janela. Queria contemplar a noite e agradecer ao cu, quando algum lhe perguntou: - Ento, Maestro. Nasceu mais um Silva em sua casa? - Silva, no. Nasceu outro Manoel, amigo. Manoel Jacintho Coelho. Atento conversa, um reprter magro, alto, cabelos negros, glostorados, murmurou baixinho: - Silva ou Coelho que diferena faz. Na verdade somos todos fulanos de tal, enganados pelos polticos, explorados pelos patres e humilhados pelas esquinas. Vestido comprido e rodado, com aplicaes de vis e rendas, lao de fita no cabelo, a menina Leonor Nunes dos Santos acompanhara todo o espetculo com interesse e deslumbramento.41

Na inocncia de seus nove aninhos, ela achava tudo muito bonito e iluminado, "um dia de festa, com aquela gente toda". Tempo distante, de lembranas e de saudades. Naquele dia, muita coisa a menina Leonor ficou sem entender. Hoje, quase centenria, cabelos brancos servindo de moldura ao rosto bonito, ela vai repetindo para os netos o seu conto de prncipe. Na voz cansada, o sublime, o belo, o terno e o saudoso: _ Naquela noite, uma estrela desceu do cu. Era uma estrela grande e azul. Veio descendo, descendo, descendo ... e deixando, por onde passava, um brilhante rastro de luz. Os sinos tocaram e as pessoas saram de suas casas, indo para a rua. Estavam emocionadas e felizes. Homens e mulheres, jovens e velhos, pobres e ricos, adultos e crianas se abraavam. Era um novo tempo de amor, de confraternizao, de amizade e respeito, um dia de festa. Afinal, um menino que viera de muito longe e acabara de nascer. _ Quem? ... Indaga com interesse um dos netos e dona Leonor responde comovida: - O Cavaleiro da Concrdia. A negra Amlia Baiana tinha razo. Manoel viera ao mundo na cor de bronze unindo as raas. E ali estava para lutar pela Redeno do homem, pela liberdade definitiva, para devolv-Io ao seu estado natural. Suor negro a inundar a Terra, aquela mulher com seu enorme poder de percepo, entre o soluo e a lgrima, sentira o poder da energia que emanara daquele pequenino corpo, tanto que balbuciara: - Com a chegada de Manu comea um novo tempo. Depois dele, no vai hav mais lug prs miservis donos da vida, porque todo mundo vai sab de onde vem, pra onde vai. 42

O maestro Manoel no conseguira entender exatamente o que Amlia Baiana pretendia dizer, mas pressentira que o filho viera ao mundo predestinado a uma misso. E aquela mulher sabia de tudo. Era um testemunho vivo, palpitante da anunciao de um novo tempo. Diante desta certeza, olhara para o cu e pedira ao Verdadeiro DEUS: Pai, que o sacrifcio de meu filho tenha uma finalidade.

16Durante a noite anterior no conciliara o sono. As no conseguia esconder a inquietao. Na tentativa de fugir curiosidade dos colegas de repartio, atravessou apressadamente a galeria onde ficam expostos os bustos dos diplomatas, alcanando o jardim. No espelho d'gua do imenso lago, ladeado por palmeiras, Manoel examinou o rosto cansado, os olhos vermelhos. Sentiu vontade de ir embora para casa, de descansar um pouco. Mas acabou desistindo da idia. Sabia que tinha muito a fazer, naquele dia, no Palcio do Itamaraty. Ao pensar nisto, sentou-se na grama. E procurou relembrar a infncia, buscando apagar aquelas imagens que tanto lhe atormentavam. Como tinha saudades do tempo de menino, da vida colorida a lpis de cor. Nos quintais da infncia, no esquecido cho de circo, no havia lugar para as preocupaes, embora fatos estranhos j pontilhassem seus caminhos, provocando medo e inesperadas reaes.43

VI

soes

acabaram por deix-lo preocupado. Agora, de volta ao trabalho, Manoel

Sorriu ao imagin-la correndo, descalo, sem camisa, pelas ruas da Cidade Nova, disputando espao com outras crianas. E os olhos de Amlia Baiana a acompanh-lo e proteg-lo, cercando-o de todos os cuidados. Naquele tempo, como agora, amava os pssaros, os bichos. Depois mudou-se. Foi para a Rua Alice, no Rocha. Matriculado na Escola Modelo, na Rua Ana Neri, no Riachuelo, logo a professora constatou: o aluno Manoel j sabe ler, escrever e contar. E mais: sabe tudo que lhe for perguntado. Histria, cincia, portugus, matemtica, geografia, astronomia e mais: at poltica, uma loucura. Tudo isso sem ter freqentado o colgio anteriormente. Ao lembrar de dona Joana, a professora, sorriu. Aps conheclo, ela piorou ... Intrigada, confusa, desnorteada, ela vivia a perguntlo: - Manoel, voc consegue ler minha cabea? - Olha, eu ia lhe fazer essa pergunta, mas voc me respondeu antes mesmo de ter sido perguntado, como foi isso? O menino Manoel desconhecia os seus poderes e acabava complicando ainda mais a cabea da professora, a coitada j andava falando sozinha. Um dia porm, dona Joana resolveu colocar tudo em pratos limpos. No se conteve e mandou chamar dona Rosa na escola. Queria, porque queria, uma explicao para o fenmeno. Para proteger o filho, a me de Manoel escondeu a verdade. Mentiu sem o menor receio: - Tudo o que ele sabe, aprendeu comigo l em casa. O Manoel um menino muito inteligente. No tive a menor dificuldade para alfabetiz-lo. - Mas, ele est atualizado at em poltica. A senhora no acha que demais para um menino de dez anos?44

- Dona Joana, o Manoel um menino que guarda tudo aquilo que ouve e assimila os fatos com enorme facilidade. O que ele sabe de poltica, aprendeu, estou certa, ouvindo as conversas l em casa. Se a mentira livrou Manoel da indiscrio das pessoas no foi suficiente para tranqilizar dona Rosa. Ela voltou para casa muito preocupada, aflita, impressionada. Era inacreditvel tudo aquilo que ela ouvira sobre Manoel. noite, logo aps o jantar, ela contou ao marido o que estava acontecendo. O maestro tratou de acalm-la: - Rosa, o Manoel um menino prodgio. Eu diria mais: um menino predestinado. Veio ao mundo para cumprir uma misso. Voc no deve se surpreender nem tampouco ficar preocupada. Encare tudo, meu amor, com naturalidade e pacincia. Seja compreensiva e dedicada, afinal, fomos os escolhidos. No sei por que razo, mas fomos os escolhidos. O maestro Manoel abraou a mulher. Depois relembrou o nascimento do filho, aquele meteorito em forma de estrela e tambm as palavras de Amlia Baiana, aparentemente sem sentido, mas verdadeiras e profundas. 17 As lgrimas da saudade umedeciam os olhos de Manoel quando a voz, vinda do Universo, tratou de cham-lo razo e passou a orient-lo: - Vamos, Manoel, est chegando a hora. O Presidente Getlio Vargas j est a caminho. E voc precisa orient-lo. No fique tenso nem preocupado. Vou estar ao seu lado e irei conduzi-Ia.45

Repita exatamente aquilo que vou lhe falar. Atravs de minhas palavras, voc vai entender exatamente as vises da noite passada. Na tentativa de evit-las, a comunicao acabou sendo dificultada. Vamos, Manoel. Temos uma mensagem muito importante para o Presidente que vem chegando. Uma fora estranha tratou de empurr-lo. No caminho ajeitou o palet, a gravata, passou o pente no cabelo. Tirou o leno do bolso e enxugou o rosto. Muito no demorou, Getlio Vargas chegou ao Palcio do Itamaraty, acompanhado de uma imensa comitiva. Sorridente, comunicativo, cumprimentou a todos, indo apertar a mo de um por um. Depois, adiantou-se, seguindo em direo ao gabinete do Ministro Afrnio de Meio Franco, onde iria receber e examinar o anteprojeto da Nova Constituio. Foi nesse momento que Manoel interceptou-lhe os passos: - Presidente, Presidente ... preciso falar com Vossa Excelncia. Trago-lhe importantes revelaes. Getlio parou. Examinou cuidadosamente as palavras de Manoel. Sabia ser ele funcionrio pblico e que trabalhava ali no Itamaraty. Aps olh-lo nos olhos, respondeu: - Terei enorme prazer de conversar com o senhor. Mas, devido ao compromisso que tenho agora com o Ministro Afrnio no vou poder atend-lo imediatamente. O senhor vai ter de aguardar um pouco. Assim que a reunio terminar, pedirei para cham-la. - Vou aguard-lo, Presidente. Vargas foi em frente, levando o cortejo de puxa-sacos. Olhos na comitiva, Manoel observou. Nenhum governante, por mais habilidoso que seja, vai conseguir se livrar da sina de aturar os puxa-sacos. Retricos, eles ronronam como gatos de madame os ps daqueles que ocupam o poder. So verdadeiros angors da poltica do apadrinhamento, do privilgio.46

E o mais curioso que eles preservam at a ndole felina: ode amar a casa onde so moradores, no caso um palcio, o Palcio do Governo. Sorriu. Depois esfregou as mos. Estava mais tranqilo. Havia dado o primeiro passo. Livre da preocupao e esbanjando energias, voltou mesa de trabalho na repartio. Aguardaria ali, com ansiedade, o reencontro com Vargas. Mas logo que se acomodou na cadeira, aconteceu o inesperado. Diante de seus olhos apareceu novamente a Luz da Anunciao. E a voz morna e grave se fez ouvir: - Manoel, vamos entrar na Fase Racional, a ltima fase da vida na matria. Nesta fase, vai surgir urna nova cultura, a Cultura Racional. Atravs desta nova cultura, todos vo poder adquirir orientaes para se manter em equilbrio. Voc ser o divulgador desta cultura. E quem quiser adquiri-Ia no vai precisar sair de casa, ir a igrejas, templos ou terreiros. A Cultura Racional um, conhecimento natural, Manoel. No cincia da imaginao, voc vai ver. Manoel fechou os olhos e comeou a prestar ateno nas palavras que chegavam aos seus ouvidos. A intensidade d luz foi aumentando, os focos se multiplicando, profundos e cintilantes: - O homem vai saber, atravs da Cultura Racional, todos os segredos da vida. Quem ele , de onde ele vem, como ele vem e o que ele est fazendo nesta vida. E ainda para onde vai, como vai e por que vai. De forma lgica, simples e clara, com provas e comprovaes, os mistrios da natureza sero desvendados. Os conceitos filosficos, de vida e de religio, ento, rolaro por terra completamente ultrapassados. Manoel Jacintho Coelho apia os cotovelos na mesa, cobre os olhos com as mos, ouvindo, compenetrado:47

- Voc vai conhecer o RACIONAL SUPERIOR e represent-lo na Terra. Ter de ensinar aos homens, mulheres e crianas que a vida um rosrio de contas e que todos os habitantes da Terra so encantados. Vai mostrar-lhes o caminho da Imunizao Racional, da verdade e da razo. Manoel, ento, indaga: - Por que a Cultura Racional no veio h mais tempo? - Ora, Manoel. O espanto nem sempre surge com a descoberta de um fato novo. Nem tampouco atravs de um acontecimento inesperado. O espanto s vezes dorme, anos e anos, na cama do cotidiano e da rotina. E desperta -toa, quando algum faz estremecer o dorminhoco. Manoel voltou a sorrir, diante da brincadeira. Mas a voz, ganhando tom de seriedade, sentenciou: - Tudo tem seu tempo, Manoel, aprenda. E o tempo vai chegar. rvore nenhuma d fruto antes do tempo. Portanto, seja paciente. A mensagem transcendental, a comunicao de Manoel com o outro mundo acaba sendo interrompida com a chegada de um homem moreno, pouco mais de 40 anos, bigode aparado: - Rpido, rpido, rpido Seu Manoel. O Presidente mandou cham-lo. Ele est esperando pelo senhor no Salo Nobre.

Vargas tratou de intensificar um programa de ajuda ao setor cafeeiro e assumiu plenamente, atravs de seu governo, a direo dos negcios naquele setor. Com argcia, colocou em prtica um plano de reformulao do sistema de pagamento da dvida externa, calculada, na poca, em 250 milhes de libras. Todo o saldo da balana comercial brasileira passou a ser usado para o pagamento da dvida, medida que provocou a reduo dos juros e deu ao governo absoluta credibilidade no exterior. Estava satisfeito com a poltica econmica desenvolvida por seu governo. A poltica social, porm, era motivo de imensa preocupao. Sabia da necessidade de um estreitamento de relaes entre patres e empregados, atravs do campo sindical. Caso contrrio no ia encontrar meios para anular a forte influncia anarquista e conter a influncia comunista que comeava a se agigantar. Quando Manoel entrou no Salo Nobre, Vargas dizia ao Ministro Afrnio: - Inimigos, Afrnio ... no sei se os tenho. Se os tiver, no sero jamais to inimigos hoje que no possam vir a ser amigos amanh. Capricho e ambio marcavam aquele homem, alm daquele charuto, daquela barriga, daquele sorriso. - Entre, por favor, esteja vontade. O Brasil tambm lhe pertence - disse Vargas ao avistar Manoel. J de sada, o Ministro Afrnio despediu-se e foi embora. Carregando no sotaque gacho, Vargas falou: - A partir deste momento, estou sua disposio, pronto para ouvi-

18A economia brasileira comeava finalmente a se recuperar. O algodo havia surgido no mercado como o segundo grande produto de exportao, amenizando, em parte, a crise do caf. A elevao da produtividade industrial tambm fra surpreendente e o Pas reiniciava, de forma irreversvel, sua marcha para o crescimento.48

Ia.Manoel, ento, passou a explicar: - Tenho uma tenda esprita l no Mier, uma pequena casa de caridade ...

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- Entendo, entendo. O senhor deseja ajuda. Ora, o Presidente vai ajud-lo!. .. - O Presidente est enganado. No estou aqui para pedir ajuda, mas para ajud-lo. Tomei conhecimento, atravs da minha vidncia, de um acidente. Vossa Excelncia vai sofrer um grave acidente e estou aqui para alert-lo para o perigo. Gostaria imensamente de poder ajud-lo, mas isto independe de mim. - Acidente? O senhor tem certeza do que est falando? ... - Tenho. Da curiosidade natural, Vargas passou preocupao. Sua fisionomia risonha e rosada, logo ficou anuviada, transformando-se numa mscara de gelo: - Mas como o senhor, como o senhor - indagou Vargas, agora claudicante - conseguiu saber deste acidente? - Foi ontem noite, Presidente, durante a minha concentrao. A vidncia no se alongou muito, mas posso adiant-lo que o acidente vai envolver um automvel. Pude v-lo ferido com outras pessoas, peo que acredite nas minhas palavras e tome cuidado. - E quanto a meu governo, o senhor est gostando? Na indagao de Vargas, duas intenes: a necessidade de mudar de assunto e tambm a de investigar Manoel. Vargas imaginou a possibilidade de estar diante de um homem doente. - Estou gostando muito de seu governo. Mas vejo a necessidade de uma preocupao maior com a poltica social, voltada para o atendimento das classes trabalhadoras. Os poderosos, evidentemente, ficaro descontentes, mas, com o tempo, vo reconhec-lo, aceit-lo, aplaudi-lo. Mas o trabalhador brasileiro necessita de mais, de muito mais ... - Como assim?50

- Necessita de um Ministrio do Trabalho, da promulgao da Lei da Sindicalizao, de uma Lei de Amparo ao Trabalhador Nato, da reduo das correntes migratrias. Na Educao, Presidente, precisamos modernizar com urgncia, o ensino mdio e superior, criar as sonhadas universidades brasileiras, promover uma ampla reforma do ensino secundrio. Vargas ficou perplexo, embasbacado. Manoel fizera desfilar ali, sem o menor esforo, suas intenes e planos de governo. Parecia ter aberto o seu crebro, especulando, devassando, coisa inacreditvel. - Ento, Presidente? Estou certo? - Claro que est, Seu Manoel. O senhor est certo. - Vamos precisar tambm - insistiu Manoel - de uma reviso na Legislao Eleitoral, Vossa Excelncia vai precisar dela. Estamos prximos das eleies. Fique tranqilo, no precisa perguntar, o senhor vai sair vitorioso. A Constituinte vai eleg-lo Presidente do Brasil. Durante muito tempo o poder vai permanecer nas suas mos. Agora, tome cuidado. - Terei muito cuidado, Seu Manoel. Manoel levantou-se. Despediu-se e retirou-se. Quando cruzou o batente da porta principal do Salo Nobre, trs copos de cristal que estavam sobre a mesa foram partidos sem que ningum tivesse tocado neles. Vargas ficou arrepiado. A sensao fra de que algum havia entrado para quebr-los, usando um estilete. Durante algum tempo, Vargas permaneceu sentado, confuso, intrigado.

19O vento varria furioso a escarpada, vergando as rvores e ameaando levar pelos ares os telhados das pequenas casas. 51

A chuva grossa e intensa fazia rolar pela serra imensas cachoeiras, tamanho o volume de gua. Iluminada pelos relmpagos, a estrada deserta havia se tomado escorregadia e perigosa. Indiferente tempestade e aos riscos, a Lincoln presidencial avanava, vencendo a distncia, rumo ao Palcio Rio Negro, em Petrpolis. Sentado esquerda, no banco traseiro do automvel, tendo ao seu lado a mulher Darcy e o filho Getlio, Vargas permanecia em silncio e acompanhava, com ateno, todos os movimentos do chauffeur Euclides Jos Fernandes. O Capito-tenente Celso Pestana, ajudante de ordem Presidncia Repblica, ocupava a cadeirinha fronteira ao Chefe do Governo, e procurava tranqilizar a todos. A certa altura, dona Darcy trocou de lugar com o filho, assustado com o ribombar dos troves e com a claridade brusca e intensa dos raios que cortava o cu. Preocupada, queixava-se do frio e do vendaval que ameaava, agora, arrancar a capota do automvel. O chauffeur procurou diminuir a marcha medida que a chuva aumentava, por preocupao. Mas, ao alcanar o quilmetro 53 da antiga RioPetrpolis, altura do terceiro viaduto, a visibilidade tornou-se ainda mais difcil. Pensou em parar, aguardar a estiagem, mas poderia ser pior, como imaginou. Assim decidiu ir em frente. De repente, o inesperado. Um estrondo formidvel. O pnico, o pavor, o medo e a morte. Uma pedra pesando 80 quilos desprendeu-se da encosta, rolou do alto da serra, indo cair bem no centro do automvel, sobre a O ajudante de ordens do Presidente, Capito-tenente Celso rosto esmagado, morreu imediatamente. Getlio, com as duas pernas fraturadas, procurava, arrastando-se e gemendo, socorrer a dona No suportando a dor, pois sofrera fratura52

exposta da perna esquerda, ela desfalecera. Por sorte (ou proteo), o menino Getlio no sofrera ferimento, mas ficara abalado, chorando muito. Na casa de Manoel Jacintho Coelho, na Rua Lopes da Cruz, 89, no Mier, o relgio despertador comeou a tilintar ruidosamente, parando, logo depois, definitivamente, s 19h30min. Um redemoinho de vento invadiu a casa, varrendo todos os cmodos, arrancando as cortinas e desfolhando o calendrio, na parede, at o dia 25 de abril. Dia e hora da tragdia. Derrubado pelo vento, olhos presos no teto, Manoel assistira ao desastre bastante nervoso. Desta vez no surgira a cintilante cascata de luz. Logo aps ter sido derrubado, entrou num estado de imobilidade contemplativa. O barulho fra ensurdecedor, indescritvel. A luz vermelha crepitando. O claro, o espanto. A pedra rolando serra abaixo. Depois resvalando e precipitando-se no espao para cair sobre o automvel. Gritou. Mas o grito no lhe passou da garganta. Situao terrvel, angustiante. De prostrao e de pavor. Doloridos, sofridos, desesperados, diante de seus olhos, os rostos de Vargas, de sua mulher Darcy, do menino Getlio e do chauffeur Euclides. Socorridos, eles foram levados, minutos depois, para o Sanatrio So Jos, em Petrpolis. Ali tiveram de ser operados pelos mdicos Haroldo Leito da Cunha e Florncio de Castro Arajo. Estropiado, tenso, amargurado, ainda deitado no cho, sem fora para mover, Manoel perguntava a si prprio a razo daquilo tudo.53

da

Ouviu, ento, a Voz da Anunciao: - A felicidade que brilha no mundo, meu bom Manoel, uma felicidade sem base. E a felicidade sem base slida, deixa de ser felicidade, expondo os viventes a transes, sempre procura dela. Quanto mais se procura a felicidade, mais distante ela se encontra. H gente vivendo momentos insignificantes na vaga esperana de serem felizes, morrendo e ficando por alcanar a felicidade. Meu bom Manoel, no existe na Terra quem possa dizer: "eu sou realmente feliz". Porque, quando est tudo bem de um lado, do outro lado tudo vai mal. E a felicidade continua sendo procurada. - Mas por que a felicidade no encontrada? Indagou Manoel. - Porque o mundo de lutas. E onde h lutas, existe o sofrimento, no pode existir felicidade. Uns lutam pelos amores, outros pelos negcios, muitos por melhorias de vida, vrios por razo de doenas, alguns por ideais. Todos na esperana de alcanarem aquilo que desejam. Enfim, uma vida de lutas, de sacrifcios e sofrimentos. - E tem mais - prosseguiu a Voz da Anunciao - luta o rico, luta o pobre, filhos de uma natureza que no regula. Uma hora frio demais, outra frio irresistvel. Ventos castigando, maltratando, ferindo e matando. De repente, um calor de rachar. Doenas de todas as formas e espcies. Portanto, se a natureza no regula, como os viventes desejam ser felizes, desregulados, sem equilbrio? A indagao fica no ar. Manoel acompanha o raciocnio. A voz, num tom paternal, vai explicando: - A felicidade uma palavra que s existe no nome, arranjada para amansar os iludidos, para aliviar aqueles que no conhecem os segredos da vida. Como pode a me ser feliz permanentemente preocupada com os filhos? Que felicidade pode ter os pais atormentados pela mesma preocupao? Na procura da felicidade 54

todos se maldizem, sofrem, lutam e enfrentam dificuldades: o sol, a chuva e o sereno. - Voc quer ser feliz, Manoel? - Quero, quem no quer? - Para ser feliz, Manoel, torna-se necessrio trazer para si o que certo, viver de maneira certa e no na incerteza que todos vivem. Vou lhe mostrar, em muito breve, o caminho da felicidade, a soluo para todos os problemas da vida e voc ter de ensin-lo humanidade.

20Ao despertar na manh seguinte, ainda sob efeito de analgsicos e convalescente da cirurgia, Vargas tinha diante de seus olhos a imagem de Manoel Jacintho Coelho. Chapu na cabea e cigarro de palha na boca, iluminado por uma luz prateada intensa: - O pior j passou. O senhor agora vai se recuperar rapidamente. Tenha pacincia, acredite ... A imagem de Manoel desapareceu a seguir. Vargas no podia falar, embora fosse seu desejo conversar com aquele homem. Figura singular, Seu Manoel sabia dos segredos da vida e dos mistrios da morte. Decidiu. Assim que tivesse recuperado ia procur-la. Aquele homem que o alertara do perigo do acidente e agora estivera ali materializado podia ajud-lo. Lembrou-se do primeiro encontro. Da sinceridade das palavras de Manoel, do seu desejo de colaborar. Ajuda desinteressada, despretensiosa. Por diversas vezes, ao ouvi-lo, ficou arrepiado, mas procurou controlar as emoes. Afinal, no ficava bem para um Presidente sair por a batendo cabea nem tampouco se deixando levar por premonies, espiritismo.

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Iria procurar Manoel, precisava agradec-lo. Pensava assim quando o Ministro Afrnio de Meio Franco chegou para visit-lo, acompanhado do mdico Pedro Ernesto, prefeito do Distrito Federal. Logo aps cumpriment-la e antes mesmo de falar sobre o seu estado de sade ou ainda contar como ocorrera o acidente, Vargas quis saber: - Afrnio, como vai o Manoel? - Que Manoel, Presidente? -- Aquele seu funcionrio l do Itamaraty. - Vai bem, eu acho que vai bem. Mas por que o Presidente quer saber dele? Vargas sorriu, respondendo apenas: - Sei l, ele me pareceu um bom sujeito. Dois meses aps, Vargas estava completamente recuperado. Aps remov-la para a Casa de Sade de sua propriedade no Rio de Janeiro, o mdico Pedra Ernesto dedicou-lhe inteira assistncia at curla. Ele no conseguia, porm, esquecer de Manoel. Quando soube dos resultados eleitorais da Constituinte, dia 3 de maio, voltou a v-Ia, sempre iluminado pela luz prateada: - Esse Seu Manoel parece mesmo um homem do outro mundo. A ampla vitria dos representantes das situaes estaduais haviam lhe garantido a realizao de mais um sonho: o de se tornar Presidente da Repblica, eleito atravs do voto indireto, fato que iria ocorrer no dia 17 de julho do ano seguinte, um dia aps a promulgao da Constituio. Chapu na cabea e cigarro de palha na boca, Manoel parecia acompanh-la. Sentia vontade de rev-Ia, agradec-la e abra-la. E tambm ouvi-Ia. Afinal, ele sabia das coisas.56

No perdeu mais tempo. Olhou o relgio, acendeu o charuto, pegou o telefone e ligou para o Ministro Afrnio de Meio Franco, no Palcio do Itamaraty: - Dr. Afrnio? - Sim. - Quem est falando o Dr. Getlio. Estou desejando saber do senhor Manoel Jacintho Coelho, aquele funcionrio. Ele me pediu que resolvesse um problema dele, e vou atend-la. Trata-se de um emprego para um parente, um sujeito estudioso, competente, merecedor da oportunidade. Por favor, pea a ele que venha imediatamente ao Palcio do Catete, porque no disponho de muito tempo. - Vou mand-lo sim. E de resto, Presidente? - Vou bem, DI'. Afrnio. Estou recuperado e pronto para servir ao nosso Pas. - Isto timo, Dr. Getlio, isto timo ... - Vou desligar, Dr. Afrnio. No deixe de mandar o Manoel aqui. - Sim, Presidente ... 21

Muito no demorou, Manoel chegava ao Palcio do Catete com seus quase dois metros de altura e mistrio. Imediatamente foi arrastado para o gabinete do Presidente. Ali, Vargas o esperava ansioso, inquieto, caminhando de um lado para outro e fumando muito. - Como vai o homem do outro mundo - exclamou sorridente ao vIa. Depois veio abra-la, feliz e agradecido. - No sei como escapei daquele terrvel acidente, Seu Manoel. Daquele acidente para o qual o senhor havia me alertado e pedido para que tivesse cuidado. Mas reconheo, poderia ter sido bem pior, bem mais trgico.57

E recordou Getlio: - Quando ouvi o estrondo fechei os olhos. De olhos fechados vi o seu rosto. Tive a conscincia, quela altura, de que no me livraria do acidente, mas que iria sobreviver, porque o senhor estava do meu lado. Mandei cham-la para agradec-lo e tambm presente-lo. Caminhou at mesa e abrindo a gaveta, dela retirou uma pequena caixa, embrulhada em papel colorido. Disse:

- A vida tem suas organizaes muito claras para quem sabe viver. Para quem no sabe, a vida torna-se desorganizada e difcil. Os seres orgnicos se digladiam, lutam, destruindo a prpria vida. Para ser bem formada, bem construda, equilibrada ao bem-viver, a vida necessita que os seres orgnicos e as organizaes estejam paralelas e adequadas ao modo de que se constitui a vida. O poder da vida est naquilo que as organizaes podem corresponder para equivaler vida. - O que vale o vivente ter vida, viver e no saber viver, Presidente? Indaga Manoel, respondendo depois: - Ora, no vale nada, porque quanto mais se procura organizar a vida, mais se desorganiza. E se desorganizando, mais sofrimento vai colhendo. como a mar, sempre contra a mar, dentro do mar revolto. Assim como as tempestades que reinam na vida do vivente, acabam por naufragar-lhe a vida, deixando-o a imaginar e dizer: - Quanto mais procuro o bem, mais ele se afasta de mim, mais longe fica, porque no enxergo o que vou fazer da vida. E concluiu: - Neste crepsculo amargo, neste pesadelo infernal, neste vale de lgrimas, fica o vivente a pensar numa infinidade de coisas, sem saber resolver o ideal. - Mas, Seu Manoel, o que seria o ideal no seu ponto de vista? - Seria viver num mundo natural, verdadeiro, limpo, imenso, puro, longe dos problemas, das humilhaes, das angstias e dos sofrimentos. Um mundo de unio, de concrdia e de fraternidade. Um mundo sem mentiras, sem desconfiana, de equilbrio e de virtudes. E arrematou: - No mundo de agora, a esperana que consola, aborrece e amola. Vargas sorriu. Balanou a cabea, concordando.59

- um relgio, Seu Manoel. Um relgio de excelente marca, uma pequena lembrana. Ao us-lo, o senhor vai se lembrar do seu amigo Presidente e tambm quanto lhe sou agradecido. Saiba, onde quer que eu esteja, no vou esquec-lo. E espero que o senhor esteja sempre comigo.Manoel sorriu, baixou a cabea, estava emocionado. Depois comeou a falar: - Nesta vida nada verdadeiro, a comear pela prpria vida. Se a vida fosse verdadeira, ningum iria perd-la, Presidente. O que parece certo hoje, amanh ser errado, porque vivemos uma fase de desacertos, de desencontros. O homem um vago bicho sem destino, nasceu sobre a Terra sem saber por que nem para qu. - E como vamos saber o porqu, Seu Manoel? - Daqui a dois anos, Presidente, com incio da Fase Racional, a fase do raciocnio, quando a humanidade vai conhecer o mundo de sua raa e saber tambm como voltar para ele. A vida no ter mais segredos. - O Presidente sabe o segredo da vida? Um raio de sol fraco e louro iluminou o rosto redondo de Vargas. Surpreso e curioso, ele absorvia, em silncio, as palavras sbias de Manoel:58

Manoel despediu-se dele, prometendo voltar um dia. Alm dos ensinamentos de uma nova cultura, ele acabara de mostrar a Vargas, a luz da razo, o caminho da eternidade. Agora sim, o Cavaleiro da Concrdia poderia partir para dar continuidade ao seu trabalho: o de fazer renascer das trevas o esplendor do Terceiro Milnio.

I I I Parte

A LUZ DA SALVAO

quarto. Ana Maria no sobreviveu ao dar a luz ao filho, apesar dos esforos. Quem conheceu o drama, jamais vai esquec-lo. O menino nascendo, chorando. E Aninha se debatendo, sofrendo, lutando e morrendo, num ataque de eclampsia. Ningum sabia que seu sangue se intoxicara nos ltimos dias da gestao. E quando Aninha comeou a tremer, olhos arregalados, sacudindo-se toda, algum ainda perguntou num tom nervoso: - Ela epiltica, ela epiltica? A pergunta ficou no ar, sem resposta. Na verdade, o que todos sabiam sobre Aninha era muito pouco ou quase tudo de uma vida simples: era uma moa trabalhadeira, caprichosa, amvel e simptica. E no abandonara a mquina de costura at a vspera do filho nascer, porque trabalho era coisa que ela no recusava.

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e nada adiantaram as promessas Nossa Senhora do Parto. Nem o copo de gua, nem as velas acesas sobre a cmoda, num canto do

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- Aninha pespontadeira, Aninha pespontadeira ... era assim que todos lhe chamavam na Cidade Nova. Embrulho de roupas na cabea, l ia Aninha entregar as encomendas. Mulata sestrosa, colo desabrochado. Cintura fina e fala mansa. No seu jeito, feitio, dengue e malcia: - Bom dia, seu Antenor. Bom dia, dona Carolina ... O ferreiro Antnio Faustino da Conceio encantou-se por ela. Apaixonou-se. E com ela acabou se casando, meses depois, num grande dia de festa. E agora ele chora, corao dilacerado, rasgado, sangrando. Peito preste a explodir de tanta dor. Lgrimas rolam pelo seu rosto, umedecendo-lhe o bigode farto, insolente, arrogante - bigode que Aninha tanto gostava. O desespero aumenta, impossvel viver sem Aninha. Ela fra tudo para ele: mulher, amante, amiga. Me e irm. -- Por que Aninha, por qu? Voc no podia ir embora, Aninha. Me deixar assim, sozinho, largado no mundo, filho para criar ... Antnio ferreiro chora a ausncia da companheira, reclama, grita, padece. Garganta ardendo, saliva escorrendo da boca aberta de tanta dor. Parece querer morrer. Sua voz estala e se arrasta no ar, chorando, queimando de sofrimento, alta e desesperada. Conhecera Aninha, h seis anos, durante o Carnaval. Ficara enfeitiado ao v-Ia requebrar no Rancho Recreio das Flores, onde Marinho, neto de Ciata, era mestre-sala e tinha grande prestgio. No conseguiu mais despregar os olhos dela. Nem tampouco fugir de seu jeito dengoso, dos seus lbios de desejo, do seu canto poderoso e livre: - Ah! Aquelas ancas de requebros, aquela pele dourada, aqueles braos bem-feitos, aquelas pernas compridas ... 64

Tempo passou e Antnio acabou por conquist-la. Foi Dino Jumbeba, irmo de Marinho, tesoureiro da Irmandade de So Jorge, na Praa da Repblica, quem tratou de cas-los: - Vocs se amam de verdade. E esse amor tem que dar frutos, compreendem, compreendem? .. Repetia sempre. Quem no se lembra da festa de casamento. Das valsas, dos lundus, dos chorinhos. Do samba comendo solto, durante o sbado, entrando pela noite, varando a madrugada e estendendo-se por todo o domingo. Aquele casamento reuniu, sem dvida, a fina flor do Rio musical. L estavam Lamartine Babo e Miguel Guimares Jnior, Dunga e Chico Viola, Ismael Silva e Joubert de Carvalho, Nilton Bastos e Heitor dos Prazeres, Jacob do Bandolim e o poeta Catulo da Paixo Cearense. Pixinguinha, num terno de linho engomado, e Noel Rosa, batucando, tempo todo, numa caixa de fsforos. Paulo Benjamim de Oliveira, o Paulo da Portela, foi um dos ltimos a chegar, acompanhado de Cartola e Nelson do Cavaquinho. Foram abraar Aninha, cumprimentar o marido felizardo e comemorar o enlace. Naquele dia, Antnio se tornara o homem mais felizardo do mundo. Agora, com a morte da mulher amada, era o mais infeliz de todos os homens. Sentado no cho da desolao e da desgraa, rosto entre as pernas, coberto pelas mos calejadas, queimadas de fogo e cido, Antnio chorava o infortnio da tragdia: - Por que isso foi acontecer? Por que, por qu? Eu no sei que fazer. Aninha, voc no podia ir embora, no podia morrer. o meu amor, Aninha, o que vou fazer? Lembrou-se do Padre Mrio, barroco e ecumnico. Do casamento. Aninha vestida de noiva, caminhando para o altar. 65

De vu e grinalda, como sempre desejou: Estava bonita ... Ao v-Io nervoso, ela sorriu, mostrando as fileiras de dentes brancos e iguais. _ O senhor Antnio Faustino da Conceio, quer receber, por livre e espontnea vontade, a senhora Ana Maria de Oliveira, aqui presente, por sua legtima esposa, conforme o rito da Santa Igreja Catlica? _ Sim, sim. Claro, claro - respondeu apressadamente ao ouvir a voz do padre em sua alucinao. Depois aguardou ansioso a resposta de Aninha. _ A senhora Ana Maria de Oliveira quer receber, por livre e espontnea vontade, o senhor Antnio Faustino da Conceio, aqui presente, por seu legtimo esposo, conforme o rito da Santa Igreja Catlica? - Sim, padre. Doce Aninha. Padre Mrio fez, por trs vezes, o sinal da cruz sobre os noivos, ajoelhados diante do altar. Depois comeou a orar: _ Senhor eterno, que consagrastes as coisas dispersas, que constitustes para os coraes um vnculo de unio indissolvel, que abenoastes Isaac e Rebeca, que os fizestes herdeiros de vossa promessa, abenoa i tambm estes vossos servos e guiai-os para toda a boa ao. Porque sois um Deus misericordioso e amigo dos homens, ns vos rendemos honra, Pai, Filho e Esprito Santo, agora e sempre por todos os sculos dos sculos, amm. O sacerdote procedeu beno das alianas: _ Senhor nosso Deus que tomastes por vossa noiva, como virgem pura, a igreja nascida dos gentios, abenoa i este noivado e uni estes servos, guardando-os na paz e na concrdia, porque toda66

a glria, honra e adorao a Vs pertencem, Pai, Filho, Esprito Santo, agora e sempre por todos os sculos dos sculos; amm. Padre Mrio tomou as alianas e aps coloc-las nos dedos dos noivos, tratou de abeno-los, fazendo sobre eles o sinal da cruz. Entregue s alucinaes e preso s lembranas do casamento, Antnio no chora mais. Como seria bom se a vida voltasse no tempo, devolvendo s pessoas as coisas perdidas. As tristezas, por certo, seriam evitadas. No haveria tantas desgraas no mundo nem sofrimento. Aninha no estaria deitada naquele quarto, imvel. - Morreu abenoada pelo Padre Mrio. Mas o que isso adiantava? O que ela desejava mesmo era ter um filho, cri-lo. Sonhava sempre com o beb, ele acabou por arrast-la morte. Ah! meu Deus, quando vamos deixar de sofrer? - Indagou incrdulo. Antnio olhou o cu, contemplativo. Buscou um lenitivo na imensido do Universo. Uma luz que fosse intensa e pura. Verdadeira como a crena que possua, mas que acabara de perder. Uma luz que pudesse lhe revelar, atravs daquela claridade e da fora, o segredo da vida, a razo para afast-lo da descrena. Mas algum inadvertidamente acabou por despert-lo: - Vamos l, Antnio. Seja forte. Olhe, seu filho. Est aqui, veja ... o rostinho dele, uma gracinha. Como se parece com a me. Ao abraar o menino, Antnio tratou de aproxim-lo bem de seu peito. No seu gesto de amor e de afeto, uma necessidade: a de senti-lo respirando, vivendo ... o filho de Aninha. Depois pediu foras para cri-lo: - Voc, menino. Vai ter de ser um homem honesto, trabalhador e honrado. Um homem de bem como desejou sua me. Na pia batismal, o filho de Aninha se chamou Moacir, aquele que nasceu do sofrimento. 67

Em meio ao burburinho provocado pela tragdia que arrastou vizinhos, amigos e parentes ao leito de morte da mulher, algum se lembrou de Maria Amlia, a negra Amlia Baiana: Uma parteira de mo-cheia, caridosa, sensitiva. Foi a melhor que passou por aqui, igual a ela, nenhuma. Sabia das coisas, da natureza, da essncia. Sabia se a me ia passar mal, se o filho ia nascer bem, com sade. Era uma mulher especial. - Mas por onde anda essa Amlia Baiana? Por que _no foram busc-la? Indagou o relojoeiro Assuno. Moreno, cabelos lisos, terno cinza, colarinho engomado, correntinha caindo do bolso do colete. Gorda, vestido estampado, a costureira Cndida, vizinha de Aninha, adiantou-se, bondade nos olhos e nas atitudes: - Ningum sabe por onde anda a Amlia Baiana, no, moo. Se ela est viva, ou se j morreu. Talvez esteja perdida, ou abandonada. Ande l para os lados do Cais do Porto, sendo alimentada pelas mos generosas de algum estivador, conhecedor de suas histrias e seus poderes. Ou mesmo tenha encontrado o caminho do mar, da seduo, do encantamento. Ido para o subrbio, subido o morro, salpicado de verde, embalada pela brisa suave, fresca e carinhosa. Ou mesmo, quem sabe, voltou para a Bahia, para seu povo de velas, saveiros e lendas.

Controlando os impulsos, de forma lcida, clara, decidida, vai entregando seu corpo com denodo, abnegao e coragem. Na atmosfera envolvente e suavemente perfumada da Tenda Esprita Francisco de Assis, ele recebe mais uma comunicao: sobre sua cabea, um foco de luz prateada, intensa, transparente a ilumin-lo: - Onde existe adiantamento, Manoel, existe a luz. Portanto, no h sofrimento. Quem sabe no sofre. Quem no sabe, pena. Existem os que pensam que sabem. Mas o sofrimento prova que eles no sabem, pois se soubessem no sofreriam nem tampouco fariam os outros sofrer. Manoel mostrou-se inquisitivo, desejoso de maiores esclarecimentos. Ento, a luz tornou-se mais forte, mais intensa, mais clara sobre ele. A voz elevou-se: - Os que sabem, Manoel, no sofrem. Resolvem tudo por si e por todos. Porm, muitos vivem com saber insignificante, triste, sem nenhum valor. Envaidecidos de uma sabedoria fraca. E embora convictos da nulidade da sabedoria que apregoam, consideram-se sbios, mantendo-se no pedestal, na tribuna, no plpito. Na verdade no passam de grandes impostores. So impostores por serem sofredores, mantendo lies de uma sabedoria que s traz sofrimento para todos. O que adianta, Manoel, um saber que s aumenta o sofrimento? No adianta nada, no vale nada. Olhos semicerrados, Manoel ouve em silncio, expresso de ateno concentrada no rosto: - O mundo est convertido por uma sabedoria invertida, aonde o atraso adotado como saber. Isto to visvel, como tornou-se visvel o sofrimento do mundo. Tanto assim que admitem a salvao do mundo pelo desenvolvimento da destruio. Ah! Manoel, dentro de 69

23- Onde existe atraso, existe sofrimento, existe trevas: Por isso, todos vivem no escuro, sofrendo, sem saber como se livrar do sofrimento. Jamais inteiramente satisfeito, Manoel Jacintho Coelho continua a sua procura, buscando novos caminhos, novos horizontes. 68

pouco tempo todos vo ver a gua ferver e esfriar de repente, como uma brasa jogada dentro da lagoa. No fique preocupado, logo depois tudo ser normalizado. E a paz vai voltar a reinar, finalmente, em todo o Universo. Manoel quis falar, mas no teve tempo. A Voz da Anunciao tratou de interromp-lo, indo adiante: - Os homens nasceram no mundo, mas o mundo no dos homens, no dos habitantes. E por no ser dos habitantes, nem tudo eles podem resolver. Dentro de muito breve, as coisas vo comear a se encarreirar, ganhando novos rumos, com carter de melhoria universal. Ser colocado um ponto final no absurdo. Atravs de voc, vou apresentar ao mundo um Livro contendo a verdade das verdades. Com a leitura deste Livro, todos vo saber de onde vieram e para onde vo. Ser um Livro de revelaes surpreendentes, revolucionrio, pois vai provocar modificaes de conceitos, de princpios filosficos, de pregaes religiosas. Atravs dele, o mundo vai tomar conhecimento de uma nova cultura, de novos ensinamentos, de novas lies. Vai conhecer o caminho da luz, alm de seu Verdadeiro DEUS. Ser uma Obra universal, grandiosa. - O livro? Como vou faz-lo? Manoel quer saber. - Ter de escrev-lo, atravs do conhecimento que vou lhe transmitir. - No estou entendendo ... - Quando chegar a hora, Manoel, voc entender. As verdades sero derramadas diante de seus olhos, claras, elucidativas. Mas, mas ... Manoel ficou preocupado com o peso de tamanha responsabilidade. - Acalme-se, Manoel. Voc tem capacidade. Foi por ter 70

capacidade e coragem que voc foi escolhido. J estamos bem prximos do Terceiro Milnio. E a fase do Terceiro Milnio a fase da Racionalizao dos povos, onde toda a humanidade vai conhecer o mundo de sua raa e ainda saber como voltar para ele. Com o livro que voc vai escrever, o homem vai aprender a desenvolver o raciocnio e tambm se desligar, definitivamente, da energia eltrica e magntica, ganhando, ento, vida eterna, transformando-se em massa csmica, pura, limpa e verdadeira. Manoel ficou tranqilo, ouvindo: - No ser filosofia, nem religio, mas uma cultura transcendental. A cultura do verdadeiro estado natural, do conhecimento do retorno da humanidade ao seu verdadeiro Mundo de Origem, atravs da Energia Racional, elo de ligao do ser humano ao MUNDO RACIONAL. - Mas o que Energia Racional? Perguntou Manoel, agora curioso. Mas a voz respondeu-lhe apenas: - Voc vai saber de tudo sobre Energia Racional. Vai conhec-la para poder ensinar. Tenha pacincia e aguarde. Tudo tem seu tempo. Fruteira nenhuma d fruto antes do tempo. Eu j lhe ensinei. Ser que voc no aprendeu? Manoel sorriu. A anunciada transformao que iria ocorrer em sua vida e o surgimento de uma nova cultura de Racionalizao dos povos no ficariam guardadas atrs das brancas paredes da Tenda Esprita Francisco de Assis no Mier. Atravessaria o Atlntico e seria ouvida na Europa. Na cidade de Gubbio, na Itlia, o advogado, professor e escritor esprita Pietro Ubaldi captaria a mensagem: " ... e desse modo, os fenmenos no sero mais vistos nem71

ouvidos, nem tocados por um EU qualquer, mas sentidos por um ser que se transformou em delicadssimo instrumento refinado de e percepo, sobretudo sensitivamente evoludo, nervosamente

- Pois , Manoel. A coitada, cheia de vida, morreu de parto, uma pena! Foi um fato doloroso, chocante, triste .. E o desespero do marido, o Antnio ferreiro ... lembrei-me de voc. Achei que poderia ajud-lo. Sei l ... mas no consegui encontr-lo ... - Lamento, Dino. Lamento muito ... bem que gostaria de ajud-lo numa hora dessa, difcil... - Mas deixa isso para l, Manoel. J passou. No vamos ficar aqui lembrando coisas tristes. Vamos ao que interessa. O que voc me conta de bom? - No tenho novidades, amigo. Estou levando, como lhe falei, uma vida simples, comportada, rotineira. Sem alteraes ou coisas novas. Estou morando no Mier, subrbio tranqilo, afastado, calmo. E voc? ... O que voc me conta de novo? - Continuo na Central. Agora sou maquinista, compreendeu? Comecei cedo, logo depois de deixar o Exrcito. Entrei como graxeiro, levado por meu irmo. Depois passei a foguista. Fiz curso e sou maquinista. Bom sujeito o Dino Jumbeba. Homem de agradvel convvio, tremendo papo. Religioso, educado, caridoso: Irmo-tesoureiro da Igreja de So Jorge e neto de Ciata, baiana festeira e dona de Casa de Santo. - Como vai Tia Ciata, Dino? E seus irmos? - Tia Ciata, voc sabe, continua com suas festas, com o candombl. Respeitada, quando ela fala, ningum responde. Todo mundo gosta dela e quando ela d uma ordem, o pessoal aceita e trata de cumpri-Ia. Tia Ciata uma personagem da cidade e vai ficar para a histria. - Verdade. - Quanto aos meus irmos, esto a. Lili est trabalhando l no Moinho Ingls. O Marinho continua metido na macumba.73

aperfeioado. Cincia nova, conduzida pelos caminhos do amor e da elevao espiritual, cincia que o Super-homem que est para nascer fundar a Nova Civilizao do III Milnio." Ao receber a mensagem, Pietro Ubaldi tratou de anot-la e incluIa no livro que escrevia: A GRANDE SNTESE. Este livro iria se tornar, com o passar dos anos, o mais famoso de toda a obra do escritor italiano. Durante sua feitura, Ubaldi passava por um imenso perodo de solido e trabalho.

24- Ento, Manoel, contemplando a cidade? - Oi, Dino. Como vai? Quanto tempo ... - Puxa, Manoel, voc sumiu. H mais de seis meses que no lhe vejo. Onde voc tem andado? - Tenho andado pela vida, Dino. Trabalhando, lutando, vivendo. -. E o violo, a msica, as festas? ... As festas, Manoel, as noites alegres, movimentadas? .. - Devido aos meus afazeres, ao meu trabalho, ultimamente no tenho me dedicado msica. Olha que no pego no violo um bom tempo. Festas, ento, nem se fala. No tenho ido a nenhuma. - H cinco anos, mais ou menos, fui procur-lo e no consegui localiz-lo. Queria avis-lo da morte de Aninha ... - Aninha? - Sim, Aninha. Aquela pespontadeira, moa prendada, portaestandarte do Recreio das Flores, voc se lembra? Sim, sim ...72

og do terreiro do Joo Alab. E o Santana est morando com minhairm. Quem fala muito em voc, Manoel, meu primo, o Bucy Moreira. _ Ah, o Bucy. O Bucy compositor ... onde ele anda? Tenho saudades dele. _ O Bucy continua na dele. Quer ach-l