o conceito de rede na filosofia mestiça

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/3/2019 o conceito de rede na filosofia mestia

    1/9

    12 INFORMARE - Cademos do Programa de Pos-Graduaciio em Ciencia da Informaciio

    ARTIGO

    o CONCEITO DE REDE NA FILOSOFIA MESTI9AMarcia Oliveira Moraes

    Departamento de Psicologia, UFFe-mail: [email protected]

    Palavras-ChaveRede; Ciencias; Filosofia das Ciencias

    Considera90es preliminares

    Se aceitamos 0 convite de Latour e analisamos a ciencia em ~ao, aquela praticada pelos cientistas nointerior de seus laboratories, somos conduzidos a urn dominio de a~ao dispar e heterogeneo que naoesta contido nos estudos epistemo16gicos sobre a ciencia. Porque a epistemologia interessa definir aciencia a partir da sua producao conceitual. E, nesse caso, a analise das ciencias se vincula a uma pesquisano campo do conhecimento. A proposta de Latour, ao contrario, coloca em cena elementos dispares eheterogeneos, tais como urn dispositivo experimental, a rivalidade entre urn filosofo politico e urn fil6sofoexperimentalista, enfim, a natureza e a sociedade, Esse procedimento traz para 0 campo das ciencias urnaheterogeneidade de elementos e conexoes que ultrapassam as delimitacoes epistemo16gicas entre 0 que eda ordem do conhecimento e 0que nao e . Se do ponto de vista epistemologico a ciencia se define pe1a.especificidade de sua producao conceitual, do ponto de vista de sua pratica a ciencia se define por suabricolage, isto e , na pratica urn cientista nao cessa de misturar elementos heterogeneos, Como uma dasfacetas do pensamento modemo, a epistemologia estuda as ciencias com a preocupacao de estabelecercortes, rupturas entre 0 que e cientifico e 0 que naoe, Em Ultima instancia, a epistemologia analisa as ciencias

    Prog. Pas-Grad. Ci. Inf., Rio de Janeiro, Y.6, n.l, p.12-20, jan./jun.2000

    mailto:[email protected]:[email protected]
  • 8/3/2019 o conceito de rede na filosofia mestia

    2/9

    o Conceito de Rede na Filosojia MesttfOtomando como referenciais as nocoes que orientamo pensamento modemo: sujeito e objeto, naturezae sociedade. Partindo de tais nocoes, a epistemologiaacaba por se deixar guiar por uma critica dascondicoes de possibilidade do conhecimentocientifico,

    Analisar a ciencia em a~ao nos conduz a urndominic de a~ao dispar que alarga 0 foco deinvestigacao, Se a pratica cientifica nao se defineexclusivamente por sua racionalidade - ou par suaproducao conceitual - mas por sua bricolage, entaosomos levados a perguntar sobre as suas implicacoesfilosoficas. Porque, 6 certo que uma filosofiafundamentada nos ideais do pensamento critico aumodemo - ideais de normatizacao e purificacao -nao da conta das ciencias; uma filosofia, em suma,de urn modo ou outro, comprometida com a tarefade purificar num fenomeno 0 que ele tern depuramente objetivo, ou 0que ele tern de purarnentesubjetivo. Estudar a ciencia em acao nos leva a urnuniverso filos6fico que nao se confunde com 0paradigrna dualista tipico do pensamento modemo.Como a ciencia em ac;ao se movimenta num mundocuja realidade 6 rmiltipla, urn mundo de conexoese elementos dispares, entao precis amos buscar umafilosofia que faca da bricolagem, da mistura entresujeito e objeto 0 seu ponto de origem. Nao se tratamais de urna filosofia que se constitua a partir deuma critica, de urn esclarecimento das condicoesde possibilidade do conhecimento cientifico. Trata-se, sim, de uma filosofia mestica, hfbrida que serefere "it analise e a ret6rica juntas, aos mitos e a sreligioes, as tecnicas e a s ciencias, ao mesticoincluso." (SERRES, 1993, p. 100).

    o conceito de redeDo ponto de vista topologico, uma rede e

    caracterizada por suas conexoes, seus pontos deconvergencia e bifurcacao, Ela e .uma logic a deconexoes, e nao de superficies, definidas par seusagenciarnentos internos e nao por seus limitesexternos, Assim, uma rede e uma totalidade abertacapaz de crescer em todos os lados e direcoes,sendo seu unico elemento constitutivo 0 no. Asredes tecno16gicas, como as redes ferroviarias,telefonicas e inforrnaticas sao, para Latour.

    (CRAWFORD, 1993, p.9), apenas urn casoparticular, urn exemplo da nocao de rede no sentidoontol6gico e radical que ele the confere.

    No sentldo que lhe atribui Serres (!s.d.!, p.7-27) a rede e mais do que urn conceito topol6gico:ela e ontologica. TaIvez pudessemos dizer queSerres expande na direcao do real 0 sentidotopologico da nocao de rede. Na perspectiva dofil6sofo, uma rede e formada nurn dado instante poruma pluralidade de pontos ligados entre si por umapluralidade de conex5es. Por definicao, nenhumponto e privilegiado em relacao a Dutro, a que fazcom que uma rede tenha rmiltiplas entradas. Serresnos faz ver que essa rede irregular, desigual esta nagenese das regularidades. Em outras palavras, aschamadas redes regulares marcadas por pontosprivilegiados sao urn caso particular da redeescalena, irregular na qual e possfvel 0maximo dediferenciacao intema. Com esse argumento Serresmostra que as oposicoes binarias, caracterizadaspor possufrem apenas duas entradas privilegiadas,sao elas proprias efeitos da rede irregular. Tal e 0casa do pensamento dialetico, uma vez que,segundo Serres, ele e unilinear e caracterizado pelaunicidade e simplicidade da via que liga uma tesea uma antftese. 0 modelo da rede, ao contrario, cmarcado pela pluralidade e cornplexidade das viasmediadoras; nao hi urn caminho logicamentenecessario, 0modele tabular da rede toma, portanto,a pluralidade como urn substantive, e nao como urnatributo, isto e, nao se trata de acrescentar um fatorde variacao e desvio a urn campo ja marcado parcaminhos privilegiados, como aquele da tese e daantftese, Por isso, conclui Serres 0 modele da rede"nao e , de direito, redutivel a urn tecido complexode sequencias dialeticas rrniltiplas: este tecido -eapenas urn caso particular". (SERRES, Is.d./, p.9-10). Uma rede e urn campo heterogeneo de tens5esque nao resultam necessariamente numa sinteseenquanto 0 pensamento dialetico 6 urn casoparticular da rede: ele reduz a tensao interna que Ihee constitutiva a uma luta continua, numa direcaotinica e constante.

    No espa

  • 8/3/2019 o conceito de rede na filosofia mestia

    3/9

    o Conceito de Rede naagrupamenros. do mesmo tipo, havendo entre e1esI . l . r h a forte interferencia. A afirmacao de que uma

  • 8/3/2019 o conceito de rede na filosofia mestia

    4/9

    o Conceito de Hede na Filosofia Mestif'(lAssim, uma rede se caracterizapor sua

    heterogeneidade, tern multiplas entradas, e amultiplicidade substantiva, a determinacao e urngradiente, espaco e tempo sao efeitos das suastramas, a causalidadeneIa e reversivel, e ela ecaracterizada par subconjuntos restritos marc adospor fortes relacoes de interferencia entre eles, Numapalavra, na rede, "a compIexidade ja nao e urnobstaculo ao conhecimento, au, pior, urn jufzodescritivo, e 0 melhor dos adjuvantes do saber."(SERRES, /s.d./, p.IS). Uma ontologia em rede e aque Serres (1977, 1988) nos prop6e quando fala deuma filosofia das ciencias.

    As redes que agitam as ciencias

    Em seus trabalhos, Serres mostra como essarede agita as ciencias, desestabilizando seusdominios, fazendo-as derivar, Com urn estilo muitosingular- - talvez urn estilo e uma escrita tambemem rede - ele des creve as fortunas e desventurasque as ciencias humanas sofreram quando foramatravessadas por metodos e questoes oriundos deoutros dominies. Da hist6ria das religioes alingufstica, os objetos de estudo eram submetidos auma estrategia de investigacao que constava de seispontos principais:

    "[...} 0 tratarriento por subeonjuntos, 0 evi-denciamento de elementos, 0 reconhe-cimento deoperacoes simples e gerais, umaalgebra combinatoria, a construcao demodelos e a demonstracao de invarianciasau de estabilidades pela variacao dosmodelos" (SERRES, 1977, p.81-82).

    As ciencias humanas estavam implicadas numparadigma cujo sentido geraI era 0 de buscar umainvanancia, uma mathesis universalis, 0estruturalismo e , para Serres, a transformacao desseparadigma num sistema cujo sentido geral edesignado par urn "conjunto que compreendeelementos e [e] munida de uma ou de variasoperacoes, invariantes de modele a modelo."(SERRES, 1977, p.83). Esse paradigma funcionavacomo fio condutor, que em sua simplicidade,recobria todo 0 espaco do saber. Por meio dessecanal, era criado uma especie de repertorio comuma partir do qual tad os as estudiosos em cienciaspodiam se eompreender.

    Partindo da nocao de rede, a filosofia deSerres constitui-se como uma revisao damodemidade" , Serres situa a filosofia centrada naimagem do sujeito legislador, filosofia inaugurada,segundo ele, na era cartesiana, como uma filasofiasubjacente e comum ao empreendimento industrialou a nocao de uma ciencia desinteressada. Nesseambito, a relacao da razao com os objetos seresume a dominacao e Ii propriedade. "A palavra-chave de Descartes resume-se na aplicacao aoconhecimento cientffico e as intervencoes tecnicasdo direito de propriedade, individual ou coletivo."(SERRES, 1991, pAS). 0 imperio dessa filosofiatern como consequencia a perda do mundo, porquesob 0 seu imperio a natureza se reduz a naturezahumana, em ultima instancia, a razao hurnana(SERRES, 1991, p,47). Em resumo, a filosofiacartesiana promove 0 esquecimento do mundo emfavor da razao humana. Assim, a concepcao deciencia modema e rnarcada par urn principia deexclusao do mundo, isto e , 0 mundo e a naturezasao dominados por uma razao que the impoe suasleis, suas regras, os seus c6digos. No entanto, a

    2 Latour tece urncornentario muito interessante acerca do esti lo dos textos de Serres. Ele afinna que 0 estilo de Serres e parte de seu proprioargumento f il o so fi co , i s to e , alfngua e urnmaterial no qual ele experimentaos seus argumentos. Assim, a sua escri ta e ela tambem marc adapor mdltiplas conexfles e entradas. Nau M. ern seus textos 0 apego a uma iinica metalinguagem, a urn referendal unico que centralizetodas as a rgumen ta c o es , En te n dendo 0 pensamento crftico como aquele marcado por urn ideal de puri f icacao que funciona como urncentro sobrecodificador de todos os elementos da periferia, Latour afirma 0 caraternao-crftico da filosofia de Serres, bern como de suaescrita. Nao-crftico porque naoparte desse centro unificador - scja ele definido como sujeito, objeto, natureza ou sociedade, Ao contrario,trata-se de acompanhar 0 modo como esses muitos centros sa o const rufdos, engendrados a partir de uma rede. Seu estilo de escrita e ,pois, uma exp er imen ta c ao dessa ontologia, 0 que faz com que os seus textos se jam, segundo Latour, mais faceis de ler do que rnui tosoutros textos porque para le-los nos nao precisamos abandonar 0 mundo em que vivernos. (Cf. LATOUR, 1992, p. 96-97).3Serres define a modernidade a partir da seguinte caracteristica: a separacao radical entre a razao e 0 mundo. Mais do que separacao,trata-se de uma relacao de dominacao da prirneira sobre a segunda. A modernidade, sob 0imperio da filosofia cartesiana, faz com que"0 sujeito do conhecimento e da acao goze de todos os direitos e seus objetos, de nenhum." (SERRES, 1991, p, 47-48).

    INFORMARE - Cad. Frog. Pes-Grad. Ci, Inf., Rio de Janeiro, v.6, n.I , p.12-20,jan./jun.2000

    15

  • 8/3/2019 o conceito de rede na filosofia mestia

    5/9

    o Conceito de Rede na Fi!osofia Mesti~apartir de dois focos principais, uma grave crise seabate sobre essa concepcao de ciencia: primeirocom a termodinamica e, 0 segundo, com as reacoesda natureza as intervencoes da razao.

    Em primeiro lugar, urn imprevisto entrou emcena no seculo XIX: 0 calor. A termodinamica foicertamente apropriada num acordo com 0 sensocomum, 0 que fazia com que a diferenca por elaatestada fosse tomada como uma diferenca reduzida,anulada, controlada. Mas Serres resgata 0 sentidoontologico da nocao de calor e considera 0 fogocomo urn acontecimento que coloca em evidenciaa potencia da diferenca:

    "[...] 0 calor modifica as condicoes da materia,perturba os ediffcios moleculares, pesquisa 0interior das coisas e 0 altera, 0 calor e anti-cartesiano e, para dizer tudo, antipositi-vista [ ..T' (SERRES, 1988. p.171).

    Sob 0 efeito do fogo. as coisas nao permanecemintactas, 0 fogo afirma a transformacao do objeto,mais do que seu deslocamento num espacohomogeneo, A potencia do fogo atravessa 0 saber,agitando-o do interior, afirmando 0 vigor dadiferenca, "Do mundo rel6gio passa-se ao mundoforno'" (SERRES, 1988, p.l72). 0 real e diferenca,e nao mecanismo, e objeto do saber s6 pode serentendido por sua multiplicidade, sua variacao, Asciencias entram em crise, 0 fogo agita do interior asclassificacoes estabelecidas, as estruturas fechadas,as invariancias.

    Aquele repert6rio comum fundamentado eminvariancias e colocado em xeque pela praticadiana da interferencia, dos curtos-circuitos entresubconjuntos restritos. Aqui vale ressaltar que umarede se caracteriza pela formacao de taissubconjuntos locais, relativamente organizados eque mantem entre si fortes relacoes de interferencia.Essa nocao de interferencia e, a meu ver, crucialpara a filosofia de Serres. Interferencia entendidacomo urn lugar de interseccao, de cruzamento eressonancia entre subconjuntos Iocais. Lugar deinterseccao e sinonimo de Iugar das mesticagens.Cada ciencia aparece como urn subconjunto emuma rede e, como tal, ela e agitada por praticas de

    interferencias, cruzamentos com outros conjuntos,interseccoes, mcsticagens. Cada c ie nc ia eatravessada, rasgada por urn hibridismo cujo modeloe dado pela n~ao de rede. Parece-me que 0 conceitode interferencia na filosofia de Serres irnplica aafirmacao de uma mesticagem sempre ern operacaono campo das praticas cientfficas, fazendo-asderivar,bifurcar - termo que, segundo 0 autor,"quer dizer obrigatoriamente decidir-se por urncaminhotransversal que conduz a urn Iugarignorado." (SERRES, 1993, p.1S). Enquanto naestrategia estruturalista esta em jogo uma busca dasinvariancias, na filosofia mestica 0foco das atencoesesta nas variacoes, nas bifurcacoes, na errancia quecaracterizam nao s6 as ciencias humanas, mas asciencias de urn modo geral, bern como todas asnossas praticas, Ao falar de urn mundo forno,Serres parece resgatar esse sentido de transformacaoonto16gica que define 0 reaL As leis, a cadeia, aordem sao excecoes ou antes efeitos da potencia dofogo ou, 0 que da no mesmo, da potencia da rede.E com rigor que Serres afirma a lei (SERRES, 1988,p.176) como urn aniquilamento da diferenciacao,uma parada na variacao que constitui 0 reaL Issonao significa que se abandonem as leis, mas simque a previsao baixe ate uma relati vaimprevisibilidade, ou dito de outro modo, que aprevisao seja antes urn efeito negociado em rede.

    As coisas: a revolucaocontra-copemicana operada

    p el a filo so fia m e stic aEm segundo lugar, urn outro evento marca

    para Serres uma crise nas ciencias modern as,centradas no exercicio da razao: trata-se da reacaoda natureza a s intervencoes e dominacoes da razaohumana. 0 imperio da filosofia cartesiana e maisuma vez questionado, porque, nela a natureza ereduzida a natureza hurnana, a ra za o, N a perspectivade Serres, essa filosofia faz com que a mundo sejaesquecido em favor da razao e no entanto, 0 dominioda razao sobre a natureza "cava buracos na

    Talvez seja possfvel dizer que 0 calor e antikantiano uma vez que ele irnplica uma concepcao do real que tern como fio condutor a irredutibilidadede direito das praticas demediacao, 0 calor nao sepresta apurificacoes, ele nao aceita serfiltrado em elementos puros. Ele e hibridacao (SERRES,1991, p.l72).INFORMARE- Cad. Prog. Pes-Grad. Ci. Inf., Rio de Janeiro, v.6, n.1, p.12-20,jan.!jun.2000

  • 8/3/2019 o conceito de rede na filosofia mestia

    6/9

    oConceiro de Rede Ita Filosofia Mestl(a

    vegetacao, esburaca a camada de ozonic, expoe amundo a grandes perigos ..." (SERRES, 1991, p.78).A natureza, ate entao consideradauma area livrepara a expansao e dominio da razao, retorna, impoequest6es e exige que um acordo, urn contrato sejaestabelecido levando em conta tais questoes. E 0pr6prio Serres quem afi rma que

    "[...]0aumento dos nossos meios racionaisnos leva. numa velocidade dificil de calcu-lar, em direcao a destruicao do mundo quepar urn efeito de retorno bastante recen-te, pode condenar-nos todos juntos, e naomais por localidades, a extincao automatica."(SERRES, 1991, p.24).

    E uma reacao da natureza impondo uma revisaodas nossas politicas e das nossas filosofias,Partindo dessas consideracoes, Serres, comoLatour, opera uma revolucao contra-copernicanaquando coloca a hibridacao no centro de suasanalises. Ele nos convida a voltar as pr6prias coisas(SERRES, 1988, p.178) e nos, com cautela e ja desobreaviso - porque outros ja nos fizerarn esseconvite'' enos conduziram a uma conscienciatranscendental -, perguntamo-nos quais sao ascoisas em questao. Atento, Serres nos adverte que

    "Voltar as proprias coisas [significa voltar] asmultiplicidades misturadas, as dispersoes,tomando-as como tais [... ] Restituir as coisasa totalidade de seus direitos, antes de intervir,Todas as nossas divisocs c os nossos cortes,as nossas diferencas, as cadeias, as series, asseqtiencias, as conseqiiencias, os sistemas,as ordens, as formacoes, as hierarquias earches, sao eleicao, poder, arbitrario, 0rnilagre probabilitario do do historiador-deus,e devem ser dissolvidos, devem ser fundidos,devem ser misturados, comoconjuntosmoveis, no fogo anarquico." (SERRES, 1988,p.178-179).

    Revolucao contra-copernicana operada porSerres: nem 0 sol, nem a terra se encontram nocentro do mundo, mas sirn as coisasontologicamente definidas par sua mistura, suamesticagem (SERRES. 1993. p.47). "Corpo,rmisculosvnervos, sentidos e sensibilidade, alma,cerebra econhecimento, tudo converge para esselugar mestico ..." (SERRES, 1993, p.l7). Frente auma filosofia crftica, marcada pelo ideal depurificacao, Serres afirma uma filosofia mestica,marcada par uma pratica hfbrida. A uma ontologiadualista, dividida entre 0 sol e a terra, Serres propoeuma ontologia monista da mesticagem, 0 lugarmestico nao e, para Serres, urn meio-termo entredois pontos, entre 0 certo e 0 errado, 0 sujeito e aobjeto. Ele e . antes, 0mundo em tome de nos, e urnmeio que ocupa a totalidade do volume no qualvivemos. A filosofia de Serres afirma a inclusao domestico em nosso mundo, mestico que fundamentaas nossas praticas, as nossas ciencias, onossoarnbiente. (SERRES, 1993, p.59).

    o ideal de purificacao, ideal modemo, implicaa exclusao do Ingar mestico, exclusao que deixaescapar a propria hist6ria. Michel Serres (SERRES,1993, p.82) mostra que, quando referido as ciencias,esse ideal implica uma concepcao de conhecimentocientffico que nao se depara com a morte, com aviolencia. Ele toea nesse tema de diversas maneiras.Numa entrevista ao Jornal Le Monde(GUILLEBAUD, 1990, p.186), Serres afmna queHiroshima foi 0 ate inaugural que a fez filosofo; amesma afirrnacao encontramos na entre vistaconcedida a Latour (LATOUR, 1992, p.29). 0 quesignifica dizer que a ciencia ocidental nao se deparacom a morte e assim sendo par que falar deHiroshima? Serres mostra que a historia da razaoocidental encontra seu sentido num princfpio deexclusao: os ideais de pureza e abstracao sao asseus fios condutores. A partir desses ideais a razaose constitui de modo repetitivo sempre se deparandocom os seus a prioris. Segundo 0 autor, "0 Ocidentecomeca com 0 problema do mal e trava contra eleurn dialogo e um combate consubstanciais."

    5 Esse e tarnbem 0 convite da fenomenologia husserliana, mas nesse enfaque, voltar as proprias coisas aponta para "0 pracedimentonecessaria para que se faca a passagem das 'representacoes impr6prias' as ' representacoes pr6prias' determinadas pela intuitividade epela preenchimenta". Trata-se de urn retorno "ao conhecimento em sua doacao intuiti va [ ...J. 0 'retorno aos objetos' nao e assim senaoo retorno aos atos atraves dos quais se tern urn conhecimento das objetos." Par is sa. na fenornenologia, retornar as coisas e retamar itconsciencia transcendental. As coisas nao seconfundem cam as objetos, elas sao ames oscorrelates da consctencia. Aqui voltar aspropriascoisas e urn dos resultados obtidos por urn pratica de purificacao. (Cf. MOURA, 1989, p. 18-25).

    INFORMARE - Cad. Prog. Pos-Grad. Ci, Inf., Rio de Janeiro, v.6, n.l, p.12-20, jan./jun.2000

    17

  • 8/3/2019 o conceito de rede na filosofia mestia

    7/9

    o Conceito de l?ede na Filosofia Mestlfa(SERRES. 1993. p.82). A razao kantiana e a esserespeito exemplar. Nesse percurso, a : morte, 0sofrimento, 0 mal ficamexcluidos em nome de umaatitude critica que tern como alva depurar ascondicoes de possibilidades- condicoes a priori - doconhecimento. 0 ego transcendental de Kant naoconhece 0 sofrimento, A ciencia ocidental seconstitui, ela tambem, a partir da exclusao desselugar mestico, hfbrido de que falavamos acima. Ascategorias fundamentais dessa ciencia advem datentativa de exclusao do mal, da morte, dosofrimento, sao categorias tais como pureza, rigor,objetividade. 0 sentido geral de uma filosofia critic aconsiste nesse expurgo, na busca de uma constante,uma invariancia que possa se repetir em todo 0lugar a despeito de qualquer singularidade, qualquerdor ou sofr imento. Quais as conseqnencias dessaexclusao? Certamente ela faz surgir urn mundolateralizado: direita ou esquerda, terra ou sol, sujeitoou objeto, natureza au sociedade. E. mais do queisso, eia faz surgir a violencia, a guerra. adiscriminacao em nome de uma verdade tomadacomo unica, como homogenea: 0 imperio daverdade. Hiroshima e para Serres (LATOUR, 1992;SERRES, 1993; GUILLEBAUD, 1990) urn dosefeitos da expansao do imperio do pensamentocrftico. Ao falar de sua formacao intelectual, Serresdiz que cresceu no meio de muitas guerras, guerraEspanhola, Hiroshima, Vietna, Argelia, Numaguerra, conclui ele, ha sofrimentos de ambos oslados, h:i mortes de ambos os lados. Aqui toda apotencia da sua reflexao filos6fica e lancada sobreuma analise muito aguda acerca dos dualismos quecaracterizam 0 pensarnenta critico e da violenciaque tais dualismos incitam, Para falar dessalateralizacao do mundo Serres eonta aseguinteest6ria:

    "Urn dia, ern Veneza, entranda na igreja dosEslavonios, vi sao Jorge matando a dragao.Aquila me pareceu simbolizar 0 que eusempre conhecera. Sao Jorge estava de umlado, e as dragoes do outro, simetricos eabsolutamente semelhantes. Sob a peitoraldo dragao, sob 0 ventre do cavalo, havia osmembros espalhado s de urn homem e deuma rnulher. Essa era a minha geracao;a esquerda e a direita, estavam sao Jorge e 0dragao , formando um tipo de areo.

    INFORMARE -Cad. Prog. Pes-Grad. Ci. Inf., Rio de Janeiro. v.6, n.l , p.12-20, jan./jun.2000

    Foi esta dualidade que nunca pude aceitar.Essa teologia de Deus e de Diabo." (SERRESapud GUllLEBAUD, 1990, p.187).

    Toda a sua filosofia e marcada por essaconclusao e a afi rmacao da rede, urn Iugar mestico,adquire seu pleno sentido frente a ela, uma filosofiacujo principio nao se encontra na purificacao, masna mest icagem; uma filosofia, portanto, que acolhea diferenca e faz de1a 0 seu objeto; uma filosofia,enfim, cujo lema nao e a violencia, mas sim atolerancia. "Como adquirir tolerancia e nao-violencia, senao colocando-se no ponto de vista dooutro, saber do outro lado?" (SERRES, 1993, p.21).

    A filosofia da ciencia e , para Serres, umareflexao sobre as relacoes da ciencia com a violencia,"Desde que naseeu a literatura larnenta a miseria eo sofrimento, A ciencia ainda nlio aprendeu alinguagem desse soluco." (SERRES, 1993, p.84).Ao contrario,

    "[ . ..} nada na ciencia ajuda, de fato, a supor-tar a finitude, nem a pensar a morte dascriancas, a injustica que atinge os inocentes,o triunfo permanente dos violentos, a fe-licidade fugidia do amor nem a estranhezado sofrimento [ ... ]" (SERRES, 1993, p.83).

    A ciencia marcada pelo pensamento critico, pelosdualismos, por principios de exclusao e ideais depurificacao incita a violencia e 0 terror (LATOUR,1992, p.92). Uma crise legftima das ciencias consisteprecisamente em resgatar a encontro da cienciacorn 0 mal,' com 0 sofrimento e a dar, em ultimainstancia, 0 encontro da ciencia com 0 barulho deHiroshima. Esse e 0 sentido que Serres atribui aofogo: fazer arder a ordem, a lei, a invarianciafazendo-as descer ate "os turbilh5es fluidos"(SERRES, 1993, p.68) que defmem 0 real. ate afinitude do homern. Nao se trata de afirmar urnirracionalismo, mas ao contrario, trata-se de afirmaruma razao instruida com a mest icagem, Isso significadizer uma razao tolerante, que acolhe a diferenca,que engendra verdades locais, provis6rias etemporarias, Ao eu penso do cogito, Serres misturao eu sofra, e conclui que "nao hi razao nemproporcao sem mistura." (SERRES, 1993, p.140).No enfoque do fi16sofo, Hiroshima e 0 testemunhode que podemos morrer dos efeitos dos produtos da

  • 8/3/2019 o conceito de rede na filosofia mestia

    8/9

    o Conceito de l?ede na Filosofia Mestiraraziio. E mais do que isso, Hiroshima 6 0testemunhoda morte, da finitude do homem no coracao daciencia: "atomo e bomba, qufrnica e ambiente,genetic a e bioetica." (SERRES, 1991, p.lOS). E 0fracasso dos dualismos que op6em razao e objcto.Hiroshima nos apresenta urn alerta. uma exigenciade prudencia da razao e dos seus dualisrnos.

    Partindo dessa analise, Serres nos prop5eentao uma retencao do pensamento crftico e daviolencia que eIe produz. Uma retencao da razaomodema e de seus dualismos. Como conseqilenciadessa retencao, uma verdade nao reina sern partilha,urn modo de conhecer nfio se constitui em iinicasolucao de acesso ao mundo, urn a priori nao serepete homogeneamente sobre todo 0 espaco. Aocontrario, a retencao da razao esposa a diferenca aoacolhe-la e faz da racionalidade urn efeitotemporario, da causalidade uma relaciio reversivel,do tempo e do espaco resultados negociadoslocalmente, da lei urn caso particular de umaontologia de relacoes variaveis, do pensamentocritico urn dos modos de urn pensamento mestico,enfim, a retencao da razao opera uma passagem daviolencia a tolerancia.

    Dos dualismos auma pragmatogonia:consideracoes finais

    Para Latour. Serres apresenta uma genealogiadas coisas cujas consequencias ressoam no dominicdas praticas cicntfficas: "a invencao dos fatos naoe a descoberta das coisas out there, e uma criacaoantropol6gica que redistribui Deus, a vontade, 0amor, 0 6dio, e a justica" (LATOUR, 1992, p.83).Serres faz da ciencia urn ramo do Judiciario quandodefine a cuba como rnultiplicidade onto16gica, 0que significa dizer que urn fato nao existeisoladamente, ele s6 existe a partir da redeheterogenea que 0 sustenta. Na ciencia experimentalde Boyle, 0 vacuo como fato s6 existia na medida

    em que era produzido e sustentado pela bomba dear, peIa Royal Society, pelos colegas de Boyle; umarede e 0 que produz e sustenta urn fato cientffico.Citando Serres, Latour mostra que a palavra coisatern como origem ou raiz a palavra causa, provenienteda area juridica. "Como se os objetos em siexistissem apenas de acordo com os debates deuma assembleia [ ...J . " (SERRES apud LATOUR,1992, p.82). Assim, a sociedade modema nao eaquela que, diferentemente de todas as outras, estalivre das relacoes com a religiao, com as questoespolfticas, enfim com 0 que Serres chamou de mal,sofrimento, morte. Ao contrario, da mesma formaque qualquer outra sociedade, a n ossa tam bemredistribui acusacoes, "substituindo uma causa -judiciaria, coletiva, social- por uma causa - cientffica,nao-social, matter of factual -substituindo Dingpor Thing. " (LATOUR, 1990, p.163). Em todocaso, uma causa que engendra uma serie desubstituicoes, traducoes, desvios,

    AD inves de partir de urn mundo ja divididoentre poles opostos, a filosofia de Serres, retomadapor Latour, coloca em cena as coisas definidasontologicamente par sua multiplicidade e par seuestatuto de causa. A . violencia dos cortes, dasseparacoes, das rupturas, Serres propoe assubstituicoes que definem uma pragmatogonia,isto e, "uma genealogia da troca de propriedadesentre humanos e nao-humanos." (LATOUR, 1994a,p.794).Uma genealogia, .portanto, das coisas, essesseres hfbridos que fundamentam 0 nosso coletivo"e que por seu estatuto de causa redistribuem emultima instancia natureza e sociedade; genealogiaque nao procede por metamorfoses, mutacoes oudialetica, mas antes por substituicocs c desvios. Naperspectiva de Latour, as ciencias nada mais sao doque retardatarias nessa longa serie de substituicoes:os fatos cientificos sao coisas - things - e, do mesmomodo que qualquer outra coisa, em seu estatuto decausa, redefinem a natureza e a sociedade. Poi 0que Boyle fez com 0 vacuo, esse testemunhoarrancado de uma pena de galinha inserida nodispositivo da bomba de ar", Com 0 vacuo, Boyle

    6 Latour util iza a palavra co/euvo para definir a sociedade em termos de uma hibridacao entre humanos e nao-humanos, 0 objetivo ernarcar 0 sentido hfbrido das relacoes sociais compostas nao apenas das relacoes entre os hornens de urn lado e as coisas de outre, maspor conex5es heterogeneas, dfspares da qual fazern parte humanos e nao-humanos. (Cf. LATOUR, 1992, p. 807).7 Sobre a pena de galinha como testernunho da existencia do vacuo (Cf. LATOUR, 1994b, p. 26-).

    INFORMARE - Cad. Prog. Pas-Grad. Ci, Inf., Rio de Janeiro, v.6, n.l , p.12-20, jan./jun.2000

    19

  • 8/3/2019 o conceito de rede na filosofia mestia

    9/9

    almejava 0 fim das guerras civis, questionava 0testemunho dos humanos, propunha, enfim, umasociedade pacificada pela objetividade do fato.

    Em jogo, uma redistribuicao, uma reinvencao danatureza e da sociedade. Tal IS a sentido da cienciacomo rede de atores.

    20 o Conceitode .Redena Filosofia Mestlfa

    AbstractThis essay aims to discuss the concept of network considering the point of view of M. Serres and the pointof view of the anthropology of science and technology proposed by Bruno Latour. The concept of networkis the conducting wire of a philosophy of science - defended by both authors - that defines science as abncolage and as an heterogeneous practice.

    Bibliografia

    BUYDENS, M. Sahara. L 'esthetique de Gilles Deleuze. Paris: Vrin, 1990.eRA WFORD, H. An interview with B. Latour. Baltimore: The John Hopkins University Press, 1993.GUllLEBAUD, J. C. Michel Serres. Fl1osoflas; entrevistas do Le Monde. Sao Paulo: Atica, 1990. p.178-189.LATOUR, B. Jamais fomos modemos. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994b.LATOUR, B. Michel Serres: eclairclssements. Paris: Editions Francois Boutin, 1992.LATOUR, B. Postmodern? No, simply amodem! Steps towards anthropology of science. Studies in Historyand Philosophy of Science, v. 21, p. 145-171, 1990.LATOUR, B. Pragmatonies. A mythical account of how humans and nonhumans swap properties.American Behavioral Scientist, v, 37, n.S, p . 791-806, 1994a.MOURA, c.A.R. Crftka do radio no .fenomenologia. Sao Paulo: Nova StellalEDUSP, 1989.SERRES, M. As ciencias. In: LE GOFF, J. ; NORA, P. HistOn"a: novas abordagens. Rio de Janeiro: FranciscoAlves, 1988. p.160-179.SERRES, M. A comunicacdo. Portugal: Res Editora, Is.d./.SERRES, M. 0contraro natural Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.SERRES, M. Estima. In: GRISONI, D. Pollficas dafilosofia. Lisboa: Ed.Moraes, 1977. p.81-95.SERRES, M. Filosofia mestica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

    INFORMARE - Cad. Prog. Pas-Grad. Ci. InL, Rio de Janeiro, v.6, n.I, p.12-20,jan.ljun.2000