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7/30/2019 O CENTRO HISTRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAO SOCIOURBANA parte2
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PREFCIO
EM SALVADOR EST EM JOGO O FUTURO DO BRASIL
Horacio Capel1
Universidade de Barcelona
A concesso pela Unesco do ttulo de Patrimnio da
Humanidade, em 1985, teve o significado do reconhecimento mundial da
cidade de Salvador. Foi o resultado de uma ao prolongada por parte de
grupos de cidados para a valorizao de seu Centro Histrico.
Desde antes desta data, Salvador j era muito conhecida, era
quase uma cidade cone em escala mundial. Pode-se encontrar toda uma srie
de descries elogiosas da localizao, das belezas e da riqueza da cidade (e
tambm de suas diferenas sociais) desde a poca da colonizao portuguesa.
Logo aps a Independncia, naturalistas, comerciantes e viajantes contriburam
para criar uma imagem da cidade em que se renem a histria, o exotismo, o
tropical e a cultura local.
Salvador est intimamente vinculada histria do Brasil, j que a
fundao da cidade coincide, de fato, com sua criao. Construiu-se imagem
de Lisboa e certo que a recorda muito. Sua histria a de uma evoluo que
a levou da condio de ser capital do Brasil a converter-se, uma vez perdida aposio de capital poltica, em uma metrpole regional. Uma cidade barroca e
neoclssica, em que este ltimo estilo se prolongou durante boa parte do
sculo XIX, como nas cidades europeias.
Uma rica tradio de estudos
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Sem dvida, a mudana da capital para o Rio de Janeiro, em
1763, ainda que tivesse sido uma medida acertada do ponto de vista da coeso
da Colnia e, logo, para a unidade do pas independente, representou para
Salvador uma grande perda. Todavia, a cidade manteve e inclusive ampliou
seu desenvolvimento econmico, sua riqueza e sua personalidade, que seria
internacionalmente difundida pelas obras de escritores e intelectuais baianos,
entre os quais, de maneira notvel, Jorge Amado.
Meu conhecimento de Salvador remonta a comeos dos anos
1960 quando tive ocasio de ler, durante meus estudos de geografia na
Universidade de Mrcia, vrios trabalhos sobre uma rea geogrfica que, em
espanhol, tem uma pronncia muito sonora: o Recncavo baiano. Logo pude
conhecer a tese de Milton Santos sobre a cidade de Salvador, apresentada na
Universidade de Strasbourg, em 1958, e publicada no ano seguinte. Recordo
bem a impresso que ento me causou a descrio que fazia o grande
gegrafo baiano desta cidade brasileira. A que eu percebia, sobretudo, como a
antiga capital do Brasil, uma cidade europia na Amrica tropical, era descrita
por Milton Santos como uma criao da economia especulativa, vinculada
explorao aucareira e aos ciclos econmicos posteriores, do fumo e do caf.
Naqueles anos o professor Milton Santos utilizaria o exemplo de
Salvador para ilustrar as caractersticas das cidades subdesenvolvidas. O
conceito de subdesenvolvimento, ento muito renovador nas cincias sociais,
se aplicava sem maiores discusses aos pases ibero-americanos, levando em
conta no apenas seu menor nvel econmico como, especialmente, o que se
considerava que era a existncia de uma economia dual nestes pases. Ele
mesmo deu contribuies fundamentais ao estudo das cidades dos pases
subdesenvolvidos, escrevendo uma obra (em espanhol: Geografa y economa
urbana en los pases subdesarrollados, 1973) que teria uma grande difuso
internacional; e no hesitou em considerar o Brasil como participante deste
grupo de pases, e a Salvador como uma cidade representativa dessas
caractersticas, como se reflete em seu trabalho Villes et Rgion dans un pays
sous-dvelopp: lxemple du Recncavo de Bahia, publicado nosAnnales de
Gographie de Paris em 1965.
Pouco a pouco me conscientizei que Salvador possui uma longatradio de escritores, naturalistas, mdicos, arquitetos, historiadores locais e
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intelectuais em geral, que realizam estudos muito valiosos sobre a cidade e
tm contribudo para convert-la em uma urbe mtica. Mais tarde,
especialmente nos ltimos quinze anos, teria oportunidade de ampliar meus
conhecimentos pela participao em diversas bancas examinadoras de teses
de doutorado sobre esta cidade e a regio da Bahia, pela leitura de novas
obras sobre o Nordeste e pela apresentao e debate de diferentes
comunicaes sobre Salvador nos Colquios Internacionais de Geocrtica;
inclusive tive a honra de contribuir na elaborao das teses de doutorado de
vrios gegrafos baianos: a de Guiomar Inez Germani (sobre a Cuestin agraria
y asentamientos de poblacin en el rea rural: la nueva cara de la lucha por la
tierra, Baha, Brasil, 1964-1990, defendida na Universidade de Barcelona, em
1993), a de Rosali Braga Fernandes (Las polticas de la vivienda en la ciudad de
Salvador y los procesos de urbanizacin popular en el caso del Cabula, em 2000
e publicada pouco depois) e a de Hilda Maria de Carvalho Braga (Produccin y
desperdicio: un estudio sobre la basura en la ciudad de Salvador, Baha, em
2002). Os temas destas trs teses so bem representativos do carter tico e
da preocupao dos gegrafos da cidade, como de outros cientistas sociais
baianos, pelos problemas sociais de Salvador.
Todas estas leituras me fizeram consciente do grande nvel cultural
que existe nesta cidade, e do refinamento de seus intelectuais, o qual se reflete
tambm em aspectos que podem passar despercebidos, como a utilizao do
gentlico soteropolitano, um rebuscamento estilstico de raiz grega, para
designar os habitantes desta cidade.
Modernizao e transformaes urbansticas similares s cidades
europeias
Entre os livros que tive oportunidade de conhecer recentemente
sobre Salvador, destaco dois: o de Consuelo Novais Sampaio e o de Eloisa
Petti Pinheiro, duas obras excelentes e imprescindveis para entender a
evoluo urbana desta cidade e seu processo de modernizao. As duas
ajudam a penetrar na dinmica de transformao da cidade desde os anos que
se seguiram Independncia at a Primeira Guerra Mundial, e permitem
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afirmar que as mudanas experimentadas, como as de outras cidades
americanas do Norte e do Sul, foram muito similares dos europeus.
O livro de Consuelo Novais Sampaio, 50 anos de urbanizao.
Salvador da Bahia no sculo XIX(2005), que conheo graas generosidade
do arquiteto Luis Antnio de Souza, apresenta cinquenta anos de urbanizao
de Salvador no sculo XIX, com uma esplndida coleo de ilustraes e um
texto muito slido e bem elaborado. Analisa a expanso da cidade em duas
fases sucessivas. Primeiro, entre 1850 e 1870, quando, por influncia do
intenso movimento comercial, se construram esplndidos edifcios e comeou
a transformar-se profundamente a cidade que tinha sido sede do Brasil
Colnia. Depois, entre 1870 e 1900, o momento em que a cidade se articula
sob estmulos e desafios aos que teve de enfrentar no processo de
modernizao: a conquista das encostas, o impacto dos bondes, a chegada da
energia eltrica e, em definitivo, o desenvolvimento de uma modernizao
vinculada a Segunda Revoluo Industrial.
Na segunda metade do sculo XIX, numerosos aterros na linha
da costa permitiram ganhar terrenos ao mar para o porto, para a atividade
comercial e a expanso urbana. O advento do trem tornou possvel a relao
mais estreita e intensa com as zonas produtivas do interior do Estado, com o
Vale do So Francisco e potencializou a atividade do porto de Salvador.
A cidade foi mudando a estrutura original, em que os ricos, os
fidalgos e os aristocratas viviam em cima, na Cidade Alta, e os pobres nas
encostas e na parte baixa, a Cidade Baixa, vinculada ao porto. Os bondes e os
ascensores permitiram uma melhor relao entre as duas partes, primeiro, e a
expanso da cidade, depois. A construo das linhas de bonde foi toda uma
proeza devido topografia e as condies hdricas para o deslocamento, comdesnveis, lagoas e reas pantanosas. O bonde, com a fuga das classes
endinheiradas para outros bairros, produziu, como nas grandes cidades
europeias, um processo de transformao da Cidade Alta, convertida em porta
de entrada de imigrantes. O que era toda a cidade de Salvador at meados do
sculo XIX comeou a tornar-se um setor popular, como sucedeu em outras
cidades europeias desde as ltimas dcadas do sculo, com o
desenvolvimento dos novos meios de transporte e a fuga das classesburguesas para outros bairros, onde podiam construir-se moradias que
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respondiam s exigncias da sociedade industrial. A similitude da evoluo
com as cidades do Velho Continente surpreendente.
As amplas residncias que existiam no centro foram subdivididas
e transformadas em cortios e casas de cmodos. Os cortios se converteram
no novo tipo de habitao popular para as classes de menor poder aquisitivo,
situadas no fundo de antigas moradias ou em parcelas adquiridas para este
fim. Moradias miserveis, insalubres, densificadas e promscuas. Dessa forma,
como na Europa, se estabeleceram as condies para o surgimento de graves
problemas higinicos que se mostraram especialmente evidentes nas
epidemias de febre amarela e do clera: a epidemia do clera em 1855 matou
17 por cento da populao. Os novos bairros que comearam a ser construdos
fora do antigo centro se edificavam de acordo com os padres que os novos
tempos exigiam.
O processo de modernizao urbana iniciado nas ltimas
dcadas do sculo XIX se prolongou durante as primeiras dcadas do sculo
XX. Esse o objeto de estudo do livro da arquiteta Elosa Petti Pinheiro,
intitulado Europa, Frana e Bahia: difuso e adaptao de modelos urbanos
(Paris, Rio e Salvador), resultado de uma tese de doutoramento que foi
apresentada na Universidade Politcnica de Barcelona, e de cuja banca
examinadora tive o privilgio de fazer parte. Trata-se de um estudo comparado
das polticas urbanas executadas no Rio de Janeiro e em Salvador e do
processo de mudana atravs das reformas urbanas realizadas nos centros
antigos em princpios do sculo XX. A obra mostra a rpida difuso de modelos
urbanos da Europa para a Amrica do Sul.
De modo similar s cidades europeias e norte-americanas, os
melhoramentos urbanos no Brasil durante a segunda metade do sculo XIXforam tambm impulsionados pelos problemas higinicos, assim como a
necessidade de adaptar o traado urbano s novas condies de circulao e
as exigncias de refuncionalizao do espao. Fez-se necessrio reestruturar o
espao j edificado, copiando as cidades europeias, sobretudo Paris.
Como ocorreu na Europa, as reformas tiveram um carter
autoritrio e pretendiam ao mesmo tempo controlar o urbano e disciplinar a
populao. A partir do discurso da modernidade, como o que se fazia nas
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cidades europeias, o poder poltico derruba as moradias pobres, os cortios e
trata de retirar os pobres do centro, quer dizer, dos espaos nobres da cidade.
Ainda que Elosa Pinheiro atribua um papel essencial ao modelo
de intervenes haussmanianas em Paris, pode-se argumentar que, na
realidade, inclusive sem este modelo o processo se produziria. Durante o
sculo XIX todas as cidades sentiram, antes ou depois, a necessidade de
transformar seu velho Centro Histrico para adapt-lo nova situao criada
pelo desenvolvimento da Revoluo Industrial e das relaes sociais
capitalistas. Operaes efetuadas antes das atuaes haussmanianas se
realizaram em muitas cidades europeias (por exemplo, em Barcelona, com a
abertura da Rua Fernando, a partir de 1827) como resultado da necessidade
vivamente sentida de uma reforma interior dos velhos centros urbanos, ainda
que a de Paris tenha tido uma escala e objetivo diferente, e por isso mesmo
uma grande repercusso internacional.
Estes dois livros, e outros que poderamos acrescentar, mostram
que desde o ponto de vista do urbanismo e dos ideais da classe dirigente sobre
a cidade, o que sucedeu em Salvador muito similar ao que ocorria na Europa;
tambm reflete que a capital da Bahia era uma cidade europeia, como todas as
da Amrica espanhola e portuguesa desde o sculo XVI ou as cidades da
Amrica francesa, holandesa ou inglesa desde o sculo seguinte.
As especificidades brasileiras
No resta dvida de que se s nos fixarmos nas transformaes
urbanas, nos ideais urbansticos dos grupos dominantes, na ampliao dos
servios pblicos ou na implantao de redes tcnicas urbanas, o relato que sepode fazer muito similar ao das cidades europeias dinmicas, com pequenas
diferenas temporais em alguns casos, nem sempre em detrimento das
cidades brasileiras.
Poderia talvez argumentar-se que as distncias sociais eram aqui
maiores que nas cidades europeias, o que seguramente certo, e que no se
esquea que na Europa eram tambm abismais.
Entretanto, no sculo XIX havia uma diferena fundamental entreSalvador e as outras cidades brasileiras, por um lado, e as cidades europeias,
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por outro: a escravido, que se manteve no Brasil at 1888. No incio do sculo
XIX a populao de Salvador ascendia a 45.600 habitantes, e nela 50 % eram
negros e 20 % mulatos. O sistema escravista s seria abolido prximo ao final
do sculo e a explorao dessa mo-de-obra era a base da riqueza dos
proprietrios, e afetava profundamente as relaes sociais e toda a vida
urbana.
Salvador foi uma cidade brilhante, prspera, cuja riqueza se
baseava na explorao da mo-de-obra escrava. Naturalmente os
descendentes daqueles escravos no deixam de sentir de forma injuriosa esta
lembrana. Um sentimento que nos traz memria um verso do poeta cubano
Nicolas Guilln, que alude a uma situao similar naquela ilha do Caribe:
Yo soy tambin nieto de esclavo,
que se avergence el amo!
(Eu tambm sou neto de escravo,
que se envergonhe o amo!)
Mas no se trata s de envergonhar-se e de reconhecer as basesda riqueza a partir da explorao dos outros, e sim de pensar no futuro.
Voltaremos a falar disso mais adiante.
O Centro Histrico, urbanismo demolidor do sculo XX
As reformas urbanas realizadas no Rio de Janeiro por iniciativa
do presidente Rodrigues Alves e do prefeito Pereira Passos se converteram em
uma referncia para outras cidades brasileiras e concretamente para as
transformaes que se empreenderam na cidade de Salvador por
determinao do governador J. J. Seabra, com apoio federal e municipal.
Realizaram-se desocupaes e demolies de velhas casas e, se necessrio,
de edifcios monumentais, o que permitiu efetuar novos alinhamentos e
melhoria nas ruas. O modelo de centro rico e com fortes investimentos e uma
periferia pobre e abandonada comea a mudar com a implantao do trem e,
sobretudo, do bonde. Modernizar a cidade e acabar com o passado foi um
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objetivo amplamente compartilhado em Salvador com referncia s reformas
da dcada de 1910 e parecia haver uma total insensibilidade e dio com
relao a Salvador colonial.
O desejo de modernizao e de melhoria das cidades era muito
aceito pelas elites de um lado e outro do Atlntico. Nas naes independentes
americanas era, ao mesmo tempo, o desejo de distanciar-se da antiga
metrpole e de apagar os smbolos do passado colonial.
Podemos fixar-nos em dois aspectos significativos das mudanas
que aconteceram: um, a converso do centro em um setor popular; outro, o
prprio processo de modernizao. Em ambos os casos h uma evoluo que,
em numerosos aspectos, muito semelhante experimentada por outras
cidades europeias.
Como em Lisboa, Barcelona, Madri e outras cidades, velhos
sobrados e inclusive palcios foram sendo abandonados pelos seus
proprietrios, divididos e convertidos em moradias populares. Neles se
instalaram os imigrantes que chegavam cidade, geralmente de origem rural.
Aps a abolio da escravatura em 1888, muitos desses imigrantes eram
antigos escravos que ocuparam as moradias que iam esvaziando-se e estavam
disponveis.
Tambm bastante similar europeia a evoluo no que se
refere s atitudes em respeito ao valor do patrimnio histrico. Sobretudo em
relao ao patrimnio eclesistico. A necessidade de diminuir a influncia
opressiva da igreja, e a existncia de propriedades em mos das ordens
religiosas, deu lugar a reaes contra esta situao, e destruies que so
similares s que se fizeram nas cidades de pases europeus e americanos que
realizaram a desamortizao de bens eclesisticos. A tese de doutorado deAna Lourdes Ribeiro da Costa sobre Salvador, sculo XVIII: o papel da ordem
religiosa dos beneditinos no processo de crescimento urbano (2003) ps de
manifesto o papel da igreja na expanso do tecido urbano desta cidade e nas
estratgias que tiveram tanto o clero secular como as ordens religiosas no que
se refere ao mercado imobilirio; de modo mais concreto, destaca o papel dos
beneditinos nos processos de construo da capital da Bahia a partir das
estratgias econmicas e sociais empregadas pela ordem. Em algumasocasies os prprios beneditinos se converteram em agentes urbanizadores,
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abrindo ruas (como a Rua Nova de So Bento) em terras de sua horta, onde
construram vrias casas de moradia.
Ao rechao do poder da igreja se uniu, como dissemos, o da
herana colonial, o que levou desvalorizao dos edifcios da poca
portuguesa. Ambos os fatores acarretariam, sem dvida, a excessos, ainda que
pudessem ser suavizados pela apario de processos de recristianizao das
classes populares, como forma de manter o controle da ordem social.
Para as grandes demolies se utilizaram razes de higiene e
circulao. Formavam parte dos esforos de modernizao da sociedade e das
cidades, da criao de um novo marco para a vida social. Por tudo isso, a
degradao do velho centro histrico se acentuou, com a fuga da populao
que o habitava para os bairros residenciais que se construram.
Finalmente, a importncia das destruies que se realizaram em
algumas cidades deu lugar reao contra estas atuaes. A destruio do
morro do Castelo no Rio de Janeiro e da Catedral de Salvador em 1933, aps
dezoito anos de polmicas e de resistncia dos intelectuais baianos, contribuiu
para a apario de uma legislao protetora, o que concorreu tambm uma
nova valorizao da herana portuguesa, quando se sentiu a necessidade de
buscar e reforar as origens da nacionalidade e esses edifcios se converteram
em smbolos de um passado histrico que era essencial para a conscincia
nacional.
Patrimnio da Humanidade e Patrimnio brasileiro
Com o livro que agora se publica, O Centro Histrico da Cidade
do Salvador. Sua integrao sociourbana, temos uma contribuio importanteao conhecimento de Salvador e de suas transformaes urbanas e sociais, o
qual se acrescenta ampla bibliografia j existente. um livro que mostra a
ampla cultura e erudio do autor, socilogo de formao e que transitou com
grande proveito pela disciplina geogrfica durante seus estudos de mastere
doutorado.
Juarez Duarte Bomfim realizou uma geografia histrica de
Salvador, um aporte histria urbana e valorizao e defesa do patrimniourbano da cidade. O autor realizou um aprecivel esforo de sntese da
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bibliografia disponvel e, apoiando-se nela e em suas prprias pesquisas,
apresenta um bom panorama da evoluo econmica e social, dos debates
para a conservao do centro histrico e das medidas que se tem aplicado.
Descreve de forma precisa a tomada de conscincia do valor do
patrimnio existente no centro histrico de Salvador e o esforo para a sua
proteo, que se traduz em medidas protetoras de monumentos a partir dos
anos 1930. Tambm mostra a apario de uma conscincia conservacionista
que se estendia a conjuntos urbanos e ao entorno dos edifcios, incluindo as
moradias populares e das classes mdias, at ampliar-se finalmente ao
conjunto do setor da Cidade Alta. Expressa muito bem a dificuldade e
complexidade das tarefas, devido relao estreita entre as edificaes e a
populao e as funes que nelas existem.
O livro faz um bom resumo da evoluo da estrutura econmica
de Salvador, as fases de escasso desenvolvimento, o estancamento
econmico e demogrfico, a industrializao tardia, o descobrimento do
petrleo na Bahia (1939) e as consequncias da instalao da Petrobras. Alude
estreita relao e imbricao dos dois sistemas de economia formal e
informal, superior e inferior.
A obra dedica especial ateno a todo o processo recente de
estudos para a proteo e conservao do Centro Histrico de Salvador, que
culminaram na declarao de Patrimnio da Humanidade, e as atuaes que
se realizaram a partir desta data. Despertam grande interesse os captulos que
o autor dedica a analisar a atuao em Salvador desde fins de 1960, em
relao sua valorizao como cidade monumental para o turismo. Tambm a
anlise que efetua do reduzido xito das primeiras intervenes, e do grande
impacto das que se realizaram a partir de 1990. Descreve os importantestrabalhos de restaurao que se realizaram, de grande valor pelo elevado
nmero de edifcios atingidos e a situao de grave deteriorao em que
muitos se encontravam, cerca de 1.000 edifcios na rea protegida.
A atuao urbanstica e a reabilitao dos centros histricos
exigem um grande cuidado, nem sempre seguido pelos tcnicos que intervm.
preciso estar muito atento. s vezes galardes como a declarao de
Patrimnio da Humanidade no tm protegido as cidades, inclusive podemcontribuir para degrad-las, isto porque, no entusiasmo da concesso do ttulo,
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Salvador , desde muitos pontos de vista, uma cidade admirvel.
Mas tambm uma cidade que tem grandes problemas. A forma como se pode
enfrent-los vai influir sobre outras muitas facetas da evoluo do Brasil.
Sem dvida, muito se fez na cidade, e especialmente, como mostra
este livro, no centro histrico. Porm, a cidade em muitos aspectos no um
modelo, ou melhor, o contrrio: em muitos casos, um exemplo do que no se
deve fazer do ponto de vista urbanstico.
Salvador passou por um processo de intensa verticalizao que
continua at os dias de hoje. A edificao de altos prdios na cidade j
construda densifica e gera graves problemas de circulao. Ademais, a cidade
se estruturou para o automvel, com um profundo esquecimento ou
menosprezo dos pedestres.
Todavia, o pior a tendncia privatizao total do espao, a falta
de ateno s necessidades coletivas. O exemplo mais fragrante disso pode
ser a insensata ocupao e obstruo de espaos abertos para a Baa de
Todos os Santos, especialmente manifestado ao longo da Avenida Sete de
Setembro. Que a cidade no tenha sido capaz de organizar um calado que
permita caminhar contemplando a baa, que muitos mirantes tenham se
tornado inservveis ao construir-se frente a eles altos edifcios tapando a viso,
algo que demonstra o sacrifcio do bem-estar coletivo ante a mesquinhez dos
interesses privados. Em certa ocasio escrevi de forma provocativa e no
me inconveniente repeti-lo que uma cidade que derrubou sua catedral
poderia muito bem promover a desapropriao e a derrubada de toda a lateral
martima da Avenida Sete de Setembro, para convert-la em calado.
H que mudar urgentemente o modelo de crescimento das cidades.
O caso de Salvador pode ser um laboratrio para o futuro. Diminuir asdiferenas sociais, reduzir o poder dos ricos, tratar de limitar seu egosmo. Faz
falta, urgentemente, comedimento e moderao em tudo.
Sem dvida, o que parece dominar , frequentemente, o excesso
em tudo. Por exemplo, a refrigerao dos edifcios. um autntico disparate
manter o interior dos edifcios em 18 ou 19 graus quando no exterior a
temperatura de 35 graus (sic) e com forte umidade. No me surpreende que
em Salvador haja um elevado grau de incidncia de pneumonias. Por outrolado inaceitvel o gasto perdulrio de energia que isso provoca e as graves
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consequncias sociais que gera. Os grupos populares que residem nas favelas
e no tm possibilidade de refrigerar suas moradias se vm obrigados a usar
sistemas mais ecolgicos, que so por si s mais sustentveis.
O futuro do Brasil est em jogo em Salvador
Nesta nova Europa ultramarina que foi o Brasil desde o sculo XVI,
como outros territrios do Norte e do Sul da Amrica, e nesta realidade nova e
dinmica que o Brasil atual, a conservao do centro de Salvador tem uma
grande importncia nacional e internacional. a amostra de uma cidade
europeia construda a partir do Renascimento, com este estilo e com os do
Barroco e o Neoclassicismo. Mas tambm um desafio e um laboratrio para
construir uma sociedade diferente. Do xito ou fracasso dessa construo
dependero muitas coisas.
As circunstncias histricas da construo do Brasil portugus, e
logo as que esto relacionadas com a Independncia do pas, fizeram com que
Salvador, como todo o territrio brasileiro, sendo parte cultural da Europa,
fosse tambm outra coisa distinta. Durante meio milnio vem se convertendo
em um crisol, em um territrio de intensa mestiagem e de nova interao
intercultural, que hoje uma realidade vital e de grande dinamismo cultural. Um
Brasil que uma superpotncia mundial, um foco que muitos miram como um
possvel modelo para todo o planeta, pelo dinamismo cultural e a vitalidade da
mestiagem.
Mas nem tudo cor-de-rosa. H perigos evidentes. E isto se
percebe claramente em Salvador. Uma, as diferenas sociais, muito patentes.
Outra, a oposio mestiagem e o desenvolvimento do black power.Salvador, e especialmente o centro da cidade, que foi considerada a Roma
negra, identificada com a negritude. No s pela importncia dessa
populao como tambm pela grande efervescncia cultural na cidade nos
anos 1980-90 e o seu peso na construo da identidade.
A mutao de Salvador, e especialmente de seu Centro Histrico
tem sido verdadeiramente espetacular. De constituir um smbolo da presena
europeia na Amrica se transmutou em um smbolo da cultura afro-brasileira.
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Alguns inclusive a consideram uma espcie de quilombo, um territrio negro
independente.
Mas o Centro Histrico de Salvador no pode ser um lugar
margem da cidade, pois h de ser sentido como seu por parte de toda a
populao soteropolitana, como para todo o amplo e diverso Brasil, que o deve
perceber como uma de suas razes identitrias.
A imitao dos modelos sociais norte-americanos por parte da
populao brasileira de origem africana parece haver aumentado nos ltimos
anos. A aspirao a um black power formulada explicitamente por alguns,
com o beneplcito e o apoio encoberto ou explcito de fundaes norte-
americanas, que defendem o padro dicotmico que domina nos Estados
Unidos e que seguramente veriam com agrado a fragmentao do Brasil.
Mas o Brasil no os Estados Unidos, e os modelos daquele pas
no deveriam ser seguidos no Brasil, que tem uma realidade histrica e racial
diferente, e onde a mestiagem um impulso irresistvel, que d uma grande
fora a esta grande nao. O problema foi muito oportunamente analisado pelo
professor Pedro de Almeida Vasconcelos, em dois excelentes artigos que esto
publicados na revista eletrnica Biblio 3W, da Universidade de Barcelona (n
729 e 732), e cuja leitura recomendamos entusiasticamente.
Sem dvida, no Brasil as diferenas sociais so enormes, e no
cabe dvida que como em outros pases americanos as classes
dirigentes tiveram at o incio do sculo XX uma clara atitude racista (que
alguns seguiram mantendo nos anos seguintes). Mas o Brasil um pas que
tem desde a poca portuguesa uma forte mistura entre todos os grupos
tnicos, talvez pelo fato de que os imigrantes dessa nacionalidade foram
relativamente escassos e majoritariamente do gnero masculino.Temos de levar em conta que nos Estados Unidos, apesar da
abolio da escravatura, os descendentes de africanos ficaram totalmente
segregados at 1960, e a presena de uma gota de sangue africano converte
as pessoas em negros. Basta escutar o qualitativo racial que se atribui ao
presidente Obama, que designado normalmente, e de forma inadequada,
como negro, sendo na realidade, pelo que sabemos, um mestio.
No Brasil a questo racial muito mais complexa, com mistura de,ao menos, trs grandes grupos (indgenas brasileiros, europeus e africanos)
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cada um dos quais tem, por sua vez, importantes diferenas genticas internas.
A mistura tem dado lugar a uma estrutura social e racial muito complexa, desde
logo diferente da norte-americana. A cor da pele no um elemento que deva
servir para classificar os indivduos; o que importa so as diferenas sociais
que existem entre uns e outros, e que todos os brasileiros devem esforar-se
em reduzir se querem um futuro de paz e bem-estar.
A proposta de reunir os pardos e os pretos em uma nica categoria
como negros ou como afro-descendentes muito perigosa para o futuro do
Brasil. A intensa miscigenao que existe neste pas um dado muito positivo,
e a consolidao do Brasil como um pas mestio abre uma via de esperana e
um modelo para o conjunto da humanidade.
A ascenso social possvel e est se realizando, ainda que
lentamente. Alguns exemplos que poderamos citar mostram que isso
possvel. Entre eles o de um dos baianos mais ilustres, o professor Milton
Santos, uma das figuras mais destacadas e reconhecidas da geografia
mundial, um cientista social de grande prestgio, um intelectual reconhecido
dentro e fora do Brasil e um cidado comprometido com a defesa das
liberdades democrticas. Um documentrio sobre ele, Encontro com Milton
Santos ou o mundo global visto do lado de c, realizado por Silvio Tendler,
comea com uma frase que impressiona. Milton Santos, neto de escravos.
Que em duas geraes haja conseguido passar da situao de escravido a
uma posio brilhante no plano mundial da cincia uma prova da existncia
de processos de ascenso social. a melhor prova de que possvel um
futuro brilhante para o Brasil, um modelo de sociedade para todos os pases do
mundo.
O caminho da mestiagem o adequado. O outro o daseparao racial e o enfrentamento. O que se eleja ou o que acabe triunfando
em Salvador vai influenciar o futuro do Brasil.
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7/30/2019 O CENTRO HISTRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAO SOCIOURBANA parte2
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1 Catedrtico de Geografia Humana da Universidade de Barcelona; laureado com o Prmio Internacional de Geografia
Vautrin Lud 2008. Traduo do Prefcio para o portugus por Juarez Duarte Bomfim e reviso por Pedro de Almeida
Vasconcelos e Valdomiro Santana.