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UNIVERSI DADE CÂ NDI DO MENDES PÓS GRADUAÇÃO “LAT O SENSU” PR OJETO A VEZ DO MESTRE O CO NCEI TO J URÍDICO DE CONSU MIDOR Por: Camila Oliveira Mazza rella Orientador: Willian Lima Rocha Rio de Janeiro 2006

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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES

PÓS GRADUAÇÃO “LATO SENSU”

PROJETO A VEZ DO MESTRE

O CONCEITO JURÍDICO DE CONSUMIDOR

Por: Camila Oliveira Mazzarella

Orientador: Willian Lima Rocha

Rio de Janeiro

2006

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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”

INSTITUTO A VEZ DO MESTRE

O CONCEITO JURÍDICO DE CONSUMIDOR

Apresentação de monografia à Universidade Cândido

Mendes como requisito parcial para obtenção de grau de

especialista em Direito do Consumidor.

Por:. Camila Oliveira Mazzarella

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AGRADECIMENTOS

Ao professor Willian Lima Rocha, pela

orientação na elaboração desta

monografia.

Aos colegas de trabalho, Luís Eduardo

Meurel Azambuja e Paulo Maximilian

W. M. Schonblum, pelo valioso auxílio

na coleta de artigos pertinentes ao

assunto versado.

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DEDICATÓRIA

À Yone Oliveira Passos, minha mãe e

primeira professora na escola da vida.

Ao Marcelo, pelo seu fundamental amor,

respeito, companheirismo e incentivo

constante.

“Vieste na hora exata

Com ares de festa

E luas de prata

Vieste com encantos

Vieste com beijos silvestres

Colhidos pra mim

Vieste como a natureza

Com mãos camponesas

Plantadas em mim

Vieste com a cara e a coragem

Com malas, viagens pra dentro de mim

Meu amor

Vieste a hora e a tempo

Soltando meus barcos

E velas ao vento

Vieste me dando o alento

Me olhando por dentro

Velando por mim

Vieste de olhos fechados

Num dia marcado

Sagrado pra mim

Vieste com a cara e a coragem

Com malas, viagens pra dentro de mim

Meu amor...”

(Vieste, Ivan Lins)

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RESUMO

Pretendeu o legislador, ao definir o conceito de consumidor – toda

pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como

destinatário final - no bojo da própria Lei nº 8.078/90, estabelecer o limite de

sua atuação, no entanto, tem-se observado várias polêmicas em torno do

efetivo conteúdo inscrito na norma em comento.

Encarando o Código de Defesa do Consumidor como um novo

regulamento do mercado de consumo brasileiro, parte da doutrina e

aplicadores do direito se filiou ao entendimento da ampliação de seu conceito,

no sentido de que o consumidor somente necessita ser o destinatário final

fático, o que resultou, então, na inclusão daqueles que adquirem o

produto/serviço como bem de capital, ou seja, utilizam-no de forma profissional.

Outra parte da doutrina defende um conceito restrito de consumidor, na

medida em que, com a expansão exagerada deste, teme-se banalizar a tutela

concedida aos consumidores.

Há, ainda, os que entendem que, aliada ao critério da destinação

econômica, verificada no caso concreto a vulnerabilidade de uma das partes,

esta será determinante para conceder a proteção contida no Código de Defesa

do Consumidor.

Neste contexto, pretende-se analisar as diferentes correntes

interpretativas acerca do conceito de consumidor previsto no artigo 2º da Lei nº

8.078/90, assim como chegar ao seu exato sentido, ligado aos aspectos

teleológicos da citada Lei.

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METODOLOGIA

O presente trabalho monográfico se embasou em pesquisa bibliográfica

de livros, de artigos publicados em revistas especializadas de direito do

consumidor, além de jurisprudências dos principais Tribunais do país.

O referido método de pesquisa foi realizado através da Internet, bem

como através de consultas à biblioteca do Tribunal de Justiça do Estado do Rio

de Janeiro.

A escolha pelo mencionado método de pesquisa justificou-se pelo fato

de que o tema escolhido para o trabalho monográfico ser de cunho doutrinário.

Assim sendo, a escolha por outros métodos, neste caso, se mostraria

inadequada.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 08

CAPÍTULO I – Extensão do Conceito de Consumidor Adotado na

Lei nº 8.078/90: Contexto Histórico Brasileiro 12

CAPÍTULO II – Teoria Maximalista 19

CAPÍTLO III – Teoria Finalista 25

CAPÍTULO IV – “Nova” Linha Interpretativa do Artigo 2º do Código

de Defesa do Consumidor 32

CONCLUSÃO 35

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 39

FOLHA DE AVALIAÇÃO 42

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INTRODUÇÃO

Ultrapassada a “era entusiasta” do pensamento individualista, advinda com a

Revolução Francesa e consolidada com as Revoluções Industrial e Comercial, chegou-

se a conclusão de que sua mola mestra, qual seja, a liberdade, importava em

desigualdade.

Neste momento, o mundo se deparou com uma nova e importante figura, peça

fundamental na engrenagem de produção e distribuição massificados de bens, não

obstante agente vulnerável face às novas práticas comerciais utilizadas: O consumidor.

Assim, cientes de sua importância e vulnerabilidade, os Estados foram

gradualmente adotando mecanismos com vistas a assegurar um nível satisfatório de

proteção ao consumidor, que se encontra em desvantagem técnica, jurídica e/ou

econômica ao contratar com fornecedores profissionais.

De modo diverso não ocorreu no Brasil, o que resultou na evolução das relações

privadas, até então ditadas pelo liberalismo econômico do Código Civil, cedendo

contínuo e crescente espaço aos valores da pessoa.

Neste sentido, tendo em vista o Princípio de Defesa do Consumidor, esculpido

na Constituição da República, bem como dando cumprimento ao disposto no artigo 48

dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, foi instituído o Código de

Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90)1.

1 Artigo 48 da ADCT: O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor.

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9Dito Código, rompendo a tradição pátria – importada do direito Francês de não

trazer conceitos em seu texto, entendendo caber esta função à doutrina e à

jurisprudência – em seu artigo 2º2 traz o conceito de consumidor para fins de

compreensão e aplicação do mesmo.

Como é sabido, o sentido de dada norma não é uma característica intrínseca dela,

mas sim resultado de um processo subjetivo de interpretação, que se dará conforme a

formação cultural e intelectual do intérprete, além da compreensão do contexto histórico

em que aquela foi inserida.

No entanto, desde a promulgação do Código de Defesa do Consumidor, tem-se

observado várias polêmicas em torno do efetivo conteúdo inscrito na norma em

comento.

Encarando o Código de Defesa do Consumidor como um novo regulamento do

mercado de consumo brasileiro, parte da doutrina e aplicadores do direito se filiaram ao

entendimento da ampliação do conceito de consumidor, no sentido de que este somente

necessita ser o destinatário final fático, pouco importando a questão econômica, ou seja,

arcar efetivamente com ônus da aquisição, não o transferindo a terceiros.

Outra parte da doutrina, bastante influenciada pelo direito belga e francês, busca

um conceito restrito de consumidor. Isto porque, teme-se que, com a expansão

exagerada de seu conceito, se banalize a tutela concedida aos consumidores. Além

disso, em dado momento, em razão do alto grau de protecionismo e restrições para

contratar e garantir, o Código de Defesa do Consumidor representaria um entrave nas

relações comerciais.

2 Artigo 2º da Lei nº 8.078/90: Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

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10Há, ainda, os que entendem que, aliado ao critério da destinação econômica,

deve ser verificada no caso concreto a vulnerabilidade, sendo esta nota determinante

para conceder a proteção contida no Código de Defesa do Consumidor.

Tem-se aqui exatamente o objetivo deste trabalho monográfico: Sem qualquer

intenção de exaurir o assunto, pretende-se analisar as diferentes correntes interpretativas

acerca do conceito de consumidor previsto no artigo 2º da Lei nº 8.078/90.

Além disso, pretende-se chegar ao seu exato sentido, ligado aos aspectos

teleológicos da citada Lei.

Partindo-se da necessidade de se compreender o momento histórico em que o

Código de Defesa do Consumidor foi inserido no sistema jurídico brasileiro, com vistas

a melhor entender o alcance das normas nele inscritas, no primeiro capítulo do presente

trabalho monográfico serão abordados tais elementos.

Após, serão apresentadas as principais teorias acerca do tema, quais sejam,

Maximalista e Finalista, já expostas, nesta ordem, sinteticamente linhas acima.

Ao final, será exposta uma “nova” linha interpretativa do conceito de

consumidor, a qual alinhada ao critério da destinação econômica, requisito da Teoria

Finalista, confere importância à vulnerabilidade, razão de ser do estatuto em comento.

Cabe ressaltar que, não obstante o Código de Defesa do Consumidor contemple

outros conceitos de consumidor, previstos nos artigos 2º, parágrafo único, 17 e 29 da

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11Lei nº 8.078/903, tão-somente, será analisado o conceito estabelecido no citado artigo

2º.

Por fim, se revela de fundamental importância o estudo a ser abordado no

presente trabalho monográfico, na medida em que, segundo Antônio HERMAN V.

BENJAMIN, é “a definição de consumidor que estabelecerá a dimensão da comunidade

ou grupo a ser tutelado e, por esta via, os limites de aplicabilidade do Direito especial.” 4.

3Artigo 2º, parágrafo único da Lei nº 8.078/90: Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.Artigo 17 da Lei nº 8.078/90: Para efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento.Artigo 29 da Lei nº 8.078/90: Para fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas. 4 HERMAN V. BENJAMIN, Antônio. O Conceito Jurídico de Consumidor. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 77, n.628, fev. 1988, p.71.

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CAPÍTULO I

EXTENSÃO DO CONCEITO DE CONSUMIDOR

ADOTADO NA LEI Nº 8.078/90: CONTEXTO HISTÓRICO

BRASILEIRO

“As estruturas normativas, que constituem o Direito Objetivo, não são meras formas lógicas vazias, mas formas de uma experiência concreta, cujas linhas dominantes ou essenciais foram abstraídas da realidade social para operar como instrumento de disciplina social, isto é, como modelos jurídicos.”

Miguel Reale

Lições Preliminares de Direito

(grifos do original)

Com a massificação das relações mercantis, advindas com as Revoluções

Industrial e Comercial, e após a “era entusiasta” do pensamento individual, restou clara,

especificamente nas relações de consumo, a vulnerabilidade dos consumidores face aos

detentores da economia de mercado.

Caracterizada por um número crescente de produtos e serviços, pelo domínio do

crédito e do marketing, assim como pelas dificuldades de acesso à justiça, a sociedade

de consumo, ao contrário do que se imagina, não trouxe apenas benefícios para os

consumidores, ao contrário.

Isto porque, se antes fornecedor e consumidor encontravam-se em uma situação

de relativo equilíbrio de poder de barganha (porque se conheciam), agora é o fornecedor

(fabricante, produtor, construtor, importador ou comerciante) que, inegavelmente,

assume a posição de força na relação de consumo e que, por isso mesmo, “dita as

regras”, sendo certo que o Direito não poderia ficar alheio a este fenômeno.

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Neste contexto, são oportunas as palavras de Eros Roberto GRAU5 a respeito:

Os modelos clássicos de economia de mercado mostram-se ao longo do tempo inaptos para estabelecerem um mercado em perfeito equilíbrio. Na verdade, o perfeito modelo proposto por Adam Smith revela-se utópico. A competição na prática não é a mesma competição puramente teorizada. Desse relativismo nasce a necessidade imperiosa de o Estado cuidar dessas relações econômicas.

O primeiro sinal desta conclusão foi o discurso do presidente John Kennedy, em

15 de março de 1962, perante o Congresso norte-americano, sobre a relevância dos

consumidores como agentes econômicos e ausência de proteção jurídica no contexto

mundial.

Outros importantes acontecimentos também podem ser apontados, tais como: as

criações suecas da figura ombudsman e do Juizado de Consumo; a relevante atuação da

ONU – Organização das Nações Unidas – na estipulação da Resolução nº 2542/69, que

assegurou os direitos dos consumidores, seguida da Resolução nº 39/248 de 6 de abril

de 1985, na qual se inserem os primeiros contornos da proteção supranacional dos

consumidores, o surgimento das primeiras legislações tutelares6; a formação de

comitês7, associações e organismos outros voltados à proteção do consumidor.

Cabe ainda registrar que foram criadas leis específicas acerca da proibição de

cláusulas abusivas, as quais indiretamente conferiram proteção ao consumidor, dentre

elas a Lei francesa nº 78-23, Lei Royer e a Lei alemã AGB-Gesetz, de 1976.

5 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p.49-50. 6 Como exemplos podem ser citadas: Lei Sueca de Vendas ao Consumidor, de 1973; Lei Norueguesa de Vendas de Mercadorias ao Consumidor; Lei de Proteção ao Consumidor, 1981, em Israel; Lei Portuguesa de Defesa do Consumidor, Lei nº 29/81, atualmente revogada pela Lei nº 24/96; Lei Geral para a Defesa dos Consumidores e Usuários da Espanha, de 1984.7 A exemplo do Comitê Europeu de Cooperação Jurídica, criado em 1971, através do Subcomitê de Proteção Legal do Consumidor.

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Consequentemente, esta nova ideologia de proteção ao consumidor também

ganhou espaço no Brasil. Primeiramente, tal fenômeno ensejou a

“’despatrimonialização’ das relações privadas, até então moldadas pelos ditames do

liberalismo econômico do Código Civil, onde o ter prevalece sobre o ser.”8.

Além disso, houve o desmembramento de setores do Direito do Código Civil,

como bem observa Adalberto PASQUALOTTO9:

Esse fenômeno de setores do Direito que se desmembram do seu tronco ancestral para se tornarem autônomos não é novo. Particularmente quanto às relações de consumo, pode-se localizar a razão desse desmembramento na asfixia imposta pelos detentores da economia de mercado. Através da teia das relações contratuais unilateralmente dispostas, do abuso do domínio da técnica, do descaso com a qualidade e a segurança dos produtos, da voracidade do lucro, foi se formando o caldo de cultura necessário à revolução. Percebeu-se a necessidade de proteger o fraco frente ao forte, assim como já ocorrera no surgimento do Direito do Trabalho.

Reflexos destas concepções também apareceram no corpo constitucional10, e

deram ensejo a criação do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90).

Trouxe o mencionado diploma um vasto leque de garantias para o consumidor.

Explicitou os seus direitos básicos, traçou os princípios norteadores da política de

proteção ao consumidor, instituiu o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor,

introduziu normas de natureza administrativa, penal e processual, ao mesmo tempo

8 PINHEIRO, Juliana Santos. O Conceito Jurídico de Consumidor. In, TEPEDINO, Gustavo (cord). Problemas de Direito Civil-Constitucional. Rio de janeiro: Renovar, 2000, p. 326.9 PASQUALOTTO, Adalberto. Conceitos Fundamentais do Código de Defesa do Consumidor. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 80, n. 666, abr1991, p.48. 10 Artigo 5º, inciso XXXII da CRFB: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantido-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, á segurança e á propriedade, nos termos seguintes: (...) XXXII – o Estado promoverá, na forma da Lei, a defesa do consumidor.

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15protetivas e assecuratórias dos direitos dos consumidores. Todas elas, conforme

determina o seu artigo 1º11, de ordem pública e interesse social.

Seu intuito é refazer o equilíbrio da relação havida entre o fornecedor de bens e

serviços e o consumidor, sendo, indispensável a opinião de Ada Pellegrini GRINOVER;

Antônio HERMAN de Vasconcellos e Benjamin; Daniel Roberto FINK; José Geraldo

BRITO FILOMENO; Kasuo WATANABE; Nelson NERY JÚNIOR; Zelmo

DENARI12 a respeito:

É com os olhos postos nessa vulnerabilidade do consumidor que se funda a nova disciplina jurídica. Que enorme tarefa, quando se sabe que essa fragilidade é multifária, decorrendo ora da atuação dos monopólios e oligopólios, ora da carência de informação sobre a qualidade, preço, crédito e outras características dos produtos e serviços. Não bastasse tal, o consumidor ainda é cercado por uma publicidade crescente, não estando, ademais, tão organizado quanto os fornecedores.

Toda e qualquer legislação de proteção ao consumidor tem, portanto, a mesma ratio, vale dizer reequilibrar a relação de consumo, seja reforçando, quando possível, a posição do consumidor, seja proibindo ou limitando certas práticas de mercado.

Embora seja a vulnerabilidade o princípio norteador para concessão da tutela

instituída no Código de Defesa do Consumidor, verifica-se que, o legislador brasileiro,

ao estabelecer o conceito de consumidor no artigo 2º daquele, optou por lhe dar grande

extensão.

Assim se afirma, pois, optou o legislador por incluir as pessoas jurídicas no

âmbito de sua definição; referiu-se, apenas, a destinatários finais de produtos e serviços,

11 Artigo 1º da Lei nº 8.078/90: O presente Código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e de interesse social, nos termos dos arts. 5º, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias. 12 GRINOVER, Ada Pellegrini; HERMAN de Vasconcellos e Benjamin, Antônio; FINK, Daniel Roberto; BRITO FILOMENO, José Geraldo; WATANABE, Kasuo; NERY JÚNIOR, Nelson; DENARI, Zelmo. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 8ª ed., 2005, p. 7.

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16não limitando a aquisição ao uso não profissional e, por fim, criou a figura do

consumidor equiparado.

Tal ampliação subjetiva encontra resposta no contexto histórico em que o

Código de Defesa do Consumidor foi inserido no sistema jurídico brasileiro.

Tinha ciência o legislador de que a situação do mercado de consumo brasileiro

era caótica, tendo sido o consumidor durante anos deixado à própria sorte, com parcos

recursos legais para se defender13. Além disso, sabia que o consumidor sozinho, por

mais benéfica que fosse a tutela outorgada, não poderia fazer frente ao poderio

econômico dos fornecedores.

Assim, visando promover a efetiva proteção ao consumidor, no mais curto

espaço de tempo, a solução encontrada pelo legislador foi incluir no âmbito subjetivo de

incidência do Código de Defesa do Consumidor outras pessoas que não apenas o

consumidor, aqui entendido em seu conceito tradicional.

Neste sentido, vale citar o entendimento de Tiago MACHADO DE FREITAS14:

Ao aumentar o campo subjetivo de aplicação da lei, o que buscava o legislador era potencializar o alcance de suas normas, harmonizando mais celeremente o mercado de consumo, o que viria a propiciar, de forma concreta, a proteção dos consumidores. (...)

O legislador acertou ao ampliar o âmbito subjetivo de incidência das normas do CDC. Sua opção fez com que o

13 Como exemplo pode-se citar a questão dos vícios redibitórios. O código civil de 1916 prescrevia o prazo de 15 dias, da data da tradição da coisa, para que o adquirente movesse a respectiva ação, sob pena de perda desta pretensão. Quando o vício surgia depois de transcorridos 15 dias da tradição, ficava o consumidor sem proteção legal. Ademais, a responsabilidade do vendedor pelos vícios da coisa vendida poderia ser excluída contratualmente.14 MACHADO DE FREITAS, Tiago. A Extensão do Conceito de Consumidor em face dos Diferentes Sistemas de Proteção Adotados por Brasil e Portugal. in, PINTO MONTEIRO, Antônio (diretor). Estudos de Direito do Consumidor. Publicação do Centro de Direito de Consumo. Coimbra, nº 5, 2003, p.400-402.

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17mercado de consumo se transformasse de forma mais célere e incorporasse definitivamente o espírito do código. Talvez, e não seria exagero afirmar, o maior mérito do CDC tenha sido promover essa alteração na filosofia de agir do mercado de consumo. Sem essa mudança, os consumidores continuariam desprotegidos, sendo irrelevante o grau de proteção que lhes fosse outorgado pelas normas do CDC.

Caso contrário, o CDC correria sérios riscos de não atingir a eficácia social desejada, sendo apenas mais uma, dentre as tantas leis que fracassaram em alcançar o seu desiderato.

Por essa razão, num primeiro momento, tanto a doutrina quanto à jurisprudência

tenderam a uma interpretação Maximalista do conceito de consumidor, cuja teoria será

exposta no capítulo seguinte.

CAPÍTULO II

TEORIA MAXIMALISTA

Antes de se adentrar na Teoria Maximalista, objeto do capítulo em comento,

cabe ressaltar não ser fácil a tarefa de definir o consumidor em seu sentido jurídico, na

medida em que há certa tendência em aceitar a concepção econômica de consumidor,

que nem sempre é a mais acertada, já que considerações políticas podem interferir nesta

concepção, o que compromete a margem de precisão que uma definição jurídica deve

ter15.

15 O consumidor, sob o ponto de vista econômico - assinala Filomeno -, “é todo indivíduo que se faz destinatário da produção de bens, seja ele ou não adquirente, e seja ou não, a seu turno, também produtor de outros bens.” Assim o conceito abrange, não apenas aquele que adquire para uso próprio, ou seja, como destinatário final, mas também aquele que faz na condição de intermediário, para repasse a outros fornecedores. Daí a inconveniência de

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Ultrapassado este ponto, partindo-se da definição legal de consumidor, disposta

no artigo 2º da Lei nº 8.078/90 - pessoa física ou jurídica, que adquire ou utiliza produto

ou serviço como destinatário final – surgiram algumas controvérsias acerca do efetivo

conteúdo inscrito na norma em comento16, as quais ensejaram a criação de duas grandes

Teorias em torno do tema: Maximalista e Finalista, sendo a primeira, como já exposto,

objeto de estudo deste capítulo.

Levando-se em consideração que o Código de Defesa do Consumidor é, na

verdade, um regulamento de mercado de consumo brasileiro, instituindo normas e

princípios para todos os agentes do mercado, não visando apenas a proteção do

consumidor não profissional, para a Teoria Maximalista a definição do artigo 2º da Lei

nº 8.078/90 deve ser interpretada da forma mais ampla possível.

O que importa é a destinação fática, aquele que retira o bem e/ou serviço do

mercado de consumo, findando o ciclo econômico do objeto jurídico.

Neste sentido, são pressupostos da Teoria Maximalista:

a) O conceito de consumidor direto, adotado pelo artigo 2º da Lei nº 8.078/90 é de

índole objetiva, uma vez que, define o consumidor tão-somente em atenção à

destinação dada à fruição do bem ou serviço adquirido ou utilizado, a qual deve

ser final, isto é, capaz de consumi-lo ou utilizá-lo de forma a depreciar,

invariavelmente, o seu valor como meio de troca;

transplantar a concepção econômica de consumidor para o campo jurídico. (BRITO FILOMENO, José Geraldo. Manual de Direitos do Consumidor. São Paulo: Atlas, 2005, p. 17.) 16 Podem ser citadas as controvérsias a respeito da restrição ou não que se coloca em relação à finalidade da aquisição ou utilização do produto ou serviço, e, consequentemente a maior ou menor amplitude do enquadramento da pessoa jurídica na categoria de consumidor.

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19b) A finalidade a ser satisfeita pelo ato de consumo não interfere na definição da

relação de consumo, isto é, verificada a aquisição ou utilização para destinação

final, pouco importa se a necessidade a ser suprida com o consumo será de

natureza pessoal ou profissional. Assim, apontam ARRUDA ALVIM, Thereza

ALVIM, Eduardo ARRUDA ALVIM e James MARTINS17:

De nossa parte, não podemos concordar com a equiparação que se quer fazer de uso final com uso privado, pois tal equiparação não está autorizada na lei e não cabe ao intérprete restringir onde a norma não o faz (...)

Assim, pode-se afirmar que em inúmeras situações as empresas (de comércio ou de produção) adquirem ou utilizam-se de produtos com ‘destinatários finais’, quando então, dada a definição deste art. 2º, recebem plenamente a proteção deste Código, na qualidade de ‘consumidor pessoa-jurídica’. A empresa que adquire, por exemplo, um veículo para transporte de sua matéria prima ou de seus funcionários, certamente o faz na qualidade de adquirente e usuário final daquele produto, que não será objeto de transformação, nem tampouco, nesta hipótese, será implementado o veículo no objeto de produção da empresa (aqui ‘consumidor pessoa-jurídica’). O veículo comprado atinge aí o seu ciclo final, encontrando na empresa o seu destinatário final.

c) O uso profissional do bem ou serviço adquirido ou utilizado pela pessoa jurídica

que exerce atividade econômica apenas afastará a existência de relação de

consumo se tal bem ou serviço compor, diretamente (revenda) ou por

transformação, beneficiamento ou montagem, o produto ou serviço a ser

fornecido a terceiros, tendo em vista que, em tais hipóteses, a destinação não

será final, mas apenas intermediária;

d) A pessoa jurídica que exerce atividade econômica será consumidora sempre que

o bem ou serviço for adquirido ou utilizado para destinação final; desnecessária,

na hipótese, a demonstração de ser, a pessoa jurídica, parte vulnerável ou

hipossuficiente (fático ou econômico, técnico ou jurídico) perante o fornecedor.

17 ARRUDA ALVIM; ALVIM, Thereza; ARRUDA ALVIM, Eduardo; MARTINS, James. Código do Consumidor Comentado. São Paulo: RT, 2ª ed., 1995, p.22-23-29.

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20Assim, vale mais uma vez citar, ARRUDA ALVIM, Thereza ALVIM, Eduardo

ARRUDA ALVIM e James MARTINS18:

Da mesma forma, não se pode pretender limitar a proteção do Código às pessoas jurídicas equiparadas ao consumidor hipossuficiente, pois que em momento algum condiciona o Código o conceito de consumidor à hipossuficiência.

Tal linha de raciocínio, além de ter sido acolhida por parte da doutrina19, foi

adotada, a princípio, pela Primeira e Terceira Turmas do Superior Tribunal de Justiça -

STJ, conforme se verifica pela análise dos julgados abaixo colacionados:

ADMINISTRATIVO. EMPRESA CONCESSIONÁRIA DE FORNECIMENTO DE ÁGUA. RELAÇÃO DE CONSUMO. APLICAÇÃO DOS ARTS. 2º E42, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.1. Há relação de consumo no fornecimento de água por entidade concessionária desse serviço público a empresa que comercializa com pescados.2. A empresa utiliza o produto como consumidora final.3. Conceituação de relação de consumo assentada pelo art. 2º, do Código de Defesa do Consumidor.4. Tarifas cobradas a mais. Devolução em dobro. Aplicação do art. 42, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor.5. Recurso provido.

(...) A recorrente, na situação em exame, é considerada consumidora porque não utiliza a água como produto a ser integrado em qualquer processo de produção; transformação ou comercialização de outro produto. O fornecimento de água é para o fim específico de ser consumida pela empresa como destinatária final, utilizando-a para todos os fins de limpeza, lavagem e necessidades humanas. O destino final do ato de consumo está bem caracterizado, não se confundindo com qualquer uso do produto para intermediação industrial ou comercial. (Resp. 263.229/SP, Rel. Min. José Delgado, Primeira Turma, unânime, DJ 09.04.2001)

18 ARRUDA ALVIM, ALVIM, Thereza; ARRUDA ALVIM, Eduardo, MARTINS, James. Código do Consumidor Comentado. São Paulo: RT, 2ª ed., 1995, p.23.

19 Dentre eles, Arruda Alvim, Thereza Alvim, Eduardo Arruda Alvim, James Martins, João Batista Almeida, Agostinho Teixeira de Almeida Filho e Tiago Machado de Freitas.

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21CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. DESTINATÁRIO FINAL: CONCEITO. COMPRA DE ADUBO. PRESCRIÇÃO. LUCROS CESSANTES.1. A expressão "destinatário final", constante da parte final do art. 2º do Código de Defesa do Consumidor, alcança o produtor agrícola que compra adubo para o preparo do plantio, à medida que o bem adquirido foi utilizado pelo profissional, encerrando-se a cadeia produtiva respectiva, não sendo objeto de transformação ou beneficiamento.2. Estando o contrato submetido ao Código de Defesa do Consumidor a prescrição é de cinco anos.3. Deixando o Acórdão recorrido para a liquidação por artigos a condenação por lucros cessantes, não há prequestionamento dos artigos 284 e 462 do Código de Processo Civil, e 1.059 e 1.060 do Código Civil, que não podem ser superiores ao valor indicado na inicial.4. Recurso especial não conhecido.

(...) A meu sentir, esse cenário mostra que o agricultor comprou o produto na qualidade de destinatário final, ou seja, para utilizá-lo no preparo de sua terra, não sendo este adubo objeto de nenhuma transformação (Resp. 208.793/MT, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, Terceira Turma, unânime, DJ 01.08.2000)

RECURSO ESPECIAL. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. DESTINATÁRIO FINAL. JUÍZO COMPETENTE. FORO DE ELEIÇÃO. DOMICÍLIO DO AUTOR.- Insere-se no conceito de "destinatário final" a empresa que se utiliza dos serviços prestados por outra, na hipótese em que se utilizou de tais serviços em benefício próprio, não os transformando para prosseguir na sua cadeia produtiva.-Estando a relação jurídica sujeita ao CDC, deve ser afastada a cláusula que prevê o foro de eleição diverso do domicílio do consumidor.- Recurso especial conhecido e provido.

(...) Extrai-se dos autos que a recorrente é qualificada como destinatária final, já que se dedica à produção de alimentos e que se utiliza dos serviços de software, manutenção e suporte oferecidos pela recorrida, apenas para controle interno da produção. Deve-se, portanto, distinguir os produtos adquiridos pela empresa que são meros bens de utilização interna da empresa daqueles que são, de fato, repassados aos consumidores. Resp. 488.274/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, unânime, DJ 23.06.2003)

Como já visto, os fundamentos adotados pela Teoria Maximalista se coadunam

com o contexto histórico em que o Código de Defesa do Consumidor foi inserido no

sistema jurídico brasileiro, na medida em que pretendia o legislador permear, o mais

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22rapidamente possível, o mercado de consumo, então viciado, com os princípios ali

estatuídos.

No entanto, a crítica a que se faz a esta Teoria é que o Código de Defesa do

Consumidor tem como fito proteger os membros da sociedade que são vulneráveis,

quais sejam, os consumidores, e não qualquer agente que adquire um bem e/ou serviço,

de modo que, ao admitir aquela se estará contrariando a razão legal do estatuto em

comento.

Além disso, em razão de seu alto grau de protecionismo e restrições para

contratar e garantir, o Código de Defesa do Consumidor representaria um entrave nas

relações comerciais.

Ainda, ao ampliar o âmbito de aplicação do Código de Defesa do Consumidor,

se está substituindo, tacitamente, os Códigos Civil e Comercial, passando a regular

quase todas as relações ali positivadas, razão pela qual dito âmbito de aplicação deve

ser revisto, sendo oportunas as palavras de Tiago Machado de FREITAS20 a respeito:

É irrefutável que vem o CDC atingindo o seu objetivo, sendo incontroversa a avaliação de que o mercado de consumo brasileiro evoluiu positivamente nesta primeira década de vigência do código. Creditamos boa parte deste feito ao grande alcance a difusão que tiveram as normas de proteção aoconsumidor, o que, por sua vez, só foi possível em função de uma interpretação maximalista de normas do CDC.

O momento agora é de reflexão, e acreditamos que esse alargamento do âmbito de aplicação das normas do CDC deve, em parte, ser revisto. (...) Ao CDC cabe proteger o consumidor, devendo atingir o seu desiderato utilizando todos os instrumentos que estejam ao seu alcance.

20 MACHADO DE FREITAS, Tiago. A Extensão do Conceito de Consumidor em face dos Diferentes Sistemas de Proteção Adotados por Brasil e Portugal. in, PINTO MONTEIRO, Antônio (diretor). Estudos de Direito do Consumidor. Publicação do Centro de Direito de Consumo. Coimbra, nº 5, 2003, p.408-409.

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23Desta forma, se por um lado, a conceituação legal continuará ampla, a sua interpretação deverá se tornar um pouco mais restrita. (...)

Outrossim, entendemos que limites têm de ser traçados quanto ao aproveitamento pelas pessoas jurídicas das normas de natureza protetiva veiculadas no CDC. Primeiro porque o mercado de consumo brasileiro mudou, e já não se encontra no mesmo estágio que estava a dez anos atrás, depois porque poderão as pessoas jurídicas obter uma satisfatória proteção de seus direitos com novas diretrizes trazidas pelo novo código civil, e assim continuar a interferir de forma positiva na construção de um mercado mais justo. (...)

Por conta dessas últimas considerações, atualmente, grandes nomes da doutrina

e da jurisprudência, inclusive o Superior Tribunal de Justiça – STJ (o qual mudou seu

entendimento), tem-se filiado a uma interpretação restritiva do conceito de consumidor

(disposto no artigo 2º da Lei nº 8.078/90), objeto de estudo de Teoria Finalista, tema a

ser tratado no capítulo seguinte.

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CAPÍTULO III

TEORIA FINALISTA

Ultrapassado o furor protecionista causado com a edição do Código de Defesa

do Consumidor, outra parte da doutrina21, temerosa em ver banalizada a tutela que dita

legislação visa, bem como partindo do pressuposto que seu intuito é regular relações

jurídicas entre desiguais, não podendo ser aplicada de forma indiscriminada, passou a

adotar um conceito restrito de consumidor22.

Para a Teoria Finalista, os consumidores são, de um modo geral, aqueles que se

submetem ao poder de controle dos titulares de bens de produção, se apresentando no

mercado como simples adquirentes ou usuários de serviços, sem ligação com a sua

atividade empresarial própria.

21 Dentre eles, Fábio Konder Comparato, Antônio Herman V. Benjamin, José Geraldo Brito Filomeno, Cláudia Lima Marques e Gustavo Tepedino.22 “(...) a amplitude de uma definição de consumidor que inclua a pessoa jurídica entre seus tutelados – e sem qualquer ressalva – pode-se transformar em óbice ao desenvolvimento do Direito do Consumidor, na medida em que tal conceito jurídico de consumidor quase que chega a se confundir com o seu similar econômico (excluindo-se deste último, evidentemente, o consumidor intermediário). Em outras palavras: se todos somos consumidores (no sentido jurídico), inclusive as empresas produtoras, por que, então, tutelar-se, de modo especial, o consumidor? (...)” (HERMAN DE VASCONCELLOS E BENJAMIN, Antônio. O Conceito Jurídico de Consumidor. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 77, n. 628, fev. 1988, p. 77)

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25

Assim, não basta o consumidor ser destinatário final fático do produto, tão-

somente retirá-lo da cadeia de produção e levá-lo para o escritório ou residência, tal

como entende a Teoria Maximalista. Segundo a Teoria Finalista, é necessário o

consumidor ser destinatário final econômico do bem, não o adquirindo para o uso

profissional, sendo certo que a sua utilização, direta ou indireta, na atividade econômica

exercida, descaracteriza a destinação ou fruição final do bem, transformando-o em

instrumento do ciclo produtivo de outros bens e serviços.

Ou seja, segundo os adeptos desta Teoria, a pessoa jurídica a que se refere o

artigo 2º da Lei nº 8.078/90 é especificamente a pessoa jurídica de direito civil sem

caráter empresarial, como as fundações e as associações, assim como a pessoa jurídica

de direito comercial tão-somente nos casos em que a contratação de bens ou serviços de

consumo não tenha vinculação alguma com a sua atividade produtiva ou empresarial23.

Além disso, pregam os finalistas que, para se bem interpretar o artigo 2º do

Código de Defesa do Consumidor deve-se levar em conta a sua ratio legis, assim como

a causa da relação jurídica em exame, valendo transcrever a opinião de Cláudia LIMA

MARQUES24 sobre o tema:

(...) Para se realizar a Justiça no caso concreto, o artigo 2º do CDC deve ser interpretado conforme a sua ratio legis, sua finalidade atual, com ensina o método de interpretação

23 No entanto, vale citar o entendimento de José Geraldo Brito Filomeno: “(...) Na verdade, o critério conceitual do Código brasileiro discrepa da própria filosofia consumerista ao colocar a pessoa jurídica como também consumidora de produtos e serviços. E isto exatamente pela simples razão de que o consumidor, geralmente vulnerável como pessoa física, defronta-se com o poder econômico dos fornecedores em geral, o que não ocorre com estes que, bem ou mal, grandes ou pequenos, detém maior informação e meios de defender-se uns dos outros quando houver impasses e conflitos de interesses” (GRINOVER, Ada Pellegrini; HERMAN DE VASCONCELLOS E BENJAMIN, Antônio; FINK, Daniel Roberto; BRITO FILOMENO, José Geraldo; WATANABE, Kasuo; NERY JÚNIOR, Nelson; DENARI, Zelmo. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 8ª ed., 2005, p.34)24 LIMA MARQUES, Cláudia; TURKIENICZ, Eduardo. Caso Teka vs. Aiglon: Em Defesa da Teoria Finalista de Interpretação do Art. 2º do CDC. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo. v.9, nº 36, out/dez 2000, p.228/230.

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26teleológica defendido pelo grande jurista Jhering. A ratio legisde todas as normas do Código de Defesa do Consumidor está positivada, narrada, esclarecida no art. 4º do CDC, que impõe respeito, lealdade, transparência e harmonia nas relações de consumo, atendido o princípio do reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor, da boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores.

(...) A interpretação deve levar em conta a “causa” do contrato em exame. A relação de consumo concretiza-se na sua causa, causa inicial e final, na sua finalidade, que é naturalmente de consumo. Esta certeza ajudará em muito o exame do plano da existência, isto é, a caracterização da relação envolvendo serviços como de consumo ou não, pois é sempre possível perguntar se a causa (inicial e final) principal, a causa do contrato acessório de consumo ou por conexidade (até mesmo a causa do acidente) foi de consumo ou de produção. (...)

Neste sentido, são pressupostos da Teoria Finalista:

a) O conceito de consumidor deve ser subjetivo. Neste contexto, consumidor deve

ser entendido com aquele que ocupa um nicho específico da estrutura de

mercado – o de ultimar a atividade econômica com a retirada de circulação

(econômica) do bem ou serviço – mas com uma finalidade específica: consumi-

lo para suprir uma necessidade ou satisfação eminentemente pessoal, do ser

humano;

b) A expressão “destinatário final” deve ser interpretada restritivamente. Para se

caracterizar consumidor, não basta ser o adquirente ou utente destinatário final

fático do bem ou serviço: deve ser também o seu destinatário final econômico,

isto é, a utilização deve romper a atividade econômica com vistas ao

atendimento de necessidade privada, pessoal, não podendo ser reutilizado, o bem

ou serviço, no processo produtivo, ainda que de forma indireta. Assim, bens ou

serviços adquiridos por quem exerce atividade econômica, ainda que utilizados

para a mera incorporação no estabelecimento empresarial (presente a destinação

final fática, portanto) afastam a caracterização da relação de consumo, porquanto

estará sempre ausente a destinação final econômica, dado que o bem ou serviço

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27continuará, de alguma forma, inserido no processo produtivo, valendo citar o

entendimento de Maria Antonieta ZANARDO DANATO25 a respeito:

É o que ocorre (...) quando uma empresa adquire uma frota de veículos para realizar o transporte das mercadorias produzidas. (...) a empresa, por sua vez, o utilizará como instrumento de seu trabalho e indexará o seu custo ao preço de seu produto final.

Tal entendimento apresentado pela Teoria Finalista passou ser sistematicamente

adotado pelos Tribunais do país, inclusive pelo Superior Tribunal de Justiça, a princípio

pela sua Quarta e Sexta Turmas, após pela sua 2ª Seção, conforme se verifica pela

leitura dos julgados abaixo transcritos:

MÚTUO. REDUÇÃO DA MULTA CONTRATUAL DE 10% PARA 2%. INEXISTÊNCIA NO CASO DE RELAÇÃO DE CONSUMO.

- Tratando-se de financiamento obtido por empresário, destinado precipuamente a incrementar a sua atividade negocial, não se podendo qualificá-lo, portanto, como destinatário final, inexistente é a pretendida relação de consumo. Inaplicação no caso do Código de Defesa do Consumidor.

Recurso especial não conhecido.

(...) A pessoa jurídica não utilizou o capital mutuado como destinatária final, e sim, para emprego em finalidade gerencial, voltado ao fomento de sua produção. (Resp. 218.505/MG, Rel. Min. Barros Monteiro, Quarta Turma, unânime, DJ 14.02.2000)

CIVIL. RECURSO ESPECIAL. CONTRATO DE LOCAÇÃO. REDISTRIBUIDORA DE COMBUSTÍVEIS E POSTO REVENDEDOR. AUSÊNCIA DE PREQUESITONAMENTO DA LEI DE PATENTES E DALEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL. VIOLAÇÃO AOS ARTS. 165, 458, INC. II E 535, TODOS DO CPC NÃO INCIDÊNCIA DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR, NA ESPÉCIE. AUSÊNCIA DE CONSUMIDOR FINAL, NO ÂMBITO DA RELAÇÃO JURÍDICA CONTRATUAL IMPUGNADA. APLICAÇÃO

25 ZANARDO DONATO, Maria Antonieta. Proteção ao Consumidor: Conceito e Extensão. São Paulo: RT, 1993, p. 84.

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28DO DISPOSTO NA LEI DO INQUILINATO (LEI n. 8245/91). LEGALIDADE DAS CLÁUSULAS RELATIVAS AO ALUGUEL E À EXCLUSIVIDADE DE REVENDA DE

PRODUTOS RECONHECIDA. ERRO SUBSTANCIAL INEXISTENTE. PRÁTICA, ADEMAIS, QUE NÃO IMPLICA EM AFRONTA AO PRINCÍPIO DA LIVRE CONCORRÊNCIA.

(...) O posto revendedor de combustíveis não se enquadra dentro do conceito de consumidor final, haja vista estar o contrato que celebrou com a Shell do Brasil diretamente vinculado à sua atividade lucrativa, motivo porque inaplicável, nas relações que mantém entre si, o disposto no Código de Defesa do Consumidor. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, provido. (Resp. 475.220/GO, Rel. Min. Paulo Medina, Sexta Turma, unânime, DJ 15.09.2003)

COMPETÊNCIA. RELAÇÃO DE CONSUMO. UTILIZAÇÃO DE EQUIPAMENTO E DE SERVIÇOS DE CRÉDITO PRESTADO POR EMPRESA ADMINISTRADORA DE CARTÃO DE CRÉDITO. DESTINAÇÃO FINAL INEXISTENTE.

– A aquisição de bens ou a utilização de serviços, por pessoa natural ou jurídica, com o escopo de implementar ou incrementar a sua atividade negocial, não se reputa como relação de consumo e, sim, como uma atividade de consumo intermediária.

Recurso especial conhecido e provido para reconhecer a incompetência absoluta da Vara Especializada de Defesa do Consumidor, para decretar a nulidade dos atos praticados e, por conseguinte, para determinar a remessa do feito a uma das Varas Cíveis da Comarca.

(...) Em resumo e concluindo, concordamos com a interpretação finalista das normas do CDC. A regra do artigo 2º deve ser interpretada de acordo com o sistema de tutela especial do Código e conforme a finalidade da norma, a qual vem determinada de maneira clara pelo art. 4º do CDC. Só uma interpretação teleológica da norma do art. 2ª permitirá definir quem são os consumidores no sistema do CDC. (...) (Resp. 541.867/BA, Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, 2ª Seção, DJ 16.05.2005)

É interessante notar que a definição de consumidor defendida pelos finalistas se

coaduna com as mais importantes legislações estrangeiras sobre o assunto, quais sejam,

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29o Projeto de Diretiva da Comunidade Econômica Européia26, a Lei Geral sobre os

Direitos dos Consumidores e Usuários (Legge Sui Diritti Dei Cosumatori e Delle Loro

Associazione), aprovada em 02.07.199827 e o BGB Alemão28 29.

Além disso, tanto a doutrina Belga, como a Francesa defendem a tese no sentido

de vincular a condição de consumidor à situação de um não-profissional que contrata

para atender exclusivamente a necessidades pessoais, entendidas com tais as suas e as

de sua família30.

No entanto, verifica-se que, dentre os defensores da Teoria Finalista um

entendimento menos ortodoxo acerca do conceito de consumidor.

Levando-se em consideração a “viga mestra” do Código de Defesa do

Consumidor - vulnerabilidade - alguns doutrinadores finalistas já pregam a

reformulação ao conceito de consumidor ali explicitado.

26 Conceito de Consumidor constante no Projeto de Diretiva da Comunidade Econômica Européia: “ É a pessoa que compra mercadorias principalmente para o uso pessoal, familiar ou doméstico.”27 Já a definição de consumidor constante na citada Lei é: “Pessoa física que adquire ou utiliza bem ou serviço para fins não referentes à atividade empresarial e profissional eventualmente desenvolvida.”28 Em meados de 2000, foram operadas significativas mudanças no Código Civil alemão (BGB), cabendo consignar que em sua Parte Geral foi inserida a figura do consumidor, constante no parágrafo 13: “ Consumidor é qualquer pessoa física que conclui um negócio jurídico, cuja finalidade não tem ligação comercial ou com sua atividade profissional.” 29 Cláudia Lima Marques corretamente assinala que, acerca da norma do parágrafo 13 do BGB: “Esta definição negativa (finalista) de consumidor contém as características internacionalmente mais aceitas de consumidor, quais sejam a de sua não-profissionalidade, de pessoa física (a relembrar o uso familiar, coletivo ou pessoal dos produtos e serviços adquiridos ou usados).” (LIMA MARQUES, Cláudia. Código Civil Alemão muda para incluir a figura do consumidor: Renasce o ‘direito civil geral e social’?. Revista Trimestral de Direito Civil 3, Rio de Janeiro: Padma, jul.-set. 2000, p. 272.) 30 Para o mais brilhante jurista belga na matéria “Consumidor será toda pessoa individual que adquire ou utiliza, para fins privados, bens ou serviços colocados no mercado econômico por alguém que atua em função de atividade comercial ou profissional.” (grifos do original) (BOURGOIGNIE, Thierry. O Conceito Jurídico de Consumidor. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo, n. 6, p-7-51, abr. 1992).

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30Neste sentido, Cláudia LIMA MARQUES31 acentua que:

(...) de uma posição inicial forte, influenciada pela doutrina francesa e belga (...) os finalistas evoluíram para uma posição mais branda, se bem que sempre teleológica, aceitando a possibilidade do judiciário, reconhecendo a vulnerabilidade de uma pequena empresa ou do profissional que adquiriu, por exemplo, um produto fora de seu campo de especialidade, interpretar o artigo 2º (do CDC) de acordo com o “fim da norma”, isto é, proteção ao mais fraco na relação de consumo, e conceder a aplicação das normas especiais do CDC analogicamente também a estes profissionais.

Esta “terceira via” interpretativa constitui objeto do próximo capítulo.

31 LIMA MARQUES, Cláudia. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: RT, 3ª ed., 1998, p. 68.

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CAPÍTULO IV

“NOVA” LINHA INTERPRETATIVA DO ARTIGO 2º DO

CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

“(...) dentro da letra expressa, procura-se a interpretação que conduza a melhor conseqüência para a coletividade. Deve o direito ser interpretado inteligentemente: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter conclusões inconsistentes ou impossíveis.”

Carlos Maximiliano

Hermenêutica e Aplicação do Direito

Como já visto, num primeiro momento, para implantação plena do “espírito” do

Código de Defesa do Consumidor no seio das relações jurídicas, restou indispensável a

adoção da Teoria Maximalista, a qual incluía no âmbito subjetivo de incidência daquele

outras pessoas que não apenas o consumidor, aqui entendido em seu conceito

tradicional.

Porém, ultrapassados mais de dezesseis anos da promulgação da Lei

Consumerista, mostra-se mais adequada a adoção do entendimento esposado pela

corrente Finalista, conferindo-se mais importância à análise da vulnerabilidade, o que

constitui, portanto, a “nova” linha interpretativa acerca do conceito jurídico de

consumidor.

Partindo da interpretação sistemática e teleológica das normas do Código de

Defesa do Consumidor, tendo como premissa basilar a vulnerabilidade do consumidor,

dita linha interpretativa prega a aplicação daquele também às pequenas empresas e

profissionais, desde que em posição de desigualdade.

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Daí a importância do elemento vulnerabilidade, cabendo acrescentar a existência

de três espécies desta: 1. A vulnerabilidade técnica (falta de conhecimentos específicos

e técnicos sobre o objeto que está adquirindo, o serviço necessário, suas características,

sua utilidade, seus riscos); 2. A vulnerabilidade jurídica (quando o consumidor não

possui conhecimento jurídico exclusivo, contábil e econômico do objeto da relação

consumerista em que se insere) e 3. A vulnerabilidade fática ou econômica (se perfaz no

momento em que o consumidor se depara, na ambiência de uma relação consumerista,

com uma superioridade econômica ou mesmo com o monopólio de determinada

atividade por parte do fornecedor)32.

Por outro lado, cumpre destacar que a vulnerabilidade não deve ser confundida

com a noção de hipossuficiência, conceito que se aplica só no âmbito processual e que

exprime situação na qual se acha o consumidor quando se depara com grave obstáculo à

obtenção da prova do fato constitutivo de seu direito. O consumidor será sempre

vulnerável, mas nem sempre hipossuficiente33.

Neste contexto, a vulnerabilidade é a peça chave da relação consumerista, uma

vez verificada, no caso concreto, definir-se-á que determinado sujeito de direitos é

consumidor, ou seja, destinatário final do bem e/ou serviço que lhe é ofertado pelo

mercado de consumo, sendo válido citar o entendimento de Cláudia LIMA MARQUES:

(...) A definição do art. 2º é a regra basilar do Código de Defesa do Consumidor e deve seguir seu princípio e sua ratio legis, É

32 Cabe ainda acrescentar os que entendem que, exista ainda, uma vulnerabilidade especial, ou seja, de consumidores mais privilegiados que os demais, como por exemplo os idosos, as crianças, os trabalhadores desempregados e os consumidores que possuem uma saúde debilitada, a teor do princípio da dignidade da pessoa humana posto na Constituição da República. (LIMA MARQUES, Cláudia. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: RT, 3ª ed., 1998)33 No tocante à hipossuficiência, trata-se de requisito necessário a fundamentar a inversão do ônus da prova e somente nessa perspectiva cabe ser invocada. A hipossuficiência do consumidor, que não é apenas econômica, deve ser por ele provada e avaliada à luz de outros dados, como o seu grau de instrução, a natureza do serviço prestado, as condições em que o fornecedor desempenha suas atividades, dentre outras.

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33esta mesma ratio que incluiu no Código de Defesa do Consumidor possibilidades de equiparação, de tratamento analógico e de expansão, mas não princípio, sim na exceção. O direito é a arte de distinguir e a ratio legis do Código de Defesa do Consumidor não pode ser desconsiderada de forma a levar a própria destruição do que representa, logo, da própria ratio legis de proteção preferencial dos mais fracos, mais vulneráveis no mercado. Defendemos, pois, a necessária conjunção de fatores finalísticos, destinação final fática e econômica do serviço, com base no art. 4º, I do CDC (ratio de vulnerabilidade).

Enfim, de acordo com o entendimento desta “nova” linha interpretativa acerca

do conceito jurídico de consumidor, a pessoa jurídica pode ser encarada como

consumidora, desde que seja destinatária final e econômica do objeto jurídico referente

à relação de consumo, devendo, outrossim, comprovar a sua vulnerabilidade no caso

concreto.

CONCLUSÃO

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34Caracterizada por um número crescente de produtos e serviços, pelo domínio do

crédito e do marketing, assim como pelas dificuldades de acesso à justiça, a sociedade

de consumo, ao contrário do que se imagina, não trouxe apenas benefícios para os

consumidores, ao contrário.

Isto porque, se antes fornecedor e consumidor encontravam-se em uma situação

de relativo equilíbrio de poder de barganha (porque se conheciam), agora é o fornecedor

(fabricante, produtor, construtor, importador ou comerciante) que, inegavelmente,

assume a posição de força na relação de consumo e que, por isso mesmo, “dita as

regras”, sendo certo que o Direito não poderia ficar alheio a este fenômeno.

Tal conclusão foi objeto de preocupação de vários Estados, não sendo diverso no

Brasil, o que refletiu no corpo constitucional, e deu ensejo a criação do Código de

Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), sendo seu intuito refazer o equilíbrio da

relação havida entre o fornecedor de bens e serviços e o consumidor.

Embora seja a vulnerabilidade o princípio norteador para concessão da tutela

instituída no Código de Defesa do Consumidor, verifica-se que, o legislador brasileiro,

ao estabelecer o conceito de consumidor no artigo 2º daquele, optou por lhe dar grande

extensão.

Isto porque, visava o Legislador promover a efetiva proteção ao consumidor, no

mais curto espaço de tempo, sendo incluir no âmbito subjetivo de incidência do Código

de Defesa do Consumidor outras pessoas que não apenas o consumidor, aqui entendido

em seu conceito tradicional, a solução encontrada.

Assim, num primeiro momento, tanto a doutrina quanto à jurisprudência

tenderam a uma interpretação Maximalista do conceito de consumidor.

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35Partindo do entendimento de que o Código de Defesa do Consumidor é, na

verdade, um regulamento de mercado de consumo brasileiro, instituindo normas e

princípios para todos os agentes do mercado, não visando apenas a proteção do

consumidor não profissional, para a Teoria Maximalista a definição do artigo 2º da Lei

nº 8.078/90 deve ser interpretada da forma mais ampla possível.

O que importa é a destinação fática, aquele que retira o bem e/ou serviço do

mercado de consumo, findando o ciclo econômico do objeto jurídico.

No entanto, a crítica a que se faz a esta Teoria é que o Código de Defesa do

Consumidor tem como fito proteger os membros da sociedade que são vulneráveis,

quais sejam, os consumidores, e não qualquer agente que adquire um bem e/ou serviço,

de modo que, ao admitir aquela se estará contrariando a razão legal do estatuto em

comento.

Por essa razão, ultrapassado o furor protecionista causado com a edição do

Código de Defesa do Consumidor, outra parte da doutrina, temerosa em ver banalizada

a tutela que dita legislação visa, bem como partindo do pressuposto que seu intuito é

regular relações jurídicas entre desiguais, não podendo ser aplicada de forma

indiscriminada, passou a adotar um conceito restrito de consumidor.

Segundo a Teoria Finalista, é necessário o consumidor ser destinatário final e

econômico do bem, não o adquirindo para o uso profissional, sendo certo que a sua

utilização, direta ou indireta, na atividade econômica exercida, descaracteriza a

destinação ou fruição final do bem, transformando-o em instrumento do ciclo produtivo

de outros bens e serviços.

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36Não obstante seja amplamente defendida por grandes nomes da doutrina e pela

jurisprudência pátria, verifica-se atualmente, dentre os defensores da Teoria Finalista,

um entendimento menos ortodoxo acerca do conceito de consumidor.

Assim se afirma, pois, neste momento mostra-se mais adequada a adoção do

entendimento esposado pela corrente Finalista, conferindo-se mais importância à análise

da vulnerabilidade, o que constitui, portanto, a “nova” linha interpretativa acerca do

conceito jurídico de consumidor.

De acordo com o entendimento desta “nova” linha interpretativa, a pessoa

jurídica pode ser encarada como consumidora, desde que seja destinatária final e

econômica do objeto jurídico referente à relação de consumo, devendo, outrossim,

comprovar a sua vulnerabilidade no caso concreto.

Enfim, restou claro ao longo da exposição deste trabalho que, somente uma

compreensão subjetiva do fenômeno de consumo centrada sobre a pessoa do

consumidor e sobre as condições nas quais ele realiza o seu papel no ciclo de produção-

distribuição-troca-consumo, permitirá identificar as suas fraquezas e necessidades e

assim obter uma efetiva tutela, aliada aos ditames do Direito e da Justiça, bases de uma

sociedade que todos devem almejar.

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FOLHA DE AVALIAÇÃO

Nome da Instituição: Universidade Cândido Mendes – Projeto A Vez do

Mestre

Título de Monografia: O Conceito Jurídico de Consumidor

Autor: Camila Oliveira Mazzarella

Data da Entrega: 30.11.2006

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