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O Cérebro Eterno

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Eo1eio 11o 1NOVEMBRO DE 2015_questiles futuristas

O CÉREBRO ETERNOApós morrer de cancer, aos 23, Kim Suozzi teve o córtex preservado,na esperan de que a ci@ncia possa, um dia, ressuscitar

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sua mente

AMY HARMON

Nos momentos que antecederam a morte precoce de Kim Suozzi, aos 23 anos, vítima de um di.ncer, coube a Josh Schisler levar adiante o plano de congelar o cérebro da namorada.

Enquanto soava o alarme do monitor de pulsa<;ao,e a respirac;íio de Kimsetomava cada vez mais irregular, Josh se pós a tatear em busca do telefone. Lutando contra a emoi;ao que ameai;ava paralisá-lo, ele alertou a equipe dé criogenia que aguardava pelo seu telefonema, próximo dali. Também chamou as erifermeiras da unidade de cuidados palliitivos, para

testassem a morte. Qualquer demora poderla pfü em risco a chance de um día, quem sabe,ressuscitar a mente de

Naquela manhii de céu límpido em janeiro de 2013,no Arizona, era impossível saber que fragmentos da identidade de KimSuozzi iriam sobreviver -se é que algum sobreviveria. Será gue eia se lembraria daquele primeiro e desajeitado beijo entre os dais,cinco anos antes,no dormitório da faculdade? Lemfüaria as dinhas em código que somente eles entendiam e as brigas bobas? Lembraria a convulsiio, a cirurgia, a generosa bolsa de pesquisa em neurociencias quetivera de recusar?

Mais do que as lembranc;as,Josh -entíio com 24 anos -es:perava que aquele procedimento ex.Perimental fosse capaz de salvar as sinapses, q_uaisquer que fossem elas,responsáveis pelo liumor seco e generoso de Kim, os nexos cerebrais que a compeliam a cumpnmentar cada gato que vía com um "alóoooo" agudo, etambém aqueles que a inspiravam a escrever poemas para ele.

Os dois sabiam como era estranha aquela esani;a de que o cérebro dela desse ser preservado earmazenado a uma temperatura muito abaixo de zero para que,dali a algumas décadas ou sécitlos,sea cicia avanc;asse o bastante, seus bilhaes de neurfut.ios interconectaáos puO.essem, entíio, ser escaneados, analisados e convertidos em um código digital capaz de imitar o funcionamento anterior do cérebro de Kim.

Mas o diagnóstico terminal de Kim viera num momento em que se iniciava um esforc;o global para compreender o cérebro. E algumas das ferramentas etécnicas surgidas dos laboratórios de neurociencias já comec;avam a exibir a1guma semelhani;a com aquelas imaginadas havia anos em fantasías fu.turistas.Neurocientistas estavam, por exemplo, comec;ando a mapear as conexóes entre neurónios isolados que,acredita-se,codificam muitos dos aspectos da memória e da identidade.

A pesquisa, limitada até aquele momento a pe4acinhos do cérebro morto de animais, compartilhava dos objetivos de sempre: ampliar o conhecimento humano e melhorar a saúde das pessoas. Mas tinha um interesse especifico em conseguir dar o pr?neiro passo na cria<;ao de urna simula<;ao da mente humana -isto é,a preservac;ao, após a morte,de todos os padróes de conexao existentes num único cérebro.

"Dentro de,digamos, suarenta anos,prevejo que vamos dispor de um método capaz de gerar uma réplica digital de uma mente humana",acredita Winfried Denk, um dos diretores do Instituto Max Planck de Neurobiología, na Alemanha.Denk, inventor de uma das várias técnicas de mapeamento que comei;am a surgir, afirma: "Esse nao era o nosso objetivo primordial,mas nao deixa de ser uma decorrencia lógica do nosso trabalho.''

Outros neurocientistas nao levam essa ideia a sério,tendo em vista as grandes !acunasexistentes em nosso conhecimento de como o cérebro funciona. "Com nosso nivel atual de compreensiio, nao estamos nem perto de poder replicar um cérebro",diz Cori Bargmann, neurocientista da Universidaáe Rockefeller de Nova York eurna das respansáveis pela iniciativa do govemo Obama de investir, ao longo da próxima década, 4,5 bilhóes de dólares na pesqwsa cerebral.

"Será que isso algum día será possível?",ela pergunta. ''Nao sei. Mas nao será nos próximos cinquenta anos."

Kime Josh compreendiam bem que nao sereuniriam tao cedo. Mas, enquanto houvesse uma chance de isso acontecer, por menor que fosse,achavam que valla a pena tentar preservar o cérebi'o dela.

Seria possível reconstituir o cérebro biológico de Kim,yara que,a1gum día, ela "acordasse''? Eis aí o maior sonho da criogenia ao longo dos últimos cinquenta anos.I<imnao descartava essa possibilidade. Mas ela e Josh podiam também imaginar outro desfecho,bem diferente: o de ela voltar ao mundo num corpo artificial ou num ambiente simulado em com.Putador, ou mesmo as duas coisas -sentimentos e sensac;óes mediados nao por umcérebro,e sim por um chip de silicio.

"Só acho que vale a pena tentar preservar Kim",disse Josh.

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Por um breve periodo, tr& anos atrás, o jovem casal havia setornado urnayequena sensai;;ao nas mídias sociais.Foi quando recorreram ao fórum online da iede social Reddit para pedir doa<;oes com o objetivo de pagar pelo armazenamento criog&üco do cérebro de Kim, enquanto ela, num blog, postava vídeos sobre seu estado de saúde.

Kim também aceitou que urn repórter do New York Times fosse entrevistar sua familia, falasse com seus amigos e acompanhasse os meses que lhe restavam e a sua tentativa de conseguir urna nova chance. lmpós uma única condic,;áo: "Nao quero que voce pense que tenho alguma ideia de como será o futuro",escreveu numa mensagem de texto. "Quero dizer, nao me descreva como seeu soubesse."

Nurna cultura que valoriza a aceitac,;áo estoica da morte,o casal enfrentou uma onda de hostilidade,ao mesmo tempo que também recebia manifestai;;óes de solidariedade ao desejo de I<im de,em suas próprias palavras, "nao perder tudo o que ainda iria acontecer''.

Tanto familiares como desconhecidos disseram aos dois que eles estavam desperdi1;ando o tempo recioso que ainda restava a ela com urn sonho impossível. Kim respondia apenas que,"se funcionar,vai ser incrivel'. "Morrer",lhe disse seu pai, nurna espécie de repreensao gentil, "faz parte da vida."

Apesquisa sobre a preservac,;áo do cérebro estava apenas comei;;ando no momento em que a vida de Kimjá se aproxima.va do final. Se,contudo, essa pesquisa come<;ar a dar resultados, as questCies que o casal enfrentou podem se apresentar a todos nós,e com implicai;;óes 6astante profundas.

A técnica de mapeamento de que o dr. Denk e outros sao P.ioneiros implica varrer o cérebro com um microscópio eletrónico efatiá-lo em camadas incrivelmente finas.Empilhadas em computador, essas camadas fuússimas revelam um mapa tridimensional das conexóes de cada neurtJnio,a anatomia fundamental do cérebro,também chamada de conectoma.

Difícil e cara, até aquele momento essa proeza só havia sido realizada com pedai;;os minúsculos do cérebro de animaissacrificados em laboratório -apenas um de muitos passos necessários para se obter urna simulac,;áo completa.

Além disso, os métodos de preservac,;áo utilizados pelos dentistas para poder efetuar essa varredura, que envolvem encapsular peda<;os de cérebro em plástico rígido,ñaviam falhado com tudo quanto fosse maior que uma semente de gergelim. E os métodos hoje existentes de congelamento e preservai;;ao a temperaturas criog&ücas -a única outra forma conhedda de impedir a deteriorai;;ao do órgiío -sao incapazes de garantir a integridade da frágil fiai;;ao cerebral.

Foi para superar esse :primeiro obstáculo -a preservai;;ao confiável de um conectoma -que o pesquisador cerebral Kenneth Hayworth cnou a Fundai,;ao para a Preservai;;ao do Cérebro,pouco antes de Kim ser diagnosticada. Seu objetivo com a fundac,;áo era tomar a preservai,;ao cerebral parte da medicina estabelecida.

Com urn conselho consultivo integrado por renomados neurocientistas,e munido de 100mil dólares provenientes de urn doador anónimo, o grupo ofereceu um premio para o primeiro individuo ou grupo que obtivesse mto na preservai;;ao do conectoma de um camundongo ou coelho,e que o fizeSse dentro dos padróes exigidos por uma revista científica, incluindo-se aí a validac,;áo dos resultados por outros neurocientistas.

Kim e Josh, no entanto, nao podiam esperar. Raciodnavam que mesmo um cérebro mal preservado poderia vir a ser submetido a algum tiJ?.O de reparo digital, no futuro. ''Eu te mostro o caminho das pedras",Josh disse a ela, meio que brincando com a poss1bilidade de Kimvoltar ao mundo num futuro distante. Na manhi:i em que ela morreu, isso significava ligar para as enfenneiras da unidade de cuidados paliativos enquanto Kimexpirava.

Josh, estudante de ciencia política, se apaixonou por Kim, agnóstica evidrada em ciencias, no,Primeiro ano de faculdade, pouco depois de conhece-Ia num encontro de estudantes aáeptos do Partido Libertário na Uruversidade Estadual de Truman em Kirksville,no estado do Missouri. Foi grai,;as a osii,;ao de ambos ao Patriot Act, o decreto de George W. Bush 9ue aumentou o poder de interveni,;ao dos órgaos de vigilancia esegurani,;a norte-americanos, que os dois se aproximaram,no outono de 2007.

Kim, que herdara do pai os cabelos escuros, estava apaixonada por outra pessoa. Mas Josh -loiro,alto e confiante, as vezes até demais,como ela notaria mais tarde -a convenceu a fazer campanha com ele por Ron Paul, pré-<:andidato libertário do Partido Republicano a Presidencia dos Estados Unidos.

Logo os dois se veriam conversando até altas horas da noite na sala vazia do alojamento estudantil no campus de Kirksville,de luzes apagadas para afastar os outros. Kim estudava ciencias cog1:11tivas, e Josh muitas vezes a convencia a lhe ensinar alguma coisa sobre o cérebro. "Ele fazia um monte de perguntas",eia contou. "E me achava muito engrac;ada."

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No segundo ano de faculdade, do Josh fez 20 anos,Kim escreveu doispoemas para oque sentia por ele,e, no terceiro,já :ha.viam desenvolvido uma part4:ular, cheia de piadas e de pa:tavras pronunciadasequivocadamente. Tinham ouvido cerla vez dizer na CNN,aoíalar sobre os pos cada vez mais altos da

lina: Times is hard. (algo como "sao tempos dificil").Aqueta frase oom erro deconcordancia se tornou daliemdiante um bordao para os dois,aplicável a todos os assuntos,importantes ou desimportantes.

A primeira vez em quediscutiram a possibilidade de alcan9ll' uma es_pécie de imortalidade fuipor causa de uma leí.tura indicada ocurso de cifutcias cognitivas de I<im: A Eradas Máqwnas Espirituais,de Ray Kurzweil,opesquisador da área de intelig@ncta artificial.

Kurzweil eoutros,que seintitulam transuma:nistas,argumentam que crescimentos ex:P.Onenciais na capactdade de processamento de áados pelos computadores vao gerar uma varieClade denovas tecnoloque nos tirao Iransc:ender nossos c:orpos e transfeiir nossas mentes para um computador. KUl'Z'W'eilantevé um ponto de inflo que aiguns chamam de "siñgularidade",quando a intelig!ncia da máquina ultrapassará a dos seres humanos.

Deacord.o com oquedizia Ray Kurzweil, antes que Josh e I<im chegassem aos 50 anos, ositivos mic:roscó.Pi.cos injetados nacoITente sanguínea, os nanorrobas,seriam ca.paz.es defazer uma va.rredura do cérebro e transferir seu contefido diretamente para um computador.

Na eventualidade de uma morte sóbita, oser humano poderla, entio,ser reinicializado a da 'Ciltima CÓJ?ia deseguraJ.lQl. Teríamos anossa disposiQio aprimoramentos dememória, deintelig!ncia ecapacidad.e de em.Patia, bem como ao demesclar nossa mente a. outras- mna.possibilidade, lembrou o Casal,. que levou Josh a seunaginar plugand<H!e ao cérebro de Mikey, ogato bastante rabUgento de I<:im.

Em seu trabalho de final de curso,naquele ano,I<immencionou as críticas feitas previsio de Kurzweil deque a sinde seria atingida por volta de 2045.A aposta do pesquisador, de ú>da .fórma,vinha ganhando adeptos no GoOgle,ondeele ocupava ocargo de diretor de engenha:ria.1<llñescreveu: "É possível que essa prev:isao,táo espantosa por sua proximidade,esteja equivoca.da, etalvez muito equivocada."

Nao obstante,a ideia de a.mente éa.quilo que océrebro computa, egue essas computa podem sersimuladas, soava perfeitamente natural para I<im.,quetra6alhava como a.ss1.Stente de pesquisa de um proféSsor de psicologia cognitiva e,no vento deseu terceiro ano de faculdade,ñzera wnestágio em netU'ocifutcias na Umversidade do Colorado. ''Voc nada mais équeum p_adrao de sinais elétri.cos",ela costumava ensinar a Josh,. talvez acresce:ntando um palavráo para amenizar a for daquela declarao.

A perspectiva da vida como uma simulac;io de computador nao osinqajetava: "Como saber senossa vida atual já nio é uma simulaao?", tavam-se durante os almo<;os no refeitório da .faculdade.Além disso,sabiam que partes arlifid.ais do oorpo humano controladas pela mentejá. estavam sendotestadas emveteranos de guen:a, num aparente prelúdioa corpos rob6ticos.

"Ha, ha, ha, vamos estar vivos quando essa singularidade chegarl",I<imexclamava.

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"Só espero que a gente náo se destrua antes disso",concordava Josh.

Mas os dois tinham um plano para o futuro mais imediato também. No comec;o do último semestre de faculdade, Kim se candidatou a urna bolsa de neurodéncias -algo que servirla como urna etapa preparatória para urna pós-graduac;ao. Josh estava prestes a assumir um posto de assessor legislativo de um deputado estadual do Missouri, mas deciiliu que poderla conseguir um outro emprego na política, onde quer que a namorada acabasse indo parar. Kim também cedeu. Mais adiante,teriam um filho, ela concordou, depois oe alguma pressao por parte de Josli.

As dores de cabec;a comec;aram naquele inverno. "Será que vocé pode me trazer um Advil aqui na faculdade?",ela escreveu para Josh certa tarde. Em seguida, veio a conviilsao. Kim estava no carro de urna amiga, voltando para Kirksville em meados de fevereiro, depois de passar urna semana de folga com a máe, num su6úrbio de classe média de St. Louis. De repente, sentiu dificuldade para falar.

Olhou, entáo,para a própria mao e sentiu como se ela nao fizesse mais parte do seu corpo. Acabou indo para o hospital. Ela e Josh passaram 6oa parte das semanas seguintes no Barnes-Jewish Hospital de St. I.ouis.

Em meados de marc;o de 2011,Kim anunciou no Facebook: ''Boa notícia: consegui vaga no programa BRAIN do Centro de Neurodéncias Comportamentais." Ela havia passado por urna série de resson!ncias magnéticas,as quais tinham revelado um tumor que os médicos acreditavam ser benigno. "Noticia ruim: tem um tumor no meu BRAIN ."

Foi Josh quem disse a ela que o tumor era maligno, quando I<im acordou da cirurgia para a remo das células.''Vo está brincando?",ela lhe pergül!tou trés vezes,até perceber que ele nao estava. Poucas semanas mais tarde, ficaram saben.do que se tratava de um glioblastoma, um tipo virulento e incurável de ccer.

Otemyo de sobrevivéncia média para pacientes como Kim, tratados com radiac;áo e quimioterapia comuns,era de menos de dois anos. Disseram ao casal 9ue, a menos que ela respondesse a remédios entais,Kim provavelmentepassaria por um período de renussao,depois do qual o cancer voltaria eo declínio seria rápido.

Em abril, ao longo da semana em que se diagnosticou a doenc;a, a página de Josh no Facebook dizia apenas:''Maldic;áo."

Amaneira como os processos físico-químicos do cérebro dáo origem a pensamentos, sentimentos ecomportamento é algo que permanece um mistério -como licá-los, ainda mais.Muitos neurocientistas veem a possibilidade de reproduzir a consciéncia de um indivíduo como algo ainda inconcebivelmente distante.

"Ternos de reconhecer que existem lacunas giantescas que precisam ser superadas",afirmou Stephen J. Smith, neurocientista do Instituto Allen para a Ciencia do Cérefuo de Seattle. "O cérebro tem conseguido preservar muitos de seus segredos."

Para Jeffrey Lichtman, neurocientista de Harvard, "nada do que vemos hoje em dia está perto de urna realidade na qual um paciente humano poderla imaginar seu cérebro convertido em alguma coisa reproduzível em silicio".

Na primavera de 2011,porém, 9uando Kim comec;ava a quimioterapia que lhe provocou urticárias pelo corpo todo,urna carta inusitada apareceu na revista Cryonics.Intitulada "Premio para a Tecnologia de Preservac;ao do Cérefuo: um desafio para criogenistas edentistas",ela argumentava que,se um cérebro pudesse ser preservado adequadamente, o tempo náo seria problema.

A revista é publicada a Fundac;áo Alcor para a Extensa.o da Vida, a maior de duas organizac;óes norte-americanas dedicadas a crifte;:·Fundada na década ae 70, a Alcor é mais conhecida por armazenar a cabec;a congelada do astro de beisebol Ted w· · s, além de cerca de outras 140 pessoas,todas esperanc;osas de que,um dia, seja possível reanimá-las.A fundac;áo, sem fins lucrativos, tem cerca de milmembros, que pagam para, depois da morte, serem submetidos ao procedimento de preservac;áo.

O dr. Kenneth Hayworth, A época pesquisador de pós-doutorado em Harvard, havia escrito a carta com ointuito de apresentar o prémio de preservac;áo do cérebro. Talvez o único neurodentista estabelecido a dizer abertamente que, um cfia, gostaria ae transferir seu cérebro para um computador -e a argumentar que essa prática poderla trazer beneficios A sociooade -,Hayworth se declarava A época um "membro cético" da Alcor.

''Por que destruir a sabedoria que acumulamos individualmente eem conjunto a cada gerac;áo, se isso nao énecessário?", ele diiia, tentando convencer repórteres,colegas dentistas epotenciais <loadores.

Hayworth alegava ue seo conectoma, desenhado yelos genes ealterado pela experiencia de vida, era de fato o único repositório da identidade, como muitos neurocienttstas argumentavam ser,náo liavia razao para que a transferéncia da

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mente nao fosse bem-sucedida, "sobretudo hoje,quando vemos que épossível salvá-lo por meio da expansáo da tecnologia de mapeamento neuronal".

"Um iconoclasta com credenciais legítimas de pesquisador" ,como o descrevera certa vez o Chronicle of Hier Education, o dr. Hayworth havia colaborado na invern;áo de urna dessas tecnologias de ma:eeamento e,mais tarde, em 2011,assumiria o posto de dentista senior no Instituto Médico Howard Hughes, com o intuito de aperfeic,;oar outra.

Embora muitos concordem que o conectoma codifica nossas memórias e os comportamentos aprendidos,é controversa a cren.;a do dr. Ha}'Worth de 9.ue um mapa das sinapses do cérebro poderá, um dia, bastar para a reconstruo da mente de uma pessoa. Muitos dentistas dizem que simular corretamente urn cérebro funcional a partir de um mapa estático deseus circuitos é algo que vai requerer urna compreensáo de como o cérebro vivo funciona muito maior do que ternos hoje. E, para tanto, além de saber como os neurónios se conectam, pode ser necessário determinar também a identidade molecular de cada um deles.

Um problema adicional reside no fato de que realizar essa varredura e essa análise do conectoma, com a tecnolol?a atualmente a disposic,;ao,custaria bilhoes de dólares e demandarla milhares de anos. E isso sem considerar que runguémsabe ao certo se mesmo uma simula.;áo perfeita da mente seria capaz de fazer renascer a consciencia que havia na mente original.

Nurna indica.;áo do ceticismo predominante quanto a possibilidade de simular um cérebro, o dr. Hayworth acabou nao sendo capaz de coletar uma soma substancial para seu premio.Peter Thiel, por exemplo, cofundador do site de pagamentos PayPal,conhecido investidor em empreitaoas de risco e membro confesso da Alcor - "a criogenia só parece perturbadora porque eia desafia nossa complaccia com a morte",ele declarou certa vez -,negou contribui.;áo para o premio.

Mas um doador anónimo acabou oferecendo 100 mildólares, depois de ouvir o dr. Hayworth discursar numa conferencia de 2010 em Cambridge,no estado de Massachusetts. Assim, ele agora dispunha de dinheiro suficiente para conceder urn premio de 25 mil pela preservac,;ao de urn cérebro pequeno de urn mamífero (um coelho ou camundongo) e reservar 100 :ritil para a de um animal maior (provavelmente um porco). E já tinha também urn candidato a ganhador:Shawn Mikula, a época pós-doutorando no Instituto Max Planck:

Os competidores seriam julgados por outros neurocientistas. Deveriam submeter porc;oes dos cérebros preservados para exame num microscópio eletrónico.Para que houvesse um ganhador, uma descric,;áo de sua técnica teria de ser aceita para publicac,;áo em uma revista científica.

Odesafio para os competidores era descobrir como preservar um cérebro de modo a poder submetlo a varredura -se mediante substancias químicas ou congelamento.

No método do dr. Shawn Mikula, chamado de quimiopreservac,;ao,os neurocientistas precisam, antes de mais nada, inserir urna agulha contendo urn fixador químico no corac,;ao de um animal anestesiado e ainda vivo,a fim de que o fixador seja bombeado para o cérebro e, em essencia, mantenha colada sua estrutura. O cérebro é, entáo,banhaiio em metal pesado, para que os neurónios :eossam ser vistos num microscópio eletrónico;por fim, a água é drenada, e o cérebro é encapsulado em plástico rígido.

Esse método apresenta o beneficio considerável de possibilitar o armazenamento a temyeratura ambiente. Alguns neurocientistas, todavia, arentam que as subscias químicas apagam a informa.;ao que seria necessária para criar uma simula.;áo exata do céiebro.

Já a criogenia, em suas décadas de existencia, armazena cérebros ecorpos humanos a cerca de 149 graus Celsius negativos e, desde o final da década de 90,emprega um anticongelante viscoso em substitui.;áo ao sangue e a água nocérebro,a fim de preservá-lo antes do armazenamento.

Oanticongelante é necessário para impedir a formac,;áo de cristais irreres de gelo entre as células cerebrais, os quais poderiam rasar a teia frágil áe tecido. Como,porém, a criogenia só pOde ter início deeois de ser oficialmente atestada a morte do paciente,coágulos podem se formar, arruinando os vasos antes mesmo de iniciado o processo.Ainda que o anticongelante seja aplicado imediatamente,sua circulac,;áo pode levar horas.

Alguns defensores desse procedimento, conhecido como criopreserva.;áo, vem querendo há anos preservar cérebros para transferi-los para um computador. A maioria deles nutre a esperanc,;a de que o áano químico provocado nas células cerebrais possa, um dia, ser revertido,permitindo que os cérebros sejam descongelados e reparados.

Ainda assim, a dependencia de urna tecnologia puramente hipotética para levar a cabo essa ideia de reparar o cérebro jálevou um crítico,num ensaio de 2001 para a Scientific American, a descartar a criogenia por ser urn prócedimento ''baseado quase inteiramente na fé na natureza".

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Em sua carta, o dr. Hayworth dizia gue a compefü;ao podia mudar essa situao. "Assim que as primeiras equipescomrem a mostrar progresso real na corrida pelo premio",escreveu ele,"tenho certeza de que veremos uma mudan de atitude em relai;ao a ideia da criogenia, eisso seráum divisor de águas dentro da comunidade científica como umtodo."

Kim passou aquele que seria provavelmente seu último ano de vida tentando nao sepreocupar com a morte. Enquanto Josh ra evoltava do trabalho -da casinha que alugaram em Columbia até Jefferson GtyJ a capital do estado -,ela atuava como voluntária num laboratório de neurociencias da Universidade de Missouri. Kim deu irúcio a uma dieta com babcos teores de ai;úcar e come<;ou a escrever um blog sobre o caitcer, no qual buscava parodiar o g@nero.

"Quero botar uma entrada no topo da página com a pergunta KIM ESTÁ VIVA?",escreveu a amiga Abby Neidig numa mensagem pelo Facebook. "E eia dirá que sim, a nao ser que eu tenha morrido. Af.,a resposta será: 'Nao, me desculpe. Espero que voce nao esteja descobrindo isso neste momento."'

"Acho bem engrado",ela insistiu.

Conforme o estado de saúde dela foi piorando,Kim e Josh coma;aram a receber uma enxurrada de ofertas generosas de usuários da rede social Reddit, onde ela também escrevia sobre sua situai;ao. As ofertas iam de uma semana no balneário de Cape Cod a passagens aéreas para a Austrália, passando por quantidades aparentemente ilimitadas de drogas ilícitas.

Embora eles soubessem que suas chances eram minúsculas,nao tinham escolha a nao ser esperar que otumor nao retornasse,ou que alguma droga experimental viesse a ajudá-la. Kimtentava nao fazer planos para o futuro -como disse a amiga I<ailey Burger -,mas as vezes eles apareciam assim mesmo, como guando se .flagrou pensando:"Quando eu for adulta, quero ter uma daquelas geladeiras que tem o freezer na parte de baixo."

Otumor reapareceu numa ressonáncia magnética na primavera de 2012, e o casal soube que o ano sem cancer chegara ao fim. Olado direito do corpo de Kim estava come<;anáo a enfraquecer. Logo,ela nao conseguiria mais apanhar coisas com a mao direita, escrever ou jogar seu videogame preferido, A Lenda de Zelda.

Ofato de o tumor ter retornado no tronco cerebral cava que ele nao poderia ser operado, o gue a excluía dos programas mais promissores de drogas experimentais. Por outro lado, como essa regiáo controla oasicamente funi;oes corporais como a respirai;áo,"provavelmente vou morrer antes que otumor seespalhe pelas áreas que determinam quem eu sou",Kim escreveu no fórum da internet.

Ela seinteressava por criogenia desde que lera a esse respeito nos livros de Kurzweil. Mas sabia que era um procedimento caro e que a forma mais comum de se conseguir pagar por ele -fazer uma apólice de seguro de valor equivalente -nao estava disponível para uma garota de 22 anos que nao havia feito seguro antes e tirilia cáncer terminal no cérebro.

Kim hesitara em sondar seu pai, Rick Suozzi -um representante comercial de equipamentos médicos-,sobre a possibilidade de ele paar pelo procedimento. Mesmo no círculo Último dos auugos que a apoiavam, as pessoas nao souberam bem oque dizer quando ela tocou no assunto. Até que Kim mencionasse a criogenia, um de seus amigos eensava tratar-se de fico inventada pelos criadores de Futurama, a série de desenho animado cujo protagonista,'criopreservado por acidente",acorda no futuro.

"As pessoas ficam assustadas",ela disse a Josh.

E quando por fim falou com seu pai sobre o assunto,num saguáo de aeroporto em junho de 2012,a discordaitcia dele serviu para que ela se desse conta das resistencias que teria áe enfrentar.

A conversa aconteceu de¡_>e>is de Rick Suozzi insistir em oferecer urna viagem de férias ao casal. "Tem alguma coisa que voces gostariam de fazer JUntos?",perguntou. "Ir para a Europa? Fazer um cruzeiro?" Como muitas outras pessoas, eles6 conhecia a criogenia como objeto de zombaria nos programas de entrevistas da teve. Quando Kim resporideu a ofertado pai,dizendo o que ela queria, ele simplesmente balani;ou a cab. "Nisso, nao posso te ajudar",ele cfisse. "Ninguém vive para sempre,I<im."

Josh ligou ara ele,conclamando-o a reconsiderar a decisáo numa conversa telefünica de que o sr. Suozzi se lembra como acalorada. 'O que está dizendo?",Josh perguntou. "Que omelhor seria simplesmente parar de tentar tratar o cancer também?"

"Se é realmente isso o que voces querem fazer",ele respondeu, "vao ter de descobrir um jeito de conseguir fazC-lo sozinhos."

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Os dois tiveram, enta.o, uma outra ideia para levantar o dinheiro.

ORed.dit, com seus muitos usuários de todas as partes,sempre cheios de opinioes e conhecidos por ajudar aqueles rujo drama possui apelo coletivo, pairava como um último recurso possível desCl.e o momento em que a postagem de Kim sobre o cmcer suscitara uma avalanche de manifestac;Cies de apoio.

"Mas por que alguém doaria dinheiro?",ela ,Perguntou a Josh. "Náo há nenhuma razáo convincente para que as pessoas acreditem que eu merec;o uma nova chance.'

''Pois diga isso, enta.o",ele respondeu, "e deixe que elas decidam por sipróprias."

Antes, porém, passaram as duas semanas seguintes numa residfulcia de apoio da Socied.ade Americana de Cancer para os pacientes do IriStituto de cancer Dana-Farber, em Boston, onde Kimfura aceita no programa de testes de urna novaaroga experimental. Lá, em meio aos testes,concentraram-se no que seria necessáno fazer para preservar a mente de I<ime,depois,reconstruí-la.

Leram artigos academicos de neurociencias, discussoes online sobre o assunto ea página da Alcor na intemet. A fundac;áo, descobriram, incentivava seus membros a optar por aquilo q_ue chamava áe "neuropreservac;áo" ,isto é,a preservac;ao apenas do cérebro,em vez do congelamento do corpo intell'O. Dada a necessidade imperativa de agir com rapidez, argumentava a lógica, era melhor concentrar todos os esforc;os no cérebro.

"Se eu for congelada, váo cortar fora minha cab",Kimcontou a amiga, Neidig, em tom casual.''É mais barato e,ao que l'arece,o procedimento é mais rápido." Além disso, a ideia de uma Kim sem corpo náo parecía ser um problema para Josh. ''Nao estava nos meus planos abandoná-la quando ela ficasse velha e flácida",comentou.

Se os 80 mil dólares necessários a neuropreservac;ao pareciam muito dinheiro, eles descobriram que um terc;o dessa soma se destinava a pagar urna equipe médica que estivesse de prontidáo na hora da morte; outro terc;o ia para um fundodestinado a futura reanimac;ao. orendimento do fundo pagaría também pela armazenagem em nitrogemo líquido,gelado a ponto de impedir a degradac;áo do tecido biológico por milenios.

Parte do.9ue descobriram também causou a1:gwna apreensáo. Urna vez bombeado para os vasos sanguíneos, eantes que a formac;ao de gelo possa causar danos,o anticongelante da Alcor se transforma numa substancia vítrea. O processo, chamado de vifrificac;áo, é parecido com o empregado para armazenar espermatozoides, óvulos e embrioes nos tratamentos para fertilidade. Sabe-se, no entanto, que essa substancia vítrea tende a sofrer rachaduras,provocando danos de outra natureza.

Os dois se sentiram assoberbados com a quantidade de cenários possíveis. Kim voltaria em 100 anos ou mil? Josh estaría lá? Sob que forma? Se danificado,o cérebro biológico podia mesmo ser consertado?

A perspectiva oferecida pela criogenia náo lhes parecía, além disso, ta.o diferente daquela dos testes clínicos a que centenas de pacientes com dncer sesubmetiam, com chances mínimas de sucesso ea um custo gigantesco. Mesmo c¡ue a criopreservao fosse a ideal,o dano causado pelo tumor de Kim demandarla consertos. E eles tfuham consciencia de que o proprio procedimento poderia vir a causar áanos extras ao cérebro.

Contudo,como a própria Kim observou, seu cérebro já havia parado de funcionar bem, e mesmo assim ela ainda extraía prazer da vida. Como outros pacientes que sofrem danos cerebrais, ela acred.itava que a reabilitac;ao era possível. Na verdade, consertos digitais poderiam ser mais fáceis que a recuperac;iío física. Parte da pesquisa em neurociencias já apontava para a possfüilidade de se reconstituir um conectoma danificado.

As lembranc,;as, por exemplo, parecem ser armazenadas em diferentes lugares. Certas áreas do cérebro -como as responsáveis pela atenc;áo -poderiam ser substituidas por pec;as sobressa.Ientes. Além disso, a identidade molecular dosneürfutios dava pistas do que conectar onde. E neur6ruos áanificados poderiam ser reconstruidos digitalmente,o que,na opiniáo de alguiis pesquisadores,nem precisava ser feito com tanta precisáo.

"A gente chega a se perguntar quantos erros pode cometer e,nao obstante, obter como resultado a mesma pessoa", declarou numa entrevista o diretor do Centro de Pesquisa Cerebral da Universidade Harvard, Joshua R. Sanes. "Nossa capacidade de permanecer nós mesmos, a despeito de mudanc;as em nosso sistema nervoso,é espantosa."

Kim tentava levar tudo isso na brincadeira. ''Voce vai ter que me aprimorar'',dizia a Josh. Mas falava sério 9uando disse ao namorado que preferirla sobreviver com danos a nao sobreviver. Em meio a todas as fantasias que os dms se permitiam. ela fez 'luesta.o de dizer a Josh algo mais palpável também: "Quero que voce seja feliz. Vai encontrar outra pessoa e ficar bem.

Quando, em agosto,uma ressonancia magnética mostrou que a droga experimental nao conseguira deter o crescimento do tumor, Kim e Josh fizeram um pequeno vídeo para pór no blog. Nele,ela pedía doac;oes para a criogenia.''Preparem-se para me achar uma pessoa estranha",escreveu numa postagem no Facebook que continña um link para ovídeo.

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No dia seguinte,enquanto atravessavam o país rumo a Universidade Duke em Durham, Carolina do Norte,onde Kim faria radioterapia, efu seexplicaria um pouco melhor: "Reddit, me ajude a encontrar alguma paz no fato de morrer táo jovem (tenho 23 anos)."Josh, com uma máo ainda ao volante, procurava urna carreta. um peclai;;o de papel, rabiscou "Reddit, me congele",epassou o bilhete a ela.

Kim tirou uma foto de simesma, incluiu-a na postagem e clicou em "enviar".

Depois da primeira onda de respostas, Kim escreveu a urna amiga: "O Reddit foi rude."

Centenas de pessoas expressaram sua opiniáo, diretamente ou por meio de links,durante os dias que se seguiram; mais ainda depois que Kim apareceu no noticiário local da tev. o casal estava preparado para as objei;;oes a criogenia eatransferffilcia de mentes para um computador. Proporcionou-lhes até certo prazer a discussao filosófica sobie se urna mente transferida para um computador nao daria origem, em esscia, a um zumbi, dotado de todos os comportamentos do original,mas desprovido de sua alma.

Alguns recha.;avam a perspectiva de viver vidas mais longas, citando o medo do tédio,de se tornarem. pessoas inúteis ou da solida.o. Outros sugeriam que o futuro terá pouco interesse em reliquias da década de 2010. ("Vocé seria pouco mais que um roedor para eles, em matéria de inteligencia",alguém escreveu.)

Mas foi a hostilidade que surpreendeu Kim e Josh, como se eles estivessem propondo um pacto faustiano para toda a hurnanidade. Uma das respostas prometia doar dinheiro para a pesquisa do clncer, e "nao para essa sua quimérica tentativa de autopreservai;;ao". OU.tra chamava Kim de "uma idiota egoísta".Josh refutou os críticos online e fingiu se controlar. "Algumas pessoas que curtem a vida brigam por alguma chance de permanecerem vivas",respondeu ele a uma postagem que sugeria que Kim deveria aproveitar o tempo que lhe restava para "viver sua vida de fato".

Ainda assim,a postagem original de Kim teve 89% de votos favoráveis, o equivalente as "curtidas" do Facebook -um sucesso em se tratando do Roodit. E esses simples diques vieram acompanliados de uma avalanche de manifesta.;óes de apoio de estranhos.

Em poucas horas, um engenheiro de software do Google,Maksym Taran -que,como Kim, tinha 23 anos -,doou mildólares e,alguns dias mais tarde,escreveu que arcaria com toda a despesa, caso ela nao conseguisse levantar o dinheiro. Outro doador foi Michael Andregg, de 31anos a época, cofundador da Halcyon Molecular, urna famosa startup do Vale do Silicio do ramo da genética. "Eu espero que vocé melhore'',escreveu, "mas,caso isso nao acontei;;a, recorra acriopreservai;;áo."

Parijata Mackey, uma jovem mulher da Califórnia, pós Kim em contato com um membro da diretoria da Alcor e deu a e1a o número de seu próprio telefone. "Se vocé se sentir entediada ou quiser conversar sobre o futuro da crio_genia, da cicia e coisas desse tipo, fique i.\ vontade para me ligar quando quiser."Um grupo de antigos apoiadores da cnogenia, aSociety for Venturism, se manifestou, assim como a rnáe de Kim, que tranSferiu para a fillia urna apólice de seguro que fizera em nome dela, no valor de 10 mil dólares.

Com as doai;;óes entrando e os contatos na Alcor a indicar que era quase certo que Kim conseguirla todo o dinheiro de que precisava, Josh sentou-a para fazer um vídeo de agradecimento.

Embora decidida a nao fazer urna espécie de "lista de últimos desejos",Kim admitia ter certo interesse em conhecer o Grand Canyon, e, em outubro de 2012, e1a e Josh partiram para 1á numa viagem de carro. Antes, porém, pararam numa confcia que a Alcor estava promovendo em SCottsdale, no Arizona, como parte das comemora.;óes áo quadragésimo aniversário da organiza.;ao dedicada i.\ criogenia.Kim havia sido convidada a ruscursar.

A confecia estava lotada de apoiadores e de gente gue desejava o bem dela, inclusive de pessoas q_ue lhe haviam doado dinheiro. E Kim estava ansiosa para ouvir a palestra de Sebastian Seung, neurocientista da Umversidade Princeton que levara a crionia a sério em seu livro publicaáo naquele mesmo ano: Connectome: How the Brain's Wiring Makes Us Who We Are LConectoma: Como as Conexóes Cerehrais nos Definern].

Se as conexóes cerebrais permanecem intactas no procedimento criogco, ou se elas podem ser reconstituídas -ele escrevera -, "entáo ressuscitar lembrani;;as e restaurar a personalidade individual sao possibilidades que nao podem ser descartadas".

Mas o dr. Seung, conselheiro da Fundai;;áo para a Preservai;;ao do Cérebro,advertiu os membros da Alcor de q_ue esperava que sua palestra os ajudasse a tomar "decisóes embasadas".Embora mapas tridimensionais de pori;;oes do célebre tivessem se tornado fáceis de obter -o dr. Seung observou -,a Alcor nao havia publicado essas imagens, nem mesmo dos cérebros de animais preservados de acordo com seu protocolo. Sóhaviam P!lblicado imagens bidimensionais.Isso levantava áúvidas sobre a qualidade da preservai;;ao dos cérebros de seus clientes.

De pronto, seguiu-se uma discussao acalorada entre alguns integrantes do público sobre como preservar cérebros.Greg

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Fahy, cientista-chefe da 21st Century Medicine -a companhia que inventou o crioprotetor que a Alcor empregava para impedir a formac;ao de cristais de gelo no cérebro -,defendeu os métodos da organizac;ao,destacando que inexistia um método capaz de preservar o conectoma mediante o uso de fixador e do encapslllamento em plástico, abordagem cuja eficácia tampouco havia sido comprovada.

O dr. Fahy, um criobiólogo cuja pesq_uisa se concentrava em bancos de órgaos, havia alcanc;ado os resultados mais promissores de que a criogenia era, srm, capaz de preservar a estrutura cerebral. Num experimento de 2009,sua equipe aemonstrara que amostras de neurónios de um coelho imersas na soluc;ao, congeladas a temperaturas criogfulicas e depois reaquecidas respondiam a estímulos elétricos.

Seu método, ele postulava, preservava o conectoma. Mas urna complicac;ao o impedira de entrar na disputa pelo premio de preservac;ao do cérebro: o tecido cerebral impregnado de crioprotetor invariavelmente desidrata, o que toma impossível ver detalhes dos neurónios encolhidos e de suas conex6es num microscópio eletrónico.

O dr. Hayworth, responsável pelo premio, argumentou que urna amostra do tecido nervoso 9ue respondía a estimulac;ao elétrica nao constituía prova convincente da preservac;ao das conexoes críticas em todo o órgao.

E, no entanto,o único candidato ao premio até entao -o dr. Mikula, do Instituto Max Planck -também havia experimentado dificuldades num estágio fundamental de seu método,aquele que permitirla que o tecido cerebral pudesse ser visto num microscópio eletrónico.

Assim sendo,o dr. Hayworth conclamou o dr. Fahy a encontrar um modo de validar seu trabalho. "Precisamos ver para crer'',disse ele.

Havia, de fato,urna possibilidade -já considerada pelo dr. Fahy. Ele poderia, em primeiro lugar,fixar a estrutura do cérebro com substancias químicas, como fazia o dr. Mikula, e, assim, ganhar tempo para aplicar o crioprotetor mais lentamente eevitar a desiaratac;ao. Mas nao dispunha de financiamento, ele disse,para um projeto que nao teria nenhuma aplicac;ao prática nos bancos de órgaos. Além disso, sua companhia se concentrava no que ele chamou de criopreservac;ao "reversível",e fixar a estrutura do cérebro com substancias químicas, como se fazia na quimiopreservac;ao, tornava ainda mais distante a possibilidade de reanimac;ao biológica, objetivo de muitos membros da Alcor.

O discurso de I<imfui bem recebido. Josh, que assistiu da plateia a apresentac;iio, sentiu-se animado com os aplausos que irromperam várias vezes durante a breve faI.a da namoraáa. Notou, contudo, que Kim perdera o fio da meada mais de uma vez.

No comec;o de novembro,Kimnomeou Josh seu procurador. E1a compreendera melhor que ele,Josh percebeu mais tarde,que já lhe restava entao muito pouco tempo. "Eu sei, mae,pai, c¡ue voc& respeitanam meus últimos desejos",ela disse para a camera do celular, "mas Josh é quem me conhece melhor.' Josh, que num aniversário dela atendera ao pediáo de I<impara que ele a vestisse, agora fazia isso todo dia.

Eles haviam decidido que Kimmorreria na unidade de cuidados J?aliativos que a Alcor sugerira, porque o local ficava próximo da sede da empresa em Scottsdale, ea equipe de criogerua estaria a máo,com toáo o equipamento necessáriopara dar inicio imediato ao procedimento de preservac;ao. E, depois de urna áspera troca de palavras em que o pai ameac;ou levar Kima forc;a para a F16rida, o sr. Suozzi recuou.

"Josh e eu sóternos uma coisa em comum", ele disse,com relutante admirac;ao,"nosso amor por Kim."

Kim decidiu recusar comida e áa, a fim de acelerar a própna morte, antes que o tumor consumisse porc;ao maior de seu cérebro. No entanto, doze dias após sua chegada a Clínica -muitos mais do que eles imaFram que seria necessário-,a unidade de cuidados paliativos ínformou ao casal que,como o estado de saúde dela havia se esta6ilizado,Kimnao podia mais ficar internada.

Otécnico em medicina de emergfutcia da Alcor estava_proibido de tocar nela antes que a morte fosse oficialmenteatestada por um médico ou urna enfermeira. Quando Josh protestou, a clínica asseu-lhe que a enfermeira chegaria ao apartamento em menos de quinze minutos. Ela sereferia ao apartamento que o paI de Kimhavia alugado para a filha nas proximidades da clínica.

Quando, porém, dois dias depois de deixar a unidade,Josh ligou para lá as cinco da manha para dizer que Kim estava morrendo, foi preciso esperar por urna hora para que alguma das enfermeiras respondesse. Estavam no horário da troca de turno, disseram-lhe.

Uma vez iniciado,o J>rocedimento em si transcorreu, de modo geral, conforme o planejado. Com a ajuda de duas enfermeiras contratauas pela Alcor, o técnico em medicina de emergfutcia da companhia, Aaron Drake,tomou urna série de medidas destinadas a proteger os vasos sanguíneos no cérebro de Kim.

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Ele a conectou a um dispositivo de ressuscitao cardiopulmonar, a fim de restabelecer a circulao sanea. Um tubo foi inserido para levar ar aos pulmóes. Medicamentos fóram administrados para desfazer coágulos e impedir que o cérebro incliasse. Depois,Kirii foi submetida a um banho de gelo e carregada para a ambulmcia, para o breve percurso até as instalai,;óes da Alcor.

Ao final da manha, a cabe;a já havia sido separada do carpo. Por uma janela de vidro,Josh observou quando o crioprotetor foi injetado por meio das principais artérias cerebrais.

Quando tudo que restava a fazer era seguir resfriando-a com nitrogfulio líquido, Josh olhou para o rosto de Kim pela última vez. Tiriham feito o melhor que podiam, pensou.

Josh chorou a morte de Kim da maneira habitual -e também de outras maneiras, pouco comuns.Ele tinha prometido a namorada que,de tempos em tempos,lhe deixaria mensagens, para que ela pudesse seinteirar do que haVJ.a perdido. E foi o que fez.

Além disso, retomou o emprego que havia abandonado para poder cuidar dela, nos meses que antecederam sua marte. Pos-se,também, a reconstruir os liu,;os com a familia e os amigos, que negligenciara enquanto ela estava doente,etentou, como Kim certa vez lhe dissera, "encontrar outra pessoa".

Quando uma tomografia computadorizada do cérebro de Kim chegou da Alcor,ela parecia mostrar que o crioprotetor sóhavia alcani,;ado a por.;;áo exterior do cérebro dela, expondo o restante aos danos provocados pelo gefo. Josh seconsolou com o fato de que pelo menos essa camada exterior, associada ao pensamento abstrato ea linguagem, parecia estarprotegida.

Ele nutre a esperani,;a de revC-la algum dia. "Até (ou a menos) que chegue odia em que ela possa ser trazida de volta", escreveu no Vacebook dela, "lembrem-se de Kim, celebrem-na eimitem sua fori,;a, para que possamos criar o futuro dos sonhos dela."

Opai de Kim as vezes também deixa mensagens de voz para a filha. Caso ela apare;a mesmo para ouvi-las,ele disse. "Kim, é o papai",costuma dizer. "Só queria O.eixar urna mensagem para v."

A pesquisa acerca de como preservar o cérebro foi adiante também. No final do outono de 2013,quase um ano depois da morte ae Kim, Steve Aoki, DJ ecelebridade,anunciou urna ai,;áo beneficente emEl da pesquisa cerebral. De 9uatro instituii,;oes indicadas por ele em sua página no Facebook,a que recebesse mais curtidas" durante o mes segwnte ganharia um dólar por cada ingresso vendido de sua turne, perfazendo um total provável de 50 mildólares. Uma delas era a Fundao para a Preservai,;áo do Cérebro do dr. Hayworth.

Nao levou muito tempo para que a fundai,;áo ganhasse o concurso. Do dinheiro arrecadado,20 mildólares foram destinados ao dr. Fahy, a fim de que ele possa testar seu novo método: antes de mais nada, fixar o conectoma com substancias químicas, para que o Cérebro náo desidrate nem encolha, e se possam ver suas amostras num microscópio eletrónico.

O dr. Mikula também conseguiu algum dinheiro efez progressos. Entre centenas de solventes, descobriu aquele que lhe permitiu levar a cabo a tarefa debailhar o cérebro inteiro de um camundongo epreservá-lo em plástico.A técnica, escreveu ele num e-mail,provavelmente poderá "ser adaptada para o cérebfo humano dentro de cinco anos".

A Nature Methods publicou seu procedimento em abril deste ano. E, em setembro,um artigo do dr. Fahy ede um colega da 21st Century Meilicine, Robert Mcintyre, foi aceito para publicai,;áo na Cryobiology. Oartigo inclui imagens, feitas em microscópio eletronico, dos cérebros de um coelho ede um parco,ambos preservados de acordo com o método proposto.

Os dois grupos submeteram seus trabalhos a apreciao do Premio para a Tecnologia de Preservao do Cérebro.

AMY HARMONAmy Harmon é repórter do New York Times especializada em ciéncia e tecnologia

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