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Psicologia: Teoria e Prática – 2010, 12(2):233-253 O cognitivismo e o problema da cientificidade da psicologia Gustavo Arja Castañon Universidade Federal de Juiz de Fora Resumo: Este artigo trata do problema do estatuto científico da psicologia. Seu objetivo é avaliar em que medida o cognitivismo solucionou objeções históricas levantadas contra a possibilidade de uma psicologia científica. Com base em avaliação de textos clássicos da “revolução cognitiva”, conclui-se que esta abordagem apresentou um projeto filosófico de ciência psicológica que resolveu a maior parte dos problemas ontológicos e epistemológicos endêmicos da disciplina, como o da natureza inquantificável do objeto psicológico, da simul- taneidade da condição de sujeito e objeto, da suposta inexistência de objeto próprio e da impossibilidade de observação direta do fenômeno psicológico. Porém, ignorou ou agravou os problemas da possibilidade de algum nível de autonomia humana e da complexidade da explicação psicológica. Apesar de seus importantes avanços, o cognitivismo não conseguiu ainda a plena realização do projeto de fundamentação ontológica, epistemológica e metodo- lógica de uma psicologia plenamente aderida à ciência moderna. Palavras-chave: epistemologia; filosofia da ciência; cognitivismo; psicologia cognitiva; filosofia da psicologia. COGNITIVISM AND THE PROBLEM OF SCIENTIFIC PSYCHOLOGY Abstract: This article is about the problem of scientific statute of psychology. Its proposal is to evaluate in what extension cognitivism solved historical objections to the possibility of a scientific psychology. Based on an evaluation of classical texts of the “cognitive revolution”, it concludes that this approach presented a philosophical project of psychological science that solved most of the ontological and epistemological endemic problems of the discipline, like the one of non quantitative nature of psychological object, the subject and object simultaneity condition, the supposed non-existence of own object and the impossibility of psychological phenomenon direct observation. However, cognitivism ignored or worsened the problems about the possibility of some level of human autonomy and of the psychological explanation complexity. Despite its evident advances, cognitivism still doesn’t get full accomplishment of the project of ontological, epistemological and methodological fundamentation of a psychology completed adhered to modern science. Keywords: epistemology; philosophy of science; cognitivism; cognitive psychology; philosophy of psychology. EL COGNIVISMO Y EL PROBLEMA DE LA CIENTIFICIDAD DA LA PSICOLOGÍA Resumen: Este artículo trata del problema del estatuto científico de la psicología. Su objetivo es evaluar en que medida el cognitivismo solucionó objeciones históricas a la posibilidad de una psicología científica. Con base en evaluación de textos clásicos de la “revolución cognos- citiva”, se concluye que este abordaje presentó un proyecto filosófico de ciencia psicológica que resolvió la mayor parte de los problemas ontológicos y epistemológicos endémicos de la disciplina, como el de la naturaleza no cuantitativa del objeto psicológico, de la simultanei- dad de la condición de sujeto y objeto, de la supuesta inexistencia del objeto propio y de la imposibilidad de observación directa del fenómeno psicológico. Sin embargo, ignoró o agra- vó los problemas de la posibilidad de algún nivel de autonomía humana y de la complejidad de la explicación psicológica. A pesar de sus evidentes avances, el cognitivismo no logró aún la plena realización del proyecto de fundamentación ontológica, epistemológica y metodoló- gica de una psicología plenamente adherida a la ciencia moderna. Palabras clave: epistemología; filosofía de la ciencia; cognitivismo; psicología cognoscitiva; filosofía de la psicología.

O Cognitivismo e o Problema Da Cientificidade Da Psicologia

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  • Psicologia: Teoria e Prtica 2010, 12(2):233-253

    O cognitivismo e o problema da cientificidade da psicologia

    Gustavo Arja CastaonUniversidade Federal de Juiz de Fora

    Resumo: Este artigo trata do problema do estatuto cientfico da psicologia. Seu objetivo avaliar em que medida o cognitivismo solucionou objees histricas levantadas contra a possibilidade de uma psicologia cientfica. Com base em avaliao de textos clssicos da revoluo cognitiva, conclui-se que esta abordagem apresentou um projeto filosfico de cincia psicolgica que resolveu a maior parte dos problemas ontolgicos e epistemolgicos endmicos da disciplina, como o da natureza inquantificvel do objeto psicolgico, da simul-taneidade da condio de sujeito e objeto, da suposta inexistncia de objeto prprio e da impossibilidade de observao direta do fenmeno psicolgico. Porm, ignorou ou agravou os problemas da possibilidade de algum nvel de autonomia humana e da complexidade da explicao psicolgica. Apesar de seus importantes avanos, o cognitivismo no conseguiu ainda a plena realizao do projeto de fundamentao ontolgica, epistemolgica e metodo-lgica de uma psicologia plenamente aderida cincia moderna.

    Palavras-chave: epistemologia; filosofia da cincia; cognitivismo; psicologia cognitiva; filosofia da psicologia.

    COGNITIVISM AND THE PROBLEM OF SCIENTIFIC PSYCHOLOGY

    Abstract: This article is about the problem of scientific statute of psychology. Its proposal is to evaluate in what extension cognitivism solved historical objections to the possibility of a scientific psychology. Based on an evaluation of classical texts of the cognitive revolution, it concludes that this approach presented a philosophical project of psychological science that solved most of the ontological and epistemological endemic problems of the discipline, like the one of non quantitative nature of psychological object, the subject and object simultaneity condition, the supposed non-existence of own object and the impossibility of psychological phenomenon direct observation. However, cognitivism ignored or worsened the problems about the possibility of some level of human autonomy and of the psychological explanation complexity. Despite its evident advances, cognitivism still doesnt get full accomplishment of the project of ontological, epistemological and methodological fundamentation of a psychology completed adhered to modern science.

    Keywords: epistemology; philosophy of science; cognitivism; cognitive psychology; philosophy of psychology.

    EL COGNIVISMO Y EL PROBLEMA DE LA CIENTIFICIDAD DA LA PSICOLOGA

    Resumen: Este artculo trata del problema del estatuto cientfico de la psicologa. Su objetivo es evaluar en que medida el cognitivismo solucion objeciones histricas a la posibilidad de una psicologa cientfica. Con base en evaluacin de textos clsicos de la revolucin cognos-citiva, se concluye que este abordaje present un proyecto filosfico de ciencia psicolgica que resolvi la mayor parte de los problemas ontolgicos y epistemolgicos endmicos de la disciplina, como el de la naturaleza no cuantitativa del objeto psicolgico, de la simultanei-dad de la condicin de sujeto y objeto, de la supuesta inexistencia del objeto propio y de la imposibilidad de observacin directa del fenmeno psicolgico. Sin embargo, ignor o agra-v los problemas de la posibilidad de algn nivel de autonoma humana y de la complejidad de la explicacin psicolgica. A pesar de sus evidentes avances, el cognitivismo no logr an la plena realizacin del proyecto de fundamentacin ontolgica, epistemolgica y metodol-gica de una psicologa plenamente adherida a la ciencia moderna.

    Palabras clave: epistemologa; filosofa de la ciencia; cognitivismo; psicologa cognoscitiva; filosofa de la psicologa.

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    Gustavo Arja Castaon

    Psicologia: Teoria e Prtica 2010, 12(2):233-253

    Introduo

    Este artigo, parcialmente derivado de minha tese de doutorado, um estudo terico que tem como objetivo expor e avaliar as propostas originais do cognitivismo para os problemas ontolgicos e epistemolgicos que tm mantido a psicologia moderna em permanente crise de cientificidade desde seu surgimento. Concentrando minha anlise em autores e textos clssicos da revoluo cognitiva, defendo a hiptese de que esta resolveu ou dissolveu vrios desses problemas, mas deixou sem enfrentamento dois dos mais importantes problemas de fundamentao da cincia psicolgica.

    Em artigo anterior (CASTAON, 2009), apresentei uma sntese dos argumentos que historicamente se dirigiram contra a possibilidade de uma psicologia como cincia moderna em dois tipos, os ontolgicos e os metodolgicos. Vamos avaliar aqui as teses originais do cognitivismo sobre aqueles problemas que foram enfrentados pela abordagem e, em seguida, apresentar uma sinttica avaliao do estado atual da questo da cientificidade da psicologia. Antes porm, definirei o que est sendo denominado cognitivismo.

    Em sua pioneira Introduo psicologia cognitiva, Penna (1984) afirma que a psicologia cognitiva pode ser definida tanto como movimento doutrinrio quanto como rea de pesquisa. Baars (1986) observa que a expresso psicologia cognitiva ambgua, mas referese primariamente metateoria que defende que, atravs de observaes empricas, podemos inferir constructos tericos inobservveis. Essa ambiguidade teria surgido porque a metateoria cognitiva surgiu no seio de uma disciplina psicolgica tambm denominada cognitiva (o campo de estudo da memria, percepo etc.). Aqui, quando estiver me referindo a metateoria, abordagem ou movimento, usarei o termo cognitivismo; quando me referir rea de pesquisa especfica, usarei a expresso psicologia cognitiva. A psicologia cognitiva como rea de pesquisa bem estabelecida foi um produto do cognitivismo, mas, ao mesmo tempo, seu sucesso foi o grande motor desse movimento, sendo ambos, portanto, indissociveis. Como afirma Baars (1986), o estudo da cognio humana prov o domnio emprico no qual o sucesso ou o fracasso da metateoria cognitiva (cognitivismo) pode ser demonstrado.

    Como rea de pesquisa, a psicologia cognitiva se define como o estudo de como seres humanos percebem, processam, codificam, estocam, recuperam e utilizam informao. o estudo do processamento humano de informaes. J a cincia cognitiva, que tem o mesmo objeto, , no entanto, um esforo multidisciplinar de fundamentao emprica para investigao do conhecimento humano (GARDNER, 1996) que envolve, alm da psicologia cognitiva, a inteligncia artificial, a filosofia da mente e a neurocincia. Apesar de ser disciplina central na articulao desses esforos, a psicologia cognitiva no perde a especificidade de seu domnio ou de seus mtodos.

    Como movimento doutrinrio na psicologia, o cognitivismo foi definido por Penna (1984) como tendo cinco caractersticas principais. A primeira a centralidade do conceito de regra para explicar o processamento cognitivo e o comportamento. A segunda referese adeso a uma viso construtivista dos processos cognitivos. A terceira trata da concepo do comportamento humano como orientado a metas. A quarta faz referncia imagem de um sujeito ativo, e no reativo como o da tradio positivista. Por fim,

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    a quinta aborda a recuperao do conceito de conscincia na disciplina. Aceitando essa caracterizao, em obras publicadas acrescentei a adeso epistemolgica s teses do racionalismo crtico e ao mtodo hipotticodedutivo (CASTAON, 2006, 2007a, 2007c). Tambm ampliei (CASTAON, 2006, 2007a, 2007b) a definio de Penna sobre a imagem de ser humano assumida pelo cognitivismo, acrescentando as caractersticas de ser: movido por causas e razes, processador de informao, dotado de inconsciente cognitivo, dotado de tendncias inatas, respondente a significados atribudos, afetado por emoes que atuam atravs da cognio, epistemicamente motivado e constitudo de mente e corpo que interagem e se influenciam mutuamente, o que implica a adeso a algum tipo de dualismo de propriedades em filosofia.

    Mtodo

    Esta uma investigao filosfica sobre dados de pesquisa bibliogrfica de autores e textos clssicos da revoluo cognitiva. Tratase de anlise conceitual baseada fundamentalmente em fontes primrias selecionadas em pesquisa nas bases de dados Psycinfo e Philosophers Index, mas com o uso eventual de algumas fontes secundrias que tratam do problema dos fundamentos filosficos do cognitivismo e de suas propostas para uma filosofia da cincia psicolgica.

    Sobre os critrios desta pesquisa, cabe esclarecer trs pontos. O primeiro que as fontes primrias foram as obras nas quais aqueles autores considerados os mais relevantes da revoluo cognitiva avaliaram os fundamentos filosficos do movimento. Por sua vez, foi considerado o critrio de relevncia adotado por Howard Gardner (1996) e Bernard Baars (1986), nas duas obras de referncia sobre a histria do movimento. O segundo ponto que, da mesma forma, essas obras foram consideradas os clssicos que caracterizaram o pensamento do cognitivismo, em detrimento de outras obras de autores que no ditaram rumos do movimento. Por fim, a exposio dos resultados desta pesquisa em tpicos segue a distino entre problemas ontolgicos e metodolgicos de cientificidade da psicologia que foi adotada em artigo anterior (CASTAON, 2009), j citado aqui, e que pode servir de base para essa discusso.

    Discusso de resultados: a defesa cognitivista da possibilidade de uma psicologia cientfica

    Aqui sero apresentadas as respostas que o cognitivismo ofereceu a alguns dos principais problemas ontolgicos e metodolgicos colocados historicamente pretenso cientfica da psicologia, sempre precedidas por reapresentaes sintticas destes ltimos. Para uma descrio mais detalhada desses problemas, remeto a artigo anterior j citado (CASTAON, 2009).

    Quanto natureza inquantificvel do objeto da psicologia

    Esse veto kantiano psicologia moderna se refere impossibilidade de quantificao dos fenmenos psquicos. No se poderiam quantificar seus dados e empregar o clculo

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    matemtico na descrio das leis que os regem, pois esses fenmenos produzemse s no tempo, e no no espao (KANT, 1989).

    A soluo cognitivista para essa questo, geralmente implcita ou inconsciente na estratgia de investigao do campo, a substituio da descrio matemtica das leis psicolgicas pelas descries meramente lgicas. O cognitivismo abordou o problema do rigor descritivo cientfico com uma linguagem to precisa quanto a matemtica, porm no quantificada. Baars (1986) chama essa linguagem de matemtica no quantitativa, que inclui a lgica simblica, a lgebra booleana, a topologia e a teoria da funo recursiva. A psicologia cognitiva, ao utilizar o mtodo hipotticodedutivo, libertou a psicologia de outra falsa priso: a suposta necessidade, contrabandeada da fsica e ditada pelo positivismo, de quantificao de todo e qualquer fenmeno e lei cientfica. Leis preditivas e falsificveis podem ser expressas em termos matemticos e/ou lgicos. O resgate da linguagem puramente lgica para a expresso de leis psicolgicas conferiu a estas considervel objetividade e falsificabilidade em trabalhos como os de Chomsky e Piaget, sem que estes tenham recorrido a quantificaes artificiais de processos psicolgicos. A simulao computadorizada mostrouse nessa questo fundamental para a histria da psicologia, pois forneceu uma linguagem adequada e suficientemente explcita para a construo de hipteses e modelos cognitivos precisos.

    Quanto impossibilidade de o sujeito ser ao mesmo tempo objeto

    Esse veto de Kant (1989) e Comte (1973) cincia psicolgica postula que o sujeito que pensa no pode ser ao mesmo tempo o objeto da experincia consciente, pois a observao interna interfere no andamento do prprio processo psquico. Diz Kant (1989, p. 33) que a observao interna em si mesma altera e distorce o estado do objeto observado, o que condena a psicologia a ser uma descrio natural da alma, mas nunca uma disciplina experimental.

    Esse problema foi contornado de duas formas diferentes. A primeira com o conceito de Edward Tolman de varivel interveniente. Esse constructo permitiu que processos cognitivos fossem estudados na forma de fenmenos de terceira pessoa (SEARLE, 1992), como processos mediacionais. A varivel interveniente pode ser inferida como a funo que transforma a informao ambiental que entra no organismo na informao comportamental que sai dele.

    A segunda forma de contornar esse veto foi a mudana de status da introspeco dentro do processo geral de investigao cientfica cognitivista. No cognitivismo, no falamos mais da introspeco como mtodo de julgamento e teste de teorias, mas sim de autorrelato como mtodo auxiliar na descrio de processos cognitivos e, portanto, relevante fonte de ideias para formulao de hipteses de investigao, essas, sim, passveis de teste experimental. Assim a introspeco foi reintegrada metodologia, mas no mbito dos mtodos descritivos, perdendo assim a pretenso equivocada de mtodo habilitado a testar hipteses objetivamente. A forma que esta ganha na psicologia cognitiva, de protocolos verbais, ajuda a dirimir ainda o problema levantado por Kant. Esta se apresenta como relatrios verbais emitidos pelo sujeito durante o desempenho de tarefa solicitada, e no retrospectivamente, sendo utilizada para descrever processos que

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    envolvam a ateno consciente, nunca em processos automticos. As vocalizaes gravadas so posteriormente transcritas, para identificao de padres existentes nesses processos. O estudo clssico de Ericsson e Simon (1980) estabelece na psicologia cognitiva os padres de utilizao do protocolo verbal.

    Quanto indivisibilidade do fenmeno psquico

    Esse veto de Kant (2001) se refere impossibilidade de proceder por anlise e sntese na investigao do fenmeno psquico, pois no se podem considerar os eventos psquicos em separado, como elementos, uma vez que a vida psquica na realidade forma uma totalidade cujas partes no podem ser separadas nem combinadas.

    Esse obstculo permanece no superado (DREYFUS, 1993) e, por seu carter ontolgico, no passvel de eliminao. Porm, sua importncia superestimada por pensadores e psiclogos ligados tradio fenomenolgica. No podemos analisar estrito senso a conscincia, mas podemos abordla em seu carter funcional. isto o que a psicologia cognitiva faz, descreve as funes cognitivas, os processos de transformao da informao e os planos de ao. Apesar disso, ela no reduz os fenmenos psquicos a seus aspectos funcionais: somente assume que eles possam ser definidos de maneira aproximada, mesmo que com certa distoro por estarem sendo considerados isoladamente. Mas tendo assumido a viso popperiana de conhecimento cientfico como conhecimento aproximativo, o cognitivismo abandona desde seu surgimento a iluso de conhecimento absoluto, o que faz que esse veto se transforme em somente uma limitao.

    De fato, o que se aplica psicologia se aplica tambm, em escala menor, biologia e fsica. O organismo tambm deve ser visto como um todo holstico, indivisvel, e a considerao de problemas biolgicos em partes, embora artificial, condio de possibilidade de estudo do fenmeno. Da mesma forma, o universo um todo interrelacionado e, no entanto, por deciso metodolgica, o consideramos em partes nfimas artificialmente isoladas. O problema aqui menor que na biologia, e nesta, menor que na psicologia, mas a diferena apenas de grau. A vida psquica unitria, mas podemos distinguir funes e representaes que podem, com um grau de artificialidade que em alguma medida comum a todas as cincias, ser investigadas isoladamente.

    Quanto ao fato de a psicologia no poder ter o mesmo mtodo das cincias naturais

    Tese que teve vrios ilustres defensores ao longo da histria da psicologia, entre os quais se destacam Husserl (1952) e Dilthey (1945). Afirma que o objeto da psicologia de natureza diversa do objeto das cincias naturais, portanto requer um mtodo prprio de investigao. De certa forma, tratase de um veto insupervel, pois, como argumenta Searle (1992), a conscincia um fenmeno de primeira pessoa, e todos os outros objetos do universo so para ns fenmenos de terceira pessoa. A cincia moderna s tem capacidade para testar hipteses sobre fenmenos de terceira pessoa.

    Isso, entretanto, no impede que a psicologia cognitiva investigue processos cognitivos como fenmenos de terceira pessoa que tambm so (para outrem), no diretamen

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    te, mas a partir de seus efeitos no comportamento e no processamento da informao. De fato, a soluo de mudana de mtodo na psicologia uma no soluo. Quando Dilthey (1945) prope o mtodo compreensivo como mtodo de investigao nas cincias do esprito, ele est jogando a criana fora com a gua suja da bacia. O problema nunca foi interpretar retrospectivamente o comportamento, e sim prevlo. O ser humano interpreta as causas e sentidos subjetivos dos comportamentos alheios h milhares de anos e, de fato, bastante eficiente ao fazlo. Mas uma vez que temos acesso apenas h trezentos anos ao mais bemsucedido mtodo de investigao da natureza, e que fazemos parte da natureza, a questo da psicologia sempre foi como aplicar esse mtodo a seu objeto, para determinar at que ponto ele pode ser explicado cientificamente. J que fenmenos cognitivos (conscientes ou no) tm efeitos mensurveis no mundo fsico, podemos estudlos como fenmenos de terceira pessoa e testar cientificamente nossas hipteses sobre eles com o mtodo hipotticodedutivo, que aplicvel a qualquer fenmeno que tenha efeitos sobre o mundo fsico.

    Porm, uma vez que a abordagem da psique como fenmeno de terceira pessoa no esgota a dimenso psicolgica, parece claro que no podemos restringir o estudo psicolgico ao mtodo cientfico. O limite para sua aplicao psicologia dado pelos fenmenos psicolgicos que obedecem a padres. Os fenmenos de autntica criatividade, proatividade, significado e sentido da experincia so impenetrveis ao mtodo cientfico e, portanto, s podem ser investigados filosoficamente. J as qualia da experincia consciente so inabordveis por qualquer mtodo e indescritveis em qualquer linguagem (DREYFUS, 1993; SEARLE, 1992; NAGEL, 1980; JACKSON, 1990). Assim, apesar de o cognitivismo ter demonstrado possvel a investigao de vastos domnios da vida psicolgica por meio do mtodo cientfico, parece ter tambm possibilitado a clara compreenso de que a vida psicolgica tem domnios impenetrveis a ele.

    Quanto ao fato de o objeto da psicologia ser o sentido da experincia consciente

    tese da psicologia humanista e fenomenolgica. Tratase de um equvoco parcial, j explicado anteriormente. Ns podemos abordar o fenmeno psicolgico como fenmeno de primeira pessoa ou terceira pessoa. A primeira forma tem a convenincia do acesso direto aos processos conscientes e de significado. , no entanto, impenetrvel investigao emprica. A segunda forma tem a convenincia da abordagem por meio do mtodo cientfico e de uma forma objetiva por dados indiretos. , no entanto, cega para questes de significado, sentido e qualia. Questes de sentido e significado so domnio exclusivo da psicologia filosfica e da filosofia da mente, embora estas possam ser tambm instrudas com dados oriundos da prtica cientfica.

    O cognitivismo estabeleceu esse princpio claramente por meio de Jerry Fodor (1991): o solipsismo metodolgico. O aspecto da mente que pode ser estudado o puramente sinttico. Portanto, a referncia das representaes ao mundo exterior est alm dos poderes explicativos da psicologia cognitiva. Se uma paciente acredita em duendes que vivem em Mau, isso causa nela o desejo de vlos, o que a leva a viajar a Mau e procurlos pelas matas. Quer existam ou no duendes, suas representaes deles causaram e

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    explicam seu comportamento. No necessrio nada externo ao sujeito psicolgico para explicar o comportamento: somente as informaes que ele recebe, as representaes que tem e as regras que aplica para manipullas. importante enfatizar que esse um princpio metodolgico somente, no ontolgico, no se nega a existncia nem a importncia do ambiente, negase somente que ele seja termo de explicaes psicolgicas.

    Assim, o objeto de estudo da psicologia no o significado da experincia como queriam os humanistas, mas as regras do pensamento (como a gramtica transformacional de Chomsky) e as representaes mentais de todos os tipos (como linguagem ou imagens). impossvel para o cientista cognitivo fazer semntica, diz Fodor (1991), pois impossvel o acesso objetivo aos significados das representaes (que permanecem no mbito do sujeito). Mas dizer isso muito diferente do que afirmar o absurdo de que representaes mentais no tm propriedades semnticas. O problema que estas no so acessveis investigao cientfica.

    J o domnio das qualia, que so qualidades da experincia consciente nicas e irrepetveis, impenetrvel ao conhecimento cientfico e filosfico (DREYFUS, 1993; SEARLE, 1992; NAGEL, 1980; JACKSON, 1990). filosofia cabe somente definir sua existncia, porque, a partir disso, nada mais tem a dizer sobre como ser um morcego (NAGEL, 1980). No entanto, como afirma Husserl (1973), o individual se anuncia para a conscincia atravs do universal, e podemos pelo mtodo fenomenolgico definir a essncia dos fenmenos. na intuio eidtica que se revela o significado de um fenmeno ou experincia consciente. J o objeto da psicologia cientfica o comportamento observvel e as funes cognitivas. Ao extrapolar esses limites de investigao, a psicologia ou assume um mtodo e uma condio filosfica ou se converte em pseudocincia.

    Quanto ao fato de o ser humano ser dotado de autonomia

    Problema central da psicologia que coloca diretamente em xeque sua condio de cientificidade. Se o ser humano dotado de autodeterminao, se a atividade consciente fonte de causalidade finalista, ele uma fonte de atividade do universo, e no de um objeto meramente reagente deste, o que coloca em xeque o pressuposto ontolgico da cincia moderna da regularidade do objeto.

    Existem duas respostas a essa questo. A primeira que essa simplesmente uma questo ontolgica e, como tal, no cientfica. Como pressuposto acerca do objeto, partese dele ou no. Se no se parte dele, a princpio no h problema. A investigao cientfica psicolgica no reconhece, nesse ponto, nenhum obstculo para behavioristas, fisiologistas ou computacionalistas. Estes ltimos, por exemplo, propem representar o carter agente do ser humano por meio dos conceitos de meta e feedback. Para a ideia central do cognitivismo ou da psicologia humanista de que todo o comportamento humano prospectivo e visa atingir metas por meio de planos e estratgias de ao consciente, Miller, Galanter e Pribram (1960) apresentam a definio de plano como processo hierrquico de sequncias de operaes a serem executadas por um organismo, da mesma forma como um programa por um computador. Se a isso acrescentarmos um modelo Tote (testoperatetestexit), estaremos diante de um sistema ciberntico de autorregu

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    lao orientada a metas ou feedback. Num modelo de feedback negativo, que o tipo que estamos avaliando, parte do output volta como input para permitir a uma mquina ciberntica (como um mssil) calcular a margem de erro entre a meta estabelecida (input um alvo) e a atual posio da mquina (input no espao), o que permite ao sistema ajustar seu comportamento (output propulso) em relao meta. A psicologia teria o pressuposto da regularidade do objeto satisfeito para aqueles que no aceitam a tese da autonomia e permanecem aderidos a uma concepo mecanicista de ser humano e universo. Se tal disciplina ter sucesso como empresa preditiva, outra questo. Mas, a priori, a condio de aplicao do mtodo cientfico ao comportamento humano estaria garantida.

    A segunda resposta mais complicada, no deriva do cognitivismo e consiste em soluo original sugerida neste artigo. Deve comear com uma reformulao da questo. Uma vez aceito esse pressuposto metafsico da autonomia humana, temos que nos perguntar: um objeto criativo e livre seria passvel de investigao cientfica? Aqui o objeto em questo poderia modificar seu comportamento (e suas propriedades cognitivas) de maneira criativa e, portanto, no submetida a regras. Quero enfatizar que considerar essa hiptese descartada de sada uma petio de princpio metafsico que no encontra fundamentao alguma nos resultados da psicologia cientfica.

    Se o objeto em questo possusse um montante de liberdade, a pergunta tornarseia ento sobre a natureza e o volume desse montante. livre em qu? E principalmente, livre sob que condies? Se o ser humano livre, certamente no livre para tornarse um unicrnio rosa. Existem limites para sua liberdade, e esses limites podem ser estabelecidos cientificamente. Tambm existem condies para sua liberdade. Algum que ainda no aprendeu o princpio de conservao no poderia criar uma teoria que revolucionasse a fsica, um tetraplgico no livre para mover sua perna. As condies para a liberdade do ser humano podem ser cientificamente estabelecidas, porque obedecem a padres e redundam em leis.

    Podemos no ter o poder de prever para onde vai se dirigir um jovem num campo aberto, mas somos capazes de prever que, se ele tiver a medula espinhal seccionada na altura da quinta vrtebra, ento no poder ir a lugar nenhum andando. Podemos no ter o poder de prever em que momento uma criana vai comear a apresentar domnio de operaes formais, mas somos capazes de prever que, se uma criana no apresenta pleno desenvolvimento do estgio concreto, ento jamais ser capaz de executar sozinha uma tarefa que exija raciocnio formal. Essa questo tem vrias implicaes. Por exemplo, implica que no preciso renunciar ao mtodo cientfico nem forma preditiva que devem possuir as leis psicolgicas para a construo de uma disciplina compatvel com a imagem de ser humano livre e criativo. Basta que adotemos um formato condicional no enunciado de nossas leis. Voltaremos a essa questo mais adiante. O fato que, nesse ponto, o cognitivismo no ofereceu nada de realmente novo psicologia ou filosofia.

    Quanto ao fato de a psicologia no ter objeto prprio

    Essa alegao encontra seus dois principais defensores ligados ao psmodernismo. Refirome ao materialismo eliminativo, que postula que o objeto da psicologia na verda

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    de o objeto da fisiologia (eventos fisiolgicos cerebrais), e ao construcionismo social, que prega que, uma vez que o sujeito uma construo social, o verdadeiro objeto da psicologia o objeto da sociologia, ou seja, o dos estudos culturais (cultura, linguagem, histria etc.). Searle (2000) acredita que ambas as teses so to inconsistentes e frgeis que s podem ser explicadas em virtude de aderncias de carter afetivo. Husserl (1952, 1973, 2002) tambm j demonstrou de forma extensa a inviabilidade de qualquer forma estrita de fisicalismo, do qual o materialismo eliminativo somente uma forma peculiar. Mas e o cognitivismo?

    O desenvolvimento da posio no reducionista dessa abordagem devedor do advento do funcionalismo na filosofia do sculo XX. Esse conjunto de ideias, que comearam a ser gestadas a partir do artigo de Hilary Putnam, Minds and machines, de 1961, e foram desenvolvidas por Fodor (1968, 1975), levantou srios obstculos utopia reducionista na psicologia e em todas as cincias. A ideia central do funcionalismo a de que a organizao de elementos fsicos ao nvel abaixo do nvel da realidade que pretendemos explicar determina propriedades dos nveis acima, as quais, do ponto de vista da fsica, so acidentais. Num exemplo que ficou famoso, Putnam (1980) afirma que nem o fato de um pino quadrado no entrar num buraco redondo pode ser explicado somente com base em molculas e tomos. Explicamos com base na rigidez dos materiais, e, apesar de a rigidez do material poder ser explicada pela sua microestrutura, ela uma propriedade emergente desta. Alm disso, uma explicao sobre o que causa a rigidez do material no ao mesmo tempo uma explicao de por que o prego quadrado no entra num buraco redondo. As propriedades que emergem nos nveis superiores dos fenmenos tm estrutura prpria (no caso, um quadrado e um crculo as formas geomtricas da organizao das molculas do material), o que indica um nvel de autonomia em relao ao nvel inferior (na biologia, o organismo e a vida em relao qumica; na psicologia, a mente em relao ao crebro; num computador, o software em relao ao hardware etc.). Para Putnam (1980), a ideia de reduo no reflete a prtica cientfica real, ela erra ao ignorar a estrutura adquirida pelos nveis superiores dos fenmenos que pretende reduzir. Assim, podemos afirmar que o que marca a necessidade de uma nova disciplina cientfica a emergncia de propriedades estruturais irredutveis em fenmenos de nvel superior ao considerado bsico.

    O cognitivismo se apoderou de uma ideia do funcionalismo derivada da tese das propriedades emergentes. De acordo com essa tese, os estados mentais so estados funcionais de uma mquina ou de um crebro, no estados cerebrais como queria a teoria da identidade (da qual surge o materialismo eliminativo), que no passaria de materialismo ingnuo e simplrio (FODOR, 1968). Esses estados funcionais so realizados por estados cerebrais, mas poderiam slo por outro hardware (outro crebro no caso) de maneira correlata ao que acontece quando voc instala o mesmo programa em duas mquinas diferentes e coloca para rodar. Nesse caso, ambos os hardwares, que so diferentes, esto no mesmo estado funcional. Esse o conceito de Putnam (1961) de realizabilidade mltipla. Consequentemente, a forma fsica de uma mquina ou de um crebro irrelevante para a determinao do papel funcional que ele realiza. O que Putnam (1961) prope que nossos estados mentais esto para os estados neurofisiolgicos da mesma forma

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    Gustavo Arja Castaon

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    que os estados lgicos de uma mquina esto para os estados fsicos dessa mquina. Assim, podemos reduzir essa ideia clebre frmula: A mente est para o crebro como o software para o hardware.

    O funcionalismo parte do princpio de que o propsito dos computadores a execuo de funes. Funes podem ser consideradas algoritmos, sequncias especficas de operaes lgicas a serem aplicadas para transformar cada informao que entra (input) em uma nica resposta na sada (output). Mentes seriam sistemas causais que executam funes na forma de programas de instrues (PUTNAM, 1961). A analogia bsica : computador input programa output; crebro estmulo processo cognitivo resposta.

    O cognitivista promove uma distino clara entre dois domnios de anlise do ser humano, o fsico e o mental. Foi Urlic Neisser (1967) o primeiro psiclogo cognitivo que assumiu plenamente as consequncias da conquista filosfica de Putnam e percebeu a natureza da utilidade da metfora computacional para a psicologia. Ela legitimava a diviso entre um domnio de anlise fsicocerebral e outro psicolgicomental. O psiclogo no est interessado em como os dados so registrados no HD (na poca, fitas magnticas), e sim em entender como funcionam os programas, as cognies. por isso que, para Neisser (1967, p. 6), a preocupao dos neurocientistas em como e onde a memria est armazenada intil para o psiclogo: Ele quer entender sua utilizao, no sua encarnao. Isso seria o mesmo que querer que o economista que procura entender o fluxo monetrio de capitais se dedique ao estudo de se as moedas fsicas efetivamente utilizadas em certa transao foram de ouro, prata, cobre, ferro, papel ou ainda cheques.

    Um segundo aspecto da reao cognitivista s tentativas de eliminao da psicologia por meio da reduo de suas leis diz respeito ao questionamento do monoplio da fsica sobre os juzos de existncia irredutveis da cincia. A reduo em cincia consiste em considerar que certas ordens de fenmenos esto sujeitas a leis mais bem estabelecidas e precisas de outra ordem de fenmenos ontologicamente mais fundamental. Assim, qualquer explicao cientfica, em ltimo nvel, tem que chegar ao irredutvel. Se uma ao causada por desejo, e este um estado fsico cerebral causado pelo conjunto dos impulsos somticos, que foram causados por reaes qumicas nas clulas, que foram causadas pela reao com molculas vindas do exterior e do interior do organismo que entraram em contato com o sistema nervoso, e que em ltima anlise so constitudas de tomos e estes de partculas subatmicas, ento tudo se reduz fsica quntica. O problema que sobra sempre a pergunta: o que uma partcula subatmica? O ideal positivista de cincia consiste em reduzir os juzos de existncia (os juzos sobre o que existe de fato e causa o fenmeno) de cincias mais complexas a termos finais de explicaes fsicas, que se sustentam em juzos de existncia da fsica. A isso damos o nome de fisicalismo, a tese do positivismo lgico de que todos os termos cientficos devem ser reduzidos a termos fsicos. Este seu projeto: expurgar a metafsica da linguagem cientfica. O problema que o pressuposto de que a psicologia redutvel biologia e esta fsica metafsico, uma vez que as teoriasponte (HEMPEL, 1970) dessas disciplinas no esto estabelecidas. E, mais do que isso, as premissas das leis bsicas da fsica, por ser a cincia bsica, sempre sero juzos de existncia irredutveis, portanto plenamente metafsicos.

  • O cognitivismo e o problema da cientificidade da psicologia

    243Psicologia: Teoria e Prtica 2010, 12(2):233-253

    Uma vez que explicaes da fsica, modelos de cincia moderna, so sempre em ltima anlise apoiadas em juzos de existncia irredutveis, juzos metafsicos, no existe nenhum motivo (uma vez que teoriasponte no esto construdas) formal ou metodolgico para que no se aceitem conjecturalmente juzos de existncia irredutveis na psicologia. Ou seja, no h nenhuma razo metodolgica ou epistemolgica para deixarmos de aceitar processos intencionais de conscincia como causas de comportamento, a no ser o preconceito metafsico materialista positivista que ainda reina na cincia moderna.

    a soluo materialista do problema mentecorpo que est associada de forma inextrincvel ao reducionismo em psicologia. Da mesma forma, abordagens no reducionistas desta como o paralelismo psicofsico (PIAGET, 1968) e o interacionismo (SPERRY, 1993; POPPER; ECCLES, 1977), as duas principais posies cognitivistas acerca desse problema, implicam, implcita ou explicitamente, alguma forma de dualismo, mesmo que um dualis mo de propriedades. Quando assumimos que o fenmeno psicolgico no pode ser redu zido terminologia da fsica, assumimos que ele no se resume a fenmenos fsicos.

    Chomsky (1971) traa interessante paralelo entre a tese cartesiana da substncia mental e a newtoniana da gravidade. Lembra que os mesmos motivos que levaram os mecanicistas a atacar a teoria da gravidade os levaram a atacar a substncia mental. Era inobservvel diretamente e, pior, agia a distncia e invisivelmente sobre os corpos, algo inconcebvel para os moldes da mecnica newtoniana. Um princpio de atrao a distncia como propriedade dos corpsculos ltimos da matria simplesmente no se encaixava no arcabouo geral da cincia, porm, ao contrrio das teses cartesianas sobre a conscincia, tinha esmagador poder preditivo e acabou sendo aceito.

    Desenvolvendo essa tese, Chomsky (1981) alega que a questo da realidade dos fenmenos psicolgicos descritos pela psicologia cognitiva um contrassenso. Quando astrofsicos tentam determinar a natureza das reaes termonucleares nas camadas internas do sol, a tcnica disponvel de observao os permite estudar somente a luz emitida em suas camadas externas. Com base nessa informao, eles constroem uma teoria das reaes termonucleares desconhecidas, e essa teoria oferece uma interpretao coerente dos dados colhidos e prev adequadamente o comportamento das coletas de dados futuras. Mas, mesmo diante disso, sempre haver quem pergunte algo do tipo: Esta teoria explicativa dos fenmenos, mas como voc pode provar que as construes de sua teoria possuem realidade fsica? (ou seja, se so verdadeiras em sentido metafsico). A resposta simples: no pode. A cincia moderna um processo hipotticodedutivo de conjecturas e refutaes. A conjectura sobrevivente da vez sempre ser somente uma conjectura. Porm, com maior poder explicativo do que as outras que j foram abandonadas. Popper (1994) e Niiniluoto (1999) diriam: com maior verossimilhana que as abandonadas. Laudan (1990) diria: fices teis com maior poder pragmtico. Mas todos concordariam em linhas gerais com Chomsky (1981, p. 144):

    No faz sentido procurarmos outro tipo de justificao para atribuir realidade fsica aos constructos da

    teoria; suficiente perguntarmos se eles so adequados para explicar os dados e se esto de acordo com a

    essncia da cincia natural, tal como atualmente compreendida. No pode haver nenhum outro funda

    mento para atribuirmos realidade fsica s construes do cientista.

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    Gustavo Arja Castaon

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    O problema apresentado atinge indiscriminadamente a astrofsica, a fsica, a qumica, a biologia e a psicologia. No demais lembrar que, alm disso, nem na fsica existem teoriasponte que reduzam as propriedades dos fenmenos do nvel clssico s propriedades dos fenmenos qunticos, embora a maioria dos fsicos acredite que um dia isso ser possvel. Qual a razo de aceitar como dignas do status de cientficas explicaes cujo conceito irredutvel a gravidade e rejeitar explicaes que utilizam o conceito irredutvel de conscincia? A cincia trabalha com construes hipotticas que so tomadas como reais simplesmente por seu poder explicativo: Big Bang, gravidade, quarks, ftons, energia, massa, rbita eltrica, finalismo biolgico e, por que no, conscincia e cognio. No aceitvel que a conscincia, aquilo para o que existem todos os fenmenos, seja vetada como construo hipottica irredutvel legtima na cincia. Essa atitude dogmtica arrogante ao desconsiderar as intuies mais bsicas que temos da vida psicolgica, afetivamente motivada (pela aderncia emocional ao materialismo), baseada numa concepo superada do conhecimento cientfico (o positivismo lgico), incompatvel com o esprito de liberdade que caracteriza o desenvolvimento cientfico e, finalmente, ingnua metafisicamente.

    Quanto ao fato de o objeto da psicologia ser alterado pela interao

    Essa uma questo correlata a alguns problemas suscitados pela fsica quntica e tem as mesmas solues tericas. O comportamento e os processos cognitivos so alterveis quando o ser humano colocado em situao de pesquisa ou ainda quando obtm informao sobre aspectos sociais (GERGEN, 1973), ambientais ou individuais, o que pe em xeque o pressuposto da regularidade do objeto.

    Neisser (1975) observa em Cognition and reality que o aumento do conhecimento provoca o aumento da impreditibilidade do comportamento humano: quanto mais soubermos sobre o ambiente e nossos processos cognitivos, menos nosso comportamento ser preditvel. No podemos prever o comportamento de uma pessoa em um ambiente natural, a menos que saibamos tanto sobre ele quanto a pessoa. Isso porque, se o comportamento uma funo da informao presente no ambiente, quanto mais voc entender seu ambiente, mais informaes ir recolher dele, e, portanto, mais difcil ser prever seu comportamento.

    Entretanto, a interpretao de que esse aspecto do objeto de estudo da psicologia um impedimento de carter ontolgico falsa, temos aqui somente um complicador metodolgico. O pressuposto da regularidade do objeto no est em questo desde que a alterao que acompanha o objeto de estudo durante a interao seja ela prpria tambm regida por uma funo. Se existe um padro na alterao de determinadas caractersticas de um objeto em situaes especficas ou diante de objetos especficos, no temos aqui uma evidncia indeterminista, ao contrrio, temos a evidncia da atuao de alguma lei sobre a interao do objeto em questo com outros. Essa lei necessariamente ter a forma de uma afirmao de que, interagindo com certos objetos ou estando em certas situaes, o objeto em questo se altera em determinado aspecto e de determinada maneira. Podemos inclusive mensurar a natureza dessa alterao nas cincias naturais

  • O cognitivismo e o problema da cientificidade da psicologia

    245Psicologia: Teoria e Prtica 2010, 12(2):233-253

    ou determinar logicamente o tipo dessa alterao, no caso da psicologia (em psicologia social, podemos avaliar a diferena que ocorre em comportamentos de ajuda a estranhos quando os sujeitos sabem e quando no sabem que esto sob observao). Mas claro que a soluo metodolgica mais simples para esse problema evitar que sujeitos de uma pesquisa saibam que esto sendo pesquisados.

    O conceito herdado da ciberntica e usado tipicamente pelo cognitivismo para enfrentar esse problema o j abordado feedback. Um modelo ciberntico de autorregulao orientado a metas tem o poder de alterar permanentemente seu comportamento em funo de informaes ambientais, mas essa alterao segue padres. Se um mssil guiado por calor estiver perseguindo outro mssil guiado por calor, a proximidade de um alterar a trajetria do outro respectivamente, mas, como bem sabemos, a mudana provocada no comportamento de cada mssil segue leis fsicas e determinaes de programao rigorosas, em nada se assemelhando a um fenmeno indeterminado. O modelo de feedback oferece, entre outras coisas, uma forma rigorosa de compreender de maneira determinista o comportamento de alguns objetos que sofrem alteraes em determinadas situaes de interao. No entanto, a questo das leis de interao, na maior parte das vezes, no passa de curiosidade terica sem muita significao, pois, para evitarmos esse obstculo metodolgico, basta que executemos experimentos em que os sujeitos no saibam que esto numa pesquisa, ou ao menos no saibam sobre o que a pesquisa da qual esto participando.

    Quanto ao fato de o objeto da psicologia no ser diretamente observvel

    O nono problema tratado no artigo sobre a crise da psicologia (CASTAON, no prelo) o das limitaes ticas de pesquisa, e nada novo sobre ele foi acrescentado pelo cognitivismo. J o dcimo, de como encontrar uma abordagem satisfatria para a subjetividade do objeto da psicologia, no simples. Sabemos que a dimenso qualitativa e singular da experincia psquica inacessvel a abordagens de terceira pessoa e inabordvel filosfica e cientificamente (DREYFUS, 1993; SEARLE, 1992; NAGEL, 1980; JACKSON, 1990). Mas outros aspectos da vida psquica, como processos cognitivos, regras estruturais da cognio e representaes mentais, so, como estabeleceu o cognitivismo, abordveis tanto filosfica quanto cientificamente. Apesar de no diretamente observveis, as funes cognitivas so plenamente inferveis da relao entre a informao ambiental e o comportamento manifesto. Aderindo s teses de Popper e ao constructo de varivel interveniente, o cognitivismo se livrou das amarras epistemolgicas e metodolgicas investigao de processos cognitivos.

    Com a adeso do cognitivismo ao racionalismo crtico (CASTAON, 2007c) e o abandono do positivismo lgico, caiu tambm na psicologia o mito filosfico da necessidade de observao direta do fenmeno investigado, assim como o da induo e da observao neutra. O mtodo hipotticodedutivo tornou evidente na cincia que o que um fsico faz de fato criar uma teoria, deduzir dela uma consequncia observvel qualquer e realizar um experimento ou observao controlada para testar sua predio. Assim, no h mais nenhuma limitao dessa natureza pesando sobre a psicologia: ela hipote

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    Gustavo Arja Castaon

    Psicologia: Teoria e Prtica 2010, 12(2):233-253

    tiza processos e estruturas cognitivas, prediz o comportamento que ir derivar deles, e testa sua predio por meio de experimentos ou observaes controlados.

    Quanto ao fato de o objeto da psicologia no ser mensurvel

    Apesar de no serem diretamente mensurveis, alguns aspectos da mente o so indiretamente pelas consequncias empricas que provocam. Esse problema evidente de epistemologia da psicologia tambm foi muito atenuado com a distino entre conhecimento e certeza, assim como com o fim do mito da observao mensurada direta do objeto de estudo como fonte das teorias cientficas. Uma que toda observao se faz luz de uma teoria, podemos partir dela para observaes, e assim criar instrumentos de medidas para efeitos da cognio que nossa teoria preveja. Obviamente, uma escala Beck de depresso no mede diretamente depresso, mas mede comportamentos que julgamos ser sintomas desta. No s o conceito de varivel interveniente propiciou esse tipo de inferncia, mas tambm o de conhecimento aproximativo. Embora no possamos medir medo diretamente, podemos construir instrumentos de medida que meam fenmenos que seriam efeitos indiretos (de acordo com uma teoria) aceitveis dele.

    Baseado nisso, o cognitivismo trouxe para a psicologia toda uma gama de novas tcnicas cronomtricas, de acuidade de resposta e fisiolgicas de mensurao. Partindo do mesmo princpio kantiano de que processos cognitivos s ocorrem no tempo, a psicologia cognitiva passou a medir o tempo de execuo de tarefas que exigem determinados processamentos cognitivos dos estmulos apresentados, como forma de inferir a complexidade dos processos cognitivos necessrios para sua execuo. Na nova tcnica experimental da subtrao, medimos o tempo de execuo de uma tarefa simples comparada ao tempo de execuo da mesma tarefa alterada em um nico aspecto, subtraindo o tempo de durao da primeira do da segunda, estimando assim o tempo necessrio para executar a alterao. Assim, o tempo de durao dos atos mentais passou a ser ele prprio fonte de dados com base nos quais podemos testar hipteses sobre as formas lgicas das regras cognitivas.

    No campo das medidas de acuidade de resposta, a psicologia cognitiva desenvolveu vrias tcnicas, como as de recordao serial, recordao livre, recordao com pistas, reconhecimento, efeito priming, conhecimento procedimental, transferncia e julgamento de estmulos. No campo das medidas psicofisiolgicas, desenvolveu as tcnicas de rastreamento dos olhos e, em conjunto com a neurocincia cognitiva, de imageamento cerebral para testar hipteses sobre processos cognitivos. Estas ltimas s ganham sentido luz das teses do isomorfismo e da modularidade da mente, desenvolvidas pelo cognitivista Jerry Fodor (1983).

    Quanto quantidade de variveis envolvidas no fenmeno psicolgico

    De qualquer ngulo, o objeto de estudo da psicologia mais complexo que os de outras cincias. Se olharmos de um ponto de vista reducionista, chegamos concluso de que necessrio postular ao menos trs tipos diferentes de leis psicolgicas. O primeiro o da relao entre eventos mentais e eventos cerebrais, as leis neuropsicolgicas.

  • O cognitivismo e o problema da cientificidade da psicologia

    247Psicologia: Teoria e Prtica 2010, 12(2):233-253

    O segundo o da relao entre crenas e estruturas cognitivas e o comportamento manifesto, as leis cognitivas. O terceiro o da relao entre os diferentes estgios orgnicos e as estruturas cognitivas, as leis do desenvolvimento psicolgico.

    Assim, qualquer explicao psicolgica de evento particular envolve o conjunto de leis da psicologia e das condies iniciais das variveis relevantes. Ou seja: a) o conhecimento das leis gerais da cognio; b) o conhecimento das leis gerais neuropsicolgicas (que envolvem o conhecimento de fisiologia e qumica); c) o conhecimento das leis gerais do desenvolvimento cognitivo (envolvendo o neuropsicolgico); d) o conhecimento do estado atual de desejos e crenas do sujeito em questo (que envolve o estgio de desenvolvimento das estruturas cognitivas gerais); e) o conhecimento do estado atual do crebro do indivduo em questo; f) o conjunto de informao qual o indivduo est submetido em determinada situao. Com posse dessas informaes, acredita um cognitivista determinista, podemos explicar um comportamento particular. Fica evidente que no estamos diante de algo como uma reao qumica, em que meia dzia de informaes conduzem a uma predio precisa. Estamos diante do tipo de explicao mais complexa entre as conhecidas no universo. Portanto, o problema da complexidade da explicao psicolgica, dependente do nmero de variveis envolvidas na determinao do fenmeno, piora consideravelmente no cognitivismo (em relao ao behaviorismo e psicologia fisiolgica), transformando a explicao dedutivonomolgica em psicologia em nada alm de uma fico impraticvel. A despeito de tornar a explicao psicolgica mais realista, o cognitivismo encontra nesse ponto sua condio de maior fragilidade em relao pretenso de fundamentar filosoficamente a cincia psicolgica.

    Por que o cognitivismo fracassa em seu modelo de explicao psicolgica?

    Uma vez que: no temos muitas leis gerais da cognio e que sabemos muito pouco sobre o funcionamento do crebro e sua relao com a mente; so to difceis, indiretas e imprecisas as inferncias sobre o estado atual de metas, crenas, estruturas cognitivas e cerebrais de um indivduo; impossvel determinar o montante de informao ao qual um indivduo est submetido em uma situao de estmulo; temos que nos perguntar se legtimo falar de explicao dedutivonomolgica na psicologia. Contrariamente alegao do cognitivismo, defendo que no.

    Uma explicao dedutivonomolgica tem um formato determinista no sentido laplaciano (hard determinism; ROBINSON, 1985). Ela determina de maneira necessria e suficiente que, tendo em vista as leis A, B e C e os fatos a, b e c, a sentena explanandum d decorre dedutivamente dos enunciados explanatrios (explanans). Porm, a multiplicidade de nveis explicativos torna esse tipo de explicao nada mais que uma quimera para a psicologia cientfica, como defendeu Donald Davidson (1980). Para ele, no possvel haver leis psicolgicas ou psicofsicas estritas, pois no haveria meios de precisar as condies para que uma proposio universal se cumpra sem excees, entre estas, o mon tante total de informao presente no ambiente, como mostrou Neisser (1975).

    Se, alm disso, aceitamos as alegaes humanistas, deparamos com um nvel de complexidade virtualmente infinito, que o da criao de novas estruturas formais (crenas

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    Gustavo Arja Castaon

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    e estruturas cognitivas) e da causalidade finalista legtima (RYCHLAK, 1994). Ou seja, estou falando aqui na necessidade de termos que considerar muito seriamente a evidncia (com base no singelo fato de termos sado das cavernas e ido Lua) de que o ser humano seja dotado de algum montante real de criatividade e liberdade (que a existncia da criatividade torna possvel). Se o ser humano livre, se o ser humano criativo, ou mesmo se, como quer o cognitivismo, estamos submetidos a uma espcie de determinismo bidirecional (SPERRY, 1993), em que a conscincia tambm fonte de causalidade, ento o ser humano ontologicamente incapaz de se tornar objeto de explicao dedutivonomolgica, estritamente baseada em causalidade eficiente.

    Uma outra opo de explicao aceita nas cincias naturais a probabilstica, em que o explanans implica o explanandum somente com certeza probabilstica (no dedutiva). Mas, na verdade, a explicao probabilstica ocorre quando no conhecemos ainda alguma ou algumas leis gerais ou condies contingentes necessrias que tenham causado o explanandum. A tese dominante na psicologia contempornea a de que a explicao psicolgica deve ter carter probabilista, uma vez que no conhecemos todas as leis e todas as condies envolvidas em fenmenos particulares. Defendo aqui que essa tese equivocada por trs motivos.

    Primeiro, a quantidade de leis e condies particulares que estariam em atuao na determinao de um comportamento virtualmente infinita (imagine a quantidade infinita de informao presente numa situao de estmulo, a quantidade virtualmente infinita de relaes entre sinapses nervosas e estados mentais, a gigantesca quantidade de informaes presentes no estado atual de crenas de um indivduo e assim por diante), e, portanto, mesmo que tivssemos uma viso determinista forte de ser humano, a predio probabilstica de seu comportamento concreto seria ingenuidade matemtica na melhor das hipteses. Segundo, quando aplicadas ao indivduo e ao caso particular, generalizaes indutivas probabilsticas no tm utilidade nenhuma, no podem prever nada (a no ser em amostras populacionais). Essa a crtica de Dilthey (1945) a este tipo de explicao: deduzir delas qualquer coisa em relao a uma pessoa real uma induo que no tem sustentao lgica. Terceiro e principal, a adeso em psicologia explicao probabilista tambm implica a adeso a uma tese ontolgica absolutamente dispensvel como pressuposto da cincia: a de que nosso comportamento seria totalmente determinado em sentido laplaciano. O pressuposto metafsico necessrio para a investigao cientfica do objeto que ele apresente aspectos regulares, no necessariamente que apresente regularidades em todos os aspectos.

    Defendo aqui que tal compromisso metafsico absolutamente legtimo como motivao de pesquisa, mas absolutamente ilegtimo como pressuposto metodolgico a ser imposto a todos os pesquisadores, pois no princpio filosfico necessrio falsificabilidade das leis psicolgicas, implicando, portanto, uma petio de princpio. Devemos assumir para a psicologia uma forma de explicao que no exclua a priori possibilidades tericas legtimas. A explicao probabilstica inadequada para a psicologia simplesmente porque as variaes nos resultados das predies podem no se dever a leis ocultas, e sim a questes de atribuio de significado, criatividade e finali

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    dade. Resumindo, explicaes probabilistas em psicologia so fracas matematicamente, inteis pragmaticamente e to comprometidas metafisicamente quanto as dedutivonomolgicas.

    Outra sugesto recente de modelo de explicao psicolgica foi apresentada pelo filsofo da psicologia Volker Gadenne (2006). Tambm negando a viabilidade de explicaes nomolgicodedutivas em psicologia, ele prope que leis psicolgicas s so possveis na forma ceterus paribus: mantidas as demais condies constantes, x causa y. Entretanto, como ele prprio reconhece, leis desse formato so infalsificveis, ou seja, sempre podemos dizer que y no se deu apesar de x porque alguma varivel que no medimos no se manteve constante. Julgo que isso exclui do conhecimento cientfico qualquer explicao baseada nesse tipo de lei.

    Uma proposta de soluo: a explicao condicional

    Proponho a adoo do formato condicional na explicao psicolgica para resolver esse problema (CASTAON, 2006). Julgo que, para a explicao psicolgica se tornar uma empresa precisa e respeitvel cientificamente, ou ainda para incorporarmos ao empreendimento cientfico pesquisadores que assumam o pressuposto da liberdade relativa do ser humano em relao aos condicionantes biolgicos, psicolgicos, fsicos e sociais, preciso promover uma mudana na sua natureza. Em virtude da extrema complexidade que a suposta explicao dedutivonomolgica em psicologia teria, e da evidncia da existncia de raciocnio dialtico e construo de hipteses originais no ser humano (RYCHLAK, 1994), defendo a impossibilidade de explicao dedutivonomolgica ou probabilstica do fenmeno psicolgico, e a necessidade de adotar uma forma de explicao condicional para a psicologia. Em outras palavras, julgo que a exigncia de explicao de um evento psicolgico ocorrido estar suficientemente satisfeita se demonstrarmos que o ocorrido foi possvel, no havendo possibilidade de demonstrar, alm disso, que era necessrio.

    A explicao condicional se limita a indicar uma srie de leis e condies particulares (explanans) que tornaram possvel a ocorrncia do explanandum. uma explicao das condies necessrias, porm no suficientes. Elas tm a forma geral de dadas as leis gerais X, Y e Z, e as condies particulares x, y e z, ento o comportamento C foi possvel. Ou seja, certas condies tornam possveis certos comportamentos, porm no os determinam. Esse tipo de explicao inverte a situao de fragilidade das explicaes psicolgicas, pois precisa somente estabelecer condies necessrias para a ocorrncia dos fenmenos considerados, ainda eliminando dois inconvenientes que esto na origem da disperso do conhecimento psicolgico. Primeiro confere preciso de fato s leis psicolgicas. Ao mesmo tempo, por no se arvorar a determinar as condies suficientes do comportamento, a explicao condicional elimina da psicologia o compromisso ontolgico prvio com o determinismo forte contido no ideal dedutivonomolgico de explicao. Explicaes condicionais so vlidas para humanistas porque no implicam uma viso determinista de ser humano, e so vlidas para deterministas porque continuam a estabelecer leis psicolgicas rigorosamente falsificveis, justificando a ausncia da deter

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    Gustavo Arja Castaon

    Psicologia: Teoria e Prtica 2010, 12(2):233-253

    minao suficiente do comportamento em razo da enorme quantidade de variveis que compe o fenmeno psicolgico.

    Qualquer alegao de causalidade suficiente, seja ela final ou eficiente, deveria ser abordada como uma interpretao retrospectiva de um fenmeno complexo. Assim, a psicologia poderia se tornar, progressivamente, uma empresa nica, em que deterministas e no deterministas adotariam o mesmo conjunto de leis condicionais, divergindo somente quanto s interpretaes acerca da causa determinante do comportamento. Em outras palavras, a adoo generalizada da explicao condicional, apesar de reduzir as pretenses da psicologia, poderia contribuir para a realizao das duas maiores utopias dessa disciplina: sua unificao e sua consolidao como cincia moderna.

    Concluso

    Concluo nesta investigao que o cognitivismo superou plenamente a maioria dos obstculos colocados pela tradio filosfica e cientfica constituio da psicologia como cincia moderna. Porm, alguns obstculos foram somente dirimidos, outros deixados intocados, e ainda um ltimo deixado em condio pior do que a encontrada.

    Entre as alegaes superadas, encontramse as da natureza inquantificvel de seu objeto, da simultaneidade da condio de sujeito e objeto, da inexistncia de objeto prprio da psicologia, da impossibilidade de observao direta deste e da alterao do ser humano pela interao. Entre as alegaes enfraquecidas, encontramse as da necessidade de mudana do mtodo, do significado como verdadeiro objeto psicolgico e da dificuldade metodolgica de mensurao dos dados.

    O obstculo que ficou sem enfrentamento foi a questo da liberdade e criatividade humanas, pressuposto que, caso aceito, implica impossibilidade de explicao dedutivonomolgica. fato que o cognitivismo considera a conscincia uma entidade real e geralmente tambm fonte de causalidade, mas no enfrenta as consequncias epistemolgicas dessa tese ontolgica.

    Por fim, chegamos questo da complexidade da explicao psicolgica, que no s o cognitivismo no superou, como deixou em condio pior do que a que herdou do behaviorismo. Na forma e nos nveis irredutveis em que esta abordagem apresenta essa questo, tornase nada alm de uma fico impraticvel, no mnimo, ou de um erro de natureza ontolgica, no mximo. Neste ltimo caso, pelo fato de, se o ser humano for dotado de autonomia ou criatividade genunas, no ser possvel oferecer uma explicao totalmente determinista de seu comportamento. Como proposta de soluo a esse problema, remeti tese da adoo da explicao condicional em psicologia (CASTAON, 2006), em substituio explicao dedutivonomolgica.

    Julgo que, apesar da conturbada histria da psicologia, seu futuro como disciplina cientfica cada vez mais promissor. Parece realmente que poucos passos separam a longa crise de sua adolescncia cientfica do esperado comeo de sua maturidade disciplinar. O cognitivismo, este imenso empreendimento filosfico e cientfico que mudou a face da psicologia e rehumanizou seu objeto, percorreu a maior parte desse caminho para ns.

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    ContatoGustavo Arja CastaonUniversidade Federal de Juiz de ForaRua Jos Loureno Kelmer, s/n Campus Universitrio So Pedro Juiz de Fora MGCEP 36036330email: [email protected]

    TramitaoRecebido em setembro de 2009

    Aceito em outubro de 2009