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W á r i o A n d r é M a c h a d o C a b r a l CAUL SCHMITT 0 CONCEITO DO POLÍTICO / TEORIA DO P A R T I S A N Coordenador e Supervisor LUIZ MOREIRA Tradutor GERALDO DE CARVALHO Belo Horizonte 2009

o Conceito Do Político

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  • Wrio Andr Machado Cabral

    CAUL SC H M IT T

    0 CONCEITO DO POLTICO/ TEORIA DO PARTISAN

    Coordenador e SupervisorLUIZ MOREIRA

    Tradutor GERALDO DE CARVALHO

    Belo Horizonte 2009

  • 0 conceito do Poltico (texto de 1932)

    I.l Estatal e poltico

    O conceito de Estado pressupe o conceito do Poltico. Segundo o uso corrente da linguagem, Estado c o status poltico de um povo organizado dentro de uma unidade territorial. Com isso, est dada somente uma perfrr.se, nenhuma definio do conceito de Estado. Aqui, onde se trata da essncia do poltico, tambm no necessria tal definio. Podemos permitir-nos deixar em suspenso o que o Estado em sua essncia, uma mquina ou um organismo, uma pessoa ou uma instituio, uma sociedade ou uma comunidade, uma empresa ou uma coimia, ou talvez ut mesmo urna srie fundamental de processos. Todas estas definies e imagens antecipam por demais em terrnos de interpretao, atribuio de sentido, ilustrao e construo, no podendo, de?;tarte, formar nenhum ponto de partida apropriado para uma exposio simples e elementar. Consoante sua acepo literal e sua apario histrica, Estado uma condio de caractersticas especiais de um povo, mais precisamente a condio competente dado o caso decisivo e, por isso, perante os muitos status individuais e coletivos imaginveis, pura e sim- plesm entevo status. Mais no pode ser dito por agora. Todas as caractersticas de tal representao - status e povo - adquirem seu sentido atravs da caracterstica adicional do poltico e tor- j nam-se incompreensveis quando se compreende mal a essncia do poltico.

  • Encontrar-se- raramente uma clara definio de poltico. Em geral, o termo empregado apenas negativamente como oposiHo a diversos outros conceitos, em antteses como poltica e economia, poltica e moral, poltica e Direito, dentro do Direito, por sua vez, como poltica e Direito Civil1 etc. Por meio dessas contraposies negativas c, na m aioria das vezes, tam bm polmicas, pode-se designar, de acordo com o contexto e a situao concreta, algo claro o suficiente; porm, no ainda

    , nenhuma definio do especfico. No geral, 'poltico equiparado de alguma forma a "estatal ou, pelo menos, relacionado ao Estado2. O Estado aparece ento como algo poltico, mas o

    90 _____ O CONCEITO DO POLTICO

    1 A oposio entre D ireito e poltica confunde-se facilm ente com a oposio entre D ireito Civil e D ireito Pblico, p.ex., BLUNTSCHLI, llgem. S taasrecht I (1868), p. 219: A propriedade um conceito de D ireito privado e no um conceito poltico. O significado poltico dessa anttese ps-se especialm ente em evidncia no caso das d iscusses em 1925 e 1926 acerca da desapropriao do patrim nio das d inastias antigam ente reinantes na A lem anha; com o exemplo, pode-se m encionar a seguinte frase re tirada do d iscurso do deputado D ietrich (sesso do R eichsiag de 2 de dezem bro de 1925, re la t rio 4717): 'Porque som os da o; inio de que no se trata aqui em s.b- soluto de questes de D ireito Civil, e sim to-som ente de questes polticas (m uito bem ! da parte dos dem ocratas e da esquerda).

    2 Tambm em definies dc poltico que utiiizam o conceito de poder como caracterstica decisiva, aparece este po ler geralm ente como poder estatal, p.ex., em Max Weber: am bio por urna parcela do p o der ou influenciaaa.da distribuio do poder, seja entre os Estados, seja dentro do Estado entre grupos de pessoas que ele abrange; ou: o com ando e a influcnciaSo de um a associao poltica, cu se ja: hoje: de um Estado (P oliik nls Baruf, 2a. edio 1926, p. 7); ou (Par - /ament and R egierung im neugeordneten Deittschland. 1918, p. 51): A essncia da poltica , com o freqentem ente se ter que salientar: luta, conquista de aliados e seguidores vo luntrios. H. TR1EPEL (S taatsrecht u n d Poliik, 1927, p. 16) diz: A inda at poucas dcadas atrs, por poltica entendia-se pura e sim plesm ente a te o ra do Estado. (...) Assim , Waitz, por exemplo, qualifica a poltica como discusso cientfica das relaes do Estado considerando tanto o desenvolvimento histrico dos Estados em geral., quanto as condies e necessidades estatais da atualidade. Depois, Triepel critica com bons e sensatos motivos o ponto de vista prelensam ente apoltico e puram ente

  • poltico como algo estatal - pelos vistos um crculo v i c i o s o nada satisfatrio.

    Na literatura jurdica especializada, encontram-se muitas perfrases de poltica deste 'ipo, mas que, na medida em que nao dispem de um sentido polmico-poltico, s podem ser entendidas a partir do interesse prtico-tcnico da deciso jurdica ou adm inistrativa de casos concretos. Obtm, ento, seu s ig n if ic o do fato de que pressupem sem problemas um Estado existente, em cujo ambiente se movimentam. Assim, e.g.. h u m a jurisprudncia e uma literatura sobre o conceito de associao poltica ou de reunio'poltica no Direito das associaes3; ademais, a

    O CONCEITO DO POLTICO (TEXTO DE 1932) ____

    ju rd ico da escola de G erber e Laband, assim como a tentativa em continu-lo no ps-guerra (Kelsen). Porm, Triepcl ainda no reconheceu o sentido puram ente poltico dessa pretenso de uma pureza apoltica, pois persevera r,a equao: poltico = estatal. Na verdade, com o ainda freqentem ente ser m ostrado abaixo, uma forma lpica e especialm ente intensa de fazer poltica apresentar o oponente como poltico e a si mesm o com o apoitice (i.e., aqui: cientfico, justo, objetivo, imparcial etc.).

    3 Segundo o art. 3 1 da Lei das A ssociaes do Reich de 19 de abril de 1908, um a associao poltica toaa associao que objetiva influir sobre questes polticas. Na prtica, as questes polticas so coinum ente qualificadas de questes relacionadas m anuteno ou m odificao da organizao estatal ou inlucnciao das funes do Estado ou das entidades de D ireito Pblico a ele incorporadas. N estes e em sem elhantes circunlquios, questes polticas, estatais e pblicas se confundem . At 1906 (sentena do tribunal superio r de 12 de fevereiro de 1906, JOHOW, volume 31, C . 32-34), a prtica na Prssia tratava tam bm , sob o decreto de 13 de maro de 18:50 (GcsS., p. 277), toda a atividade de associaes eclesisticas ou religiosas sem a qualidade de corporao, inc'usive as aulas de edificao religiosa, com o influncia sobre questes pblicas ou discusso de tais questes; sobre o desenvolvim ento dessa prtica, cf. H. G EFFC K EN , ffentliche Angelegenheit, po litischer G egenstand und politischer Verein nach preuischem Recht, Festschrift fr E. Friedberg, 1()08, p. 287 segs. No reconhecim ento judicial da.no-estatalidadede questes religiosas cu lturais, socir. s e outras, reside um indcio muito im portante, at mesm o decisivo, do fato de fue, aqui, determ inados dom nios so subtrados, com o esferas de influncia e interesse dc d eterm inados grupos e organizaes, ao Estado e a seu poder. No m odo

  • prtica, do Direito administrativo francs tentou estabelecer um conceito de motivo poltico (mobilepolitique) para que, com sua ajuda, atos de governo polticos (actes de gouvernement) fossem diferenciados de atos adm inistrativos apolticos e fossem subtrados ao controle judicial adm inistrativo4.

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    de se expressar do sculo XIX , isso significa: a sociedade ope-se autonom am ente ao E stado. Se, ento, a leoria do Estado, a cincia ju rd ica, a linguagem dom inante insistem no fato de que poltico = estatal, tem -se como resultado a concluso (logicam ente impossvel, mas na prtica aparentem ente inevitvel) de que todo o no-estacai, logo, todo o social, seria, por conseguinte, apoltico! Em parte, issc um erro ingnuo, que contm urna srie de ilustraes especialm ente explcitas sobre a teoria de V. Pareto sobre os resduos e derivaes (Trait de Sociologiegenerate, edio francesa de 1917 e 1919,1, p. 450 seg., II, p. 785 seg.); mas, em parte, ligado quase que sem distino com aquele erro, um meio ttico muito til na prtica e altam ente eficaz na luta poltica interna com o Estado existente e seu tipo de ordem.

    4 JFZE, Les princ.ipes gnraux du droit adm inistrati/, I, 3a edio 1925, p. 392,, para quem toda a distino apenas um a questo de "opportunit po litique. Ademais: R. ALIBERT, Le controle juris- dic.tionnel de Vadm instration , Paris, 1926, p. 70 segs. M ais bibliografia em SM END, D ie politische Gewalt im Verfassungssraat und das Problem der Staatsform , Festschrift fr Kahl, Tbingen, 1923, p. 16; alm disso, Verfassung und Verfassungsrecht, p. 103, 133, 154 e o relatrio nas publicaes do Institut International de D roit Public, 1930; a tam bm os relatrios de R. LAHN e P. DUEZ. Do relatrio de D U EZ (p. 11) retiro uma definio de acte de gouvernem ent especificam ente poltico, especialm ente interessante para o critrio de poltico aqui estabelecido (orientao am igo-inim igo) e estabelecida por DUFOUR ( l epoque de g ra n d constructeur de la thorie des actes de gouvernem ent"), Trait de D roit administratif appliqu, vol. V, p. 128: ce qui fa it I 'acte de gouvernem ent, e est le but que se p ro p o se I'auteur. L a c te qui a p o u r but la defense de la socict p rise en elle-m m e ou personific.e dans le gouvernem ent. contre ses ennem is intrieurs ou extrieurs, avous ou c.achs, p resen ts ou . venir, voil Vacte de gouvernem ent. A diferenciao entre actes de gouvernem ent" e actes de sim ple adm inistration" obteve mais um significado quando, cm 1851, na assem blia nacional lrancesa foi discutida a responsabilidade parlam entar do presidente da repblica e este pretendia, ele prprio, assum ir a responsabilidade verdadeiram ente poltica , i.e., aquela pelos atos de governo, cf. ESM EIN-NEZARD, D roit constitu-

  • O CONCEITO DO POLTICO (TEXTO DE < )J1) 23

    Tais definies, vindo ao encontro das necessidades da prtica jurdica, procuram, no fundo, apenas um pretexto prtico para delimitar os diversos fatos que surgem dentro de um Estado em sua prtica jurdica; no tm por objetivo nenhuma definio geral de poltico em termos absolutos. Por isso, lhes basta sua referncia ao Estado ou ao estatal, na medida em que o Estado e as entidades estatais podem ser pressupostos como algo natural e slido. Tambm as dpfiuies conceituais gerais de poltico, que no contm nada alm de uma expanso da referncia ou uma remisso ao Estado, so compreensveis e, nisso, tambm cientificamente legitimadas, na medida em que o Estado seja realmente uma grandeza clara, inequivocamente determ inada e se defronte com os grupes e questes no-esta- tais, por isso mesmo apolticos, enquanto o Estado detenha o monoplio do poltico. Esse era o caso onde o Estado ou (como no sculo XVIII) no reconhecia sociedade alguma como adversrio ou, pelo menos (como na Alemanha durante o sculo XIX e at o sculo XX adentro), se encontrava como poder estvel e distinguvel acima da sociedade.

    Em contrapartida, a equao estatal - poltico torna-se incorreta e enganosa na mesma m edida em que o Estado e a socie-

    lionnel, 1" edio, I, p. 234. Sem elhantes diferenciaes na discusso dos poderes de um m inistrio dos negcios segundo o art. 59 2 da constituio prussiana por ocasio da questo se o m inistrio dos negcios poderia realizar apenas os negcios correntes no sentido de negcios polticos; cf. ST1ER-SOMLO, Arch. ff. R , vol. 9 (1925), p. 233; L. W aldecker, Kommentar zu r Pre ti. Verfassung, 2a edio 1928, p. 167, c a deciso do tribunal do Estado para o Reich alem o de 21 de novembro de 1925 (RG Z. 112, anexo, p. 5). M as aqui se renuncia, finalm ente, a um a diferenciao entre negcios correntes (apolticos) e outros (polticos). Sobre a contraposio negcios correntes (= adm inistrao) e poltica se baseia o estudo de A. SCHFFLE, ber den wissenschaftlichen B eg r iff der Politik, Zeitschr. f. d. ges. Siaats'.vissenschaft, vol. 53 (1897); Karl M A N N H EIM , Ideologie und Utopie, Bonn 1929, p. 71 seg. tomou para si esta contraposio como pont.o de partida orientador. De sem elhante tipo so diferenciaes como: a lei (ou o Direito) poltica consolidada, a poltica lei (ou Direito) futura, um a c esttica, a outra dinm ica ele.

  • prlica do Direito administrativo francs tentou estabelecer um conceito de motivo poltico {mobilepolitique) para que, com sua ajuda, atos de governo polticos (actes de gouvernement) fossem diferenciados de atos administrativos apolticos e fossem subtrados ao controle judicial adm inistrativo4.

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    dc se expressar do sculo XIX, isso .significa: a sociedade ope-seautonom am ente ao E stado. Sc, ento, a teoria do Estado, a cinciaju rd ica, a linguagem dom inante insistem no fato de que poltico = estatal, tem -se como resultado a concluso (logicam ente impossvel, mas na prtica aparentem ente inevitvel) de que todo o no-estatal, logo, todo o social, seria, por conseguinte, apoltico! Em parte, isso um erro ingnuo, que contm, urna srie de ilustraes especialm ente explcitas sobre a teoria de V. Pareto sobre os resduos e derivaes (Trait de Sociologia gnrale. edio francesa de 1917 e 1919,1, p. 450 seg., II, p. 785 seg.); mas, em parte, ligado quase que sem distino coin aquele erro, um meio ttico muito til na prlica e altamente eficaz na luta poltica interna com o Estado existente e seu tipo de ordem.

    4 j f Z E , Les principes gnraux du droit adm inistra!if, I, 3" edio 1925, p. 392, para quem toda a distino upenas um a questo dc opportun it po litique. Ademais: R. ALIBliRT, /,

  • Tais definies, vindo ao encontro das necessidades da prtica jurdica, procuram, no fundo, apenas um pretexto prtico para delimitar os diversos fatos que surgem dentro de um Estado em sua prtica jurdica; no tm por objetivo nenhuma definio geral de poltico em termos absolutos. Por isso, lhes basta sua referncia ao Estado ou ao estatal, na medida ein que o Estado e as entidades estatais podem ser pressupostos como algo natural e slido. Tambm as definies conceituais gerais de poltico, que no contm nada alm de uma expanso da referncia oa um a remisso ao Estado, sso compreensveis e, nisso, tam bm cientificamente legitimadas, na medida em que o Estado seja realmente uma grandeza clara, inequivocamente determ inada e se defronte com os grupos e questes no-esta- ta.is, por isso mesmo apolticos, enquanto o Estado detenha o monoplio do poltico. Esse era o caso onde o Estado ou (como no sculo XVII)) no reconhecia sociedade alguma como adversrio ou, pelo menos (como na Alemanha durante o sculo XIX e at o sculo XX adentro), se encontrava como poder estvel e distinguvel acima da sociedade.

    Em contrapartida, a equao estatal = poltico torna-se incorreta e enganosa na mesma medida em que o Estado e a socie

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    tionnel, 7 edio, I, p. 234. Sem elhantes diferenciaes na discusso dos poderes de um m inistrio dos negcios segundo o art. 59 2 da constituio prussiana por ocasio da questo se o m inistrio dos negcios poderia realizar apenas os negcios correntes no sentido dc negcios polticos; cf. STIER-SOM LO, Arch. ff. R, vol. 9 (1925), p. 233; L. W aldecker, Kommentar zur Preit. Verfassung, 2a edio 1928, p. 167, c a deciso do tribunal do Estado para o Reich alem o de 21 de novem bro de 1925 (RG Z. 112, anexo, p. 5). Mas aqui se renuncia, finalm ente, a um a diferenciao entre negcios correntes (apolticos) c outros (polticos). Sobre a contraposio negcios correntes (= adm inistrao) e poltica se baseia o estudo de A. SCHFFLE, ber den w issenschaftlichen B e g r iff der Politik, Zeitschr. f. d. ges. btaats 'v issenschaft, vol. 53 (1897); Karl M A N N H EIM , Ideologie und Utopie, Bonn 1929, p. 71 seg. tomou para si esta contraposio como ponto dc partida orientador De sem elhante tipo so diferenciaes corno: a lei (ou o Direito) poltica conso idada, a poltica lei (ou Direito) futura, um a esttica, a outra dinm ica etc.

  • dade m utuamente se interpenetram , todas as questes at ento estatais se tornam sociais e, inversamente, todas as questes at agora apenas sociais se transform am em estatais, como ocorre necessariamente em uma coletividade democraticamente organizada. Assim, as reas at ento neutras - religio, cultura,

    * educao, economia - cessam de ser neutras no sentido de no-estatal e no-poltico. Como polmico conceito contrrio a tais neutralizaes e despolitizaes de importantes domnios surge o Estado total da identidade entre Estado e sociedade, Estado que nc se desinteressa por nenhum a rea e que abrange, potencialmente, qualquer rea. Nele. por conseguinte, tudo , pelo menos enquanto possibilidade, poltico e a referncia ao Estado no est mais em condies de fundam entar uma caracterstica especfica de diferenciao do poltico.

    \ evoluo va' desde o Estado absolutista do sculo XVIII, passando pelo Estado neutro (no-intervencionista) do sculo XIX, at o Estado total do scnlo XX (cf. Cari Schmitt, O Guardio da Constituio, Belo Horizonte: Del Rcy, 2007. p. 115- 117). A democracia tem que suprim ir todas as diferenciaes e despolitizaes tpicas do liberal sculo XIX e, com a oposio: Estado - sociedade (= poltico contra social), tambm eliminar seus confrontos e separaes correspondentes situao do sculo XIX, ou seja, o seguinte:

    religioso (confessional) como anttese de poltico

    c u ltu ra l............................ como anttese de poltico

    econm ico .......................como anttese de poltico

    ju r d ic o ............................ como anttese de poltico

    c ien tfico ..........................como anttese de poltico

    e muitas outras antteses inteiramente polmicas e, por isso, tambm elas mesmas novamente polticas, isto foi cedo reconhecido pelos mais profundos pensadores do sculo XIX. Nas consideraes sobre a Histria Mundial de Jacob Burckhardt (de aproximadamente por volta do perodo de 1870), se encontram as seguintes frases sobre a democracia, i.e., uma concepo de mundo formada da confluncia de mil fontes variadas e altarnen-

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  • te diversa segundo os nveis de seus partidrios, mas a qual conseqente em um fato: conquanto o poder do Estado sobre o indivduo nunca lhe possa ser grande o suficiente, de modo que ela confunda os limites entre Estado e sociedade, ela exige do Estado tudo o que a sociedade previsivelmente no far, mas pretende conservar tudo de forma continuamente discutvel e mvel e, por fim, reivindica para algumas classes um direito especial a trabalho e subsistncia. Burckhardt bem observou a contradio interna entre democracia e Estado constitucional liberai: Por um lado, o Estado deve ser, assim, a realizao e a expresso da ideia cultural de cada partida e, por outro, apenas a roupagem visvel da vida burguesa, mas apenas onipotente adhoc\ Ele deve poder fa ze r tudo que possvel, mas no deve ter a perm isso para mais nada, ou seja, rio lhe permitido defender sua forma existente perante nenhuma crise - e, ao fim, deseja-se, sobretudo, participar novamente do exerccio de seu poder. Desta maneira, o regime estatal torna-se cada vez mais discutvel e a abrangncia de poder cada sz maior (edio Krner, p. 133, 135, 197),

    Prim eiram ente, a teoria estatal alem ainda perseverou (sob a repercusso do sistema filosfico-estatal de Hegel) no fato de que o Estado seria qualitativam ente distinto e algo superior perante a sociedade. Um Estado situado acima da sociedade podia ser denom inado universal, mas no total no sentido hodierno, ou seja, a negao polmica do Estado neutro (perante a cultura e a economia), para o qual principalmente a economia e seu Direito eram consideradas como algo apol- tico eo ipso. Porm, aps 1848, a diversidade qualitativa entre Estado e sociedade, na qual ainda se fixam Lorenz von Stein e R udolf Gneist, perde sua antiga clareza. A evoluo da doutrina estatal alem, cujas linhas gerais esto apresentadas em meu tratado Hugo Preufi, sein S taa tsbegriff und seine Stellung in der deutschen Staatslehre (Hugo PreuB, seu conceito de Estado e sua posio na doutrina estatal alem, Tbingen, 1930), segue sob vrias restries, ressalvas e compromissos, por fim, o desenvolvim ento histrico at a identidade democrtica entre Estado e sociedade.

    O CONCEITO DO POLTICO (TEXTO DE 1 9 3 2 ) _______ 25

  • Pode-se ver em A. Haenel um interessante estgio interm edirio nacional-liberal desse percurso; ele chama (em seus Es- .tudos sobre o Direito Pblico Alemo II, 1888, p. 219 e Direito Pblico Alemo I, 1892, p. 110) de um erro evidente generalizar o conceito de Estado para convert-lo em um conceito da sociedade hum ana em geral. Haenel v no Estado urna organizao social de tipo especial, que se junta s outras organizaes sociais, eievando-se porm acima destas e as reunindo, e cujo objeiivo comum, embora universal, o apenas na tarefa especial em delimitar e ordenar foras volitivas socialmente eficazes, i.e., na funo especfica do Direito. Haenel tambm qualifica expressamente de incorreta a opinio de que o Estado teria, ao menos potencialm ente , todos os objetivos sociais da humanidade tam bm como seu fim. Portanto, embora o Estado seja para ele universal, no em absoluto total. O passo decisivo reside na teoria cooperativa de Gierke (o primeiro volume de seu Direito Cooperativo Alemo surgiu em 1868), pois concebe o Estado como um a cooperativa essencialm erte igual s outras associaes. Embora, alm dos elementos cooperativos, pertenam tambm ao Estado elementos de poder, sendo acentuados ora mais intensamente, ora mais fracamente, foram impreter- veis as conseqncias democrticas, j que se tratava de urna teoria cooperativa e no de uma teoria de poder do Eslado. Na Alemanha, essas conseqncias eram tiradas por Hugo PreuB e K. W olzendorff, enquanto, na Inglaterra, conduziram a teorias pluralistas (a respeito^vide mais frente).

    A doutrina de Rudolf Smend sobre a integrao do Estado me parece, ressalvada a hiptese de reconsiderao ulterior, corresponder a uma situao poltica, na qual a sociedade no mais integrada dentro de um Estado existente (como a burguesia alem dentro do Estado monrquico do sculo XIX), e sim onde a sociedade deve se auto-integrar para constituir o Estado. O fato de que esta situao requer o Estado total, expresso da forma mais ntida na observao de Smend (Verfassung und Verfassungsrecht [Constituio e Direito Constitucional] 1928, p. 97, nota 2) a respeito de um a frase da D issertation iiber M ontesquieu und Hegel (Tese sobre Montesquieu e Hegel) de

    ____ _______________ ____ O CONCEITO DO POLTICO

  • H. Trescher (1918), onde se diz da doutrina da diviso de poderes de Hegel que ela significaria a interpenetrao mais viva de todas as esferas sociais pelo Estado para o fim geral de ganhar todas as foras vitais do corpo social*para o todo estatal. Alm disso, observa Smend que este seria precisamente o conceito de integrao em seu livro sobre constituio. Na realidade, o Estado total que no mais conhece nada absolutamente apol- tico, ele quem tem que eliminar as despolitizaes do sculo XIX e pr fim, sobretudo, ao axioma da economia livre do Estado (apoltica) e do Estado livre da economia.

    I .2 A diferenciao entre amigo e inimigo como critrio do poltico

    Uma definio do conceito do poltico s pode ser obtida pela identificao e verificao das categorias especificamente polticas. Isto porque o poltico tem suas prprias categorias, as quais se tornam peculiarmente ativas perante os diversos dom nios relativamente autnomos do pensamento e da ao humanos, especialmente o moral, o esttico e o econmico. Por isso, o poltico tem que residir em suas prprias diferenciaes extremas, s quais se pode atribuir toda a ao poltica em seu sentido especfico. Suponhamos que no mbito do moral as extremas diferenciaes sejam bom e mau; no esttico, belo e feio; no econmico, til e prejudicial ou, por exemplo, rentvel e no-rentvel. A questo , ento, se tambm existe - e em que consiste uma diferenciao especial como critrio simples de poltico, a qual, embora no idntica e anloga quelas outras diferenciaes, seja independente destas, autnoma e, como tal, explcita sem mais dificuldades.

    A diferenciao especificamente poltica, qual podem ser relacionadas as aes e os motivos polticos, a diferenciao' entre

  • O CONCEITO DO POLTICO

    critrios, ela corresponde para o poltico aos critrios relativamente autnomos dc outras antteses: bom e mau no moral; belo e feio no esttico etc. Em todo caso, ela autnoma, r.o no sentido de um novo mbito prprio, e sim no modo de que nem se fundamenta em uma daquelas outras antteses ou em vrias delas, nem pode ser relacionada a elas. Se a anttese entre bom e mau no idntica sem dificuldades e de forma simples quela entre belo e feio ou entre til e prejudicial e no lhe pode ser diretamente relacionada, ento a anttese entre amigo e inimigo pode ser ainda menos confundida ou mesclada com urna daquelas outras antteses. A diferenciao entre amigo e inimigo tem o propsito de caracterizar o extremo grau de intensidade de uma unio ou separao, de uma associao ou desassociao, podendo existir na teoria e na prtica, sem que, simultaneamente, tenham que ser empregadas todas aquelas diferenciaes morais, estticas, econmicas ou outras. O inimigo poltico no precisa ser moralmente mau, no precisa ser esteticamente feio; ele no tem qu.e se apresentar como concorrente econmico e, talvez, pode at mesmo parecer vantajoso fazer negcios com ele. Ele precisamente o outro, o desconhecido e, para sua essncia, basta que ele seja, em um sentido especialmente intenso, existencialmente algo diferente e desconhecido, de modo que, em caso extremo, sejam possveis conflitos com ele, os quais no podem ser decididos nem atravs de urna normalizao geral empreendida antecipadamente, nem atravs da sentena de um terceiro no envolvido e, destarte, imparcial.

    A possibilidade de urn reconhecimento e entendimento corretos e, com isso, tambm o poder de voz ativa e de julgamento, est aqui dada apenas por meio da participao e colaborao existenciais. O caso de conflito extremo s pode ser resolvido pelos prprios envolvidos entre si; isto , cada um deles s pode decidir ele prprio se o carter diferente do desconhecido significa, no existente caso concreto de conflito, a negao do prprio tipo de existncia e, por isso, se ser repelido ou combatido a fim de resguardar o tipo de vida prprio e ntico. Na realidade psicolgica, o inimigo facilmente tratado como mau e feio, pois toda diferenciao, na maioria das vezes, naturalmente, a

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    poltica como a diferenciao e o agrupamento mais fortes e mais intensos, toma por fundamento as outras diferenciaes valorizveis. Isto em nada muda na autonomia de tais contraposies. Por conseguinte, tambm vlido o inverso: o que moralmente mau, esteticamente feio ou economicamente prejudicial, no precisa ser inimigo por isso; o que moralmente bom, esteticamente belo e economicamente til, ainda no se converte em amigo no sentido especfico, i.e., poltico da palavra. A ntica objetividade e autonomia do poltico j se apresentam nesta possibilidade de separar de outras diferenciaes tal contraposio especfica como aquela entre amigo e inimigo e de conceb-la como algo autnomo.

    1.3 Guerra como manifestao da inimizadeOs conceitos de amigo e inimigo devem ser tomados em seu

    sentido concreto e existencial, e no como metforas ou smbolos, no misturados ou enfraquecidos por noes econmicas, morais e outras, e menos ainda em um sentido privado-indi- vidualista e psicologicamente como expresso de sentimentos e tendncias privadas. No constituem antteses normativas nem puramente espirituais. Em seu tb ico dilema entre esprito e economia (a ser tratado com mais pormenores no item 1.8 a seguir), o liberalismo tentou reduzir o inimigo, pelo lado comercial, a um concorrente e pelo lado espiritual, a um adversrio nas discusses. Todavia, no mbito do econmico nao h inimigos, apenas concorrentes, enquanto em um mundo completamente moralizado fe eticizado talvez apenas adversrios na discusso. Mas sc considerado reprovvel ou no e, talvez, se encontrado um resto atvico dos tempos brbaros no fato de que os povos continuam a se agrupar segundo os critrios de amigo e inimigo, ou se esperado que a diferenciao desaparea um dia da terra, se talvez bom e correto fingir, por razes pedaggicas, que inimigos absolutamente no mais existem, nada disso nos interessa aqui. Este estudo no trata de lices e normati- vidades, e sim da realidade ntica e da real possibilidade des

  • sa diferenciao. Pode-se compartilhar daquelas esperanas e pretenses pedaggicas ou no; por sensatez, no se pode negar que os povos se agrupam conforme a anttese de amigo e inimigo e que esta oposio ainda hoje existe como real possibilidade na realidade e para cada povo politicamente existente.

    Assim, inimigo no o concorrente ou o adversrio em geral. Tampouco inimigo o adversrio privado a quem se odeia por sentimentos de antipatia. Inimigo apenas um conjunto de pessoas em combate ao menos eventualmente, i.e.. segundo a possibifdade real e que se defronta com um conjunto idntico. Inimigo somente o inimigo pblico , pois tudo o que se refere a um conjunto semelhante de pessoas, especialmente a todo u.m povo, se torna, por isso, pblico. Inimigo hostis, no inimicus em sentido amplo; polemios, no ecktros5. A lngua alem, assim como outras lnguas, no diferencia entre o inimigo' privado e o poltico, de modo que se fazem possveis muitos equvocos e falsificaes. O trecho muito citado amai os vossos inimigos (Mt 5,44; Lc 6,27) significa diligite inimicos vestros, agapate tous echtrous hymori, e no: diligite hostes vestros', no se fala do inimigo poltico. Mesmo na guerra milenar entre o Cristianismo e o Islamismo, nunca ocorreu a um

    22____ O CONCEITO DO POjl O

    5 Hm PLATO, Politea, livro V, cap. X V I, p. 470, a oposio entre polem ios e ec.htros est intensam ente acentuada, mas ligada outra oposio entre polem ios (guerra) e stasis (tum ulto, levante, rebeo, guerra civil). Para Plato, somente a guerra entre helenos e brbaros (que so inim igos por natureza) realm ente guerra, enquanto, em contrapartida, as lutas entre helenos so staseis (traduzido por O tto Apelt, na tiaduo da biblioteca de filosofia, vol. 80, p. 208, como discrdia). Aqui eficaz o pensam ento de que um povo no poderia fazer guerra centra si mesmo e um a "guerra civil significaria to- somente autodilaceram ento, e no a form ao de um novo Estado ou mesmo de um povo. Para o conceito de hostis, geralm ente citado o trecho da D igesta de Pompnio 50, 16, 118. A definio mais clara encontrada com outras rem isses em FORCELLINI, Lexicon totius Latinatis III, 320 e 511: Hostis is est cum quo publice bellum habem us (...) in quo ah inim ico differt, qui est is, quocum habem us priva ta odia. D istingui edam sic possunt, ut inim icus sit qui nos odit; hostis qui oppugnat.

  • O CONCEITO DO POLTICO (TEXTO DE 1932) 31

    cristo, por amor aos sarracenos ou aos turcos, ter que entregar a Europa ao Islamismo, em vez de defend-la. No preciso odiar pessoalmente o inimigo no sentido poltico e s tem sentido amar seu inimigo, i.e., seu adversrio, na esfera privada. Aquela passagem bblica no diz respeito contraposio poltica, assim como, por exemplo, no tem a pretenso de suprimir as oposies entre bom e mau ou belo e feio. Sobretudo, ela no significa que se deve amar os inimigos de seu povo e apoi-los contra seu prprio povo.

    A contraposio poltica a contraposio mais intensa e extrema, e tocla dicotomia concreta to mais poltica quanto mais ela se aproxima do ponto extremo, o agrupamento do tipo amigo-inimigo. Dentro do Estado corno unidade poltica organizada, a qual, na qualidade de totalidade, toma para si a deciso com relao a amigo-inimigo, e, ademais, juntamente com as decises primariamente polticas e sob a proteo da deciso tomada, surgem numerosos conceitos secundrios de poltico. Primeiramente, com a ajuda da equiparao entre poltico e estatal tratada acima no item 1.1. Esta faz com que, por exemplo, se oponha uma atitude poltico-estata! poltico-partidria, que se possa falar de poltica religiosa, poltica escolar, poltica comunal, poltica social etc. do prprio Estado. Porm, tambm aqui, para o conceito do poltico permanecem sempre constitutivos urna contraposio e um antagonismo dentro do Estado, sendo estes, todavia, relativos em virtude da existncia da unidade dc Estado que abrange todas as contraposies6. Por fim, desenvolvem-se, ainda mais, espcies de poltica enfraquecidas, desfiguradas at atingirem o parasitrio e caricaturesco, nas quais s restou do agrupamento original amigo-inimigo algum rnomento antagonista que se manifesta em tticas e pr

    6 Assim , passou a existir um a poltica social s a partir do momento em que um a classe politicam ente respeitvel reclam ou suas exigncias sociais, a assistncia social dispensada em tem pos antigos aos pobres e miserveis no era concebida com o problem a poltico-social e tam pouco possua esse nome. Da m esm a form a, havia um a poltica eclesistica som ente onde existia um a igreja como adversrio politicamente respeitvel.

  • ticas de todo ipo, em concorrncias e intrigas, qualificando de poltica os mais singulares negcios e manipulaes. Mas o fato de que, na referncia a uma dicotomia concreta est contida a essncia das relaes polticas, expresso pelo uso corrente da linguagem mesmo onde a conscincia do caso de emergncia totalmente se perdeu.

    Isso se faz visvel quotidianamente em dois exemplos que podem ,e r iconstatados sem mais problemas. E m p r im e ir o lu g a r , todas as representaes, palavras e conceitos polticos possuem um sentido p o le m ic o ', eles tm. em vista uma divergncia concreta, esto vinculados a uma situao concreta, cuja ltima conseqncia constitui um agrupamento do tipo amigo-inimigo (que se expressa em guerra ou revoluo) e s 3 convertem em abstraes vazias e fantsticas quando desaparece essa situao. Palavras como Estado, repblica7, sociedade, classe, e ademais: soberania, Estado de direito, absolutismo, ditadura, plano, Estado neutro ou total etc. so incompreensveis quando no se sabe quem deve ser, in c o n c r e to , atingido, combatido, negado e refutado com tal palavra8. O carter polmico tambm domina, so-

    ^2____ _ ___ O CONCEITO DO POLTICO

    7 MAQUIAVEL, p.ex., cham a de repblica todos os Estados que no so m onarquias; assim , ele determ inou at hoje tal definio. R ichard Thoma define a dem ocracia como Estado sem privilgios, atravs do que todas as no-dem ocracias so explicadas com o Estados com privilgios.

    8 Tambm aqui so possveis num erosos tipos e graus do carter polmico, mas sempre perm anece distinguvel o essencialm ente polm ico das construes polticas sem nticas e conceituais. Q uestes te rm inolgicas tornam -se, assim , questes de alta poltica; um a palavra ou expresso pode ser, sim ultaneam ente, reflexo, sinal, distintivo e arm a de um conflito inimigo. K arl REN N ER, um socialista da Segunda Internacional, chama, p.ex., (em um a pesquisa de grande im portncia cientfica dos Institutos Jurdicos de Direito Privado, Rechtsinstltute des Privatrechis, Tbingen, 1929, p. 97) o aluguel que o inquilino tem que pagar ao proprietrio do imvel, de tributo. A m aioria dos professores de Direito, ju izes e advogados alem es recusariam tal denominao como sendo um a politizao inadm issvel das relaes de Direito privado e um a perturbao da d iscusso puram ente ju r dica, puram ente legal e puram ente cientfica porque, para eles,

  • O CONCEITO DO POLTICO (TEXTO DE 1932)

    bretudo, o uso lingstico corrente da prpria palavra poltico", no importando se o adversrio apresentado como "apoltico (no sentido de desconhecedor do mundo, a quem falta o concreto) ou se, inversamente, se pretende desqualific-lo ou denunci-lo como poltico a fim de se elevar a si mesmo sobre ele como apoltico (no sentido de puramente objetivo, puramente cientfico, puramente moral, puramente jurdico, puramente esttico, puramente econmico, ou com base em semelhantes purezas polmicas). Em segundo lugar, no estilo da polmica intra-estatal quotidiana, poltico empregado hoje, freqentemente, com* o mesmo significado de poltico-partidrio; a inevitvel falta de objetividade de todas as decises polticas,

    a questo est decidida conform e o Direito positivo e reconhecem a deciso poltico-estatal nela existente. Inversam ente: numerosos socialistas da Segunda Internacional valorizam o fato de que os pagam entos a que a Frana arm ada obriga a A lem anha desarm ada, no sejam qualificados de tributos, falando-se apenas de reparaes. O term o reparaes parece ser m ais jurd ico , m ais legal, mais pacfico, menos polm ico e mais apoltico do que tributos. Porm, visto de forma m ais detalhada, o term o reparaes mais intensam ente polmico e, destarte, tam bm poltico, j que esta palavra utiliza politicam ente um ju zo de desvalor ju rd ico e at mesmo moral a fim de, sim ultaneam ente, subm eter o inim igo vencido a urna desqualificao ju rd ica e m oral atravs dos pagam entos im pingidos. Hoje, a questo se m elhor falar em tributos ou reparaes converteu-se na A lem anha no tem a de uma contraposio intra-estatal. Em sculos anteriores, houve uma controvrsia, em certo sentido inversa, entre o im perador alemo (rei da Hungria) e o sulto turco acerca do fato se o que o im perador tinha que pagar ao sulto era penso ou tributo. Aqui o devedor dava im portncia ao fato de que pagava no um tributo, e sim um a penso, enquanto o credor, ao contrrio, que -cria tributo. Naquela poca, ao menos nas relaes entre cristos e turcos, as palavras eram presum ivelm ente mais abertas e mais objetivas, e os conceitos ju rd iccs talvez ainda no haviam se convertido em instrum e.itos ds coao poltica na m esm a m edida que hoje. Contudo, Jean BODIN, que m enciona essa controvrsia (Les six livres de la Republique, 2a edio, 1580, p. 784), acrescenta: em geral, tambm a penso s paga para proteger no de outros inimigos, mas, sobretudo, do prprio protetor e para se resgatar dc uma invaso (pour se rccheter de I ' invasion).

  • 34 O CONCEITO DO POLTICO

    a qual apenas o reflexo da diferenciao amigo-iniinigo imanente a todo comportamento poltico, manifesta-se, assim, nas miserveis formas e horizontes da ocupao poltico-partidria de cargos e da poltica de benefcios; a exigncia, da resultante, por uma despolitizao significa to-somente a superao do poUtico-partidrio etc. A equao: poltico = poltico-partidrio possv-1 quando a idia de uma unidade poltica (do Estado) abrangente e que relativiza todos os partidos de poltica interna e suas divergncias, perde sua fora e. por conseguinte, as contraposies intra-estatais adquirem uma intensidade mais forte do que a contraposio comum de poltica externa contra um outro Estado. Quando, dentro de um Estado, as contraposies poltico-partidrias sc tornarem, por completo, as contraposies polticas por excelncia, estar, ento, alcanadoo supremo grau da seqncia de poltica interna, i.e., so os agrupamentos do tipo amigo-inimigo intra-estatais, no os de polt;ca externa, que so normativos para o conflito armado. A real possibilidade do combate que sempre tem que existir para que se possa falar de poltica, conseqentemente, em semelhante primado da poltica interna, no mais se refere guerra entre unidades organizadas dc povos (Estados ou imprios), e sim guerra civil.

    Isso porque ao conceito de inimigo corresponde a eventualidade de u.m combate, eventualidade esta existente no mbito do real. Com esta palavra se devem abstrair todas as mudanas casuais da tcnica blica e^de armas sujeitas ao desenvolvimento histrico. Guerra um combate armado entre unidades polticas organizadas, enquanto a guerra civil um combate armado no interior de uma unidade organizada (mas que se torna, por isso. problemtica). O essencial no conceito de avma que se trata de uin meio para a morte fsica de pessoas. Da mesma forma como a palavra inimigo, a palavra combate h de ser entendida no sentido de sua originalidade ntica. Ela no significa concorrncia, no o combate puramente intelectual da discusso, no a luta simblica que, por fim, qualquer pessoa sempre executa de algum modo porque toda a vida humana uma. luta e todo ser humane um lutador. Os conceitos de amigo, inimigo e

  • O CONCEITO DO POLTICO (TEXTO DE 1932) 35

    combate adquirem seu sentido real pelo fato de que se referem especialmente real possibilidade de morte fsica e mantm esta referncia. A guerra decorre da inimizade, pois esta a negao onica de um outro ser. A guerra apenas a realizao extrema da inimizade. Ela no precisa ser nada de quotidiano, nada de normal, tampouco precisa ser percebida como algo ideal ou desejvel, tendo, antes, que permanecer existente como possibilidade real, na medida em que o conceito de inimigo conserva seu sentido.

    Assim, no se trata aqui de forma alguma de algo como se a existncia pltica no fosse nada mais que guerra sangrenta e toda ao poltica uma ao militar de combate, como se, ininterruptamente, todo povo fosse constantemente colocado perante outro povo diante da alternativa entre amigo ou inimigo e como se o poli.icamente corieto no pudesse residir no fato de se evitar a guerra. A definio de poltica aqui dada no nem belicista ou militarista, nem imperialista, nem pacifista. E tampouco uma tentativa de se apresentar a guerra vitoriosa ou a revoluo bem sucedida como ideai social, pois a guerra ou a revoluo no so nem algo social' nem ideal9. O prprio combate militar, considerado por si mesmo, no a continuao da poltica com outros meios, como a clebre expresso de

    9 tese de R udolf STAM M LER, de fundam ento ncokantista. de que a com unidade de pessoas de livre vontade seria o ideal social, contraps Erich K A UFM A N N (Das W esendes Vlkerrechts und die clausula rehus sic stantibus, 19! 1, p. 146) a seguinte frase: No a com unidade de pessoas de livre vontade, e sim a guerra vitoriosa que o ideal social: a gutsrra vitoriosa com o o ltim o meio para se atingir aquele objetivo suprem o (Participao do Estado e sua auto- afirm ao na histria mundial). Essa frase adota a noo tipicam ente liberal-neokantista de ideal social, m as para a qual as guerras, m esm o as vitoriosas, so algo totalm ente incom ensurvel ou incom patvel, e acopla isto noo de guerra vitoriosa, natural do mundo da filosofia de HEGEL e R A N K E, na qual, per sua vez, no h ideais sociais. Desse modo, a anttese to m arcante prim eira im presso se separa em duas partes disparatadas e tam pouco pode o enfatism o retrico (ie um contraste concludente encobrir a incoerncia estrutural e sanar a ruptura do pensamento.

  • Clausewitz, geralmente incorretamente citadaIJ, e sim possui, enquanto guerra, seus prprios oontos de vista e suas prprias regras estratgicas e tticas, entre outras, mas que pressupem todas aue a deciso p V.tica acerca de quem inimigo, j existe. Na guei/a, os adversrios se opem geralmente de forma aberta. como tais, normalmente at mesmo caracterizados por um uniforme, no mais apresentando a distino entre amigo e inimigo, pol isso, nenhum problema poltico que o soldado em combate tivesse que solucionar. Nisso se baseia a exatido da frase proferida por um diplomata ingls: o poltico est mais bem treinado para o combate que o soldado, pois o poltico combate sua vida toda, enquanto o soldado s o faz excepcionalmente. De modo nenhum e a guerra objetivo e finalidade, nem contedo da poltica, sendo, antes, o pressuposto sempre existente como real possibilidade, o qual determina de forma singular a ao e o pensamento humanos, provocando, assim, um comportamento especificamente poltico.

    36 ..._____ __ ______ _ ___ O CONCEITO DO POLTICO

    10 CLAUSEW ITZ ( Vom K riege, 3a parte, Berlim , 1834, p. 140) diz: A guerra nada mais que um a continuaSo do trnsito poltico com introm isso de outros m eios, Para ele, a guerra um mero instrumento da poltica. Seguram ente, e!a tam bm o , mas seu significado para o reconhecim ento da essncia da poltica ainda no a sc esgota. Alis, considerando-se de form a mais precisa, em Clausewitz a guerra no , por exemplo, um dentre muitos instrum entos, e sim a ultim a ratio do agrupam ento do tipo am igo-inim igo. A guerra possui sua prpria gram tica (i.e., um a legalidade especial de cunho tcnico- militar), mas a poltica perm anece como seu crebro, a guerra nao possui nenhum a ' lgica prpria, j que s pode obt-la a partir dos conceitos de amigo e inim igo, e cerne de todo o poltico revelado pela frase, p. 141: Se a guerra pertence poltica, ento ela ir assum ir seu carter. To logo a poltica se torne m ais grandiosa e mais poderosa, a guerra tam bm o ser; e isto pode ascender at a altura onde a guerra atinge sua form a absoluta. Tambm num erosas outras oraes com provam o quanto cada ponderao especificam ente po ltica se b ise ia naquelas categorias polticas, especialm ente, p .e x , as exposies sobre a guerras de coalizo e alianas, opus cil., p. 135 segs. e em H. R.OTHFELS. Claus von CLAUSEW ITZ, Politik und Krieg , Berlim, 1920, p. 198, 202.

  • O CONCEITO DO POLTICO (TEXTO DE 1932) 37

    Destarte, o critrio da distino entre amigo e inimigo tampouco significa de modo algum que um determinado povo tenha que ser eternamente amigo ou inimigo de um outro povo determinado, ou que uma neutralidade no possa ser possvel ou politicamente razovel. Mas o conceito de neutralidade, como todo conceito poltico, est subordinado a esse pressuposto ltimo de uma possibilidade real do agrupamento do tipo amigo-inimigo; e se na terra s houvesse neutralidade, com isto terminaria no apenas a guerra, como tambm a prpria neutralidade, da mesma forma como se coloca um fim a toda poltica, inclusive h poltica em se"evitar o comi ate, quando a real possibilidade de combates desaparece no geral. Normativa continua sendo apenas a possibilidade deste caso decisivo, do combate real, e a deciso acerca se este caso est dado ou no.

    O fato de esse caso ocorrer apenas excepcionalmente no elimina seu carter definidor, e sim o fundamenta. Embora as guerras no sejam hoje mais to numerosas ou quotidianas como antigamente, elas aumentaram em imponncia e fora total em propores iguais"Ou talvez mais intensas do que perderam numericamente em freqncia e cotidianidade. Tambm hoje, o caso de guerra ainda e o caso crtico. Pode-se dizer que aqui, como em outros casos, o caso excepcional que tem um significado especialmente decisivo e revelador do cerne das coisas, pois no combatente real que primeiramente se manifesta a extrema conseqncia do agrupamento poltico em amigo inimigo. E a partir desta mais extremada possibilidade que a vida do ser humano adquire sua tenso especificamente poltica.

    Urn mundo no qual a possibilidade de semelhante combate estivesse completamente eliminada e desaparecida, um planeta definitivamente pacificado, seria urn mundo sem a distino entre amigo e inimigo, por conseguinte, um mundo sem poltica.. Poderia haver nele vrias contraposies c contrastes talvez muito interessantes, concorrncias e intrigas de toda espcie; porm, de modo sensato, contraposio alguma, em virtude da qual pudesse se exigir dos seres humanos sacrificarem sua vida e em virtude da qual um ser humano fosse autorizado a derra-

  • O CONCEITO DO POLTICO

    mar sangue e matar outros seres humanos. Tambm aqui no interessa para a definio do conceito do poltico se tal mundo sem poltica desejado como estgio ideal. O fenmeno do poltico s pode scr compreendido por meio da referncia possibilidade real do agrupamento do tipo amigo-inimigo, no importando o que da resulta para o juzo de valor religioso, moral, esttico e econmico de poltico.

    A guerra como o mais extremo meio poltico evidencia a possibilidade dessa distino entre amigo e inimigo subjacente a toda representao poltica, s tendo, por isso, sentido enquanto esta distino estiver realmente existente na humanidade ou, pelo menos, realmente possvel. Em contrapartida, seria absurda uma guerra conduzida por motivos puramente religiosos, puramente morais, 'puramente jurdicos ou puramente econmicos. A partir das contraposies especficas desse m bito da vida humana no se pode derivar o agrupamento do tipo amigo-inimigo e, destarte, tampouco uma guerra. Uma guerra no precisa ser nem algo religioso, nem algo moralmente bom, nem algo rentvel; hoje, provavelmente, nada disso . Esse conhecimento simples geralmente confundido pelo fato de que contraposies religiosas, morais, entre outras, aprimoram-se como contraposies polticas, podendo provocar o agrupam ento decisivo de combate segundo o tipo amigo-inimigo. Mas se ocorrer esse agrupamento de combate, a contraposio normativa passa a ser no mais puramente religiosa, moral cu econmica, e, sim, poltica, ^ ss im , a questo continua sendo apenas se tal agrupamento do tipo amigo-inimigo existe ou no como possibilidade real ou realidade, no importando quais motivos humanos so fortes o suficiente para suscit-lo.

    Nada pode escapar a esta conseqncia do poltico. Se a oposio pacifista contra a guerra se tornasse to forte a ponto de poder impelir os pacifistas a uma guerra contra os no-pacifis- tas, a uma guerra contra a guerra, estaria, assim, comprovado que ela tem realmente fora poltica, porque forie o suficiente para agrupar os seres humanos em amigos e inimigos. Se a vontade de se evitar a guerra to forte a ponto de no mais temer a prpria guerra, ela ter se convertido, ento, em um motivo

  • poltico, ou seja, ela afirma a guerra, mesmo que como eventualidade extrema, e afirma, at mesmo, o sentido da guerra. Atualmente, isso parece ser um tipo especialmente promissor de justificao de guerras. A guerra se passa, assim, como sempre sendo definitivamente a ltima guerra da humanidade. Tais guerras so, necessariamente, guerras especialmente intensas e desumanas porque, ultrapassando o mbito do poltico , simultaneamente rebaixam o inimigo quanto a categorias morais, entre outras, e se vem foradas em transform-lo em um monstro desumano, o qual h de ser no s repelido, como tambm definitivamente exterminado, ou seja, no mais apenas u/n inimigo que se deve rechaar a seus limites. Na possibilidade de tais guerras fica especialmente evidenciado de forma clara que a guerra, hoje, ainda existe como possibilidade real, o que unicamente interessa para a distino entre amigo e inimigo e para o conhecimento do poltico.

    1.4 O Estado como forma de unidade poltica, questionado pelo pluralismo

    Toda contraposio religiosa, moral, econmica, tnica ou de outra categoria transforma-se em uma contraposio poltica quando forte o suficiente para agrupar os seres humanos efetivamente eir amigos e inimigos. O poltico no reside no combate em si, o qual possui suas prprias leis tcnicas, psicolgicas e militares, e sim, como j dito, em um comportamento determinado por essa possibilidade real, na clara compreenso da prpria situao assinfdetermiriada e na incumbncia de distinguir entre amigo e inimigo. Uma comunidade religiosa que, como tal, lidera guerras, seja contra os membros de outras comunidades religiosas, seja outro tipo de guerra, constitui uma unidade poltica para alm da comunidade religiosa. Ela , ento. tambm uma grandeza poltica quando, apenas em sentido negativo, detm a possibilidade de influncia sobre aquele processo decisivo, quando ela est em condies de evitar guerras atravs de uma proibio endereada a seus membros, i.e., de

    O CONCEITO DO POL.T1CO (TEXTO DE 1932)________________39

  • negar normativamen s a qualidade de inimigo de um adversrio. O mesmo vlido para uma associao de pessoas com base em fundamento econmico, p.ex., p"ra um grupo industrial ou para um sindicato. Mesmo uma classe no sentido marxista do termo cessa de ser algo puramente econmico e se torna uma grandeza poltica quando chega nesse ponto decisivo, ou seja, quando leva a srio a luta de classes, tratando o adversrio de classe como inimigo real e o combatendo, seja como Estado contra Estado, seja na guerra civil dentro de um Estado. Desse modo, a uta real necessariamente no mais transcorrer conforme leis econmicas. e sim ter - alm dos mtodos de combate no sentido tcnico mais estrito seus compromissos, suas coalizes, suas necessidades e orientaes polticas etc. Se, dentro de um Estado, o proletariado se apoderar do poder poltico, surgir ento um Estado proletrio que um produto poltico no inferior a um Estado nacional, a um Estado de sacerdotes, de comerciantes ou de soldados, a um Estado de funcionrios pblicos ou a qualquer outra categoria de unidade poltica. Caso se consiga agrupar toda a humanidade em Estados proletrios e Estados capitalistas conforme a contraposio entre proletariado e burguesia enquanto amigo e inimigo, e se a desaparecerem todos os outros agrupamentos do tipo amigo-inimigo, se manifestar, nesse caso, toda a realidade clo poltico que tero obtido esses conceitos, conceitos estes, em primeiro lugar e aparentemente, puramente' econmicos. Se a fora poltica de uma classe ou de outro grupo dentro de um povo s for o suficiente para poder evitar toda guerra a ser conduzida para o exterior, sem possuir, ela mesma, a capacidade ou a vontade de assumir o poder pblico, de distinguir por si mesma entre amigo e inimigo e, se preciso for, fazer guerra, a unidade poltica estar destruda.

    O poltico pode extrair sua fora dos mais diversos mbitos da vida humana, das contraposies religiosas, econmicas, morais e de outros t.ipos; ele no caracteriza nenhum domnio prprio, e sim co-somente o grau de intensidade de um a associao ou dissociao de pessoas, cujos motivos podem ser de ndole religiosa, nacional (no sentido tnico ou cultural), econmica ou de outra espcie, provocando, em momentos dis

    4n O CONCEITO DO POLTICO

  • O CONCEITO DO POLTICO (TbXTO DE 1932.)

    tintos, diversas ligaes e separaes. O agrupamento real do tipo amigo-immigo onticamente to forte e concludente que a contraposiio de cunho no-poltico, no mesmo momento em que suscita este agrupamento, relega a um segundo plano seus critrios e motivos at ento puramente religiosos, puramente econmicos e puramente culturais, ficando submetida s novas e peculiares condies e concluses da situao doravante poltica, condies e concluses estas que, vistas daquele puro ponto de partida puramente religioso ou puramente econmico, entre outros, so freqentemente muito inconseqentes e irracionais, foltico , em todo caso, sempre o agrupamento que se orienta pelo caso crtico. Destarte, ele sempre o agrupamento humano normativo e, por conseguinte, a unidade poltica sempre quando existe em absoluto, sendo a unidade normativa e soberana no sentido de que, por necessidade conceituai, a deciso sobre o caso normativo, mesmo quando este for um caso excepcional, sempre haver de residir nela.

    Assim como a palavra unidade, a palavra soberania tem aqui um sentido positivo. Nenhuma dessas palavras de modo algum significa que todo pormenor da existncia dc cada ser humano, parte de uma unidade poltica, teria que ser determinado e comandado pelo poltico, ou que um sistema centralista deveria exterminar qualquer outra organizao ou corporao. Pode ser que consideraes de ordem econmica sejam mais fortes que tudo o que pretende o governo de um Estado preten- samente neutro economicamente; da mesma forma, o poder de um Estado pretensamente neutro confessionalmente encontra facilmente um limite nas convices religiosas. O que interessa o caso de conflito. Se as foras antagnicas econmicas, culturais ou religiosas forem to fortes a ponto de definirem, por si mesmas, a deciso sobre o caso crtico, elas tero se convertido na nova substncia da unidade poltica. Se no forem fortes o suficiente para evitar uina guerra deliberada contra seus interesses e princpios, ficar evidenciado que no alcanaram o ponto decisivo do poltico. Se forem suficientemente fortes para evitar uma guerra desejada pela liderana estatal, contradizendo seus interesses e princpios, mas no suficientemente fortes para de

  • l O CONCEITO DO POLTICO

    terminar, por si mesmas, uma guerra segundo sua deciso prpria, no mair, existir, ento, n enhuma grandeza poltica uniforme. No importa como seja esta relao: cm conseqncia da orientao pelo possvel caso crtico do combate efetivo contra um inimigo efetivo, a unidade poltica , necessariamente, ou a unidade normativa para o agrupamento do tipo amigo-inimigo sendo, neste sentido (e no em qualquer sentido absolutista), soberana, ou ela absolutamente niio existe.

    Q uando se compreendeu o tamanho da importncia poltica que compete, s associaes econmicas dentro de um Listado e se observou, principalmente, o crescimento dos sindicatos, contra cujo instrumento de poder, a greve, as leis do Estado eram bastante impotentes, proclamou-se, um tanto precipitadamente, a morte e o fim do Estado. Isso aconteceu, pelo que vejo, corno verdadeira doutrina s a partir de 1906 e 1907 com os sindicalistas franceses". Entre os tericos do Estado pertencentes ajcsse contexto, Duguit o mais conhecido; desde 1901, tentou refutar

    11 C eife chose enorm e (...) la m ort de cet tre fa n ta s tique, prodigieux, qui a enu dans Vhistoire une p lace si colossale: l E ta t est m o rt por E. BERTH, cujas idias so originrias de Georges Sorel, em Le M ouvem ent sncialiste, outubro de 1907, p. 314. Lon DUGUIT cita esse trecho em suas exposies Lu droit social, le droit i.ndividuel et la transform ation de l'E tat, Io. edio, 1908; ele se contentava em dizer que o Estado considerado como soberano e como pessoa estava m orto ou a ponto de m orrer (p. 150: L'E tat personnel et souverain est mort ou sur le p o in t de mourir). Nla obra de DUGUIT, L Etat, Paris, 1901, ainda no se encontram tais frases, em bora a crtica sobre o conceito de soberania j seja a mesma. Outros exemplos in teressantes desse diagnstico sindicalista do Estado hodierno em ESMEIN, Droit coustitutionnel, T edio de N zard, 1921,1, p. 55 segs., e, sobretudo, no livro especialm ente interessante de M axim e LEROY. Lcs transformationi' de la pu issance publique, 1907. A doutrina sindicalista deve distinguir-se da construo m arxista tam bm em v irtude de seu diagnstico do Estado. Para os m arxistas, o Estado no est morto ou a pcnto de morrer; ele necessrio com o instrum ento para a formao da sociedade sem classes e, s ento, sem um Estado, sendo, provisoriam ente, ainda real; e foi justam ente com a ajuda da doutrina m arxista que ele ganhou novas energias e nova vida no Estado sovitico.

  • o conceito de soberania e a representao do Estado como pessoa com alguns argumentos apropriados dirigidos contra uma metafsica do Estado pouco crtica e contra as personificaes do Estado, as quais, afinal, so to-somente resduos do mundo do absolutismo principesco, mas, em substncia, perdendo o verdadeiro sentido poltico da idia de soberania. Algo semelhante vlido para a chamada teoria pluralista do Estado de G. D..H. Cole e Harold J. Laski, surgida um pouco mais tarde nos pases anglo-saxnicos12. Seu pluralismo consiste em contestar a unidade soberana do Estado, ou seja, a unidade poltica, e sempre voltar a destacar que cada ser humano vive em meio a um grande nmero de unies e relaes sociais diversas: membro de uma comunidade religiosa, de uma nao, de um sindicato, de uma famlia, de um clube desportivo e de muitas outras associaes, que, de caso a caso, o determinam com diferente intensidade e o comprometem a uma pluralidade de compromissos de fidelidade e lealdade, sem que se possa dizer de uma dessas associaes que seja absolutamente normativa e soberana. Pelo contrrio, as diversas associaes, cada uma em uma rea diferente, podem, se mostrar como as triais fortes e o conflito dos compromissos de lealdade e fidelidade s pode ser

    O CONCEITO DO POLTICO (TEXTO DE 191.!)_______________ .|

    12 Uma clara e plausvel com pilaao das teses de Cole encontra-se impressa (por ele mesmo formulada) nas publicaes da Aristotelian Society , vol. X V I, 1916, p. 310-325; tam bm aqui consta como tese: os Estados so essencialm ente iguais u outros tipos de associaes hum anas. D entre os escritos de LASKI poae-se citar: Studies in the Problem o f Sovereignty, 1917; A uthority in the M odern State, 1919; Foundations o f Sovereignty, 1921;/! G ram mar o f Politics, 192, Das Recht u n d der Staat, Zeitschr. fr offend. Recht, vol. X, 1930, p. 1-25. Bibliografia suplementar cm Kung Chuan HSIAO, Political Pluralism, Londres, 1927; sobre a crtica a esse pluralismo: W Y. ELLIOTT cm The Am erican Political Science Review, XVIII, 1924, p. 251 seg., e The pragm atic Revolt in Politics, New York, 1928; Carl SCHMITT, Staatsethik undp lura listischer Staat, K ant-Studien XXXV; 1930, p. 28-42. Sobre o fracionam ento pluralista dp atual Estado alemo e a transform ao do parlam ento em cenrio c : um sistem a pluralista: Carl SCHM ITT, O guardio da Constituio. Belo Horizonte: Del Rcy, 2007.

  • O CONCEITO DO POLTICO

    decidido caso a caso. Por exemplo, poderamos imaginar que os membros de um sindicato continuam a ir igreja apesar da diretriz dada pelo sindicato de no mais freoiient-la, mas, ao mesmo tempo, no obedecem exortao decretada pela igreja de deixar o sindicato.

    Por meio desse exemplo, chama especial ateno a coordenao de comunidades religiosas e associaes profissionais que, devido a sua contraposio comum contra o Estado, pode se converter em uma aliana entre igrejas e sindicatos. Esta aliana tpica do pluralismo ocorrente nos pases anglo-sax- nicos, cujo ponto de partida terico, junto teoria cooperativa de Gierke, tambm foi, sobretudo, o livro de J. Neville Figgis sobre as igrejas no Estado moderno (1913)13. O processo ^his

    13 FIGGIS, Churches in the m odern State, Londres, 19!3, relata, a lis, na p. 249 que M A ITLA N D , cujas pesquisas histrico-ju id icas igualm ente influenciaram os pluralistas, se m anifestou sobre o D ireito Corporativo A lem o de G ierke (cf. supra), dizendo que seria o m aior livro que ele jam ais lera (the grea test book he had ever reacT); FIGGIS afirm a que a disputa medieva! entre igreja e Estado, i.e., entre papa e im perador, ou melhor, entre o estam ento clerical e os estam entos seculares, no foi um a luta entre duas "sociedades (societies)'1, e sim um a guerra civil dentro da m esm a unidade social; hoje, em contrapartida, so duas sociedades, duo populi, que se defrontam . Em m inha opinio, isso correto, pois, enquanto na poca anterior ao cisma, a relao entre o papa e o im perador ainda podia ser form ulada como o papa tendo a itftjr ita s e o im perador potestas, existindo, portanto, uma distribuio dentro da m esm a unidade, a doutrina catlica persevera desde o sculo X II no fato de que igreja e E stado so duas sooietc..es, m ais precisam ente: inclusive, am bas societates perfec tae {cada um a em sua rea soberana e autrquica). A parte eclesistica reconhece, naturalm ente, apenas um a nica igreja como societas p e r fecta , enquanto na parte do Estado surge hoje um a pluralidade (se no um a infinidade) de societates perfectae, cuja perfeio, todavia, se torna muito problem tica em v irtude de seu grande nmero. Um resumo sum am ente claro da doutrina catlica apresentado por Paul SIMON nc artigo Staa< und Kirchc (Deutsches V olkstum , H am burgo, suplemento de agosto, 1931, p. 576 -590) Obviam ente, c in im aginvel na teoria catlica a coordenao de igrejas e sindicatos tpica para a doutrina pluralista anglo-saxnica; tam pouco a igreja catlica

  • trico, sobre 0 qual sempre volta a falar Laski e 0 qual, pelos vistos, causou grande impresso sobre ele, a manobra de Bismarck, to simultnea quanto frustrada, contra a igreja catlica e os socialistas. Na luta cultural contra a igreja de Roma ficou manifesto que mesmo um Estado com a fora inquebrantvel do imprio de Bismarck no era absolutamente soberano e onipotente; tampouco saiu vitorioso este Estado em sua luta contra 0 operariado socialista ou, no mbito econmico, teria estado em condies de tomar das mos dos sindicatos 0 poder residente no direito de greve.

    Essa crtica' , em alto grau, acertada. Os enunciados sobre a onipotncia do Estado so, na realidade, com freqncia, apenas secularizaes superficiais das frmulas teolgicas da onipotncia de Deus; ademais, a doutrina alem do sculo XIX sobre a personalidade do Estado , em parte, uma anttese polmica endereada contra a personalidade do prncipe absoluto e, em parte, uma tentativa de desviar para 0 Estado, enquanto ;terceiro superior, 0 seguinte dilema: soberania do prncipe ou do povo. Mas, ccm isso, ainda no est respondida a pergunta acerca de qual unidade social (se me permite adotar, aqui. 0 impreciso e liberal conceito de social) decidir 0 caso de conflito e determinar 0 agrupamento normativo em amigos e inimigos. Nem igreja, nem sindicato, nem uma aliana entre ambos teria proibido ou evitado uma guerra como pretendida pelo imprio alemo sob 0 comando de Bismarck. Evidentemente, Bismarck no podia declarar guerra ao papa, mas somente porque 0 papa no mais dispunha de ju s belli', e tampouco pensavam os sjndicatos socialistas entrar em cena como partie belligrante. Em todo caso, no teria sido pensvel instncia alguma que teria podido ou desejado se opor a uma

    O CONCEITO DO POLTICO (TEXTO DF 1932) _______________45

    poderia sc deixar tratar corno essencialm ente igual a um a internacional sindical. De fato, como acertadam ente observado por ELLIOT, a igreja serve a LASKI apenas como stalking horse para os sindicatos. De resto, tanto pela parte catlica quanto por parte desses pluralistas, falta uma clara e m inuciosa discusso acerca das teorias de ambos os b d o s c de suas relaes recprocas.

  • deciso do governo alemo de ento no tocante ao caso crtico, sem se tornar, cia prpria, inimigo poltico e sem ser atingida por todas as conseqncias desse conceito. Inversamente, nem igreja nem sindicato se posicionaram a respeito da guerra civil14. Isso suficiente para fundamentar um conceito sensato de soberania e unidade. Segundo sua essncia, a unidade poltica simplesmente a unidade normativa, sendo indiferente de quais foras retira seus ltimos motivos psquicos. Ou ela existe ou no existe. Quando existe, constitui a unidade suprema, i.e,, a unidade determinante no caso decisivo.

    Que o Estado uma unidade, mais precisamente: a unidade normativa, isso se baseia em seu carter poltico. Uma teoia pluralista ou a teoria do Estado que logrou sua unidade por meio de um federalismo de ligas sociais ou to-somente uma teoria de dissoluo ou refutao do Estado. Quando essa teoria contesta sua unidade e o coloca como associao poltica, na qualidade de essencialmente igual, ao lado de outras associaes, p.ex., religiosas ou econmicas, ter que responder, sobretudo, pergunta acerca do contedo especfico de poltico. Contudo, em nenhum dos muitos livros de Laski encontrada uma definio determinada de poltico, embora sempre se fale de Estado, poltica, soberania e government. O Estado trans- forma-se simplesmente em uma associao que concorre com

    46_______ O CONCEiTO DO POLTICO

    14 Como LASKI tam bm faz referncia controvrsia dos catlicos inglesas com GLADSTONE, citam -se aqui as seguintes frases de N ewm an, que veio a ser mais tarde cardeal, retiradas de sua carta ao duque de N orfclk (1874, sobre o escrito de GLADSTONE Os decretos do Vaticano em seu significado para a fidelidade dos sditos): Suponhamos que a Inglaterra queira enviar seus encouraados para apoiar a Itlia contra c papa e seus aliados. Certam ente, os catlicos ingleses ficariam m uito indignados com o lato, tom ai iam partido do papa ainda mesmo antes do incio da guerra e em pregariam todos os m eios constitucionalm ente legtim os a fim de evitar a guerra. Mas quem acredita que, um a vez travada a guerra, seu modo de ag ir consistiria em algo diferente do que oraes e esforos para lhe pr fim? Com quais razes poder-se-ia afirm ar que consentiriam em algum passo de natureza traioeira?

  • O COMt I 11 { ) I H ) !'OI TICO (TEXTO DE 1932) 47

    outras associaes; torna-se unia soc.ieUade junto com - e entre algumas outras sociedades existentes dentro e fora do Estado. Esse o pluralismo dessa teoria do Estado que dirige toda sua perspiccia contra os antigos exageros do Estado, contra sua altivez e sua personalidade, contra seu monoplio da unidade suprema, enquanto permanece obscuro o que a unidade poltica doravante haveria de ser. Ora surge, maneira antiga e liberal, como mero servidor da sociedade determinada de forma essencialmente econmica; ora, em contrapartida, de modo pluralista como um tipo especial de sociedade, ou seja, uma associao ao lado de outras associaes; ora, por fim, como o produto de um federalismo de ligas sociais ou um tipo de as- sociao-mor das associaes. Porm, teria que ser explicado, sobretudo, por quais motiv *s os seres humanos formam, alm das associaes religiosas, culturais, econmicas entre outras, mais uma associao poltica, uma governmental associaion e em que consiste o sentido especificamente poltico deste ltimo tipo de associao. Aqui no possvel reconhecer uma iinha segura e ntida das idias e, como conceito himo, abrangente, sumamente monstico- universai e de modo algum pluralista, surge em Cole a society e em Laski a humanity.

    Essa teoria pluralista do Estado , sobretudo, pluralista em si mesma, ou seja, ela no possui nenhum centro uniforme. Extrai seus temas intelectuais de crculos ideolgicos bem diversos (religio, economia, liberalismo, socialismo etc.); igncra o conceito central de toda teoria do Estado, qual seja, o poltico, e nem sequer discute a possibilidade de que o pluralismo das associaes poderia conduzir a uma unidade poltica federati- vamente estruturada; permanece inteiramente atascada em um individualismo liberal, j que, ao final, no faz nada alm de, a servio do indivduo livre e de suas livres associaes, jo gar uma associao contra a outra, sondo todas as questes e conflitos decididos a partir do indivduo. Na verdade, no h sociedade ou associao poltica alguma, h somente uma unidade poltica, uma comunidade poltica. A real possibilidade do agrupamento do tipo amigo-inimigo basta para criar um a unidade normativa para alm do meramente social-asso-

  • ciativo, uma unidade que algo especificamente diferente e algo decisivo perante as demais associaes15. Quando essa prpria unidade decai na eventualidade, tambm decai o prprio poltico. Apenas enquanto no se reconhece ou no se considera a essncia do poltico, possvel colocar urna associao poltica pluralisticamente ao lado de urna associao religiosa, cultural, econmica ou de outra espcie e deix-la concorrer com elas. Todavia, do conceito do poltico resultam, como a ser mostrado infra (item 1.6), conseqncias pluralistas, mas no 1 1 0 sentido de que, dentro de uma mesma e nica unidade poltica, no lifgar do agrupamento normativo do tipo arnigo-inimigo possa surgir um pluralismo, sem que com a unidade tambm esteja destrudo 0 prprio poltico.

    1.5 A deciso sobre guerra e inimigoAo Estado como unidade essencialmente poltica pertence

    0 ju s belli, isto , a rea) possibilidade de determinar 0 inimigo no caso dado por fora de deciso prpria e de combat-lo. Com quais meios tcnicos 0 combate conduzido, como a organizao das foras armadas, quo grandes so as expectativas em se vencer a guerra, tudo isto irrelevante sempre quando o povo politicamente unido est disposto a lutar por sua prpria existncia e sua independncia, determinando por fora de deciso prpria ern que consistem sua independncia e sua liberdade. O desenvolvimento da tcnica militar parece conduzir ao fato de que restam apenas alguns Estados a quem permitido, por seu poder industrial, conduzir uma guerra auspiciosa, enquanto Estados menores e mais fracos renunciam voluntria ou forosamente ao ju s belli quando no logram defender sua autonomia por meio de uma correta poltica de alianas. Este desenvolvimento no prova que a guerra, 0 Estado e a poltica absolutamente tm cessado de existir. Cada uma das inmeras modifi

    4 ________ _____O CONCEITO DO POL'TICO

    15 Podemos d izer que, no dia da m obilizao, a sociedade at ento existente se transformou em uma comunidade, E. LEDERER, A r c k iv f

    , Soz.-Wiss 39, 1915, p. 349.

  • caes e revolues ocorridas na histria e no desenvolvimento da humanidade provocou novas formas c novas dimenses do agrupamento poltico, exterminou formaes polticas anteriormente existentes, causou guerras externas e guerras civis e, ora aumentou, ora diminuiu o nmero das unidades polticas organizadas.

    O Estado enquanto unidade poltica normativa concentrou em si mesmo uma imensa competncia: a possibilidade de fazer guerra e, assim, de dispor abertamente sobre a vida das pessoas. Isto em virtude do fato de que o ju s belli contm tal disposio; significa a dupla possibilidade: exigir de membros do prprio povo prontido para morrer e prontido para matar, e matar pessoas do lado inimigo. Mas o desempenho de um Estado normal consiste, sobretudo, em obter dentro do Estado e de seu territrio uma pacificao compiera, produzindo tranqilidade, segurana e ordem e criando, assim, a situao normal, esta o requisito para que as normas jurdicas possam ter eficcia absoluta, pois toda norma pressupe uma situao normal e nenhuma norma pode ter validade para uma situao que lhe plenamente anormal.

    Em situaes crticas, esta necessidade de pacificao intra- estatai leva a que o Estado, como unidade poltica, enquanto existir, tambm determine., por si mesmo, o inimigo interno. Destarte, em todos os Estados, de alguma forma, h o que o Direito Pblico das repblicas gregas conhecia por declarao d epolem ios e o Direito Pblico romano por declarao de hostis, ou seja, tipos de desterro, de ostracismo, de proscrio, de banimento, de colocao hors la loi, em suma, tipos de declarao de inimigos intra-estatais, podendo ser estes tipos mais rigorosos ou mais suaves, supervenientes ipso facto ou com efeito jurdico em virtude de leis especiais, explcitos ou encobertos por meio de circunscries genricas. Conforme o comportamento daquele declarado como inimigo do Estado, esse o sinal da guerra civil, i.e., da dissoluo do Estado como uma unidade poltica organizada, internamente pacificada, fechada territorialmente em si e impenetrvel para estranhos. Por meio

    O CONCEITO DO POLTICO (TEXTO DE 1932) 49

  • O CONCEITO DO POLTICO

    da guerra civil, fica decidido o futuro destino dessa unidade. Para um Estado de direito civil constitucional, apesar de todos os vnculos constitucionais do Estado, isso no menos vlido e sim ainda mais natural do que para qualquer outro Estado, pois, no Estado constitucional, como diz Lorenz von Stein, a constituio a expresso da ordem social, a existncia da prpria sociedade civ il No modo como agredida, o cornbat.e tem que se decidir, por isso, fora da constituio e do Direito, lo g o ff orn o poder das armas".

    0 exemplo mais famoso da histria grega seria opsefisma de Demfanto; esta deliberao popular tomada pelo povo ateniense aps a expulso dos quatrocentos no ano 410 a.C. declarava todo aquele que tentasse dissolver a democracia ateniense como sendo um inimigo dos atenienses (polem ics esto Athenaion); vide outros exemplos e literatura a respeito em Busolt-Swoboda, Griechische Staalskunde, 3a edio, 1920, p. 231, 532; sobre a declarao anual de guerra, dos foros espartanos aos helotas que viviam dentro do Estado, id., p. 670. Acerca da declarao de hostis r.o Direito Pblico romano: Moinmsen, Rm. Stoats- recht III, p. 1240 seg.; sobre as proscries, id. e II, p. 735 seg.; sobre banimento, desterro e ostracismo, alm dos conhecidos manuais da histria jurdica alem, sobretudo a Edio Eichmann, Acht und Bann im Reichsrecht des Mittelalters, 1909. Da prtica dos jacobinos e do Comit de saiut public encontram-se numerosos exemplos de declarao de hors la loi na Histria da Revoluo Francesa de Aulard; a ser destacado um informe do Comit de salut public, citado por E. Friesenhahn, D erpoi- tische Eid, 1928, p. 16: Depuis le peuple fra n a s a inanifest sa volort tout ce qui lui est oppos est hors le souverain; tout ce qui est hors le souverain, est ennemi (...) Entre ic peuple et ses ennernis il n'y a p lus rie.n de commun que le glaive''. Pode- se proceder a um banimento tambm presumindo, para membros de determinadas religies ou partidos, a falta de atitude pacfica ou legal. Para tanto, encontram-se na histria poltica

    * dos heterodoxos e hereges inmeros exemplos, para os quais caracterstica a seguinte argumentao de Nicolas de Vernuls (de une et diversa religione, 1646): o heterodoxo no pode ser

  • Q CONCEITO DO POLTICO (TEXTO DE 1932) 51

    tolerado no Estado, mesmo quando ele pacfico {pacifique), pois indivduos como os heterodoxos no podem ser pacficos (citado por H. J. Elias, L g lise et 1tat, Revue belge de philo- logie et d histoire, V, 1927, caderno 2/3). As forrnas moderadas de declaraes de hostis so numerosas e diversas: confiscos, expatriaes, proibies de organizaes e reunies, excluses de cargos pblicos etc. O trecho h pouco citado de Lorenz von Stein encontra-se em sua descrio do desenvolvimento poltico-social da restaurao e da monarquia de julho na Frana, Geschichte der sozialen Bcwegung in Frankreich, vol. I: Der B egriff der esellschaft, edio de G. Salomon, p. 494.

    A competncia, na forma de uma sentena penal, para dispor sobre a vida e morte de u.m indivduo, o ju s vitae ac necb, pode tambm caber a uma outra relao existente dentro da unidade poltica, por exemplo, famlia ou ao chefe de famlia, mas no o ju s belli ou direito da declarao de hostis, enquanto a unidade poltica existir como tal. Mesmo o direito de vingana sangrenta catre famlias ou cls teria que ser suspenso pelo menos durante uma guerra, caso se queira que exista absolutamente uma unidade poltic .. Uma associao entre indivduos que pretendesse renunciar a essas conseqncias da unidade poltica, no seria uma associao poltica, pois renunciaria possibilidade de decidir normativamente a quem considera e trata como inimigo. Mediante esse poder sobre a vida fsica dos seres humanos eleva-se a comunidade poltica acima de qualquer outra espcie de comunidade ou sociedade. Assim, dentro da comunidade, podem existir subestruturas de carter poltico secundrio com competncias prprias ou transferidas, inclusive com um ju s vitae ac necis restringido aos membros de um grupo mais estrito.

    Uma comunidade religiosa, uma igreja, pode exigir de um membro seu morrer pela sua f e ter urna morte como mrtir, mas apenaf; pela salvao de sua prpria alma, no pela comunidade eclesistica como uma estrutura de poder localizada neste mundo; caso contrrio, ela se converte em uma grandeza poltica; suas guerras santas e suas cruzadas so aes baseadas em uma deciso acerca de quem inimigo, assim como outras guerras.

  • Em uma sociedade economicamente determinada, cuja ordem, ou seja, cujo funcionamento calculvel se passa no mbito de categorias econmicas, no se pode exigir, sob nenhum ponto dc vista imaginvel, que algum membro da sociedade sacrifique sua vida no interesse de um funcionamento sem distrbios. Fundamentar tal exigncia com convenincias econmicas sferia particularmente uma contradio aos princpios individualistas de uma ordem econmica liberal e nunca haveria de se justificar a partii' das normas ou ideais de uma economia concebida autonomamente. O indivduo pode morrer voluntariamente pelo que deseja; isto, como todo o essencial em uma sociedade liberal-in- dividualista, inteiramente assunto privado, i.e., tema de sua resoluo livre, no controlada e que no diz respeito a ningum outro que aquele que toma a livre deciso.

    A sociedade de funcionamento econmico tem meios suficientes para colocar fora de circulao o vencido e fracassado na concorrncia econmica ou at mesmo um perturbador, e torn-lo inofensivo de um modo no violento e pacfico, ou concretamente falando, deix-lo morrer de fome caso ele no se sujeite por sua livre vontade; a um. sistema social puramente cultural ou civilizante nao faltaro indicaes sociais para se livrar de ameaas indesejveis ou de um incremento indesejvel. Mas nenhum programa, nenhum ideal, nenhuma norma e nenhuma finalidade conferem o direito de dispor sobre a vida fsica de outras pessoas. Exigir dos indivduos que matem outras pessoas e que estejam dispostos a morrer a fim de que floresam o comrcio e a indstria dos sobreviventes ou que prospere a capacidade de consumo dos netos, urna exigncia horrvel e insensata. Amaldioar a guerra como assassinato e, depois, exigir das pessoas que faam guerra, que matem na guerra e se deixem matar para que guerra nunca mais haja, urna intrujice manifesta. A guerra, a disposio para a morte por parte ,dos homens em combate, a morte fsica de outras pessoas que esto do lado inimigo, nada disso tem um seutido normativo, e sim apenas um sentido existencial, mais precisamente na realidade de uma situao do combate real contra um inimigo real e no em quaisquer ideais', programas ou normatividades. No

    s? ____ O CONCEITO DO POLTICO

  • O CONCEITO DO POLTICO (TEXTO DF. 1932) 53

    h nenhum fim racional, nenhuma norma por mais correta que seja, nenhum programa por mais exemplar que seja, nenhum ideal social por mais belo que seja, nenhuma legitimidade ou legalidade que possam justificar o fato cie que, por sua causa, os seres humanos se matem uns aos cutros. Se tal extermnio fsico da vida humana no ocorre a partir da afirmao ntica da prpria forma existencial perante urna negao igualmente ntica desta forma, esse extermnio no pode, ento, ser justificado. Tampouco se pode fundamentar guerra alguma com normas ticas e jurdicas. Se realmente houver inimigos no significado ntico como*aqui considerado, tem sentido, mas to-somente sentido poltico repeli-los fisicamente em caso de necessidade e os combater.

    Que a justia no pertence ao conceito de guerra fato universalmente reconhecido desde Hugo Grotius16. As construes que clamam por uma guerra justa, de novo servem, comumente, a um objetivo poltico. Isso porque, exigir de um povo politicamente unido que fa i guerra somente por um motivo justo, ou algo inteiramente natural quando significa que s se deve fazer guerra contra um inimigo real; ou, porm, se oculta por detrs a ambio poltica de jogar em outras mos a disposio sobre o jus belli e achar normas de justia, sobre cujo contedo e aplicao no caso concreto no o prprio Estado que decide e sim um terceiro outro qualquer, o qual determina dessa maneira quem o inimigo. Na medida em que um povo tem sua existncia na esfera do poltico, ele tem que, mesmo se for apenas para o caso mais extremo - mas ele que decide se o h ou no - , determinar, ele prprio, a distino entre amigo e inimigo. E a que reside a essncia de sua existncia poltica. Quando no mais possui a capacidade ou vontade para fazer essa distino, ele cessa sua existncia poltica. Se permitir que um estranho prescreva quem seu inimigo e contra quem pode combater ou

    16 De ju re belli ac pneis, 1 .1, c. I, N. Justitiam in definitione (sc. belli) non includo". Na escolstica medieval, a guerra contra os descrentes era tida com o bellum ju stum (logo, como guerra, no como execuo, m edida pacfica ou sano).

  • no, no ser mais urn povo politicamente livre e estar includo ou subordinado a um oi'tro sistema poltico. Uma guerra no tem seu sentido no fato
  • O CONCEITO DO POLTICO

    coletividade poltica, qual pertence conforme sua existncia nela, c viver somente como um particular18. Ademais, seria um erro crer que um povo em particular, mediante uma declarao de amizade a todo o mundo ou mediante o fato dc que vai se desarmar voluntariamente, possa afastar a distino entre amigos e inimigos. Dessa maneira no se despolitiza o mundo, nem se o coloca em um estado de pura moralidade, pura juridicidade ou pura economia. Se um povo teme os incmodos c o risco de uma existncia poltica, haver, sem dvida., um outro povo que lhe ajudar com esses incmodos ao assumir sua proteo contra inimigos externos e, com isso, assume tambm o domnio poltico; assim, em virtude da eterna relao entre proteo e obedincia, o protetor que determinar o inimigo.

    Nesse princpio se baseia no somente a ordem feudal e ;i relao entre senhor e vassalo, entre chefe e sequaz, ciilre paleio e clientela, que faz apenas com que osse principio se evidencie de forma especialmente ntida e aberta, sem encobri-lo; no h nenhuma relao de superioridade e inferioridade, nenhuma legitimidade ou legalidade razovel sem a relao existenlc rnlrc proteo e obedincia. O protego ergo oh/igo o cogito ergo sum do Estado, e uma teoria do Estado que no toma conscincia sistemtica dessa frase, permanece um fngmenlo insuficiente. Hobbes (no final da edio inglesa de 1651, p. 396) caracterizou-o como o verdadeiro objetivo de seu Leviat, que mostrar novamente aos homens a mutual relation between Protectiori and Obedience, cuja observncia inquebrantvel se faz exigir tanto pela natureza humana como pelo Direito divino.

    Hobbes tomou conhecimento dessa verdade nos tempos ruins da guerra civil, pois a desaparecem todas as iluses legi-

    18 Ento, questo da com unidade poltica regulam entar de algum a forma essa espcie de existncia especial no pblica e politicam ente desinteressada (por meio de privilgios a estrangeiros, segregaes organizadas, exterritorialidade, autorizaes de residncia e concesses, legislao para m etecos ou de outro modo). Sobre a aspirao a um a existncia apoltica sem riscos (definio do hourgeois), cf. as palavras de Hegel mais frente neste volume.

    timistas e normativistas, com as quais os homens gostam de se enganar acerca de realidades polticas em tempos de segurana inabalvel. Quando, dentro de um Estado, partidos organizados esto em condies de conceder a seus membros mais proteo do que o prprio Estado, este se converte, quando muito, em um anexo desses partidos e o cidado em particular sabe a quem deve obedecer. Isso pode justificar uma "teoria pluralista do Estado, como desenvolvida supra (item 4). E nas relaes de poltica externa e interestatais que fica ainda mais evidente a exatido elementar desse axioma de proteo-obedincia: o protetorado de Direito internacional, a confederao ou Estado federal hegemnicos, tratados de proteo e garantias dos mais diversos tipos encontram a sua frmula mais simples.

    Seria ingnuo crer que um povo indefeso teria apenas amigos e e um clculo crapuloso pensar que o inimigo poderia talvez se comover pela falta de resistncia. Ningum considerar possvel que os homens, pela su renncia a toda produtividade esttica ou econmica, possam levar o mundo, p.ex., a um estado de pura moralidade; mas muito menos poderia um povo criar, mediante a renncia a toda deciso poltica, um estgio da humanidade puramente moral ou puramente econmico. O poltico no desaparecer do mundo s porque um povo no mais possui a fora ou a vontade de se manter na esfera do poltico. O que desaparecer ser to-somente um povo fraco.

    1.6 O mundo no uma. unidade poltica, e sim um pluriverso poltico

    Da caracterstica conceituai de poltico resulta o pluralismo do universo de Estados. A unidade poltica pressupe a possibilidade real de existncia do inimigo e, com ela, uma outra unidade poltica coexistente. Destarte, enquanto houver Estado, sempre existiro no rnundo vrios Estados, no sendo possvel haver um Estado mundial que abranja toda a terra e toda a humanidade. O mundo poltico um pluriverso e no um uni-

    O CONCEITO DO POLTICO (TEXTO DE 1932) 57

  • verso. Nesse ponto, toda teoria do Estado pluralista, mesmo se em outro sentido que no aquele da teoria pluralista intra-estatal discutida no item 4 acima. Por sua essncia, a unidade poltica no pode ser universal no sentido de uma unidade abrangendo toda a humanidade e toda a terra. Se os diversos povos, religies, classes e agrupamentos humanos da terra estiverem todos to unidos, de modo que se torne impossvel e inimaginvel um combate entre eles; se, ademais, tam bm dentro de ura imprio abrangendo toda a terra, realmente r descartada para sempre uma guerra civil, mesmo como possibilidade; e sc, assim, cessar a distino entre amigo e inimigo, mesmo como pura eventualid a d e - ento haveria to-somente concepo de mundo, cultura, civilizao, economia, moral, Direito, arte, entretenimento etc. livres de poltica, mas no haveria nem poltica nepu Estado. Desconheo se tal situao da terra e da humanidade suceder e quando o seria. Por enquanto, no o h. Seria um a fico desleal sup-lo corno existente e seria um engano, rapidamente solucionvel, acreditar, j que um a guerra entre potncias, hoje, facilmente sc converte em u.ma guerra mundial, que o trmino dessa guerra representaria, por conseguinte, a paz mundial e, assim, aquele idlico estgio final da despolitizao completa e definitiva.

    A humanidade como tal no pode conduzir guerra alguma, pois no possui um inimigo, pelo menos no neste planeta. O conceito de hum anidade exclui o conceito de inimigo, porque o inimigo tambm no deixa de se apresentar como ser hum ano e a no reside nenhuma diferenciao especfica. O fato de guerras serem feitas em nome da humanidade no refutao alguma dessa simples verdade, seno que tem apenas um sentido poltico especialmente intenso. Quando um Estado combate seu inimigo poltico em nome da humanidade, isso no constitui uma guerra da humanidade, e sim uma guerra, para a qual um determinado Estado procura se apropriar de um conceito universal perante seu adversrio blico, a fim de se identificar com ess