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1 LUIZ FERNANDO FONTES TEIXEIRA O CONFLITO DAS FRONTEIRAS NATAL 2014

O CONFLITO DAS FRONTEIRAS · enquanto delimitaÇÃo das fronteiras do pensamento 2. o caminho da negatividade: henologia e meontologia e a ultrapassagem 61 dos limites da metafÍsica

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Page 1: O CONFLITO DAS FRONTEIRAS · enquanto delimitaÇÃo das fronteiras do pensamento 2. o caminho da negatividade: henologia e meontologia e a ultrapassagem 61 dos limites da metafÍsica

1

LUIZ FERNANDO FONTES TEIXEIRA

O CONFLITO DAS FRONTEIRAS

NATAL

2014

2

PROGRAMA INTEGRADO DE DOUTORADO EM FILOSOFIA

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAIacuteBA

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

LUIZ FERNANDO FONTES TEIXEIRA

O CONFLITO DAS FRONTEIRAS

Metafiacutesica Negatividade e o Extremo Oriente

Tese de doutorado apresentada ao Programa

Integrado de Doutorado em Filosofia da

Universidade Federal da Paraiacuteba Universidade

Federal de Pernambuco e Universidade Federal

do Rio Grande do Norte como requisito para a

obtenccedilatildeo do grau de Doutor em Filosofia

ORIENTADOR OSCAR FEDERICO BAUCHWITZ

NATAL

2014

3

FICHA CATALOGRAacuteFICA ELABORADA PELA

BIBLIOTECA DO CCHLA ndash UFRN

Catalogaccedilatildeo da Publicaccedilatildeo na Fonte

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Biblioteca Setorial do Centro de Ciecircncias Humanas Letras e Artes (CCHLA)

Fontes Teixeira Luiz Fernando

O conflito das fronteiras Metafiacutesica Negatividade e o Extremo Oriente

Luiz Fernando Fontes Teixeira ndash 2014

125 f -

Tese (doutorado) ndash Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro

de Ciecircncias Humanas Letras e Artes Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em

Filosofia

Orientador Prof Dr Oscar Federico Bauchwitz

1 Metafiacutesica 2 Negatividade (Filosofia) I Bauchwitz Oscar Federico

II Universidade Federal do Rio Grande do Norte III Tiacutetulo

RNBSE-CCHLA CDU 111

4

FOLHA DE APROVACcedilAtildeO

LUIZ FERNANDO FONTES TEIXEIRA

O CONFLITO DAS FRONTEIRAS

Metafiacutesica Negatividade e o Extremo Oriente

Tese aprovada como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do grau de Doutor em Filosofia no

Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da Universidade Federal da Paraiacuteba

Universidade Federal de Pernambuco e Universidade Federal do Rio Grande do Norte pela

seguinte banca examinadora

Orientador Prof Dr Oscar Federico Bauchwitz (presidente)

Departamento de Filosofia UFRN

Profa Dra Gisele Amaral dos Santos

Departamento de Filosofia UFRN

Dr Edrisi de Arauacutejo Fernandes

Departamento de Filosofia UFRNUnB

Prof Dr Leonel Ribeiro dos Santos

Faculdade de Letras Universidade de Lisboa

Profa Dra Claudia DrsquoAmico

Departamento de Filosofia Universidad de Buenos Aires

Prof Dr Ciacutecero Cunha Bezerra (suplente)

Departamento de Filosofia UFS

Profa Dra Claudia Pellegrini Drucker (suplente)

Departamento de Filosofia UFSC

Natal 30 de maio de 2014

5

AGRADECIMENTOS

Pelos anos de orientaccedilatildeo e suporte pela incansaacutevel e paciente instruccedilatildeo pelo sempre presente

companheirismo e por tornar possiacutevel o caminho percorrido agradeccedilo ao Prof Dr Oscar

Federico Bauchwitz Pela hospitalidade e cortesia pelos conselhos e indicaccedilotildees pelos diaacutelogos

e por abrir um novo horizonte especulativo para muito aleacutem do trabalho acadecircmico agradeccedilo

ao Prof Dr Graham Parkes

Pela oportunidade de discussatildeo e criacuteticas pela atenccedilatildeo na leitura do trabalho e pelos

inestimaacuteveis acreacutescimos agradeccedilo aos membros das bancas de qualificaccedilatildeo e defesa Profa

Dra Claudia DrsquoAmico Prof Dr Leonel Ribeiro dos Santos Dr Edrisi de Arauacutejo Fernandes e

Profa Dra Gisele Amaral dos Santos

Agradeccedilo ao Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da Universidade Federal

da Paraiacuteba Universidade Federal de Pernambuco e Universidade Federal do Rio Grande do

Norte pela aceitaccedilatildeo do projeto de tese doutoral Agradeccedilo agrave University College Cork (Colaacuteiste

na hOllscoile Corcaigh) pela recepccedilatildeo do estaacutegio sanduiacuteche Agradeccedilo ao Trinity College

Dublin (Colaacuteiste na Triacuteonoacuteide Baile Aacutetha Cliath) pela oportunidade de frequentar os

seminaacuterios e bibliotecas Agradeccedilo agrave Alianccedila Cultural Brasil-Japatildeo e agrave Biblioteca Joatildeo Hideo

Matsumoto e ao Instituto Goethe de Satildeo Paulo e sua biblioteca Agradeccedilo ao Instituto Paulista

de Sacircnscrito e ao Prof Dr Adriano Aprigliano Agradeccedilo ainda agrave Coordenaccedilatildeo de

Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior pelo fomento da tese doutoral e do estaacutegio no

exterior

Agradeccedilo agraves pessoas que direta ou indiretamente contribuiacuteram no processo de

composiccedilatildeo da tese Alan Marinho Lopes Dax Moraes Marcus Vinicius Cavalcante Dantas

Tulio Madson de Oliveira Galvatildeo Sara Barrera Rubio Bastien Duval Javier Coloacuten Joseph

Sexton Agnieszka Klęczar Rodrigo Ferreira Braga Abrahatildeo Marcelo Ferreira Braga e Carla

Almeida

Agradeccedilo especialmente agrave Thaiacutes Ricci Conesa pelo apoio e pela motivaccedilatildeo sem os

quais natildeo concluiria este trabalho Finally yet importantly agradeccedilo ao absoluto integral e

irrestrito apoio de meus pais Luiz Pinto Teixeira e Tereza Cristina Fontes

6

Eacute preciso ainda ter caos dentro de si para dar

luz a uma estrela danccedilante

Friedrich Nietzsche Assim falou Zaratustra

7

RESUMO

O conflito das fronteiras se desdobra como um percurso natural da histoacuteria do pensamento

humano Torna-se manifesto todavia apenas mediante um expliacutecito choque cultural que

evidencia distintas formataccedilotildees conceituais Pensar este conflito pode esclarecer os enlaces

responsaacuteveis pelo desenvolvimento do pensamento contemporacircneo Esta tese pretende analisar

em um primeiro momento a histoacuteria do pensamento enquanto metafiacutesica apresentando um

diagnoacutestico da maneira pela qual o Ocidente impinge sua loacutegica categoacuterica Por conseguinte

apresenta a tradiccedilatildeo da negatividade evidenciando um pensamento para aleacutem da ontologia

claacutessica mediante uma henologia e uma meontologia no neoplatonismo e na miacutestica medieval

Por fim expotildee o pensamento do Extremo Oriente como possiblidade de recepccedilatildeo

contemporacircnea da negatividade e escapatoacuteria para a formataccedilatildeo ocidentalizante da filosofia

vigente

Palavras-chave Fronteiras Metafiacutesica Negatividade Extremo Oriente

8

ABSTRACT

The conflict of borderlines unfolds itself as a natural path in history of human thought It

becomes clear only through an explicit cultural clash which conveys distinct conceptual

formatting Thinking this conflict might enlighten the bindings responsible for development of

contemporary way of thought This thesis intent to analyse in a first moment the history of

thought as Metaphysics presenting a diagnostic towards the way through which the West

impinges its categorical logic Thereafter presents the tradition of Negativity showing a

thinking beyond Classic Ontology through a Henology and a Meontology in Neoplatonism and

Medieval Mysticism At the end exposes the Far Eastern thought as possibility of contemporary

reception of Negativity and escape from the Westernizer formatting of contemporary

philosophy

Key words Frontiers Metaphysics Negativity Far East

9

ZUSAMMENFASSUNG

Der Konflikt der Grenzen entfaltet sich als einen natuumlrlichen Weg in der Geschichte des

menschlichen Denkens Es wird nur klar durch eine explizite Kulturkampf die unterschiedliche

konzeptionelle Formatierung vermittelt Denken dieses Konflikts koumlnnte die Bindungen fuumlr die

Entwicklung der zeitgenoumlssischen Denkweise verantwortlich zu erleuchten Diese These

versuchen zu analysieren in einem ersten Moment die Geschichte des Denkens als Metaphysik

praumlsentiert eine Diagnose auf die Moumlglichkeit durch die der Westen trifft seine kategorische

Logik Danach praumlsentiert die Tradition der Negativitaumlt zeigt ein Denken jenseits Klassische

Ontologie durch eine Henologie und Meontologie im Neuplatonismus und mittelalterliche

Mystik Am Ende macht der Fernost gedacht als Moumlglichkeit der zeitgenoumlssischen Rezeption

von Negativitaumlt und Flucht aus der Westler Formatierung der zeitgenoumlssischen Philosophie

Schuumlsselwoumlrter Frontiers Metaphysik Negativitaumlt Fernost

10

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 11

1 ONTOLOGIA A SUBSTANTIVACcedilAtildeO DO OCIDENTE E O PROBLEMA DA METAFIacuteSICA 28

ENQUANTO DELIMITACcedilAtildeO DAS FRONTEIRAS DO PENSAMENTO

2 O CAMINHO DA NEGATIVIDADE HENOLOGIA E MEONTOLOGIA E A ULTRAPASSAGEM 61

DOS LIMITES DA METAFIacuteSICA

3 O EXTREMO ORIENTE E O CONFLITO DAS FRONTEIRAS A FILOSOFIA COMPARADA 89

INTERCULTURAL COMO CHAVE DE LEITURA PARA ALGUNS PROBLEMAS DO

PENSAMENTO CONTEMPORAcircNEO

CONCLUSAtildeO 113

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 119

11

INTRODUCcedilAtildeO

Aos 16 de abril de 2010 sob a avaliaccedilatildeo de uma banca composta pelos professores Oscar

Federico Bauchwitz Gisele Amaral dos Santos e Acylene Maria Cabral Ferreira defendi a

dissertaccedilatildeo de mestrado intitulada A caminho da fronteira Embora possa ainda dedicar mais

dez anos agrave correta composiccedilatildeo estiliacutestica daquele texto aleacutem da estruturaccedilatildeo dos argumentos

laacute natildeo tatildeo bem encadeados imagino ter alcanccedilado o objetivo de tornar claro natildeo apenas o intuito

do trabalho mas o problema movimentado pela questatildeo do conflito fronteiriccedilo de uma filosofia

comparada intercultural por meio de uma histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica

A questatildeo ldquoentre Heidegger e os japonesesrdquo (subtiacutetulo da dissertaccedilatildeo) abordada ao longo

dos dois anos de mestrado acadecircmico referia-se a uma virada de pontos de vista se em um

primeiro momento os orientais se perguntavam o quecirc a filosofia ocidental podia oferecer ao

pensamento e desenvolvimento do Extremo Oriente em um segundo momento os ocidentais

passaram a se perguntar de que forma os japoneses podiam acrescentar agrave filosofia um elemento

meditativo perdido no periacuteodo da consumaccedilatildeo da teacutecnica moderna e do cientificismo desde

suas perspectivas milenares de pensamento reflexivo

Ao passo em que a pesquisa ia se desenvolvendo o trabalho caminhou paulatinamente

rumo ao impacto violento surtido pelo diaacutelogo entre limites bem delineados de um Ocidente

estruturalmente metafiacutesico e um Oriente especulativo quase inefaacutevel para um leitor ocidental

A conclusatildeo extraiacuteda do caminho percorrido entre os anos de 2008 e 2010 apresentou antes de

qualquer soluccedilatildeo a constataccedilatildeo da instalaccedilatildeo de uma impertinecircncia petrificada no seio da

filosofia contemporacircnea sobre a qual pouco se pode acrescentar na dissoluccedilatildeo de problemas

mas muito se pode desdobrar no que tange ao entrelaccedilamento do alcance de um grau distinto

de movimentaccedilatildeo das arquitetocircnicas conceituais

12

Embora tais palavras pareccedilam abstratas em demasia (e de fato satildeo) o foco atingido se

concentrou em uma inquiriccedilatildeo a respeito do pensamento da linguagem e da verdade a partir

de um inusitado enigma sobre a negatividade do impensaacutevel ou seja sobre o silecircncio que

emerge no preciso momento no qual o pensamento eacute estarrecido e a liacutengua cala

A armadilha construiacuteda a partir das muacuteltiplas tentativas de elaboraccedilatildeo de conceitos afeta

natildeo somente a formataccedilatildeo silogiacutestica do intelecto humano comum mas ainda as

particularidades dos diversos modos de expressatildeo geograficamente distintos Correndo o risco

de se tornar antes uma antropologia filosoacutefica do que propriamente uma histoacuteria e criacutetica da

metafiacutesica o trabalhou refletiu uma anaacutelise agrave proacutepria concepccedilatildeo pela qual se distingue uma

filosofia da outra execrando qualquer nacionalismo filosoacutefico e investigando as questotildees que

envolvem a existecircncia humana dentro de seu modo relacional com o ser e com o ambiente que

a cerca O resultado foi a apresentaccedilatildeo de uma filosofia comparada intercultural que aparece

natildeo simplesmente como um campo disciplina ou subaacuterea da filosofia mas antes como uma

maneira pela qual eacute possiacutevel pensar filosoficamente para aleacutem das fronteiras de uma mera

linguagem de primeira ordem Dentro deste contexto nasce a hipoacutetese do tema o conflito das

fronteiras a partir do pressuposto de uma abordagem aos temas centrais do pensamento

contemporacircneo sustentando a interculturalidade filosoacutefica como aporte central

A proposiccedilatildeo fundamental desta tese adveacutem de alguns questionamentos particulares e

pontuais em um fluxo semelhante ao da dissertaccedilatildeo de 2010 Em abril de 2009 enquanto ainda

trabalhava no texto do mestrado teve lugar no campus da Universidade Federal do Rio Grande

do Norte o III Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica comissionado pelos professores Oscar

Federico Bauchwitz Jaimir Conte Maria da Paz Nunes de Medeiros e Markus Figueira da Silva

O evento marcava a consolidaccedilatildeo da linha de pesquisa em Metafiacutesica do Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Filosofia da universidade trazendo em sua terceira ediccedilatildeo o tema O que eacute

metafiacutesica Em homenagem aos oitenta anos da preleccedilatildeo homocircnima de Martin Heidegger

13

A conferecircncia pronunciada por Heidegger aos 24 de julho de 1929 foi preparada como

aula inaugural para a assunccedilatildeo da caacutetedra de filosofia que antes pertencera a Edmund Husserl

na Albert-Luumldwigs Universitaumlt Freiburg im Breisgau O escrito se tornou um dos mais

emblemaacuteticos conhecidos e discutidos textos de Heidegger Talvez o fator mais impactante da

preleccedilatildeo seja antes mesmo da abordagem temaacutetica o meacutetodo pouco usual conforme o qual o

questionamento eacute elaborado Heidegger inicia a aula dizendo que embora a questatildeo suscite a

expectativa de que se falaraacute sobre a metafiacutesica ele iraacute na verdade discutir uma questatildeo

metafiacutesica particular proporcionando uma movimentaccedilatildeo em seu interior e habilitando a

oportunidade para que a ela apareccedila por si soacute a partir do problema levantado (cf HEIDEGGER

1976 103) Deixar a metafiacutesica se apresentar por si soacute antes do que sobre ela discorrer

evidencia uma feiccedilatildeo um tanto distinta da abordagem de Heidegger ao problema uma de suas

marcas registradas todavia

Raras vezes a tradiccedilatildeo ocidental se deparou com tal niacutevel de heterodoxia no que tange

agrave instruccedilatildeo filosoacutefica (talvez apenas Platatildeo tenha cunhado semelhante meacutetodo ao perseguir o

pescador com o anzol antes de se aproximar da figura do sofista por exemplo ndash natildeo consigo

pensar em outras ilustraccedilotildees agora mesmo embora certamente elas existam) Uma linha de

raciociacutenio como esta aproxima-se muito mais de uma postura oriental

Durante o Coloacutequio aleacutem de retomar pela eneacutesima vez a leitura da preleccedilatildeo de

Heidegger lembro-me de me dedicar agrave leitura da claacutessica obra propedecircutica de Kaiten Nukariya

The Religion of Samurai (1913) a primeira obra sobre zen budismo publicada no Ocidente (em

liacutengua ocidental) Apoacutes uma breve introduccedilatildeo sobre a origem do budismo na Iacutendia e o percurso

de Śākyamuni Siddhārta Gautama (o Buddha Śākyamuni शाकयमनि) Nukariya relata a maneira

pela qual o monge Bodhidharma introduz o budismo na China destacando que seu meacutetodo era

inteiramente diferente dos outros instrutores de ensino ordinaacuterios

14

Sobre Bodhidharma Nukariya relata ldquoEle natildeo explicaria nenhum problema ao

estudante mas simplesmente ajudaacute-lo-ia a ser iluminado colocando-o um abrupto poreacutem eficaz

questionamentordquo (NUKARIYA 2006 10) Com esta metodologia tem iniacutecio a tradiccedilatildeo de

budismo chinecircs nomeada chrsquoan (dʑjen 禪) uma traduccedilatildeo do termo sacircnscrito dhyāna (धयाि) cujo

significado mais geral seria ldquomeditaccedilatildeordquo ou ldquopensamentordquo que futuramente seria lido na

pronuacutencia japonesa (くんよみ kun-yomi) do ideograma como zen (禅 ) Apoacutes expor esta

caracteriacutestica iacutempar do ensino de Bodhidharma Nukariya ainda relata uma breve histoacuteria na

qual um tal Shang Kwang havia requisitado ao mestre que ldquolhe pacificasse a menterdquo

Prontamente Bodhidharma teria respondido ldquoTraga-me aqui sua mente ante mim para que eu

a pacifiquerdquo e Shang Kwang teria replicado ldquomas isto eacute impossiacutevelrdquo recebendo em seguida

a resposta ldquoentatildeo jaacute pacifiquei sua menterdquo Shang Kwang foi instantaneamente iluminado

Certamente Martin Heidegger natildeo exige de seus ouvintes leitores e interlocutores uma

iluminaccedilatildeo tatildeo abrupta e desprovida de raciociacutenio loacutegico mas nem por isto suas reivindicaccedilotildees

satildeo menos ousadas e intensas ou sua meditaccedilatildeo menos profunda Heidegger propocircs diversas

reflexotildees que extraiacutedas de seu contexto especiacutefico configuram-se tatildeo inusitadas quanto as

passagens da tradiccedilatildeo chrsquoan ou zen sendo por vezes consideradas mesmo impertinentes Eacute o

caso de uma de suas mais arrojadas e emblemaacuteticas afirmaccedilotildees ldquoO mais grave eacute que natildeo

pensamosrdquo (HEIDEGGER 2002 6) Desconsiderando o sentido ao qual a sentenccedila pertence

certamente as palavras de Heidegger parecem uma afronta Todavia o leitor atento sabe que

Heidegger se refere agrave distinccedilatildeo entre um pensamento calculador (rechnende Denken) e um

pensamento meditativo (Besinnung) reportando-se ao velamento deste uacuteltimo e da supremacia

exclusiva do primeiro por meio do qual se faz ciecircncia e se daacute o desenvolvimento estrutural da

condiccedilatildeo tecnoloacutegica imperiosa Eacute justamente dentro deste fluxo que Heidegger afirma a

predominacircncia do pensamento cientiacutefico tambeacutem em Was ist Metaphysik

15

Para ingressar no interior da metafiacutesica Heidegger chama atenccedilatildeo ao fato de que a

existecircncia humana eacute hoje sobremaneira norteada pela ciecircncia Embora alguns opositores ainda

resistam agrave tal afirmaccedilatildeo natildeo eacute todavia difiacutecil convencecirc-los do contraacuterio argumentando em

favor da tese de Heidegger Natildeo se trata apenas de afirmar que o ser humano se apoia e confia

uacutenica e exclusivamente (quiccedilaacute mesmo cegamente) na ciecircncia como modo de desenvolvimento

e sustentaccedilatildeo da vida humana na Terra Antes disto e mais grave ainda trata-se de constatar

que a maneira pela qual o ser humano hoje pensa eacute tatildeo somente cientiacutefica mesmo em casos nos

quais o discurso supostamente se volta para um tema espiritual ou de feacute (ou qualquer outro

assunto) ndash a despeito de qualquer pretensa e torta teosofia eacute ainda a teologia a ciecircncia reinante

dos seminaacuterios sem embargo Independente do tema ou assunto da circunstacircncia ou

necessidade a maneira de proceder eacute jaacute sempre cientiacutefica sustentada por uma loacutegica inflexiacutevel

que imputa sua norma de que ldquosendo algo aquilo mesmo isto ou bem eacute ou bem natildeo eacute natildeo

havendo uma terceira opccedilatildeordquo

Em outras palavras parece ter se ocultado na mente humana qualquer outro modo de

pensar que natildeo seja o propriamente cientiacutefico Este modo cientiacutefico de pensar possui algumas

caracteriacutestica pelas quais se pode evidenciaacute-lo estritamente desde um triacuteplice entendimento que

compreende ldquoreferecircncia ao mundordquo ldquoposturardquo e ldquoirrupccedilatildeordquo Heidegger explica estes pontos

ldquoAquilo que na referecircncia ao mundo permanece eacute o ente em si mesmo ndash e mais nada Aquilo

que lidera toda postura eacute o ente em si mesmo ndash e nada mais Aquilo que faz acontecer a

discussatildeo investigativa da irrupccedilatildeo eacute o ente em si mesmo ndash e aleacutem disto nadardquo (IDEM OP CIT

105) A cientificidade da existecircncia humana se expressa mediante uma projeccedilatildeo ao ente e nada

mais Ao afirmar a determinaccedilatildeo da ciecircncia na vida e conduta humanas Heidegger quer deixar

ver sobretudo isto o fato de que hoje soacute eacute validado o discurso de um sujeito cujo objeto

cognosciacutevel eacute um ente este mesmo que subjacente obsta-lhe Dentro da relaccedilatildeo entre sujeito

e objeto toda uma tradiccedilatildeo se fundamenta e doravante prossegue da mesma maneira

16

Fazendo uma revisatildeo dos passos da histoacuteria do pensamento humano seria mais ou menos

faacutecil portanto imaginar como a partir da metafiacutesica claacutessica se desdobra o cientificismo

sobretudo tendo em vista a doutrina das Categorias de Aristoacuteteles aleacutem da tatildeo aclamada

ldquociecircncia do ente enquanto enterdquo Contudo natildeo eacute este o alvo de Heidegger Deixar a metafiacutesica

aparecer por si soacute deve contemplar a totalidade do questionamento proposto e natildeo um

historicismo vulgar Que todo raciociacutenio eacute regulado e direcionado pelo ente facilmente

constata-se Agora bem o que se passa com a outra parte da inquiriccedilatildeo qual seja o ldquonada

maisrdquo Heidegger formula a questatildeo ldquoA ciecircncia natildeo quer saber do nada Mas certamente em

sua permanecircncia ao manifestar sua proacutepria natureza chama o nada para ajudar O que ela

rejeita eacute necessaacuterio para classificaacute-la Que ambiacutegua essecircncia se revela aiacuterdquo (ID IBIDEM 106) Ao

perquirir o ente e aleacutem disto nada o elemento que confere a exatidatildeo de sua pesquisa eacute

auxiliado pelo ldquonadardquo ou seja trata-se disto e nada mais (por mais redundante e ambivalente

que soe ateacute mesmo um pouco non sense) Heidegger pergunta ldquoO que acontece com o nadardquo

(ID IBID) ou ainda para onde vai esse nada em meio agrave existecircncia cientiacutefica

Eacute justamente a inusitada apariccedilatildeo deste nada que revela o incocircmodo de um elemento

impensaacutevel e inexprimiacutevel que natildeo se dobra ante agrave relaccedilatildeo sujeito-objeto Natildeo eacute preciso aqui

destrinchar todo o caminho percorrido por Heidegger em Was ist Metaphysik Trata-se de um

texto bastante lido e amplamente comentado Basta apenas pontuar a sentenccedila central da

conferecircncia (ou a pergunta-condutora a Leitfrage) por meio da qual emerge a resposta agrave

questatildeo ldquoo que eacute metafiacutesicardquo ldquoPor que haacute absolutamente o ente e natildeo antes nadardquo (ID IBID

122) O extraordinaacuterio da questatildeo eacute justamente a capacidade do ser humano em por ela

perguntar A capacidade de questionar ldquopor que natildeo nadardquo define uma disposiccedilatildeo fundamental

da existecircncia quiccedilaacute mesmo aquela ocultada pelo modo cientiacutefico de existir (ou seja

paradoxalmente este mesmo modo eacute responsaacutevel por evidenciar o que nele se perde)

17

A disposiccedilatildeo que regula a eleiccedilatildeo do modo cientiacutefico de pensar tem em vista

salvaguardar o humano do abismo (da falta de fundamento) que se abre quando o nada emerge

silencia o discurso e joga o ser humano em uma situaccedilatildeo incocircmoda uma anguacutestia profunda

Quase como um mestre zen Heidegger deixa a metafiacutesica se abrir natildeo pela pergunta nem

sequer pela acircnsia de prover ao interlocutor (ou a si mesmo) uma resposta mas pela simples

possibilidade e capacidade de perguntar A metafiacutesica neste sentido perdura antes como uma

decisatildeo Ao que parece por este motivo Heidegger cita um trecho de Eacutedipo em Colonos de

Soacutefocles no posfaacutecio agrave preleccedilatildeo (em 1943) destacando os versos (em sua traduccedilatildeo particular

por mim aqui pobremente e quiccedilaacute mesmo irresponsavelmente adaptada) que dizem

ἀλλ᾽ ἀποπαύετε μηδ᾽ ἐπὶ πλείω

θρῆνον ἐγείρετε˙

πάντως γὰρ ἔχει τάδε κῡρος

Mas paremos e nunca mais a partir de agora

despertaremos o lamento

Em todos os lugares se deteacutem o evento

assegurando-lhe uma decisatildeo pela conclusatildeo (ID IBID 312)

A ldquodecisatildeo pela conclusatildeordquo coloniza todos os lugares e se deteacutem a partir de agora em uma

posiccedilatildeo da qual natildeo mais se sairaacute A anguacutestia revelada a partir do pensamento em torno ao

nada manifesta os limites da linguagem e vislumbra o destino do ente no ser em sua plenitude

e predominacircncia Mas para aleacutem da constataccedilatildeo da indigecircncia da linguagem haacute todavia uma

possibilidade de abordar efetivamente esse nada Como eacute possiacutevel pensar para aleacutem da

delimitaccedilatildeo entificante da referecircncia ao mundo da postura e da irrupccedilatildeo Haacute um caminho de

ultrapassagem e superaccedilatildeo possiacutevel ainda nos dias de hoje

18

Ao passo em que avanccedilava nas leituras e Heidegger e em algumas outras esta se tornou

a pergunta-chave pela qual imaginava atingir certo direcionamento temaacutetico A despeito da

disposiccedilatildeo de humor apresentada na conferecircncia bem como das consideraccedilotildees do posfaacutecio de

1943 os trabalhos de Heidegger dos anos de 1930 em diante datildeo a entender um claro

direcionamento pelo qual os elementos abandonados pela entificaccedilatildeo do pensamento podem ser

evidenciados qual seja a partir da poesia Os versos de Soacutefocles segundo o proacuteprio Heidegger

ldquoa uacuteltima poesia do uacuteltimo poeta gregordquo natildeo estatildeo ali dispostos sem motivo Tambeacutem natildeo eacute

sem razatildeo que a partir de aiacute haacute uma incansaacutevel busca pela poesia de Friedrich Houmllderlin (aleacutem

de Georg Trakl Stephan George Rainer Maria Rilke e de outros poetas escolhidos por

Heidegger) Ateacute certo ponto eacute possiacutevel afirmar que Heidegger encontra na poesia a

possibilidade de superar a linguagem por meio da proacutepria linguagem Em alguns outros

momentos uma meditaccedilatildeo de teor semelhante aparece como no encontro entre Heidegger e os

japoneses (como apresentei na dissertaccedilatildeo de 2010) Contudo restava ainda buscar os modos

de reflexatildeo que natildeo simplesmente podiam ir aleacutem da expressatildeo da ciecircncia do ente enquanto

ente mas ainda colocaacute-la em questionamento mediante outros meacutetodos

Foi na abertura do III Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica que minhas inquietaccedilotildees

comeccedilaram a se asseverar e ganhar corpo para o que viria a ser esta tese A conferecircncia

inaugural do evento foi sobremaneira marcante neste processo O professor Gilvan Fogel da

Universidade Federal do Rio Janeiro havia sido convidado para encerrar o primeiro dia de

evento Ele apresentou naquela noite a conferecircncia O que eacute metafiacutesica Como ele mesmo frisou

ldquonatildeo a pergunta mas a respostardquo Havia sem embargo a intenccedilatildeo de responder a pergunta

em um certo direcionamento eacute claro O texto vinha ainda acompanhado de um subtiacutetulo (com

o qual foi publicado como tiacutetulo oficial alguns anos depois diga-se de passagem) Sobre a

metafiacutesica ou a respeito do jejum O mote para o subtiacutetulo o proacuteprio professor o explica na

passagem inicial do texto que gostaria de citar por completo agora mesmo

19

O subtiacutetulo pode soar estranho insoacutelito e natildeo muito seacuterio Mas pelo que ele insinua

pretende anunciar algo seacuterio mesmo muito seacuterio a saber a metafiacutesica E a inspiraccedilatildeo

ou a motivaccedilatildeo que propicia o encaminhamento para a questatildeo anunciada a

metafiacutesica vem de uma obra igualmente seacuteria muito seacuteria ainda que se possa melhor

que se deva dela se ocupar tambeacutem com grandes e gostosas gargalhadas ndash aquelas que

no destampar do riso sacudindo a barriga bem solta e largada deixam escorrer

viacutesceras pela boca afora Estou me referindo ao Dom Quixote o Engenhoso Fidalgo

Dom Quixote lsquode la Mancharsquo ndash o ldquoda Triste Figurardquo

Entre as poesias que preludiam a primeira parte e que homenageiam seus personagens

maiores temos o uacuteltimo que eacute um diaacutelogo em forma de soneto entre Babieca o

cavalo de El Cid e Rocinante o grande rocim o pangareacute erado de Dom Quixote A

certa altura do diaacutelogo-soneto Babieca pergunta ldquoSeraacute tolice amarrdquo e Rocinante

responde ldquoNatildeo eacute muito prudenterdquo Babieca retruca ldquoEstaacutes metafiacutesicordquo E Rocinante

contesta enfaacutetico ldquoEacute que natildeo comordquo (FOGEL 2011 101)

A passagem sugere que a metafiacutesica eacute antes de tudo coisa de fome Por isto ldquoa respeito do jejumrdquo

denuncia a indisposiccedilatildeo que envolve a metafiacutesica A metafiacutesica eacute portanto certo incocircmodo que

eacute tambeacutem necessidade premente decorrente de certa privaccedilatildeo A partir disto Fogel delineia o

tipo de jejum ao qual se refere natildeo se trata de um jejum nutricional alimentiacutecio mas jejum de

vida conforme ele mesmo diz ldquo() natildeo vida no sentido bioloacutegico mas no sentido banal e

corriqueiro como falamos da vida de ldquonossa vidardquo ndash que ela eacute boa ou ruim ou um buracordquo

(IDEM IBIDEM 102) Esta vida a vida imanente a vida do cotidiano do dia-a-dia esta mesma

que ocupa o tempo e o espaccedilo sofre priva-se absteacutem-se Esta abstenccedilatildeo e privaccedilatildeo satildeo a

condiccedilatildeo pela qual reverbera sua constituiccedilatildeo enquanto sujeito ndash e nasce aiacute uma interpretaccedilatildeo

do que eacute enfim metafiacutesica A partir da conferecircncia de Fogel aleacutem de algumas outras

consideraccedilotildees comecei a ponderar a maneira pela qual abordaria o problema

20

Natildeo por meio de uma definiccedilatildeo conceitual acontecimento histoacuterico ou muacutetuo

consentimento temaacutetico mas por meio de uma experiecircncia de pensamento que sem deixar de

lado nenhum dos elementos supracitados configura-se antes como algo intriacutenseco agrave proacutepria

natureza do pensar Ponderando as consideraccedilotildees da conferecircncia de Heidegger a metafiacutesica se

deixa mostrar como uma decisatildeo pela conclusatildeo Um iacutempeto maior do ser humano em

resguardar sua condiccedilatildeo de pacificidade A humanidade teme o caos teme o desalinho receia

o incoacutegnito e inexprimiacutevel Elege por isto seu caminho de seguranccedila com aquilo que lhe eacute

papaacutevel o ente enquanto ente e nada mais Nada quer saber do nada que nada lhe oferece aleacutem

de um indisposto silecircncio um insoacutelito vazio Mediante esta postura embora sob o risco de

ocultar algo em si mesmo que talvez lhe sirva para alcanccedilar siacutetios recocircnditos do misteacuterio de

sua proacutepria existecircncia constitui-se o ser humano um metafiacutesico Sem embargo eacute preciso abster-

se de algo em prol disto ou daquilo que se lhe afigura mais propiacutecio ao momento Fogel enxerga

isto como privaccedilatildeo como jejum como fome Fica muito claro em sua interpretaccedilatildeo o caraacuteter

inflexiacutevel da decisatildeo pela conclusatildeo sobretudo quando traz agrave luz o curioso caso de Vicent van

Gogh

Fogel cita uma carta que van Gogh teria enviado em maio de 1888 a seu irmatildeo Theacuteo

onde descreve sua nova moradia e ao mesmo tempo atelier afirmando que o local eacute pouco

atraente para desenvolver qualquer tipo de flerte ou paquera acrescentando que dificilmente

enxerga como compatiacuteveis o trabalhar e o farrear (faire la noce) A verdade eacute que van Gogh

natildeo possui outra opccedilatildeo senatildeo se privar da diversatildeo do faire la noce natildeo porque eacute asceta ou

abstecircmio nem porque precisa dedicar mais tempo ao seu trabalho ou pagar suas contas (todos

sabem da condiccedilatildeo por vezes paupeacuterrima na qual ele se encontrou ao longo de seu percurso)

mas por ser artista por ser pintor por pintar Urge no artista uma realidade que parece muito

mais real que a vida comum na qual o farrear remete ao contentamento agrave felicidade Natildeo viver

a vida para van Gogh seria natildeo pintar

21

Se viver a vida eacute buscar este contentamento esta felicidade entatildeo van Gogh vive para

natildeo-viver Natildeo-viver se torna paradoxalmente a expressatildeo maacutexima da vida metafisicamente

entendida Fogel completa ldquoE por que natildeo viver este natildeo-viver seria ingratidatildeo Seria isso a

saber a distacircncia o agrave parte um dom um presente uma graccedilardquo (IDEM IBIDEM 105)

acrescentando ainda ldquoA metafiacutesica desde que jejum abstinecircncia de vida de viver seria

igualmente muita vida e natildeo cumpri-la natildeo realizaacute-la isto eacute natildeo pensar uma grande

ingratidatildeordquo (ID IBID) e por fim sugerindo ldquoAqui precisa-se confessar viver natildeo eacute preciso

Pintar pensar fazer quadros fazer metafiacutesica ndash isso eacute precisordquo (ID IBID) Ressalte-se o tom das

inquiriccedilotildees da interrogaccedilatildeo acompanhada pela exclamaccedilatildeo A precisatildeo da qual fala fazendo

menccedilatildeo a Fernando Pessoa eacute a necessidade de justeza de ser preciso e acurado destro

rigorosamente alinhado ao fazer metafiacutesica Assim se configura algo muito iacutentimo e sem

embargo inevitaacutevel na natureza humana

Fogel prossegue sua exposiccedilatildeo chamando ao diaacutelogo o Zaratustra de Friedrich

Nietzsche especificamente a seccedilatildeo intitulada Da Visatildeo e do Enigma na qual reincide o anuacutencio

da famosa doutrina do Eterno Retorno citando o trecho que diz

O homem eacute todavia o mais corajoso animal assim ele supera todo e cada animal Com

o jogo sonoro supera ele tambeacutem a dor Mas a dor humana eacute a dor mais profunda A

coragem tambeacutem indica a tontura morte em abismos e onde estaria o homem senatildeo

em abismos Ele natildeo vecirc a si mesmo ndash vecirc abismos (NIETZSCHE 2005 119)

Para Fogel o ldquoverrdquo natildeo denuncia uma observaccedilatildeo circunvisatildeo ou vislumbre mas antes um

acontecimento uma iluminaccedilatildeo um tornar visiacutevel Torna-se visiacutevel o abismo o sem fundo

sem fundamento Ao que parece quanto mais o ser humano contempla sua proacutepria existecircncia

mais sem chatildeo fica maior eacute a falta de fundamento e com maior radicalidade se abre um abismo

frente aos seus peacutes

22

Eacute possiacutevel todavia prosseguir caminhando ao lado de Nietzsche e Heidegger bem como

por meio das reflexotildees e interpretaccedilotildees oferecidas por Fogel buscando alcanccedilar uma feiccedilatildeo da

vida humana que permita descortinar a proveniecircncia metafiacutesica de seu percurso e ateacute mesmo

suscitando uma ultrapassagem deste fenocircmeno Contudo eacute necessaacuterio ainda precisar com maior

cuidado os termos contidos na questatildeo Faz parte do labor filosoacutefico se afundar mais e mais em

algo que por si soacute jaacute eacute bastante fundo

Natildeo apenas os pensamentos de Nietzsche e Heidegger oferecem uma especulaccedilatildeo de

formidaacutevel profundidade difiacutecil de ser absorvida em primeira matildeo como tambeacutem por vezes

pode se mostrar demasiado complexo empreender um rastreamento do sentido originaacuterio das

palavras e sentenccedilas salvo mediante uma anaacutelise completa (empresa complicadiacutessima

provavelmente impossiacutevel) de suas obras Mesmo assim talvez ainda natildeo se mostre com

suficiente nitidez se natildeo houver de antematildeo uma explanaccedilatildeo das fontes e referecircncias cruzadas

Com estas ideias em mente buscando avanccedilar cada vez mais no tema e sobre ele meditar

com cada vez mais dedicada atenccedilatildeo e profundidade tentando ampliar com ferocidade o

vocabulaacuterio (para fazer minhas as palavras de Marco Lucchesi) outro escrito me sobreveio

durante o processo de composiccedilatildeo das hipoacuteteses contidas neste trabalho Em Nihilismo e

Neoplatonismo (2003) Oscar Federico Bauchwitz traccedila algumas linhas que especificam a

condiccedilatildeo por meio da qual o problema efetivamente se apresenta

Haacute no texto de Bauchwitz tambeacutem um necessaacuterio retorno a Nietzsche e Heidegger Natildeo

apenas dentro do contexto de um estudo da metafiacutesica enquanto histoacuteria intelectual mas ainda

constatando os tempos onde ela se apresenta como formataccedilatildeo do modo de ldquoagir-pensarrdquo torna-

se imprescindiacutevel resgatar a lembranccedila de que ldquo() com Nietzsche se estabelece uma criacutetica da

metafiacutesica que acaba por homologar o seu oacutebitordquo (BAUCHWTIZ 2003b 169) Como explica

Bauchwitz a declaraccedilatildeo da morte da metafiacutesica eacute aquela mesma da morte do platonismo

cristianismo niilismo e outros sinocircnimos para o mesmo fenocircmeno

23

Esta morte natildeo eacute todavia apenas uma declaraccedilatildeo da inexistecircncia corrente do pensamento

metafiacutesico senatildeo sua consumaccedilatildeo total e absoluta A ldquociecircncia do ente enquanto enterdquo entifica

tudo aquilo que outrora foi nomeado vida (φύσις) pelos gregos dos periacuteodos arcaico e claacutessico

ndash das coisas ao redor aos pensamentos e aos deuses A entificaccedilatildeo do mundo em torno eacute sem

sombra de duacutevidas a maneira pela qual a ciecircncia vigente concebe o mundo configurando o que

Heidegger havia chamado de ldquoreferecircncia ao mundordquo A entificaccedilatildeo do pensamento por sua vez

denota a ldquoposturardquo tambeacutem mencionada por Heidegger aquela mesma segundo a qual haacute uma

maneira ldquocorretardquo de pensar Ao passo que a entificaccedilatildeo dos deuses um pouco mais complicada

apresenta-se como ldquoirrupccedilatildeordquo na qual a circunvisatildeo resultante dos dois elementos acima

mencionados denuncia a morte de deus a fuga dos deuses o viver sem o divino sem o

iluminado sem o deslumbre Desatados os laccedilos entre ser humano e divindade Bauchwitz

questiona ldquoO que natildeo pode o homem modernordquo (IDEM IBIDEM 170) questionamento que

poderia ainda ser vertido nos termos (mais ou menos) de Dostoievsky ldquose deus morreu entatildeo

tudo eacute permitidordquo ou ainda nos (mais ou menos novamente) de Heidegger ldquose apagou da

histoacuteria universal o esplendor da divindade Essa eacute a eacutepoca da noite do mundordquo Contudo para

Bauchwitz perdura algo no labor filosoacutefico que torna liacutecito novamente regressar agrave questatildeo Ele

explica que ldquoResgatar a forccedila mais originaacuteria das palavras eacute o ofiacutecio do filoacutesofo Por isso

dizemos que a miacutestica se mostra no fechar de olhos no fechar da bocardquo (ID IBID 173) Recordo-

me acompanhando os seminaacuterios matinais do professor Bauchwitz de ouvir certa vez a

sentenccedila ldquoo miacutestico estaacute sempre em conflito com a linguagemrdquo Conflito ou confronto natildeo me

lembro muito bem Havia de fato escrito a frase literalmente ao peacute da paacutegina de algum livro

(ou alguma fotocoacutepia) que agora mesmo esqueccedilo qual era e natildeo consigo encontrar

Independente das palavras exatas o que se apresenta no texto de Bauchwitz eacute a sugestatildeo de um

caminho para este resgate por meio de um conflito o confronto suscitado pela miacutestica

24

Bauchwitz escreve ldquoO miacutestico eacute em primeiro lugar aquele que acolhe o misteacuterio dentro

de si recolhendo em silecircncio o sentido oculto da realidade soacute depois eacute que o silecircncio rompe a

barreira dos dentes para mostrar-se linguagemrdquo (ID IBID) E ainda prossegue especificando que

ldquoPor isso a miacutestica eacute uma experiecircncia radical da liberdade proacutepria Abrindo matildeo de um mundo

que clama sua atenccedilatildeo o miacutestico encontra-se com o que nele eacute totalmente incoacutegnito e

incognosciacutevel um eu que se mostra como puro nadardquo (ID IBID) A maneira pela qual Bauchwitz

iraacute desdobrar a explicaccedilatildeo destas sentenccedilas sobremaneira enigmaacuteticas percorreraacute trecircs

pensadores que marcam a tradiccedilatildeo do neoplatonismo e da chamada miacutestica medieval quais

sejam Pseudo-Dioniacutesio Areopagita Joatildeo Escoto Eriuacutegena e Mestre Eckhart Contudo o que

havia me saltado aos olhos antes da eleiccedilatildeo temaacutetica autoral ou metodoloacutegica havia sido a

sentenccedila ldquoum eu que se mostra como puro nadardquo Jaacute havia encontrado semelhante formulaccedilatildeo

todavia nunca em autores ocidentais Remeti diretamente a maneira pela qual a tradiccedilatildeo

mahāyāna do budismo do leste asiaacutetico havia compreendido a noccedilatildeo do natildeo-si-mesmo ou natildeo-

ego (anātman अितमि) como dissoluccedilatildeo do eu por meio da tensatildeo entre forma (ou fenocircmeno ou

ainda aparecircncia rūpa रप) e nada (ou vacuidade śūnyatā शनयता) Estas ideias derivam

diretamente do chamado Cacircnone Pāḷi tendo sido transmitidas em sacircnscrito pelo Sūtra do

Coraccedilatildeo (Prajntildeāpāramitā Hṛdaya परझञापारनमताहरदय) ateacute alcanccedilarem formas mais refinadas no

budismo chrsquoan e no zen budismo japonecircs assumindo as configuraccedilotildees de ldquoformardquo ou

ldquoaparecircnciardquo enquanto shiki (色) e ldquonadardquo ou ldquovacuidaderdquo enquanto kū (空) elementos centrais

do pensamento da filosofia japonesa contemporacircnea da Escola de Kyōto (e que tambeacutem havia

abordado brevemente em minha dissertaccedilatildeo de mestrado) Tornou-se imperioso investigar ateacute

que ponto tais ideias se aproximam ou comungam de princiacutepios convergentes aleacutem da maneira

como elas repercutem em suas tradiccedilotildees e particularidades Mais uma vez encontrava-me frente

ao sem-fim nuacutemero de possibilidades comparativas e complementares

25

Contudo temia o risco de cair no engodo certa vez denunciado por Immanuel Kant

quando afirmou em seus Prolegomena zu einer jeden kuumlnftigen Metaphyysik (1783) que ldquo()

dificilmente se espera que natildeo seja possiacutevel descobrir analogias para cada nova ideia entre ditos

de eras passadasrdquo (KANT 1911 7) natildeo havendo grande meacuterito nisto e sendo necessaacuterio admitir

que estes historiadores da filosofia ocupados com tal empreendimento devam antes aguardar

que os ldquoverdadeiros filoacutesofosrdquo esgotem as fontes da razatildeo Sob pena de realizar uma mera

comparaccedilatildeo friacutevola (embora com a consciecircncia de que passo longe de ser um ldquoverdadeiro

filoacutesofordquo ao menos no sentido Kantiano ndash talvez o seja em outro digamos mais Ginsbergiano

de pura pretensatildeo mas certamente natildeo muito talento) ocupei-me em corretamente designar o

problema que me afligia de modo que fosse possiacutevel corretamente endireitar o roteiro da tese

Era preciso encontrar um mote mesmo que ele natildeo deixasse ver claramente os passos a serem

percorridos mas que provessem alguma direccedilatildeo

Tendo isto em vista natildeo podia negar que o interesse pelo que ousei chamar de ldquoconflito

das fronteirasrdquo crescia a partir de um ldquopar de viacutergulasrdquo que aparentemente haviam escapado agrave

anaacutelise da histoacuteria do pensamento Em outras palavras um determinado momento no qual o

transcurso metafiacutesico foi levemente desviado em uma guinada espontacircnea e natural como um

marinheiro que sutilmente move o leme para a esquerda ou para direita ao perceber o advento

de uma portentosa onda logo atraacutes de si soltando o motor e deixando o barco ser levado pelo

mar ndash saacutebia decisatildeo em momentos de tormenta (passei por esta situaccedilatildeo certa vez em mar

aberto transitando entre Paraty e uma praia recocircndita Pouso do Cajaiacuteba se natildeo me falha a

memoacuteria gostaria de poder descrever em pormenores a experiecircncia que seria proveitosa ao

leitor em termos ilustrativos mas estava muito enjoado no barco para congregar detalhes

miacutesticos em minha massa cinzenta) E eram momentos de tormenta Como poderiam natildeo ser

Sendo assim estabeleci um conveniente itineraacuterio (ao menos sob meu ponto de vista) que

compartilho antes de iniciar o trabalho

26

O primeiro passo importante eacute estabelecer dentro de quais termos se apresenta a

metafiacutesica pela qual se nomeia a histoacuteria do pensamento ocidental O primeiro capiacutetulo da tese

intitulado Ontologia a substantivaccedilatildeo do Ocidente e a delimitaccedilatildeo das fronteiras do

pensamento ocupa-se de tal apresentaccedilatildeo e eacute na verdade bastante simples apesar do tiacutetulo

pomposo A despeito da abordagem histoacuterico-conceitual desdobrada em um primeiro momento

o capiacutetulo segue em consonacircncia com a avaliaccedilatildeo de Martin Heidegger assumindo-o como

interlocutor e inteacuterprete da histoacuteria e criacutetica da metafiacutesic Haacute aqui uma ecircnfase nas leituras por

meio das quais Heidegger caracterizou de maneira direta a passagem de uma fisiologia grega

claacutessica (por ele nomeada ldquopensamento originaacuteriordquo) para o acircmbito da ontologia latina e o modo

conforme o qual a proacutepria ideia de ldquoserrdquo eacute compreendida de maneira tatildeo somente substantivada

a partir de seu particiacutepio presente ldquoenterdquo Um necessaacuterio retorno cronoloacutegico-regressivo eacute

estabelecido do fim ao iniacutecio da modernidade pontuando autores como Jacob Lorhard e

Francisco Suaacuterez Todavia o objetivo principal do capiacutetulo eacute compreender este modo de

substantivaccedilatildeo e quais as consequecircncias disto para o pensamento em um sentido geral (a

delimitaccedilatildeo de suas fronteiras no final das contas) sem nunca perder de vista o peso aristoteacutelico

da designaccedilatildeo e realizando algumas especificaccedilotildees sobre isto

O segundo capiacutetulo intitulado O caminho da negatividade henologia e meontologia e

a ultrapassagem dos limites da metafiacutesica pretende caracterizar efetivamente essa nomeada

ldquonegatividaderdquo Negatividade que natildeo eacute simplesmente predominacircncia de um ldquonatildeordquo ou partiacutecula

de privaccedilatildeo mas antes assunccedilatildeo de um oxiacutemoro o auscultar de um inaudito Desenvolve-se

como argumento central por meio do qual se evidencia as estruturas baacutesicas de um pensamento

radical a evidenciaccedilatildeo de uma meditaccedilatildeo que jaacute natildeo eacute mais norteada pelo ldquoenterdquo mas sim pelo

ldquounordquo (henologia) neoplatocircnico ou mesmo por uma profunda meditaccedilatildeo em torno ao ldquonadardquo

(meontologia) presentes no neoplatonismo e sobremaneira evidentes no pensamento miacutestico

27

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo nomeado O Extremo Oriente e o conflito das fronteiras a

filosofia comparada intercultural como chave de leitura para alguns problemas do pensamento

contemporacircneo pretende conectar os pontos e resgatar o sentido da tese O capiacutetulo traz uma

breve apresentaccedilatildeo da chamada Escola de Kyōto e a constituiccedilatildeo da filosofia japonesa

contemporacircnea Este eacute o momento no qual eacute possiacutevel observar a recepccedilatildeo contemporacircnea da

filosofia ocidental (tanto dentro da tradiccedilatildeo metafiacutesica quanto ldquoforardquo dela na dita negatividade)

e o diaacutelogo (e siacutentese) com o mundo do Extremo Oriente O objetivo eacute portanto pensar em

comunhatildeo com os pensadores da Escola de Kyōto com especial atenccedilatildeo para Keiji Nishitani

(西谷 啓治) observando suas propostas para anaacutelise e resoluccedilatildeo dos problemas de filosofia

contemporacircnea e buscando um esclarecimento a respeito dos termos indicados

Ao fim e ao cabo a intenccedilatildeo aqui eacute convidar os leitores ao diaacutelogo intercultural

apresentando em um diaacuterio de minhas leituras diferentes nuances e pontos de vista a respeito

de algumas questotildees especiacuteficas e ousando um diagnoacutestico da filosofia contemporacircnea bem

como uma vaacutelvula de escape para a atual condiccedilatildeo do pensamento filosoacutefico Caso a empreitada

logre ecircxito acredito que uma nova conversa se abra e novas ideias venham agrave mente Sem

embargo trata-se de uma composiccedilatildeo acerca de um conflito o conflito das fronteiras

28

ONTOLOGIA A SUBSTANTIVACcedilAtildeO DO OCIDENTE E O PROBLEMA DA METAFIacuteSICA

ENQUANTO DELIMITACcedilAtildeO DAS FRONTEIRAS DO PENSAMENTO

Embora ontologia tenha um sentido bastante amplo (que seraacute melhor explorado ao longo do

capiacutetulo) aleacutem de uma sem-fim variedade de definiccedilotildees distintas de autor para autor (algumas

das quais seratildeo eleitas e apresentadas aqui) entende-se o conceito (de forma simplificada) como

um discurso capaz de reunir em uma unidade a polissemia do verbo ser O resultado eacute a

centralizaccedilatildeo conceitual de qualquer ulterior doutrina a partir da definiccedilatildeo desenrolada desde

sua compreensatildeo Por substantivaccedilatildeo do Ocidente refiro-me aqui agrave corrente historial

responsaacutevel por compreender o verbo ser de modo substantivado a partir de seu particiacutepio

presente ldquoenterdquo A intenccedilatildeo do capiacutetulo portanto concentra-se na investigaccedilatildeo do processo

decorrido dessa substantivaccedilatildeo e quais as consequecircncias disto para o pensamento ocidental e

contemporacircneo em uma concepccedilatildeo geral no que diz respeito agrave delimitaccedilatildeo das fronteiras do

pensamento

Em primeiro lugar gostaria de abrir uma interlocuccedilatildeo com o professor Charles H Kahn

da University of Pennsylvania dada a relevacircncia e pertinecircncia de sua obra The Verb lsquoBersquo in

Ancient Greek (1973) para o desenvolvimento do capiacutetulo Antes de desdobrar em pormenores

seu estudo bastante extenso e detalhado Kahn sustenta a tese de que haacute uma relatividade

linguiacutestica referente ao verbo ser (cf KAHN 2003 1-3) Em sua introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo de 2003 (cf

IDEM IBIDEM vii) Kahn se reposiciona em relaccedilatildeo ao argumento expresso em sua obra clamando

ser uma posiccedilatildeo bastante defensiva e ldquofora de modardquo para os tempos atuais Ainda assim trata-

se de uma hipoacutetese bastante interessante

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A posiccedilatildeo de Kahn (cf IBID 1-3) se apoia na afirmaccedilatildeo de Angus C Graham1 acerca

do mesmo verbo dentro do chinecircs claacutessico onde o sinoacutelogo posiciona o ser relativamente agrave

regra gramatical inerente agrave formulaccedilatildeo de uma determinada sentenccedila significando portanto a

impossibilidade de uma doutrina universal acerca do ser compatiacutevel com liacutenguas distintas

(como o grego o aacuterabe ou o chinecircs) Isto concorda em absoluto com a ideia de que no proacuteprio

grego claacutessico e nas liacutenguas indo-europeias em geral conforme a menccedilatildeo feita por Kahn a

Eacutemile Benveniste2 natildeo haacute em hipoacutetese alguma a implementaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo universal ou

condiccedilatildeo necessaacuteria envolta na distribuiccedilatildeo dos significados do verbo ser Haacute sim e Benveniste

endossa a ideia uma predisposiccedilatildeo da linguiacutestica grega agrave ldquovocaccedilatildeo filosoacutefica da noccedilatildeo de serrdquo

Vocaccedilatildeo esta segundo Kahn muito geral e diversificada no desenvolvimento sistemaacutetico de

seu conceito desde Parmecircnides ateacute Aristoacuteteles e de uma maneira mais sistemaacutetica dos Estoicos

ateacute Plotino Em siacutentese Kahn sustenta que a tese de um determinismo linguiacutestico do ser eacute

claramente falsa ou seja mesmo em falantes de uma mesma liacutengua natildeo eacute possiacutevel encontrar

uma mesma doutrina em torno ao ser como eacute possiacutevel ver nos pensamentos distintos de Platatildeo

e Aristoacuteteles Epicuro e Plotino

Todavia natildeo haacute duacutevidas para Kahn a respeito das condiccedilotildees intriacutensecas da liacutengua de um

autor em sua atividade intelectual seus recursos e suas tendecircncias Ele afirma que natildeo haveria

possibilidade de especificar a determinaccedilatildeo ontoloacutegica se o verbo grego εἰμί natildeo fosse provido

do particiacutepio presente τὸ ὄν ou se natildeo houvesse a derivaccedilatildeo nominal ndashία da qual redunda a

noccedilatildeo de οὐσία Ou ainda a classe de morfemas que compreende ἐστί εἶναι e ἐών derivadas

do indo-europeu ndashes Satildeo as formas nominais do verbo que permitem segundo Kahn (cf IBID

451) natildeo soacute uma clara expressatildeo senatildeo tambeacutem a tematizaccedilatildeo do conceito como um toacutepico

distinto para a reflexatildeo filosoacutefica

1 Angus C Graham ldquoBeing in Classical Chineserdquo In The Verb lsquoBersquo and its Synonyms John W M Verhaar (ed)

Dordrecht Holland D Reidel 1967 1-39 2 Eacutemile Benveniste ldquoCateacutegories de penseacutee et cateacutegories de languerdquo Les Eacutetudes philosophiques n 4 (out-dez

1958) PUF Paris 419-429

30

Kahn fala dos primeiros usos do verbo εἰμί (em formas participiais) em sua

possibilidade de representar qualquer construccedilatildeo copulativa (natildeo muito diferente de qualquer

outro particiacutepio em grego) adaptando-se agraves construccedilotildees coordenadas ou subordinadas (em

nuacutemero gecircnero e causa) e expressando diferentes nuances (concessiva causal adversativa)

Contudo frisa haver ainda outras expressotildees para aleacutem do caso copulativo como nos casos

vital veriacutedico ou existencial Quando o verbo aparece dentro da expressatildeo existencial e emerge

a necessidade de indicar uma referecircncia ou seja um caso gramatical locativo surgem as formas

do uso filosoacutefico do ser como τὰ ὄντα o berccedilo para o desenvolvimento da ontologia O sentido

de τὰ ὄντα apareceria em Aristoacuteteles de acordo com Kahn (cf ID IBID 457) em primeira matildeo

como ldquoo que eacuterdquo (o caso os fatos ou eventos) e em segunda matildeo existencialmente como ldquocoisas

que existemrdquo ldquocoisas que estatildeo presentesrdquo ldquocoisas que podem ser encontradas em algum lugarrdquo

Em ambos os casos o verbo ser eacute entificado Como neste sentido haacute uma conotaccedilatildeo ldquodo que

eacuterdquo algo Aristoacuteteles considerou a referecircncia aos atributos de um determinado ente para expressar

a muacuteltipla significaccedilatildeo de τὸ ὄν partindo em seguida para a definiccedilatildeo do ser no sentido primaacuterio

e fazendo uso de seu derivado nominal οὐσία

A manifestaccedilatildeo de οὐσία surge como uma nominalizaccedilatildeo abstrata ou substantivo de

accedilatildeo Kahn enumera trecircs aspectos distintos do uso de οὐσία em uma concepccedilatildeo filosoacutefica o

primeiro uso refere-se agrave nominalizaccedilatildeo do verbo na qual οὐσία representaria ldquoo que algo eacuterdquo

dando abertura para as formas platocircnicas e essecircncias aristoteacutelicas (τὸ τί ἐστι τὸ τί ἦν εἶναι) o

segundo uso eacute todavia menos teacutecnico e predica οὐσία como ldquoserrdquo ldquoexistecircnciardquo ou ldquorealidade

verdadeirardquo o terceiro uso enuncia uma equivalecircncia entre οὐσία e τὸ ὄν referindo ldquoas coisas

que satildeo (neste mundo)rdquo τὰ ὄντα (cf ID IBID 461) Aristoacuteteles pontua precisamente a intenccedilatildeo

socraacutetica primaacuteria de buscar a essecircncia das coisas (τὸ τί ἐστι) por meio do procedimento

silogiacutestico cujo princiacutepio eacute justamente a quididade (ἀρχὴ δὲ τῶν συλλογισμῶν τὸ τί ἐστι)

(ARISTOacuteTELES 2002 604-605 Metafiacutesica 1078b 24-25)

31

O que em Soacutecrates apareceria de fato como τί ἐστι e em Platatildeo como (τὸ) ὅ ἐστι em

Aristoacuteteles seria simplificado como τὸ τί ἐστι e τὸ τί ἦν εἶναι em um uso que expressa a essecircncia

ou natureza das coisas pela definiccedilatildeo ao passo que a definiccedilatildeo propriamente existencial caberia

ao termo οὐσία 3 Kahn ilustra as distinccedilotildees dizendo que

Enquanto o substantivo no primeiro e no segundo usos serve como uma

nominalizaccedilatildeo ldquoabstratardquo para o verbo finito como predicado isto eacute para o ldquoser aquilo

que eacuterdquo (e eacute assim sintaticamente paralelo ao infinitivo articular τὸ εἶναι) οὐσία no

terceiro sentido eacute utilizado ndash como em muitos outros substantivos abstratos ndash para o

sujeito caracterizado (isto eacute o que eu chamo de concreto ou agente de nominalizaccedilatildeo

como tipicamente ilustrado pelo particiacutepio articular τὸ ὄν ou como por exemplo ὁ

τρέχων ldquoo corredorrdquo em contraste agrave accedilatildeo de nominalizaccedilatildeo abstrata τὸ τρέχειν

ldquocorrerrdquo Esta distinccedilatildeo sintaacutetica corresponde em parte ao contraste de Heidegger

entre das Seiende e das Sein der Seienden) (ID IBID)

Embora haja tal distinccedilatildeo Kahn prossegue afirmando que em seu uso tardio (poacutes-platocircnico)

οὐσία e τὸ ὄν satildeo claramente sinocircnimos sendo um utilizado para enfatizar o outro como na

doutrina das Categorias de Aristoacuteteles4 O resultado eacute a inexistecircncia de uma diferenccedila entre o

agente concreto e a accedilatildeo abstrata de nominalizaccedilatildeo do εἰμί onde natildeo haacute distinccedilatildeo conceitual

entre οὐσία e τὸ ὄν ou seja entre a entidade e o que ela eacute Em outras palavras ser e ente se

tornam o mesmo confundem-se em sua aplicaccedilatildeo a despeito das distinccedilotildees conceituais que

definem substacircncia (οὐσία) e essecircncia (τὸ τί ἦν εἶναι)

3 Um comentaacuterio mais preciso foi apresentado em Luiacutes Andreacutes Berdlow ldquoParmenides and the Grammar of Beingrdquo

Classical Philology v 106 (2011) 283-298 4 As Categorias de Aristoacuteteles apresentam a classificaccedilatildeo das coisas que satildeo (τὰ ὄντα) dentre as quais encontra-

se a substacircncia (οὐσία) (cf ARISTOTLE 1952 5-6 Categorias 1a-2b) Na Metafiacutesica Aristoacuteteles deixa isto mais

claro quando diz ldquoMas em primeiro lugar se o ldquoenterdquo (τὸ ὂν) se diz de muitas maneiras ndash dentre as quais algumas

vezes substacircncia (οὐσία) em outras qualidade ou mesmo quantidade aleacutem de todas as outras categorias ndash qual

deles portanto eacute aquele pelo qual as coisas satildeo ()rdquo (ARISTOacuteTELES 2002 669 Metafiacutesica 1089a 5-15) A diferenccedila

conceitual ou mesmo hieraacuterquica eacute paulatinamente abandonada pela necessidade de exprimir um niacutevel de

realidade no qual jaacute natildeo eacute mais possiacutevel discorrer acerca do ente se redundar a palavra definida na proacutepria definiccedilatildeo

32

Essa indistinccedilatildeo entre ser e ente eacute sabido foi o que chamou a atenccedilatildeo de Martin

Heidegger no processo ldquodestrutivordquo de histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica realizado em seu projeto

Sein und Zeit (1927) Conforme Heidegger haacute uma γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας de haacute muito

abandonada O motivo aparente se concentra nas caracteriacutesticas emergentes do proacuteprio ser

quais sejam sua maacutexima universalidade sua vacuidade sua obscuridade sua maacutexima

evidecircncia Neste sentido Heidegger diz

O conceito de ldquoserrdquo eacute indefiniacutevel Isto pode ser concluiacutedo desde sua maacutexima

universalidade E isto com razatildeo ndash se definitio fit per genus proximum et differentiam

specificam De fato ldquoserrdquo natildeo pode ser entendido conceitualmente como ente enti

non additur aliqua natura ldquoserrdquo natildeo pode estar em uma determinaccedilatildeo concebendo

dele um ente O ser por definiccedilatildeo natildeo pode ser derivado de conceitos superiores e

nem dado por nenhuma ilustraccedilatildeo Contudo disto se segue que do ser natildeo se pode

derivar nenhum problema Pode-se concluir em absoluto apenas que o ldquoserrdquo natildeo eacute

algo como um ente Portanto o legiacutetimo dentro de certos limites de determinaccedilatildeo dos

entes ndash a ldquodefiniccedilatildeordquo da loacutegica tradicional que em si tem suas bases na antiga

ontologia ndash natildeo eacute aplicaacutevel ao ser A indefiniccedilatildeo do ser natildeo dispensa a pergunta por

seu significado senatildeo que justamente a intima isto (HEIDEGGER 1967 4)

As observaccedilotildees de Heidegger concordam com a conclusatildeo de Kahn a respeito da tomada de

rumo do verbo ser dentro da filosofia grega claacutessica sobretudo na concepccedilatildeo das bases da antiga

ontologia acerca da indistinccedilatildeo entre ser e ente A γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας agrave qual se refere

Heidegger parece ser a natureza inevitaacutevel da proacutepria metafiacutesica em fechar a porta aberta por

ela mesma para o modo de se relacionar com o ser uma espeacutecie de destinaccedilatildeo forccedilosa da qual

natildeo se poderia de maneira alguma escapar ponderando a projeccedilatildeo que reverbera em cada um

dos sentidos

33

O conflito acerca do entendimento e expressatildeo da φύσις revela em boa parte a maneira

pela qual o conjunto do ser se tornou alvo de disputas A contenda eacute ilustrada na histoacuteria

primaacuteria da filosofia grega enquanto fisiologia e na ldquocontroveacutersiardquo paradigmaacutetica entre

Heraacuteclito e Parmecircnides Uma realidade em constante movimento e mutaccedilatildeo absorvida desde a

observaccedilatildeo teoreacutetica do mundo entorno ou simplesmente o ponto de vista do ldquodevirrdquo parece

compatiacutevel com a natureza infinitiva e inapreensiacutevel do verbo ser como eacute possiacutevel rastrear no

πάντα ῥεῖ heracliacutetico 5 Heraacuteclito expressa o movimento intriacutenseco de abertura do modo

relacional do ser Todavia tal entendimento natildeo eacute compatiacutevel com qualquer tipo de silogismo

loacutegico onde eacute possiacutevel desenhar um conhecimento comum Para assumir a cogniccedilatildeo e percepccedilatildeo

vaacutelidas seria necessaacuterio assumir a permanecircncia de algo como eacute possiacutevel acompanhar na

elaboraccedilatildeo da univocidade do ser em Parmecircnides6

O primeiro ponto de vista paradoxalmente leva agrave evidecircncia da diferenccedila e a posiccedilatildeo do

oxiacutemoro enquanto o segundo permite a identificaccedilatildeo e a possibilidade de conclusatildeo por meio

das loacutegicas da identidade e natildeo-contradiccedilatildeo Aparentemente o primeiro natildeo resulta em nenhum

avanccedilo imediato a respeito de assuntos praacuteticos ou na dissoluccedilatildeo de questotildees teoacutericas enquanto

o segundo iraacute provavelmente resolver problemas de quase todos os tipos no campo pragmaacutetico

e em toda sorte de adversidades naturais e sociais Por meio da loacutegica natural do ser humano

social eacute bastante evidente qual ponto de vista deve ser eleito no intuito de estabelecer a

coexistecircncia mais faacutecil e paciacutefica aquela que afasta o homem da falta de fundamento da

existecircncia ou seja do abismo existencial da afliccedilatildeo que eacute existir

5 Conforme cita Platatildeo no Craacutetilo ldquotodas as coisas estatildeo em processo e nada permanece paradordquo (τά ὄντα ἱέναι

τε πάντα καὶ μένειν οὑδέν) (PLATO 1997 119-120 Craacutetilo 401d-402a) (KIRK E RAVEN 1957 197) Kirk e Raven

ponderam ainda que se trata de um momento ldquoOnde φύσις provavelmente natildeo significa lsquonaturezarsquo mas lsquoas coisas

em sua verdadeira constituiccedilatildeorsquordquo (IDEM IBIDEM 184) 6 ldquoO uacutenico caminho de inquiriccedilatildeo que pode ser pensadordquo (αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι) (KIRK E RAVEN

1957 269) Haacute uma anaacutelise mais detalhada acerca do toacutepico em Ciacutecero Cunha Bezerra ldquoParmeacutenides y la

univocidad del serrdquo Caacutetedra v 1 (2003) 33-48

34

Eacute possiacutevel especular que com a ausecircncia de um princiacutepio solidamente identificado e

natildeo-contraditoacuterio quiccedilaacute nem mesmo uma regra gramatical linguiacutestica poderia ser estabelecida

dando margem mesmo agrave impossibilidade de comunicaccedilatildeo Igualmente tampouco se poderia

delinear uma corrente de haacutebitos pessoais compatiacuteveis aos costumes sociais desabilitando toda

e qualquer eacutetica ou ciecircncia poliacutetica pela qual se pode regulamentar a conduta humana Com a

perspectiva de um devir total e assunccedilatildeo da diferenccedila a presenccedila de certo caos eacute inegaacutevel Com

a fundaccedilatildeo de uma estrutura loacutegica todavia eacute possiacutevel organizar e controlar os pensamentos e

accedilotildees do ser humano e sua convivecircncia social Contudo natildeo necessariamente esta postura iraacute

levar a humanidade para as escolhas mais coerentes ndash e a histoacuteria pode comprovar isto inuacutemeras

vezes O abandono da multiplicidade de perspectivas sobretudo as supracitadas (uma em

detrimento de outra) parece ter dirigido a histoacuteria por vias pouco luacutecidas e por vezes mesmo

autodestrutivas

Mas a anaacutelise da histoacuteria fatual natildeo eacute o que realmente interessa aqui tampouco a

atribuiccedilatildeo de uma culpa ou indicaccedilatildeo de um erro neste ou naquele ponto de vista O que

interessa aqui eacute como identificar a predileccedilatildeo loacutegica do pensamento ocidental com o cerne de

sua postura contemporacircnea e inquirir se eacute possiacutevel (ou se jaacute foi tomado) um caminho de

pensamento distinto e quais os resultados da confrontaccedilatildeo de um ponto de vista com o outro

Para isto eacute preciso retomar uma anaacutelise da histoacuteria da ontologia observando a maneira pela

qual ela se movimenta intriacutenseca e extrinsecamente Dentro das possibilidades de eleiccedilatildeo de um

caminho interpretativo opto aqui em um primeiro momento por absorver a histoacuteria e criacutetica

da metafiacutesica feita por Heidegger durante o seacuteculo vinte com o fito de deixar um pouco mais

evidente o problema fundamental da indistinccedilatildeo entre ser e ente que eacute sem embargo o pontapeacute

inicial de toda a contenda Muito embora seja possiacutevel descortinar a histoacuteria do pensamento

ocidental mediante distintos autores a ecircnfase na nomeada questatildeo do ldquoesquecimento do serrdquo

serve sobremaneira bem ao propoacutesito desta tese

35

Portanto em primeiro lugar eacute preciso considerar que embora ilustrativo Martin

Heidegger passou ao largo de resolver os problemas suscitados pela histoacuteria das ideias Antes

ele desenvolveu problemaacuteticas ainda mais insoluacuteveis e como se natildeo bastasse propocircs novos

enigmas A maior dentre todas as dificuldades talvez ainda precise aguardar muito tempo para

ser descortinada Durante um longo periacuteodo o entretenimento geral dos eruditos se contentou

em traccedilar um denominador comum dentre as vaacuterias questotildees pertinentes aos problemas de sua

filosofia em um movimento enciclopeacutedico quiccedilaacute tatildeo importuno quanto improfiacutecuo de decifrar

seu pensamento Mais conveniente talvez seja simplesmente resguardar o segredo de certas

passagens e aguardar a maturaccedilatildeo necessaacuteria para interpelaacute-las independentemente da espera

suscitada por tal postura

Ainda assim alguns pontos merecem ser postos em relevo e sobre eles decerto vale

despender alguma energia no esforccedilo de meditar acerca de seu sentido Certos trabalhos

compostos por Heidegger guardam de uma soacute vez todo o peso de sua leitura da realidade

notadamente em trechos sutis e aparentemente inofensivos Em momentos nos quais o leitor se

daacute por satisfeito em compreender um posicionamento aparentemente simples e historial como

pueril revisatildeo da histoacuteria da filosofia aiacute mesmo se lhe eacute possiacutevel abrir uma brecha para absorver

a atitude fundamental de seu pensamento Heidegger sempre foi um historiador da filosofia e

natildeo renegou em momento algum o peso de um ofiacutecio como este pelo contraacuterio coube-lhe fazecirc-

lo por diversas vezes e em distintos modos Mesmo quando seus ensaios e conferecircncias se

projetavam a um tema especiacutefico e natildeo a um autor a forte presenccedila de suas interpretaccedilotildees da

histoacuteria da filosofia eacute inegaacutevel Cabe ao propoacutesito desta tese realccedilar um exemplo que torne liacutecito

ilustrar uma fissura por onde seja possiacutevel se esgueirar ateacute a fonte da emanaccedilatildeo especulativa

acerca do sentido da histoacuteria da filosofia e do desenvolvimento do pensamento ocidental

sinocircnimos para o que conveacutem nomear metafiacutesica

36

Aos 13 de novembro de 1935 como sabem os leitores assiacuteduos de Heidegger foi

pronunciada uma conferecircncia preparada para a Kunstwissenschaftlichen Gesellschaft de

Freiburg im Breisgau7 Der Ursprung des Kunstwerkes se tornou de forma veloz e viral um

trabalho amplamente comentado no circuito acadecircmico em geral principalmente no campo da

esteacutetica filosoacutefica e teorias da arte O ponto de vista quase unacircnime dos receptores do trabalho

assentou na interpretaccedilatildeo do texto como uma tese a respeito da arte como ldquoposta em marcha da

verdade enquanto desvelamentordquo uma frase natildeo tatildeo simples de ser decifrada mas repetida

quase como uma foacutermula automaacutetica que se tornou rapidamente um emblemaacutetico clichecirc e uma

resposta imediata agrave pergunta pelo sentido da arte em Heidegger

A popular obra de Michael Inwood A Heidegger Dictionary (1999) destaca

enfaticamente o caraacuteter essencial da proposiccedilatildeo-chave quando pontua no mesmo sentido que

ldquoA obra de arte eacute mais bem um projeto que abre um mundo no qual escolhas podem ser feitas

A verdade a revelaccedilatildeo do lsquoserrsquo eacute o configurar em uma obra e configurar para obra iluminando

o mundo e a terra naquilo que neles perdurardquo (INWOOD 1999 18) Inwood ressalta a

proximidade encontrada por Heidegger entre o termo alematildeo ldquoproteger manterrdquo (bewahren) e

a proacutepria palavra ldquoverdaderdquo (Wahrheit) embora os termos natildeo necessariamente estejam

etimologicamente conectados Ele aponta para a ldquopreservaccedilatildeordquo como elemento pelo qual ldquoA

arte eacute o deixar-acontecer da chegada da verdade do ser enquanto talrdquo (IDEM IBIDEM) com especial

atenccedilatildeo para o proacuteprio fazer (ποίησις) da arte e particularmente da poesia Haacute contudo uma

seacuterie de consideraccedilotildees mais sutis a serem levadas em consideraccedilatildeo nas conferecircncias de

Heidegger proporcionando uma anaacutelise um pouco mais cuidadosa do que estaacute propriamente

em jogo quando Heidegger sobreleva a questatildeo da obra de arte

7 O mesmo trabalho sofreu novas releituras durante todo o ano de 1936 sendo reapresentado respectivamente na

Einladung der Studentenschaft der Universitaumlt em Zuumlrich durante o mecircs de janeiro e na Deutschen Hochstift em

Frankfurt am Main entre novembro e dezembro O ciclo de conferecircncias recebeu ediccedilotildees retrabalhadas em 1956 e

1960 publicadas pela Reclam de Stuttgart e sendo incluiacutedo em 1977 no tomo Holzwege da Gesamtausgabe

37

O editor do volume Holzwege Friedrich-Wilhelm von Hermann dedicou toda uma obra

agrave anaacutelise temaacutetica envolta naquele escrito publicando em 1980 o livro Heideggers Philosophie

der Kunst Em algumas de suas consideraccedilotildees mais amplas sobre as conferecircncias de Heidegger

Hermann atenta para o fato da questatildeo da obra de arte ser levantada a partir de um problema

desdobrado pela ontologia fundamental Hermann observa a problemaacutetica geral do escrito

desde o estabelecimento do ldquoserrdquo como ldquoacontecimentordquo (Ereignis) Conforme ele pondera

trata-se de um trabalho contemporacircneo aos Beitraumlge zur Philosophie (1936-38) Para Hermann

a questatildeo em torno ao ldquoserrdquo como ldquoacontecimentordquo (Ereignis) estende-se em Der Ursprung des

Kunstwerkes por meio de quatro outros problemas (1) o estabelecimento constitutivo da arte

(2) da obra de arte (3) da criaccedilatildeo artiacutestica e (4) da compreensatildeo da arte (cf HERMANN 2001 7)

Contudo circunscrita agrave conferecircncia sobre a arte estaacute a elaboraccedilatildeo da passagem da discussatildeo em

torno agrave verdade do ser para o ldquopensamento da histoacuteria do serrdquo (seinsgeschichtliches Denken)

Trata-se especificamente do momento de transiccedilatildeo do pensamento de Heidegger8 Em

linhas gerais Der Ursprung des Kunstwerkes ressalta uma preocupaccedilatildeo da lida do homem para

com a essecircncia da verdade mediante a obra de arte enquanto coisa Haacute toda uma histoacuteria dos

efeitos pertinentes agraves anaacutelises de Heidegger da obra de Vincent van Gogh9 aleacutem de inuacutemeras

teorizaccedilotildees em torno ao poder salvador da obra de arte Todavia salta aos olhos uma passagem

muito mais peculiar (para qual gostaria de chamar a atenccedilatildeo agora mesmo) qual seja aquela

na qual Heidegger aborda o problema da transposiccedilatildeo da experiecircncia fundamental grega para a

intepretaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo do pensamento romano-latino (cf HEIDEGGER 1977 7)

8 A perspectiva da ontologia fundamental de Sein und Zeit (1927) continuada no curso Grundprobleme der

Phaumlnomenologie ministrado em Marburg durante o semestre de veratildeo de 1927 receberia seu desenvolvimento

desde uma visatildeo historial-reflexiva jaacute na primavera de 1932 ocasiatildeo na qual conforme Hermann satildeo elaboradas

as primeiras linhas de Beitraumlge zur Philosophie redigido entre 1936 e 1938 mas publicado postumamente somente

em 1989 9 Em uma das mais famosas passagens de Der Ursprung des Kunstwerkes Heidegger interpreta os sapatos de um

dos quadros de Vincent van Gogh (natildeo identifica qual todavia) descortinando com isto o cotidiano campesino e

oferecendo uma leitura da realidade a partir de aiacute Uma criacutetica direta foi apresentada por Meyer Shapiro (em The

Still Life as a Personal Object ndash A Note on Heidegger and van Gogh 1968 e ainda em Further Notes on Heidegger

and van Gogh 1994) onde ele sustenta que os sapatos retratados por van Gogh natildeo satildeo de uma pessoa do campo

mas as botas do proacuteprio artista apontando com isto graves mal entendidos na interpretaccedilatildeo de Heidegger

38

Ainda no iniacutecio do escrito Heidegger busca a compreensatildeo mais geral da ldquocoisardquo

abordando como exemplo um bloco de granito A despeito de suas muacuteltiplas caracteriacutesticas ele

enfatiza o ldquoao redorrdquo (das herum sich) pelo qual suas propriedades se agrupam podendo entatildeo

falar de algo como um ldquonuacutecleordquo (Kern) da coisa Esse nuacutecleo de acordo com Heidegger

chamaram-lhe os gregos claacutessicos de ὑποκείμενον Embora ilustrativa a descriccedilatildeo eacute decerto

passiacutevel de baixo niacutevel de representaccedilatildeo posta sua exposiccedilatildeo pouco objetiva O termo eacute mesmo

tatildeo controverso quanto as proacuteprias ideias de ser e ente dentro da perspectiva grega Ela possui

uma carga conceitual talvez natildeo tatildeo difiacutecil de ser desvelada mas que tampouco garante exatidatildeo

e lucidez em sua abordagem variando de eacutepoca para eacutepoca de filoacutesofo para filoacutesofo de

interpretaccedilatildeo para interpretaccedilatildeo Ademais vaacuterias histoacuterias metaforizam o sentido do termo

ὑποκείμενον Uma das mais conhecidas (conto-a sem embasamento ou referecircncias quiccedilaacute

mesmo de maneira inapropriada) relata que certa vez um rei se espantara ao conhecer a obra de

um escultor haacutebil em reproduzir as formas da natureza em blocos de maacutermore Tamanha era a

destreza do artista que se postas lado a lado a escultura e a coisa mesma confundiam-se os

espectadores exceto pelo caraacuteter inanimado da escultura Intrigado o rei mandou chamar o

escultor e perguntou-lhe como fazia para reproduzir com tanta fidelidade o mundo em torno

Natildeo sabendo explicar senatildeo por meio da praacutetica pediu um bloco de maacutermore e agraves vistas do rei

reproduziu perfeitamente um cavalo em tamanho real faltando-lhe apenas galopar O rei lhe

questionou ldquoComo o fizesterdquo e respondeu o escultor ldquofaacutecil apenas retirei do bloco de

maacutermore o que natildeo era cavalordquo O ὑποκείμενον seria portanto aquele elemento sem o qual o

cavalo natildeo seria cavalo ou sem o qual uma coisa natildeo eacute uma coisa Contudo o grande problema

envolto nas tentativas de atingir um entendimento deste sentido por meio de um silogismo uma

loacutegica racional ou uma explicaccedilatildeo conceitual (e natildeo por uma metaacutefora ou estoacuteria) consiste na

dificuldade em elaborar uma equaccedilatildeo que exija menos esforccedilo do ouvinte capacitando uma

lucidez mais ampla e geral que a todos possa atingir

39

Toda definiccedilatildeo a partir de uma predicaccedilatildeo direta pode se configurar ainda mais obscura

e lanccedilar aquele que se propotildee a entender o conceito para um mero encadeamento e conexatildeo de

termos sem contudo realmente promover a experiecircncia do sentido da palavra Sem embargo o

Impeacuterio Romano foi a eacutegide da popularizaccedilatildeo e introspecccedilatildeo do mundo grego competindo-lhes

a tarefa de transpor ao modo latino de pensar os sentidos das meditaccedilotildees gregas Sobre isto

Heidegger ostenta uma posiccedilatildeo bastante firme e vale a pena destacar por completo o trecho no

qual se lhe pode observar sua atitude

Estas denominaccedilotildees natildeo eram meros nomes Em sua fala a experiecircncia fundamental

grega do ser do ente no sentido de sua presenccedila mostrava o que natildeo se podia mostrar

Por meio dessa disposiccedilatildeo instaura-se a interpretaccedilatildeo oficial da coisidade da coisa e

a interpretaccedilatildeo ocidental do ser do ente Comeccedila com a traduccedilatildeo das palavras gregas

para o pensamento romano-latino ὑποκείμενον torna-se subjectum ὑπόστασις torna-

se substantia συνβεβηκός torna-se accidens O processo desta traduccedilatildeo dos nomes

gregos para a liacutengua latina natildeo se daacute sem consequecircncias e nos dias de hoje toma-se

ainda a mesma compreensatildeo Antes pelo contraacuterio por detraacutes da traduccedilatildeo

aparentemente literal haacute um traslado da experiecircncia grega para outro modo de pensar

O pensamento romano assume para si as palavras gregas sem a devida

correspondecircncia com a experiecircncia originaacuteria do que dizem sem a palavra grega A

falta de fundamento do pensamento ocidental comeccedila com essas traduccedilotildees (IDEM

IBIDEM 7-8)

Responsabilizar o pensamento romano-latino pela queda do Ocidente no abismo da falta de

fundamento delega a Heidegger um encargo de peso formidaacutevel cujo maior perigo talvez seja

o de natildeo se ambientar aqui ou ali dentro deste ou daquele territoacuterio neste ou naquele lugar

mas na posiccedilatildeo do meio na esfera do entre no desenho do limite da linha da fronteira

40

A direccedilatildeo do pensamento de Heidegger a partir desta passagem claramente se constitui

desde uma divisatildeo da metafiacutesica ocidental em dois momentos muito distintos embora

interligados A emboscada se encontra na percepccedilatildeo de que todo e qualquer ocidental eacute jaacute

sempre forccedilado a se movimentar na esfera da ontologia latina ao passo que o retorno aos

fundamentos da ontologia grega eacute antes de tudo calcar terreno em solo incerto e regiatildeo

desconhecida Estabelecer uma ponte que permita ao ser humano contemporacircneo entender a

proveniecircncia de sua apreensatildeo da existecircncia eacute um roteiro deveras ousado Resta saber como eacute

possiacutevel ainda pensar os conceitos fundamentais da metafiacutesica dentro de sua propriedade sem

causaacute-los algum tipo de dano que faccedila seu sentido se perder ser obscurecido ou transviado

A partir da colocaccedilatildeo do problema da obra de arte enquanto coisa Heidegger questiona

o que enfim se compreende pelo termo mesmo ldquocoisardquo quando se compromete com a ideia de

tentar envolvecirc-lo conceitualmente (a partir de ὑποκείμενον ὑπόστασις e συνβεβηκός) e desde

aiacute extrair uma explicaccedilatildeo Sobre isto Hermann comenta ldquoComo podemos ver ainda mais e

melhor resolver o problema da obra de arte se torna um problema ontoloacutegico ndash isto eacute em

primeira instacircncia o problema ontoloacutegico do ser-res da resrdquo (HERMANN OP CIT 87) entenda-se

ainda o problema da coisidade da coisa Ele ainda complementa deixando ver a postura exigida

pela tarefa de entender a ontologia grega ldquoPortanto explicar o pensamento grego significa

antes de tudo revelar novamente a experiecircncia de estar no lugar em que se encontra a expressatildeo

de acordo com o fio condutor da palavra filosoacutefica gregardquo (IDEM IBIDEM 93-94) Sem embargo

conforme aponta Hermann (em coerecircncia com Heidegger) o ofiacutecio de introduzir a filosofia

grega (ou se introduzir na filosofia grega sua ontologia e berccedilo da metafiacutesica) constitui-se

desde o caminhar ao lado do fio condutor de sua expressatildeo e manifestaccedilatildeo A caminhada talvez

seja ela mesma o ldquoestar no lugar em que se encontra a expressatildeordquo ou o espaccedilo do ldquoentrerdquo a

ldquolinha de fronteirardquo

41

Algumas dezenas de leituras podem ser desdobradas desde a interpretaccedilatildeo de Heidegger

do lugar de transiccedilatildeo da histoacuteria do ser O itineraacuterio do pensamento de Heidegger legou aos

fieacuteis depositaacuterios de sua vasta caminhada a tarefa ingloacuteria de dar uma passo aleacutem Gostaria de

destacar aqui um direcionamento um pouco menos ousado nem por isto ingecircnuo Considerar

uma histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica em Heidegger eacute procurar pela fenda cuja passagem

encaminha diretamente ao salto no abismo da superaccedilatildeo da metafiacutesica embora natildeo fique ainda

claro o significado destes termos Ademais a intenccedilatildeo aqui eacute justamente esta esclarecer os

enlaces desse percurso histoacuterico nomeado sob o signo da metafiacutesica agrave luz da trajetoacuteria

interpretativa de Heidegger

Justamente sob o tiacutetulo Itineraacuterio do Pensamento de Heidegger (1965) Emmanuel

Carneiro Leatildeo apresenta sua traduccedilatildeo para o portuguecircs da Einfuumlhrung in die Metaphysik (1935)

de Heidegger ndash segundo ele nem de perto uma obra de faacutecil acesso Em primeiro lugar pela

impossibilidade geral de uma introduccedilatildeo em filosofia no sentido amplo Em outras palavras

natildeo haacute caminho de iniciaccedilatildeo agrave filosofia como se houvesse ainda um siacutetio no qual se a conquista

Haacute na verdade o puro levantar de questotildees responsaacuteveis por conduzir o pensamento para dentro

da proacutepria filosofia Carneiro Leatildeo elucida tal dificuldade quando especifica o tiacutetulo da obra

Introduzir agrave metafiacutesica eacute movimentar-lhe a questatildeo fundamental de maneira a

conduzi-la (-ducere) para dentro (-intro) das origens donde a metafiacutesica procede Um

esforccedilo de pensamento que nada tem de horizontal e progressivo Cujo movimento

se processa antes no sentido vertical e regressivo (CARNEIRO LEAtildeO 1999 10)

A filosofia busca o movimento imputado para originaacute-la para com isto retornar agraves suas origens

proacuteprias Em segundo lugar e natildeo menos importante a obra ainda guarda certa inacessibilidade

devido agrave intencional ambiguidade de um periacuteodo conturbado de transiccedilatildeo do pensamento de

Heidegger (tambeacutem evidenciado por Hermann)

42

Eacute preciso movimentar a questatildeo fundamental da metafiacutesica para conduzi-la para dentro

de suas origens Agora bem destacar a questatildeo fundamental eacute o primeiro passo de Heidegger

na obra quando questiona ldquoPorque haacute em geral o ente e natildeo antes nadardquo (HEIDEGGER 1983b

3) Um adendo eacute necessaacuterio ao leitor lusoacutefono Carneiro Leatildeo em sua traduccedilatildeo explica o

emprego do termo ldquoenterdquo para traduzir o alematildeo Seiendes justificando o uso da forma erudita

referida ao latim ens entis para salvaguardar o caraacuteter de tudo que eacute independentemente de

seu modo de ser (cf CARNEIRO LEAtildeO OP CIT 77 nota) Ponderando isto a leitura de Carneiro

Leatildeo segue um rumo bastante simples e esclarecedor ele afirma

O homem natildeo pode existir senatildeo em comeacutercio e comunhatildeo com o mundo dos entes

Ente significa tudo que de algum modo eacute o homem as coisas os acontecimentos ateacute

mesmo o Nada enquanto eacute um Nada ieacute enquanto tem um significado () (IDEM IBIDEM

11)

A forccedila responsaacutevel por manter a decisatildeo a respeito dos entes depende diretamente da

capacidade de enxergar suas distinccedilotildees Em um compecircndio unitaacuterio a base de sustentaccedilatildeo no

comeacutercio com os entes se daacute na e pela linguagem mediante a qual o homem simplesmente

afirma eacute Uma afirmaccedilatildeo aparentemente simples guarda contudo uma relaccedilatildeo complexa e

ambiacutegua talvez mesmo em decorrecircncia de sua extrema simplicidade

A existecircncia humana se agita dentro da tensatildeo entre imanecircncia e transcendecircncia

porque o homem existe enquanto in-siste no domiacutenio da Verdade do Ser ieacute a

vicissitude instaurada pela diferenccedila irredutiacutevel e referecircncia necessaacuteria entre ente e

ser A tarefa do pensamento natildeo eacute procurar sair decircsse ciacuterculo de diferenccedila e referecircncia

e sim necircle ingressar de maneira a poder regressar ateacute a fonte originaacuteria de sua tensatildeo

e unidade (ID IBID 15)

43

O atino para o ingresso ao interior da tarefa do pensamento deixa bastante evidente a intitulaccedilatildeo

da obra Eacute possiacutevel conceber a empreitada em regressar ao fundamento desde o qual a metafiacutesica

eacute ela mesma a proveniecircncia da tensatildeo em torno agrave unidade da existecircncia perante a multiplicidade

Eacute preciso destarte compreender que ldquoSoacute poderemos entender os pensamentos os conceitos

ou as explicaccedilotildees dados na medida em que nos ex-pusermos e dis-pusermos aquilo que se pensa

que se concebe ou que se explicardquo (ID IBID 29) acompanhando assim os passos de Heidegger

e verificando sua coerecircncia teoacuterica de levar colocar e se pocircr no estado da questatildeo

Esta mesma ambivalecircncia eacute tambeacutem destacada por Heidegger quando ele se refere ao

ambiacuteguo das formas essenciais do espiacuterito Natildeo se trata portanto de uma dedicaccedilatildeo integral agraves

possibilidades de captar de maneira exclusivamente formal os procedimentos que envolvem os

estudos mas de perceber (αἴσθησις) e experienciar os fenocircmenos Heidegger adverte ainda

Tomada na totalidade de seu sentido mais cru a filosofia sempre lida com o

fundamento do ente de tal maneira que o proacuteprio ser humano tem enfaticamente a

experiecircncia de seu significado e propoacutesito Por isto agora se vislumbra facilmente a

amplitude da filosofia que poderia e deveria proporcionar o fundamento da existecircncia

da eacutepoca histoacuterica atual e futura pela qual se estabelece a cultura Com tais

espectativas e demandas o estado e a essecircncia da filosofia satildeo sobrecarregadas Na

maior parte das vezes essa demanda excessiva se mostra pela forma de uma censura

da filosofia Diz-se por exemplo porque a metafiacutesica natildeo participou na preparaccedilatildeo

para a revoluccedilatildeo ela deve ser rejeitada Isto eacute tatildeo espirituoso quanto dizer que porque

vocecirc natildeo pode voar com um tocircrno portanto este deve ser abandonado A filosofia

natildeo provecirc diretamente forccedilas nem modos de accedilatildeo e criaccedilatildeo para ajeitar a condiccedilatildeo

histoacuterica simplesmente pelo motivo de dizer respeito apenas a poucos Quais poucos

Aqueles que transformam criativamente convertendo os fins Afetando uma vastidatildeo

apenas indiretamente e nunca fazendo rodeios ateacute certo ponto onde finalmente desde

o longo esquecimento da filosofia degenera-se como autocompreensatildeo da existecircncia

(HEIDEGGER OP CIT 12)

44

Heidegger aponta certa responsabilidade da filosofia na formaccedilatildeo da cultura e direcionamento

da eacutepoca presente e futura A chamada ldquoessencializaccedilatildeo da filosofiardquo eacute em grande parte

responsaacutevel pela tomada de rumo e pela constituiccedilatildeo da histoacuteria ateacute mesmo por seu abandono

Agrave ela estaacute diretamente conectada a ldquoessencializaccedilatildeo do serrdquo e maneira pela qual a filosofia se

apresenta como contemplaccedilatildeo dos fundamentos do ente

Heidegger explica em pormenores a diferenccedila entre ser e ente quando expotildee a gramaacutetica

e etimologia da palavra Certa advertecircncia contudo clama a petrificaccedilatildeo das normas

gramaticais ocas e vazias destituindo a Escola do Mundo do Espiacuterito que circunda a

morfologia dos termos e se restringindo tatildeo somente agrave transmissatildeo de regras do uso da palavra

Neste sentido a maneira pela qual se ostenta a ldquogrande gramaacuteticardquo eacute em si mesma o processo

de substantivaccedilatildeo do Ocidente visto como o cerrar das fronteiras como delimitaccedilatildeo

Tambeacutem em Einfuumlhrung in die Metaphysik Heidegger insiste no argumento exprimido

em Der Ursprung des Kunstwerkes seguindo o fluxo comentado acima quando afirma outra

vez ldquoQue essas formas gramaticais natildeo dissecaram desde toda eternidade uma linguagem

absoluta enquanto controle elas satildeo de fato erigidas de uma particular interpretaccedilatildeo da liacutengua

grega pela liacutengua latinardquo (ID IBID 56) Em outras palavras a linguagem possibilita sendo ela

tambeacutem um ente manipulaccedilatildeo e controle por sobre suas formas Por este motivo eacute possiacutevel

transmitir o conhecimento de uma liacutengua estrangeira somente com o ensino da gramaacutetica

mesmo para pessoas que nunca realmente entraram em contato com essa determinada liacutengua

Ou ainda aprender um idioma antigo natildeo mais utilizado ou cujo vigor ou esplendor se apagou

como o latim o grego claacutessico ou o sacircnscrito antigo sem ter a possibilidade de experenciaacute-los

no cotidiano O domiacutenio teoacuterico de uma liacutengua pode permitir ainda intuiccedilotildees e analogias a

respeito da experiecircncia que esta liacutengua provocava em seus falantes originais sem contudo

garantir exatidatildeo das disposiccedilotildees ou estados de acircnimo referidos pelos termos

45

Dentro da gramaacutetica e morfologia do ser Heidegger evidencia que existe um duplo

sentido para a palavra dentro de seu entendimento como consistecircncia (Staumlndigkeit) qual seja

a) o estar em si mesmo enquanto proveniente de si mesmo e b) o que perdura constantemente

enquanto tal Consistecircncia eacute a palavra-chave de sua leitura do termo ser dentro da circunvisatildeo

grega claacutessica Heidegger aponta que justamente por isso o natildeo-ser denota a desistecircncia ou a

saiacuteda da existecircncia ou ainda o abrir matildeo do ldquosalto para aleacutemrdquo Jaacute a etimologia da palavra ser

revela como os sentidos manifestos pela gramaacutetica e morfologia foram confundidos

historicamente Heidegger expotildee trecircs raiacutezes do termo uma sacircnscrita (es asus) outra indo-

germacircnica (bhuuml) e uma apenas germacircnica (sein) Conforme suas interpretaccedilotildees elas se

desdobram respectivamente em um sentido de ldquoviverrdquo ldquosurgirrdquo e ldquopermanecerrdquo Tratam-se de

verbos distintos todavia Heidegger natildeo citas as fontes das quais ele extrai tais etimologias

Ateacute onde eacute possiacutevel investigar o termo sacircnscrito mais proacuteximo ao que ele considera es

asus seria asti (अनतत) cuja raiz ās (आस) possui incontaacuteveis significados dentre os quais ldquoexistirrdquo

ldquoestar presenterdquo ldquopermanecerrdquo entre vaacuterios outros Aparentemente eacute a origem do indo-europeu

es cujo similar em grego seria o morfema ἐστί e em latim esse (sobremaneira visiacutevel no

portuguecircs estar) Jaacute a palavra bhuuml provavelmente indicada por Heidegger como ldquoindo-

germacircnicardquo em consequecircncia da formataccedilatildeo do verbo ser como ldquobinrdquo ldquobistrdquo (ou ainda ist e em

inglecircs ldquoisrdquo) eacute tambeacutem ela sacircnscrita (bhū भ) e estaacute presente em vaacuterias outras liacutenguas indo-

europeias (como no inglecircs being) Seu significado mais geral seria ldquoserrdquo ou ldquoexistirrdquo embora

aponte tambeacutem para ldquoacontecerrdquo ou ldquoperceberrdquo aleacutem de outros sentidos Sein tambeacutem pode ser

rastreado ateacute certo ponto em sua origem germacircnica no mittelhochdeutsch sīn e no

althochdeutsch wesan derivado da raiz sacircnscrita ves (वस) que daria as formas de Wesen

(essecircncia) ou (war o preteacuterito de Sein ser) em alematildeo De qualquer forma a questatildeo leva

imediatamente ao que Heidegger chama de ldquoessencializaccedilatildeo do serrdquo O motivo eacute simples viver

surgir e permanecer satildeo manifestaccedilotildees que interpelam o ser humano inevitavelmente

46

Contudo o ser ao interpelar o humano natildeo se manifesta antes se oculta esconde sua

proveniecircncia mostra-se ambiacuteguo e pela metade A forma de manifestaccedilatildeo do ser passiacutevel de

ser apreendida como uma realidade existente daacute-se por meio de sua participaccedilatildeo na realidade

presente qual seja ente (seu particiacutepio presente) A predileccedilatildeo pelo ente nasceria justamente

de seu caraacuteter manipulaacutevel embora haja uma conclusatildeo que clama as variaccedilotildees da palavra ser

e seu comportamento com respeito ao ldquoser em si mesmordquo evocado de modo distinto de outros

substantivos e verbos com relaccedilatildeo aos seus respectivos entes A eleiccedilatildeo de uma manifestaccedilatildeo

do ser diz muito sobre o modo relacional do humano com a conduccedilatildeo de sua existecircncia10

Alguns anos antes da composiccedilatildeo da Einfuumlhrung em um compecircndio posteriormente

publicado sob o tiacutetulo Sein und Wahrheit (1933-34) Heidegger se aproximou sistematicamente

da constituiccedilatildeo histoacuterica da metafiacutesica A obra eacute todavia pouco comentada O motivo eacute simples

haacute certo complexo ou trauma envolto na abordagem de um texto do periacuteodo da ascensatildeo do

Partido Nazi e do consentimento ao seu propoacutesito inicial Embora haja certos traccedilos de sintonia

com o discurso do momento pelo qual o povo alematildeo atravessava natildeo haacute nenhum resquiacutecio em

Heidegger dos preconceitos intriacutensecos ao desenrolar do totalitarismo Dentro do ambiente

promissoramente inovador Heidegger escreve ldquoToda gestatildeo essencial se vivifica desde uma

grande determinaccedilatildeo oculta no fundamentordquo (ID 2001 3) As palavras de Heidegger parecem

indicar antes de uma referecircncia ao destino da Alemanha o fato de que a questatildeo fundamental

estaacute contida no proacuteprio fundamento Por este motivo Heidegger ainda sugere um ldquo() caminho

histoacuterico na essecircncia da filosofia ndash e natildeo se poderia ter outro e isto justamente porque a filosofia

eacute ela mesma o acontecimento fundamental da histoacuteria da existecircnciardquo (ID IBIDEM 17) Resta

saber portanto como esse acontecimento fundamental se constitui como metafiacutesica

10 Heidegger justifica este ponto na sua apresentaccedilatildeo do conceito de Cura Sorgen em Sein und Zeit que embora

seja de suma importacircncia uma explanaccedilatildeo mais cuidadosa tomaria aqui e agora demasiado tempo mas que

precisa ao menos ser mencionada Seria esta caracteriacutestica originaacuteria do ser humano Cura Cuidado (Sorgen)

aquilo que o impulsionaria a preservar sua condiccedilatildeo evitando a queda nos abismos existenciais e a confusatildeo

generalizada (cf HEIDEGGER OP CIT 196-200)

47

Quando a tarefa eacute compreender a histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica realizada por Heidegger

insisto nunca eacute demasiada repeticcedilatildeo retomar as primeiras linhas de Sein und Zeit Vale lembrar

uma vez mais a disputa titacircnica a respeito da essecircncia (γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας) que

envolve os questionamentos aparentemente desprestigiados da metafiacutesica Conforme Heidegger

a maneira pela qual o problema perdurou sofreu alteraccedilotildees de Platatildeo e Aristoacuteteles ateacute sua

formulaccedilatildeo mais sofisticada na Wissenschaft der Logik (1812-16) de Georg W F Hegel Em

Sein und Wahrheit eacute tambeacutem a discussatildeo com Hegel que orienta a anaacutelise da metafiacutesica

tradicional Ateacute alcanccedilar Hegel entretanto Heidegger se preocupa em delinear as feiccedilotildees da

perda de sentido da μετὰ τὰ φυσικά aristoteacutelica na recepccedilatildeo tardia de seus escritos onde

ldquoGrandeza e iacutempeto desaparecem tanto na singularidade do questionamento criativo quanto na

designaccedilatildeo conceitual a praccedila desocupada daacute lugar agrave atividade de uma escola ndash somente

sobraram palavras e conceitos mas natildeo o poder estimulante da coisardquo (ID IBID 21)

Para Heidegger a unificaccedilatildeo do termo grego na palavra latina metaphysica natildeo eacute

acompanhada somente de uma correspondecircncia senatildeo ao mesmo tempo de uma mudanccedila em

seu significado Inerente agrave transformaccedilatildeo de seu sentido estaacute a apropriaccedilatildeo cristatilde do conceito

imputando um conhecimento suprassensiacutevel (trans physicam) de maior grau de importacircncia e

relevacircncia e diretamente relacionado ao divino Onde antes havia perplexidade na aspiraccedilatildeo agrave

sapiecircncia e observaccedilatildeo da realidade haacute agora um conhecimento humano elevado e suscetiacutevel agrave

confirmaccedilatildeo pela ciecircncia superior Heidegger visa e cita textualmente a formulaccedilatildeo de

Immanuel Kant da metafiacutesica como a ultrapassagem de todos os objetos empiacutericos a fim de

alcanccedilar um conhecimento viaacutevel e puro ou a superaccedilatildeo do conhecimento sensiacutevel pelo

conhecimento suprassensiacutevel11

11 Embora esta premissa esteja presente jaacute na Kritik der reinen Vernunft e em certa medida em suas especulaccedilotildees

preacute-criacuteticas atingindo ainda todos os escritos intercalados agraves duas outras criacuteticas e ainda os posteriores ele parece

se referir agraves conferecircncias de Kant reunidas por Karl Heinrich Ludwig Poumllitz publicadas em Vorlesungen Kants

uumlber Metaphysik aus drei Semestern Max Heine (org) Leipzig Hirzel 1984 (natildeo tenho certeza disto entretanto)

48

Haacute ainda a absorccedilatildeo do direito agrave verdade metafiacutesica pela ontologia claacutessica e neste

sentido Heidegger cita Alexander Baumgarten onde a verdade metafiacutesica eacute o princiacutepio

universal e fundamental em conveniecircncia agrave determinaccedilatildeo do ente enquanto tal Deste modo

conclui que a metafiacutesica se constitui como uma determinaccedilatildeo cristatilde e ideia matemaacutetico-

metoacutedica de fundamentaccedilatildeo nos sistemas metafiacutesicos da modernidade onde ela se apresenta

como conhecimento do ente em seu todo Hegel ocuparia neste sentido o lugar da consumaccedilatildeo

da plenitude da filosofia ocidental na metafiacutesica destacado o caraacuteter teoloacutegico no qual a medida

do saber eacute o ldquoinfinitordquo (perfectum) manifesto enquanto identidade absoluta (perfectissimus)

ou espiacuterito absoluto Por este motivo ao que parece quando se refere agrave histoacuteria da disputa

titacircnica sobre a essecircncia em Sein und Zeit Heidegger aponta a Wissenschaft der Logik de Hegel

como ponto de chegada Ali a loacutegica eacute entendida como ciecircncia do pensamento todavia natildeo

como ciecircncia responsaacutevel por regular o pensamento mas como fundamento do conceito e em

uacuteltima instacircncia fundamento do ente em si mesmo Heidegger explica dizendo que em Hegel

ldquoA metafiacutesica como ciecircncia do ser do ente eacute lsquoLoacutegicarsquo e esta Loacutegica eacute Loacutegica lsquodorsquo Absoluto isto

eacute de Deus Genitivo deliberadamente ambiacuteguo Natildeo apenas um genitivus objectivus Deus

representado mas sim genitivus subjectivus a essecircncia de deus como presenccedila do Espiacuterito

Absolutordquo (ID IBID 76) Em um momento final da exposiccedilatildeo da questatildeo fundamental da

filosofia Heidegger faz uma divisatildeo entre a filosofia ocidental em seu princiacutepio e em seu fim

escrevendo que

No princiacutepio a mais profunda necessidade era o questionamento na luta com os

poderes incontrolaacuteveis da verdade e da decepccedilatildeo A filosofia causava o mais alto

poder clarificante da naccedilatildeo e de sua existecircncia Riqueza de decisatildeo momento de

decisatildeo No fim alta bem-aventuranccedila na suspensatildeo das contradiccedilotildees fraqueza de

meros conceitos opostos fracasso e morte de todo questionamento Eternidade vazia

cheia de indecisotildees (ID IBID 77)

49

A eternidade vazia cheia de indecisotildees todavia natildeo soa aqui como algo proveniente de um

descontentamento Pelo contraacuterio emerge desde a simples oposiccedilatildeo de conceitos com o fito de

suspender contradiccedilotildees e evidenciar uma maacutexima clareza e nitidez com o intuito de um suposto

pleno contentamento como se a profunda necessidade de questionamento houvesse sido calada

pela extrema emergecircncia de soluccedilatildeo Um abismo entre a filosofia ocidental em seu princiacutepio e

em seu fim eacute diagnosticado de maneira direta e evidente Longe de apontar culpados ou

referendar uma condenaccedilatildeo agrave metafiacutesica claacutessica Heidegger explica o processo intriacutenseco de

explicaccedilatildeo e complicaccedilatildeo da metafiacutesica evidenciando fatualmente a transiccedilatildeo do pensamento

da histoacuteria do ser da ontologia grega agrave latina A distacircncia que provecirc de clareza a anaacutelise eacute todavia

bastante tendenciosa aos propoacutesitos da ontologia fundamental A maneira pela qual a proacutepria

ontologia se protege com uma complexidade de conceitos dificulta a visualizaccedilatildeo do percurso

histoacuterico e da explanaccedilatildeo esclarecedora

Vale portanto retomar alguns aspectos relevantes embora por vezes sutis da pesquisa

acerca da ontologia na metafiacutesica claacutessica Gostaria de propor um breve desvio que agrave primeira

vista pareceraacute desnecessaacuterio contudo configura-se como extremamente pertinente ao

propoacutesito do capiacutetulo Atualmente as pesquisas voltadas ao estudo da ontologia se restringem

ou bem ao estudo histoacuterico ou bem agraves repercussotildees da metafiacutesica na filosofia contemporacircnea

Via de regra servem de embasamento para questotildees projetadas aos assuntos pertinentes da

eacutepoca vigente A ontologia se torna assim uma ldquoaacuterea da filosofiardquo uma ldquodisciplinardquo ou mesmo

um tronco braccedilo ou ramificaccedilatildeo dos estudos filosoacuteficos Os pesquisadores responsaacuteveis por

esta aacuterea da filosofia desdobram prolegocircmenos e comentaacuterios explicativos aos textos claacutessicos

fundamentando muacuteltiplas outras aacutereas Poucas vezes eacute possiacutevel observar um trabalho sobre

ontologia que realmente conecte seu sentido primaacuterio aos problemas apresentados nos dias de

hoje todavia escavando com devoccedilatildeo algumas pesquisas emergem sobremaneira conexas

50

A ontologia parece ser mesmo ldquoutilizadardquo como ponte para abrir novos caminhos como

por exemplo as discussotildees histoacutericas na anaacutelise do desenvolvimento da cultura as

investigaccedilotildees epistemoloacutegicas na confrontaccedilatildeo das possibilidades de conhecimento as

consideraccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas na constituiccedilatildeo dos haacutebitos e costumes da relaccedilatildeo do ser humano

com as virtudes deveres e utilidades os juiacutezos esteacuteticos na relaccedilatildeo com a obra de arte ou

mesmo as bases psicanaliacuteticas do entendimento do proacuteprio humano e sua relaccedilatildeo com as coisas

e o mundo entorno

Um dos exemplos mais niacutetidos de um pensamento comprometido em discutir a

ontologia por si mesma observando a maneira pela qual as categorias ontoloacutegicas dispotildeem

ainda hoje os modos de estruturar a realidade talvez se apresente nas recentes discussotildees em

torno ao ldquodigitalrdquo e ao ldquovirtualrdquo ou as propostas de uma ldquoontologia digitalrdquo Ouvi falar pela

primeira vez sobre ldquoontologia digitalrdquo por meio de Rafael Capurro em 2009 durante o III

Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica realizado em Natal na Universidade Federal do Rio

Grande do Norte12 Ateacute entatildeo possuiacutea minhas proacuteprias teorias acerca do mundo digital e da

esfera virtual da internet todavia natildeo tinha sequer noccedilatildeo da envergadura do problema e da

maneira pela qual o assunto podia ser pensado desde uma perspectiva ontoloacutegica e natildeo

meramente poliacutetico-ativista ou mesmo teoacuterico-juriacutedica Embora este natildeo seja propriamente o

assunto do capiacutetulo gostaria de abordar o tema como forma de justificar o questionamento pela

ontologia claacutessica para aleacutem da mera constataccedilatildeo historiograacutefica Conforme pude acompanhar

a inquietaccedilatildeo que move os trabalhos se concentra na crenccedila segundo a qual todos os fenocircmenos

podem ser analisados construiacutedos e manipulados sob a condiccedilatildeo de poderem ser digitalizados

12 A discussatildeo de Capurro havia comeccedilado com uma troca de e-mails com Michael Eldred A conversa redundou

em primeira matildeo nos trabalhos de Capurro intitulados Entwurf einer digitalen Ontologie (1999) e Beitraumlge zu

einer digitalen Ontologie (1999) sendo estendida em ulteriores escritos como Interpreting the digital human

(2008) e Einfuumlhrung in die digitale Ontologie (2009) aleacutem do livro publicado por Eldred The Digital Cast of

Being (2009) Provavelmente a discussatildeo ainda prossegue e outros trabalhos foram ou estatildeo sendo publicados

51

Talvez como um chiste mas bastante pertinente e veriacutedico Capurro afirma que

atualmente se algueacutem natildeo estaacute na rede eacute como se natildeo existisse Dando impulso para uma

formulaccedilatildeo inusitada esse est computari em analogia agrave famosa foacutermula de George Berkeley

(esse est percipi) A conclusatildeo bastante perspicaz extraiacuteda por Capurro eacute a de que seria correto

dizer que hoje vemos a realidade no horizonte de sua digitabilidade Uma seacuterie de outros termos

e expressotildees natildeo-convencionais emergem do texto de Capurro como ldquoem tudo que eacute puramente

virtual as coisas consistem essencialmente em bitsrdquo ou a denominaccedilatildeo ldquopitagorismo digitalrdquo

Entretanto todas as definiccedilotildees e determinaccedilotildees estatildeo conectadas ao arcano questionamento em

torno ao ente

O que eacute o ente Esta pergunta fundamental da metafiacutesica natildeo pode ter uma resposta

definitiva a partir da perspectiva de um conhecimento finito sem cair na ilusatildeo

essencialista Isto tem consequecircncias para a problemaacutetica de como pensar uma cultura

digital Uma ontologia digital eacute uma interpretaccedilatildeo possiacutevel do ser dos entes vistos

desde sua digitabilidade No entanto tal ontologia corre sempre o perigo de

transformar-se em uma metafiacutesica digital no momento em que acredita ser a

verdadeira ou uacutenica resposta agrave pergunta pelo ser A ontologia digital eacute uma possiacutevel

compreensatildeo do ser por parte do conhecimento humano finito Todas as regiotildees ou

esferas dos entes satildeo concebidas entatildeo como digitais (CAPURRO 2009 322)

A introduccedilatildeo da digitabilidade para aleacutem da anaacutelise do ldquoserrdquo quantificado pela ciecircncia moderna

confere uma perspectiva nova de experimentaccedilatildeo do ente em sua totalidade Chama atenccedilatildeo o

perigo envolto na transformaccedilatildeo em uma ldquometafiacutesica digitalrdquo na qual uma virada ontocecircntrica

concentraria o poder da verdade enquanto julgamento como oriente agrave pergunta pelo ldquoserrdquo

Talvez o mais importante da anaacutelise de Capurro consista justamente na renovaccedilatildeo desta criacutetica

na qual se chama atenccedilatildeo para a imprecisatildeo especulativa por meio da indefiniccedilatildeo do virtual

52

Natildeo eacute difiacutecil perceber que o mundo digital oferece uma vasta gama de temas e

possibilidades de se pensar filosoficamente sob as mais diversas perspectivas Natildeo haacute grande

espanto na busca dos filoacutesofos por reflexotildees em torno aos acontecimentos revolucionaacuterios dos

veiacuteculos de informaccedilatildeo e tecnologias em geral no seacuteculo vinte-e-um Contudo admiraacutevel eacute

encontrar o caminho oposto o momento no qual desenvolvedores da ciecircncia e da teacutecnica

buscam a filosofia para fundamentar seus trabalhos Eacute caso dos estudos realizados por Peter

Oslashhrstroslashm Henrik Schaumlrfe e Sara L Uckelman cujos resultados foram publicados nos anais da

International Conference on Conceptual Structures um evento dedicado agrave ciecircncia da

computaccedilatildeo Os trecircs investigadores fundamentam desde a ontologia moderna claacutessica a

concepccedilatildeo de hipertexto um conceito fundamental da computaccedilatildeo13 Para Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e

Uckelman o nascimento do termo ldquoontologiardquo representa o estabelecimento de um hipertexto

sobre a realidade e a temporalidade em pleno seacuteculo dezessete Os pesquisadores se referem

especificamente a Jacob Lorhard autor dos oito volumes intitulados Ogdoas Scholastica (1606)

responsaacutevel por cunhar o termo ldquoontologiardquo pela primeira vez na histoacuteria

Lorhard compocircs sua Ogdoas como uma gramaacutetica para o ensino escolar por meio de

aacutervores diagramaticais A teacutecnica utilizada por Lorhard foi profundamente influenciada por

Petrus Ramus (Pierre de la Rameacutee) cujo objetivo era transformar a razatildeo dialeacutetica em um

meacutetodo de loacutegica pedagoacutegica Petrus Ramus foi uma figura controversa e polecircmica Aleacutem de

suas interpretaccedilotildees pouco ortodoxas de Aristoacuteteles Ramus defendia uma completa reforma no

sistema educacional Ele fomentava o espiacuterito humanista pelo qual procurava devolver agrave

retoacuterica sua posiccedilatildeo proeminente visando desautorizar o peso da loacutegica escolaacutestica14

13 A ideia de hipertexto eacute bastante antiga todavia o termo no sentido moderno foi cunhado por Ted Nelson em

1965 para descrever o sistema de escrita natildeo-sequencial que envolvia o ligamento entre textos distintos em uma

mesma interface na internet O sistema de hyperlinks em um siacutetio da internet eacute um exemplo bastante simples de

um hipertexto 14 Cf Petrus Ramus Sa Vie Ses Eacutecrits et Ses Opinions Charles Waddington (ed) Paris Librairie de Ch Meyrteis

1855 Acerca das singularidades de Petrus Ramus confira Laura Adriaacuten Lara ldquoPetrus Ramus y el ocaso de la

retoacuterica ciacutevicardquo Utopiacutea y Praxis Latinoamericana v 13 n 43 (out-dez 2008) 11-31 e ainda Frank P Graves

Petrus Ramus and the Educational Reformation of Sixteenth Century New York Macmillan 1912

53

Havia um profundo espiacuterito anti-escolaacutestico que movia os interesses de Ramus

enfatizando uma postura radical na qual a filosofia ramista considerava falsa todas as

afirmaccedilotildees de Aristoacuteteles Para facilitar o processo de aprendizagem pelo qual o domiacutenio das

ciecircncias e artes liberais pode ser alcanccedilado Ramus emprega seus ldquoesquemas visuais abstratosrdquo

Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman se referem aos esquemas de Ramus como base para a aacutervore

diagramatical de Jacob Lorhard ndash para os pesquisadores este tipo de diagrama eacute o berccedilo de

todo futuro hipertexto

Eacute faacutecil observar que a estrutura da Ogdoas Scholastica de Jacob Lorhard permite ao

leitor localizar conceitos especiacuteficos e suas respectivas definiccedilotildees por meio de uma rede de

interconexotildees na forma de diagramas A ldquoaacutervorerdquo facilita natildeo soacute a compreensatildeo dos conceitos

como tambeacutem a maneira pela qual eles se relacionam uns com os outros Sem embargo trata-

se de uma gramaacutetica pela qual o domiacutenio de conceitos fundamentais da metafiacutesica se torna

bastante simples concordando em absoluto com a demanda da eacutepoca em introduzir este tipo de

estudo nos niacuteveis baacutesicos de ensino Com obras como as de Lorhard a exigecircncia do estudo da

ontologia foi difundida durante o seacuteculo dezoito como parte essencial da formaccedilatildeo acadecircmica

baacutesica15 Aleacutem disto a Ogdoas ainda sustentava a eacutegide da clarificaccedilatildeo da ontologia como base

para todo ulterior desenvolvimento intelectual Em outros termos Lorhard (assim como Ramus)

acreditava que natildeo era possiacutevel esclarecer nenhuma ciecircncia se natildeo houvesse de antematildeo uma

lucidez absoluta a respeito dos fundamentos do ente que poderia ser proporcionada apenas pelo

estudo por ele nomeado ldquoontologiardquo um discurso que buscava um pleno esclarecimento dos

termos empregados para definir todo e qualquer ulterior passo tomado tanto nas ciecircncias do

espiacuterito quanto nas ciecircncias da natureza

15 Muito disto deve-se ao filoacutesofo norueguecircs Jens Kraft cuja obra (influenciada em larga escala pela Metaphysica

sive Ontologia de Christian Wolff) reforccedilou o peso dos estudos em ontologia Dentro da compreensatildeo de Kraft

compartilhada tambeacutem por Lorhard e outros a ontologia ganha um lugar privilegiado como unificaccedilatildeo sistemaacutetica

das estruturas do pensamento como um todo

54

O oitavo livro da Ogdoas de Lorhard que encerra o compecircndio e eacute dedicado agrave ontologia

no sentido de unificar todos os escritos anteriores define a metafiacutesica como ldquo() o

conhecimento de um inteligiacutevel enquanto inteligiacutevel ()rdquo (LORHARD sd 3) Este conhecimento

eacute divido entre conhecimento dos particulares e dos universais Para Lorhard a parte da

metafiacutesica responsaacutevel pelo conhecimento dos particulares ou bem se refere acirc substacircncia

pertinente aos seres natildeo-complexos que subsistem em si mesmos (sejam eles criados ou natildeo)

ou bem aos acidentes

Jaacute o conhecimento dos universais se refere a tudo o que eacute inteligiacutevel redundando nos

atributos gerais ou nas distribuiccedilotildees conforme as quais o λόγος eacute entendido como um inteligiacutevel

As distribuiccedilotildees dizem respeito ao nada por um lado ou a algo por outro sendo este uacuteltimo

em seu aspecto positivo o que envolve as ideias de ldquoessecircnciardquo e ldquoenterdquo As noccedilotildees de ldquoessecircnciardquo

e ldquoenterdquo satildeo centrais natildeo apenas para o sistema de Lorhard mas tambeacutem para todas as

subsequentes compreensotildees da ontologia Em uma primeira definiccedilatildeo Lorhard observa a

ldquoessecircnciardquo em sua relaccedilatildeo com o λόγος definindo que ldquoEssecircncia eacute algo produtivo pelo qual o

Ser eacute o que eacute Esta palavra estrangeira eacute chamada pelos Escolaacutesticos de Entidade ou quidditasrdquo

(IDEM IBIDEM 4) Em segundo lugar considera a ldquoessecircnciardquo em relaccedilatildeo a sua distribuiccedilatildeo na

qual ela eacute ou bem ldquorealrdquo (ou seja uma atualizaccedilatildeorealizaccedilatildeo do ser) ou bem ldquoimaginaacuteriardquo (no

caso de um ser puramente racional) Ambas podem ser ldquosimplesrdquo ou ldquocompostasrdquo ldquoabsolutasrdquo

ou ldquorespectivasrdquo ldquouniversaisrdquo ou ldquosingularesrdquo Dentro do uacuteltimo destes casos a ldquoessecircnciardquo

pode ser ainda ldquogeneacutericardquo (ou um gecircnero compartilhado por outras espeacutecies) ou ldquoespeciacuteficardquo

(relativa a uma uacutenica espeacutecie) Natildeo haacute grande espanto nos pontos apresentados ateacute entatildeo por

Lorhard O que haacute na verdade eacute uma constituiccedilatildeo sistemaacutetica de um diaacutelogo que estava sendo

travado jaacute haacute muito tempo e sobremaneira evidente no periacuteodo no qual ele compocircs sua obra

Suas contribuiccedilotildees mais significantes talvez se deem na seccedilatildeo seguinte quando aborda a

questatildeo do ldquoenterdquo

55

Lorhard tambeacutem considera o ldquoenterdquo no discurso unificador bem como na questatildeo da

ldquoessecircnciardquo afirmando dele algo produtivo ldquodotado de certa essecircnciardquo Em seu caraacuteter

distributivo o ldquoenterdquo (assim como a ldquoessecircnciardquo) eacute ou bem ldquorealrdquo ou bem ldquoracionalrdquo Ele define

o ldquoente de razatildeo ou racionalrdquo afirmando que ldquoEacute um ente de razatildeo que eacute tocado pela cogitaccedilatildeo

de uma mente singular de acordo com o modo real do ente agrave parte disto eacute nada Eacute tambeacutem

chamado ente fictiacutecio e imaginaacuteriordquo (ID IBID 5) Jaacute o ldquoente realrdquo pode se dar por meio do

discurso (λόγος) de sua proacutepria essecircncia ou ainda ser distribuiacutedo em entes primaacuterios e

secundaacuterios (estes uacuteltimos decorrentes dos primeiros) sendo ambos ldquosimplesrdquo ou ldquocomplexosrdquo

ldquoabsolutosrdquo ou ldquorespectivosrdquo ldquouniversaisrdquo ou ldquoparticularesrdquo ldquoimateriaisrdquo ou ldquomateriaisrdquo

ldquopermanentesrdquo ou ldquosucessivosrdquo

Toda a divisatildeo da ontologia de Lorhard acompanha em muitos aspectos a ontologia

derivada da filosofia grega claacutessica desde o processo dialeacutetico de questionamento da realidade

conforme a doutrina platocircnica e a divisatildeo das Categorias de Aristoacuteteles A principal distinccedilatildeo

do emprego do termo ontologia como expressatildeo e manifestaccedilatildeo das doutrinas metafiacutesicas em

Lorhard eacute o foco especiacutefico de uma ldquodoutrina dos inteligiacuteveisrdquo Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman

comentam que

Conforme Lorhard haacute uma importante dualidade entre os entes e nossa discussatildeo

racional a respeito deles Parece que ele insistiu na necessidade dessa dualidade no

sentido de que cada vez que noacutes discutimos os entes no mundo tentando classificaacute-

los tambeacutem temos que refletir sobre os conceitos usados para fazecirc-los (OslashHRSTOslashM

SCHAumlRFE E UCKELMAN OP CIT 4)

Em termos mais simples apoacutes um longo periacuteodo de aristotelismo escolaacutestico talvez tenha sido

Lorhard o primeiro a atentar para o fato de certa confusatildeo gerada dentro da metafiacutesica a respeito

da maneira pela qual se predica o ser do ente em sua participaccedilatildeo presente na realidade

56

Seria liacutecito portanto argumentar que a evidecircncia da confusatildeo de termos se deve ao fato

de Lorhard ter deslocado o ontocentrismo metafiacutesico para uma teoria dos intiligiacuteveis Ainda

conforme Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman a postura de Lorhard eacute diretamente influenciada pela

obra de Clemens Timpler que sustentava a mesma posiccedilatildeo a respeito da metafiacutesica desde uma

confrontaccedilatildeo direta com a filosofia de Francisco Suaacuterez Esta seria a contenda principal do

iniacutecio da modernidade responsaacutevel por conformar e enformar a metafiacutesica como ontologia tal

qual hoje ainda se a concebe Joseph S Freedman desenvolve uma anaacutelise bastante precisa da

maneira pela qual Timpler fundamentou sua postura e as consequecircncias de seu trabalho

sobretudo no que tange agrave disputa com Francisco Suaacuterez A respeito da proposiccedilatildeo ldquotudo que eacute

inteligiacutevelrdquo (omne intelligibile) o tema constitutivo da metafiacutesica Freedman (cf 2009 10-11)

comenta que Timpler provecirc uma moldura conceitual dentro da qual alguns conceitos

ontologicamente baacutesicos satildeo englobados quais sejam ldquoalgordquo (aliquid) ldquoprivaccedilatildeordquo (privatio)

ldquoessecircnciardquo (essentia) e ldquoentidaderdquo (ens) Dentro da dissoluccedilatildeo dos conceitos na obra central de

Timpler Metaphysicae systema methodicum (1604) Freedman comenta

Conforme Timpler ldquotudo aquilo que eacute Inteligiacutevelrdquo eacute dividido entre nihil (ie ldquonadardquo

ou ldquonatildeo-serrdquo) e aliquid aut est (ldquoalgordquo ou ldquoenterdquo) esta eacute basicamente a mesma

dicotomia que William Shakespeare aludiu quando ele coloca no Ato 3 Cena 1 de

Hamlet ndash alguns anos antes (c 1600) da publicaccedilatildeo do texto de Timpler sobre

metafiacutesica ndash que ldquoser ou natildeo ser estaacute eacute a questatildeo []rdquo Mas esta foi a questatildeo que

Timpler e todos os seus (conhecidos) contemporacircneos acadecircmicos aparentemente

desejaram evitar de discutir A discussatildeo da questatildeo de Shakespeare ndash e da dicotomia

de Timpler ndash poderia ter provido as bases para o levantamento de toacutepicos altamente

sensiacuteveis por exemplo 1) a relaccedilatildeo entre Deus e Nada (nihil) 2) a relaccedilatildeo entre Deus

entidade e privaccedilatildeo (ie mal) e 3) a relaccedilatildeo entre Deus e o princiacutepio de contradiccedilatildeo

(FREEDMAN op cit 12)

57

Embora estas questotildees estivessem jaacute sempre presentes dentro dos questionamentos de Timpler

e de seus contemporacircneos elas eram todavia caladas de acordo com Freedman (IDEM IBIDEM)

pela imposiccedilatildeo das instituiccedilotildees cristatildes das coisas sobre as quais se era proibido falar ou acreditar

O que perdura das apresentaccedilotildees filosoacuteficas da metafiacutesica como ontologia em Timpler

ponderando seu princiacutepio do inteligiacutevel concentra-se em primeiro lugar como o mateacuteria de

todas as disciplinas e subdisciplinas acadecircmicas e em segundo lugar como foco de disciplinas

separadas como a archeologia gnostologia hexiologia intelligentia pansophia e tecnologia

(cf ID IBID 14)

O motivo da predileccedilatildeo da questatildeo dos intiligiacuteveis como foco principal de todos os

temas concernentes ao pensamento aparece dentro da possibilidade de envolver todos os

aspectos responsaacuteveis pelos modos operativos de pensar 16 Desta forma por exemplo as

disciplinas separadas como a ldquotecnologiardquo seriam desenvolvidas para as consideraccedilotildees gerais

e universais da estrutura das disciplinas liberais (cf ID IBID 16) Embora discrimine em parte

o princiacutepio da cogniccedilatildeo a metafiacutesica tampouco envolve a loacutegica por levar em consideraccedilatildeo

apenas os princiacutepios excluindo entidades complexas que redundem no princiacutepio de contradiccedilatildeo

Em contrapartida ao sistema metoacutedico de Timpler vecirc-se em Francisco Suaacuterez um

caraacuteter muito mais ontocecircntrico As Disputationes Metaphysicae (1597) de Francisco Suaacuterez

satildeo publicadas dentro de um contexto de desarmonia e conflitos entre a teologia e a filosofia

onde os conceitos fundamentais na discussatildeo sobre o divino estavam sendo postos em questatildeo

A despeito das influecircncias de Suaacuterez e dos necessaacuterios posicionamentos poliacuteticos sua obra

parece instaurar um regulamento por meio do qual nada poderia ser legado agrave mera

inteligibilidade

16 Freedman (ID IBID 15) cita o teoacutelogo calvinista Matthias Martinius contemporacircneo de Timpler que evidencia

de maneira mais clara os motivos das proposiccedilotildees fundamentais Ele atesta que conforme esta designaccedilatildeo agrave

metafiacutesica ldquopertence tudo aquilo que eacute cognosciacutevelrdquo (de omni cogitabili) mas com certas restriccedilotildees englobando

a ldquouniversalidade das coisasrdquo (rerum universitatem) mas natildeo envolvendo disciplinas acadecircmicas especializadas

singulares ou particulares

58

As Disputationes de Suaacuterez podem ser entendidas desde uma divisatildeo da obra na qual a

primeira parte (as primeiras vinte-e-sete questotildees) se refere ao ente no sentido geral enquanto

a segunda parte (as vinte-e-sete uacuteltimas questotildees) lida com o ente particular redundando em

uma dupla divisatildeo da proacutepria metafiacutesica entre ldquometafiacutesica geralrdquo e ldquometafiacutesica especialrdquo (cf

SUAacuteREZ 2004 DOYLE 2004) Ao comentar o desenvolvimento deste aspecto da filosofia de

Suaacuterez Ludger Honnefelder ainda acrescenta

Conforme Suaacuterez a metafiacutesica lida com o conceito de ente tanto ldquoformalrdquo quanto

ldquoobjetivordquo Pelo conceito formal Suaacuterez entende o ato de conhecer do qual ldquoex unica

et prima impositionerdquo que rende uma representaccedilatildeo intencional do objeto pelo

conceito objetivo ele designa aquilo que representa intencionalmente o ato Em outras

palavras Suaacuterez natildeo assume a teoria dos conceitos caracterizada pelo paralelismo

noeacutetico-noemaacutetico de res e conceptus antes ele aceita a abordagem criacutetica de Ockham

em direccedilatildeo a interpretaccedilatildeo realiacutestica dos conceitos universais Desde que Scottus ele

mesmo natildeo depende desse paralelismo quando isto vem a dizer respeito sobre o ente

Suaacuterez substancialmente segue Scottus e aplica ldquoenterdquo para um conceito formal

primaacuterio e unificado que em virtude de sua imposiccedilatildeo representa um objetivo

primaacuterio e unificado do conteuacutedo absolutamente simples que envolve todos os entes

distintos de uma maneira indeterminada ie como ente (HONNEFELDER 2003)

Segundo a exposiccedilatildeo de Honnefelder o direcionamento da metafiacutesica de Suaacuterez iraacute redundar

em alguns pontos baacutesicos em primeiro lugar o fato de que a determinaccedilatildeo do ente transcende

a generalidade dos gecircneros em segundo que a determinaccedilatildeo natildeo pode ela mesma ser definida

podendo apenas ser explicada em relaccedilatildeo agrave existecircncia real em terceiro que toda existecircncia estaacute

sujeita agrave fundamentaccedilatildeo de disposiccedilatildeo ontoloacutegica em uacuteltimo lugar que o ente finito perdura

em um modo indeterminaacutevel de quantidade sendo o ente infinito eacute aquilo que eacute perfeito e

totalmente indivisiacutevel em si mesmo e mais real e completo (cf IDEM IBIDEM)

59

Agora bem com o fito de retomar a linha de raciociacutenio desenvolvida no capiacutetulo eacute

preciso retomar a ideia de substantivaccedilatildeo do Ocidente e a maneira pela qual esse processo se

deixar ver ao longo da histoacuteria da ontologia Martin Heidegger indica em primeiro lugar o que

ele considera como o problema fundamental pelo qual a metafiacutesica se desdobra no Ocidente

qual seja o fato de que o ldquoserrdquo natildeo eacute um ldquoenterdquo mas que todavia um foi tomado pelo outro Ele

apresenta ainda o argumento de que a transposiccedilatildeo da experiecircncia fundamental grega (conforme

apresentada tambeacutem por Charles H Kahn) sofre uma violaccedilatildeo na absorccedilatildeo latina e na

transferecircncia de conceitos de um modo de pensar para o outro Eacute dentro deste ambiente latino

que eacute possiacutevel rastrear a maneira pela qual a metafiacutesica se forma e transforma em ontologia ou

bem dentro de uma filosofia do inteligiacutevel (como em Lorhard e Timpler) ou bem como um

ontocentrismo filosoacutefico (como em Suaacuterez) Sem embargo trata-se de uma disputa em torno agraves

formas primaacuterias da discussatildeo em torno ao ldquoserrdquo e ao ldquoenterdquo Eacute possiacutevel concluir desde a

constataccedilatildeo da entificaccedilatildeo do ser ou substantivaccedilatildeo do Ocidente que a demanda pela resposta

ao problema primeiro da filosofia necessariamente a encaminha para um percurso que natildeo

poderia ser outro Mas qual eacute propriamente este problema primeiro e como se constroacutei esse

caminho Natildeo haveria outra indicaccedilatildeo senatildeo a da ciecircncia dos primeiros princiacutepios e causas de

Aristoacuteteles Jaacute na doutrina das Categorias de Aristoacuteteles eacute possiacutevel observar a confusatildeo entre

ldquoserrdquo e ldquoenterdquo A questatildeo pode ser melhor observada na proposiccedilatildeo baacutesica e amplamente

difundida da Metafiacutesica ldquoO ente se diz em muacuteltiplos significados mas sempre em referecircncia a

uma unidade e a uma realidade determinadardquo (ARISTOacuteTELES 2002 131)17 A referecircncia a uma

unidade e uma realidade determinada eacute a chave para compreender a maneira pela qual a

ontologia se torna a ciecircncia responsaacutevel por esse tema (conforme Aristoacuteteles ldquoHaacute uma ciecircncia

que considera o ente enquanto ente e as propriedades que lhe competem enquanto talrdquo ID IBID)18

17 Τὸ δὲ λέγεται μὲν πολλαχῶς ἀλλὰ πρὸς ἓν καὶ μίαν τινὰ φύσις καὶ οὐχ ὁμωνύμως ἀλλrsquo (Metafiacutesica 1003a 30-

35) 18 Ἔστιν ἐπιστήμη τις ἧ τὸ ὄν ᾗ ὄν καὶ τὰ τούτῳ ὑπάρχοντα καθ αὑτό (Metafiacutesica 1003a 20)

60

Dentro desta ciecircncia o conceito central que unifica e determina ldquoenterdquo e ldquoserrdquo eacute

apresentado como οὐσία O conceito de οὐσία (substantia substacircncia) eacute bem desenvolvido nas

Categorias entre as expressotildees que natildeo satildeo compostas quais sejam a substacircncia mesma

quantidade qualidade relaccedilatildeo lugar tempo posiccedilatildeo estado accedilatildeo ou afecccedilatildeo Ela eacute

apresentada desde duas perspectivas uma primaacuteria outra secundaacuteria A substacircncia primeira

natildeo se afirma de um sujeito nem em um sujeito mas comporta as substacircncias segundas nas

quais a forma afirma a espeacutecie e o gecircnero (ldquoserrdquo do sujeito) comportando tambeacutem os acidentes

(ldquoserrdquo no sujeito) que a eles se atribui Embora o conceito em sua primeira formulaccedilatildeo

contemple o aspecto formal bem como o elemento inteligiacutevel envolve ainda o aspecto material

em seu segundo modo natildeo podendo ser um sem o outro

As consequecircncias do desenvolvimento de uma ciecircncia responsaacutevel pelo ente enquanto

ente centralizando o conceito de substacircncia e substantivando a ideia de ldquoserrdquo por meio de seu

particiacutepio presente ldquoenterdquo satildeo o que se pode considerar como o desenvolvimento da histoacuteria do

ldquoserrdquo ou a histoacuteria da maneira pela qual o Ocidente compreende o ldquoserrdquo e a si mesmo Por meio

desta postulaccedilatildeo o ldquoτὰ ὄνταrdquo eacute posicionado no centro do pensamento ocidental Mais ainda do

que uma simples constataccedilatildeo da maneira pelo qual coube ao Ocidente pensar curioso eacute

especular o fato de que se natildeo fosse possiacutevel pensar fora da delimitaccedilatildeo do ente natildeo haveria

sequer indagaccedilatildeo alguma sobre as limitaccedilotildees ou prejuiacutezos imbuiacutedos nesta formulaccedilatildeo Sem

embargo eacute possiacutevel constatar desde os recursos apresentados (e ainda por muitos outros

caminhos que natildeo este) a necessidade incontida do ser humano ocidental eacute desenhar de maneira

niacutetida as fronteiras do pensamento e da maneira pela qual esse pensamento deve e pode ser

aplicado Resta saber apoacutes esta delimitaccedilatildeo o que haacute para aleacutem da fronteira

61

2 O CAMINHO DA NEGATIVIDADE HENEOLOGIA E MEONTOLOGIA E A

ULTRAPASSAGEM DOS LIMITES DA METAFIacuteSICA

O discurso ontoloacutegico tanto grego quanto latino personificou a atividade filosoacutefica ocidental

em larga escala A maneira pela qual a ontologia habilitava ao raciociacutenio uma seacuterie de

procedimentos facilmente verificaacuteveis nutriu seguranccedila metodoloacutegica aos assuntos

concernentes aos problemas intelectuais com os quais o ser humano fatalmente se deparava ao

longo de suas especulaccedilotildees e que reverberavam ainda na conjuntura soacutecio-pragmaacutetica Eacute neste

sentido que teria afirmado Immanuel Kant de maneira perspicaz que a razatildeo humana se

defronta com inevitaacuteveis questotildees impostas por sua proacutepria natureza19 Tanto para Aristoacuteteles

quanto para Francisco Suaacuterez aleacutem de tantos outros entrementes a importacircncia de assegurar

uma linha de raciociacutenio vaacutelida natildeo somente atribuiacutea autoridade ao argumento como tambeacutem

provia de suficiente clareza a linguagem que advogava suas doutrinas Em outras palavras

tornava-se faacutecil convencer outrem de seus pressupostos dada a indefectiacutevel loacutegica empregada

para encadear as sentenccedilas e alcanccedilar uma conclusatildeo A ontologia por meio de suas loacutegicas de

identidade e natildeo-contradiccedilatildeo (e ateacute certo ponto tambeacutem via argumento do terceiro excluiacutedo)

visava alcanccedilar tanto para afirmaccedilatildeo quanto para negaccedilatildeo a dissoluccedilatildeo de todo e qualquer

paradoxo que colocasse a mente em estado de confusatildeo e discoacuterdia Independente daquilo que

estava sendo afirmado ou negado da linha de raciociacutenio ou doutrina em jogo os procedimentos

discursivos e intelectuais eram basicamente os mesmos com variaccedilotildees conceituais maiores ou

menores dependendo da vertente Todavia prosseguia-se sempre da mesma maneira

19 Kant afirma ldquoA razatildeo humana no seu gecircnio de seu conhecimento possui o peculiar destino de ser incomodada

por questotildees que natildeo pode evitar porque elas satildeo dadas pela natureza da razatildeo mesma mas tambeacutem natildeo possuem

respostas porque elas excedem a capacidade da razatildeo humanardquo (KANT 1956 5 Criacutetica da razatildeo pura AVII-

AVIII)

62

Contudo a despeito da supremacia ontoloacutegica outras formas de pensamento foram

desenvolvidas no decorrer da histoacuteria da filosofia fossem elas similares ou totalmente opostas

Alguns pensadores especialmente radicais se dedicaram a um modo reflexivo que se distanciava

consideravelmente da estrutura ontoloacutegica Suas bases seus pressupostos e seus meacutetodos pelos

quais prosseguiam no caminho especulativo dos temas propostos (muitas vezes os mesmos dos

formuladores da ontologia claacutessica) projetavam-se de maneira consideravelmente diversa Para

eles havia uma necessidade imperativa de incluir todos os elementos presentes na estrutura da

realidade pensada em sua maacutexima possibilidade de concepccedilatildeo tanto os que satildeo quanto os que

natildeo satildeo Ao que parece por este motivo Werner Beierwaltes considera que as caracteriacutesticas

pelas quais se configuram a ontologia claacutessica satildeo sobretudo frutos da interrogaccedilatildeo pelo nexo

da identidade e da diferenccedila quer seja na afirmaccedilatildeo parmeniacutedica da natildeo legitimaccedilatildeo filosoacutefica

da alteridade quer seja na resposta platocircnica do necessaacuterio estabelecimento da diferenccedila na

constituiccedilatildeo do ldquoserrdquo em seu inteiro (cf BEIERWALTES 1989 25) Para Beierwaltes o rigoroso

conceito de unidade demandado por Platatildeo em reposta agrave univocidade do ser de Parmecircnides

resultou na possibilidade de inclusatildeo do ldquonatildeo-serrdquo relativo ao ldquoserrdquo para afirmar sua totalidade

Disto derivaria a altercaccedilatildeo originaacuteria entre identidade e diferenccedila e nisto consiste a

possibilidade de desvio do pensamento ontoloacutegico20 Sem embargo precisamente neste ponto

que acredito poder encontrar o que chamo aqui de caminho da negatividade ou a possibilidade

de inclusatildeo do oxiacutemoro no caminho de pensamento delineado pela ontologia considerando que

ele se desdobra na tradiccedilatildeo do chamado neoplatonismo e ainda na miacutestica medieval

20 Trata-se da definiccedilatildeo do natildeo-ser como alteridade apresentada no Sofista Apoacutes a discussatildeo acerca da comunidade

de gecircneros e a questatildeo do ldquomesmordquo e do ldquooutrordquo que configuram o problema da identidade e da diferenccedila Platatildeo

apresenta a hipoacutetese de compreender o ldquomovimentordquo como ldquooutrordquo do ldquoserrdquo questionando a tese parmeniacutedica a

respeito da ldquoestaticidade do serrdquo Assim Platatildeo coloca a questatildeo ldquoDevemos trabalhar nossa coragem agora para

dizer que aquilo que lsquonatildeo eacutersquo definitivamente eacute algo que possui natureza proacutepria Devemos dizer que assim como

o grande era grande o belo era belo o natildeo grande eacute natildeo grande e o natildeo belo eacute natildeo belo da mesma maneira pela

qual natildeo eacute tambeacutem foi e eacute natildeo-ser e eacute uma das formas dentre as quais satildeordquo (PLATO 1997 282 Sofista 258 c-d)

A sequecircncia do diaacutelogo questionaraacute a realidade deste natildeo-ser relativo culminando na identidade entre pensamento

e discurso abrindo a possibilidade para o discurso falso (o do sofista) e introduzindo a assunccedilatildeo do paradoxo no

seio do pensamento representando o chamado parriciacutedio aos eleatas

63

Ateacute onde eacute possiacutevel investigar o termo neoplatonismo teria sido cunhado pela primeira

vez pelo helenista e medievalista Thomas Gale nos idos de 1670 Gale foi responsaacutevel por uma

seacuterie de estudos sobre o neoplatonismo pagatildeo e cristatildeo escrevendo sobre Plotino Jacircmblico

Joatildeo Escoto Eriuacutegena Maacuteximo Confessor entre outros21 Definiccedilotildees agrave parte os primeiros

elementos responsaacuteveis por delinearem um ldquoneoplatonismo originaacuteriordquo apenas tardiamente

nomeado satildeo atribuiacutedos a Amocircnio Sacas Contudo como a figura histoacuterica de Amocircnio Sacas

eacute tatildeo envolta em controveacutersias e misteacuterios quanto a vida de Pitaacutegoras ou Soacutecrates atribui-se

diretamente a fundaccedilatildeo de uma ldquoescola neoplatocircnicardquo a Plotino disciacutepulo de Amocircnio

Muacuteltiplos debates mais ou menos coerentes envolvem os relatos sobre a relaccedilatildeo entre Plotino e

Amocircnio aleacutem de polecircmicas acerca do proacuteprio Amocircnio22 Destaca-se apenas a autoridade dos

relatos de Porfiacuterio (em sua Vida de Plotino) nos quais se considera que o meacutetodo de pesquisa

aplicado por Plotino estava profundamente ligado ao de seu mestre O conteuacutedo dos discursos

de Plotino tambeacutem teria uma iacutentima relaccedilatildeo com as tentativas de Amocircnio de unificar os diversos

planos do ser e estabelecer a derivaccedilatildeo de todas as coisas a partir do uno23 Sem embargo

Plotino teria absorvido e desenvolvido a doutrina de Amocircnio e necessariamente de Platatildeo em

suas Eneacuteadas em um movimento de exegese ao discurso platocircnico Exegese esta suscetiacutevel de

diversas interpretaccedilotildees dos caminhos por Plotino tomados e mesmo natildeo muito consensual entre

os estudiosos da obra24

21 Extraiacute estes dados de Aaron W Huges em um trabalho intitulado ldquoMedievalrdquo and the Politics of Nostalgia

Ideology Scholarship and the Creation of the Rational Jew (2012) Huges natildeo apenas investiga as origens das

designaccedilotildees do neoplatonismo mas ainda constata que a alcunha de ldquoneoplatocircnicosrdquo continuou sendo utilizada

por eruditos alematildees no seacuteculo dezenove como uma menccedilatildeo pejorativa aos ldquofalsificadoresrdquo das doutrinas de Platatildeo

e Aristoacuteteles (cf HUGES 2012) 22 Conforme Giovanni Reale em sua Storia della filosofia antica (1975-1980) Sobre este ponto especificamente

acerca das incertezas em torno agrave figura de Amocircnio confira REALE 2008 5-13 23 Esta consideraccedilatildeo eacute apresentada por Giovanni Reale com base nos relatos de Nemeacutesio em De natura hominis

(cf REALE 2008 11) Conforme Francisco B Harriet a questatildeo fundamental se encontraria na foacutermula ldquoestaacute mais

aleacutem do intelecto e da essecircnciardquo (ἐπέκεινα νοῦϛ καὶ οὐσίας) conforme a formulaccedilatildeo de Oriacutegenes de Alexandria

em Contra Celsum (fons ex quo initium totius intellectualis naturae uel mentir est) presente em Plotino (Eneacuteadas

V 1 8 e VI 8 16) e derivada do ciacuterculo de Amocircnio (cf HARRIET 2012 153) 24 Sobre a questatildeo da exegese Marcus Reis Pinheiro (em Plotino exegeta de Platatildeo e Parmecircnides 2007)

argumenta que natildeo se pode reduzir a exegeacutetica agrave mera interpretaccedilatildeo dos diaacutelogos de Platatildeo e outros escritos Trata-

se antes do desdobramento de um discurso muito antigo onde ldquo() fazer exegese () natildeo eacute interpretar

objetivamente os textos mas caminhar rumo aos niacuteveis superiores junto com os antigosrdquo (P INHEIRO 2007 80)

64

Neste fluxo talvez o mais cabiacutevel usual e conhecido de todos os estabelecimentos de

um ldquoponto de partidardquo seja o do claacutessico artigo Jean Trouillard Le Parmeacutenide de Platon et son

interpretation neacuteoplatonicienne (1973) onde o neoplatonismo eacute pensado desde a busca da

doutrina originaacuteria de Platatildeo principalmente a partir de uma releitura de seu diaacutelogo

Parmecircnides Todavia a maneira pela qual eacute possiacutevel explanar esta releitura levanta suspeitas

sendo necessaacuterio ponderar em quais formas a exegese plotiniana converge ou diverge das

tentativas de uma interpretaccedilatildeo das doutrinas originaacuterias de Platatildeo Mais ainda estaacute tambeacutem

em jogo a autoridade de apontar que existam de fato doutrinas originaacuterias havendo ainda

abertura para questionar a fiabilidade e o suposto peso das chamadas ldquodoutrinas natildeo-escritasrdquo25

Seja como for interessa sobretudo destacar como com as Eneacuteadas de Plotino o pensamento

filosoacutefico experimenta um movimento iacutempar em relaccedilatildeo agravequilo que vinha sendo apresentado

Para Ciacutecero Cunha Bezerra eacute possiacutevel elencar alguns pontos que evidenciam de maneira

clara a renovaccedilatildeo do neoplatonismo Destaca-se em primeiro lugar a junccedilatildeo entre os elementos

aristoteacutelicos e pitagoacutericos em siacutentese com uma perfeita sintonia entre o platonismo acadecircmico

e as ldquodoutrinas natildeo-escritasrdquo Ademais a ldquohierarquizaccedilatildeordquo do real a partir da qual todos os

graus satildeo derivados desde o uno permite uma sistematizaccedilatildeo do platonismo anterior Por este

motivo tende-se agrave leitura conforme a qual o neoplatonismo possuiria um sistema ldquomonopolarrdquo

frente a um suposto ldquobipolarismordquo platocircnico Por fim haacute ldquo() o fim uacuteltimo do processo de

conhecimento que para o neoplatocircnico eacute a uniatildeo plena com Deus (fugir soacute ao soacute) uma uniatildeo

que tem como marca a supressatildeo (aphaiacuteresis) de todo saber e dizerrdquo (BEZERRA 2006 57)

Dentre os pontos apresentados interessa-me particularmente o uacuteltimo (evidente consequecircncia

dos trecircs primeiros) no qual o neoplatonismo aparece como uma ldquosupressatildeo de todo saber e

dizerrdquo

25 Haacute uma interessante e profunda discussatildeo acerca do tema na tradiccedilatildeo de leitores e inteacuterpretes do platonismo e

do neoplatonismo a respeito deste toacutepico Ciacutecero Cunha Bezerra (em Compreender Plotino e Proclo 2006) aborda

o tema abrindo uma interlocuccedilatildeo com a obra Platone alla ricerca della spienza segreta de Giovanni Reale e ainda

com as investigaccedilotildees de W K C Guthrie e a chamada Escola de Tuumlbingen (cf BEZERRA 200617-24)

65

O senso comum ocidental regula a atividade filosoacutefica como um progresso ininterrupto

rumo ao acuacutemulo de conhecimento e dissoluccedilatildeo dos problemas Curioso agora eacute pensar a

maneira pela qual uma doutrina filosoacutefica pode suprimir o saber e o dizer ao inveacutes de

acrescentar Mas eacute apenas possiacutevel atingir a compreensatildeo necessaacuteria desta supressatildeo uma vez

esclarecido o que eacute propriamente o princiacutepio negativo do pensamento de Plotino Para isto natildeo

se pode perder de vista as duas questotildees que levariam agrave construccedilatildeo do pensamento de Plotino

quais sejam ldquo() o problema religioso (que corresponde agrave busca de compreensatildeo do destino

da alma assim como sua restauraccedilatildeo) e o problema filosoacutefico relativo agrave explicaccedilatildeo racional da

realidade ()rdquo (IDEM IBIDEM 66)26 ponderando ainda que em Plotino ambas estatildeo perfeitamente

inter-relacionadas Para atingir este entendimento todavia eacute necessaacuterio analisar as chamadas

trecircs hipoacutestases de Plotino presentes em suas Eneacuteadas

O conjunto de circunstacircncia que acompanham a formulaccedilatildeo do pensamento de Plotino

eacute todavia aquele anteriormente citado apresentado por Werner Beierwaltes que remete agrave

contenda entre Parmecircnides e Platatildeo Contextualizar a disputa Parmecircnides-Platatildeo da qual

derivam centralmente as hipoacutestases de Plotino natildeo eacute necessariamente complicado embora

interpretaacute-la e desde aiacute desdobrar um novo caminho reflexivo seja uma tarefa bastante

trabalhosa A demanda especulativa eacute altiacutessima e envolve uma bibliografia excessivamente

extensa e complexa Contudo como o interesse aqui eacute a apresentaccedilatildeo dos aspectos centrais do

pensamento de Plotino e como deles redunda uma nova postura e atitude filosoacuteficas o trabalho

fica menos penoso Portanto para colocar em relevo as hipoacutestases de Plotino eacute importante ao

menos demonstrar de forma simples os pontos originais dos quais elas derivam seja em

Parmecircnides seja em Platatildeo (e ateacute certo ponto tambeacutem no neopitagorismo e em Aristoacuteteles

embora esta tarefa exija um pouco mais e seja um pouco mais complicada de rastrear) Para

alcanccedilar este objetivo torna-se imperioso retornar brevemente a Parmecircnides

26 Esta hipoacutetese eacute destacada por Bezerra diretamente da obra de Eacutemile Breacutehier La Philosophie de Plotin (1928)

66

O segundo fragmento do poema Sobre a Natureza de Parmecircnides catalisa os principais

argumentos do conflito permitindo compreender quais satildeo os pontos mais problemaacuteticos do

estabelecimento de sua doutrina na tradiccedilatildeo Aleacutem da Fiacutesica de Simpliacutecio as fontes pelas quais

se estruturou esse fragmento adveacutem dos Comentaacuterios ao Timeu e Comentaacuterios ao Parmecircnides

de Proclo Os oito versos contidos no fragmento centralizam a doutrina de Parmecircnides como

foi herdada pela tradiccedilatildeo a partir da manifestaccedilatildeo das duas uacutenicas vias possiacuteveis para o

pensamento quais sejam a via da verdade e a via da aparecircncia O fragmento diz

εἰ δ᾽ ἄγ᾽ ἐρὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας

αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι

ἡ μέν ὄπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι

πειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ)

ἡ δ᾽ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι

τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν

οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐόν (οὐ γὰρ ἀνυστόν)

οὔτε φράσαις

(KIRK E RAVEN 1957 269)

Pois bem agora vou eu falar e tu presta atenccedilatildeo ouvindo a palavra

acerca das uacutenicas vias de questionamento que satildeo a pensar

uma para o que eacute e como tal natildeo eacute para natildeo ser

eacute o caminho de persuasatildeo ndash pois Verdade o segue ndash

outra para o que natildeo eacute e como tal eacute preciso natildeo ser

esta via indico-te que eacute uma trilha inteiramente inviaacutevel

pois nem ao menos se reconheceria o natildeo ente pois natildeo eacute realizaacutevel

nem tampouco se mostraria

(Traduccedilatildeo de Fernando Santoro cf PARMEcircNIDES 200612)

67

O caminho da verdade que eacute e natildeo eacute para natildeo ser (ἡ μέν ὄπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ

εἶναι) e o caminho da aparecircncia que natildeo eacute e natildeo pode ser (ἡ δ᾽ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών

ἐστι μὴ εἶναι) satildeo via de regra estabelecidos como a manifestaccedilatildeo maacutexima da loacutegica ocidental

e berccedilo dos princiacutepios de identidade e natildeo-contradiccedilatildeo A partir deles eacute possiacutevel natildeo soacute

estabelecer uma identidade (o ser eacute representada pela claacutessica foacutermula A=A) como ainda

verificar a veracidade dessa mesma identidade ndash natildeo eacute possiacutevel que o ser sendo natildeo seja

ilustrado pela foacutermula not (A ˄ notA) um tanto esdruacutexula sem duacutevidas27

O legado de Parmecircnides eacute marcado em sua difusatildeo pelos chamados ldquofiloacutesofos eleatasrdquo

sobretudo por Zenatildeo de Eleacuteia Seus argumentos contra a pluralidade (cf KIRK E RAVEN OP CIT

288-291) e contra o movimento (cf IDEM IBIDEM 291-297) se tornaram assaz populares

sobretudo no que concerne aos paradoxos da flecha no estaacutedio e de Aquiles e a tartaruga Aleacutem

da constataccedilatildeo da univocidade do ser presente em toda linha de pensamento parmeniacutedica28 O

resultado imediato dos exerciacutecios de raciociacutenio de Zenatildeo demonstraram a formataccedilatildeo de uma

estaticidade do ser e da realidade em torno alertando para a ilusatildeo do movimento e alteraccedilotildees

na substacircncia do real O momento no qual Platatildeo compotildee seu diaacutelogo Parmecircnides retrata

justamente o evento no qual tanto Parmecircnides quanto Zenatildeo estatildeo no aacutepice da divulgaccedilatildeo de

sua doutrina dialogando com um ainda jovem Soacutecrates Trata-se de um dos momentos mais

emblemaacuteticos da histoacuteria da filosofia ocidental

27 Haacute uma discussatildeo em torno a uma suposta terceira via aquela na qual o que ldquoeacuterdquo eacute e natildeo eacute ao mesmo tempo

baseada no sexto fragmento onde se lecirc ldquoοἶς τὸ πέλειν τε καὶ οὐκ ταῦτὸν νενόμισταιrdquo (KIRK E RAVEN OP CIT 271)

Embora ainda em um sentido pejorativo de uma via do engano emerge a possibilidade de que algo seja e natildeo seja

Mesmo que natildeo seja profiacutecuo para o andamento da tese se fixar na discussatildeo vale ao menos citaacute-la sobretudo

ponderando os apontamentos feitos por Jean Beaufret acerca da interpretaccedilatildeo de Martin Heidegger da terceira via

como a via dos entes Ao que cabe no propoacutesito do trabalho basta apenas atentar para como a tensatildeo entre as duas

primeiras vias jaacute foram suficientes para levantar controveacutersias Eacute possiacutevel especular ainda que jaacute na primeira via

aparece tambeacutem uma possibilidade de que o ser seja e natildeo seja quando se afirma que ele ldquoeacute e natildeo eacute para natildeo serrdquo

Seria possiacutevel conectar o ldquonatildeo eacuterdquo da sentenccedila como o natildeo-ser relativo necessaacuterio agrave constituiccedilatildeo da inteireza do

ser como argumentado no Sofista de Platatildeo 28 O que significa afirmar que natildeo existem ldquograusrdquo do ser uma coisa ou eacute real (ser) ou irreal (nada) (cf BEZERRA

2003 47)

68

As chamadas ldquotrecircs hipoacutetesesrdquo do Parmecircnides de Platatildeo satildeo apresentadas

respectivamente nas passagens 137c-142a 142b-157a e 157b-159a Elas constituem a mateacuteria

bruta para a elaboraccedilatildeo das trecircs hipoacutestases de Plotino Todas as trecircs hipoacuteteses de Platatildeo satildeo

apresentadas pela personagem do entatildeo velho Parmecircnides arguindo Soacutecrates a respeito da

viabilidade de cada argumento Elas se apresentam ainda a partir do problema constituiacutedo pela

questatildeo da unidade e da multiplicidade A pulsatildeo do jovem Soacutecrates ao inquirir Parmecircnides a

respeito de sua teoria fazendo-o apresentar as trecircs hipoacuteteses parte da colocaccedilatildeo de Parmecircnides

a respeito da assunccedilatildeo da multiplicidade por um lado e da impossibilidade do muacuteltiplo por

outro Parmecircnides eacute levado pelo jovem Soacutecrates a confirmar natildeo apenas sua teoria mas sua

metodologia e plano doutrinaacuterio

Para confrontar a teoria parmeniacutedica Platatildeo desenvolve a primeira hipoacutetese Ela

consiste basicamente na afirmaccedilatildeo de o que o ldquouno eacute unordquo ou seja se haacute uno natildeo eacute possiacutevel

que o uno seja muacuteltiplo Por este motivo ele natildeo pode conter partes nem tampouco ser um

inteiro (composto por partes) Tambeacutem natildeo pode ter um comeccedilo nem um meio nem um fim

natildeo possuindo nada que o limite ou delimite Tampouco pode possuir um formato nem se

encontrar em lugar algum nem estar se movimentando de um lugar para outro (porque entatildeo

assumir-se-ia algo outro que natildeo o uno pelo qual ele se movimenta) e nem em si mesmo

(porque com isto se movimentaria entre suas partes que por definiccedilatildeo natildeo pode conter) Natildeo

pode ainda ser diferente de si mesmo nem o mesmo que si mesmo porque assumindo sua

diferenccedila se assumiria algo outro que natildeo o uno ndash e assumindo sua identidade se assumiria que

haacute algo a saber a proacutepria identidade predicada do uno e que natildeo eacute o uno Natildeo pode tambeacutem

estar no tempo nem ter surgido em momento algum Por fim o uno natildeo pode possuir um nome

ou seja eacute inominaacutevel natildeo podendo ser objeto de opiniatildeo nem conhecimento nem percepccedilatildeo

caso contraacuterio assumir-se-ia um ser ou essecircncia distintos do uno pelo qual se alcanccedila seu

entendimento

69

Necessariamente a primeira hipoacutetese leva a uma outra questatildeo ou ao levantamento de

uma segunda hipoacutetese qual seja o uno eacute e quais satildeo as consequecircncias disto para ele mesmo

Essa hipoacutetese eacute consideravelmente mais complicada e envolve algumas nuances bastante

delicadas O argumento geral se concentra na ideia de que a proposiccedilatildeo uno eacute envolve

necessariamente a ideia de essecircncia do uno O grande problema em afirmar que o uno participa

da essecircncia de uno eacute justamente estabelecer a diferenccedila entre uma coisa e outra ou seja torna-

se inevitaacutevel afirmar que existem duas coisas a saber o uno e a essecircncia do uno O embargo

consiste na simples afirmaccedilatildeo uno eacute em contraposiccedilatildeo agrave afirmaccedilatildeo uno uno Logo desdobram-

se dois unos um uno que eacute e um uno e o ser O primeiro como afirmaccedilatildeo do proacuteprio uno o

segundo como assunccedilatildeo da participaccedilatildeo dele mesmo em sua essecircncia A reaccedilatildeo imediata agrave

afirmaccedilatildeo de que o uno eacute caminha em sentido contraacuterio das negaccedilotildees da primeira hipoacutetese

Sem embargo jaacute neste momento mesmo antes da apresentaccedilatildeo da terceira hipoacutetese

torna-se possiacutevel fazer algumas consideraccedilotildees Em primeiro lugar a hipoacutetese de que o ldquouno eacute

unordquo a despeito da aplicaccedilatildeo da categoria do ser para a predicaccedilatildeo da sentenccedila direciona o

pensamento para um caminho no qual natildeo haacute outra possibilidade senatildeo a completa negaccedilatildeo de

tudo que possivelmente competiria ao uno levando mesmo agrave dissoluccedilatildeo do eacute presente na frase

Em segundo lugar a hipoacutetese de que o ldquouno eacuterdquo desta vez com ecircnfase no eacute gera o movimento

oposto de afirmaccedilatildeo de tudo o que porventura poderia ser predicado de qualquer elemento

Estas duas hipoacuteteses (como se veraacute na apresentaccedilatildeo das hipoacutestases de Plotino)

discriminam perfeitamente as duas vias aqui cogitadas quais sejam uma via afirmativa da

ontologia claacutessica na afirmaccedilatildeo das coisas por meio da qual percebe-se compreende-se e se

faz ciecircncia e uma via negativa do que seraacute ulteriormente nomeada henologia na qual a maacutexima

especulaccedilatildeo acerca da natureza do uno natildeo leva senatildeo agrave negaccedilatildeo absoluta ndash as caracteriacutesticas

desta negaccedilatildeo ou negatividade ver-se-aacute mais claramente nas Eneacuteadas

70

A terceira hipoacutetese do Parmecircnides de Platatildeo eacute apresentada no diaacutelogo muito brevemente

Ela abarca ambos os aspectos centrais das duas primeiras hipoacuteteses sugerindo que o uno eacute e

natildeo eacute imputando a categoria de mudanccedila em sua natureza Trata-se de diagnosticar o fato de

que sendo o uno uno por um lado e muacuteltiplo por outro participa e natildeo participa de sua

essecircncia vem a ser e deixa de ser ponderando ainda que esta mudanccedila se daacute no instante Sendo

assim tanto o movimento de retorno ao uno quanto o movimento de procedecircncia a partir do

uno daacute-se ao mesmo tempo em uma reciprocidade na qual tanto a geraccedilatildeo da multiplicidade

configura o uno nem como uno nem como muacuteltiplo quanto a reuniatildeo da multiplicidade ao

uno tampouco configura o uno nem como uno nem como muacuteltiplo ndash como se a proacutepria ideia

de uno flutuasse em um ldquoinstante incapturaacutevelrdquo

Natildeo haacute duacutevida que o raciociacutenio apresentado por Platatildeo constitui um dos maiores

desafios especulativos da histoacuteria do pensamento ocidental seja nos esforccedilos empreendidos

pela loacutegica de compreensatildeo seja pelo desafio meditativo aflorado da temaacutetica proposta Neste

contexto Marcus Reis Pinheiro indica a interpretaccedilatildeo de Jean-Luc Brisson (Annexe I Les

interpretation du Parmeacutenide dans lrsquoAntiquiteacute presente na ediccedilatildeo Parmenide Paris Flamarion

1999) conforme a qual ldquo() Plotino estaacute no grupo dos inteacuterpretes do diaacutelogo que natildeo o vecirc

apenas como um exerciacutecio loacutegico mas que procura determinar a que tipo de objeto se refere o

diaacutelogordquo (PINHEIRO 2006 3) Seguindo esta linha de raciociacutenio o importante seria portanto

compreender como Plotino absorve a temaacutetica Considerar uma interpretaccedilatildeo para aleacutem da mera

concatenaccedilatildeo loacutegica de conceitos eacute basicamente absorver o sentido de cada termo Isto significa

natildeo apenas expor as formataccedilotildees daquilo que foi introduzido no discurso como ldquounordquo mas

ainda entender de que forma a simples possibilidade de concebecirc-lo no raciociacutenio implica em

uma reduccedilatildeo draacutestica das estruturas hieraacuterquicas do real ou seja constitui uma compreensatildeo

da realidade que possui como primeiro princiacutepio algo que coloca o pensamento em um niacutevel de

paradoxo que necessariamente denota a assunccedilatildeo de uma impossibilidade loacutegica

71

As trecircs hipoacutestases de Plotino seratildeo teoricamente encadeadas de maneira semelhante agraves

hipoacuteteses de Platatildeo embora natildeo sequencialmente Contudo a primeira (e talvez a mais

complexa) jaacute iniciaraacute o movimento de negatividade em direccedilatildeo agraves seguintes estabelecendo os

conflitos presentes na ideia de uno (τὸ ἑν) Plotino considera que ldquoO Uno eacute todas as coisas e

nenhuma delas a fonte para todas as coisas eacute nenhuma das coisas e ainda eacute todas as coisas em

um sentido transcendental ndash todas as coisas para assim dizer tendo seu retorno agrave isto ()rdquo

(PLOTINUS 1969 380 Eneacuteadas V 2 1) Ele ainda assevera a inefabilidade inerente ao uno

conforme a qual todo discurso eacute jaacute sempre indireto e impreciso Apenas mediante referecircncias

como ldquotodas as coisas e nenhuma delasrdquo torna-se possiacutevel acenar para o uno ndash e apenas isto

acenar Entretanto esta eacute para Plotino a uacutenica maneira de compreender a estrutura da realidade

como tal pelo simples motivo de que ldquoEacute precisamente porque haacute nada no Uno que todas as

coisas derivam dele para que o Ser possa ser trazido a fonte natildeo pode ser o Ser mesmo mas o

gerador do Ser ()rdquo (IDEM IBIDEM) que natildeo pode possuir a natureza do ser mas deve se constituir

como outro dele qual seja natildeo-ser ou mesmo nada Plotino prossegue ainda dizendo

ldquoBuscando nada possuindo nada faltando nada o Uno eacute perfeito e em nossa metaacutefora

transborda e sua exuberacircncia produz o novo este produto torna-se novamente seu progenitor

e eacute preenchido e se torna seu contemplador e Princiacutepio-Intelectualrdquo (ID IBID) A passagem

altamente especulativa denota que tudo eacute contemplaccedilatildeo dotada de uma atividade suprema que

comeccedila pelo uno e retorna a ele no simples olhar que natildeo implica nem em complexidade nem

em necessidade29 Mediante uma reflexatildeo propriamente loacutegica a contemplaccedilatildeo por meio da

qual o uno se desdobra e gera todas as coisas se daacute devido a sua proacutepria perfeiccedilatildeo ou seja o

uno natildeo eacute coisa nenhuma e necessariamente engendra todas as coisas porque eacute completo

porque eacute a totalidade de tudo e para isto eacute necessaacuterio que seja ele mesmo e ainda outro de si

29 Estes apontamentos satildeo de John Bussanich que ainda explica que ldquo() a doutrina plotiniana da derivaccedilatildeo do

Uno eacute lsquoprocessatildeorsquo o adjetivo que melhor qualifica isto eacute lsquocontemplativorsquo o movimento no qual a hipoacutestase eacute

gerada coincide com a contemplaccedilatildeo De fato o ponto cardial a chave para a estrutura da processatildeo da metafiacutesica

plotiniana era contemplaccedilatildeo ou theocircriardquo (BUSSANICH 1999 32)

72

Ciacutecero Cunha Bezerra apresenta a organizaccedilatildeo feita por Pierre Aubenque30 conforme a

qual haveriam trecircs esferas argumentativas no desenvolvimento da primeira hipoacutestase uma

loacutegica outra epistemoloacutegica e uma metafiacutesica Bezerra cita uma das passagens mais conhecidas

de Plotino que diz ldquoPrivado de unidade uma coisa cessa de ser aquilo pelo qual eacute chamada

um exeacutercito natildeo eacute um exeacutercito se natildeo eacute uno um coro um rebanho devem ser uma coisa soacuterdquo

(ID IBID 612 VI 9 1) sobretudo para enfatizar o aspecto loacutegico pelo qual Plotino ldquosubverterdquo

a resposta aristoteacutelica da entidade da coisa pela definiccedilatildeo substancial Bezerra argumenta

dizendo que ldquo() Plotino por uma exigecircncia loacutegica jaacute que o princiacutepio originaacuterio natildeo pode

possuir qualquer caraacuteter dos seres relativiza a ontologia e estabelece a henologia como

fundamento de todo serrdquo (BEZERRA OP CIT 67) O problema epistemoloacutegico sobressalta a

ultrapassagem necessaacuteria de todo conhecimento para alcanccedilar tal niacutevel de especulaccedilatildeo ao passo

que a questatildeo metafiacutesica retorna aos trechos anteriormente citados no qual a geraccedilatildeo de todas

as coisas soacute pode derivar de coisa nenhuma

O emprego do termo henologia define aqui o primeiro passo para o caminho da

negatividade Institui-se como negativo o princiacutepio que jaacute natildeo mais decorre de um rendimento

ldquopositivordquo por meio do qual se pode construir um conhecimento soacutelido e confiaacutevel mas uma

base que possui caracteriacutesticas muito diversas e que desafiam a capacidade loacutegica Por este

motivo a primeira demanda eacute jaacute a superaccedilatildeo intelectual (ἐπέκεινα νοῦϛ καὶ οὐσίας) que deve

assumir que o comeccedilo de todas as coisas eacute incoacutegnito O discurso eacute indireto e metafoacuterico porque

somente assim eacute possiacutevel indicar sua possibilidade de ser pensado ndash entendendo principalmente

que o ldquoser pensadordquo natildeo indica nem conota existecircncia porque o ser e a existecircncia mesmo satildeo

ainda posteriores agrave ideia de uno As segunda e terceira hipoacutestases portanto natildeo podem ser

concebidas se de antematildeo natildeo for assumida a negatividade do primeiro princiacutepio

30 Pierre Aubenque ldquoPlotin et le deacutepassement de lrsquoontologie grecque classiquerdquo Colloque des Royaumont Le

Neacuteoplatonisme Paris Centre National de Recherche Scientifique 1971 101-110

73

Somente por meio da completude da pensamento henoloacutegico de Plotino fica possiacutevel

deixar claro os termos pelos quais se destaca a negatividade como ldquosupressatildeo de todo saber e

dizerrdquo Os motivos contudo jaacute satildeo bastante evidentes se levado em consideraccedilatildeo que a

inefabilidade do uno indica que sobre ele natildeo se pode falar e ele natildeo se pode conhecer Portanto

o neoplatonismo necessariamente parte do pressuposto de que o ponto de partida e o ponto de

chegada do pensamento satildeo ambos uma caminhada rumo agrave supressatildeo Ao explicar a processatildeo

por meio da qual o uno engendra todas as coisas destaca-se uma consideraccedilatildeo importante se

os seres engendram o eternamente perfeito engendra eternamente algo inferior a si mesmo por

isto mesmo ldquoEacute preciso observar que a processatildeo plotiniana implica necessariamente uma

negaccedilatildeo A negaccedilatildeo eacute uma condiccedilatildeo a priori no sentido de que o engendrado deve assimilar-se

ao seu gerador mas mantendo uma resistecircncia que diferencia um do outrordquo (IDEM IBIDEM 74)

Em outras palavras a geraccedilatildeo do uno e a abertura da segunda hipoacutestase soacute eacute possiacutevel por meio

da introduccedilatildeo da diferenccedila A diferenccedila eacute o que aqui constitui o passo fundamental da sequecircncia

do pensamento neoplatocircnico O ser eacute na medida em que eacute diferente do uno e por ele eacute

engendrado justamente porque apenas a diferenccedila pode advir do eternamente perfeito

Assim sendo resta saber como o uno engendra e o quecirc ele engendra O que significa

ainda resgatar a pergunta anteriormente colocada por Parmecircnides e Platatildeo como do uno

provem o muacuteltiplo Esta questatildeo eacute sem sombra de duacutevidas uma das mais complexas do sistema

neoplatocircnico em geral A ideia de processatildeo (πρόοδος) pressupotildee uma emanaccedilatildeo a partir do

uno na qual todas as outras coisas satildeo engendradas o que significa dizer que se trata de um

movimento que abarca a realidade em toda sua estrutura na qual ldquo() difere completamente de

um mecanicismo dado que estaacute mais aleacutem de toda contingecircncia e necessidade Nesse sentido

natildeo se pode dizer que se trata de algo que implique um livre-arbiacutetrio ou uma produccedilatildeo artesanalrdquo

(ID IBID 76) Ou seja o uno natildeo necessita de nada e por isto mesmo daacute origem a tudo A

espontaneidade (se eacute que se pode utilizar tal termo) eacute natural e natildeo possui um motor

74

Ao mesmo tempo tudo aquilo que eacute gerado pelo uno possui um poder de conversatildeo

(επιστροφή) um voltar-se sobre si mesmo e voltar-se em direccedilatildeo ao uno (cf ID IBID 76)

movimentada pelo autoconhecimento daquilo que eacute Este autoconhecimento soacute eacute possiacutevel

todavia pelo proacuteprio movimento de emanaccedilatildeo conforme o qual se identifica ldquoserrdquo e

ldquopensamentordquo como havia postulado Parmecircnides e eacute justamente este o momento no qual

emerge a segunda hipoacutestase qual seja a inteligecircncia (νοῦϛ)

As caracteriacutesticas pelas quais a inteligecircncia se mostra desde a compreensatildeo da processatildeo

satildeo a chave para o sentido da filosofia de Plotino Sobre isto Thomas Alexander Szlezaacutek

escreve ldquoNatildeo persegue o Uno com esforccedilo deliberado mas espera tranquilamente ateacute que ele

apreccedila Assim a alma soacute recebe unicamente o Uno eacute uma volta do lsquosolitaacuterio para o solitaacuteriorsquordquo

(SZLEZAacuteK 2010 11) acrescentando ainda que ldquoO caminho que conduz ao Uno natildeo passa poreacutem

pela praacutetica asceacutetica de um anacoreta mas pela apropriaccedilatildeo conceitual do mundo inteligiacutevel

()rdquo (IDEM IBIDEM) Os termos inteligecircncia e inteligiacutevel referem-se aqui a uma definiccedilatildeo

particular que compreende o nuacutecleo da segunda hipoacutestase Bezerra escreve acerca deste ponto

ldquoPlotino no tratado oitavo da terceira Eneacuteada define a Inteligecircncia natildeo como uma coisa

particular mas como algo universal e muacuteltiplordquo (BEZERRA OP CIT 78) explicando que eacute

ldquoUniversal porque abarca todos os seres e muacuteltiplo porque coexistem em sua natureza

simultaneamente o inteligente (Inteligecircncia) e o inteligiacutevel (ser) ()rdquo (IDEM IBIDEM) Plotino

encadeia seu raciociacutenio elucidando como o Princiacutepio-Intelectual eacute universal e iniacutecio de todas as

coisas de maneira que ldquo() assim todas as coisas e o Princiacutepio de tudo deve ser tal que cada

parte dele seja universal eacute todas coisas do contraacuterio conteria partes que natildeo satildeo o Princiacutepio-

Intelectualrdquo (PLOTINUS OP CIT 246 Eneadas III 8 8) Conclui a partir de entatildeo que ldquo() este

Ser eacute ilimitado e que em tudo que flui dele natildeo haacute reduccedilatildeo nem em sua emanaccedilatildeo desde que eacute

o universo inteiro nem em si mesmo o ponto de partida desde que natildeo haacute reuniatildeo de partes

()rdquo (IDEM IBIDEM 246-247) Fica claro o caraacuteter ascendente e natildeo descendente da processatildeo

75

Plotino explica que ldquo() um ser desta natureza natildeo eacute existecircncia primaacuteria deve existir a

partir daquilo do qual transcende o Ser (o Absoluto) ()rdquo (ID IBID 247) e prossegue dizendo

que ldquo() Pluralidade eacute mais tardia que Unidade O Princiacutepio-Intelectual eacute um nuacutemero (=a

expressatildeo de uma pluralidade) e o nuacutemero deriva da unidade a fonte de um nuacutemero como este

deve ser o autecircntico Unordquo (ID IBID) A transcendecircncia que evidencia o caraacuteter progressivo

pode ainda ser entendida desde a ideia de que ldquo() ao contemplar-se a si mesmo a Inteligecircncia

se une ao objeto contemplando uma unidade entre o eu e o ser universal que supera toda

alteridade ()rdquo (BEZERRA OP CIT 79) Com isto eacute possiacutevel resgatar ainda o sentido pelo qual

Beierwaltes destaca a diferenccedila como princiacutepio pelo qual haacute um desvio de Plotino em relaccedilatildeo

agrave ontologia claacutessica (cf BEIERWALTES OP CIT 58) Contudo como se compreende esta

contemplaccedilatildeo eacute o que levaraacute agrave terceira hipoacutestase a alma (ψυχή) Bezerra explica recapitulando

os passos anteriores ldquoVimos anteriormente que o Uno e o Muacuteltiplo apresentam-se sob duas

maneiras distintas a) Uno e natildeo muacuteltiplo (I hipoacutetese) b) Uno-Muacuteltiplo (II hipoacutetese) A alma eacute

portanto ao mesmo tempo uno e muacuteltiplordquo (BEZERRA OP CIT 82) o que significa evidenciar

que ela representa uma distinccedilatildeo radical e afastamento do primeiro princiacutepio o uno

Ainda no oitavo tratado da terceira Eneacuteada Plotino aborda a natureza enquanto ato

criador compreendendo o fenocircmeno a partir de uma tensatildeo entre um Princiacutepio-Racional inerte

e um Princiacutepio-Natural em movimento (cf PLOTINUS OP CIT 239-240 Eneadas III 8 2) que

responderia ainda ao conflito entre unidade e multiplicidade e ainda agrave questatildeo entre tempo e

eternidade Plotino indaga como a natureza responderia ao questionamento colocando

literalmente o argumento na fala da natureza que diria que ldquoOs matemaacuteticos desde suas visotildees

desenham suas figuras mas eu desenho nada eu contemplo as figuras do material do mundo

tomando os seres como eu os sinto desde minha contemplaccedilatildeordquo (IDEM IBDEM 241) chegando a

conclusatildeo de que ldquo() o que noacutes conhecemos por Natureza eacute uma Alma cria de uma Alma

ainda anterior () uma visatildeo interna de si mesmardquo (ID IBID)

76

A visatildeo interna de si mesma mencionada por Plotino prove o entendimento de que ldquoA

alma portanto autodetermina-se e ao mesmo tempo autofragmenta-se pois ao separar-se do

todo volta-se maravilhada para o particularrdquo (BEZERRA OP CIT 84) Disto adveacutem a geraccedilatildeo do

tempo como desordem introduzida no equiliacutebrio primordial e ao mesmo tempo a introduccedilatildeo

de uma ordenaccedilatildeo mediada pela conversatildeo (επιστροφή) ndash pelo retorno maravilhado ao uno ou

uniatildeo ao fundamento por meio da contemplaccedilatildeo

Agora bem toda esta inevitaacutevel breve introduccedilatildeo ao pensamento de Plotino deve

direcionar para uma postura distinta daquela antes observada com a ontologia claacutessica e o

pensamento metafiacutesico Que postura eacute esta Ou melhor qual o caminho que se abre a partir das

trecircs hipoacutestases plotinianas Este eacute o momento no qual o caminho da negatividade comeccedila a se

encorpar e mostrar seu caraacuteter decisivo na constituiccedilatildeo do desvio intelectual do neoplatonismo

Gostaria de fazer um recorte especiacutefico do nono tratado da sexta Eneacuteada para alcanccedilar este

esclarecimento

Plotino reconstitui seu caminho a partir da afirmaccedilatildeo ldquoEacute em virtude da unidade que os

seres satildeo seresrdquo (PLOTINUS OP CIT 614 Eneadas VI 9 1) O que significa afirmar que sem a

unidade natildeo se pode considera que algo seja o que seja Em termos mais simples se nomeio

braccedilo pernas cabeccedila razatildeo sensibilidade entre outras muacuteltiplas singularidades presentes em

um ser humano mas natildeo as congrego em uma unidade pela qual afirmo ldquoser humanordquo que

compreende todas as particulares em questatildeo inexoravelmente perco de vista seu sentido Por

isto ldquoQualquer coisa que possa ser descrita como uma unidade o eacute no preciso grau pelo qual

sustenta um ser caracteriacutestico quanto menor ou maior o niacutevel do ser menor ou maior seraacute a

unidaderdquo (IDEM IBIDEM) Portanto alma seria (em razatildeo de sua distinccedilatildeo da unidade mesma)

uma grande unidade em proporccedilatildeo e na autenticidade do ser e assim ldquoUnidade absoluta natildeo eacute

eacute a alma e a primeira alma a unidade em algum sentido concomitante ()rdquo (ID IBID) deixando

ver como a unidade natildeo eacute e eacute

77

Desta forma pode-se compreender que o uno natildeo pode ser a totalidade dos seres que

anularia sua unidade nem tampouco o ldquoPrinciacutepio-Intelectualrdquo pelo qual as coisas satildeo nem o

ldquoser mesmordquo no sentido da totalidade das coisas Plotino prossegue dizendo ldquoA alma ou mente

movimentando-se rumo ao que eacute sem forma encontra-se em estado de incompetecircncia para

apreender ali onde nada se limita ou onde a se impinge a realidade difusardquo (ID IBID 615 VI

9 3) Assim ldquo(hellip) ante o puro pavor de se sustentar no nada esvai-se O estado eacute doloroso

geralmente busca aliacutevio ao se retratar de sua vagueza na regiatildeo do sentido para ali repousar em

um fundamento soacutelido bem como a visatildeo aflige-se com o minuto no qual repousa na escuridatildeordquo

(ID IBID) Mas para onde olhar frente ao desconforto de natildeo se ter onde repousar Quando se

percebe o quatildeo vago eacute todo e qualquer presumido fundamento ou sentido quando a escuridatildeo

natildeo reflete senatildeo a angustia de uma contemplaccedilatildeo exausta pelo esvair de todo sustento o que

resta para aleacutem discoacuterdia que atinge o intelecto Plotino sintetiza a afliccedilatildeo

A alma deve ver em sua proacutepria maneira isto se daacute por coalescecircncia a unificaccedilatildeo

mas buscando assim conhecer a unidade eacute impedida por esta mesma unificaccedilatildeo de

reconhecer o que foi encontrado natildeo se pode distinguir a si mesmo do objeto de sua

intuiccedilatildeo No entanto este eacute nosso uacutenico recurso caso nossa filosofia busque o

conhecimento da Unidade (ID IBID)

O uacutenico caminho rumo ao conhecimento da unidade eacute um caminho impossiacutevel em si mesmo

uma via cerrada pela proacutepria natureza do questionamento proposto Intuir as trecircs hipoacutestases ou

encadeaacute-las conforme uma loacutegica sistemaacutetica portanto elucida o caminho mas natildeo

necessariamente introspecta e absorve a pureza da experiecircncia Para isto eacute necessaacuterio mais ou

melhor menos ndash muito menos O uacutenico ponto de apoio aqui seraacute a identificaccedilatildeo entre o uno e

bem ou a compreensatildeo da primeira hipoacutestase como uno-bem (τὸ ἑν καὶ αγαθον) cujo sentido

eacute por um lado extrema e pura simplicidade e por outro inefabilidade total devido agrave perfeiccedilatildeo

78

Reivindicar este caminho soacute pode portanto levar a uma supressatildeo absoluta onde

ldquoAinda esta abstenccedilatildeo de autoconhecimento natildeo comporta ignoracircncia ignoracircncia eacute algo de fora

ndash um conhecedor ignorante de um cognosciacutevel ndash mas no solitaacuterio natildeo haacute nem conhecimento

nem nada desconhecidordquo (ID IBID 620 VI 9 6) Plotino entatildeo apresenta uma formulaccedilatildeo

nada usual conforme a qual certo direcionamento de suas intenccedilotildees pode ser entendido em

uma passagem tatildeo emblemaacutetica quanto enigmaacutetica ele escreve

Neste coro a alma olha para a nascente da Vida tambeacutem nascente do Intelecto iniacutecio

do Ser fonte do Bem raiz da Alma Natildeo que eles tenham sido despejados do Supremo

menosprezando-os como se fosse uma massa Nisto aquilo que emana seria pereciacutevel

mas eles satildeo eternos eles nasce de um princiacutepio eterno que produz deles sua

fragmentaccedilatildeo mas em virtude de sua identidade inata portanto eles se manteacutem muito

firmes conto o sol brilhe contanto haveraacute luz

()

Aqueles para os quais toda esta experiecircncia eacute estranha podem entende-la como nossos

anseios terrenos e a alegria que temos ao ganhar o que mais desejamos ndash lembrando

sempre que aqui o que noacutes amamos eacute pereciacutevel doloroso que nosso amor eacute mimeacutetico

e se afasta porque foi tudo um engano nosso bem natildeo estava laacute isto natildeo era o que

procuraacutevamos Haacute apenas o verdadeiro amor onde haacute uniatildeo natildeo segurando isto com

algum tipo de abraccedilo carnal mas possuindo na totalidade sua veracidade Todos

aqueles que viram sabem o que tenho em mente a alma toma outra vida quando se

aproxima de Deus assim restaurada sente que o distribuidor da verdadeira vida estaacute

laacute para ver que agora natildeo temos nada para procurar senatildeo aquilo que precisamos

deixar de lado e deixar assim sozinho assim vindouro assim soacute tudo o que o ambiente

terreno aniquilou na pressa de ser livre impaciente em relaccedilatildeo a qualquer laccedilo que

nos sustenta na base para que com todo nosso ser possamos agarrar-nos sobre isto

quando natildeo sobra nada em noacutes senatildeo aquilo pelo qual tocamos em Deus (ID IBID

623 VI 9 9)

79

As palavras de Plotino ressoam como uma conduta que eacute antes como postura que doutrina O

uso termo ldquoamorrdquo denota claramente uma experiecircncia irregulaacutevel uma tensatildeo entre ausecircncia e

presenccedila preenchimento e falta ndash sem embargo um misteacuterio

O misteacuterio que indicado por Plotino se configura como o guia para a visatildeo que permite

descortinar o sentido pensamento filosoacutefico Um misteacuterio que segue a mesma regra de Platatildeo e

do platonismo onde ldquoNada eacute divulgado para os natildeo-iniciadosrdquo (ID IBID 624 VI 9 11) e do

qual natildeo se pode simplesmente exibir uma estoacuteria ordinaacuteria ldquoCoisas aqui satildeo sinaisrdquo (ID IBID)

adverte Plotino Sinais para aqueles que entram em solo sagrado e tornam real a visatildeo do

inacessiacutevel Ele esclarece ainda ldquoQuando a alma comeccedila novamente a se colocar natildeo se torna

outra mas si mesma assim desprendida natildeo eacute nada senatildeo si mesma auto-reunida natildeo eacute mais

da ordem do ser estaacute no Supremordquo (ID IBID) O desprendimento e a supressatildeo a visatildeo do uno

e o movimento de uniatildeo encaminham para o ldquotodo-transcendenterdquo que jaacute natildeo mais estaacute no niacutevel

daquilo que eacute do ente mesmo do ser mas em uma esfera para aleacutem de todas as coisas que satildeo

e que natildeo satildeo A culminaccedilatildeo do pensamento henoloacutegico de Plotino como uma ldquomiacutestica da

unidaderdquo eacute o berccedilo do neoplatonismo e necessariamente o iniacutecio de sua radicalizaccedilatildeo

Neste fluxo considera-se que existam dois momentos fundamentais do desdobramento

do neoplatonismo a partir da henologia plotiniana quais sejam a teologizaccedilatildeo da henologia

desenvolvida por Proclo e a teologia negativa do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita Em ambos eacute

possiacutevel observar como o caminho da negatividade se configura partir de uma profunda

introspecccedilatildeo de temas que tendem agrave dissoluccedilatildeo do conhecimento ateacute entatildeo concebido

estruturado e instaurado ndash e ainda agrave subversatildeo completa de seus meios de expressatildeo e

significaccedilatildeo isto eacute agrave supressatildeo do saber e do dizer Eles natildeo representam meramente o ldquopasso

adianterdquo como se houvessem ainda superado o discurso antecessor mas antes o ldquopasso atraacutesrdquo

enquanto retorno agraves bases e aos princiacutepios por meio da reivindicaccedilatildeo da atitude desvelada pela

miacutestica onde o misteacuterio natildeo eacute o problema a ser desvendado mas o elemento a ser incorporado

80

O obra de Proclo eacute composta por diversos comentaacuterios aos diaacutelogos de Platatildeo dentre os

quais ao Timeu ao Parmecircnides ao Alcebiacuteades agrave Repuacuteblica entre outros aleacutem de escritos

sistemaacuteticos como os Elementos de Teologia e a Teologia Platocircnica Existem ainda obras que

abordam temas de matemaacutetica astronomia arte magia e tratados propedecircuticos sobre doutrinas

filosoacuteficas Especialmente em relaccedilatildeo agraves contribuiccedilatildeo em torno agrave henologia duas obras satildeo de

suma importacircncia o Comentaacuterio ao Parmecircnides de Platatildeo e os Elementos de Teologia

A leitura de Proclo do Parmecircnides de Platatildeo eacute considerada uma das mais sistemaacuteticas e

originais que teria sobrevivido agraves vicissitudes dos tempos Ademais guardaria ainda um apelo

ao resguardo da filosofia de Platatildeo bem como uma preparaccedilatildeo para um projeto de resgate da

vitalidade do paganismo por meio de um platonismo revigorado 31 Decorreria disto uma

profunda incursatildeo na filosofia como teologia que culminaria em seus Elementos Ainda no

Comentaacuterio Proclo descreve o percurso de Platatildeo em relaccedilatildeo agrave Parmecircnides e manifesta uma

linha argumentativa similar a Plotino

Mas caso se queira chegar o mais proacuteximo da verdade deve-se seguir a linha de nosso

Mestre que Parmecircnides inicia desde o Uno (Ser) (para a proposiccedilatildeo ldquose haacute um unordquo

jaacute que conteacutem aleacutem do ldquoUnordquo o conceito de existecircncia pertence a este tipo de coisas)

ascendendo do Uno Ser para o Uno assim demonstrando que o Uno em sentido estrito

deseja apenas isto ser One e ldquoarrebatar-se para longerdquo do Ser e o Uno Ser eacute

secundaacuterio a este pela razatildeo de sua descendecircncia em direccedilatildeo ao Ser ao passo que o

Uno mesmo eacute superior mesmo agrave designaccedilatildeo ldquoeacuterdquo e a hipoacutetese ldquose haacuterdquo assim que

adicionamos eacute o Uno no sentido estrito natildeo mais permanece (PROCLUS 1987 379-380

In Parm 1033)

31 Estas consideraccedilotildees satildeo de Ciacutecero Cunha Bezerra em Algumas consideraccedilotildees sobre leitura procleana do

Parmecircnides de Platatildeo (2004) Neste artigo ele ainda sustenta em consonacircncia com H D Saffrey (Proclus

diadoque de Platon 1990) que Proclo entra na linha de inteacuterpretes de Platatildeo que entendem sua filosofia como

revelaccedilatildeo de uma verdade divina estruturada a partir do uno filiando Platatildeo aos teoacutelogos gregos (cf BEZERRA 2004

99-100)

81

Proclo apresentaraacute na sequecircncia a impossibilidade de ldquohipotetizarrdquo o uno cindindo de um lado

hipoacutetese-condicionada e de outro anti-hipoacutetese-incondicionada O problema que estaacute sendo

colocado parte da ideia de que natildeo se pode pensar a multiplicidade isolada senatildeo somente por

meio da concepccedilatildeo de uma unificaccedilatildeo Para aleacutem da estrutura binaacuteria uno-muacuteltiplo deve-se

considerar a unificaccedilatildeo como consequecircncia necessaacuteria dando origem agrave formulaccedilatildeo ldquouno-

unificado-muacuteltiplordquo para explicar como eacute simplesmente possiacutevel que hajam elementos pelos

quais outros se unificam32

O resultado da formulaccedilatildeo de Proclo parece ser a absolutizaccedilatildeo do uno e sua

identificaccedilatildeo com Deus algo sobremaneira evidente na proposiccedilatildeo de seus Elementos que diz

ldquoTodo intelecto divino eacute uniforme ou possui a forma do Uno e eacute perfeito E o primeiro intelecto

subsiste por si mesmo e produz outros intelectosrdquo (IDEM 1998 86 Elem Theo Prop CLX)

Proclo argumenta ainda que se haacute um Deus ele eacute preenchido de unidades divinas e eacute uniforme

sendo ainda perfeito e cheio da bondade divina havendo um Deus primeiro que provecirc as

hipoacutestases para outros intelectos

Este eacute precisamente o ponto que seraacute aprofundado pelo Pseudo-Dioniacutesio Areopagita em

sua teologia negativa Tanto em Proclo quanto no Pseudo-Dioniacutesio o divino habita a

compreensatildeo filosoacutefica da realidade como incorporaccedilatildeo do misteacuterio seguindo ainda a esteira

da muacutetua reciprocidade entre filosofia e religiatildeo demanda por Plotino desde o iniacutecio Pseudo-

Dioniacutesio coroa a radicalizaccedilatildeo do uno e sua identidade com o Deus primeiro apresentado como

supraessencial (ὑπερούσιε) suprabondoso (ὑπεράγαθε) e mesmo supradivino (ὑπερθεε) razatildeo

pela qual ele demanda que ldquo() em absoluta renuacutencia de si mesmo e de todas as coisas deveraacutes

na pureza deixar todas as coisas de lado liberando-se de tudo e sendo assim levado para cima

para o Raio da Divina Treva que excede toda existecircnciardquo (DIONYSIUS THE AREOPAGITE 1920 192)

32 Esta passagem eacute cuidadosamente explicada por Giuseppe Girgenti que esclarece que ldquoO ponto culminante do

primeiro grupo de teoremas eacute o alargamento da hierarquia de quatro termos uma vez que o raciociacutenio de Proclo

levou a distinguir o intermediaacuterio entre o proacuteprio Uno e o unificado ou seja elementos que compotildeem o unificada

as primeiras unidades do natildeo-unificado ou a henadirdquo (GIRGENTI 2009 113-114)

82

Discursar acerca da inefabilidade impotildee no Pseudo-Dioniacutesio uma superaccedilatildeo da proacutepria

linguagem que se revela agora como uma construccedilatildeo liberta de qualquer fronteira e acima de

qualquer paradoxo onde negaccedilatildeo (ἀπόφασις) e afirmaccedilatildeo (κατσφάσις) comungam de igual

valor e sentido em uma mesma e uacutenica esfera A primazia propriamente apofaacutetica que toma

conta da fala do Pseudo-Dioniacutesio ganha forccedila quando supera toda definiccedilatildeo conceitual e

identifica Deus como nada daquilo que eacute

Uma vez mais indo ainda mais alto mantemos que Ele natildeo eacute alma ou mente ou

concebido pela faculdade da imaginaccedilatildeo conjuntura razatildeo ou entendimento nem eacute

nenhum ato de razatildeo ou compreensatildeo nem pode ser descrito pela razatildeo ou percebido

pelo entendimento jaacute que natildeo eacute nuacutemero ou ordem ou magnificecircncia ou pequenez

ou igualdade ou desigualdade e jaacute que natildeo estaacute inerte nem em movimento ou em

descanso e natildeo possui poder e natildeo eacute poder nem luz e natildeo vive e natildeo eacute vida nem eacute

essecircncia pessoal ou eternidade ou tempo nem pode ser apreendido pelo

entendimento jaacute que natildeo eacute nem conhecimento nem verdade nem eacute reinado ou

sabedoria nem eacute uno nem unidade nem deidade ou bondade natildeo eacute um espiacuterito como

se entende o termo jaacute que natildeo eacute Filho nem Pai nem eacute nenhuma outra coisa tal como

noacutes ou qualquer outro ente do qual se possa ter conhecimento nem pertence a

categoria de natildeo-existecircncia ou de existecircncia nem os entes existentes o conhecem

como realmente eacute nem Ele os conhece como realmente satildeo nem a razatildeo pode o

atingir nomear ou conhecer nem eacute escuridatildeo nem eacute luz ou erro ou verdade nem

nenhuma afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo pode ser aplicada porquanto aplicar afirmaccedilotildees e

negaccedilotildees natildeo se aproximam Dele noacutes natildeo aplicamos nem negaccedilatildeo nem afirmaccedilatildeo

enquanto transcende toda afirmaccedilatildeo por ser perfeita e uacutenica Causa dos seres e

transcende toda negaccedilatildeo pela preeminecircncia de sua livre natureza simples e absoluta

de qualquer limitaccedilatildeo e para aleacutem de tudo (DIONYSIUS THE AREOPAGITE 1920 200-201)

83

Seria justo afirmar que esta densa passagem da Teologia Miacutestica eacute muito mais proacutexima de uma

declaraccedilatildeo de amor do que uma articulaccedilatildeo filosoacutefica (e caberia aiacute perguntar se haacute enfim

alguma diferenccedila entre uma coisa e outra) Pseudo-Dioniacutesio natildeo apenas promove um

movimento de negaccedilatildeo em direccedilatildeo agrave toda afirmaccedilatildeo mas ainda rumo agrave proacutepria negaccedilatildeo Neste

sentido a definiccedilatildeo mais justa conforme a qual se utiliza aqui o termo negatividade seguiria

com precisatildeo os termos do Pseudo-Dioniacutesio entendendo que o caminho negativo estaacute mais

aleacutem de toda afirmaccedilatildeo e mesmo de toda negaccedilatildeo Esta eacute ainda a via para entender o que pode

ser nomeado como meontologia um percurso intelectual que apoiado pela henologia

neoplatocircnica natildeo se fundamenta mais no ente mas antes no natildeo-ente (μή ὄν) ou mesmo no

nada

As consequecircncias da henologia neoplatocircnica de Plotino e Proclo e da meontologia

miacutestica do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita natildeo passaratildeo incoacutelumes pelos seacuteculos que se seguiriam

agrave composiccedilatildeo dos escritos aqui conjurados Contudo algumas recepccedilotildees bastante acuradas e

inspiradas criativas e bem desenvolvidas ocupar-se-iam de resgatar o sentido do pensamento

negativo e desdobrar a profundidade do problema Eacute possiacutevel citar algumas dezenas de filoacutesofos

que se dedicaram ao diaacutelogo com o neoplatonismo e a teologia negativa Aqui gostaria de

encerrar este capiacutetulo direcionando-o para uma interlocuccedilatildeo especial e ao meu ver central para

a difusatildeo da negatividade na filosofia medieval moderna e contemporacircnea Tenho em mente

Joatildeo o Escoto chamado Eriuacutegena

Eriuacutegena ocupou um lugar de destaque nas altercaccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas durante

o chamado Renascimento Caroliacutengio sendo-lhe atribuiacutedas tarefas como a traduccedilatildeo do grego

para o latim das obras do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita bem como explanaccedilotildees em torno agrave

contenda da divina predestinaccedilatildeo e agraves interpretaccedilotildees e exegeses suscitadas pela disputa erguida

pela cultura biacuteblica do periacuteodo33

33 Para especificaccedilotildees em torno a Eriuacutegena e seu tempo confira CONTRENI 1996 e MCNAMARA 1996

84

A presenccedila do neoplatonismo em Eriuacutegena parece se posicionar de maneira estrateacutegica

ao longo dos movimentos por ele realizados em sua magna obra o Periphyseon Natildeo se pode

perder de vista as possiacuteveis definiccedilotildees do neoplatonismo natildeo apenas dentro de suas esferas

relacionais e a partir das tendecircncias de leitura mas ainda por meio da questatildeo fundamental que

problematiza todo conteuacutedo qual seja como o uno se relaciona com o muacuteltiplo ou ainda como

o que eacute primeiro se relaciona com o que eacute posterior Oscar Federico Bauchwitz sustenta que

ldquo() a questatildeo pela antonomaacutesia do neoplatonismo enquanto uma reflexatildeo acerca da relaccedilatildeo

entre o Criador e a criatura entre o Uno e a multiplicidade pode ser enfocada na obra de

Eriuacutegena no que diz respeito a creatio ex nihilo e ao sentido original que eacute determinado ao

termo nihilrdquo (BAUCHWITZ 2001 11) Assumindo esta hipoacutetese como vaacutelida torna-se

imprescindiacutevel compreender o lugar que tal questatildeo ocupa na obra eriugeneana e como ela se

desenvolve

Conforme os apontamentos de Bauchwitz o ldquonadardquo se apresenta pela primeira vez jaacute

no iniacutecio do Periphyseon ao serem articulados os modos da diferenccedila fundamental da divisatildeo

da natureza (φύσις natura) definida como tudo aquilo que eacute e que natildeo eacute (quae sunt et quae non

sunt) sendo dividida em quatro espeacutecies ldquo() primeiro naquilo que cria e natildeo eacute criado segundo

naquilo que eacute criado e tambeacutem cria terceiro naquilo que eacute criado e natildeo cria enquanto o quarto

nem cria nem eacute criadordquo (ERIVGENAE 1999 37 441ordf) O que eacute pode ser percebido apreendido e

conhecido O que natildeo eacute todavia natildeo se pode perceber apreender ou conhecer (cognoscitur non

quid est sed quia est) De acordo com Bauchwitz o termo quid est (ldquoo que eacuterdquo) diz respeito agrave

essecircncia de tudo que permanece incompreensiacutevel e infinito ao passo que quia est (ldquoque eacuterdquo)

indica a existecircncia da essecircncia divina ou seja seus efeitos como algo determinado e que eacute O

incompreensiacutevel da natureza divina Eriuacutegena deixa ver quando escreve ldquoPortanto se eacute por

causa de sua excelecircncia inefaacutevel e incompreensiacutevel infinitude que a Natureza Divina eacute dita natildeo

ser disto se segue que ela eacute nada ()rdquo (IDEM 2005 61 634C)

85

A impossibilidade de compreender a natureza divina eacute o que permite a Eriuacutegena

descortinar seu entendimento acerca da creatio ex nihilo Bauchwitz escreve sobre este ponto

ldquoA questatildeo se origina eacute que se a diferenccedila fundamental abarca a totalidade da natureza o que

se poderia predicar de Deus Isto eacute o que haacute para mais aleacutem do ser e do natildeo ser senatildeo o Nada

desde o qual Deus cria todas as coisasrdquo (BAUCHWITZ OP CIT 12) O problema eacute apresentado por

Eriuacutegena a partir da busca pelo sentido conforme o qual se questiona de que maneira eacute possiacutevel

compreender como todas as coisas que satildeo se originam do nada (ou nos termos do

neoplatonismo pagatildeo a mesma questatildeo de ldquocomo do uno se origina a multiplicidade) Eacute

possiacutevel interpretar esta passagem alegando que Eriuacutegena se refere ao nihilo em perfeita

sintonia com toda doutrina Cristatilde da criaccedilatildeo como de fato faz sentido afirmar Contudo

Eriuacutegena vislumbra o que considera ldquoa verdadeira essecircncia da natureza divinardquo O Criador que

cria todas as coisas que satildeo criadas insere-se naquela parte da divisatildeo da natureza na qual ldquocria

mas natildeo eacute criadordquo enquanto sua ldquoessecircnciardquo reflete aquilo que ldquonatildeo eacute nem criado nem criardquo

Em outros temos indica-se que nada eacute a natureza divina de Deus ou ainda que natildeo-ser

corresponde agrave divindade

Resta ainda resolver o mesmo problema ante ao qual se encontraram Plotino Proclo o

Pseudo-Dioniacutesio entre outros a saber como eacute possiacutevel para Deus desarraigar-se de seu nada

ou desdobrar-se desde si mesmo Bauchwitz oferece uma explicaccedilatildeo quando potildee em relevo o

problema da expressatildeo do paradoxo

() por meio da criatura eacute Deus quem se manifesta e portanto todas as criaturas

podem ser entendidas como certas apariccedilotildees divinas isto eacute teofania Neste sentido a

teofania nomeia o paradoxo da ineffabilis difusio que diz que o infinito devem finito

que o incompreensiacutevel devem compreensiacutevel que o silecircncio clama (BAUCHWITZ 2003ordf

57)

86

Em Eriuacutegena eacute possiacutevel acompanhar o sentido da explicaccedilatildeo de Bauchwitz na passagem que

diz

Tudo o que eacute entendido e sentido nada mais eacute senatildeo apariccedilatildeo do que natildeo eacute aparente

a manifestaccedilatildeo do oculto afirmaccedilatildeo da negaccedilatildeo compreensatildeo do incompreensiacutevel [a

expressatildeo do inexpressiacutevel o acesso ao inacessiacutevel] o intelecccedilatildeo do ininteligiacutevel o

corpo do incorpoacutereo a essecircncia do supraessencial a forma do informado a medida

do incomensuraacutevel o nuacutemero do inumeraacutevel o peso do impensaacutevel a materializaccedilatildeo

do espiritual a visibilidade do invisiacutevel o lugar do natildeo-lugar o tempo do natildeo-tempo

a definiccedilatildeo do infinito a circunscriccedilatildeo do incircunscrito e as outras coisas que satildeo

ambas consideradas e percebidas pelo intelecto sozinho e natildeo podem se restringir

dentro de recessos da memoacuteria e nas quais escapa agrave destreza da mente (ERIVGENAE OP

CIT 59 633BC)

A despeito da possibilidade de sintonia com a doutrina Cristatilde da criaccedilatildeo (especificamente o

sentido moralizante da gecircnese) natildeo haacute forccedila catequeacutetica senatildeo puramente especulativa na

maneira pela qual Eriuacutegena aborda a questatildeo O acesso ao sagrado aparece antes como uma

atitude fundamental na qual se insiste no misteacuterio da nadidade do divino

O resultado do caminho meditativo de Eriuacutegena eacute uma postura na qual o pensamento

natildeo responde apenas agraves demandas imediatas agraves preocupaccedilotildees que sanem os conflitos

existenciais e sociais mas uma intelecccedilatildeo cujo grau de alcance atinge toda mensurabilidade e

incomensurabilidade da estruturaccedilatildeo do real como internalizaccedilatildeo do segredo oculto e dos

misteacuterios da natureza Parece ser neste sentido que Bauchwitz sugere uma eacutetica do silecircncio

onde ldquo() natildeo basta enunciar o princiacutepio que deve reger as accedilotildees do ser humano () O silecircncio

como destino a ser alcanccedilado soacute tem sentido na medida em que nomeia a incessante e natural

disposiccedilatildeo do proacuteprio homem em dirigir-se a elerdquo (BAUCHWTZ OP CIT 12) Antes de resolver

qualquer problema assume-se o respeito para com a profundeza do incocircndito

87

Durante a introduccedilatildeo desta tese referi-me a um outro escrito de Bauchwitz Nihilismo

e Neoplatonismo assumindo que aquele artigo havia sido responsaacutevel por traccedilar uma direccedilatildeo

ou mesmo proporcionar um estiacutemulo ao desenvolvimento deste trabalho Gostaria de retornar

agravequele artigo uma vez mais para encerrar esta seccedilatildeo com definiccedilotildees mais precisas a respeito da

henologia e da meontologia como ultrapassagem dos limites da metafiacutesica

O capiacutetulo anterior evidenciou que com a ontologia ou a substantivaccedilatildeo do pensamento

ocidental por meio da confusatildeo entre ser e ente perdeu-se natildeo a capacidade intelectual do ser

humano mas o atino para o seu fundamento Em razatildeo da urgecircncia de respostas abandonou-se

tudo aquilo que era por princiacutepio incoacutegnito inefaacutevel inexprimiacutevel Como havia dito na

introduccedilatildeo com o apoio do trabalho de Bauchwitz a consumaccedilatildeo deste movimento eacute anunciado

por meio de um diagnoacutestico do niilismo Neste sentido Bauchwitz escreve

A relaccedilatildeo entre Nihilismo e Neoplatonismo que aponta para uma eacutetica aleacutem dos

limites da temporalidade e de crenccedilas religiosas ainda estaacute para ser esclarecida Uma

tal eacutetica somente poderaacute ser realmente quando cumpridas umas exigecircncias que neste

trabalho foram apenas assinaladas a superaccedilatildeo da vontade e em consequecircncia da

proacutepria liberdade soacute pode ser interpretada em uma perspectiva que jaacute natildeo se encontra

nos limites da ontologia tradicional ou no dizer de Heidegger no acircmbito da metafiacutesica

O sem-propoacutesito de uma tal eacutetica que abnega qualquer visatildeo utilitarista e

simplesmente dada do mundo exige pensar a partir de novas fundamentaccedilotildees e

valores o retorno do divino eacute uma metaacutefora que atende a tais exigecircncias na medida

em que ao tempo que nos abre uma concepccedilatildeo totalmente outra daquele que ancora

os principais valores vigentes questiona pelos conceitos fundamentais que

homologaram esses valores como superiores porque quantificaacuteveis A ausecircncia de

referecircncias fixadas pelos padrotildees contemporacircneos que mensuram o bem-estar de cada

indiviacuteduo e o resgate de uma vivecircncia que se justifica nela mesma e natildeo pelas suas

finalidades devem servir de origem para superar a ldquonoite do mundordquo (BAUCHWITZ OP

CIT 179-180)

88

Em primeiro lugar eacute importante destacar que a falta de esclarecimento da ldquoeacutetica aleacutem dos

limitesrdquo ou como prefiro colocar aqui ldquopara aleacutem das fronteirasrdquo natildeo soacute natildeo estaacute clara como

assim deve permanecer caso queira responder agrave exigecircncia de absorver a negatividade que

tambeacutem faz parte da humanidade do humano mas que foi todavia afasta de sua visatildeo da

realidade Por este motivo utiliza-se aqui o termo conflito das fronteiras para indicar natildeo uma

resoluccedilatildeo de problemas mas a assunccedilatildeo de um confronto Sendo assim a ultrapassagem de

limites deve se dar apenas no que tange agrave possibilidade de abrir o pensamento para aleacutem da

metafiacutesica tradicional Explorar o que haacute de propriamente fraco o que natildeo se sustenta o que

natildeo pode ser

A temaacutetica poderia ser encerrada aqui Seria possiacutevel retornar ao neoplatonismo com

ainda mais cautela e extrair de laacute mesmo os elementos para subverter toda sorte de ordenamento

que lanccedila o ser humano na ldquonoite do mundordquo Contudo meu interesse aqui eacute explorar mais um

momento da histoacuteria da filosofia e se possiacutevel encontrar um ponto de apoio para reunir a

tradiccedilatildeo metafiacutesica e o neoplatonismo em um uacutenico problema Minhas hipoacutetese conforme seraacute

desenvolvida no terceiro e uacuteltimo capiacutetulo eacute encontrar uma orientaccedilatildeo Orientaccedilatildeo extrema

Ali no Extremo Oriente

89

3 O EXTREMO ORIENTE E O CONFLITO DAS FRONTEIRAS A FILOSOFIA COMPARADA INTERCULTURAL

COMO CHAVE DE LEITURA PARA ALGUNS PROBLEMAS DO PENSAMENTO CONTEMPORAcircNEO

O ambiente acadecircmico britacircnico do final da deacutecada de 1970 foi palco de uma fervorosa disputa

acerca das interpretaccedilotildees e definiccedilotildees culturais entre Ocidente e Oriente A publicaccedilatildeo do livro

Orientalism (1978) de Edward Wadie Said (ع إدوارد Idwārd Wadīʿ Saʿīd) fomentou ديعس ودي

uma inesgotaacutevel discussatildeo acerca de qualquer suposta correspondecircncia deste ou daquele

elemento nos princiacutepios da tradiccedilatildeo oriental sustentando em termos bem simples que o

Oriente era antes uma invenccedilatildeo convencional Said sofreu diversas criacuteticas algumas mais

significativas outras menos Uma de suas consideraccedilotildees mais discutidas afirma que ldquo() o

Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente) como sua imagem ideacuteia personalidade e

experiecircncia de contraste Contudo nada desse Oriente eacute meramente imaginativordquo (SAID 1990

13-14) acrescentando ainda de forma incisiva que ldquoO Oriente expressa e representa esse

papel cultural e ateacute mesmo ideologicamente como um modo de discurso com o apoio de

instituiccedilotildees vocabulaacuterio erudiccedilatildeo imagiacutestica doutrina e ateacute burocracias e estilos coloniaisrdquo

(IDEM IBIDEM 14) Said defendeu que o Oriente tal qual eacute conhecido pelo mundo ocidental natildeo

corresponde agrave proveniecircncia originaacuteria de suas tradiccedilotildees mas eacute antes uma estrateacutegia (poliacutetica e

econocircmica) de manutenccedilatildeo geograacutefica Toda designaccedilatildeo acadecircmica de qualquer orientalismo

ateacute entatildeo desenvolvido estaria entatildeo equivocada apoiada em pressupostos que natildeo condizem

com a tradiccedilatildeo oriental Sem embargo o mesmo poderia ser dito a respeito da introspecccedilatildeo do

mundo grego pelo mundo romano-latino e no decorrer da histoacuteria da humanidade eacute possiacutevel

ainda identificar outras centenas de casos semelhantes ateacute o ponto no qual se afirma a

globalizaccedilatildeo por meio da modernizaccedilatildeo de todos os recantos do planeta dentro do iacutempeto de

igualar todas as culturas em um niacutevel comum

90

Entretanto apesar de ser possiacutevel interpretar as assertivas de Said de forma mais

ponderada aproveitando com isto certo direcionamento fatalista embora natildeo necessariamente

inveriacutedico de sua investigaccedilatildeo algumas gafes de sua compreensatildeo da histoacuteria se revelam

bastante perturbadoras Um dos principais criacuteticos de Said Robert Irwin publicou uma obra

onde ampla parte eacute dedicada agrave refutaccedilatildeo direta dos principais argumentos de Said Em For the

Lust of Knowning (2006) Irwin destaca algumas inverdades de Said e contrargumenta de

maneira precisa certas falaacutecias Contudo Irwin eacute tambeacutem bastante emotivo em sua abordagem

ele escreve ldquoPara pocircr minhas cartas na mesa jaacute de iniacutecio a meu ver aquele livro [Orientalism]

eacute uma obra de uma impostura maleacutevola na qual eacute difiacutecil distinguir erros verdadeiros de

falsidades propositadasrdquo (IRWIN 2006 11) Irwin ataca principalmente os erros fatuais de Said

apontando para lacunas na fundamentaccedilatildeo da obra Orientalism34 destacando vaacuterios enganos e

afirmando em siacutentese ldquoPois se eacute possiacutevel apresentar uma imagem falsa do orientalismo do

cristianismo e do imperialismo britacircnico natildeo seria tatildeo obviamente errado apresentar de modo

semelhante uma falsa imagem do islatilde da histoacuteria aacuterabe ou da difiacutecil situaccedilatildeo dos palestinosrdquo

(IDEM IBIDEM 330-331) fazendo referecircncia agraves posiccedilotildees por Said defendidas Em suma Irwin daacute

a entender nas entrelinhas que a politizaccedilatildeo de um criacutetico literaacuterio no caso Said tornou a obra

Orientalism um intento mal construiacutedo como ferramenta para sustentaccedilatildeo de posiccedilotildees poliacuteticas

condenando todo seacuterio estudo que envolve o orientalismo Ateacute entatildeo muitos outros

pesquisadores e eruditos atacaram Said bem como tantos outros o admiravam e o defenderam

Todavia com a apresentaccedilatildeo desta disputa quero aqui destacar um fator iacutempar que natildeo

necessariamente se prende agrave contenda mas que encobre o toacutepico de modo geral

34 Irwin destaca alguns erros ldquoOrientalismo daacute a impressatildeo de um livro escrito agraves pressas Eacute repetitivo e conteacutem

muitos erros factuais Said menciona lsquoPedro o Veneraacutevel e outros orientalistas cluniacensesrsquo Que outros

orientalistas cluniacenses Seria interessante conhecer seus nomes (Mas naturalmente a ideia de que houvesse toda

uma escola de orientalistas cluniacenses eacute absurda Pedro o Veneraacutevel trabalhou sozinho) Como Bernard Lewis

ressaltou Said faz com que exeacutercitos muccedilulmanos conquistem a Turquia antes de conquistarem o norte da Aacutefrica

Isso realmente sugere uma ignoracircncia espantosa da histoacuteria do Oriente Meacutedio da mesma forma que sua crenccedila

quanto a terem a Gratilde-Bretanha e a Franccedila dominado a regiatildeo oriental do Mediterracircneo a partir do final do seacuteculo

XVIIrdquo (IRWIN 2006 329)

91

Com a discussatildeo entre os orientalistas e seus inimigos o importante eacute destacar natildeo

apenas as dificuldades que envolvem todo e qualquer estudo comparado entre Ocidente e

Oriente mas o fato de que eacute da natureza do proacuteprio estudo comparado que haja divergecircncias

A divergecircncia e o erro satildeo de fato disposiccedilotildees naturais dos estudos comparados sem os quais

natildeo seria possiacutevel sequer dar iniacutecio agrave discussatildeo ou desenvolver qualquer linha de raciociacutenio

preparatoacuteria Soacute eacute possiacutevel falar em estudos comparados porque houve de antematildeo a percepccedilatildeo

de uma divergecircncia Mais ainda a necessidade do momento e os acasos eventuais direcionam

os estudiosos para um ou para outro lado Assim como Said saiu em defesa da Palestina durante

um periacuteodo no qual os conflitos haviam se asseverado em decorrecircncia da expulsatildeo das forccedilas

de paz das Naccedilotildees Unidas em 1967 tambeacutem outros pensadores em outros momentos da histoacuteria

foram motivados por acontecimentos histoacutericos sejam eles de guerra ou de paz poliacuteticos

econocircmicos ou religiosos Como por exemplo as diversas manifestaccedilotildees de revolta e

indignaccedilatildeo de Theodor Wiesengrund Adorno e Gershom Scholem apoacutes Auschwitz ou as

anaacutelises polecircmicas de Slavoj Žižek das revoltas do subuacuterbio de Londres e da Primavera Aacuterabe

Contudo algumas deacutecadas antes da publicaccedilatildeo da obra de Said precisamente durante a

deacutecada de 1950 o Departamento de Filosofia da University of Hawairsquoi at Mānoa havia

alavancado uma seacuterie de trabalhos a respeito dos fundamentos e procedimentos dos estudos

comparados Eacute preciso considerar que proacuteprio departamento jaacute havia sido estruturado entre

1930 e 1940 com o objetivo de suprir a lacuna que havia a respeito dos estudos comparados na

filosofia A primeira East-West Philosophers Conferece em 1939 ditou o tom pelo qual se

tornaria possiacutevel falar abertamente alguns anos mais tarde de uma filosofia comparada

intercultural Ali natildeo escapou a ideia de que foi justamente por meio do ldquoerrordquo que se

estabelecia o diaacutelogo entre fronteiras Em outras palavras este diaacutelogo nascia jaacute sempre de um

conflito das fronteiras A hipoacutetese de consenso eacute explorada neste sentido apenas mediante a

assunccedilatildeo de certa ignoracircncia parcial e sopesando ainda as variaccedilotildees de interpretaccedilatildeo

92

O rigor filosoacutefico que direcionou as primeiras tentativas da filosofia comparada em

confrontar as tradiccedilotildees sapienciais ocidentais e orientais permitiu a instauraccedilatildeo de uma postura

cuidadosa e quase mesmo analiacutetica do problema35 Com isto foi possiacutevel comeccedilar a pensar de

que forma elementos do pensamento oriental e da filosofia ocidental poderiam convergir ou

divergir e quais as contribuiccedilotildees que este tipo de comparaccedilatildeo pode trazer aos problemas da

contemporaneidade Todavia como anos mais tarde discutiriam Said Irwin e outros natildeo se

pode desprezar o fato de que nada escapa aos entrelaccedilamentos ldquoirrastreaacuteveisrdquo das relaccedilotildees entre

Ocidente e Oriente Neste sentido embora qualquer comprovaccedilatildeo cientiacutefica empaque frente aos

desafios historiograacuteficos natildeo eacute de todo ingecircnuo especular as influecircncias que por exemplo

Platatildeo teria sofrido da sabedoria primitiva de hinduiacutesta e budistas como sustentam diversos

especialistas36 Ou ainda da indagaccedilatildeo acerca de ateacute que ponto o Aristoacuteteles que conhecemos

natildeo foi orientalizado por Al-Farabi (صر ون ن محمس اب ی محمس ب اراب Abū Naṣr Muḥammad ibn ف

Muḥammad Fārābī) Avicena (ن نا اب ع د ou و لی اب نا ع ع د Pūr Sinɑʼ ou ainda ور نا پ ع د Pur-

e Sina em aacuterabe و لي أب عن ع س ح ن ال بس ب الله ع ن نا ب ع د Abū ʿAlī al-Ḥusayn ibn ʿAbd Allāh

ibn Al-Hasan ibn Ali ibn Sīnā) entre outros filoacutesofos da tradiccedilatildeo aacuterabe Sem contar os

sincretismos que permearam a filosofia do helenismo tardio em Alexandria onde pagatildeos

judeus cristatildeo e mulccedilumanos travavam interminaacuteveis disputas teoacutericas (e natildeo apenas teoacutericas)

a respeitos dos fundamento filosoacuteficos e teoloacutegicos religiosidade momento no qual fica difiacutecil

empreender uma anaacutelise pormenorizada de quem influenciou quem quando o quanto e como37

35 Charles A Moore ponderou no trabalho Some Problems of Comparative Philosophy (1951) a dificuldade em

posicionar as doutrinas orientais em um grupo homogecircneo como podia ser feito com a ocidentais apontando ainda

para o cuidado em evitar as caracterizaccedilotildees e comparaccedilotildees a partir de tendecircncias mais gerais (cf MOORE 1951 67)

Kwee Swan Liat escreveu ainda em Methods of Comparative Philosophy (1951) que ao menos sete esferas de

aplicaccedilatildeo metodoloacutegica devem ser previamente levadas em consideraccedilatildeo (aproximaccedilatildeo filoloacutegica histoacuterica

comparativa formal-valorativa psicoloacutegica fenomenoloacutegica e socioloacutegica-antropoloacutegica) avaliando uma por

uma e propondo por conseguinte uma oitava aproximaccedilatildeo total-integrativa (cf KWEE SWAN LIAT 1951 10ss) 36 Estas hipoacuteteses satildeo levantadas por Graham Parkes na introduccedilatildeo de Heidegger and Asian Thought (1987) (cf

PARKES 1987 1) 37 Este ponto especiacutefico acerca das contendas do periacuteodo heleniacutestico foram sobremaneira bem expostas por Jean

Pepiacuten no escrito intitulado Heacutelleacutenisme et christianisme no volume de Franccedilois Chacirctelet La Philosophie v 1 De

Platon agrave Saint Thomas Paris Marabout 1995

93

Falar efetivamente de uma filosofia comparada intercultural todavia pressupotildee outra

perspectiva aquela na qual ambas as tradiccedilotildees estatildeo culturalmente niacutetidas e bem delineadas

(ainda que por meio de caracterizaccedilotildees vulgares pouco precisas ou mesmo caricatas) e satildeo

entendidas como exponencialmente distintas Entretanto as mesmas dificuldades permanecem

Com isto quero dizer fica difiacutecil afirmar ateacute que ponto um lado compreendeu o outro de modo

suficiente e satisfatoacuterio sendo possiacutevel indagar ainda se as apropriaccedilotildees natildeo se deram mediante

interpretaccedilotildees equivocadas ou leituras transviadas sobretudo quando natildeo haacute domiacutenio pleno dos

idiomas envolvidos

Estas asseveraccedilotildees tomaram conta de muitos pensadores no decorrer da histoacuteria da

humanidade Ateacute onde eacute possiacutevel investigar dois momentos marcam o iniacutecio da relaccedilatildeo

expliacutecita (e natildeo meramente impliacutecita como no caso dos primeiros filoacutesofos gregos de Platatildeo e

de Aristoacuteteles) entre Ocidente e Oriente na filosofia a apropriaccedilatildeo latina durante a Idade Meacutedia

dos escritos aacuterabes do Oriente Meacutedio38 e a interlocuccedilatildeo e introspecccedilatildeo da tradiccedilatildeo do Extremo

Oriente (sobretudo chinesa em um primeiro momento) na filosofia alematilde dos seacuteculos dezessete

e dezoito Aqui interessa especialmente o diaacutelogo com o Extremo Oriente e como ele natildeo se

encerrou no mero intercacircmbio de tradiccedilotildees fomentando um movimento de reversatildeo no qual os

orientais por sua vez tambeacutem abriram interlocuccedilatildeo direta com o pensamento ocidental

introspectando a filosofia e desenvolvendo ao seu modo formas de reflexatildeo nos mesmos

moldes da estrutura categoacuterica ocidental mas partindo dos princiacutepios orientais ainda que em

certa medida (como se veraacute) tais princiacutepios por vezes comunguem em muitos aspectos de

elementos e direcionamentos comuns aos ocidentais e por vezes natildeo Para isto eacute preciso

investigar brevemente a gecircnese desta relaccedilatildeo e como ela tem iniacutecio

38 Sobre este toacutepico que natildeo seraacute abordado aqui confira W Raven e A Akasoy (eds) Islamic Thought in the

Middle Ages Studies in Text Transmissions and Translations in Honour of Hand Daiber Leiden Brill 2008 D

Calma Eacutetudes sur le premier siegravecle de lrsquoaverroisme latin approches et textes ineacutedits Turnhout Brepols 2010

entre outros

94

A despeito da culminaccedilatildeo das luzes no periacuteodo moderno diversos temas obscuros

perpassaram o seacuteculo dezessete sobretudo aqueles motivados pelas missotildees catequeacuteticas

jesuiacutetas na China que inevitavelmente influenciaram o ambiente intelectual da eacutepoca 39

Independente dos transtornos causados pelos europeus em suas incursotildees tambeacutem na Europa

os problemas apareceram Quando os documentos acerca das tradiccedilotildees chinesas de pensamento

desembarcaram no continente europeu despertaram imediato interesse em diversos estudiosos

Contudo tampouco foi ameno o iniacutecio deste diaacutelogo O caso mais draacutestico se deu em

1723 quando Christian Wolff fugiu de Halle an der Saale em Sachsen-Anhalt na Alemanha

em decorrecircncia de uma seacuterie de perseguiccedilotildees despertadas por um discurso por ele pronunciado

dois anos antes sob o tiacutetulo Oratio de Sinarum philosophia practica (1721) O motivo era

polecircmico e suscetiacutevel de distintas interpretaccedilotildees Wolff afirmara que ldquoA mesma autoridade que

possui os ditos e feitos de Cristo possui tambeacutem Confuacutecio para os chineses Moiseacutes para os

judeus e Mohammed para os turcosrdquo (WOLFF 1985 117) Embora Wolff tenha impressionado

grande parte de seus ouvintes com o teor apaixonado de sua preleccedilatildeo tal comparaccedilatildeo redundou

em acirradas criacuteticas por diversos professores e eruditos que acompanhavam a fala e a

interpretaram como uma espeacutecie de ateiacutesmo mais ou menos mitigado Estas acusaccedilotildees todavia

natildeo eram fruto apenas da sinofilia de Wolff mas advinham jaacute de seu confronto com colegas

pietistas da Universidade de Halle devido agrave inclinaccedilatildeo bastante evidente para um pensamento

racionalista e secular40

39 Sobre as missotildees jesuiacutetas confira Wenzhao Li Die christliche China-Mission im 17 Jahrhundert Stuttgart

Franz Steiner 2000 Acerca do caso especiacutefico do diaacutelogo com a filosofia alematilde confira ainda Antonio Florentino

Neto Von der Interpretation zum Gespraumlch Das chinesische Denken in deutschen Philosophie Saarbruumlcken

SVH 2013 Florentino Neto ainda comenta que as missotildees tiveram iniacutecio ainda no seacuteculo dezesseis tendo

comeccedilado no Japatildeo e soacute entatildeo atingido a China no seacuteculo dezessete (cf FLORENTINO NETO 2009 41) 40 Os interesses de Wolff pela China bem como pelo racionalismo paulatinamente aparecem em seus escritos

desde a influecircncia direta de Leibniz ateacute a leitura dos tratados dos jesuiacutetas a respeito da China Menccedilotildees ao

pensamento chinecircs e o peso da admiraccedilatildeo que nutria por Reneacute Descartes satildeo evidentes em seus trabalhos a partir

de 1721 (cf LACH 1953) A despeito dos interesses de Wolff pelo pensamento chinecircs sobretudo acerca dos temas

morais constata-se que ele considerava o cristianismo moralmente superior e mais bem desenvolvido (cf KANAMORI

1997 302-303)

95

A hipoacutetese de que a natureza comum do ser humano possibilita o discurso intercultural

nasce sobretudo da comunhatildeo entre uma radicalizaccedilatildeo quase miacutestica do racionalismo moderno

e o impacto causado por escritos de ordem semelhante embora com princiacutepios e fundamentos

distintos Aleacutem de Wolff tambeacutem Nicolas Malebranche e Gottfried Leibniz se dedicaram agraves

leituras do material trazido pelos jesuiacutetas no mesmo periacuteodo Malebranche compocircs em 1707 o

escrito Entretien drsquoun Philosophe Chreacutetien et drsquoun Philosophe chinois sur lrsquoexistence et la

nature de Dieu por meio do qual mais tarde aproveitou para se livrar das acusaccedilotildees de ser um

ldquospinozistardquo Malebranche ainda encarou uma acirrada disputa acerca da condenaccedilatildeo do Papa

Clemente XI agraves missotildees jesuiacutetas sustentando posiccedilotildees bastante polecircmicas em seu diaacutelogo

Malebranche levanta em sua obra a questatildeo fundamental acerca da entificaccedilatildeo do deus

cristatildeo instigando a pergunta acerca do infinito que eacute respondida pelo filoacutesofo chinecircs da

seguinte maneira ldquoEstou convencido de que quando penso sobre o infinito estou muito longe

de pensar qualquer coisa Mas entatildeo eu penso em um tal ser individual e determinado Agora

o Deus que vocecircs adoram natildeo eacute assim um ser individual e particularrdquo (MALEBRANCHE 1708

17) As preocupaccedilotildees de Malebranche caminham no sentido de articular ser e ente no problema

da ontologia do cristianismo Quando Leibniz escreve seu Discours sur la theacuteologie naturelle

des Chinois (1716) ele o faz justamente tendo em vista repetidos pedidos de esclarecer pontos

levantados por Malebranche apoacutes o escrito ter sido enviado a ele por Nicholas Reacutemond41

Eacute possiacutevel considerar que Leibniz foi o que se devotou com mais afinco agrave tradiccedilatildeo

chinesa Ele teria se envolvido principalmente com o direcionamento praacutetico da sabedoria

chinesa profundamente norteada pelo propoacutesito de melhorar a si mesmo e agrave sociedade por meio

da noccedilatildeo confucionista de cultivo de si (修身 xiushen) no sentido propriamente moral42

41 Leibniz trocou extensa correspondecircncia com os missionaacuterios jesuiacutetas a respeito da filosofia chinesa aleacutem de

apresentar comentaacuterios pontuais em sua Novissima Sinica (1697) Contudo eacute no Discours que suas ponderaccedilotildees

mais seacuterias e cuidadosas satildeo delineadas e manifestas (cf KANG 2009 6-8) 42 Mais especificaccedilotildees sobre este tema podem ser encontrados em Karyn T Lay Introduccedilatildeo agrave filosofia chinesa

Trad Saulo Alencastre Satildeo Paulo Madras 2009

96

Leibniz escreve em seu discurso ldquoMas quem poderia pensar que houvesse na terra um

povo que superasse os nossos aspectos da vida cultural Se formos iguais nos modos de

produccedilatildeo somo superiores nas ciecircncias teoacutericas mas inferiores na filosofia praacuteticardquo (LEIBNIZ

1979 11) concluindo que ldquo() somos inferiores na aacuterea da eacutetica na poliacutetica e na vida dos

haacutebitos cotidianosrdquo (IDEM IBIDEM) A interpretaccedilatildeo de Leibniz exalta a capacidade dos chineses

em se organizarem e valorarem as tensotildees promovidas pelo campo social com base no cultivo

de si e ainda identificando o ldquosirdquo ao povo em geral Importante eacute ressaltar natildeo apenas desta

breve sentenccedila ilustrativa mas a partir de uma visatildeo mais ampla de suas reflexotildees o profundo

interesse em preencher lacunas a respeito da proveniecircncia intelectual de certos problemas

filosoacuteficos

Anos depois tambeacutem Georg W F Hegel Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche

nutririam interesses pelo Oriente43 Contudo a resposta propriamente oriental a respeito do

intercacircmbio filosoacutefico se daria apenas na virada do seacuteculo dezenove para o seacuteculo vinte Este eacute

o momento no qual a filosofia comparada intercultural comeccedila a ganhar corpo precisamente

com a abertura poliacutetica e intelectual do Japatildeo e o desenvolvimento da chamada Escola de

Filosofia de Kyōto44 Embora natildeo haja tempo nem espaccedilo para abordar de maneira mais

cuidadosa os enlaces teoacutericos e praacuteticos da Escola de Kyōto escrutinando as estruturas de

pensamento de cada um de seus primeiros membros (e ainda de seus membros tardios) gostaria

aqui de destacar alguns aspectos fundamentais direcionados por duas questotildees a primeira

sustentando o porquecirc a filosofia tem iniacutecio propriamente acadecircmico no Extremo Oriente e

precisamente no Japatildeo e a segunda indagando como (ou de que modo) isto acontece Uma

hipoacutetese necessariamente leva agrave outra e isto pode ser facilmente observado

43 Um panorama mais especiacutefico das aproximaccedilotildees pode ser visto em Florentino Neto 2009 44 Em minha dissertaccedilatildeo de mestrado jaacute havia explanado os movimentos histoacutericos que levaram agrave abertura do Japatildeo

e ao surgimento da filosofia japonesa moderna ou contemporacircnea Uma bibliografia mais completa acerca do tema

pode ser extraiacuteda das obras de referecircncia William Beasley The Meiji Restoration (Stanford Stanford UP 1972) e

The Rise of Modern Japan (New York St Matinrsquos Press 1995)

97

Em primeira matildeo sustento que os motivos que proporcionaram o surgimento de uma

ldquoescola filosoacuteficardquo no Japatildeo modernizado estatildeo intimamente ligadas com sua introspecccedilatildeo da

tradiccedilatildeo oriental precedente Em palavras mais simples a maneira pela qual os japoneses

compreenderam e sintetizaram as principais linhas de pensamento orientais (hinduiacutesmo

budismo confucionismo e daoiacutesmo) culminando no chamado budismo zen foi sem embargo

a chave para absorver a filosofia ocidental Em segunda matildeo sustento ainda que a filosofia

japonesa nasce cresce e se estabelece mediante duas perspectivas (justamente os ldquoparadigmasrdquo

anteriormente abordados na tese) metafiacutesica e negatividade em decorrecircncia do florescimento

do zen no Japatildeo Por fim argumento que justamente pelo entrelaccedilamento de metafiacutesica

negatividade e o pensamento do Extremo Oriente que nasce a uacutenica filosofia possiacutevel para o

momento histoacuterico pelo qual passava o Japatildeo e com isto abre-se uma pertinente chave de

leitura para o momento que agora mesmo atravessa a filosofia contemporacircnea

Portanto inicialmente eacute essencial destacar a singularidade do budismo zen em relaccedilatildeo

agraves tradiccedilotildees precedentes Existem muacuteltiplas maneiras pelas quais eacute possiacutevel empreender esta

tarefa Acredito ser plausiacutevel direcionar este toacutepico mediante um problema especiacutefico qual seja

da fundamentaccedilatildeo uacuteltima da realidade a partir da meditaccedilatildeo a respeito da questatildeo da vacuidade

entendida como śūnyatā (शनयता)

A ideia de śūnyatā deriva do budismo indiano primitivo Relatos de reflexotildees em torno

ao problema do fundamento da realidade aparecem (como jaacute havia exposto na introduccedilatildeo desta

tese) desde os cacircnones Pāḷi e satildeo expressos de maneira mais clara e niacutetida no budismo mahāyāna

principalmente no Sūtra do Coraccedilatildeo (Prajntildeāpāramitā Hṛdaya परझञापारनमताहरदय) passando pela escola

mādhyamaka de budismo indiano e ainda nos Versos Fundamentais sobre o Caminho do Meio

(Mūlamadhyamaka-kārikā मलमधयमककाररका) de Nāgārjuna (िागारि) onde foi apresentada de maneira

mais profunda e sistemaacutetica

98

Algumas interpretaccedilotildees do escrito de Nāgārjuna destacam o śūnyatā como constituiccedilatildeo

da totalidade da realidade enfatizando que isto significa uma muacutetua dependecircncia (pratītya-

samutpāda परतीतयसमतपाद) de todas as coisas de todas aquelas que possuiriam existecircncia individual

ou substancial e ateacute da proacutepria ideia de nada o que significa propriamente uma anulaccedilatildeo de

qualquer Ente Supremo ou mesmo qualquer verdade absoluta45

Quando os ensinamentos do budismo indiano chegam agrave China e no Japatildeo alguns

princiacutepios fundamentais satildeo radicalizados por ambas as naccedilotildees Existem vaacuterias hipoacuteteses

conforme as quais eacute possiacutevel indagar os motivos desta radicalizaccedilatildeo Alguns consideram que a

doutrina radical do budismo se deve ao gecircnio do monge Boddidharma embora outros

argumentem que o motivo foi o encontro com o daoiacutesmo e o neoconfucionismo A questatildeo pode

permanecer suspensa sem que isto afete a compreensatildeo das bases e dos caminhos do budismo

zen Ao que concerne propriamente agrave introspecccedilatildeo deste conceito fundamental na filosofia

japonesa contemporacircnea (sem embargo o ponto ao qual quero chegar) existem tambeacutem

inuacutemeras controveacutersias embora haja ainda certos pontos solidamente estabelecidos e

mutuamente consentidos que se pode explorar com o intuito de apresentar o problema

O expoente da Escola de Kyōto que pela primeira vez explorou de maneira sistemaacutetica

a questatildeo e a colocou via uma formulaccedilatildeo filosoacutefica foi Kitarō Nishida (西田 幾多郎) Sua

biografia eacute repleta de elementos que o fariam parecer ou bem um rebelde visionaacuterio ou bem

um precoce e intempestivo intelectual permeado por desacordos com o sistema Sem embargo

muitos pesquisadores descreveram com minuacutecia os percalccedilos de sua biografia Por isto natildeo eacute

de todo liacutecito perder muito tempo aqui descrevendo seu percurso pessoal Gostaria apenas de

atentar para alguns pontos sobremaneira importantes no que tange agrave formaccedilatildeo intelectual de

Nishida

45 Este ponto eacute melhor analisado por Michael Barnhart que considera que de acordo com Nāgārjuna ldquo() natildeo se

pode sustentar nenhuma feacute na realidade ou princiacutepio transcendente nem nenhuma razatildeo humana pode pretender

independecircncia de nenhum tipo ()rdquo (BARNHART 1994 649)

99

Em primeiro lugar Nishida viveu em meio agrave restauraccedilatildeo Meiji (1868-1912) um periacuteodo

que divide a histoacuteria do Japatildeo entre preacute-moderna e moderna no qual a sociedade feudal entra

em decliacutenio e a naccedilatildeo eacute ocidentalizada pela forccedila maior da pressatildeo do Departamento de Estado

Norte-Americano A evidecircncia de que o ensino japonecircs estava defasado frente aos desafios do

novo mundo levou seus governantes a implementarem um sistema educacional semelhante ao

ocidental sendo neste periacuteodo fundadas as primeiras universidades japonesas Nishida

frequentou tais universidades embora tivesse seu proacuteprio percurso intelectual independente

tendo a oportunidade de estudar com Raphael von Koumlber professor russo-alematildeo convidado

para ministrar aulas de filosofia no Japatildeo Com Koumlber Nishida estudou a histoacuteria do

cristianismo (com ecircnfase nas influecircncias do paganismo de Plotino) aleacutem da filosofia criacutetica de

Immanuel Kant e da esteacutetica claacutessica Eacute preciso ponderar ainda que Nishida lia com fluecircncia o

francecircs o alematildeo e o inglecircs tendo acesso integral agraves principais obras da filosofia ocidental Por

outro lado o mesmo estudante dedicado era ainda um pensador radical que encontrou na

tradiccedilatildeo do zen budismo um rumo para suas inquietaccedilotildees

Quando Nishida se aproxima do zen budismo e comeccedila a praticar mediaccedilatildeo o impacto

da destruiccedilatildeo dos meacutetodos convencionais de ensino o afeta largamente ponderando sobretudo

que ele jaacute havia abandonado a escola primaacuteria por desentendimentos com o regime educacional

Um artigo de Lothar Knauth intitulado Life is Tragic The Diary of Nishida Kitaro (1965)

destaca uma passagem do diaacuterio de Nishida onde eacute possiacutevel observar sua postura conforme suas

proacutepria palavras

Faccedila sua proacutepria mente e depois disto natildeo dependa dos outros

Natildeo acredite indiscriminadamente nas palavras das pessoas

Natildeo fale de assuntos que ainda natildeo foram amadurecidos

Natildeo desperdice tempo precioso com fofocas ociosas

A lei da mateacuteria de leitura ler pensar escrever

100

Se vocecirc ainda natildeo terminou de pensar sobre um assunto

natildeo mude para outro

Se vocecirc natildeo terminou de ler um livro ateacute o fim

natildeo pegue outro

Non multa sed multum

Diaacuterio Ano Novo 1897 (NISHIDA apud KNAUTH 1965 337)

O trecho do diaacuterio aponta para um jovem estudioso preocupado com o rigor a tensatildeo

proveniente do impacto surtido pelas leituras Knauth expotildee consecutivamente um outro trecho

do diaacuterio este datado de 1 de julho de 1945 jaacute no final da vida de Nishida que diz

simplesmente ldquoEscurecendo nublado vinte grausrdquo (IDEM IBIDEM) A intenccedilatildeo de Knauth com

isto eacute mostrar a profunda introspecccedilatildeo redundante de um amadurecimento especulativo

proveniente de anos de meditaccedilatildeo Contudo ao que interessa ao propoacutesito do toacutepico vale

salientar que mesmo em um conturbado espiacuterito jovem havia jaacute sempre a necessidade de forccedilar

uma ldquoaquietamentordquo da mente uma busca por um lugar silencioso no qual prevalece a maacutexima

non multa sed multum natildeo muito mas bastante

Entre 1891 e 1897 (a ano da primeira citaccedilatildeo) Nishida praticou incessantemente a

meditaccedilatildeo zen havendo tambeacutem contribuiacutedo para uma revista do secto do Budismo da Terra

Pura Sua transformaccedilatildeo efetiva se daria em 1903 onde uma draacutestica revoluccedilatildeo de seu

entendimento abriria caminho para dar iniacutecio ao seu pensamento efetivo

O homens natildeo podem pensar em morrer natildeo podem ter grandes pensamentos ambos

Kawai e Gordon jaacute disseram isto Tentei pensar em mim mesmo morto aos trinta e um

de dezembro de meu trigeacutesimo quinto ano mas entretanto por mais que tentasse natildeo

podia pensar sobre isto seriamente Natildeo importa o quanto eu pense na morte eu natildeo

consigo me fazer esquecer o mundo (ID IBID 341)

101

Para Knauth este trecho evidencia uma iluminaccedilatildeo por meio da ideia de morte miacutestica e

renascimento O resultado imediato da iluminaccedilatildeo ao contraacuterio do que poderia parecer coerente

aos olhos ocidentais daacute-se na publicaccedilatildeo imediata de um artigo onde Nishida afirma ldquoEu

estava errado em usar o Zen em consideraccedilatildeo ao conhecimento Eu deveria tecirc-lo usado para o

espiacuterito e alma Ateacute eu comeccedilar a sentir pela visatildeo eu natildeo pensarei nem em filosofia nem em

religiatildeordquo (ID IBID 342) Este momento representa uma iluminaccedilatildeo justamente pelo fato de que

haacute sem embargo a assunccedilatildeo de uma correta postura mas com um propoacutesito enganoso ndash a busca

pelo conhecimento havia posto em xeque absolutamente todos os anos dedicados agrave meditaccedilatildeo

era necessaacuterio portanto comeccedilar novamente

Conforme Knauth Nishida iraacute se preparar nos proacuteximos anos para exprimir o potencial

introspectado durante sua iluminaccedilatildeo Trecircs pontos satildeo neste momento fundamentais O

primeiro eacute a leitura profundamente marcante para Nishida de Mestre Eckhart46 O segundo eacute

o falecimento de sua filha Yūko viacutetima de um ataque de bronquite O terceiro (diretamente

ligado ao segundo) eacute sua luta contra o cigarro Em 1923 Nishida escreve ldquoDeste dia em diante

eu morri para mundo Eu vivo em minha proacutepria filosofia Tudo sacrificado tudo sacrificado

Profunda impressionante experiecircnciardquo (ID IBID 344) e em 1927 ldquoAgrave tarde eu estava sozinho

na casa Pensamento quietos Quietamente eu passei metade do dia Eu natildeo fumei nem sequer

um cigarro Renascimento despertado de um sonho ruim De uma aacutervore podre de alguma

maneira um novo broto de vida pode florescer Hoje eu estava quase felizrdquo (ID IBID) O motivo

pelo qual Knauth intitula seu artigo com a expressatildeo Life is Tragic adveacutem justamente desta

postura de Nishida conforme a qual a vida humana natildeo passaria de preocupaccedilotildees e problemas

46 Nishida inicia a leitura de Eckhart em 1907 Seria interessante ao propoacutesito da tese que houvesse uma explanaccedilatildeo

maior e mais cuidadosa do pensamento de Eckhart sobretudo no segundo capiacutetulo onde seu posicionamento eacute

fundamental para o desenvolvimento do neoplatonismo e da miacutestica Contudo esta difiacutecil tarefa tornaria o percurso

da tese demasiado longo e cansativo podendo desviar a atenccedilatildeo primordial do trabalho Todavia possuo a intenccedilatildeo

de desdobrar este toacutepico em um trabalho futuro

102

A despeito de um aparente pessimismo o que pode ser destacado do percurso intelectual

e pessoal de Nishida eacute a profundidade com qual ele sentiu o peso da vida A doutrina buacutedica do

sofrimento eacute por ele absorvida de maneira natildeo soacute transcendente mas ainda imanente Os

escritos de Nishida revelaratildeo natildeo apenas um caminho filosoacutefico no qual se imbricam a tradiccedilatildeo

sapiencial oriental e a filosofia ocidental mas a descriccedilatildeo de uma experiecircncia vital na qual pulsa

a forccedila do pensamento especulativo Por esta e outras razotildees Nishida havia sido nomeado com

o nome laico-budista ldquosunshinrdquo uma polegada de mente

A produccedilatildeo propriamente filosoacutefica de Nishida eacute tanto mais densa quando suas reflexotildees

pessoais anotadas em seu diaacuterio contudo relativamente mais faacuteceis de serem abordadas devido

agrave sistematicidade que permeia os escritos A despeito de suas incompatibilidades com o sistema

de ensino sua carreira acadecircmica foi coroada em 1894 quando recebeu o tiacutetulo de licenciado

em filosofia com uma tese acerca da causalidade em David Hume culminando no professorado

junto agrave Universidade Imperial de Kyōto em 1913 Neste iacutenterim dedicou-se ao desdobramento

das bases de sua filosofia que teria sido divulgada de maneira mais consistente na obra que

havia publicado em 1911 sob o tiacutetulo Zen no kenkyū (善の研究 Investigaccedilatildeo sobre o bem) A

obra mais conhecida de Nishida busca o autodespertar o que significa uma visatildeo dos

fenocircmenos que compreendem a experiecircncia pura evidente desde a movimentaccedilatildeo de uma

loacutegica toacutepica O termo ldquoloacutegica toacutepicardquo eacute propositalmente ambivalente Por um lado indica uma

loacutegica do espaccedilo do lugar por outro denuncia como esse lugar (locus) revela uma locuccedilatildeo um

discurso Eacute neste lugar que se desenvolvem os limites do pensamento Relatos de alunos de

Nishida comentam que ele costumava desenhar no quadro negro trecircs esferas uma sobre a outra

na qual a primeira representaria os acidentes circundaacuteveis ao sujeito a segunda os elementos

incapturaacuteveis pela percepccedilatildeo e a terceira (com linhas tracejadas) a impossibilidade final de

limitaccedilatildeo e a esfera do absoluto insuperaacutevel e infinitamente expansiacutevel nomeado com o signo

do nada absoluto (絶対無 Zettaina) sua interpretaccedilatildeo para a noccedilatildeo budista de śūnyatā

103

Com isto Nishida arrancaria da tradiccedilatildeo zen budista uma negatividade total para

fundamentar sua ideia de experiecircncia pura (純粋経験 Junsui keiken) que segundo ele ldquo() se

entende conhecer os fatos como eles simplesmente satildeo (hellip)rdquo (NISHIDA 1990 3) Estaacute presente

nesta formulaccedilatildeo a absorccedilatildeo de Nishida da psicologia funcional de William James onde se

depura a correspondecircncia da percepccedilatildeo com a teoria da verdade Nishida ainda afirma ldquo() o

que usualmente se refere como experiecircncia eacute via de regra adulterado por algum tipo de

pensamento portanto por experiecircncia pura se entende aquele estado no qual se tem experiecircncia

sem qualquer discriminaccedilatildeo deliberativardquo (IDEM IBIDEM) O claacutessico exemplo pelo qual se ilustra

a condiccedilatildeo primaacuteria da pureza da experiecircncia sugere que em uma expressatildeo como ldquoouvi uma

moscardquo haacute um momento no qual o sujeito que ouve a mosca e seu barulho e o ato mesmo de

ouvir ainda natildeo foram distinguidos O fundamento da realidade enquanto nada absoluto para

Nishida encontra-se neste preciso momento neste instante incapturaacutevel na inefabilidade do

indescritiacutevel Entretanto embora a erudiccedilatildeo filosoacutefica de Nishida fosse sobremaneira evidente

bem como sua dedicaccedilatildeo ao zen budismo suas ideias natildeo estavam livres de criacuteticas em ambas

as esferas

Uma das criacuteticas mais ferrenhas a Nishida foi apresentada por Hajime Tanabe (田辺 元)

seu sucessor na caacutetedra de filosofia da Universidade Imperial de Kyōto (em 1928) Ao contraacuterio

de Nishida que nunca havia saiacutedo do Japatildeo Tanabe foi contemplado com um intercacircmbio pelo

governo japonecircs e teve a oportunidade de estudar ao lado de Husserl e Heidegger Sua maior

obra Zangedo to shite no tetsugaku (懺悔道としての哲學 A filosofia como caminho metanoeacutetico

1946) ocupava-se da superaccedilatildeo do inevitaacutevel problema epistemoloacutegico que envolvia a questatildeo

do nada absoluto propondo o termo metanoeacutetica derivado do grego μετανόησις e vertido ao

japonecircs como zangedo (懺悔道) cuja definiccedilatildeo seria nas palavras de Tanabe ldquoum baacutelsamo para

a dor do pesar e ao mesmo tempo o recurso para uma luz absoluta que paradoxalmente torna

vigente a escuridatildeo sem expulsaacute-lardquo (TANABE 1986 2)

104

Em decorrecircncia da necessidade de superaccedilatildeo do proacuteprio pensamento a criacutetica de Tanabe

emerge no sentido de questionar se a filosofia possui condiccedilotildees de enquadrar o autodespertar

religioso conforme exposto por Nishida de maneira sistemaacutetica Conforme Agustiacuten Jacinto

Zavala ldquoResumidamente ao tomar como base o ponto de vista da religiatildeo a filosofia de

Nishida lsquoconverte o trans-histoacuterico absoluto em principium [princiacutepio fundamental] do sistema

e mediante esta determinaccedilatildeo vem [finalmente] ordenar e organizar o histoacuterico relativordquo

(ZAVALA 2013 106) ao passo que ldquoPor isto Tanabe diz lsquoa duacutevida fundamental que albergo

frente a filosofia mestre Nishida se relaciona com este ponto () se a filosofia trata de tomar o

ponto de vista religioso como seu proacuteprio ponto de vista necessariamente deixa de ser si mesmardquo

(IDEM IBIDEM) sintetizando a preocupaccedilatildeo de Tanabe

Os conflitos entre a filosofia a auto-percepccedilatildeo religiosa a partir do estabelecimento do

nada absoluto como fundamento da realidade passaratildeo ainda prelo crivo de diversos

interlocutores sofrendo alteraccedilotildees e recebendo criacuteticas diretas e indiretas Em linhas gerais o

problema de Tanabe estaacute diretamente relacionado com suas compreensotildees estritas da religiatildeo e

da filosofia Em primeiro lugar porque ao contraacuterio de Nishida (que era praticante do zen

budismo) Tanabe partia antes do budismo Jōdo Shinshū (浄土真宗 A Escola da Terra Pura) do

monge Shinran (親鸞)47 Em segundo lugar devido aos interesses de Tanabe pela filosofia da

histoacuteria de Wilhelm Wundt e Heinrich Rickert aleacutem da influecircncia da Lebensphilosophie e o

compromisso histoacuterico que ele alimentou a partir de tais influecircncias Por este motivo era

necessaacuterio tanto para resolver a disputa entre Nishida e Tanabe quanto para superar os estaacutegios

preliminares das discussotildees da Escola de Kyōto reformular as compreensotildees de filosofia e

religiatildeo algo que acontece de maneira somente com Keiji Nishitani (西谷 啓治)

47 Sobre a fundamentaccedilatildeo budista de Tanabe confira Joaquim Antonio Bernardes Carneiro Monteiro ldquoO lsquoNada

Absolutorsquo em Hajime Tanabe uma avaliaccedilatildeo criacuteticardquo In Antonio Florentino Neto e Oswaldo Giacoia Jr (orgs)

O Nada absoluto e a superaccedilatildeo do niilismo Os fundamentos filosoacuteficos da Escola de Kyoto Campinas Phi 2013

155-188

105

Keiji Nishitani eacute talvez o filoacutesofo japonecircs contemporacircneo mais popular entre os

ocidentais O motivo eacute provavelmente o estilo bastante solto e livre de seus ensaios

principalmente os que chegaram traduzidos ao Ocidente ndash precisamente os mais maduros

compostos apoacutes a deacutecada de 1960 como Shūkyo to wa Nanika (宗敎とは何か O que eacute religiatildeo

1961) e Nihirizumu (ニヒリズム Niilismo 1986) Estes mesmos trabalhos sofreram diversas

criacuteticas por parte de colegas japoneses que o acusaram de se afastar dos modos propriamente

orientais de expressatildeo supostamente sugerindo uma indiferenccedila ao idioma vernaacuteculo agraves

tradiccedilotildees e aos projetos de seus antecessores Sobre isto Nishitani teria argumentado que as

lacunas do pensamento japonecircs tradicional sobretudo as idiomaacuteticas impossibilitariam o

alcance do sentido de alguns problemas colocados pela filosofia ocidental motivo pelo qual a

criaccedilatildeo de novas palavras em japonecircs se mostrava absolutamente necessaacuterios48 Sem embargo

os questionamentos impostos pelos novos tempos natildeo se prendiam agraves fronteiras linguiacutesticas e

invadiam o Japatildeo modernizado e ocidentalizado com especial forccedila razatildeo pela qual a

aproximaccedilatildeo com a filosofia sua interiorizaccedilatildeo e reflexatildeo era simplesmente inevitaacutevel

Todavia embora Nishitani tenha realmente pendido para o pensamento filosoacutefico ou para a

maneira pela qual os pensadores ocidentais liam as questotildees conflituosas da contemporaneidade

ao mesmo tempo ele se voltava com ainda maior introspecccedilatildeo para o budismo sobretudo para

o zen Esta ambiguidade intencional do pensamento de Nishitani se revela nas inquiriccedilotildees por

ele levantadas e pelo teor de suas investigaccedilotildees deixando ver claramente sua preocupaccedilatildeo a

respeito do direcionamento reflexivo da filosofia contemporacircnea

48 James Heisig discute esta questatildeo pormenorizadamente quando apresenta o estilo filosoacutefico de Nishitani

Conforme Heisig a influecircncia ocidental absorvida por Nishitani cujas maiores expressotildees foram a esteacutetica de

Immanuel Kant o idealismo alematildeo (especialmente Friedrich W J Schelling) Plotino e o neoplatonismo a

miacutestica de Mestre Eckhart e Francisco de Assis e ainda a hermenecircutica existencial de Wilhelm Dilthey e Martin

Heidegger deixam bastante claro o porquecirc ele subverte e converte os limites e alcances da linguagem Heisig

ainda destaca o momento no qual Nishitani afirma que nos miacutesticos a confluecircncia e a uniatildeo entre religiatildeo e

filosofia alcanccedilaram um ponto elevado despertando seu profundo interesse por tais autores A despeito dos temas

eleitos Heisig considera ainda que por este mesmo motivo o estilo de Nishitani se mostra superior ao de Tanabe

e ao de Nishida (cf HEISIG 2002 233-242)

106

Eacute possiacutevel considerar que o problema com o qual Nishitani se defrontou e que norteou

o andamento geral de seu pensamento mais cuidadosamente desenvolvido possui um ponto de

partido muito bem estabelecido qual seja o problema do niilismo denunciado na virada do

seacuteculo por autores como Friedrich Nietzsche Ernst Juumlnger Fioacutedor Dostoievsky Ivan

Turgeniev entre outros Em Shūkyo to wa Nanika longe de tentar elucidar o sentido da religiatildeo

em termos sistemaacuteticos a despeito do tiacutetulo do escrito Nishitani parece buscar uma imersatildeo na

tensatildeo contraditoacuteria que os seres humanos possuem com a experiecircncia religiosa segundo ele

ldquo() para quem a religiatildeo natildeo eacute uma necessidade precisamente por esta razatildeo ela eacute uma

necessidade Natildeo haacute nenhuma outra coisa sobre a qual se possa dizer o mesmordquo (NISHITANI

1983 1) Sua definiccedilatildeo de religiatildeo se abre a partir da compreensatildeo de uma ldquoauto-despertar da

realidaderdquo cuja explicaccedilatildeo se apoia no termo inglecircs realize segundo ele um termo polissecircmico

que possuem tanto o sentido de actualize (atualizar mas tambeacutem trazer o sentido real como na

expressatildeo actually cujo significado seria na verdade) quanto de understand (compreender)

Nishitani explica ldquo() estou utilizando esta palavra para indicar que nossa habilidade para

perceber a realidade significa realizar (atualizar) a realidade por si mesma em noacutesrdquo (IDEM IBIDEM

5) Esta explicaccedilatildeo apareceria para confrontar o sentido do niilismo que segundo Nishitani

ldquo() se refere agravequilo que torna sem sentido o sentido da vida () sinalizando nada menos do

que fato de que o despertar da nossa existecircncia penetrou em uma profundidade extraordinaacuteriardquo

(ID IBID 4) Em suma Nishitani possui um alvo muito claro lidar com o abismo existencial

que se deixa ver sobremaneira angustiante nos novos tempos aqueles mesmos ldquotempos de

penuacuteriardquo da ldquonoite do mundordquo anunciados por Nietzsche denunciados por Heidegger e que

assombravam os filoacutesofos que se deparavam com a instituiccedilatildeo da morte do pensamento

reflexivo mediante a Era Atocircmica dos desastres ambientais e dos deliacuterios da modernizaccedilatildeo

industrializaccedilatildeo e tecnologizaccedilatildeo do mundo Fatos inegaacuteveis cuja profunda relaccedilatildeo com a

histoacuteria do pensamento torna seu sentido cada vez mais obscuro

107

A forccedila interpretativa que moveraacute o pensamento de Nishitani rumo agraves tentativas de

resoluccedilatildeo dos conflitos passaraacute em primeiro lugar por sua leitura a respeito do problema do

niilismo e sua relaccedilatildeo com a ideia de śūnyatā Quando Nishitani alcanccedila esta abordagem ele

frisa de iniacutecio que ldquo() um dos maiores e mais fundamentais problemas que todas as religiotildees

encaram em nossos tempos eacute sua relaccedilatildeo com a ciecircnciardquo (IDEM IBIDEM 77) O motivo aparenta

ser a incompatibilidade entre o pensamento cientiacutefico e o sentido essencial da vida religiosa

Nishitani entatildeo argumenta de maneira incisiva (e que sintetiza o propoacutesito desta tese no final

das contas)

Uma em cada dez pessoas escuta que a religiatildeo e a ciecircncia tem cada uma seu proacuteprio

domiacutenio e tarefa e que as duas nunca precisaratildeo entrar em conflito caso permaneccedilam

confinadas em suas fronteiras originais Isto eacute inadequado Uma fronteira separa uma

aacuterea da outra e ao mesmo tempo pertence a ambas as aacutereas Os fundamentos do

conflito entre religiatildeo e ciecircncia repousam certamente em tais fronteiras De fato desde

os tempos mais antigos metafiacutesica e filosofia consistiram na exploraccedilatildeo destas

fronteiras entre ciecircncia e religiatildeo (IDEM IBIDEM 77-78)

Nishitani ainda questiona se tais fronteiras podem ser consideradas realmente fronteiras ou natildeo

admitindo que a ciecircncia contemporacircnea natildeo parece se preocupar com a questatildeo A criteacuterio de

verdade objetiva da ciecircncia com o apoio das leis da natureza seria responsaacutevel por de certo

modo menosprezar o conhecimento religioso e mesmo o conhecimento filosoacutefico em

decorrecircncia da verdade cientiacutefica absoluta Mas Nishitani contesta no contrafluxo da tendecircncia

mais geral ldquoMas eacute realmente tatildeo evidente Uma nova maneira de olhar para o absoluto e o

relativo conforme a qual dois absolutos podem se tornar conjuntos impensaacutevel em uacuteltima

instacircnciardquo (ID IBID 78) Para Nishitani o problema vige no fechamento das possibilidades

108

Natildeo haacute aqui uma criacutetica ldquocientofoacutebicardquo mas o levantamento de uma questatildeo qual seja

ldquoNatildeo possuiacutemos uma outra maneira de conceber o relativo senatildeo em termos de estabelecimento

de limites ndash como fazemos por exemplo quando dividimos uma folha de papel em duas ao

traccedilar uma linha nelardquo (ID IBID 79) Nishitani mostraraacute esta possibilidade por meio de sua

interpretaccedilatildeo da ideia de śūnyatā e como ela desvela uma perspectiva que explora os elementos

abandonados pela objetividade cientiacutefica Seja como for eacute possiacutevel considerar jaacute de iniacutecio que

se concentra aiacute toda a potecircncia do diaacutelogo entre metafiacutesica e negatividade apresentado ao longo

desta tese sendo possiacutevel acompanhar Nishitani em uma definiccedilatildeo do conflito das fronteiras

Agora bem quais as saiacutedas ou quais as possiacuteveis chaves de leitura para o problema que

se apresenta a saber a questatildeo do niilismo contemporacircneo Quando emprego aqui o termo

filosofia comparada intercultural tenho em vista a maneira pela Nishitani (entre outros)

exploram as muacuteltiplas significaccedilotildees de distintas tradiccedilotildees culturais em suas convergecircncias e

divergecircncias para se aproximar do problema e propor novos pontos de vista A respeito

especificamente da questatildeo levantada Nishitani utiliza a proacutepria ambivalecircncia do niilismo para

propor uma soluccedilatildeo Seu caminho seraacute resgatar o sentido pelo qual a ciecircncia se apropria das

leis da natureza e desenvolve a tecnologia argumento que eacute precisamente por meio desta

apropriaccedilatildeo que se revelam a medida da liberdade do homem em relaccedilatildeo agraves fronteiras impostas

pelas leis naturais Contudo haacute uma inversatildeo pela qual o controlador se torna o controlado

Conforme Graham Parkes ldquo() a vida humana e o trabalho como um todo se tornam

progressivamente mecanizados e impessoais (nos termos de Heidegger perdemos nossa lsquolivre

relaccedilatildeorsquo com a teacutecnica e estamos lsquoacorrentadosrsquo agrave ela)rdquo explicando ademais que para Nishitani

ldquoA liberdade advinda das leis da natureza que a tecnologia mecanizada nos concede aleacutem do

sentimento concomitante de distacircncia ou separaccedilatildeo do mundo natural levam os seres humanos

a lsquose comportarem como se eles estivessem completamente fora das leis da naturezarsquordquo (PARKES

2013a 103) Sendo assim a uacutenica via possiacutevel eacute restabelecer esta relaccedilatildeo humano-natureza

109

O ponto de apoio de Nishitani para colocar o problema parte da compreensatildeo que

oferece o neoplatonismo e a miacutestica medieval de Deus como nada absoluto (ele cita

especificamente Mestre Eckhart neste ponto) para trazer agrave tona a questatildeo morte-sive-vida

Nishitani evidencia portanto que ldquoEste ponto natildeo pode repousar em um lado mais distante

aleacutem deste mundo e desta vida terrena que possuiacutemos Deve repousar no lado mais proacuteximo

tanto mais proacuteximo quanto nossas vidas ordinariamente devem serrdquo (ID IBID 90) Aproveitando

a perspectiva budista para elucidar este caminho Nishitani esclarece de maneira precisa que

ldquoŚūnyatā eacute o ponto no qual noacutes nos tornamos manifestos de nossa proacutepria talidade (suchness)

como seres humanos concretos como indiviacuteduos com alma e personalidade Ao mesmo tempo

eacute o ponto no qual tudo ao redor se manifesta para noacutes em sua proacutepria talidade (suchness)rdquo (ID

IBID 90)49 Śūnyatā envolve inevitaacutevel e necessariamente este complexo conceito de talidade

(真如 Shinrsquonyo ndash Tathatā तथता) que eacute sem embargo o berccedilo da meditaccedilatildeo oriental

A talidade eacute a via pela qual se extrai a conduccedilatildeo do sistema eacutetico e moral da sociedade

hinduiacutesta primitiva Sua disseminaccedilatildeo no Extremo Oriente eacute carregada por duas tradiccedilotildees quais

sejam o daoiacutesmo e o budismo Os daoiacutestas centram sua noccedilatildeo de ldquoprinciacutepiordquo por meio da noccedilatildeo

de dao (道) e sua relaccedilatildeo com de (德) O famoso Dao De Jing (道德经) bem como a obra do

mestre Zhuangzi (莊子) satildeo os principais responsaacuteveis por colocarem ambos os princiacutepios (dao

e de) e movimento dinacircmico conforme o qual a relaccedilatildeo com natureza natildeo seria entendida nem

como celestial nem como humana mas como ambas sem que uma tenha privileacutegio sobre a

outra ndash e este seria enfim o caminho (dao) da virtude (de) (cf ZHUANGZI 2009 42)

49 Traduzo aqui suchness por talidade com base na ideia de que Nishitani se refere ao conceito budista de Tathatā

(तथता) que em japonecircs se ilustra com o kanji 真如 (Shinnyo) cuja traduccedilatildeo seria ldquorealidade absolutardquo mas natildeo

corresponde ao peso do termo Sobre isto Antonio Morillas escreve que ldquoO termo tathata eacute de difiacutecil traduccedilatildeo

em castelhano Em inglecircs se verte com as expressotildees suchness (a condiccedilatildeo de ser ldquotalrdquo e como se eacute) thatness (o

fato de ser ldquoissordquo que se eacute) e isness (a qualidade de algo que ldquoeacuterdquo sem mais o que eacute e como eacute) () A talidade

[traduccedilatildeo castelhana de tathata] eacute a noccedilatildeo do fato de que a realidade e as coisas e fenocircmenos que a compotildeem satildeo

ldquoassimrdquo ldquotalrdquo e como satildeo que satildeo ldquoissordquo ldquoo que satildeordquo em seu caraacuteter plenamente desnudo na existecircncia luminosardquo

(MORILLAS 2006 167) Pela proximidade com o idioma castelhano opto aqui por adotar a sugestatildeo de Morillas

110

O budismo especialmente o budismo zen absorveria tais ideias com especial forma nos

pensamentos de Kūkai (空海) e Dōgen Zenji (道元禅師) Graham Parkes explica que para Kūkai

duas ideias se configuram essenciais Sokushinjobutsu (即身成仏) a possibilidade de atingir a

iluminaccedilatildeo na vida presente (em contraste ao princiacutepio budista tradicional conforme o qual

seriam necessaacuterias muitas vidas) e Hosshin seppo (発疹 説法 ) o entendimento de que a

personificaccedilatildeo buacutedica eacute desprovida de forma e imagem natildeo permitindo conceitualizaccedilatildeo nem

verbalizaccedilatildeo (cf PARKES 2003 81) A despeito da uniatildeo suscitada pelo daoiacutesmo o budismo

chinecircs do oitavo seacuteculo estava imerso em uma profunda discussatildeo acerca da questatildeo se a

natureza buacutedica podia ser atribuiacuteda somente aos seres sencientes ou tambeacutem agraves miacutenimas

partiacuteculas de poeira Kūkai articula as duas ideias acima mencionadas e interpretas as chamadas

ldquotrecircs intimidadesrdquo (corpo fala mente) do Dainichi Nyorai (木造大日如来坐像) que representa a

revelaccedilatildeo esoteacuterica dos ensinamentos no Budismo para sustentar o muacutetuo pertencimento da

relaccedilatildeo do todo com suas partes assumindo a natureza buacutedica para absolutamente tudo Ele

escreve neste sentido ldquoEssa existecircncia estaacute naquela e aquela estaacute nessa A Existecircncia do Buda

(Mahāvairocana) eacute a existecircncia dos seres sencientes e vice e versa Eles natildeo satildeo idecircnticos mas

satildeo todavia idecircnticos eles natildeo satildeo diferentes mas satildeo todavia diferentesrdquo (KŪKAI 1972 93)

Jaacute para Dōgen a evocaccedilatildeo da conduta zen se daria por meio de uma miacutestica cotidiana

alimentando a noccedilatildeo de que toda atividade eacute expressatildeo da natureza buacutedica Parkes argumenta

que algumas atividades satildeo especialmente ilustrativas como por exemplo preparar a comida

servi-la e come-la Dōgen citaria um trecho do Vimalakīrti Nirdeśa Sūtra (नवमलकीनत निदश सतर) que

diria ldquoQuando somos unos com a comida que comemos somos unos com todo o universordquo

evocando o uso do silecircncio como veiacuteculo para o esclarecimento do śūnyatā como fundamento

absoluto da realidade (cf PARKES OP CIT 84) As praacuteticas rituais natildeo possuiriam todavia

conotaccedilatildeo lituacutergica pontual e direcionada mas antes a totalidade de uma experiecircncia de vida

religiosa

111

Tanto Kūkai quanto Dōgen influenciaram amplamente o pensamento de Nishitani e o

ponto de vista conforme o qual o śūnyatā direciona uma atitude por meio da qual se mostra a

talidade Tanto no daoiacutesmo de Zhuangzi quando no zen budismo de Kūkai e Dōgen estatildeo em

jogo o aspecto formal a aparecircncia (rūpa shiki) da realidade em torno por um lado e a assunccedilatildeo

da dissoluccedilatildeo do fundamento dessa realidade por outro (sua vacuidade śūnyatā kū) Por este

motivo haacute uma muacutetua reciprocidade entre a totalidade e as coisas entre uno e muacuteltiplo Isto eacute

o que permite a participaccedilatildeo e ao mesmo tempo incorporaccedilatildeo da realidade (dharmakāya)

Contudo natildeo seraacute o mero resgate das tradiccedilotildees orientais que forneceraacute a Nishitani a resposta

ao problema no que concerne ao impacto da questatildeo frente aos tempos de niilismo mas sim o

resultado da confrontaccedilatildeo desta tradiccedilatildeo com a filosofia contemporacircnea ocidental ou sem

embargo o confronto entre as fronteiras

Graham Parkes atenta para uma reivindicaccedilatildeo de Nishitani de haver superado em certa

medida o desenvolvimento das filosofias de pensadores como Hegel Nietzsche e Heidegger

(cf PARKES 2013b 189-190) Contudo no cerne desta proposiccedilatildeo estaacute a ideia de que o que foi

superado natildeo foi propriamente o conteuacutedo da meditaccedilatildeo mas a forma da abordagem ou seja

a perspectiva intercultural privilegiada da comparaccedilatildeo filosoacutefica de Nishitani Com o anuacutencio

da morte de Deus e dos tempos de niilismo em Nietzsche ficou evidente um diagnoacutestico da

atividade humana inerente aos valores que a guiam por um lado e a induccedilatildeo ao desespero

suscitado pela projeccedilatildeo cognoscitiva ao ente por outro A saiacuteda de Nietzsche por meio do

ldquogrande antiacutedotordquo da transvaloraccedilatildeo de todos os valores eacute recebida em Nishitani considerando

trecircs ideias chave de sua leitura budista (1) a constituiccedilatildeo do fundamento da existecircncia como

uma experiecircncia aleacutem da relaccedilatildeo entre sujeito objeto por meio do conceito de (referente agrave noccedilatildeo

de dharma धम) (2) a reaccedilatildeo de retorno ao mesmo de toda atividade (a partir do conceito de

karma कम) e a noccedilatildeo de que natildeo haacute nada que exista independente de circunstacircncias e

condicionamento ou a chamada ldquoco-originaccedilatildeo dependenterdquo (o pratītya-samutpāda परतीतयसमतपाद)

112

Portanto o que em Nietzsche seria postulado como destino enquanto o ldquomesmordquo (o ego

fatum nietzscheano) engendrando um ponto de vista criativo em Nishitani seria entendido

desde a ideia do karma Em Nihirizumu Nishitani escreve acerca deste ponto especiacutefico que

ldquoNeste niacutevel fundamental o mundo se move na esfera do mesmo e o mesmo na esfera do

mundo Esta ideia estaacute proacutexima da ideia budista de karma embora em Nietzsche o ponto de

vista do mesmo como destino eacute fundamentalmente criativordquo (NISHITANI 1990 50) Em termos

mais simples de acordo com Parkes ldquo() o que parece um golpe do destino pode ser entendido

antes como uma parte de nossa proacutepria atividaderdquo (PARKES OP CIT 196) O florescimento desta

consideraccedilatildeo se daacute na afirmaccedilatildeo niezscheana do amor fati e da superaccedilatildeo do abismo da grande

suspeita niilista por meio da grande dor pela qual se renasce o que seraacute entendido em Nishitani

a partir do retorno ao abismo onde ldquo() uma vez que algueacutem eacute libertado do abismo a

necessidade se torna um elemento desta vida de liberdade Neste caso necessidade se torna

uma com a criatividaderdquo (NISHITANI OP CIT 52) Entretanto a ressalva de Nishitani consiste que

a afirmaccedilatildeo resultante da superaccedilatildeo do abismo niilista pode ainda ser superar e que a vontade

de poder eacute ainda uma ldquocoisardquo chamada ldquovontaderdquo (cf IDEM OP CIT 234) cuja uacutenica possibilidade

de ser pensada para aleacutem dos fundamentos que redundam no destino como mesmo seria

justamente o ponto de vista do śūnyatā Uma ilustraccedilatildeo possiacutevel de ldquopara onderdquo este ponto de

vista levaria pode ser encontrada quando Nishitani comenta a arte japonesa de arranjo de flores

a chamada Ikebana (生け花) Ali fica niacutetido qual a postura que se assume quando se daacute conda

da vacuidade da realidade uacuteltima e absoluta Nishitani escreve

Desde a perspectiva de sua natureza fundamental todas as coisas no mundo satildeo

lacircminas de grama sem raiacutezes Tal grama entretanto tenho fincado suas raiacutezes no solo

esconde a si mesma em sua fundamental ausecircncia de raiacutezes () sendo cortadas de suas

raiacutezes as flores satildeo feitas pela primeira vez pela manifestaccedilatildeo minuciosa de sua

natureza fundamenta ndash sua falta de raiacutezes (IDEM 2011 1199)

113

Ao fim e ao cabo Nishitani estaacute chamando atenccedilatildeo para uma aprendizagem decorrente da ldquoco-

originaccedilatildeo dependenterdquo a partir da natureza Sobre este ponto e sua relaccedilatildeo com o niilismo

Parkes escreve ldquo() noacutes humanos diferimos de outros entes por meio da possibilidade de nos

tornamos conscientes de nossa proacutepria finitude no estado da niilidade (kyomu) um tipo de

ldquovacuidade ocardquo que eacute uma antecacircmara para a vacuidade criativa (śūnyatā kū)rdquo (PARKES OP

CIT 112) Resumidamente o ponto de vista do śūnyatā se configura para Nishitani a partir da

tradiccedilatildeo do zen budismo oriental e de sua leitura da filosofia ocidental como uma iluminaccedilatildeo

a respeito do fundamento da realidade enquanto vacuidade evidenciado sobremaneira pelo

abismo do niilismo contemporacircneo e que direciona o ser humano para uma vacuidade criativa

na qual sua relaccedilatildeo com as coisas congrega tudo em uma mesma natureza buacutedica ou seja o

lugar onde as flores o arranjo o florista e o ato de fazer o arranjo satildeo a mesma coisa ou o lugar

onde a mosca o anjo Deus e o eu satildeo o mesmo

114

CONCLUSAtildeO

Durante o primeiro semestre de 2011 estava profundamente motivado com a preparaccedilatildeo do

texto final desta tese doutoral Ocupava-me ao mesmo tempo das pesquisas leituras

sistematizaccedilatildeo dos esquemas defesa da versatildeo do final do projeto e dos cursos que iria ministrar

na Universidade Federal do Rio Grande do Norte nos meses seguintes A abordagem agrave histoacuteria

da metafiacutesica agrave tradiccedilatildeo do neoplatonismo e agrave filosofia japonesa contemporacircnea atingiam-me

simultaneamente por meio de muacuteltiplas construccedilotildees conceituais interligadas pela lucidez

provocada mediante a histoacuteria dos efeitos de cada ambiente temaacutetica Contudo ao 11 de marccedilo

daquele ano foi transmitida uma notiacutecia que imediatamente cessou minha produccedilatildeo e

empolgaccedilatildeo com todo e qualquer toacutepico Os jornais incessantemente transmitiam as uacuteltimas

notiacutecias a respeito de um terremoto seguido por um tsunami que havia atingido o Japatildeo e

danificado a estrutura da usina nuclear de Fukushima na cidade de Ōkuma expondo a

comunidade da regiatildeo agrave alarmantes niacuteveis de radioatividade O desastre ambiental seria

considerado algum tempo mais tarde a maior cataacutestrofe nuclear desde Chernobyl em 1986

Evidentemente como havia ocorrido tambeacutem em 2001 durante o ataque terrorista ao

World Trade Center em Nova Iorque as reportagens que chocavam o mundo se tornariam

rapidamente repetitivas e esgotariam o puacuteblico O motivo pelo qual se daria tal neutralizaccedilatildeo e

letargia frente aos fatos foi denunciado por Slavoj Žižek na obra The Year of Dreaming

Dangerously (2012) Ele pondera os eventos destrutivos de 2011 tais quais a Primavera Aacuterabe

e o Occupy Wall Street desde a neutralizaccedilatildeo ideoloacutegica promovida pela miacutedia dando margem

agrave interpretaccedilatildeo conforme a qual os veiacuteculos de comunicaccedilatildeo vigentes aniquilam o potencial

emancipatoacuterio dos eventos por meio da pasteurizaccedilatildeo de sua difusatildeo

115

Žižek destaca o termo da liacutengua persa ldquowar nam nihadanrdquo cujo abstruso significado

seria em linhas gerais ldquomatar algueacutem enterrar seu corpo e plantar flores sobre sua cova para

esconder o cadaacuteverrdquo Para Žižek os meios de comunicaccedilatildeo do capitalismo global destroem a

absorccedilatildeo propriamente humana dos eventos do mundo contemporacircneo exatamente neste

mesmo sentido (cf ŽIŽEK 2012 9) Sem sombra de duacutevidas o mesmo se daria em relaccedilatildeo ao

desastre de Fukushima e hoje trecircs anos depois uma pedra foi posta por sobre o assunto e poucas

pessoas sequer se lembram do ocorrido

Entretanto meu denso envolvimento com a filosofia japonesa natildeo permitiu que os

acontecimentos fossem dissolvidos assim tatildeo facilmente Passei um bom tempo tocado pela

calamidade e mesmo ateacute agora ainda tenho dificuldades em lidar com o assunto As

adversidades emotivas todavia natildeo me impediram de pensar com devoccedilatildeo sobre a questatildeo

pelo contraacuterio estimularam ainda mais o rumo da reflexatildeo filosoacutefica

O ano seguinte seria marcado em meu percurso pessoal pela saiacuteda do paiacutes e realizaccedilatildeo

de estaacutegio sanduiacuteche junto agrave University College Cork (Colaacuteiste na hOllscoile Corcaigh) para

realizar minhas pesquisas sob a supervisatildeo do professor Graham Parkes na Irlanda Parkes

havia publicado no iniacutecio daquele ano um breve artigo intitulado Nuclear Power after

Fukushima 2011 Buddhist and Promethean Perspectives (2012) no qual natildeo apenas analisava

os fatos mas ainda apresentava uma meditaccedilatildeo a respeito de uma filosofia da natureza para

aleacutem das ecologias profundas ou natildeo

Simplificando o assunto o estiacutemulo para o fornecimento de energia nuclear eacute

alimentado pela conclusatildeo de que se trata de uma fonte limpa e autossustentaacutevel em contraste

agrave queima do combustiacutevel e exploraccedilatildeo de recursos foacutesseis ou mesmo aos impactos ambientais

causados pela obstruccedilatildeo de fluxos de aacutegua Aparentemente trata-se de uma soluccedilatildeo emergente

frente ao ainda ineficaz suporte das energias ecologicamente viaacuteveis como a eoacutelica e a solar

116

Parkes pontua sobre isto que ldquoA questatildeo crucial natildeo diz respeito aos meacuteritos relativos

e agraves desvantagens do poder nuclear versus a energia dos combustiacuteveis foacutesseis Antes trata-se

de pensar o que norteia nosso desejo de consumir tanta energia em primeiro lugarrdquo (PARKES

2012 103) O posicionamento diz respeito a um ldquopasso atraacutesrdquo A pergunta eacute o que move no

final das contas o irredutiacutevel e irrefreaacutevel iacutempeto de explorar todos os recursos naturais para

fomentar a manutenccedilatildeo da vida humana na Terra Mesmo com a leitura do escrito eu

particularmente soacute conseguiria compreender o direcionamento proposto por Parkes apoacutes

acompanhar seus seminaacuterios sobre filosofias da natureza entre Ocidente e Oriente no qual

ficariam claras as bases pelas quais ele questionava a conduta contemporacircnea face agrave crise

ambiental

Entretanto quando me deparei com as primeiras leituras oferecidas por Parkes (muitas

das quais constam na bibliografia desta tese) natildeo fui acometido pelo espanto da novidade mas

pela pulsatildeo da comparaccedilatildeo A experiecircncia que jaacute havia acumulado sob a orientaccedilatildeo do

professor Oscar Federico Bauchwitz durante meus anos de pesquisa acadecircmica dedicado agrave

leitura de Nietzsche Heidegger e da tradiccedilatildeo do neoplatonismo e da miacutestica medieval proveu-

me de uma arquitetocircnica meditativa que com a aproximaccedilatildeo com a filosofia oriental apenas

nutriu imediata empatia e introspecccedilatildeo Sendo assim quando congreguei o focirclego e as forccedilas

necessaacuterias para encerrar este trabalho natildeo tinha em mente uma tese levantada de um mero

problema particular mas um longo percurso especulativo que ao longo das paacuteginas aqui

apresentadas tentei descrever da melhor maneira possiacutevel

Sobreveio-me durante os termos finais uma intensa obrigaccedilatildeo de sustentar que a uacutenica

via possiacutevel para enfrentar os problemas filosoacutefico contemporacircneos era a instauraccedilatildeo de um

retorno aos fundamentos por meio da interculturalidade Portanto a conclusatildeo desta tese soacute

pode caminhar rumo agrave elucidaccedilatildeo de quais fundamentos no final das contas satildeo estes que estatildeo

aqui e ali indicados no interior do trabalho

117

Em 1953 Martin Heidegger pronunciou a conferecircncia intitulada Die Frage nach

Technik O escrito eacute talvez uma de suas mais claras expressotildees acerca de sua anaacutelise da

consumaccedilatildeo da histoacuteria da metafiacutesica a instauraccedilatildeo do niilismo europeu e o advento da Era

Teacutecnica Paralelamente durante o mesmo periacuteodo (na verdade em 1954) Nishitani finalizava

a composiccedilatildeo de seu ensaio sobre ldquoNiilismo e Śūnyatārdquo mais tarde incluiacutedo no volume Shūkyo

to wa Nanika abordado aqui ao longo do terceiro capiacutetulo Como foi possiacutevel observar em

Nishitani a saiacuteda do ponto de vista da vacuidade ou nada absoluto demandava a busca por

uma postura interior do ser humano na qual se tornava evidente nada mais senatildeo o elemento

inexplicaacutevel e inexprimiacutevel do fundamento uacuteltimo da realidade que era assumido agora como

oriente para o comportamento humano frente ao colapso do novo mundo A dificuldade inerente

de absorver a proposta de Nishitani todavia eacute ilustrada de maneira praacutetica quando ele aborda

uma questatildeo particular qual seja a relaccedilatildeo entre ser humano e natureza na imagem do jardim

zen Noacutes estamos dentro do jardim e natildeo somos apenas espectadores porque noacutes nos tornamos

parte da real manifestaccedilatildeo da expressatildeo da proacutepria experiecircncia iluminadora do arquiteto do

jardim O jardim eacute meu mestre Zen agora e eacute seu mestre Zen tambeacutem (NISHITANI 1992 55)

Quando Heidegger indica em sua conferecircncia que a essecircncia da teacutecnica natildeo eacute ela mesma nada

teacutecnico ele estaacute em um movimento similar ao de Nishitani chamando atenccedilatildeo para o fato de

que eacute necessaacuterio tambeacutem retornar a algo que natildeo pode ser submetido agrave objetividade cientiacutefica

da relaccedilatildeo sujeito-objeto que sustenta a tecnicizaccedilatildeo do mundo Neste sentido a saiacuteda de

Heidegger eacute ilustrada por meio de um dos conceitos mais enigmaacuteticos de toda sua obra

Gelassenheit Heidegger escreve ldquoTalvez se oculte na Gelassenheit uma accedilatildeo mais elevada do

que em todos os atos do mundo e do que nas maquinaccedilotildees das reliacutequias humanasrdquo (HEIDEGGER

1983a 41) O sentido contudo permanece oculto Resta apenas a ideia de que esta postura

evocada por Heidegger demanda um ldquodeixarrdquo (lassen) que atina para um recolhimento da

paradoxal ambiguidade do que se revela na essecircncia do humano

118

Ressoa tanto em Heidegger quanto em Nishitani uma raiz comum aquela na qual se

ldquoRenuncia aos sentidos agraves operaccedilotildees intelectuais a todo sensiacutevel e ao inteligiacutevelrdquo ainda mais

aquela onde se pede ldquoDespoja-te de todas as coisas que satildeo e ainda das que natildeo satildeo Deixa de

lado teu entender e esforccedila-te por subir o mais que possa ateacute unir-se com aquele que estaacute mais

aleacutem de todo ser e todo saberrdquo Estas palavras aqui propositalmente citadas sem a indicaccedilatildeo

bibliograacutefica satildeo do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita onde neoplatonismo e miacutestica se encontram

no caminho da negatividade Tanto o ldquoprestar atenccedilatildeo aos misteacuterios da naturezardquo em Nishitani

quando a ldquoabstenccedilatildeo da vontade por meio da natildeo-vontaderdquo o ldquoquerer o natildeo-quererrdquo em

Heidegger estatildeo depositados nas sentenccedilas do miacutestico siacuterio

Agora qual eacute este lugar ou natildeo-lugar aleacutem de todo ser e todo saber O que se revela

por meio do despojo e da supressatildeo de todo saber e todo o dizer Esta pergunta natildeo eacute respondida

Natildeo pode ser respondida O que se desvela aiacute eacute justamente o incoacutegnito o misteacuterio Como reagir

portanto frente a tal proposta de em meio a existecircncia contemporacircnea remar no contrafluxo

do sentido do mundo e buscar uma quietude absoluta no silecircncio que adveacutem do misteacuterio da

existecircncia Agrave esta pergunta tampouco se ofereceraacute resposta mas desta vez porque ela jaacute estaacute

respondida A reaccedilatildeo foi nomeada com diversos termos ao longo da histoacuteria recebendo distintas

designaccedilotildees Algumas tradiccedilotildees orientais optam por chama-la ldquoiluminaccedilatildeordquo

Por fim o conflito das fronteiras aqui abordado natildeo eacute um evento especiacutefico um

momento ou instante captaacutevel uma situaccedilatildeo ou circunstacircncia particular O conflito das

fronteiras eacute um caminho ou melhor uma caminhada Uma caminhada rumo ao desconhecido

cujo uacutenico sinal evidente acena para o clamor de um silecircncio ensurdecedor indicando que jaacute eacute

hora de se recolher

119

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Page 2: O CONFLITO DAS FRONTEIRAS · enquanto delimitaÇÃo das fronteiras do pensamento 2. o caminho da negatividade: henologia e meontologia e a ultrapassagem 61 dos limites da metafÍsica

2

PROGRAMA INTEGRADO DE DOUTORADO EM FILOSOFIA

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAIacuteBA

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

LUIZ FERNANDO FONTES TEIXEIRA

O CONFLITO DAS FRONTEIRAS

Metafiacutesica Negatividade e o Extremo Oriente

Tese de doutorado apresentada ao Programa

Integrado de Doutorado em Filosofia da

Universidade Federal da Paraiacuteba Universidade

Federal de Pernambuco e Universidade Federal

do Rio Grande do Norte como requisito para a

obtenccedilatildeo do grau de Doutor em Filosofia

ORIENTADOR OSCAR FEDERICO BAUCHWITZ

NATAL

2014

3

FICHA CATALOGRAacuteFICA ELABORADA PELA

BIBLIOTECA DO CCHLA ndash UFRN

Catalogaccedilatildeo da Publicaccedilatildeo na Fonte

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Biblioteca Setorial do Centro de Ciecircncias Humanas Letras e Artes (CCHLA)

Fontes Teixeira Luiz Fernando

O conflito das fronteiras Metafiacutesica Negatividade e o Extremo Oriente

Luiz Fernando Fontes Teixeira ndash 2014

125 f -

Tese (doutorado) ndash Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro

de Ciecircncias Humanas Letras e Artes Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em

Filosofia

Orientador Prof Dr Oscar Federico Bauchwitz

1 Metafiacutesica 2 Negatividade (Filosofia) I Bauchwitz Oscar Federico

II Universidade Federal do Rio Grande do Norte III Tiacutetulo

RNBSE-CCHLA CDU 111

4

FOLHA DE APROVACcedilAtildeO

LUIZ FERNANDO FONTES TEIXEIRA

O CONFLITO DAS FRONTEIRAS

Metafiacutesica Negatividade e o Extremo Oriente

Tese aprovada como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do grau de Doutor em Filosofia no

Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da Universidade Federal da Paraiacuteba

Universidade Federal de Pernambuco e Universidade Federal do Rio Grande do Norte pela

seguinte banca examinadora

Orientador Prof Dr Oscar Federico Bauchwitz (presidente)

Departamento de Filosofia UFRN

Profa Dra Gisele Amaral dos Santos

Departamento de Filosofia UFRN

Dr Edrisi de Arauacutejo Fernandes

Departamento de Filosofia UFRNUnB

Prof Dr Leonel Ribeiro dos Santos

Faculdade de Letras Universidade de Lisboa

Profa Dra Claudia DrsquoAmico

Departamento de Filosofia Universidad de Buenos Aires

Prof Dr Ciacutecero Cunha Bezerra (suplente)

Departamento de Filosofia UFS

Profa Dra Claudia Pellegrini Drucker (suplente)

Departamento de Filosofia UFSC

Natal 30 de maio de 2014

5

AGRADECIMENTOS

Pelos anos de orientaccedilatildeo e suporte pela incansaacutevel e paciente instruccedilatildeo pelo sempre presente

companheirismo e por tornar possiacutevel o caminho percorrido agradeccedilo ao Prof Dr Oscar

Federico Bauchwitz Pela hospitalidade e cortesia pelos conselhos e indicaccedilotildees pelos diaacutelogos

e por abrir um novo horizonte especulativo para muito aleacutem do trabalho acadecircmico agradeccedilo

ao Prof Dr Graham Parkes

Pela oportunidade de discussatildeo e criacuteticas pela atenccedilatildeo na leitura do trabalho e pelos

inestimaacuteveis acreacutescimos agradeccedilo aos membros das bancas de qualificaccedilatildeo e defesa Profa

Dra Claudia DrsquoAmico Prof Dr Leonel Ribeiro dos Santos Dr Edrisi de Arauacutejo Fernandes e

Profa Dra Gisele Amaral dos Santos

Agradeccedilo ao Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da Universidade Federal

da Paraiacuteba Universidade Federal de Pernambuco e Universidade Federal do Rio Grande do

Norte pela aceitaccedilatildeo do projeto de tese doutoral Agradeccedilo agrave University College Cork (Colaacuteiste

na hOllscoile Corcaigh) pela recepccedilatildeo do estaacutegio sanduiacuteche Agradeccedilo ao Trinity College

Dublin (Colaacuteiste na Triacuteonoacuteide Baile Aacutetha Cliath) pela oportunidade de frequentar os

seminaacuterios e bibliotecas Agradeccedilo agrave Alianccedila Cultural Brasil-Japatildeo e agrave Biblioteca Joatildeo Hideo

Matsumoto e ao Instituto Goethe de Satildeo Paulo e sua biblioteca Agradeccedilo ao Instituto Paulista

de Sacircnscrito e ao Prof Dr Adriano Aprigliano Agradeccedilo ainda agrave Coordenaccedilatildeo de

Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior pelo fomento da tese doutoral e do estaacutegio no

exterior

Agradeccedilo agraves pessoas que direta ou indiretamente contribuiacuteram no processo de

composiccedilatildeo da tese Alan Marinho Lopes Dax Moraes Marcus Vinicius Cavalcante Dantas

Tulio Madson de Oliveira Galvatildeo Sara Barrera Rubio Bastien Duval Javier Coloacuten Joseph

Sexton Agnieszka Klęczar Rodrigo Ferreira Braga Abrahatildeo Marcelo Ferreira Braga e Carla

Almeida

Agradeccedilo especialmente agrave Thaiacutes Ricci Conesa pelo apoio e pela motivaccedilatildeo sem os

quais natildeo concluiria este trabalho Finally yet importantly agradeccedilo ao absoluto integral e

irrestrito apoio de meus pais Luiz Pinto Teixeira e Tereza Cristina Fontes

6

Eacute preciso ainda ter caos dentro de si para dar

luz a uma estrela danccedilante

Friedrich Nietzsche Assim falou Zaratustra

7

RESUMO

O conflito das fronteiras se desdobra como um percurso natural da histoacuteria do pensamento

humano Torna-se manifesto todavia apenas mediante um expliacutecito choque cultural que

evidencia distintas formataccedilotildees conceituais Pensar este conflito pode esclarecer os enlaces

responsaacuteveis pelo desenvolvimento do pensamento contemporacircneo Esta tese pretende analisar

em um primeiro momento a histoacuteria do pensamento enquanto metafiacutesica apresentando um

diagnoacutestico da maneira pela qual o Ocidente impinge sua loacutegica categoacuterica Por conseguinte

apresenta a tradiccedilatildeo da negatividade evidenciando um pensamento para aleacutem da ontologia

claacutessica mediante uma henologia e uma meontologia no neoplatonismo e na miacutestica medieval

Por fim expotildee o pensamento do Extremo Oriente como possiblidade de recepccedilatildeo

contemporacircnea da negatividade e escapatoacuteria para a formataccedilatildeo ocidentalizante da filosofia

vigente

Palavras-chave Fronteiras Metafiacutesica Negatividade Extremo Oriente

8

ABSTRACT

The conflict of borderlines unfolds itself as a natural path in history of human thought It

becomes clear only through an explicit cultural clash which conveys distinct conceptual

formatting Thinking this conflict might enlighten the bindings responsible for development of

contemporary way of thought This thesis intent to analyse in a first moment the history of

thought as Metaphysics presenting a diagnostic towards the way through which the West

impinges its categorical logic Thereafter presents the tradition of Negativity showing a

thinking beyond Classic Ontology through a Henology and a Meontology in Neoplatonism and

Medieval Mysticism At the end exposes the Far Eastern thought as possibility of contemporary

reception of Negativity and escape from the Westernizer formatting of contemporary

philosophy

Key words Frontiers Metaphysics Negativity Far East

9

ZUSAMMENFASSUNG

Der Konflikt der Grenzen entfaltet sich als einen natuumlrlichen Weg in der Geschichte des

menschlichen Denkens Es wird nur klar durch eine explizite Kulturkampf die unterschiedliche

konzeptionelle Formatierung vermittelt Denken dieses Konflikts koumlnnte die Bindungen fuumlr die

Entwicklung der zeitgenoumlssischen Denkweise verantwortlich zu erleuchten Diese These

versuchen zu analysieren in einem ersten Moment die Geschichte des Denkens als Metaphysik

praumlsentiert eine Diagnose auf die Moumlglichkeit durch die der Westen trifft seine kategorische

Logik Danach praumlsentiert die Tradition der Negativitaumlt zeigt ein Denken jenseits Klassische

Ontologie durch eine Henologie und Meontologie im Neuplatonismus und mittelalterliche

Mystik Am Ende macht der Fernost gedacht als Moumlglichkeit der zeitgenoumlssischen Rezeption

von Negativitaumlt und Flucht aus der Westler Formatierung der zeitgenoumlssischen Philosophie

Schuumlsselwoumlrter Frontiers Metaphysik Negativitaumlt Fernost

10

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 11

1 ONTOLOGIA A SUBSTANTIVACcedilAtildeO DO OCIDENTE E O PROBLEMA DA METAFIacuteSICA 28

ENQUANTO DELIMITACcedilAtildeO DAS FRONTEIRAS DO PENSAMENTO

2 O CAMINHO DA NEGATIVIDADE HENOLOGIA E MEONTOLOGIA E A ULTRAPASSAGEM 61

DOS LIMITES DA METAFIacuteSICA

3 O EXTREMO ORIENTE E O CONFLITO DAS FRONTEIRAS A FILOSOFIA COMPARADA 89

INTERCULTURAL COMO CHAVE DE LEITURA PARA ALGUNS PROBLEMAS DO

PENSAMENTO CONTEMPORAcircNEO

CONCLUSAtildeO 113

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 119

11

INTRODUCcedilAtildeO

Aos 16 de abril de 2010 sob a avaliaccedilatildeo de uma banca composta pelos professores Oscar

Federico Bauchwitz Gisele Amaral dos Santos e Acylene Maria Cabral Ferreira defendi a

dissertaccedilatildeo de mestrado intitulada A caminho da fronteira Embora possa ainda dedicar mais

dez anos agrave correta composiccedilatildeo estiliacutestica daquele texto aleacutem da estruturaccedilatildeo dos argumentos

laacute natildeo tatildeo bem encadeados imagino ter alcanccedilado o objetivo de tornar claro natildeo apenas o intuito

do trabalho mas o problema movimentado pela questatildeo do conflito fronteiriccedilo de uma filosofia

comparada intercultural por meio de uma histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica

A questatildeo ldquoentre Heidegger e os japonesesrdquo (subtiacutetulo da dissertaccedilatildeo) abordada ao longo

dos dois anos de mestrado acadecircmico referia-se a uma virada de pontos de vista se em um

primeiro momento os orientais se perguntavam o quecirc a filosofia ocidental podia oferecer ao

pensamento e desenvolvimento do Extremo Oriente em um segundo momento os ocidentais

passaram a se perguntar de que forma os japoneses podiam acrescentar agrave filosofia um elemento

meditativo perdido no periacuteodo da consumaccedilatildeo da teacutecnica moderna e do cientificismo desde

suas perspectivas milenares de pensamento reflexivo

Ao passo em que a pesquisa ia se desenvolvendo o trabalho caminhou paulatinamente

rumo ao impacto violento surtido pelo diaacutelogo entre limites bem delineados de um Ocidente

estruturalmente metafiacutesico e um Oriente especulativo quase inefaacutevel para um leitor ocidental

A conclusatildeo extraiacuteda do caminho percorrido entre os anos de 2008 e 2010 apresentou antes de

qualquer soluccedilatildeo a constataccedilatildeo da instalaccedilatildeo de uma impertinecircncia petrificada no seio da

filosofia contemporacircnea sobre a qual pouco se pode acrescentar na dissoluccedilatildeo de problemas

mas muito se pode desdobrar no que tange ao entrelaccedilamento do alcance de um grau distinto

de movimentaccedilatildeo das arquitetocircnicas conceituais

12

Embora tais palavras pareccedilam abstratas em demasia (e de fato satildeo) o foco atingido se

concentrou em uma inquiriccedilatildeo a respeito do pensamento da linguagem e da verdade a partir

de um inusitado enigma sobre a negatividade do impensaacutevel ou seja sobre o silecircncio que

emerge no preciso momento no qual o pensamento eacute estarrecido e a liacutengua cala

A armadilha construiacuteda a partir das muacuteltiplas tentativas de elaboraccedilatildeo de conceitos afeta

natildeo somente a formataccedilatildeo silogiacutestica do intelecto humano comum mas ainda as

particularidades dos diversos modos de expressatildeo geograficamente distintos Correndo o risco

de se tornar antes uma antropologia filosoacutefica do que propriamente uma histoacuteria e criacutetica da

metafiacutesica o trabalhou refletiu uma anaacutelise agrave proacutepria concepccedilatildeo pela qual se distingue uma

filosofia da outra execrando qualquer nacionalismo filosoacutefico e investigando as questotildees que

envolvem a existecircncia humana dentro de seu modo relacional com o ser e com o ambiente que

a cerca O resultado foi a apresentaccedilatildeo de uma filosofia comparada intercultural que aparece

natildeo simplesmente como um campo disciplina ou subaacuterea da filosofia mas antes como uma

maneira pela qual eacute possiacutevel pensar filosoficamente para aleacutem das fronteiras de uma mera

linguagem de primeira ordem Dentro deste contexto nasce a hipoacutetese do tema o conflito das

fronteiras a partir do pressuposto de uma abordagem aos temas centrais do pensamento

contemporacircneo sustentando a interculturalidade filosoacutefica como aporte central

A proposiccedilatildeo fundamental desta tese adveacutem de alguns questionamentos particulares e

pontuais em um fluxo semelhante ao da dissertaccedilatildeo de 2010 Em abril de 2009 enquanto ainda

trabalhava no texto do mestrado teve lugar no campus da Universidade Federal do Rio Grande

do Norte o III Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica comissionado pelos professores Oscar

Federico Bauchwitz Jaimir Conte Maria da Paz Nunes de Medeiros e Markus Figueira da Silva

O evento marcava a consolidaccedilatildeo da linha de pesquisa em Metafiacutesica do Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Filosofia da universidade trazendo em sua terceira ediccedilatildeo o tema O que eacute

metafiacutesica Em homenagem aos oitenta anos da preleccedilatildeo homocircnima de Martin Heidegger

13

A conferecircncia pronunciada por Heidegger aos 24 de julho de 1929 foi preparada como

aula inaugural para a assunccedilatildeo da caacutetedra de filosofia que antes pertencera a Edmund Husserl

na Albert-Luumldwigs Universitaumlt Freiburg im Breisgau O escrito se tornou um dos mais

emblemaacuteticos conhecidos e discutidos textos de Heidegger Talvez o fator mais impactante da

preleccedilatildeo seja antes mesmo da abordagem temaacutetica o meacutetodo pouco usual conforme o qual o

questionamento eacute elaborado Heidegger inicia a aula dizendo que embora a questatildeo suscite a

expectativa de que se falaraacute sobre a metafiacutesica ele iraacute na verdade discutir uma questatildeo

metafiacutesica particular proporcionando uma movimentaccedilatildeo em seu interior e habilitando a

oportunidade para que a ela apareccedila por si soacute a partir do problema levantado (cf HEIDEGGER

1976 103) Deixar a metafiacutesica se apresentar por si soacute antes do que sobre ela discorrer

evidencia uma feiccedilatildeo um tanto distinta da abordagem de Heidegger ao problema uma de suas

marcas registradas todavia

Raras vezes a tradiccedilatildeo ocidental se deparou com tal niacutevel de heterodoxia no que tange

agrave instruccedilatildeo filosoacutefica (talvez apenas Platatildeo tenha cunhado semelhante meacutetodo ao perseguir o

pescador com o anzol antes de se aproximar da figura do sofista por exemplo ndash natildeo consigo

pensar em outras ilustraccedilotildees agora mesmo embora certamente elas existam) Uma linha de

raciociacutenio como esta aproxima-se muito mais de uma postura oriental

Durante o Coloacutequio aleacutem de retomar pela eneacutesima vez a leitura da preleccedilatildeo de

Heidegger lembro-me de me dedicar agrave leitura da claacutessica obra propedecircutica de Kaiten Nukariya

The Religion of Samurai (1913) a primeira obra sobre zen budismo publicada no Ocidente (em

liacutengua ocidental) Apoacutes uma breve introduccedilatildeo sobre a origem do budismo na Iacutendia e o percurso

de Śākyamuni Siddhārta Gautama (o Buddha Śākyamuni शाकयमनि) Nukariya relata a maneira

pela qual o monge Bodhidharma introduz o budismo na China destacando que seu meacutetodo era

inteiramente diferente dos outros instrutores de ensino ordinaacuterios

14

Sobre Bodhidharma Nukariya relata ldquoEle natildeo explicaria nenhum problema ao

estudante mas simplesmente ajudaacute-lo-ia a ser iluminado colocando-o um abrupto poreacutem eficaz

questionamentordquo (NUKARIYA 2006 10) Com esta metodologia tem iniacutecio a tradiccedilatildeo de

budismo chinecircs nomeada chrsquoan (dʑjen 禪) uma traduccedilatildeo do termo sacircnscrito dhyāna (धयाि) cujo

significado mais geral seria ldquomeditaccedilatildeordquo ou ldquopensamentordquo que futuramente seria lido na

pronuacutencia japonesa (くんよみ kun-yomi) do ideograma como zen (禅 ) Apoacutes expor esta

caracteriacutestica iacutempar do ensino de Bodhidharma Nukariya ainda relata uma breve histoacuteria na

qual um tal Shang Kwang havia requisitado ao mestre que ldquolhe pacificasse a menterdquo

Prontamente Bodhidharma teria respondido ldquoTraga-me aqui sua mente ante mim para que eu

a pacifiquerdquo e Shang Kwang teria replicado ldquomas isto eacute impossiacutevelrdquo recebendo em seguida

a resposta ldquoentatildeo jaacute pacifiquei sua menterdquo Shang Kwang foi instantaneamente iluminado

Certamente Martin Heidegger natildeo exige de seus ouvintes leitores e interlocutores uma

iluminaccedilatildeo tatildeo abrupta e desprovida de raciociacutenio loacutegico mas nem por isto suas reivindicaccedilotildees

satildeo menos ousadas e intensas ou sua meditaccedilatildeo menos profunda Heidegger propocircs diversas

reflexotildees que extraiacutedas de seu contexto especiacutefico configuram-se tatildeo inusitadas quanto as

passagens da tradiccedilatildeo chrsquoan ou zen sendo por vezes consideradas mesmo impertinentes Eacute o

caso de uma de suas mais arrojadas e emblemaacuteticas afirmaccedilotildees ldquoO mais grave eacute que natildeo

pensamosrdquo (HEIDEGGER 2002 6) Desconsiderando o sentido ao qual a sentenccedila pertence

certamente as palavras de Heidegger parecem uma afronta Todavia o leitor atento sabe que

Heidegger se refere agrave distinccedilatildeo entre um pensamento calculador (rechnende Denken) e um

pensamento meditativo (Besinnung) reportando-se ao velamento deste uacuteltimo e da supremacia

exclusiva do primeiro por meio do qual se faz ciecircncia e se daacute o desenvolvimento estrutural da

condiccedilatildeo tecnoloacutegica imperiosa Eacute justamente dentro deste fluxo que Heidegger afirma a

predominacircncia do pensamento cientiacutefico tambeacutem em Was ist Metaphysik

15

Para ingressar no interior da metafiacutesica Heidegger chama atenccedilatildeo ao fato de que a

existecircncia humana eacute hoje sobremaneira norteada pela ciecircncia Embora alguns opositores ainda

resistam agrave tal afirmaccedilatildeo natildeo eacute todavia difiacutecil convencecirc-los do contraacuterio argumentando em

favor da tese de Heidegger Natildeo se trata apenas de afirmar que o ser humano se apoia e confia

uacutenica e exclusivamente (quiccedilaacute mesmo cegamente) na ciecircncia como modo de desenvolvimento

e sustentaccedilatildeo da vida humana na Terra Antes disto e mais grave ainda trata-se de constatar

que a maneira pela qual o ser humano hoje pensa eacute tatildeo somente cientiacutefica mesmo em casos nos

quais o discurso supostamente se volta para um tema espiritual ou de feacute (ou qualquer outro

assunto) ndash a despeito de qualquer pretensa e torta teosofia eacute ainda a teologia a ciecircncia reinante

dos seminaacuterios sem embargo Independente do tema ou assunto da circunstacircncia ou

necessidade a maneira de proceder eacute jaacute sempre cientiacutefica sustentada por uma loacutegica inflexiacutevel

que imputa sua norma de que ldquosendo algo aquilo mesmo isto ou bem eacute ou bem natildeo eacute natildeo

havendo uma terceira opccedilatildeordquo

Em outras palavras parece ter se ocultado na mente humana qualquer outro modo de

pensar que natildeo seja o propriamente cientiacutefico Este modo cientiacutefico de pensar possui algumas

caracteriacutestica pelas quais se pode evidenciaacute-lo estritamente desde um triacuteplice entendimento que

compreende ldquoreferecircncia ao mundordquo ldquoposturardquo e ldquoirrupccedilatildeordquo Heidegger explica estes pontos

ldquoAquilo que na referecircncia ao mundo permanece eacute o ente em si mesmo ndash e mais nada Aquilo

que lidera toda postura eacute o ente em si mesmo ndash e nada mais Aquilo que faz acontecer a

discussatildeo investigativa da irrupccedilatildeo eacute o ente em si mesmo ndash e aleacutem disto nadardquo (IDEM OP CIT

105) A cientificidade da existecircncia humana se expressa mediante uma projeccedilatildeo ao ente e nada

mais Ao afirmar a determinaccedilatildeo da ciecircncia na vida e conduta humanas Heidegger quer deixar

ver sobretudo isto o fato de que hoje soacute eacute validado o discurso de um sujeito cujo objeto

cognosciacutevel eacute um ente este mesmo que subjacente obsta-lhe Dentro da relaccedilatildeo entre sujeito

e objeto toda uma tradiccedilatildeo se fundamenta e doravante prossegue da mesma maneira

16

Fazendo uma revisatildeo dos passos da histoacuteria do pensamento humano seria mais ou menos

faacutecil portanto imaginar como a partir da metafiacutesica claacutessica se desdobra o cientificismo

sobretudo tendo em vista a doutrina das Categorias de Aristoacuteteles aleacutem da tatildeo aclamada

ldquociecircncia do ente enquanto enterdquo Contudo natildeo eacute este o alvo de Heidegger Deixar a metafiacutesica

aparecer por si soacute deve contemplar a totalidade do questionamento proposto e natildeo um

historicismo vulgar Que todo raciociacutenio eacute regulado e direcionado pelo ente facilmente

constata-se Agora bem o que se passa com a outra parte da inquiriccedilatildeo qual seja o ldquonada

maisrdquo Heidegger formula a questatildeo ldquoA ciecircncia natildeo quer saber do nada Mas certamente em

sua permanecircncia ao manifestar sua proacutepria natureza chama o nada para ajudar O que ela

rejeita eacute necessaacuterio para classificaacute-la Que ambiacutegua essecircncia se revela aiacuterdquo (ID IBIDEM 106) Ao

perquirir o ente e aleacutem disto nada o elemento que confere a exatidatildeo de sua pesquisa eacute

auxiliado pelo ldquonadardquo ou seja trata-se disto e nada mais (por mais redundante e ambivalente

que soe ateacute mesmo um pouco non sense) Heidegger pergunta ldquoO que acontece com o nadardquo

(ID IBID) ou ainda para onde vai esse nada em meio agrave existecircncia cientiacutefica

Eacute justamente a inusitada apariccedilatildeo deste nada que revela o incocircmodo de um elemento

impensaacutevel e inexprimiacutevel que natildeo se dobra ante agrave relaccedilatildeo sujeito-objeto Natildeo eacute preciso aqui

destrinchar todo o caminho percorrido por Heidegger em Was ist Metaphysik Trata-se de um

texto bastante lido e amplamente comentado Basta apenas pontuar a sentenccedila central da

conferecircncia (ou a pergunta-condutora a Leitfrage) por meio da qual emerge a resposta agrave

questatildeo ldquoo que eacute metafiacutesicardquo ldquoPor que haacute absolutamente o ente e natildeo antes nadardquo (ID IBID

122) O extraordinaacuterio da questatildeo eacute justamente a capacidade do ser humano em por ela

perguntar A capacidade de questionar ldquopor que natildeo nadardquo define uma disposiccedilatildeo fundamental

da existecircncia quiccedilaacute mesmo aquela ocultada pelo modo cientiacutefico de existir (ou seja

paradoxalmente este mesmo modo eacute responsaacutevel por evidenciar o que nele se perde)

17

A disposiccedilatildeo que regula a eleiccedilatildeo do modo cientiacutefico de pensar tem em vista

salvaguardar o humano do abismo (da falta de fundamento) que se abre quando o nada emerge

silencia o discurso e joga o ser humano em uma situaccedilatildeo incocircmoda uma anguacutestia profunda

Quase como um mestre zen Heidegger deixa a metafiacutesica se abrir natildeo pela pergunta nem

sequer pela acircnsia de prover ao interlocutor (ou a si mesmo) uma resposta mas pela simples

possibilidade e capacidade de perguntar A metafiacutesica neste sentido perdura antes como uma

decisatildeo Ao que parece por este motivo Heidegger cita um trecho de Eacutedipo em Colonos de

Soacutefocles no posfaacutecio agrave preleccedilatildeo (em 1943) destacando os versos (em sua traduccedilatildeo particular

por mim aqui pobremente e quiccedilaacute mesmo irresponsavelmente adaptada) que dizem

ἀλλ᾽ ἀποπαύετε μηδ᾽ ἐπὶ πλείω

θρῆνον ἐγείρετε˙

πάντως γὰρ ἔχει τάδε κῡρος

Mas paremos e nunca mais a partir de agora

despertaremos o lamento

Em todos os lugares se deteacutem o evento

assegurando-lhe uma decisatildeo pela conclusatildeo (ID IBID 312)

A ldquodecisatildeo pela conclusatildeordquo coloniza todos os lugares e se deteacutem a partir de agora em uma

posiccedilatildeo da qual natildeo mais se sairaacute A anguacutestia revelada a partir do pensamento em torno ao

nada manifesta os limites da linguagem e vislumbra o destino do ente no ser em sua plenitude

e predominacircncia Mas para aleacutem da constataccedilatildeo da indigecircncia da linguagem haacute todavia uma

possibilidade de abordar efetivamente esse nada Como eacute possiacutevel pensar para aleacutem da

delimitaccedilatildeo entificante da referecircncia ao mundo da postura e da irrupccedilatildeo Haacute um caminho de

ultrapassagem e superaccedilatildeo possiacutevel ainda nos dias de hoje

18

Ao passo em que avanccedilava nas leituras e Heidegger e em algumas outras esta se tornou

a pergunta-chave pela qual imaginava atingir certo direcionamento temaacutetico A despeito da

disposiccedilatildeo de humor apresentada na conferecircncia bem como das consideraccedilotildees do posfaacutecio de

1943 os trabalhos de Heidegger dos anos de 1930 em diante datildeo a entender um claro

direcionamento pelo qual os elementos abandonados pela entificaccedilatildeo do pensamento podem ser

evidenciados qual seja a partir da poesia Os versos de Soacutefocles segundo o proacuteprio Heidegger

ldquoa uacuteltima poesia do uacuteltimo poeta gregordquo natildeo estatildeo ali dispostos sem motivo Tambeacutem natildeo eacute

sem razatildeo que a partir de aiacute haacute uma incansaacutevel busca pela poesia de Friedrich Houmllderlin (aleacutem

de Georg Trakl Stephan George Rainer Maria Rilke e de outros poetas escolhidos por

Heidegger) Ateacute certo ponto eacute possiacutevel afirmar que Heidegger encontra na poesia a

possibilidade de superar a linguagem por meio da proacutepria linguagem Em alguns outros

momentos uma meditaccedilatildeo de teor semelhante aparece como no encontro entre Heidegger e os

japoneses (como apresentei na dissertaccedilatildeo de 2010) Contudo restava ainda buscar os modos

de reflexatildeo que natildeo simplesmente podiam ir aleacutem da expressatildeo da ciecircncia do ente enquanto

ente mas ainda colocaacute-la em questionamento mediante outros meacutetodos

Foi na abertura do III Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica que minhas inquietaccedilotildees

comeccedilaram a se asseverar e ganhar corpo para o que viria a ser esta tese A conferecircncia

inaugural do evento foi sobremaneira marcante neste processo O professor Gilvan Fogel da

Universidade Federal do Rio Janeiro havia sido convidado para encerrar o primeiro dia de

evento Ele apresentou naquela noite a conferecircncia O que eacute metafiacutesica Como ele mesmo frisou

ldquonatildeo a pergunta mas a respostardquo Havia sem embargo a intenccedilatildeo de responder a pergunta

em um certo direcionamento eacute claro O texto vinha ainda acompanhado de um subtiacutetulo (com

o qual foi publicado como tiacutetulo oficial alguns anos depois diga-se de passagem) Sobre a

metafiacutesica ou a respeito do jejum O mote para o subtiacutetulo o proacuteprio professor o explica na

passagem inicial do texto que gostaria de citar por completo agora mesmo

19

O subtiacutetulo pode soar estranho insoacutelito e natildeo muito seacuterio Mas pelo que ele insinua

pretende anunciar algo seacuterio mesmo muito seacuterio a saber a metafiacutesica E a inspiraccedilatildeo

ou a motivaccedilatildeo que propicia o encaminhamento para a questatildeo anunciada a

metafiacutesica vem de uma obra igualmente seacuteria muito seacuteria ainda que se possa melhor

que se deva dela se ocupar tambeacutem com grandes e gostosas gargalhadas ndash aquelas que

no destampar do riso sacudindo a barriga bem solta e largada deixam escorrer

viacutesceras pela boca afora Estou me referindo ao Dom Quixote o Engenhoso Fidalgo

Dom Quixote lsquode la Mancharsquo ndash o ldquoda Triste Figurardquo

Entre as poesias que preludiam a primeira parte e que homenageiam seus personagens

maiores temos o uacuteltimo que eacute um diaacutelogo em forma de soneto entre Babieca o

cavalo de El Cid e Rocinante o grande rocim o pangareacute erado de Dom Quixote A

certa altura do diaacutelogo-soneto Babieca pergunta ldquoSeraacute tolice amarrdquo e Rocinante

responde ldquoNatildeo eacute muito prudenterdquo Babieca retruca ldquoEstaacutes metafiacutesicordquo E Rocinante

contesta enfaacutetico ldquoEacute que natildeo comordquo (FOGEL 2011 101)

A passagem sugere que a metafiacutesica eacute antes de tudo coisa de fome Por isto ldquoa respeito do jejumrdquo

denuncia a indisposiccedilatildeo que envolve a metafiacutesica A metafiacutesica eacute portanto certo incocircmodo que

eacute tambeacutem necessidade premente decorrente de certa privaccedilatildeo A partir disto Fogel delineia o

tipo de jejum ao qual se refere natildeo se trata de um jejum nutricional alimentiacutecio mas jejum de

vida conforme ele mesmo diz ldquo() natildeo vida no sentido bioloacutegico mas no sentido banal e

corriqueiro como falamos da vida de ldquonossa vidardquo ndash que ela eacute boa ou ruim ou um buracordquo

(IDEM IBIDEM 102) Esta vida a vida imanente a vida do cotidiano do dia-a-dia esta mesma

que ocupa o tempo e o espaccedilo sofre priva-se absteacutem-se Esta abstenccedilatildeo e privaccedilatildeo satildeo a

condiccedilatildeo pela qual reverbera sua constituiccedilatildeo enquanto sujeito ndash e nasce aiacute uma interpretaccedilatildeo

do que eacute enfim metafiacutesica A partir da conferecircncia de Fogel aleacutem de algumas outras

consideraccedilotildees comecei a ponderar a maneira pela qual abordaria o problema

20

Natildeo por meio de uma definiccedilatildeo conceitual acontecimento histoacuterico ou muacutetuo

consentimento temaacutetico mas por meio de uma experiecircncia de pensamento que sem deixar de

lado nenhum dos elementos supracitados configura-se antes como algo intriacutenseco agrave proacutepria

natureza do pensar Ponderando as consideraccedilotildees da conferecircncia de Heidegger a metafiacutesica se

deixa mostrar como uma decisatildeo pela conclusatildeo Um iacutempeto maior do ser humano em

resguardar sua condiccedilatildeo de pacificidade A humanidade teme o caos teme o desalinho receia

o incoacutegnito e inexprimiacutevel Elege por isto seu caminho de seguranccedila com aquilo que lhe eacute

papaacutevel o ente enquanto ente e nada mais Nada quer saber do nada que nada lhe oferece aleacutem

de um indisposto silecircncio um insoacutelito vazio Mediante esta postura embora sob o risco de

ocultar algo em si mesmo que talvez lhe sirva para alcanccedilar siacutetios recocircnditos do misteacuterio de

sua proacutepria existecircncia constitui-se o ser humano um metafiacutesico Sem embargo eacute preciso abster-

se de algo em prol disto ou daquilo que se lhe afigura mais propiacutecio ao momento Fogel enxerga

isto como privaccedilatildeo como jejum como fome Fica muito claro em sua interpretaccedilatildeo o caraacuteter

inflexiacutevel da decisatildeo pela conclusatildeo sobretudo quando traz agrave luz o curioso caso de Vicent van

Gogh

Fogel cita uma carta que van Gogh teria enviado em maio de 1888 a seu irmatildeo Theacuteo

onde descreve sua nova moradia e ao mesmo tempo atelier afirmando que o local eacute pouco

atraente para desenvolver qualquer tipo de flerte ou paquera acrescentando que dificilmente

enxerga como compatiacuteveis o trabalhar e o farrear (faire la noce) A verdade eacute que van Gogh

natildeo possui outra opccedilatildeo senatildeo se privar da diversatildeo do faire la noce natildeo porque eacute asceta ou

abstecircmio nem porque precisa dedicar mais tempo ao seu trabalho ou pagar suas contas (todos

sabem da condiccedilatildeo por vezes paupeacuterrima na qual ele se encontrou ao longo de seu percurso)

mas por ser artista por ser pintor por pintar Urge no artista uma realidade que parece muito

mais real que a vida comum na qual o farrear remete ao contentamento agrave felicidade Natildeo viver

a vida para van Gogh seria natildeo pintar

21

Se viver a vida eacute buscar este contentamento esta felicidade entatildeo van Gogh vive para

natildeo-viver Natildeo-viver se torna paradoxalmente a expressatildeo maacutexima da vida metafisicamente

entendida Fogel completa ldquoE por que natildeo viver este natildeo-viver seria ingratidatildeo Seria isso a

saber a distacircncia o agrave parte um dom um presente uma graccedilardquo (IDEM IBIDEM 105)

acrescentando ainda ldquoA metafiacutesica desde que jejum abstinecircncia de vida de viver seria

igualmente muita vida e natildeo cumpri-la natildeo realizaacute-la isto eacute natildeo pensar uma grande

ingratidatildeordquo (ID IBID) e por fim sugerindo ldquoAqui precisa-se confessar viver natildeo eacute preciso

Pintar pensar fazer quadros fazer metafiacutesica ndash isso eacute precisordquo (ID IBID) Ressalte-se o tom das

inquiriccedilotildees da interrogaccedilatildeo acompanhada pela exclamaccedilatildeo A precisatildeo da qual fala fazendo

menccedilatildeo a Fernando Pessoa eacute a necessidade de justeza de ser preciso e acurado destro

rigorosamente alinhado ao fazer metafiacutesica Assim se configura algo muito iacutentimo e sem

embargo inevitaacutevel na natureza humana

Fogel prossegue sua exposiccedilatildeo chamando ao diaacutelogo o Zaratustra de Friedrich

Nietzsche especificamente a seccedilatildeo intitulada Da Visatildeo e do Enigma na qual reincide o anuacutencio

da famosa doutrina do Eterno Retorno citando o trecho que diz

O homem eacute todavia o mais corajoso animal assim ele supera todo e cada animal Com

o jogo sonoro supera ele tambeacutem a dor Mas a dor humana eacute a dor mais profunda A

coragem tambeacutem indica a tontura morte em abismos e onde estaria o homem senatildeo

em abismos Ele natildeo vecirc a si mesmo ndash vecirc abismos (NIETZSCHE 2005 119)

Para Fogel o ldquoverrdquo natildeo denuncia uma observaccedilatildeo circunvisatildeo ou vislumbre mas antes um

acontecimento uma iluminaccedilatildeo um tornar visiacutevel Torna-se visiacutevel o abismo o sem fundo

sem fundamento Ao que parece quanto mais o ser humano contempla sua proacutepria existecircncia

mais sem chatildeo fica maior eacute a falta de fundamento e com maior radicalidade se abre um abismo

frente aos seus peacutes

22

Eacute possiacutevel todavia prosseguir caminhando ao lado de Nietzsche e Heidegger bem como

por meio das reflexotildees e interpretaccedilotildees oferecidas por Fogel buscando alcanccedilar uma feiccedilatildeo da

vida humana que permita descortinar a proveniecircncia metafiacutesica de seu percurso e ateacute mesmo

suscitando uma ultrapassagem deste fenocircmeno Contudo eacute necessaacuterio ainda precisar com maior

cuidado os termos contidos na questatildeo Faz parte do labor filosoacutefico se afundar mais e mais em

algo que por si soacute jaacute eacute bastante fundo

Natildeo apenas os pensamentos de Nietzsche e Heidegger oferecem uma especulaccedilatildeo de

formidaacutevel profundidade difiacutecil de ser absorvida em primeira matildeo como tambeacutem por vezes

pode se mostrar demasiado complexo empreender um rastreamento do sentido originaacuterio das

palavras e sentenccedilas salvo mediante uma anaacutelise completa (empresa complicadiacutessima

provavelmente impossiacutevel) de suas obras Mesmo assim talvez ainda natildeo se mostre com

suficiente nitidez se natildeo houver de antematildeo uma explanaccedilatildeo das fontes e referecircncias cruzadas

Com estas ideias em mente buscando avanccedilar cada vez mais no tema e sobre ele meditar

com cada vez mais dedicada atenccedilatildeo e profundidade tentando ampliar com ferocidade o

vocabulaacuterio (para fazer minhas as palavras de Marco Lucchesi) outro escrito me sobreveio

durante o processo de composiccedilatildeo das hipoacuteteses contidas neste trabalho Em Nihilismo e

Neoplatonismo (2003) Oscar Federico Bauchwitz traccedila algumas linhas que especificam a

condiccedilatildeo por meio da qual o problema efetivamente se apresenta

Haacute no texto de Bauchwitz tambeacutem um necessaacuterio retorno a Nietzsche e Heidegger Natildeo

apenas dentro do contexto de um estudo da metafiacutesica enquanto histoacuteria intelectual mas ainda

constatando os tempos onde ela se apresenta como formataccedilatildeo do modo de ldquoagir-pensarrdquo torna-

se imprescindiacutevel resgatar a lembranccedila de que ldquo() com Nietzsche se estabelece uma criacutetica da

metafiacutesica que acaba por homologar o seu oacutebitordquo (BAUCHWTIZ 2003b 169) Como explica

Bauchwitz a declaraccedilatildeo da morte da metafiacutesica eacute aquela mesma da morte do platonismo

cristianismo niilismo e outros sinocircnimos para o mesmo fenocircmeno

23

Esta morte natildeo eacute todavia apenas uma declaraccedilatildeo da inexistecircncia corrente do pensamento

metafiacutesico senatildeo sua consumaccedilatildeo total e absoluta A ldquociecircncia do ente enquanto enterdquo entifica

tudo aquilo que outrora foi nomeado vida (φύσις) pelos gregos dos periacuteodos arcaico e claacutessico

ndash das coisas ao redor aos pensamentos e aos deuses A entificaccedilatildeo do mundo em torno eacute sem

sombra de duacutevidas a maneira pela qual a ciecircncia vigente concebe o mundo configurando o que

Heidegger havia chamado de ldquoreferecircncia ao mundordquo A entificaccedilatildeo do pensamento por sua vez

denota a ldquoposturardquo tambeacutem mencionada por Heidegger aquela mesma segundo a qual haacute uma

maneira ldquocorretardquo de pensar Ao passo que a entificaccedilatildeo dos deuses um pouco mais complicada

apresenta-se como ldquoirrupccedilatildeordquo na qual a circunvisatildeo resultante dos dois elementos acima

mencionados denuncia a morte de deus a fuga dos deuses o viver sem o divino sem o

iluminado sem o deslumbre Desatados os laccedilos entre ser humano e divindade Bauchwitz

questiona ldquoO que natildeo pode o homem modernordquo (IDEM IBIDEM 170) questionamento que

poderia ainda ser vertido nos termos (mais ou menos) de Dostoievsky ldquose deus morreu entatildeo

tudo eacute permitidordquo ou ainda nos (mais ou menos novamente) de Heidegger ldquose apagou da

histoacuteria universal o esplendor da divindade Essa eacute a eacutepoca da noite do mundordquo Contudo para

Bauchwitz perdura algo no labor filosoacutefico que torna liacutecito novamente regressar agrave questatildeo Ele

explica que ldquoResgatar a forccedila mais originaacuteria das palavras eacute o ofiacutecio do filoacutesofo Por isso

dizemos que a miacutestica se mostra no fechar de olhos no fechar da bocardquo (ID IBID 173) Recordo-

me acompanhando os seminaacuterios matinais do professor Bauchwitz de ouvir certa vez a

sentenccedila ldquoo miacutestico estaacute sempre em conflito com a linguagemrdquo Conflito ou confronto natildeo me

lembro muito bem Havia de fato escrito a frase literalmente ao peacute da paacutegina de algum livro

(ou alguma fotocoacutepia) que agora mesmo esqueccedilo qual era e natildeo consigo encontrar

Independente das palavras exatas o que se apresenta no texto de Bauchwitz eacute a sugestatildeo de um

caminho para este resgate por meio de um conflito o confronto suscitado pela miacutestica

24

Bauchwitz escreve ldquoO miacutestico eacute em primeiro lugar aquele que acolhe o misteacuterio dentro

de si recolhendo em silecircncio o sentido oculto da realidade soacute depois eacute que o silecircncio rompe a

barreira dos dentes para mostrar-se linguagemrdquo (ID IBID) E ainda prossegue especificando que

ldquoPor isso a miacutestica eacute uma experiecircncia radical da liberdade proacutepria Abrindo matildeo de um mundo

que clama sua atenccedilatildeo o miacutestico encontra-se com o que nele eacute totalmente incoacutegnito e

incognosciacutevel um eu que se mostra como puro nadardquo (ID IBID) A maneira pela qual Bauchwitz

iraacute desdobrar a explicaccedilatildeo destas sentenccedilas sobremaneira enigmaacuteticas percorreraacute trecircs

pensadores que marcam a tradiccedilatildeo do neoplatonismo e da chamada miacutestica medieval quais

sejam Pseudo-Dioniacutesio Areopagita Joatildeo Escoto Eriuacutegena e Mestre Eckhart Contudo o que

havia me saltado aos olhos antes da eleiccedilatildeo temaacutetica autoral ou metodoloacutegica havia sido a

sentenccedila ldquoum eu que se mostra como puro nadardquo Jaacute havia encontrado semelhante formulaccedilatildeo

todavia nunca em autores ocidentais Remeti diretamente a maneira pela qual a tradiccedilatildeo

mahāyāna do budismo do leste asiaacutetico havia compreendido a noccedilatildeo do natildeo-si-mesmo ou natildeo-

ego (anātman अितमि) como dissoluccedilatildeo do eu por meio da tensatildeo entre forma (ou fenocircmeno ou

ainda aparecircncia rūpa रप) e nada (ou vacuidade śūnyatā शनयता) Estas ideias derivam

diretamente do chamado Cacircnone Pāḷi tendo sido transmitidas em sacircnscrito pelo Sūtra do

Coraccedilatildeo (Prajntildeāpāramitā Hṛdaya परझञापारनमताहरदय) ateacute alcanccedilarem formas mais refinadas no

budismo chrsquoan e no zen budismo japonecircs assumindo as configuraccedilotildees de ldquoformardquo ou

ldquoaparecircnciardquo enquanto shiki (色) e ldquonadardquo ou ldquovacuidaderdquo enquanto kū (空) elementos centrais

do pensamento da filosofia japonesa contemporacircnea da Escola de Kyōto (e que tambeacutem havia

abordado brevemente em minha dissertaccedilatildeo de mestrado) Tornou-se imperioso investigar ateacute

que ponto tais ideias se aproximam ou comungam de princiacutepios convergentes aleacutem da maneira

como elas repercutem em suas tradiccedilotildees e particularidades Mais uma vez encontrava-me frente

ao sem-fim nuacutemero de possibilidades comparativas e complementares

25

Contudo temia o risco de cair no engodo certa vez denunciado por Immanuel Kant

quando afirmou em seus Prolegomena zu einer jeden kuumlnftigen Metaphyysik (1783) que ldquo()

dificilmente se espera que natildeo seja possiacutevel descobrir analogias para cada nova ideia entre ditos

de eras passadasrdquo (KANT 1911 7) natildeo havendo grande meacuterito nisto e sendo necessaacuterio admitir

que estes historiadores da filosofia ocupados com tal empreendimento devam antes aguardar

que os ldquoverdadeiros filoacutesofosrdquo esgotem as fontes da razatildeo Sob pena de realizar uma mera

comparaccedilatildeo friacutevola (embora com a consciecircncia de que passo longe de ser um ldquoverdadeiro

filoacutesofordquo ao menos no sentido Kantiano ndash talvez o seja em outro digamos mais Ginsbergiano

de pura pretensatildeo mas certamente natildeo muito talento) ocupei-me em corretamente designar o

problema que me afligia de modo que fosse possiacutevel corretamente endireitar o roteiro da tese

Era preciso encontrar um mote mesmo que ele natildeo deixasse ver claramente os passos a serem

percorridos mas que provessem alguma direccedilatildeo

Tendo isto em vista natildeo podia negar que o interesse pelo que ousei chamar de ldquoconflito

das fronteirasrdquo crescia a partir de um ldquopar de viacutergulasrdquo que aparentemente haviam escapado agrave

anaacutelise da histoacuteria do pensamento Em outras palavras um determinado momento no qual o

transcurso metafiacutesico foi levemente desviado em uma guinada espontacircnea e natural como um

marinheiro que sutilmente move o leme para a esquerda ou para direita ao perceber o advento

de uma portentosa onda logo atraacutes de si soltando o motor e deixando o barco ser levado pelo

mar ndash saacutebia decisatildeo em momentos de tormenta (passei por esta situaccedilatildeo certa vez em mar

aberto transitando entre Paraty e uma praia recocircndita Pouso do Cajaiacuteba se natildeo me falha a

memoacuteria gostaria de poder descrever em pormenores a experiecircncia que seria proveitosa ao

leitor em termos ilustrativos mas estava muito enjoado no barco para congregar detalhes

miacutesticos em minha massa cinzenta) E eram momentos de tormenta Como poderiam natildeo ser

Sendo assim estabeleci um conveniente itineraacuterio (ao menos sob meu ponto de vista) que

compartilho antes de iniciar o trabalho

26

O primeiro passo importante eacute estabelecer dentro de quais termos se apresenta a

metafiacutesica pela qual se nomeia a histoacuteria do pensamento ocidental O primeiro capiacutetulo da tese

intitulado Ontologia a substantivaccedilatildeo do Ocidente e a delimitaccedilatildeo das fronteiras do

pensamento ocupa-se de tal apresentaccedilatildeo e eacute na verdade bastante simples apesar do tiacutetulo

pomposo A despeito da abordagem histoacuterico-conceitual desdobrada em um primeiro momento

o capiacutetulo segue em consonacircncia com a avaliaccedilatildeo de Martin Heidegger assumindo-o como

interlocutor e inteacuterprete da histoacuteria e criacutetica da metafiacutesic Haacute aqui uma ecircnfase nas leituras por

meio das quais Heidegger caracterizou de maneira direta a passagem de uma fisiologia grega

claacutessica (por ele nomeada ldquopensamento originaacuteriordquo) para o acircmbito da ontologia latina e o modo

conforme o qual a proacutepria ideia de ldquoserrdquo eacute compreendida de maneira tatildeo somente substantivada

a partir de seu particiacutepio presente ldquoenterdquo Um necessaacuterio retorno cronoloacutegico-regressivo eacute

estabelecido do fim ao iniacutecio da modernidade pontuando autores como Jacob Lorhard e

Francisco Suaacuterez Todavia o objetivo principal do capiacutetulo eacute compreender este modo de

substantivaccedilatildeo e quais as consequecircncias disto para o pensamento em um sentido geral (a

delimitaccedilatildeo de suas fronteiras no final das contas) sem nunca perder de vista o peso aristoteacutelico

da designaccedilatildeo e realizando algumas especificaccedilotildees sobre isto

O segundo capiacutetulo intitulado O caminho da negatividade henologia e meontologia e

a ultrapassagem dos limites da metafiacutesica pretende caracterizar efetivamente essa nomeada

ldquonegatividaderdquo Negatividade que natildeo eacute simplesmente predominacircncia de um ldquonatildeordquo ou partiacutecula

de privaccedilatildeo mas antes assunccedilatildeo de um oxiacutemoro o auscultar de um inaudito Desenvolve-se

como argumento central por meio do qual se evidencia as estruturas baacutesicas de um pensamento

radical a evidenciaccedilatildeo de uma meditaccedilatildeo que jaacute natildeo eacute mais norteada pelo ldquoenterdquo mas sim pelo

ldquounordquo (henologia) neoplatocircnico ou mesmo por uma profunda meditaccedilatildeo em torno ao ldquonadardquo

(meontologia) presentes no neoplatonismo e sobremaneira evidentes no pensamento miacutestico

27

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo nomeado O Extremo Oriente e o conflito das fronteiras a

filosofia comparada intercultural como chave de leitura para alguns problemas do pensamento

contemporacircneo pretende conectar os pontos e resgatar o sentido da tese O capiacutetulo traz uma

breve apresentaccedilatildeo da chamada Escola de Kyōto e a constituiccedilatildeo da filosofia japonesa

contemporacircnea Este eacute o momento no qual eacute possiacutevel observar a recepccedilatildeo contemporacircnea da

filosofia ocidental (tanto dentro da tradiccedilatildeo metafiacutesica quanto ldquoforardquo dela na dita negatividade)

e o diaacutelogo (e siacutentese) com o mundo do Extremo Oriente O objetivo eacute portanto pensar em

comunhatildeo com os pensadores da Escola de Kyōto com especial atenccedilatildeo para Keiji Nishitani

(西谷 啓治) observando suas propostas para anaacutelise e resoluccedilatildeo dos problemas de filosofia

contemporacircnea e buscando um esclarecimento a respeito dos termos indicados

Ao fim e ao cabo a intenccedilatildeo aqui eacute convidar os leitores ao diaacutelogo intercultural

apresentando em um diaacuterio de minhas leituras diferentes nuances e pontos de vista a respeito

de algumas questotildees especiacuteficas e ousando um diagnoacutestico da filosofia contemporacircnea bem

como uma vaacutelvula de escape para a atual condiccedilatildeo do pensamento filosoacutefico Caso a empreitada

logre ecircxito acredito que uma nova conversa se abra e novas ideias venham agrave mente Sem

embargo trata-se de uma composiccedilatildeo acerca de um conflito o conflito das fronteiras

28

ONTOLOGIA A SUBSTANTIVACcedilAtildeO DO OCIDENTE E O PROBLEMA DA METAFIacuteSICA

ENQUANTO DELIMITACcedilAtildeO DAS FRONTEIRAS DO PENSAMENTO

Embora ontologia tenha um sentido bastante amplo (que seraacute melhor explorado ao longo do

capiacutetulo) aleacutem de uma sem-fim variedade de definiccedilotildees distintas de autor para autor (algumas

das quais seratildeo eleitas e apresentadas aqui) entende-se o conceito (de forma simplificada) como

um discurso capaz de reunir em uma unidade a polissemia do verbo ser O resultado eacute a

centralizaccedilatildeo conceitual de qualquer ulterior doutrina a partir da definiccedilatildeo desenrolada desde

sua compreensatildeo Por substantivaccedilatildeo do Ocidente refiro-me aqui agrave corrente historial

responsaacutevel por compreender o verbo ser de modo substantivado a partir de seu particiacutepio

presente ldquoenterdquo A intenccedilatildeo do capiacutetulo portanto concentra-se na investigaccedilatildeo do processo

decorrido dessa substantivaccedilatildeo e quais as consequecircncias disto para o pensamento ocidental e

contemporacircneo em uma concepccedilatildeo geral no que diz respeito agrave delimitaccedilatildeo das fronteiras do

pensamento

Em primeiro lugar gostaria de abrir uma interlocuccedilatildeo com o professor Charles H Kahn

da University of Pennsylvania dada a relevacircncia e pertinecircncia de sua obra The Verb lsquoBersquo in

Ancient Greek (1973) para o desenvolvimento do capiacutetulo Antes de desdobrar em pormenores

seu estudo bastante extenso e detalhado Kahn sustenta a tese de que haacute uma relatividade

linguiacutestica referente ao verbo ser (cf KAHN 2003 1-3) Em sua introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo de 2003 (cf

IDEM IBIDEM vii) Kahn se reposiciona em relaccedilatildeo ao argumento expresso em sua obra clamando

ser uma posiccedilatildeo bastante defensiva e ldquofora de modardquo para os tempos atuais Ainda assim trata-

se de uma hipoacutetese bastante interessante

29

A posiccedilatildeo de Kahn (cf IBID 1-3) se apoia na afirmaccedilatildeo de Angus C Graham1 acerca

do mesmo verbo dentro do chinecircs claacutessico onde o sinoacutelogo posiciona o ser relativamente agrave

regra gramatical inerente agrave formulaccedilatildeo de uma determinada sentenccedila significando portanto a

impossibilidade de uma doutrina universal acerca do ser compatiacutevel com liacutenguas distintas

(como o grego o aacuterabe ou o chinecircs) Isto concorda em absoluto com a ideia de que no proacuteprio

grego claacutessico e nas liacutenguas indo-europeias em geral conforme a menccedilatildeo feita por Kahn a

Eacutemile Benveniste2 natildeo haacute em hipoacutetese alguma a implementaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo universal ou

condiccedilatildeo necessaacuteria envolta na distribuiccedilatildeo dos significados do verbo ser Haacute sim e Benveniste

endossa a ideia uma predisposiccedilatildeo da linguiacutestica grega agrave ldquovocaccedilatildeo filosoacutefica da noccedilatildeo de serrdquo

Vocaccedilatildeo esta segundo Kahn muito geral e diversificada no desenvolvimento sistemaacutetico de

seu conceito desde Parmecircnides ateacute Aristoacuteteles e de uma maneira mais sistemaacutetica dos Estoicos

ateacute Plotino Em siacutentese Kahn sustenta que a tese de um determinismo linguiacutestico do ser eacute

claramente falsa ou seja mesmo em falantes de uma mesma liacutengua natildeo eacute possiacutevel encontrar

uma mesma doutrina em torno ao ser como eacute possiacutevel ver nos pensamentos distintos de Platatildeo

e Aristoacuteteles Epicuro e Plotino

Todavia natildeo haacute duacutevidas para Kahn a respeito das condiccedilotildees intriacutensecas da liacutengua de um

autor em sua atividade intelectual seus recursos e suas tendecircncias Ele afirma que natildeo haveria

possibilidade de especificar a determinaccedilatildeo ontoloacutegica se o verbo grego εἰμί natildeo fosse provido

do particiacutepio presente τὸ ὄν ou se natildeo houvesse a derivaccedilatildeo nominal ndashία da qual redunda a

noccedilatildeo de οὐσία Ou ainda a classe de morfemas que compreende ἐστί εἶναι e ἐών derivadas

do indo-europeu ndashes Satildeo as formas nominais do verbo que permitem segundo Kahn (cf IBID

451) natildeo soacute uma clara expressatildeo senatildeo tambeacutem a tematizaccedilatildeo do conceito como um toacutepico

distinto para a reflexatildeo filosoacutefica

1 Angus C Graham ldquoBeing in Classical Chineserdquo In The Verb lsquoBersquo and its Synonyms John W M Verhaar (ed)

Dordrecht Holland D Reidel 1967 1-39 2 Eacutemile Benveniste ldquoCateacutegories de penseacutee et cateacutegories de languerdquo Les Eacutetudes philosophiques n 4 (out-dez

1958) PUF Paris 419-429

30

Kahn fala dos primeiros usos do verbo εἰμί (em formas participiais) em sua

possibilidade de representar qualquer construccedilatildeo copulativa (natildeo muito diferente de qualquer

outro particiacutepio em grego) adaptando-se agraves construccedilotildees coordenadas ou subordinadas (em

nuacutemero gecircnero e causa) e expressando diferentes nuances (concessiva causal adversativa)

Contudo frisa haver ainda outras expressotildees para aleacutem do caso copulativo como nos casos

vital veriacutedico ou existencial Quando o verbo aparece dentro da expressatildeo existencial e emerge

a necessidade de indicar uma referecircncia ou seja um caso gramatical locativo surgem as formas

do uso filosoacutefico do ser como τὰ ὄντα o berccedilo para o desenvolvimento da ontologia O sentido

de τὰ ὄντα apareceria em Aristoacuteteles de acordo com Kahn (cf ID IBID 457) em primeira matildeo

como ldquoo que eacuterdquo (o caso os fatos ou eventos) e em segunda matildeo existencialmente como ldquocoisas

que existemrdquo ldquocoisas que estatildeo presentesrdquo ldquocoisas que podem ser encontradas em algum lugarrdquo

Em ambos os casos o verbo ser eacute entificado Como neste sentido haacute uma conotaccedilatildeo ldquodo que

eacuterdquo algo Aristoacuteteles considerou a referecircncia aos atributos de um determinado ente para expressar

a muacuteltipla significaccedilatildeo de τὸ ὄν partindo em seguida para a definiccedilatildeo do ser no sentido primaacuterio

e fazendo uso de seu derivado nominal οὐσία

A manifestaccedilatildeo de οὐσία surge como uma nominalizaccedilatildeo abstrata ou substantivo de

accedilatildeo Kahn enumera trecircs aspectos distintos do uso de οὐσία em uma concepccedilatildeo filosoacutefica o

primeiro uso refere-se agrave nominalizaccedilatildeo do verbo na qual οὐσία representaria ldquoo que algo eacuterdquo

dando abertura para as formas platocircnicas e essecircncias aristoteacutelicas (τὸ τί ἐστι τὸ τί ἦν εἶναι) o

segundo uso eacute todavia menos teacutecnico e predica οὐσία como ldquoserrdquo ldquoexistecircnciardquo ou ldquorealidade

verdadeirardquo o terceiro uso enuncia uma equivalecircncia entre οὐσία e τὸ ὄν referindo ldquoas coisas

que satildeo (neste mundo)rdquo τὰ ὄντα (cf ID IBID 461) Aristoacuteteles pontua precisamente a intenccedilatildeo

socraacutetica primaacuteria de buscar a essecircncia das coisas (τὸ τί ἐστι) por meio do procedimento

silogiacutestico cujo princiacutepio eacute justamente a quididade (ἀρχὴ δὲ τῶν συλλογισμῶν τὸ τί ἐστι)

(ARISTOacuteTELES 2002 604-605 Metafiacutesica 1078b 24-25)

31

O que em Soacutecrates apareceria de fato como τί ἐστι e em Platatildeo como (τὸ) ὅ ἐστι em

Aristoacuteteles seria simplificado como τὸ τί ἐστι e τὸ τί ἦν εἶναι em um uso que expressa a essecircncia

ou natureza das coisas pela definiccedilatildeo ao passo que a definiccedilatildeo propriamente existencial caberia

ao termo οὐσία 3 Kahn ilustra as distinccedilotildees dizendo que

Enquanto o substantivo no primeiro e no segundo usos serve como uma

nominalizaccedilatildeo ldquoabstratardquo para o verbo finito como predicado isto eacute para o ldquoser aquilo

que eacuterdquo (e eacute assim sintaticamente paralelo ao infinitivo articular τὸ εἶναι) οὐσία no

terceiro sentido eacute utilizado ndash como em muitos outros substantivos abstratos ndash para o

sujeito caracterizado (isto eacute o que eu chamo de concreto ou agente de nominalizaccedilatildeo

como tipicamente ilustrado pelo particiacutepio articular τὸ ὄν ou como por exemplo ὁ

τρέχων ldquoo corredorrdquo em contraste agrave accedilatildeo de nominalizaccedilatildeo abstrata τὸ τρέχειν

ldquocorrerrdquo Esta distinccedilatildeo sintaacutetica corresponde em parte ao contraste de Heidegger

entre das Seiende e das Sein der Seienden) (ID IBID)

Embora haja tal distinccedilatildeo Kahn prossegue afirmando que em seu uso tardio (poacutes-platocircnico)

οὐσία e τὸ ὄν satildeo claramente sinocircnimos sendo um utilizado para enfatizar o outro como na

doutrina das Categorias de Aristoacuteteles4 O resultado eacute a inexistecircncia de uma diferenccedila entre o

agente concreto e a accedilatildeo abstrata de nominalizaccedilatildeo do εἰμί onde natildeo haacute distinccedilatildeo conceitual

entre οὐσία e τὸ ὄν ou seja entre a entidade e o que ela eacute Em outras palavras ser e ente se

tornam o mesmo confundem-se em sua aplicaccedilatildeo a despeito das distinccedilotildees conceituais que

definem substacircncia (οὐσία) e essecircncia (τὸ τί ἦν εἶναι)

3 Um comentaacuterio mais preciso foi apresentado em Luiacutes Andreacutes Berdlow ldquoParmenides and the Grammar of Beingrdquo

Classical Philology v 106 (2011) 283-298 4 As Categorias de Aristoacuteteles apresentam a classificaccedilatildeo das coisas que satildeo (τὰ ὄντα) dentre as quais encontra-

se a substacircncia (οὐσία) (cf ARISTOTLE 1952 5-6 Categorias 1a-2b) Na Metafiacutesica Aristoacuteteles deixa isto mais

claro quando diz ldquoMas em primeiro lugar se o ldquoenterdquo (τὸ ὂν) se diz de muitas maneiras ndash dentre as quais algumas

vezes substacircncia (οὐσία) em outras qualidade ou mesmo quantidade aleacutem de todas as outras categorias ndash qual

deles portanto eacute aquele pelo qual as coisas satildeo ()rdquo (ARISTOacuteTELES 2002 669 Metafiacutesica 1089a 5-15) A diferenccedila

conceitual ou mesmo hieraacuterquica eacute paulatinamente abandonada pela necessidade de exprimir um niacutevel de

realidade no qual jaacute natildeo eacute mais possiacutevel discorrer acerca do ente se redundar a palavra definida na proacutepria definiccedilatildeo

32

Essa indistinccedilatildeo entre ser e ente eacute sabido foi o que chamou a atenccedilatildeo de Martin

Heidegger no processo ldquodestrutivordquo de histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica realizado em seu projeto

Sein und Zeit (1927) Conforme Heidegger haacute uma γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας de haacute muito

abandonada O motivo aparente se concentra nas caracteriacutesticas emergentes do proacuteprio ser

quais sejam sua maacutexima universalidade sua vacuidade sua obscuridade sua maacutexima

evidecircncia Neste sentido Heidegger diz

O conceito de ldquoserrdquo eacute indefiniacutevel Isto pode ser concluiacutedo desde sua maacutexima

universalidade E isto com razatildeo ndash se definitio fit per genus proximum et differentiam

specificam De fato ldquoserrdquo natildeo pode ser entendido conceitualmente como ente enti

non additur aliqua natura ldquoserrdquo natildeo pode estar em uma determinaccedilatildeo concebendo

dele um ente O ser por definiccedilatildeo natildeo pode ser derivado de conceitos superiores e

nem dado por nenhuma ilustraccedilatildeo Contudo disto se segue que do ser natildeo se pode

derivar nenhum problema Pode-se concluir em absoluto apenas que o ldquoserrdquo natildeo eacute

algo como um ente Portanto o legiacutetimo dentro de certos limites de determinaccedilatildeo dos

entes ndash a ldquodefiniccedilatildeordquo da loacutegica tradicional que em si tem suas bases na antiga

ontologia ndash natildeo eacute aplicaacutevel ao ser A indefiniccedilatildeo do ser natildeo dispensa a pergunta por

seu significado senatildeo que justamente a intima isto (HEIDEGGER 1967 4)

As observaccedilotildees de Heidegger concordam com a conclusatildeo de Kahn a respeito da tomada de

rumo do verbo ser dentro da filosofia grega claacutessica sobretudo na concepccedilatildeo das bases da antiga

ontologia acerca da indistinccedilatildeo entre ser e ente A γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας agrave qual se refere

Heidegger parece ser a natureza inevitaacutevel da proacutepria metafiacutesica em fechar a porta aberta por

ela mesma para o modo de se relacionar com o ser uma espeacutecie de destinaccedilatildeo forccedilosa da qual

natildeo se poderia de maneira alguma escapar ponderando a projeccedilatildeo que reverbera em cada um

dos sentidos

33

O conflito acerca do entendimento e expressatildeo da φύσις revela em boa parte a maneira

pela qual o conjunto do ser se tornou alvo de disputas A contenda eacute ilustrada na histoacuteria

primaacuteria da filosofia grega enquanto fisiologia e na ldquocontroveacutersiardquo paradigmaacutetica entre

Heraacuteclito e Parmecircnides Uma realidade em constante movimento e mutaccedilatildeo absorvida desde a

observaccedilatildeo teoreacutetica do mundo entorno ou simplesmente o ponto de vista do ldquodevirrdquo parece

compatiacutevel com a natureza infinitiva e inapreensiacutevel do verbo ser como eacute possiacutevel rastrear no

πάντα ῥεῖ heracliacutetico 5 Heraacuteclito expressa o movimento intriacutenseco de abertura do modo

relacional do ser Todavia tal entendimento natildeo eacute compatiacutevel com qualquer tipo de silogismo

loacutegico onde eacute possiacutevel desenhar um conhecimento comum Para assumir a cogniccedilatildeo e percepccedilatildeo

vaacutelidas seria necessaacuterio assumir a permanecircncia de algo como eacute possiacutevel acompanhar na

elaboraccedilatildeo da univocidade do ser em Parmecircnides6

O primeiro ponto de vista paradoxalmente leva agrave evidecircncia da diferenccedila e a posiccedilatildeo do

oxiacutemoro enquanto o segundo permite a identificaccedilatildeo e a possibilidade de conclusatildeo por meio

das loacutegicas da identidade e natildeo-contradiccedilatildeo Aparentemente o primeiro natildeo resulta em nenhum

avanccedilo imediato a respeito de assuntos praacuteticos ou na dissoluccedilatildeo de questotildees teoacutericas enquanto

o segundo iraacute provavelmente resolver problemas de quase todos os tipos no campo pragmaacutetico

e em toda sorte de adversidades naturais e sociais Por meio da loacutegica natural do ser humano

social eacute bastante evidente qual ponto de vista deve ser eleito no intuito de estabelecer a

coexistecircncia mais faacutecil e paciacutefica aquela que afasta o homem da falta de fundamento da

existecircncia ou seja do abismo existencial da afliccedilatildeo que eacute existir

5 Conforme cita Platatildeo no Craacutetilo ldquotodas as coisas estatildeo em processo e nada permanece paradordquo (τά ὄντα ἱέναι

τε πάντα καὶ μένειν οὑδέν) (PLATO 1997 119-120 Craacutetilo 401d-402a) (KIRK E RAVEN 1957 197) Kirk e Raven

ponderam ainda que se trata de um momento ldquoOnde φύσις provavelmente natildeo significa lsquonaturezarsquo mas lsquoas coisas

em sua verdadeira constituiccedilatildeorsquordquo (IDEM IBIDEM 184) 6 ldquoO uacutenico caminho de inquiriccedilatildeo que pode ser pensadordquo (αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι) (KIRK E RAVEN

1957 269) Haacute uma anaacutelise mais detalhada acerca do toacutepico em Ciacutecero Cunha Bezerra ldquoParmeacutenides y la

univocidad del serrdquo Caacutetedra v 1 (2003) 33-48

34

Eacute possiacutevel especular que com a ausecircncia de um princiacutepio solidamente identificado e

natildeo-contraditoacuterio quiccedilaacute nem mesmo uma regra gramatical linguiacutestica poderia ser estabelecida

dando margem mesmo agrave impossibilidade de comunicaccedilatildeo Igualmente tampouco se poderia

delinear uma corrente de haacutebitos pessoais compatiacuteveis aos costumes sociais desabilitando toda

e qualquer eacutetica ou ciecircncia poliacutetica pela qual se pode regulamentar a conduta humana Com a

perspectiva de um devir total e assunccedilatildeo da diferenccedila a presenccedila de certo caos eacute inegaacutevel Com

a fundaccedilatildeo de uma estrutura loacutegica todavia eacute possiacutevel organizar e controlar os pensamentos e

accedilotildees do ser humano e sua convivecircncia social Contudo natildeo necessariamente esta postura iraacute

levar a humanidade para as escolhas mais coerentes ndash e a histoacuteria pode comprovar isto inuacutemeras

vezes O abandono da multiplicidade de perspectivas sobretudo as supracitadas (uma em

detrimento de outra) parece ter dirigido a histoacuteria por vias pouco luacutecidas e por vezes mesmo

autodestrutivas

Mas a anaacutelise da histoacuteria fatual natildeo eacute o que realmente interessa aqui tampouco a

atribuiccedilatildeo de uma culpa ou indicaccedilatildeo de um erro neste ou naquele ponto de vista O que

interessa aqui eacute como identificar a predileccedilatildeo loacutegica do pensamento ocidental com o cerne de

sua postura contemporacircnea e inquirir se eacute possiacutevel (ou se jaacute foi tomado) um caminho de

pensamento distinto e quais os resultados da confrontaccedilatildeo de um ponto de vista com o outro

Para isto eacute preciso retomar uma anaacutelise da histoacuteria da ontologia observando a maneira pela

qual ela se movimenta intriacutenseca e extrinsecamente Dentro das possibilidades de eleiccedilatildeo de um

caminho interpretativo opto aqui em um primeiro momento por absorver a histoacuteria e criacutetica

da metafiacutesica feita por Heidegger durante o seacuteculo vinte com o fito de deixar um pouco mais

evidente o problema fundamental da indistinccedilatildeo entre ser e ente que eacute sem embargo o pontapeacute

inicial de toda a contenda Muito embora seja possiacutevel descortinar a histoacuteria do pensamento

ocidental mediante distintos autores a ecircnfase na nomeada questatildeo do ldquoesquecimento do serrdquo

serve sobremaneira bem ao propoacutesito desta tese

35

Portanto em primeiro lugar eacute preciso considerar que embora ilustrativo Martin

Heidegger passou ao largo de resolver os problemas suscitados pela histoacuteria das ideias Antes

ele desenvolveu problemaacuteticas ainda mais insoluacuteveis e como se natildeo bastasse propocircs novos

enigmas A maior dentre todas as dificuldades talvez ainda precise aguardar muito tempo para

ser descortinada Durante um longo periacuteodo o entretenimento geral dos eruditos se contentou

em traccedilar um denominador comum dentre as vaacuterias questotildees pertinentes aos problemas de sua

filosofia em um movimento enciclopeacutedico quiccedilaacute tatildeo importuno quanto improfiacutecuo de decifrar

seu pensamento Mais conveniente talvez seja simplesmente resguardar o segredo de certas

passagens e aguardar a maturaccedilatildeo necessaacuteria para interpelaacute-las independentemente da espera

suscitada por tal postura

Ainda assim alguns pontos merecem ser postos em relevo e sobre eles decerto vale

despender alguma energia no esforccedilo de meditar acerca de seu sentido Certos trabalhos

compostos por Heidegger guardam de uma soacute vez todo o peso de sua leitura da realidade

notadamente em trechos sutis e aparentemente inofensivos Em momentos nos quais o leitor se

daacute por satisfeito em compreender um posicionamento aparentemente simples e historial como

pueril revisatildeo da histoacuteria da filosofia aiacute mesmo se lhe eacute possiacutevel abrir uma brecha para absorver

a atitude fundamental de seu pensamento Heidegger sempre foi um historiador da filosofia e

natildeo renegou em momento algum o peso de um ofiacutecio como este pelo contraacuterio coube-lhe fazecirc-

lo por diversas vezes e em distintos modos Mesmo quando seus ensaios e conferecircncias se

projetavam a um tema especiacutefico e natildeo a um autor a forte presenccedila de suas interpretaccedilotildees da

histoacuteria da filosofia eacute inegaacutevel Cabe ao propoacutesito desta tese realccedilar um exemplo que torne liacutecito

ilustrar uma fissura por onde seja possiacutevel se esgueirar ateacute a fonte da emanaccedilatildeo especulativa

acerca do sentido da histoacuteria da filosofia e do desenvolvimento do pensamento ocidental

sinocircnimos para o que conveacutem nomear metafiacutesica

36

Aos 13 de novembro de 1935 como sabem os leitores assiacuteduos de Heidegger foi

pronunciada uma conferecircncia preparada para a Kunstwissenschaftlichen Gesellschaft de

Freiburg im Breisgau7 Der Ursprung des Kunstwerkes se tornou de forma veloz e viral um

trabalho amplamente comentado no circuito acadecircmico em geral principalmente no campo da

esteacutetica filosoacutefica e teorias da arte O ponto de vista quase unacircnime dos receptores do trabalho

assentou na interpretaccedilatildeo do texto como uma tese a respeito da arte como ldquoposta em marcha da

verdade enquanto desvelamentordquo uma frase natildeo tatildeo simples de ser decifrada mas repetida

quase como uma foacutermula automaacutetica que se tornou rapidamente um emblemaacutetico clichecirc e uma

resposta imediata agrave pergunta pelo sentido da arte em Heidegger

A popular obra de Michael Inwood A Heidegger Dictionary (1999) destaca

enfaticamente o caraacuteter essencial da proposiccedilatildeo-chave quando pontua no mesmo sentido que

ldquoA obra de arte eacute mais bem um projeto que abre um mundo no qual escolhas podem ser feitas

A verdade a revelaccedilatildeo do lsquoserrsquo eacute o configurar em uma obra e configurar para obra iluminando

o mundo e a terra naquilo que neles perdurardquo (INWOOD 1999 18) Inwood ressalta a

proximidade encontrada por Heidegger entre o termo alematildeo ldquoproteger manterrdquo (bewahren) e

a proacutepria palavra ldquoverdaderdquo (Wahrheit) embora os termos natildeo necessariamente estejam

etimologicamente conectados Ele aponta para a ldquopreservaccedilatildeordquo como elemento pelo qual ldquoA

arte eacute o deixar-acontecer da chegada da verdade do ser enquanto talrdquo (IDEM IBIDEM) com especial

atenccedilatildeo para o proacuteprio fazer (ποίησις) da arte e particularmente da poesia Haacute contudo uma

seacuterie de consideraccedilotildees mais sutis a serem levadas em consideraccedilatildeo nas conferecircncias de

Heidegger proporcionando uma anaacutelise um pouco mais cuidadosa do que estaacute propriamente

em jogo quando Heidegger sobreleva a questatildeo da obra de arte

7 O mesmo trabalho sofreu novas releituras durante todo o ano de 1936 sendo reapresentado respectivamente na

Einladung der Studentenschaft der Universitaumlt em Zuumlrich durante o mecircs de janeiro e na Deutschen Hochstift em

Frankfurt am Main entre novembro e dezembro O ciclo de conferecircncias recebeu ediccedilotildees retrabalhadas em 1956 e

1960 publicadas pela Reclam de Stuttgart e sendo incluiacutedo em 1977 no tomo Holzwege da Gesamtausgabe

37

O editor do volume Holzwege Friedrich-Wilhelm von Hermann dedicou toda uma obra

agrave anaacutelise temaacutetica envolta naquele escrito publicando em 1980 o livro Heideggers Philosophie

der Kunst Em algumas de suas consideraccedilotildees mais amplas sobre as conferecircncias de Heidegger

Hermann atenta para o fato da questatildeo da obra de arte ser levantada a partir de um problema

desdobrado pela ontologia fundamental Hermann observa a problemaacutetica geral do escrito

desde o estabelecimento do ldquoserrdquo como ldquoacontecimentordquo (Ereignis) Conforme ele pondera

trata-se de um trabalho contemporacircneo aos Beitraumlge zur Philosophie (1936-38) Para Hermann

a questatildeo em torno ao ldquoserrdquo como ldquoacontecimentordquo (Ereignis) estende-se em Der Ursprung des

Kunstwerkes por meio de quatro outros problemas (1) o estabelecimento constitutivo da arte

(2) da obra de arte (3) da criaccedilatildeo artiacutestica e (4) da compreensatildeo da arte (cf HERMANN 2001 7)

Contudo circunscrita agrave conferecircncia sobre a arte estaacute a elaboraccedilatildeo da passagem da discussatildeo em

torno agrave verdade do ser para o ldquopensamento da histoacuteria do serrdquo (seinsgeschichtliches Denken)

Trata-se especificamente do momento de transiccedilatildeo do pensamento de Heidegger8 Em

linhas gerais Der Ursprung des Kunstwerkes ressalta uma preocupaccedilatildeo da lida do homem para

com a essecircncia da verdade mediante a obra de arte enquanto coisa Haacute toda uma histoacuteria dos

efeitos pertinentes agraves anaacutelises de Heidegger da obra de Vincent van Gogh9 aleacutem de inuacutemeras

teorizaccedilotildees em torno ao poder salvador da obra de arte Todavia salta aos olhos uma passagem

muito mais peculiar (para qual gostaria de chamar a atenccedilatildeo agora mesmo) qual seja aquela

na qual Heidegger aborda o problema da transposiccedilatildeo da experiecircncia fundamental grega para a

intepretaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo do pensamento romano-latino (cf HEIDEGGER 1977 7)

8 A perspectiva da ontologia fundamental de Sein und Zeit (1927) continuada no curso Grundprobleme der

Phaumlnomenologie ministrado em Marburg durante o semestre de veratildeo de 1927 receberia seu desenvolvimento

desde uma visatildeo historial-reflexiva jaacute na primavera de 1932 ocasiatildeo na qual conforme Hermann satildeo elaboradas

as primeiras linhas de Beitraumlge zur Philosophie redigido entre 1936 e 1938 mas publicado postumamente somente

em 1989 9 Em uma das mais famosas passagens de Der Ursprung des Kunstwerkes Heidegger interpreta os sapatos de um

dos quadros de Vincent van Gogh (natildeo identifica qual todavia) descortinando com isto o cotidiano campesino e

oferecendo uma leitura da realidade a partir de aiacute Uma criacutetica direta foi apresentada por Meyer Shapiro (em The

Still Life as a Personal Object ndash A Note on Heidegger and van Gogh 1968 e ainda em Further Notes on Heidegger

and van Gogh 1994) onde ele sustenta que os sapatos retratados por van Gogh natildeo satildeo de uma pessoa do campo

mas as botas do proacuteprio artista apontando com isto graves mal entendidos na interpretaccedilatildeo de Heidegger

38

Ainda no iniacutecio do escrito Heidegger busca a compreensatildeo mais geral da ldquocoisardquo

abordando como exemplo um bloco de granito A despeito de suas muacuteltiplas caracteriacutesticas ele

enfatiza o ldquoao redorrdquo (das herum sich) pelo qual suas propriedades se agrupam podendo entatildeo

falar de algo como um ldquonuacutecleordquo (Kern) da coisa Esse nuacutecleo de acordo com Heidegger

chamaram-lhe os gregos claacutessicos de ὑποκείμενον Embora ilustrativa a descriccedilatildeo eacute decerto

passiacutevel de baixo niacutevel de representaccedilatildeo posta sua exposiccedilatildeo pouco objetiva O termo eacute mesmo

tatildeo controverso quanto as proacuteprias ideias de ser e ente dentro da perspectiva grega Ela possui

uma carga conceitual talvez natildeo tatildeo difiacutecil de ser desvelada mas que tampouco garante exatidatildeo

e lucidez em sua abordagem variando de eacutepoca para eacutepoca de filoacutesofo para filoacutesofo de

interpretaccedilatildeo para interpretaccedilatildeo Ademais vaacuterias histoacuterias metaforizam o sentido do termo

ὑποκείμενον Uma das mais conhecidas (conto-a sem embasamento ou referecircncias quiccedilaacute

mesmo de maneira inapropriada) relata que certa vez um rei se espantara ao conhecer a obra de

um escultor haacutebil em reproduzir as formas da natureza em blocos de maacutermore Tamanha era a

destreza do artista que se postas lado a lado a escultura e a coisa mesma confundiam-se os

espectadores exceto pelo caraacuteter inanimado da escultura Intrigado o rei mandou chamar o

escultor e perguntou-lhe como fazia para reproduzir com tanta fidelidade o mundo em torno

Natildeo sabendo explicar senatildeo por meio da praacutetica pediu um bloco de maacutermore e agraves vistas do rei

reproduziu perfeitamente um cavalo em tamanho real faltando-lhe apenas galopar O rei lhe

questionou ldquoComo o fizesterdquo e respondeu o escultor ldquofaacutecil apenas retirei do bloco de

maacutermore o que natildeo era cavalordquo O ὑποκείμενον seria portanto aquele elemento sem o qual o

cavalo natildeo seria cavalo ou sem o qual uma coisa natildeo eacute uma coisa Contudo o grande problema

envolto nas tentativas de atingir um entendimento deste sentido por meio de um silogismo uma

loacutegica racional ou uma explicaccedilatildeo conceitual (e natildeo por uma metaacutefora ou estoacuteria) consiste na

dificuldade em elaborar uma equaccedilatildeo que exija menos esforccedilo do ouvinte capacitando uma

lucidez mais ampla e geral que a todos possa atingir

39

Toda definiccedilatildeo a partir de uma predicaccedilatildeo direta pode se configurar ainda mais obscura

e lanccedilar aquele que se propotildee a entender o conceito para um mero encadeamento e conexatildeo de

termos sem contudo realmente promover a experiecircncia do sentido da palavra Sem embargo o

Impeacuterio Romano foi a eacutegide da popularizaccedilatildeo e introspecccedilatildeo do mundo grego competindo-lhes

a tarefa de transpor ao modo latino de pensar os sentidos das meditaccedilotildees gregas Sobre isto

Heidegger ostenta uma posiccedilatildeo bastante firme e vale a pena destacar por completo o trecho no

qual se lhe pode observar sua atitude

Estas denominaccedilotildees natildeo eram meros nomes Em sua fala a experiecircncia fundamental

grega do ser do ente no sentido de sua presenccedila mostrava o que natildeo se podia mostrar

Por meio dessa disposiccedilatildeo instaura-se a interpretaccedilatildeo oficial da coisidade da coisa e

a interpretaccedilatildeo ocidental do ser do ente Comeccedila com a traduccedilatildeo das palavras gregas

para o pensamento romano-latino ὑποκείμενον torna-se subjectum ὑπόστασις torna-

se substantia συνβεβηκός torna-se accidens O processo desta traduccedilatildeo dos nomes

gregos para a liacutengua latina natildeo se daacute sem consequecircncias e nos dias de hoje toma-se

ainda a mesma compreensatildeo Antes pelo contraacuterio por detraacutes da traduccedilatildeo

aparentemente literal haacute um traslado da experiecircncia grega para outro modo de pensar

O pensamento romano assume para si as palavras gregas sem a devida

correspondecircncia com a experiecircncia originaacuteria do que dizem sem a palavra grega A

falta de fundamento do pensamento ocidental comeccedila com essas traduccedilotildees (IDEM

IBIDEM 7-8)

Responsabilizar o pensamento romano-latino pela queda do Ocidente no abismo da falta de

fundamento delega a Heidegger um encargo de peso formidaacutevel cujo maior perigo talvez seja

o de natildeo se ambientar aqui ou ali dentro deste ou daquele territoacuterio neste ou naquele lugar

mas na posiccedilatildeo do meio na esfera do entre no desenho do limite da linha da fronteira

40

A direccedilatildeo do pensamento de Heidegger a partir desta passagem claramente se constitui

desde uma divisatildeo da metafiacutesica ocidental em dois momentos muito distintos embora

interligados A emboscada se encontra na percepccedilatildeo de que todo e qualquer ocidental eacute jaacute

sempre forccedilado a se movimentar na esfera da ontologia latina ao passo que o retorno aos

fundamentos da ontologia grega eacute antes de tudo calcar terreno em solo incerto e regiatildeo

desconhecida Estabelecer uma ponte que permita ao ser humano contemporacircneo entender a

proveniecircncia de sua apreensatildeo da existecircncia eacute um roteiro deveras ousado Resta saber como eacute

possiacutevel ainda pensar os conceitos fundamentais da metafiacutesica dentro de sua propriedade sem

causaacute-los algum tipo de dano que faccedila seu sentido se perder ser obscurecido ou transviado

A partir da colocaccedilatildeo do problema da obra de arte enquanto coisa Heidegger questiona

o que enfim se compreende pelo termo mesmo ldquocoisardquo quando se compromete com a ideia de

tentar envolvecirc-lo conceitualmente (a partir de ὑποκείμενον ὑπόστασις e συνβεβηκός) e desde

aiacute extrair uma explicaccedilatildeo Sobre isto Hermann comenta ldquoComo podemos ver ainda mais e

melhor resolver o problema da obra de arte se torna um problema ontoloacutegico ndash isto eacute em

primeira instacircncia o problema ontoloacutegico do ser-res da resrdquo (HERMANN OP CIT 87) entenda-se

ainda o problema da coisidade da coisa Ele ainda complementa deixando ver a postura exigida

pela tarefa de entender a ontologia grega ldquoPortanto explicar o pensamento grego significa

antes de tudo revelar novamente a experiecircncia de estar no lugar em que se encontra a expressatildeo

de acordo com o fio condutor da palavra filosoacutefica gregardquo (IDEM IBIDEM 93-94) Sem embargo

conforme aponta Hermann (em coerecircncia com Heidegger) o ofiacutecio de introduzir a filosofia

grega (ou se introduzir na filosofia grega sua ontologia e berccedilo da metafiacutesica) constitui-se

desde o caminhar ao lado do fio condutor de sua expressatildeo e manifestaccedilatildeo A caminhada talvez

seja ela mesma o ldquoestar no lugar em que se encontra a expressatildeordquo ou o espaccedilo do ldquoentrerdquo a

ldquolinha de fronteirardquo

41

Algumas dezenas de leituras podem ser desdobradas desde a interpretaccedilatildeo de Heidegger

do lugar de transiccedilatildeo da histoacuteria do ser O itineraacuterio do pensamento de Heidegger legou aos

fieacuteis depositaacuterios de sua vasta caminhada a tarefa ingloacuteria de dar uma passo aleacutem Gostaria de

destacar aqui um direcionamento um pouco menos ousado nem por isto ingecircnuo Considerar

uma histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica em Heidegger eacute procurar pela fenda cuja passagem

encaminha diretamente ao salto no abismo da superaccedilatildeo da metafiacutesica embora natildeo fique ainda

claro o significado destes termos Ademais a intenccedilatildeo aqui eacute justamente esta esclarecer os

enlaces desse percurso histoacuterico nomeado sob o signo da metafiacutesica agrave luz da trajetoacuteria

interpretativa de Heidegger

Justamente sob o tiacutetulo Itineraacuterio do Pensamento de Heidegger (1965) Emmanuel

Carneiro Leatildeo apresenta sua traduccedilatildeo para o portuguecircs da Einfuumlhrung in die Metaphysik (1935)

de Heidegger ndash segundo ele nem de perto uma obra de faacutecil acesso Em primeiro lugar pela

impossibilidade geral de uma introduccedilatildeo em filosofia no sentido amplo Em outras palavras

natildeo haacute caminho de iniciaccedilatildeo agrave filosofia como se houvesse ainda um siacutetio no qual se a conquista

Haacute na verdade o puro levantar de questotildees responsaacuteveis por conduzir o pensamento para dentro

da proacutepria filosofia Carneiro Leatildeo elucida tal dificuldade quando especifica o tiacutetulo da obra

Introduzir agrave metafiacutesica eacute movimentar-lhe a questatildeo fundamental de maneira a

conduzi-la (-ducere) para dentro (-intro) das origens donde a metafiacutesica procede Um

esforccedilo de pensamento que nada tem de horizontal e progressivo Cujo movimento

se processa antes no sentido vertical e regressivo (CARNEIRO LEAtildeO 1999 10)

A filosofia busca o movimento imputado para originaacute-la para com isto retornar agraves suas origens

proacuteprias Em segundo lugar e natildeo menos importante a obra ainda guarda certa inacessibilidade

devido agrave intencional ambiguidade de um periacuteodo conturbado de transiccedilatildeo do pensamento de

Heidegger (tambeacutem evidenciado por Hermann)

42

Eacute preciso movimentar a questatildeo fundamental da metafiacutesica para conduzi-la para dentro

de suas origens Agora bem destacar a questatildeo fundamental eacute o primeiro passo de Heidegger

na obra quando questiona ldquoPorque haacute em geral o ente e natildeo antes nadardquo (HEIDEGGER 1983b

3) Um adendo eacute necessaacuterio ao leitor lusoacutefono Carneiro Leatildeo em sua traduccedilatildeo explica o

emprego do termo ldquoenterdquo para traduzir o alematildeo Seiendes justificando o uso da forma erudita

referida ao latim ens entis para salvaguardar o caraacuteter de tudo que eacute independentemente de

seu modo de ser (cf CARNEIRO LEAtildeO OP CIT 77 nota) Ponderando isto a leitura de Carneiro

Leatildeo segue um rumo bastante simples e esclarecedor ele afirma

O homem natildeo pode existir senatildeo em comeacutercio e comunhatildeo com o mundo dos entes

Ente significa tudo que de algum modo eacute o homem as coisas os acontecimentos ateacute

mesmo o Nada enquanto eacute um Nada ieacute enquanto tem um significado () (IDEM IBIDEM

11)

A forccedila responsaacutevel por manter a decisatildeo a respeito dos entes depende diretamente da

capacidade de enxergar suas distinccedilotildees Em um compecircndio unitaacuterio a base de sustentaccedilatildeo no

comeacutercio com os entes se daacute na e pela linguagem mediante a qual o homem simplesmente

afirma eacute Uma afirmaccedilatildeo aparentemente simples guarda contudo uma relaccedilatildeo complexa e

ambiacutegua talvez mesmo em decorrecircncia de sua extrema simplicidade

A existecircncia humana se agita dentro da tensatildeo entre imanecircncia e transcendecircncia

porque o homem existe enquanto in-siste no domiacutenio da Verdade do Ser ieacute a

vicissitude instaurada pela diferenccedila irredutiacutevel e referecircncia necessaacuteria entre ente e

ser A tarefa do pensamento natildeo eacute procurar sair decircsse ciacuterculo de diferenccedila e referecircncia

e sim necircle ingressar de maneira a poder regressar ateacute a fonte originaacuteria de sua tensatildeo

e unidade (ID IBID 15)

43

O atino para o ingresso ao interior da tarefa do pensamento deixa bastante evidente a intitulaccedilatildeo

da obra Eacute possiacutevel conceber a empreitada em regressar ao fundamento desde o qual a metafiacutesica

eacute ela mesma a proveniecircncia da tensatildeo em torno agrave unidade da existecircncia perante a multiplicidade

Eacute preciso destarte compreender que ldquoSoacute poderemos entender os pensamentos os conceitos

ou as explicaccedilotildees dados na medida em que nos ex-pusermos e dis-pusermos aquilo que se pensa

que se concebe ou que se explicardquo (ID IBID 29) acompanhando assim os passos de Heidegger

e verificando sua coerecircncia teoacuterica de levar colocar e se pocircr no estado da questatildeo

Esta mesma ambivalecircncia eacute tambeacutem destacada por Heidegger quando ele se refere ao

ambiacuteguo das formas essenciais do espiacuterito Natildeo se trata portanto de uma dedicaccedilatildeo integral agraves

possibilidades de captar de maneira exclusivamente formal os procedimentos que envolvem os

estudos mas de perceber (αἴσθησις) e experienciar os fenocircmenos Heidegger adverte ainda

Tomada na totalidade de seu sentido mais cru a filosofia sempre lida com o

fundamento do ente de tal maneira que o proacuteprio ser humano tem enfaticamente a

experiecircncia de seu significado e propoacutesito Por isto agora se vislumbra facilmente a

amplitude da filosofia que poderia e deveria proporcionar o fundamento da existecircncia

da eacutepoca histoacuterica atual e futura pela qual se estabelece a cultura Com tais

espectativas e demandas o estado e a essecircncia da filosofia satildeo sobrecarregadas Na

maior parte das vezes essa demanda excessiva se mostra pela forma de uma censura

da filosofia Diz-se por exemplo porque a metafiacutesica natildeo participou na preparaccedilatildeo

para a revoluccedilatildeo ela deve ser rejeitada Isto eacute tatildeo espirituoso quanto dizer que porque

vocecirc natildeo pode voar com um tocircrno portanto este deve ser abandonado A filosofia

natildeo provecirc diretamente forccedilas nem modos de accedilatildeo e criaccedilatildeo para ajeitar a condiccedilatildeo

histoacuterica simplesmente pelo motivo de dizer respeito apenas a poucos Quais poucos

Aqueles que transformam criativamente convertendo os fins Afetando uma vastidatildeo

apenas indiretamente e nunca fazendo rodeios ateacute certo ponto onde finalmente desde

o longo esquecimento da filosofia degenera-se como autocompreensatildeo da existecircncia

(HEIDEGGER OP CIT 12)

44

Heidegger aponta certa responsabilidade da filosofia na formaccedilatildeo da cultura e direcionamento

da eacutepoca presente e futura A chamada ldquoessencializaccedilatildeo da filosofiardquo eacute em grande parte

responsaacutevel pela tomada de rumo e pela constituiccedilatildeo da histoacuteria ateacute mesmo por seu abandono

Agrave ela estaacute diretamente conectada a ldquoessencializaccedilatildeo do serrdquo e maneira pela qual a filosofia se

apresenta como contemplaccedilatildeo dos fundamentos do ente

Heidegger explica em pormenores a diferenccedila entre ser e ente quando expotildee a gramaacutetica

e etimologia da palavra Certa advertecircncia contudo clama a petrificaccedilatildeo das normas

gramaticais ocas e vazias destituindo a Escola do Mundo do Espiacuterito que circunda a

morfologia dos termos e se restringindo tatildeo somente agrave transmissatildeo de regras do uso da palavra

Neste sentido a maneira pela qual se ostenta a ldquogrande gramaacuteticardquo eacute em si mesma o processo

de substantivaccedilatildeo do Ocidente visto como o cerrar das fronteiras como delimitaccedilatildeo

Tambeacutem em Einfuumlhrung in die Metaphysik Heidegger insiste no argumento exprimido

em Der Ursprung des Kunstwerkes seguindo o fluxo comentado acima quando afirma outra

vez ldquoQue essas formas gramaticais natildeo dissecaram desde toda eternidade uma linguagem

absoluta enquanto controle elas satildeo de fato erigidas de uma particular interpretaccedilatildeo da liacutengua

grega pela liacutengua latinardquo (ID IBID 56) Em outras palavras a linguagem possibilita sendo ela

tambeacutem um ente manipulaccedilatildeo e controle por sobre suas formas Por este motivo eacute possiacutevel

transmitir o conhecimento de uma liacutengua estrangeira somente com o ensino da gramaacutetica

mesmo para pessoas que nunca realmente entraram em contato com essa determinada liacutengua

Ou ainda aprender um idioma antigo natildeo mais utilizado ou cujo vigor ou esplendor se apagou

como o latim o grego claacutessico ou o sacircnscrito antigo sem ter a possibilidade de experenciaacute-los

no cotidiano O domiacutenio teoacuterico de uma liacutengua pode permitir ainda intuiccedilotildees e analogias a

respeito da experiecircncia que esta liacutengua provocava em seus falantes originais sem contudo

garantir exatidatildeo das disposiccedilotildees ou estados de acircnimo referidos pelos termos

45

Dentro da gramaacutetica e morfologia do ser Heidegger evidencia que existe um duplo

sentido para a palavra dentro de seu entendimento como consistecircncia (Staumlndigkeit) qual seja

a) o estar em si mesmo enquanto proveniente de si mesmo e b) o que perdura constantemente

enquanto tal Consistecircncia eacute a palavra-chave de sua leitura do termo ser dentro da circunvisatildeo

grega claacutessica Heidegger aponta que justamente por isso o natildeo-ser denota a desistecircncia ou a

saiacuteda da existecircncia ou ainda o abrir matildeo do ldquosalto para aleacutemrdquo Jaacute a etimologia da palavra ser

revela como os sentidos manifestos pela gramaacutetica e morfologia foram confundidos

historicamente Heidegger expotildee trecircs raiacutezes do termo uma sacircnscrita (es asus) outra indo-

germacircnica (bhuuml) e uma apenas germacircnica (sein) Conforme suas interpretaccedilotildees elas se

desdobram respectivamente em um sentido de ldquoviverrdquo ldquosurgirrdquo e ldquopermanecerrdquo Tratam-se de

verbos distintos todavia Heidegger natildeo citas as fontes das quais ele extrai tais etimologias

Ateacute onde eacute possiacutevel investigar o termo sacircnscrito mais proacuteximo ao que ele considera es

asus seria asti (अनतत) cuja raiz ās (आस) possui incontaacuteveis significados dentre os quais ldquoexistirrdquo

ldquoestar presenterdquo ldquopermanecerrdquo entre vaacuterios outros Aparentemente eacute a origem do indo-europeu

es cujo similar em grego seria o morfema ἐστί e em latim esse (sobremaneira visiacutevel no

portuguecircs estar) Jaacute a palavra bhuuml provavelmente indicada por Heidegger como ldquoindo-

germacircnicardquo em consequecircncia da formataccedilatildeo do verbo ser como ldquobinrdquo ldquobistrdquo (ou ainda ist e em

inglecircs ldquoisrdquo) eacute tambeacutem ela sacircnscrita (bhū भ) e estaacute presente em vaacuterias outras liacutenguas indo-

europeias (como no inglecircs being) Seu significado mais geral seria ldquoserrdquo ou ldquoexistirrdquo embora

aponte tambeacutem para ldquoacontecerrdquo ou ldquoperceberrdquo aleacutem de outros sentidos Sein tambeacutem pode ser

rastreado ateacute certo ponto em sua origem germacircnica no mittelhochdeutsch sīn e no

althochdeutsch wesan derivado da raiz sacircnscrita ves (वस) que daria as formas de Wesen

(essecircncia) ou (war o preteacuterito de Sein ser) em alematildeo De qualquer forma a questatildeo leva

imediatamente ao que Heidegger chama de ldquoessencializaccedilatildeo do serrdquo O motivo eacute simples viver

surgir e permanecer satildeo manifestaccedilotildees que interpelam o ser humano inevitavelmente

46

Contudo o ser ao interpelar o humano natildeo se manifesta antes se oculta esconde sua

proveniecircncia mostra-se ambiacuteguo e pela metade A forma de manifestaccedilatildeo do ser passiacutevel de

ser apreendida como uma realidade existente daacute-se por meio de sua participaccedilatildeo na realidade

presente qual seja ente (seu particiacutepio presente) A predileccedilatildeo pelo ente nasceria justamente

de seu caraacuteter manipulaacutevel embora haja uma conclusatildeo que clama as variaccedilotildees da palavra ser

e seu comportamento com respeito ao ldquoser em si mesmordquo evocado de modo distinto de outros

substantivos e verbos com relaccedilatildeo aos seus respectivos entes A eleiccedilatildeo de uma manifestaccedilatildeo

do ser diz muito sobre o modo relacional do humano com a conduccedilatildeo de sua existecircncia10

Alguns anos antes da composiccedilatildeo da Einfuumlhrung em um compecircndio posteriormente

publicado sob o tiacutetulo Sein und Wahrheit (1933-34) Heidegger se aproximou sistematicamente

da constituiccedilatildeo histoacuterica da metafiacutesica A obra eacute todavia pouco comentada O motivo eacute simples

haacute certo complexo ou trauma envolto na abordagem de um texto do periacuteodo da ascensatildeo do

Partido Nazi e do consentimento ao seu propoacutesito inicial Embora haja certos traccedilos de sintonia

com o discurso do momento pelo qual o povo alematildeo atravessava natildeo haacute nenhum resquiacutecio em

Heidegger dos preconceitos intriacutensecos ao desenrolar do totalitarismo Dentro do ambiente

promissoramente inovador Heidegger escreve ldquoToda gestatildeo essencial se vivifica desde uma

grande determinaccedilatildeo oculta no fundamentordquo (ID 2001 3) As palavras de Heidegger parecem

indicar antes de uma referecircncia ao destino da Alemanha o fato de que a questatildeo fundamental

estaacute contida no proacuteprio fundamento Por este motivo Heidegger ainda sugere um ldquo() caminho

histoacuterico na essecircncia da filosofia ndash e natildeo se poderia ter outro e isto justamente porque a filosofia

eacute ela mesma o acontecimento fundamental da histoacuteria da existecircnciardquo (ID IBIDEM 17) Resta

saber portanto como esse acontecimento fundamental se constitui como metafiacutesica

10 Heidegger justifica este ponto na sua apresentaccedilatildeo do conceito de Cura Sorgen em Sein und Zeit que embora

seja de suma importacircncia uma explanaccedilatildeo mais cuidadosa tomaria aqui e agora demasiado tempo mas que

precisa ao menos ser mencionada Seria esta caracteriacutestica originaacuteria do ser humano Cura Cuidado (Sorgen)

aquilo que o impulsionaria a preservar sua condiccedilatildeo evitando a queda nos abismos existenciais e a confusatildeo

generalizada (cf HEIDEGGER OP CIT 196-200)

47

Quando a tarefa eacute compreender a histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica realizada por Heidegger

insisto nunca eacute demasiada repeticcedilatildeo retomar as primeiras linhas de Sein und Zeit Vale lembrar

uma vez mais a disputa titacircnica a respeito da essecircncia (γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας) que

envolve os questionamentos aparentemente desprestigiados da metafiacutesica Conforme Heidegger

a maneira pela qual o problema perdurou sofreu alteraccedilotildees de Platatildeo e Aristoacuteteles ateacute sua

formulaccedilatildeo mais sofisticada na Wissenschaft der Logik (1812-16) de Georg W F Hegel Em

Sein und Wahrheit eacute tambeacutem a discussatildeo com Hegel que orienta a anaacutelise da metafiacutesica

tradicional Ateacute alcanccedilar Hegel entretanto Heidegger se preocupa em delinear as feiccedilotildees da

perda de sentido da μετὰ τὰ φυσικά aristoteacutelica na recepccedilatildeo tardia de seus escritos onde

ldquoGrandeza e iacutempeto desaparecem tanto na singularidade do questionamento criativo quanto na

designaccedilatildeo conceitual a praccedila desocupada daacute lugar agrave atividade de uma escola ndash somente

sobraram palavras e conceitos mas natildeo o poder estimulante da coisardquo (ID IBID 21)

Para Heidegger a unificaccedilatildeo do termo grego na palavra latina metaphysica natildeo eacute

acompanhada somente de uma correspondecircncia senatildeo ao mesmo tempo de uma mudanccedila em

seu significado Inerente agrave transformaccedilatildeo de seu sentido estaacute a apropriaccedilatildeo cristatilde do conceito

imputando um conhecimento suprassensiacutevel (trans physicam) de maior grau de importacircncia e

relevacircncia e diretamente relacionado ao divino Onde antes havia perplexidade na aspiraccedilatildeo agrave

sapiecircncia e observaccedilatildeo da realidade haacute agora um conhecimento humano elevado e suscetiacutevel agrave

confirmaccedilatildeo pela ciecircncia superior Heidegger visa e cita textualmente a formulaccedilatildeo de

Immanuel Kant da metafiacutesica como a ultrapassagem de todos os objetos empiacutericos a fim de

alcanccedilar um conhecimento viaacutevel e puro ou a superaccedilatildeo do conhecimento sensiacutevel pelo

conhecimento suprassensiacutevel11

11 Embora esta premissa esteja presente jaacute na Kritik der reinen Vernunft e em certa medida em suas especulaccedilotildees

preacute-criacuteticas atingindo ainda todos os escritos intercalados agraves duas outras criacuteticas e ainda os posteriores ele parece

se referir agraves conferecircncias de Kant reunidas por Karl Heinrich Ludwig Poumllitz publicadas em Vorlesungen Kants

uumlber Metaphysik aus drei Semestern Max Heine (org) Leipzig Hirzel 1984 (natildeo tenho certeza disto entretanto)

48

Haacute ainda a absorccedilatildeo do direito agrave verdade metafiacutesica pela ontologia claacutessica e neste

sentido Heidegger cita Alexander Baumgarten onde a verdade metafiacutesica eacute o princiacutepio

universal e fundamental em conveniecircncia agrave determinaccedilatildeo do ente enquanto tal Deste modo

conclui que a metafiacutesica se constitui como uma determinaccedilatildeo cristatilde e ideia matemaacutetico-

metoacutedica de fundamentaccedilatildeo nos sistemas metafiacutesicos da modernidade onde ela se apresenta

como conhecimento do ente em seu todo Hegel ocuparia neste sentido o lugar da consumaccedilatildeo

da plenitude da filosofia ocidental na metafiacutesica destacado o caraacuteter teoloacutegico no qual a medida

do saber eacute o ldquoinfinitordquo (perfectum) manifesto enquanto identidade absoluta (perfectissimus)

ou espiacuterito absoluto Por este motivo ao que parece quando se refere agrave histoacuteria da disputa

titacircnica sobre a essecircncia em Sein und Zeit Heidegger aponta a Wissenschaft der Logik de Hegel

como ponto de chegada Ali a loacutegica eacute entendida como ciecircncia do pensamento todavia natildeo

como ciecircncia responsaacutevel por regular o pensamento mas como fundamento do conceito e em

uacuteltima instacircncia fundamento do ente em si mesmo Heidegger explica dizendo que em Hegel

ldquoA metafiacutesica como ciecircncia do ser do ente eacute lsquoLoacutegicarsquo e esta Loacutegica eacute Loacutegica lsquodorsquo Absoluto isto

eacute de Deus Genitivo deliberadamente ambiacuteguo Natildeo apenas um genitivus objectivus Deus

representado mas sim genitivus subjectivus a essecircncia de deus como presenccedila do Espiacuterito

Absolutordquo (ID IBID 76) Em um momento final da exposiccedilatildeo da questatildeo fundamental da

filosofia Heidegger faz uma divisatildeo entre a filosofia ocidental em seu princiacutepio e em seu fim

escrevendo que

No princiacutepio a mais profunda necessidade era o questionamento na luta com os

poderes incontrolaacuteveis da verdade e da decepccedilatildeo A filosofia causava o mais alto

poder clarificante da naccedilatildeo e de sua existecircncia Riqueza de decisatildeo momento de

decisatildeo No fim alta bem-aventuranccedila na suspensatildeo das contradiccedilotildees fraqueza de

meros conceitos opostos fracasso e morte de todo questionamento Eternidade vazia

cheia de indecisotildees (ID IBID 77)

49

A eternidade vazia cheia de indecisotildees todavia natildeo soa aqui como algo proveniente de um

descontentamento Pelo contraacuterio emerge desde a simples oposiccedilatildeo de conceitos com o fito de

suspender contradiccedilotildees e evidenciar uma maacutexima clareza e nitidez com o intuito de um suposto

pleno contentamento como se a profunda necessidade de questionamento houvesse sido calada

pela extrema emergecircncia de soluccedilatildeo Um abismo entre a filosofia ocidental em seu princiacutepio e

em seu fim eacute diagnosticado de maneira direta e evidente Longe de apontar culpados ou

referendar uma condenaccedilatildeo agrave metafiacutesica claacutessica Heidegger explica o processo intriacutenseco de

explicaccedilatildeo e complicaccedilatildeo da metafiacutesica evidenciando fatualmente a transiccedilatildeo do pensamento

da histoacuteria do ser da ontologia grega agrave latina A distacircncia que provecirc de clareza a anaacutelise eacute todavia

bastante tendenciosa aos propoacutesitos da ontologia fundamental A maneira pela qual a proacutepria

ontologia se protege com uma complexidade de conceitos dificulta a visualizaccedilatildeo do percurso

histoacuterico e da explanaccedilatildeo esclarecedora

Vale portanto retomar alguns aspectos relevantes embora por vezes sutis da pesquisa

acerca da ontologia na metafiacutesica claacutessica Gostaria de propor um breve desvio que agrave primeira

vista pareceraacute desnecessaacuterio contudo configura-se como extremamente pertinente ao

propoacutesito do capiacutetulo Atualmente as pesquisas voltadas ao estudo da ontologia se restringem

ou bem ao estudo histoacuterico ou bem agraves repercussotildees da metafiacutesica na filosofia contemporacircnea

Via de regra servem de embasamento para questotildees projetadas aos assuntos pertinentes da

eacutepoca vigente A ontologia se torna assim uma ldquoaacuterea da filosofiardquo uma ldquodisciplinardquo ou mesmo

um tronco braccedilo ou ramificaccedilatildeo dos estudos filosoacuteficos Os pesquisadores responsaacuteveis por

esta aacuterea da filosofia desdobram prolegocircmenos e comentaacuterios explicativos aos textos claacutessicos

fundamentando muacuteltiplas outras aacutereas Poucas vezes eacute possiacutevel observar um trabalho sobre

ontologia que realmente conecte seu sentido primaacuterio aos problemas apresentados nos dias de

hoje todavia escavando com devoccedilatildeo algumas pesquisas emergem sobremaneira conexas

50

A ontologia parece ser mesmo ldquoutilizadardquo como ponte para abrir novos caminhos como

por exemplo as discussotildees histoacutericas na anaacutelise do desenvolvimento da cultura as

investigaccedilotildees epistemoloacutegicas na confrontaccedilatildeo das possibilidades de conhecimento as

consideraccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas na constituiccedilatildeo dos haacutebitos e costumes da relaccedilatildeo do ser humano

com as virtudes deveres e utilidades os juiacutezos esteacuteticos na relaccedilatildeo com a obra de arte ou

mesmo as bases psicanaliacuteticas do entendimento do proacuteprio humano e sua relaccedilatildeo com as coisas

e o mundo entorno

Um dos exemplos mais niacutetidos de um pensamento comprometido em discutir a

ontologia por si mesma observando a maneira pela qual as categorias ontoloacutegicas dispotildeem

ainda hoje os modos de estruturar a realidade talvez se apresente nas recentes discussotildees em

torno ao ldquodigitalrdquo e ao ldquovirtualrdquo ou as propostas de uma ldquoontologia digitalrdquo Ouvi falar pela

primeira vez sobre ldquoontologia digitalrdquo por meio de Rafael Capurro em 2009 durante o III

Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica realizado em Natal na Universidade Federal do Rio

Grande do Norte12 Ateacute entatildeo possuiacutea minhas proacuteprias teorias acerca do mundo digital e da

esfera virtual da internet todavia natildeo tinha sequer noccedilatildeo da envergadura do problema e da

maneira pela qual o assunto podia ser pensado desde uma perspectiva ontoloacutegica e natildeo

meramente poliacutetico-ativista ou mesmo teoacuterico-juriacutedica Embora este natildeo seja propriamente o

assunto do capiacutetulo gostaria de abordar o tema como forma de justificar o questionamento pela

ontologia claacutessica para aleacutem da mera constataccedilatildeo historiograacutefica Conforme pude acompanhar

a inquietaccedilatildeo que move os trabalhos se concentra na crenccedila segundo a qual todos os fenocircmenos

podem ser analisados construiacutedos e manipulados sob a condiccedilatildeo de poderem ser digitalizados

12 A discussatildeo de Capurro havia comeccedilado com uma troca de e-mails com Michael Eldred A conversa redundou

em primeira matildeo nos trabalhos de Capurro intitulados Entwurf einer digitalen Ontologie (1999) e Beitraumlge zu

einer digitalen Ontologie (1999) sendo estendida em ulteriores escritos como Interpreting the digital human

(2008) e Einfuumlhrung in die digitale Ontologie (2009) aleacutem do livro publicado por Eldred The Digital Cast of

Being (2009) Provavelmente a discussatildeo ainda prossegue e outros trabalhos foram ou estatildeo sendo publicados

51

Talvez como um chiste mas bastante pertinente e veriacutedico Capurro afirma que

atualmente se algueacutem natildeo estaacute na rede eacute como se natildeo existisse Dando impulso para uma

formulaccedilatildeo inusitada esse est computari em analogia agrave famosa foacutermula de George Berkeley

(esse est percipi) A conclusatildeo bastante perspicaz extraiacuteda por Capurro eacute a de que seria correto

dizer que hoje vemos a realidade no horizonte de sua digitabilidade Uma seacuterie de outros termos

e expressotildees natildeo-convencionais emergem do texto de Capurro como ldquoem tudo que eacute puramente

virtual as coisas consistem essencialmente em bitsrdquo ou a denominaccedilatildeo ldquopitagorismo digitalrdquo

Entretanto todas as definiccedilotildees e determinaccedilotildees estatildeo conectadas ao arcano questionamento em

torno ao ente

O que eacute o ente Esta pergunta fundamental da metafiacutesica natildeo pode ter uma resposta

definitiva a partir da perspectiva de um conhecimento finito sem cair na ilusatildeo

essencialista Isto tem consequecircncias para a problemaacutetica de como pensar uma cultura

digital Uma ontologia digital eacute uma interpretaccedilatildeo possiacutevel do ser dos entes vistos

desde sua digitabilidade No entanto tal ontologia corre sempre o perigo de

transformar-se em uma metafiacutesica digital no momento em que acredita ser a

verdadeira ou uacutenica resposta agrave pergunta pelo ser A ontologia digital eacute uma possiacutevel

compreensatildeo do ser por parte do conhecimento humano finito Todas as regiotildees ou

esferas dos entes satildeo concebidas entatildeo como digitais (CAPURRO 2009 322)

A introduccedilatildeo da digitabilidade para aleacutem da anaacutelise do ldquoserrdquo quantificado pela ciecircncia moderna

confere uma perspectiva nova de experimentaccedilatildeo do ente em sua totalidade Chama atenccedilatildeo o

perigo envolto na transformaccedilatildeo em uma ldquometafiacutesica digitalrdquo na qual uma virada ontocecircntrica

concentraria o poder da verdade enquanto julgamento como oriente agrave pergunta pelo ldquoserrdquo

Talvez o mais importante da anaacutelise de Capurro consista justamente na renovaccedilatildeo desta criacutetica

na qual se chama atenccedilatildeo para a imprecisatildeo especulativa por meio da indefiniccedilatildeo do virtual

52

Natildeo eacute difiacutecil perceber que o mundo digital oferece uma vasta gama de temas e

possibilidades de se pensar filosoficamente sob as mais diversas perspectivas Natildeo haacute grande

espanto na busca dos filoacutesofos por reflexotildees em torno aos acontecimentos revolucionaacuterios dos

veiacuteculos de informaccedilatildeo e tecnologias em geral no seacuteculo vinte-e-um Contudo admiraacutevel eacute

encontrar o caminho oposto o momento no qual desenvolvedores da ciecircncia e da teacutecnica

buscam a filosofia para fundamentar seus trabalhos Eacute caso dos estudos realizados por Peter

Oslashhrstroslashm Henrik Schaumlrfe e Sara L Uckelman cujos resultados foram publicados nos anais da

International Conference on Conceptual Structures um evento dedicado agrave ciecircncia da

computaccedilatildeo Os trecircs investigadores fundamentam desde a ontologia moderna claacutessica a

concepccedilatildeo de hipertexto um conceito fundamental da computaccedilatildeo13 Para Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e

Uckelman o nascimento do termo ldquoontologiardquo representa o estabelecimento de um hipertexto

sobre a realidade e a temporalidade em pleno seacuteculo dezessete Os pesquisadores se referem

especificamente a Jacob Lorhard autor dos oito volumes intitulados Ogdoas Scholastica (1606)

responsaacutevel por cunhar o termo ldquoontologiardquo pela primeira vez na histoacuteria

Lorhard compocircs sua Ogdoas como uma gramaacutetica para o ensino escolar por meio de

aacutervores diagramaticais A teacutecnica utilizada por Lorhard foi profundamente influenciada por

Petrus Ramus (Pierre de la Rameacutee) cujo objetivo era transformar a razatildeo dialeacutetica em um

meacutetodo de loacutegica pedagoacutegica Petrus Ramus foi uma figura controversa e polecircmica Aleacutem de

suas interpretaccedilotildees pouco ortodoxas de Aristoacuteteles Ramus defendia uma completa reforma no

sistema educacional Ele fomentava o espiacuterito humanista pelo qual procurava devolver agrave

retoacuterica sua posiccedilatildeo proeminente visando desautorizar o peso da loacutegica escolaacutestica14

13 A ideia de hipertexto eacute bastante antiga todavia o termo no sentido moderno foi cunhado por Ted Nelson em

1965 para descrever o sistema de escrita natildeo-sequencial que envolvia o ligamento entre textos distintos em uma

mesma interface na internet O sistema de hyperlinks em um siacutetio da internet eacute um exemplo bastante simples de

um hipertexto 14 Cf Petrus Ramus Sa Vie Ses Eacutecrits et Ses Opinions Charles Waddington (ed) Paris Librairie de Ch Meyrteis

1855 Acerca das singularidades de Petrus Ramus confira Laura Adriaacuten Lara ldquoPetrus Ramus y el ocaso de la

retoacuterica ciacutevicardquo Utopiacutea y Praxis Latinoamericana v 13 n 43 (out-dez 2008) 11-31 e ainda Frank P Graves

Petrus Ramus and the Educational Reformation of Sixteenth Century New York Macmillan 1912

53

Havia um profundo espiacuterito anti-escolaacutestico que movia os interesses de Ramus

enfatizando uma postura radical na qual a filosofia ramista considerava falsa todas as

afirmaccedilotildees de Aristoacuteteles Para facilitar o processo de aprendizagem pelo qual o domiacutenio das

ciecircncias e artes liberais pode ser alcanccedilado Ramus emprega seus ldquoesquemas visuais abstratosrdquo

Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman se referem aos esquemas de Ramus como base para a aacutervore

diagramatical de Jacob Lorhard ndash para os pesquisadores este tipo de diagrama eacute o berccedilo de

todo futuro hipertexto

Eacute faacutecil observar que a estrutura da Ogdoas Scholastica de Jacob Lorhard permite ao

leitor localizar conceitos especiacuteficos e suas respectivas definiccedilotildees por meio de uma rede de

interconexotildees na forma de diagramas A ldquoaacutervorerdquo facilita natildeo soacute a compreensatildeo dos conceitos

como tambeacutem a maneira pela qual eles se relacionam uns com os outros Sem embargo trata-

se de uma gramaacutetica pela qual o domiacutenio de conceitos fundamentais da metafiacutesica se torna

bastante simples concordando em absoluto com a demanda da eacutepoca em introduzir este tipo de

estudo nos niacuteveis baacutesicos de ensino Com obras como as de Lorhard a exigecircncia do estudo da

ontologia foi difundida durante o seacuteculo dezoito como parte essencial da formaccedilatildeo acadecircmica

baacutesica15 Aleacutem disto a Ogdoas ainda sustentava a eacutegide da clarificaccedilatildeo da ontologia como base

para todo ulterior desenvolvimento intelectual Em outros termos Lorhard (assim como Ramus)

acreditava que natildeo era possiacutevel esclarecer nenhuma ciecircncia se natildeo houvesse de antematildeo uma

lucidez absoluta a respeito dos fundamentos do ente que poderia ser proporcionada apenas pelo

estudo por ele nomeado ldquoontologiardquo um discurso que buscava um pleno esclarecimento dos

termos empregados para definir todo e qualquer ulterior passo tomado tanto nas ciecircncias do

espiacuterito quanto nas ciecircncias da natureza

15 Muito disto deve-se ao filoacutesofo norueguecircs Jens Kraft cuja obra (influenciada em larga escala pela Metaphysica

sive Ontologia de Christian Wolff) reforccedilou o peso dos estudos em ontologia Dentro da compreensatildeo de Kraft

compartilhada tambeacutem por Lorhard e outros a ontologia ganha um lugar privilegiado como unificaccedilatildeo sistemaacutetica

das estruturas do pensamento como um todo

54

O oitavo livro da Ogdoas de Lorhard que encerra o compecircndio e eacute dedicado agrave ontologia

no sentido de unificar todos os escritos anteriores define a metafiacutesica como ldquo() o

conhecimento de um inteligiacutevel enquanto inteligiacutevel ()rdquo (LORHARD sd 3) Este conhecimento

eacute divido entre conhecimento dos particulares e dos universais Para Lorhard a parte da

metafiacutesica responsaacutevel pelo conhecimento dos particulares ou bem se refere acirc substacircncia

pertinente aos seres natildeo-complexos que subsistem em si mesmos (sejam eles criados ou natildeo)

ou bem aos acidentes

Jaacute o conhecimento dos universais se refere a tudo o que eacute inteligiacutevel redundando nos

atributos gerais ou nas distribuiccedilotildees conforme as quais o λόγος eacute entendido como um inteligiacutevel

As distribuiccedilotildees dizem respeito ao nada por um lado ou a algo por outro sendo este uacuteltimo

em seu aspecto positivo o que envolve as ideias de ldquoessecircnciardquo e ldquoenterdquo As noccedilotildees de ldquoessecircnciardquo

e ldquoenterdquo satildeo centrais natildeo apenas para o sistema de Lorhard mas tambeacutem para todas as

subsequentes compreensotildees da ontologia Em uma primeira definiccedilatildeo Lorhard observa a

ldquoessecircnciardquo em sua relaccedilatildeo com o λόγος definindo que ldquoEssecircncia eacute algo produtivo pelo qual o

Ser eacute o que eacute Esta palavra estrangeira eacute chamada pelos Escolaacutesticos de Entidade ou quidditasrdquo

(IDEM IBIDEM 4) Em segundo lugar considera a ldquoessecircnciardquo em relaccedilatildeo a sua distribuiccedilatildeo na

qual ela eacute ou bem ldquorealrdquo (ou seja uma atualizaccedilatildeorealizaccedilatildeo do ser) ou bem ldquoimaginaacuteriardquo (no

caso de um ser puramente racional) Ambas podem ser ldquosimplesrdquo ou ldquocompostasrdquo ldquoabsolutasrdquo

ou ldquorespectivasrdquo ldquouniversaisrdquo ou ldquosingularesrdquo Dentro do uacuteltimo destes casos a ldquoessecircnciardquo

pode ser ainda ldquogeneacutericardquo (ou um gecircnero compartilhado por outras espeacutecies) ou ldquoespeciacuteficardquo

(relativa a uma uacutenica espeacutecie) Natildeo haacute grande espanto nos pontos apresentados ateacute entatildeo por

Lorhard O que haacute na verdade eacute uma constituiccedilatildeo sistemaacutetica de um diaacutelogo que estava sendo

travado jaacute haacute muito tempo e sobremaneira evidente no periacuteodo no qual ele compocircs sua obra

Suas contribuiccedilotildees mais significantes talvez se deem na seccedilatildeo seguinte quando aborda a

questatildeo do ldquoenterdquo

55

Lorhard tambeacutem considera o ldquoenterdquo no discurso unificador bem como na questatildeo da

ldquoessecircnciardquo afirmando dele algo produtivo ldquodotado de certa essecircnciardquo Em seu caraacuteter

distributivo o ldquoenterdquo (assim como a ldquoessecircnciardquo) eacute ou bem ldquorealrdquo ou bem ldquoracionalrdquo Ele define

o ldquoente de razatildeo ou racionalrdquo afirmando que ldquoEacute um ente de razatildeo que eacute tocado pela cogitaccedilatildeo

de uma mente singular de acordo com o modo real do ente agrave parte disto eacute nada Eacute tambeacutem

chamado ente fictiacutecio e imaginaacuteriordquo (ID IBID 5) Jaacute o ldquoente realrdquo pode se dar por meio do

discurso (λόγος) de sua proacutepria essecircncia ou ainda ser distribuiacutedo em entes primaacuterios e

secundaacuterios (estes uacuteltimos decorrentes dos primeiros) sendo ambos ldquosimplesrdquo ou ldquocomplexosrdquo

ldquoabsolutosrdquo ou ldquorespectivosrdquo ldquouniversaisrdquo ou ldquoparticularesrdquo ldquoimateriaisrdquo ou ldquomateriaisrdquo

ldquopermanentesrdquo ou ldquosucessivosrdquo

Toda a divisatildeo da ontologia de Lorhard acompanha em muitos aspectos a ontologia

derivada da filosofia grega claacutessica desde o processo dialeacutetico de questionamento da realidade

conforme a doutrina platocircnica e a divisatildeo das Categorias de Aristoacuteteles A principal distinccedilatildeo

do emprego do termo ontologia como expressatildeo e manifestaccedilatildeo das doutrinas metafiacutesicas em

Lorhard eacute o foco especiacutefico de uma ldquodoutrina dos inteligiacuteveisrdquo Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman

comentam que

Conforme Lorhard haacute uma importante dualidade entre os entes e nossa discussatildeo

racional a respeito deles Parece que ele insistiu na necessidade dessa dualidade no

sentido de que cada vez que noacutes discutimos os entes no mundo tentando classificaacute-

los tambeacutem temos que refletir sobre os conceitos usados para fazecirc-los (OslashHRSTOslashM

SCHAumlRFE E UCKELMAN OP CIT 4)

Em termos mais simples apoacutes um longo periacuteodo de aristotelismo escolaacutestico talvez tenha sido

Lorhard o primeiro a atentar para o fato de certa confusatildeo gerada dentro da metafiacutesica a respeito

da maneira pela qual se predica o ser do ente em sua participaccedilatildeo presente na realidade

56

Seria liacutecito portanto argumentar que a evidecircncia da confusatildeo de termos se deve ao fato

de Lorhard ter deslocado o ontocentrismo metafiacutesico para uma teoria dos intiligiacuteveis Ainda

conforme Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman a postura de Lorhard eacute diretamente influenciada pela

obra de Clemens Timpler que sustentava a mesma posiccedilatildeo a respeito da metafiacutesica desde uma

confrontaccedilatildeo direta com a filosofia de Francisco Suaacuterez Esta seria a contenda principal do

iniacutecio da modernidade responsaacutevel por conformar e enformar a metafiacutesica como ontologia tal

qual hoje ainda se a concebe Joseph S Freedman desenvolve uma anaacutelise bastante precisa da

maneira pela qual Timpler fundamentou sua postura e as consequecircncias de seu trabalho

sobretudo no que tange agrave disputa com Francisco Suaacuterez A respeito da proposiccedilatildeo ldquotudo que eacute

inteligiacutevelrdquo (omne intelligibile) o tema constitutivo da metafiacutesica Freedman (cf 2009 10-11)

comenta que Timpler provecirc uma moldura conceitual dentro da qual alguns conceitos

ontologicamente baacutesicos satildeo englobados quais sejam ldquoalgordquo (aliquid) ldquoprivaccedilatildeordquo (privatio)

ldquoessecircnciardquo (essentia) e ldquoentidaderdquo (ens) Dentro da dissoluccedilatildeo dos conceitos na obra central de

Timpler Metaphysicae systema methodicum (1604) Freedman comenta

Conforme Timpler ldquotudo aquilo que eacute Inteligiacutevelrdquo eacute dividido entre nihil (ie ldquonadardquo

ou ldquonatildeo-serrdquo) e aliquid aut est (ldquoalgordquo ou ldquoenterdquo) esta eacute basicamente a mesma

dicotomia que William Shakespeare aludiu quando ele coloca no Ato 3 Cena 1 de

Hamlet ndash alguns anos antes (c 1600) da publicaccedilatildeo do texto de Timpler sobre

metafiacutesica ndash que ldquoser ou natildeo ser estaacute eacute a questatildeo []rdquo Mas esta foi a questatildeo que

Timpler e todos os seus (conhecidos) contemporacircneos acadecircmicos aparentemente

desejaram evitar de discutir A discussatildeo da questatildeo de Shakespeare ndash e da dicotomia

de Timpler ndash poderia ter provido as bases para o levantamento de toacutepicos altamente

sensiacuteveis por exemplo 1) a relaccedilatildeo entre Deus e Nada (nihil) 2) a relaccedilatildeo entre Deus

entidade e privaccedilatildeo (ie mal) e 3) a relaccedilatildeo entre Deus e o princiacutepio de contradiccedilatildeo

(FREEDMAN op cit 12)

57

Embora estas questotildees estivessem jaacute sempre presentes dentro dos questionamentos de Timpler

e de seus contemporacircneos elas eram todavia caladas de acordo com Freedman (IDEM IBIDEM)

pela imposiccedilatildeo das instituiccedilotildees cristatildes das coisas sobre as quais se era proibido falar ou acreditar

O que perdura das apresentaccedilotildees filosoacuteficas da metafiacutesica como ontologia em Timpler

ponderando seu princiacutepio do inteligiacutevel concentra-se em primeiro lugar como o mateacuteria de

todas as disciplinas e subdisciplinas acadecircmicas e em segundo lugar como foco de disciplinas

separadas como a archeologia gnostologia hexiologia intelligentia pansophia e tecnologia

(cf ID IBID 14)

O motivo da predileccedilatildeo da questatildeo dos intiligiacuteveis como foco principal de todos os

temas concernentes ao pensamento aparece dentro da possibilidade de envolver todos os

aspectos responsaacuteveis pelos modos operativos de pensar 16 Desta forma por exemplo as

disciplinas separadas como a ldquotecnologiardquo seriam desenvolvidas para as consideraccedilotildees gerais

e universais da estrutura das disciplinas liberais (cf ID IBID 16) Embora discrimine em parte

o princiacutepio da cogniccedilatildeo a metafiacutesica tampouco envolve a loacutegica por levar em consideraccedilatildeo

apenas os princiacutepios excluindo entidades complexas que redundem no princiacutepio de contradiccedilatildeo

Em contrapartida ao sistema metoacutedico de Timpler vecirc-se em Francisco Suaacuterez um

caraacuteter muito mais ontocecircntrico As Disputationes Metaphysicae (1597) de Francisco Suaacuterez

satildeo publicadas dentro de um contexto de desarmonia e conflitos entre a teologia e a filosofia

onde os conceitos fundamentais na discussatildeo sobre o divino estavam sendo postos em questatildeo

A despeito das influecircncias de Suaacuterez e dos necessaacuterios posicionamentos poliacuteticos sua obra

parece instaurar um regulamento por meio do qual nada poderia ser legado agrave mera

inteligibilidade

16 Freedman (ID IBID 15) cita o teoacutelogo calvinista Matthias Martinius contemporacircneo de Timpler que evidencia

de maneira mais clara os motivos das proposiccedilotildees fundamentais Ele atesta que conforme esta designaccedilatildeo agrave

metafiacutesica ldquopertence tudo aquilo que eacute cognosciacutevelrdquo (de omni cogitabili) mas com certas restriccedilotildees englobando

a ldquouniversalidade das coisasrdquo (rerum universitatem) mas natildeo envolvendo disciplinas acadecircmicas especializadas

singulares ou particulares

58

As Disputationes de Suaacuterez podem ser entendidas desde uma divisatildeo da obra na qual a

primeira parte (as primeiras vinte-e-sete questotildees) se refere ao ente no sentido geral enquanto

a segunda parte (as vinte-e-sete uacuteltimas questotildees) lida com o ente particular redundando em

uma dupla divisatildeo da proacutepria metafiacutesica entre ldquometafiacutesica geralrdquo e ldquometafiacutesica especialrdquo (cf

SUAacuteREZ 2004 DOYLE 2004) Ao comentar o desenvolvimento deste aspecto da filosofia de

Suaacuterez Ludger Honnefelder ainda acrescenta

Conforme Suaacuterez a metafiacutesica lida com o conceito de ente tanto ldquoformalrdquo quanto

ldquoobjetivordquo Pelo conceito formal Suaacuterez entende o ato de conhecer do qual ldquoex unica

et prima impositionerdquo que rende uma representaccedilatildeo intencional do objeto pelo

conceito objetivo ele designa aquilo que representa intencionalmente o ato Em outras

palavras Suaacuterez natildeo assume a teoria dos conceitos caracterizada pelo paralelismo

noeacutetico-noemaacutetico de res e conceptus antes ele aceita a abordagem criacutetica de Ockham

em direccedilatildeo a interpretaccedilatildeo realiacutestica dos conceitos universais Desde que Scottus ele

mesmo natildeo depende desse paralelismo quando isto vem a dizer respeito sobre o ente

Suaacuterez substancialmente segue Scottus e aplica ldquoenterdquo para um conceito formal

primaacuterio e unificado que em virtude de sua imposiccedilatildeo representa um objetivo

primaacuterio e unificado do conteuacutedo absolutamente simples que envolve todos os entes

distintos de uma maneira indeterminada ie como ente (HONNEFELDER 2003)

Segundo a exposiccedilatildeo de Honnefelder o direcionamento da metafiacutesica de Suaacuterez iraacute redundar

em alguns pontos baacutesicos em primeiro lugar o fato de que a determinaccedilatildeo do ente transcende

a generalidade dos gecircneros em segundo que a determinaccedilatildeo natildeo pode ela mesma ser definida

podendo apenas ser explicada em relaccedilatildeo agrave existecircncia real em terceiro que toda existecircncia estaacute

sujeita agrave fundamentaccedilatildeo de disposiccedilatildeo ontoloacutegica em uacuteltimo lugar que o ente finito perdura

em um modo indeterminaacutevel de quantidade sendo o ente infinito eacute aquilo que eacute perfeito e

totalmente indivisiacutevel em si mesmo e mais real e completo (cf IDEM IBIDEM)

59

Agora bem com o fito de retomar a linha de raciociacutenio desenvolvida no capiacutetulo eacute

preciso retomar a ideia de substantivaccedilatildeo do Ocidente e a maneira pela qual esse processo se

deixar ver ao longo da histoacuteria da ontologia Martin Heidegger indica em primeiro lugar o que

ele considera como o problema fundamental pelo qual a metafiacutesica se desdobra no Ocidente

qual seja o fato de que o ldquoserrdquo natildeo eacute um ldquoenterdquo mas que todavia um foi tomado pelo outro Ele

apresenta ainda o argumento de que a transposiccedilatildeo da experiecircncia fundamental grega (conforme

apresentada tambeacutem por Charles H Kahn) sofre uma violaccedilatildeo na absorccedilatildeo latina e na

transferecircncia de conceitos de um modo de pensar para o outro Eacute dentro deste ambiente latino

que eacute possiacutevel rastrear a maneira pela qual a metafiacutesica se forma e transforma em ontologia ou

bem dentro de uma filosofia do inteligiacutevel (como em Lorhard e Timpler) ou bem como um

ontocentrismo filosoacutefico (como em Suaacuterez) Sem embargo trata-se de uma disputa em torno agraves

formas primaacuterias da discussatildeo em torno ao ldquoserrdquo e ao ldquoenterdquo Eacute possiacutevel concluir desde a

constataccedilatildeo da entificaccedilatildeo do ser ou substantivaccedilatildeo do Ocidente que a demanda pela resposta

ao problema primeiro da filosofia necessariamente a encaminha para um percurso que natildeo

poderia ser outro Mas qual eacute propriamente este problema primeiro e como se constroacutei esse

caminho Natildeo haveria outra indicaccedilatildeo senatildeo a da ciecircncia dos primeiros princiacutepios e causas de

Aristoacuteteles Jaacute na doutrina das Categorias de Aristoacuteteles eacute possiacutevel observar a confusatildeo entre

ldquoserrdquo e ldquoenterdquo A questatildeo pode ser melhor observada na proposiccedilatildeo baacutesica e amplamente

difundida da Metafiacutesica ldquoO ente se diz em muacuteltiplos significados mas sempre em referecircncia a

uma unidade e a uma realidade determinadardquo (ARISTOacuteTELES 2002 131)17 A referecircncia a uma

unidade e uma realidade determinada eacute a chave para compreender a maneira pela qual a

ontologia se torna a ciecircncia responsaacutevel por esse tema (conforme Aristoacuteteles ldquoHaacute uma ciecircncia

que considera o ente enquanto ente e as propriedades que lhe competem enquanto talrdquo ID IBID)18

17 Τὸ δὲ λέγεται μὲν πολλαχῶς ἀλλὰ πρὸς ἓν καὶ μίαν τινὰ φύσις καὶ οὐχ ὁμωνύμως ἀλλrsquo (Metafiacutesica 1003a 30-

35) 18 Ἔστιν ἐπιστήμη τις ἧ τὸ ὄν ᾗ ὄν καὶ τὰ τούτῳ ὑπάρχοντα καθ αὑτό (Metafiacutesica 1003a 20)

60

Dentro desta ciecircncia o conceito central que unifica e determina ldquoenterdquo e ldquoserrdquo eacute

apresentado como οὐσία O conceito de οὐσία (substantia substacircncia) eacute bem desenvolvido nas

Categorias entre as expressotildees que natildeo satildeo compostas quais sejam a substacircncia mesma

quantidade qualidade relaccedilatildeo lugar tempo posiccedilatildeo estado accedilatildeo ou afecccedilatildeo Ela eacute

apresentada desde duas perspectivas uma primaacuteria outra secundaacuteria A substacircncia primeira

natildeo se afirma de um sujeito nem em um sujeito mas comporta as substacircncias segundas nas

quais a forma afirma a espeacutecie e o gecircnero (ldquoserrdquo do sujeito) comportando tambeacutem os acidentes

(ldquoserrdquo no sujeito) que a eles se atribui Embora o conceito em sua primeira formulaccedilatildeo

contemple o aspecto formal bem como o elemento inteligiacutevel envolve ainda o aspecto material

em seu segundo modo natildeo podendo ser um sem o outro

As consequecircncias do desenvolvimento de uma ciecircncia responsaacutevel pelo ente enquanto

ente centralizando o conceito de substacircncia e substantivando a ideia de ldquoserrdquo por meio de seu

particiacutepio presente ldquoenterdquo satildeo o que se pode considerar como o desenvolvimento da histoacuteria do

ldquoserrdquo ou a histoacuteria da maneira pela qual o Ocidente compreende o ldquoserrdquo e a si mesmo Por meio

desta postulaccedilatildeo o ldquoτὰ ὄνταrdquo eacute posicionado no centro do pensamento ocidental Mais ainda do

que uma simples constataccedilatildeo da maneira pelo qual coube ao Ocidente pensar curioso eacute

especular o fato de que se natildeo fosse possiacutevel pensar fora da delimitaccedilatildeo do ente natildeo haveria

sequer indagaccedilatildeo alguma sobre as limitaccedilotildees ou prejuiacutezos imbuiacutedos nesta formulaccedilatildeo Sem

embargo eacute possiacutevel constatar desde os recursos apresentados (e ainda por muitos outros

caminhos que natildeo este) a necessidade incontida do ser humano ocidental eacute desenhar de maneira

niacutetida as fronteiras do pensamento e da maneira pela qual esse pensamento deve e pode ser

aplicado Resta saber apoacutes esta delimitaccedilatildeo o que haacute para aleacutem da fronteira

61

2 O CAMINHO DA NEGATIVIDADE HENEOLOGIA E MEONTOLOGIA E A

ULTRAPASSAGEM DOS LIMITES DA METAFIacuteSICA

O discurso ontoloacutegico tanto grego quanto latino personificou a atividade filosoacutefica ocidental

em larga escala A maneira pela qual a ontologia habilitava ao raciociacutenio uma seacuterie de

procedimentos facilmente verificaacuteveis nutriu seguranccedila metodoloacutegica aos assuntos

concernentes aos problemas intelectuais com os quais o ser humano fatalmente se deparava ao

longo de suas especulaccedilotildees e que reverberavam ainda na conjuntura soacutecio-pragmaacutetica Eacute neste

sentido que teria afirmado Immanuel Kant de maneira perspicaz que a razatildeo humana se

defronta com inevitaacuteveis questotildees impostas por sua proacutepria natureza19 Tanto para Aristoacuteteles

quanto para Francisco Suaacuterez aleacutem de tantos outros entrementes a importacircncia de assegurar

uma linha de raciociacutenio vaacutelida natildeo somente atribuiacutea autoridade ao argumento como tambeacutem

provia de suficiente clareza a linguagem que advogava suas doutrinas Em outras palavras

tornava-se faacutecil convencer outrem de seus pressupostos dada a indefectiacutevel loacutegica empregada

para encadear as sentenccedilas e alcanccedilar uma conclusatildeo A ontologia por meio de suas loacutegicas de

identidade e natildeo-contradiccedilatildeo (e ateacute certo ponto tambeacutem via argumento do terceiro excluiacutedo)

visava alcanccedilar tanto para afirmaccedilatildeo quanto para negaccedilatildeo a dissoluccedilatildeo de todo e qualquer

paradoxo que colocasse a mente em estado de confusatildeo e discoacuterdia Independente daquilo que

estava sendo afirmado ou negado da linha de raciociacutenio ou doutrina em jogo os procedimentos

discursivos e intelectuais eram basicamente os mesmos com variaccedilotildees conceituais maiores ou

menores dependendo da vertente Todavia prosseguia-se sempre da mesma maneira

19 Kant afirma ldquoA razatildeo humana no seu gecircnio de seu conhecimento possui o peculiar destino de ser incomodada

por questotildees que natildeo pode evitar porque elas satildeo dadas pela natureza da razatildeo mesma mas tambeacutem natildeo possuem

respostas porque elas excedem a capacidade da razatildeo humanardquo (KANT 1956 5 Criacutetica da razatildeo pura AVII-

AVIII)

62

Contudo a despeito da supremacia ontoloacutegica outras formas de pensamento foram

desenvolvidas no decorrer da histoacuteria da filosofia fossem elas similares ou totalmente opostas

Alguns pensadores especialmente radicais se dedicaram a um modo reflexivo que se distanciava

consideravelmente da estrutura ontoloacutegica Suas bases seus pressupostos e seus meacutetodos pelos

quais prosseguiam no caminho especulativo dos temas propostos (muitas vezes os mesmos dos

formuladores da ontologia claacutessica) projetavam-se de maneira consideravelmente diversa Para

eles havia uma necessidade imperativa de incluir todos os elementos presentes na estrutura da

realidade pensada em sua maacutexima possibilidade de concepccedilatildeo tanto os que satildeo quanto os que

natildeo satildeo Ao que parece por este motivo Werner Beierwaltes considera que as caracteriacutesticas

pelas quais se configuram a ontologia claacutessica satildeo sobretudo frutos da interrogaccedilatildeo pelo nexo

da identidade e da diferenccedila quer seja na afirmaccedilatildeo parmeniacutedica da natildeo legitimaccedilatildeo filosoacutefica

da alteridade quer seja na resposta platocircnica do necessaacuterio estabelecimento da diferenccedila na

constituiccedilatildeo do ldquoserrdquo em seu inteiro (cf BEIERWALTES 1989 25) Para Beierwaltes o rigoroso

conceito de unidade demandado por Platatildeo em reposta agrave univocidade do ser de Parmecircnides

resultou na possibilidade de inclusatildeo do ldquonatildeo-serrdquo relativo ao ldquoserrdquo para afirmar sua totalidade

Disto derivaria a altercaccedilatildeo originaacuteria entre identidade e diferenccedila e nisto consiste a

possibilidade de desvio do pensamento ontoloacutegico20 Sem embargo precisamente neste ponto

que acredito poder encontrar o que chamo aqui de caminho da negatividade ou a possibilidade

de inclusatildeo do oxiacutemoro no caminho de pensamento delineado pela ontologia considerando que

ele se desdobra na tradiccedilatildeo do chamado neoplatonismo e ainda na miacutestica medieval

20 Trata-se da definiccedilatildeo do natildeo-ser como alteridade apresentada no Sofista Apoacutes a discussatildeo acerca da comunidade

de gecircneros e a questatildeo do ldquomesmordquo e do ldquooutrordquo que configuram o problema da identidade e da diferenccedila Platatildeo

apresenta a hipoacutetese de compreender o ldquomovimentordquo como ldquooutrordquo do ldquoserrdquo questionando a tese parmeniacutedica a

respeito da ldquoestaticidade do serrdquo Assim Platatildeo coloca a questatildeo ldquoDevemos trabalhar nossa coragem agora para

dizer que aquilo que lsquonatildeo eacutersquo definitivamente eacute algo que possui natureza proacutepria Devemos dizer que assim como

o grande era grande o belo era belo o natildeo grande eacute natildeo grande e o natildeo belo eacute natildeo belo da mesma maneira pela

qual natildeo eacute tambeacutem foi e eacute natildeo-ser e eacute uma das formas dentre as quais satildeordquo (PLATO 1997 282 Sofista 258 c-d)

A sequecircncia do diaacutelogo questionaraacute a realidade deste natildeo-ser relativo culminando na identidade entre pensamento

e discurso abrindo a possibilidade para o discurso falso (o do sofista) e introduzindo a assunccedilatildeo do paradoxo no

seio do pensamento representando o chamado parriciacutedio aos eleatas

63

Ateacute onde eacute possiacutevel investigar o termo neoplatonismo teria sido cunhado pela primeira

vez pelo helenista e medievalista Thomas Gale nos idos de 1670 Gale foi responsaacutevel por uma

seacuterie de estudos sobre o neoplatonismo pagatildeo e cristatildeo escrevendo sobre Plotino Jacircmblico

Joatildeo Escoto Eriuacutegena Maacuteximo Confessor entre outros21 Definiccedilotildees agrave parte os primeiros

elementos responsaacuteveis por delinearem um ldquoneoplatonismo originaacuteriordquo apenas tardiamente

nomeado satildeo atribuiacutedos a Amocircnio Sacas Contudo como a figura histoacuterica de Amocircnio Sacas

eacute tatildeo envolta em controveacutersias e misteacuterios quanto a vida de Pitaacutegoras ou Soacutecrates atribui-se

diretamente a fundaccedilatildeo de uma ldquoescola neoplatocircnicardquo a Plotino disciacutepulo de Amocircnio

Muacuteltiplos debates mais ou menos coerentes envolvem os relatos sobre a relaccedilatildeo entre Plotino e

Amocircnio aleacutem de polecircmicas acerca do proacuteprio Amocircnio22 Destaca-se apenas a autoridade dos

relatos de Porfiacuterio (em sua Vida de Plotino) nos quais se considera que o meacutetodo de pesquisa

aplicado por Plotino estava profundamente ligado ao de seu mestre O conteuacutedo dos discursos

de Plotino tambeacutem teria uma iacutentima relaccedilatildeo com as tentativas de Amocircnio de unificar os diversos

planos do ser e estabelecer a derivaccedilatildeo de todas as coisas a partir do uno23 Sem embargo

Plotino teria absorvido e desenvolvido a doutrina de Amocircnio e necessariamente de Platatildeo em

suas Eneacuteadas em um movimento de exegese ao discurso platocircnico Exegese esta suscetiacutevel de

diversas interpretaccedilotildees dos caminhos por Plotino tomados e mesmo natildeo muito consensual entre

os estudiosos da obra24

21 Extraiacute estes dados de Aaron W Huges em um trabalho intitulado ldquoMedievalrdquo and the Politics of Nostalgia

Ideology Scholarship and the Creation of the Rational Jew (2012) Huges natildeo apenas investiga as origens das

designaccedilotildees do neoplatonismo mas ainda constata que a alcunha de ldquoneoplatocircnicosrdquo continuou sendo utilizada

por eruditos alematildees no seacuteculo dezenove como uma menccedilatildeo pejorativa aos ldquofalsificadoresrdquo das doutrinas de Platatildeo

e Aristoacuteteles (cf HUGES 2012) 22 Conforme Giovanni Reale em sua Storia della filosofia antica (1975-1980) Sobre este ponto especificamente

acerca das incertezas em torno agrave figura de Amocircnio confira REALE 2008 5-13 23 Esta consideraccedilatildeo eacute apresentada por Giovanni Reale com base nos relatos de Nemeacutesio em De natura hominis

(cf REALE 2008 11) Conforme Francisco B Harriet a questatildeo fundamental se encontraria na foacutermula ldquoestaacute mais

aleacutem do intelecto e da essecircnciardquo (ἐπέκεινα νοῦϛ καὶ οὐσίας) conforme a formulaccedilatildeo de Oriacutegenes de Alexandria

em Contra Celsum (fons ex quo initium totius intellectualis naturae uel mentir est) presente em Plotino (Eneacuteadas

V 1 8 e VI 8 16) e derivada do ciacuterculo de Amocircnio (cf HARRIET 2012 153) 24 Sobre a questatildeo da exegese Marcus Reis Pinheiro (em Plotino exegeta de Platatildeo e Parmecircnides 2007)

argumenta que natildeo se pode reduzir a exegeacutetica agrave mera interpretaccedilatildeo dos diaacutelogos de Platatildeo e outros escritos Trata-

se antes do desdobramento de um discurso muito antigo onde ldquo() fazer exegese () natildeo eacute interpretar

objetivamente os textos mas caminhar rumo aos niacuteveis superiores junto com os antigosrdquo (P INHEIRO 2007 80)

64

Neste fluxo talvez o mais cabiacutevel usual e conhecido de todos os estabelecimentos de

um ldquoponto de partidardquo seja o do claacutessico artigo Jean Trouillard Le Parmeacutenide de Platon et son

interpretation neacuteoplatonicienne (1973) onde o neoplatonismo eacute pensado desde a busca da

doutrina originaacuteria de Platatildeo principalmente a partir de uma releitura de seu diaacutelogo

Parmecircnides Todavia a maneira pela qual eacute possiacutevel explanar esta releitura levanta suspeitas

sendo necessaacuterio ponderar em quais formas a exegese plotiniana converge ou diverge das

tentativas de uma interpretaccedilatildeo das doutrinas originaacuterias de Platatildeo Mais ainda estaacute tambeacutem

em jogo a autoridade de apontar que existam de fato doutrinas originaacuterias havendo ainda

abertura para questionar a fiabilidade e o suposto peso das chamadas ldquodoutrinas natildeo-escritasrdquo25

Seja como for interessa sobretudo destacar como com as Eneacuteadas de Plotino o pensamento

filosoacutefico experimenta um movimento iacutempar em relaccedilatildeo agravequilo que vinha sendo apresentado

Para Ciacutecero Cunha Bezerra eacute possiacutevel elencar alguns pontos que evidenciam de maneira

clara a renovaccedilatildeo do neoplatonismo Destaca-se em primeiro lugar a junccedilatildeo entre os elementos

aristoteacutelicos e pitagoacutericos em siacutentese com uma perfeita sintonia entre o platonismo acadecircmico

e as ldquodoutrinas natildeo-escritasrdquo Ademais a ldquohierarquizaccedilatildeordquo do real a partir da qual todos os

graus satildeo derivados desde o uno permite uma sistematizaccedilatildeo do platonismo anterior Por este

motivo tende-se agrave leitura conforme a qual o neoplatonismo possuiria um sistema ldquomonopolarrdquo

frente a um suposto ldquobipolarismordquo platocircnico Por fim haacute ldquo() o fim uacuteltimo do processo de

conhecimento que para o neoplatocircnico eacute a uniatildeo plena com Deus (fugir soacute ao soacute) uma uniatildeo

que tem como marca a supressatildeo (aphaiacuteresis) de todo saber e dizerrdquo (BEZERRA 2006 57)

Dentre os pontos apresentados interessa-me particularmente o uacuteltimo (evidente consequecircncia

dos trecircs primeiros) no qual o neoplatonismo aparece como uma ldquosupressatildeo de todo saber e

dizerrdquo

25 Haacute uma interessante e profunda discussatildeo acerca do tema na tradiccedilatildeo de leitores e inteacuterpretes do platonismo e

do neoplatonismo a respeito deste toacutepico Ciacutecero Cunha Bezerra (em Compreender Plotino e Proclo 2006) aborda

o tema abrindo uma interlocuccedilatildeo com a obra Platone alla ricerca della spienza segreta de Giovanni Reale e ainda

com as investigaccedilotildees de W K C Guthrie e a chamada Escola de Tuumlbingen (cf BEZERRA 200617-24)

65

O senso comum ocidental regula a atividade filosoacutefica como um progresso ininterrupto

rumo ao acuacutemulo de conhecimento e dissoluccedilatildeo dos problemas Curioso agora eacute pensar a

maneira pela qual uma doutrina filosoacutefica pode suprimir o saber e o dizer ao inveacutes de

acrescentar Mas eacute apenas possiacutevel atingir a compreensatildeo necessaacuteria desta supressatildeo uma vez

esclarecido o que eacute propriamente o princiacutepio negativo do pensamento de Plotino Para isto natildeo

se pode perder de vista as duas questotildees que levariam agrave construccedilatildeo do pensamento de Plotino

quais sejam ldquo() o problema religioso (que corresponde agrave busca de compreensatildeo do destino

da alma assim como sua restauraccedilatildeo) e o problema filosoacutefico relativo agrave explicaccedilatildeo racional da

realidade ()rdquo (IDEM IBIDEM 66)26 ponderando ainda que em Plotino ambas estatildeo perfeitamente

inter-relacionadas Para atingir este entendimento todavia eacute necessaacuterio analisar as chamadas

trecircs hipoacutestases de Plotino presentes em suas Eneacuteadas

O conjunto de circunstacircncia que acompanham a formulaccedilatildeo do pensamento de Plotino

eacute todavia aquele anteriormente citado apresentado por Werner Beierwaltes que remete agrave

contenda entre Parmecircnides e Platatildeo Contextualizar a disputa Parmecircnides-Platatildeo da qual

derivam centralmente as hipoacutestases de Plotino natildeo eacute necessariamente complicado embora

interpretaacute-la e desde aiacute desdobrar um novo caminho reflexivo seja uma tarefa bastante

trabalhosa A demanda especulativa eacute altiacutessima e envolve uma bibliografia excessivamente

extensa e complexa Contudo como o interesse aqui eacute a apresentaccedilatildeo dos aspectos centrais do

pensamento de Plotino e como deles redunda uma nova postura e atitude filosoacuteficas o trabalho

fica menos penoso Portanto para colocar em relevo as hipoacutestases de Plotino eacute importante ao

menos demonstrar de forma simples os pontos originais dos quais elas derivam seja em

Parmecircnides seja em Platatildeo (e ateacute certo ponto tambeacutem no neopitagorismo e em Aristoacuteteles

embora esta tarefa exija um pouco mais e seja um pouco mais complicada de rastrear) Para

alcanccedilar este objetivo torna-se imperioso retornar brevemente a Parmecircnides

26 Esta hipoacutetese eacute destacada por Bezerra diretamente da obra de Eacutemile Breacutehier La Philosophie de Plotin (1928)

66

O segundo fragmento do poema Sobre a Natureza de Parmecircnides catalisa os principais

argumentos do conflito permitindo compreender quais satildeo os pontos mais problemaacuteticos do

estabelecimento de sua doutrina na tradiccedilatildeo Aleacutem da Fiacutesica de Simpliacutecio as fontes pelas quais

se estruturou esse fragmento adveacutem dos Comentaacuterios ao Timeu e Comentaacuterios ao Parmecircnides

de Proclo Os oito versos contidos no fragmento centralizam a doutrina de Parmecircnides como

foi herdada pela tradiccedilatildeo a partir da manifestaccedilatildeo das duas uacutenicas vias possiacuteveis para o

pensamento quais sejam a via da verdade e a via da aparecircncia O fragmento diz

εἰ δ᾽ ἄγ᾽ ἐρὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας

αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι

ἡ μέν ὄπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι

πειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ)

ἡ δ᾽ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι

τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν

οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐόν (οὐ γὰρ ἀνυστόν)

οὔτε φράσαις

(KIRK E RAVEN 1957 269)

Pois bem agora vou eu falar e tu presta atenccedilatildeo ouvindo a palavra

acerca das uacutenicas vias de questionamento que satildeo a pensar

uma para o que eacute e como tal natildeo eacute para natildeo ser

eacute o caminho de persuasatildeo ndash pois Verdade o segue ndash

outra para o que natildeo eacute e como tal eacute preciso natildeo ser

esta via indico-te que eacute uma trilha inteiramente inviaacutevel

pois nem ao menos se reconheceria o natildeo ente pois natildeo eacute realizaacutevel

nem tampouco se mostraria

(Traduccedilatildeo de Fernando Santoro cf PARMEcircNIDES 200612)

67

O caminho da verdade que eacute e natildeo eacute para natildeo ser (ἡ μέν ὄπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ

εἶναι) e o caminho da aparecircncia que natildeo eacute e natildeo pode ser (ἡ δ᾽ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών

ἐστι μὴ εἶναι) satildeo via de regra estabelecidos como a manifestaccedilatildeo maacutexima da loacutegica ocidental

e berccedilo dos princiacutepios de identidade e natildeo-contradiccedilatildeo A partir deles eacute possiacutevel natildeo soacute

estabelecer uma identidade (o ser eacute representada pela claacutessica foacutermula A=A) como ainda

verificar a veracidade dessa mesma identidade ndash natildeo eacute possiacutevel que o ser sendo natildeo seja

ilustrado pela foacutermula not (A ˄ notA) um tanto esdruacutexula sem duacutevidas27

O legado de Parmecircnides eacute marcado em sua difusatildeo pelos chamados ldquofiloacutesofos eleatasrdquo

sobretudo por Zenatildeo de Eleacuteia Seus argumentos contra a pluralidade (cf KIRK E RAVEN OP CIT

288-291) e contra o movimento (cf IDEM IBIDEM 291-297) se tornaram assaz populares

sobretudo no que concerne aos paradoxos da flecha no estaacutedio e de Aquiles e a tartaruga Aleacutem

da constataccedilatildeo da univocidade do ser presente em toda linha de pensamento parmeniacutedica28 O

resultado imediato dos exerciacutecios de raciociacutenio de Zenatildeo demonstraram a formataccedilatildeo de uma

estaticidade do ser e da realidade em torno alertando para a ilusatildeo do movimento e alteraccedilotildees

na substacircncia do real O momento no qual Platatildeo compotildee seu diaacutelogo Parmecircnides retrata

justamente o evento no qual tanto Parmecircnides quanto Zenatildeo estatildeo no aacutepice da divulgaccedilatildeo de

sua doutrina dialogando com um ainda jovem Soacutecrates Trata-se de um dos momentos mais

emblemaacuteticos da histoacuteria da filosofia ocidental

27 Haacute uma discussatildeo em torno a uma suposta terceira via aquela na qual o que ldquoeacuterdquo eacute e natildeo eacute ao mesmo tempo

baseada no sexto fragmento onde se lecirc ldquoοἶς τὸ πέλειν τε καὶ οὐκ ταῦτὸν νενόμισταιrdquo (KIRK E RAVEN OP CIT 271)

Embora ainda em um sentido pejorativo de uma via do engano emerge a possibilidade de que algo seja e natildeo seja

Mesmo que natildeo seja profiacutecuo para o andamento da tese se fixar na discussatildeo vale ao menos citaacute-la sobretudo

ponderando os apontamentos feitos por Jean Beaufret acerca da interpretaccedilatildeo de Martin Heidegger da terceira via

como a via dos entes Ao que cabe no propoacutesito do trabalho basta apenas atentar para como a tensatildeo entre as duas

primeiras vias jaacute foram suficientes para levantar controveacutersias Eacute possiacutevel especular ainda que jaacute na primeira via

aparece tambeacutem uma possibilidade de que o ser seja e natildeo seja quando se afirma que ele ldquoeacute e natildeo eacute para natildeo serrdquo

Seria possiacutevel conectar o ldquonatildeo eacuterdquo da sentenccedila como o natildeo-ser relativo necessaacuterio agrave constituiccedilatildeo da inteireza do

ser como argumentado no Sofista de Platatildeo 28 O que significa afirmar que natildeo existem ldquograusrdquo do ser uma coisa ou eacute real (ser) ou irreal (nada) (cf BEZERRA

2003 47)

68

As chamadas ldquotrecircs hipoacutetesesrdquo do Parmecircnides de Platatildeo satildeo apresentadas

respectivamente nas passagens 137c-142a 142b-157a e 157b-159a Elas constituem a mateacuteria

bruta para a elaboraccedilatildeo das trecircs hipoacutestases de Plotino Todas as trecircs hipoacuteteses de Platatildeo satildeo

apresentadas pela personagem do entatildeo velho Parmecircnides arguindo Soacutecrates a respeito da

viabilidade de cada argumento Elas se apresentam ainda a partir do problema constituiacutedo pela

questatildeo da unidade e da multiplicidade A pulsatildeo do jovem Soacutecrates ao inquirir Parmecircnides a

respeito de sua teoria fazendo-o apresentar as trecircs hipoacuteteses parte da colocaccedilatildeo de Parmecircnides

a respeito da assunccedilatildeo da multiplicidade por um lado e da impossibilidade do muacuteltiplo por

outro Parmecircnides eacute levado pelo jovem Soacutecrates a confirmar natildeo apenas sua teoria mas sua

metodologia e plano doutrinaacuterio

Para confrontar a teoria parmeniacutedica Platatildeo desenvolve a primeira hipoacutetese Ela

consiste basicamente na afirmaccedilatildeo de o que o ldquouno eacute unordquo ou seja se haacute uno natildeo eacute possiacutevel

que o uno seja muacuteltiplo Por este motivo ele natildeo pode conter partes nem tampouco ser um

inteiro (composto por partes) Tambeacutem natildeo pode ter um comeccedilo nem um meio nem um fim

natildeo possuindo nada que o limite ou delimite Tampouco pode possuir um formato nem se

encontrar em lugar algum nem estar se movimentando de um lugar para outro (porque entatildeo

assumir-se-ia algo outro que natildeo o uno pelo qual ele se movimenta) e nem em si mesmo

(porque com isto se movimentaria entre suas partes que por definiccedilatildeo natildeo pode conter) Natildeo

pode ainda ser diferente de si mesmo nem o mesmo que si mesmo porque assumindo sua

diferenccedila se assumiria algo outro que natildeo o uno ndash e assumindo sua identidade se assumiria que

haacute algo a saber a proacutepria identidade predicada do uno e que natildeo eacute o uno Natildeo pode tambeacutem

estar no tempo nem ter surgido em momento algum Por fim o uno natildeo pode possuir um nome

ou seja eacute inominaacutevel natildeo podendo ser objeto de opiniatildeo nem conhecimento nem percepccedilatildeo

caso contraacuterio assumir-se-ia um ser ou essecircncia distintos do uno pelo qual se alcanccedila seu

entendimento

69

Necessariamente a primeira hipoacutetese leva a uma outra questatildeo ou ao levantamento de

uma segunda hipoacutetese qual seja o uno eacute e quais satildeo as consequecircncias disto para ele mesmo

Essa hipoacutetese eacute consideravelmente mais complicada e envolve algumas nuances bastante

delicadas O argumento geral se concentra na ideia de que a proposiccedilatildeo uno eacute envolve

necessariamente a ideia de essecircncia do uno O grande problema em afirmar que o uno participa

da essecircncia de uno eacute justamente estabelecer a diferenccedila entre uma coisa e outra ou seja torna-

se inevitaacutevel afirmar que existem duas coisas a saber o uno e a essecircncia do uno O embargo

consiste na simples afirmaccedilatildeo uno eacute em contraposiccedilatildeo agrave afirmaccedilatildeo uno uno Logo desdobram-

se dois unos um uno que eacute e um uno e o ser O primeiro como afirmaccedilatildeo do proacuteprio uno o

segundo como assunccedilatildeo da participaccedilatildeo dele mesmo em sua essecircncia A reaccedilatildeo imediata agrave

afirmaccedilatildeo de que o uno eacute caminha em sentido contraacuterio das negaccedilotildees da primeira hipoacutetese

Sem embargo jaacute neste momento mesmo antes da apresentaccedilatildeo da terceira hipoacutetese

torna-se possiacutevel fazer algumas consideraccedilotildees Em primeiro lugar a hipoacutetese de que o ldquouno eacute

unordquo a despeito da aplicaccedilatildeo da categoria do ser para a predicaccedilatildeo da sentenccedila direciona o

pensamento para um caminho no qual natildeo haacute outra possibilidade senatildeo a completa negaccedilatildeo de

tudo que possivelmente competiria ao uno levando mesmo agrave dissoluccedilatildeo do eacute presente na frase

Em segundo lugar a hipoacutetese de que o ldquouno eacuterdquo desta vez com ecircnfase no eacute gera o movimento

oposto de afirmaccedilatildeo de tudo o que porventura poderia ser predicado de qualquer elemento

Estas duas hipoacuteteses (como se veraacute na apresentaccedilatildeo das hipoacutestases de Plotino)

discriminam perfeitamente as duas vias aqui cogitadas quais sejam uma via afirmativa da

ontologia claacutessica na afirmaccedilatildeo das coisas por meio da qual percebe-se compreende-se e se

faz ciecircncia e uma via negativa do que seraacute ulteriormente nomeada henologia na qual a maacutexima

especulaccedilatildeo acerca da natureza do uno natildeo leva senatildeo agrave negaccedilatildeo absoluta ndash as caracteriacutesticas

desta negaccedilatildeo ou negatividade ver-se-aacute mais claramente nas Eneacuteadas

70

A terceira hipoacutetese do Parmecircnides de Platatildeo eacute apresentada no diaacutelogo muito brevemente

Ela abarca ambos os aspectos centrais das duas primeiras hipoacuteteses sugerindo que o uno eacute e

natildeo eacute imputando a categoria de mudanccedila em sua natureza Trata-se de diagnosticar o fato de

que sendo o uno uno por um lado e muacuteltiplo por outro participa e natildeo participa de sua

essecircncia vem a ser e deixa de ser ponderando ainda que esta mudanccedila se daacute no instante Sendo

assim tanto o movimento de retorno ao uno quanto o movimento de procedecircncia a partir do

uno daacute-se ao mesmo tempo em uma reciprocidade na qual tanto a geraccedilatildeo da multiplicidade

configura o uno nem como uno nem como muacuteltiplo quanto a reuniatildeo da multiplicidade ao

uno tampouco configura o uno nem como uno nem como muacuteltiplo ndash como se a proacutepria ideia

de uno flutuasse em um ldquoinstante incapturaacutevelrdquo

Natildeo haacute duacutevida que o raciociacutenio apresentado por Platatildeo constitui um dos maiores

desafios especulativos da histoacuteria do pensamento ocidental seja nos esforccedilos empreendidos

pela loacutegica de compreensatildeo seja pelo desafio meditativo aflorado da temaacutetica proposta Neste

contexto Marcus Reis Pinheiro indica a interpretaccedilatildeo de Jean-Luc Brisson (Annexe I Les

interpretation du Parmeacutenide dans lrsquoAntiquiteacute presente na ediccedilatildeo Parmenide Paris Flamarion

1999) conforme a qual ldquo() Plotino estaacute no grupo dos inteacuterpretes do diaacutelogo que natildeo o vecirc

apenas como um exerciacutecio loacutegico mas que procura determinar a que tipo de objeto se refere o

diaacutelogordquo (PINHEIRO 2006 3) Seguindo esta linha de raciociacutenio o importante seria portanto

compreender como Plotino absorve a temaacutetica Considerar uma interpretaccedilatildeo para aleacutem da mera

concatenaccedilatildeo loacutegica de conceitos eacute basicamente absorver o sentido de cada termo Isto significa

natildeo apenas expor as formataccedilotildees daquilo que foi introduzido no discurso como ldquounordquo mas

ainda entender de que forma a simples possibilidade de concebecirc-lo no raciociacutenio implica em

uma reduccedilatildeo draacutestica das estruturas hieraacuterquicas do real ou seja constitui uma compreensatildeo

da realidade que possui como primeiro princiacutepio algo que coloca o pensamento em um niacutevel de

paradoxo que necessariamente denota a assunccedilatildeo de uma impossibilidade loacutegica

71

As trecircs hipoacutestases de Plotino seratildeo teoricamente encadeadas de maneira semelhante agraves

hipoacuteteses de Platatildeo embora natildeo sequencialmente Contudo a primeira (e talvez a mais

complexa) jaacute iniciaraacute o movimento de negatividade em direccedilatildeo agraves seguintes estabelecendo os

conflitos presentes na ideia de uno (τὸ ἑν) Plotino considera que ldquoO Uno eacute todas as coisas e

nenhuma delas a fonte para todas as coisas eacute nenhuma das coisas e ainda eacute todas as coisas em

um sentido transcendental ndash todas as coisas para assim dizer tendo seu retorno agrave isto ()rdquo

(PLOTINUS 1969 380 Eneacuteadas V 2 1) Ele ainda assevera a inefabilidade inerente ao uno

conforme a qual todo discurso eacute jaacute sempre indireto e impreciso Apenas mediante referecircncias

como ldquotodas as coisas e nenhuma delasrdquo torna-se possiacutevel acenar para o uno ndash e apenas isto

acenar Entretanto esta eacute para Plotino a uacutenica maneira de compreender a estrutura da realidade

como tal pelo simples motivo de que ldquoEacute precisamente porque haacute nada no Uno que todas as

coisas derivam dele para que o Ser possa ser trazido a fonte natildeo pode ser o Ser mesmo mas o

gerador do Ser ()rdquo (IDEM IBIDEM) que natildeo pode possuir a natureza do ser mas deve se constituir

como outro dele qual seja natildeo-ser ou mesmo nada Plotino prossegue ainda dizendo

ldquoBuscando nada possuindo nada faltando nada o Uno eacute perfeito e em nossa metaacutefora

transborda e sua exuberacircncia produz o novo este produto torna-se novamente seu progenitor

e eacute preenchido e se torna seu contemplador e Princiacutepio-Intelectualrdquo (ID IBID) A passagem

altamente especulativa denota que tudo eacute contemplaccedilatildeo dotada de uma atividade suprema que

comeccedila pelo uno e retorna a ele no simples olhar que natildeo implica nem em complexidade nem

em necessidade29 Mediante uma reflexatildeo propriamente loacutegica a contemplaccedilatildeo por meio da

qual o uno se desdobra e gera todas as coisas se daacute devido a sua proacutepria perfeiccedilatildeo ou seja o

uno natildeo eacute coisa nenhuma e necessariamente engendra todas as coisas porque eacute completo

porque eacute a totalidade de tudo e para isto eacute necessaacuterio que seja ele mesmo e ainda outro de si

29 Estes apontamentos satildeo de John Bussanich que ainda explica que ldquo() a doutrina plotiniana da derivaccedilatildeo do

Uno eacute lsquoprocessatildeorsquo o adjetivo que melhor qualifica isto eacute lsquocontemplativorsquo o movimento no qual a hipoacutestase eacute

gerada coincide com a contemplaccedilatildeo De fato o ponto cardial a chave para a estrutura da processatildeo da metafiacutesica

plotiniana era contemplaccedilatildeo ou theocircriardquo (BUSSANICH 1999 32)

72

Ciacutecero Cunha Bezerra apresenta a organizaccedilatildeo feita por Pierre Aubenque30 conforme a

qual haveriam trecircs esferas argumentativas no desenvolvimento da primeira hipoacutestase uma

loacutegica outra epistemoloacutegica e uma metafiacutesica Bezerra cita uma das passagens mais conhecidas

de Plotino que diz ldquoPrivado de unidade uma coisa cessa de ser aquilo pelo qual eacute chamada

um exeacutercito natildeo eacute um exeacutercito se natildeo eacute uno um coro um rebanho devem ser uma coisa soacuterdquo

(ID IBID 612 VI 9 1) sobretudo para enfatizar o aspecto loacutegico pelo qual Plotino ldquosubverterdquo

a resposta aristoteacutelica da entidade da coisa pela definiccedilatildeo substancial Bezerra argumenta

dizendo que ldquo() Plotino por uma exigecircncia loacutegica jaacute que o princiacutepio originaacuterio natildeo pode

possuir qualquer caraacuteter dos seres relativiza a ontologia e estabelece a henologia como

fundamento de todo serrdquo (BEZERRA OP CIT 67) O problema epistemoloacutegico sobressalta a

ultrapassagem necessaacuteria de todo conhecimento para alcanccedilar tal niacutevel de especulaccedilatildeo ao passo

que a questatildeo metafiacutesica retorna aos trechos anteriormente citados no qual a geraccedilatildeo de todas

as coisas soacute pode derivar de coisa nenhuma

O emprego do termo henologia define aqui o primeiro passo para o caminho da

negatividade Institui-se como negativo o princiacutepio que jaacute natildeo mais decorre de um rendimento

ldquopositivordquo por meio do qual se pode construir um conhecimento soacutelido e confiaacutevel mas uma

base que possui caracteriacutesticas muito diversas e que desafiam a capacidade loacutegica Por este

motivo a primeira demanda eacute jaacute a superaccedilatildeo intelectual (ἐπέκεινα νοῦϛ καὶ οὐσίας) que deve

assumir que o comeccedilo de todas as coisas eacute incoacutegnito O discurso eacute indireto e metafoacuterico porque

somente assim eacute possiacutevel indicar sua possibilidade de ser pensado ndash entendendo principalmente

que o ldquoser pensadordquo natildeo indica nem conota existecircncia porque o ser e a existecircncia mesmo satildeo

ainda posteriores agrave ideia de uno As segunda e terceira hipoacutestases portanto natildeo podem ser

concebidas se de antematildeo natildeo for assumida a negatividade do primeiro princiacutepio

30 Pierre Aubenque ldquoPlotin et le deacutepassement de lrsquoontologie grecque classiquerdquo Colloque des Royaumont Le

Neacuteoplatonisme Paris Centre National de Recherche Scientifique 1971 101-110

73

Somente por meio da completude da pensamento henoloacutegico de Plotino fica possiacutevel

deixar claro os termos pelos quais se destaca a negatividade como ldquosupressatildeo de todo saber e

dizerrdquo Os motivos contudo jaacute satildeo bastante evidentes se levado em consideraccedilatildeo que a

inefabilidade do uno indica que sobre ele natildeo se pode falar e ele natildeo se pode conhecer Portanto

o neoplatonismo necessariamente parte do pressuposto de que o ponto de partida e o ponto de

chegada do pensamento satildeo ambos uma caminhada rumo agrave supressatildeo Ao explicar a processatildeo

por meio da qual o uno engendra todas as coisas destaca-se uma consideraccedilatildeo importante se

os seres engendram o eternamente perfeito engendra eternamente algo inferior a si mesmo por

isto mesmo ldquoEacute preciso observar que a processatildeo plotiniana implica necessariamente uma

negaccedilatildeo A negaccedilatildeo eacute uma condiccedilatildeo a priori no sentido de que o engendrado deve assimilar-se

ao seu gerador mas mantendo uma resistecircncia que diferencia um do outrordquo (IDEM IBIDEM 74)

Em outras palavras a geraccedilatildeo do uno e a abertura da segunda hipoacutestase soacute eacute possiacutevel por meio

da introduccedilatildeo da diferenccedila A diferenccedila eacute o que aqui constitui o passo fundamental da sequecircncia

do pensamento neoplatocircnico O ser eacute na medida em que eacute diferente do uno e por ele eacute

engendrado justamente porque apenas a diferenccedila pode advir do eternamente perfeito

Assim sendo resta saber como o uno engendra e o quecirc ele engendra O que significa

ainda resgatar a pergunta anteriormente colocada por Parmecircnides e Platatildeo como do uno

provem o muacuteltiplo Esta questatildeo eacute sem sombra de duacutevidas uma das mais complexas do sistema

neoplatocircnico em geral A ideia de processatildeo (πρόοδος) pressupotildee uma emanaccedilatildeo a partir do

uno na qual todas as outras coisas satildeo engendradas o que significa dizer que se trata de um

movimento que abarca a realidade em toda sua estrutura na qual ldquo() difere completamente de

um mecanicismo dado que estaacute mais aleacutem de toda contingecircncia e necessidade Nesse sentido

natildeo se pode dizer que se trata de algo que implique um livre-arbiacutetrio ou uma produccedilatildeo artesanalrdquo

(ID IBID 76) Ou seja o uno natildeo necessita de nada e por isto mesmo daacute origem a tudo A

espontaneidade (se eacute que se pode utilizar tal termo) eacute natural e natildeo possui um motor

74

Ao mesmo tempo tudo aquilo que eacute gerado pelo uno possui um poder de conversatildeo

(επιστροφή) um voltar-se sobre si mesmo e voltar-se em direccedilatildeo ao uno (cf ID IBID 76)

movimentada pelo autoconhecimento daquilo que eacute Este autoconhecimento soacute eacute possiacutevel

todavia pelo proacuteprio movimento de emanaccedilatildeo conforme o qual se identifica ldquoserrdquo e

ldquopensamentordquo como havia postulado Parmecircnides e eacute justamente este o momento no qual

emerge a segunda hipoacutestase qual seja a inteligecircncia (νοῦϛ)

As caracteriacutesticas pelas quais a inteligecircncia se mostra desde a compreensatildeo da processatildeo

satildeo a chave para o sentido da filosofia de Plotino Sobre isto Thomas Alexander Szlezaacutek

escreve ldquoNatildeo persegue o Uno com esforccedilo deliberado mas espera tranquilamente ateacute que ele

apreccedila Assim a alma soacute recebe unicamente o Uno eacute uma volta do lsquosolitaacuterio para o solitaacuteriorsquordquo

(SZLEZAacuteK 2010 11) acrescentando ainda que ldquoO caminho que conduz ao Uno natildeo passa poreacutem

pela praacutetica asceacutetica de um anacoreta mas pela apropriaccedilatildeo conceitual do mundo inteligiacutevel

()rdquo (IDEM IBIDEM) Os termos inteligecircncia e inteligiacutevel referem-se aqui a uma definiccedilatildeo

particular que compreende o nuacutecleo da segunda hipoacutestase Bezerra escreve acerca deste ponto

ldquoPlotino no tratado oitavo da terceira Eneacuteada define a Inteligecircncia natildeo como uma coisa

particular mas como algo universal e muacuteltiplordquo (BEZERRA OP CIT 78) explicando que eacute

ldquoUniversal porque abarca todos os seres e muacuteltiplo porque coexistem em sua natureza

simultaneamente o inteligente (Inteligecircncia) e o inteligiacutevel (ser) ()rdquo (IDEM IBIDEM) Plotino

encadeia seu raciociacutenio elucidando como o Princiacutepio-Intelectual eacute universal e iniacutecio de todas as

coisas de maneira que ldquo() assim todas as coisas e o Princiacutepio de tudo deve ser tal que cada

parte dele seja universal eacute todas coisas do contraacuterio conteria partes que natildeo satildeo o Princiacutepio-

Intelectualrdquo (PLOTINUS OP CIT 246 Eneadas III 8 8) Conclui a partir de entatildeo que ldquo() este

Ser eacute ilimitado e que em tudo que flui dele natildeo haacute reduccedilatildeo nem em sua emanaccedilatildeo desde que eacute

o universo inteiro nem em si mesmo o ponto de partida desde que natildeo haacute reuniatildeo de partes

()rdquo (IDEM IBIDEM 246-247) Fica claro o caraacuteter ascendente e natildeo descendente da processatildeo

75

Plotino explica que ldquo() um ser desta natureza natildeo eacute existecircncia primaacuteria deve existir a

partir daquilo do qual transcende o Ser (o Absoluto) ()rdquo (ID IBID 247) e prossegue dizendo

que ldquo() Pluralidade eacute mais tardia que Unidade O Princiacutepio-Intelectual eacute um nuacutemero (=a

expressatildeo de uma pluralidade) e o nuacutemero deriva da unidade a fonte de um nuacutemero como este

deve ser o autecircntico Unordquo (ID IBID) A transcendecircncia que evidencia o caraacuteter progressivo

pode ainda ser entendida desde a ideia de que ldquo() ao contemplar-se a si mesmo a Inteligecircncia

se une ao objeto contemplando uma unidade entre o eu e o ser universal que supera toda

alteridade ()rdquo (BEZERRA OP CIT 79) Com isto eacute possiacutevel resgatar ainda o sentido pelo qual

Beierwaltes destaca a diferenccedila como princiacutepio pelo qual haacute um desvio de Plotino em relaccedilatildeo

agrave ontologia claacutessica (cf BEIERWALTES OP CIT 58) Contudo como se compreende esta

contemplaccedilatildeo eacute o que levaraacute agrave terceira hipoacutestase a alma (ψυχή) Bezerra explica recapitulando

os passos anteriores ldquoVimos anteriormente que o Uno e o Muacuteltiplo apresentam-se sob duas

maneiras distintas a) Uno e natildeo muacuteltiplo (I hipoacutetese) b) Uno-Muacuteltiplo (II hipoacutetese) A alma eacute

portanto ao mesmo tempo uno e muacuteltiplordquo (BEZERRA OP CIT 82) o que significa evidenciar

que ela representa uma distinccedilatildeo radical e afastamento do primeiro princiacutepio o uno

Ainda no oitavo tratado da terceira Eneacuteada Plotino aborda a natureza enquanto ato

criador compreendendo o fenocircmeno a partir de uma tensatildeo entre um Princiacutepio-Racional inerte

e um Princiacutepio-Natural em movimento (cf PLOTINUS OP CIT 239-240 Eneadas III 8 2) que

responderia ainda ao conflito entre unidade e multiplicidade e ainda agrave questatildeo entre tempo e

eternidade Plotino indaga como a natureza responderia ao questionamento colocando

literalmente o argumento na fala da natureza que diria que ldquoOs matemaacuteticos desde suas visotildees

desenham suas figuras mas eu desenho nada eu contemplo as figuras do material do mundo

tomando os seres como eu os sinto desde minha contemplaccedilatildeordquo (IDEM IBDEM 241) chegando a

conclusatildeo de que ldquo() o que noacutes conhecemos por Natureza eacute uma Alma cria de uma Alma

ainda anterior () uma visatildeo interna de si mesmardquo (ID IBID)

76

A visatildeo interna de si mesma mencionada por Plotino prove o entendimento de que ldquoA

alma portanto autodetermina-se e ao mesmo tempo autofragmenta-se pois ao separar-se do

todo volta-se maravilhada para o particularrdquo (BEZERRA OP CIT 84) Disto adveacutem a geraccedilatildeo do

tempo como desordem introduzida no equiliacutebrio primordial e ao mesmo tempo a introduccedilatildeo

de uma ordenaccedilatildeo mediada pela conversatildeo (επιστροφή) ndash pelo retorno maravilhado ao uno ou

uniatildeo ao fundamento por meio da contemplaccedilatildeo

Agora bem toda esta inevitaacutevel breve introduccedilatildeo ao pensamento de Plotino deve

direcionar para uma postura distinta daquela antes observada com a ontologia claacutessica e o

pensamento metafiacutesico Que postura eacute esta Ou melhor qual o caminho que se abre a partir das

trecircs hipoacutestases plotinianas Este eacute o momento no qual o caminho da negatividade comeccedila a se

encorpar e mostrar seu caraacuteter decisivo na constituiccedilatildeo do desvio intelectual do neoplatonismo

Gostaria de fazer um recorte especiacutefico do nono tratado da sexta Eneacuteada para alcanccedilar este

esclarecimento

Plotino reconstitui seu caminho a partir da afirmaccedilatildeo ldquoEacute em virtude da unidade que os

seres satildeo seresrdquo (PLOTINUS OP CIT 614 Eneadas VI 9 1) O que significa afirmar que sem a

unidade natildeo se pode considera que algo seja o que seja Em termos mais simples se nomeio

braccedilo pernas cabeccedila razatildeo sensibilidade entre outras muacuteltiplas singularidades presentes em

um ser humano mas natildeo as congrego em uma unidade pela qual afirmo ldquoser humanordquo que

compreende todas as particulares em questatildeo inexoravelmente perco de vista seu sentido Por

isto ldquoQualquer coisa que possa ser descrita como uma unidade o eacute no preciso grau pelo qual

sustenta um ser caracteriacutestico quanto menor ou maior o niacutevel do ser menor ou maior seraacute a

unidaderdquo (IDEM IBIDEM) Portanto alma seria (em razatildeo de sua distinccedilatildeo da unidade mesma)

uma grande unidade em proporccedilatildeo e na autenticidade do ser e assim ldquoUnidade absoluta natildeo eacute

eacute a alma e a primeira alma a unidade em algum sentido concomitante ()rdquo (ID IBID) deixando

ver como a unidade natildeo eacute e eacute

77

Desta forma pode-se compreender que o uno natildeo pode ser a totalidade dos seres que

anularia sua unidade nem tampouco o ldquoPrinciacutepio-Intelectualrdquo pelo qual as coisas satildeo nem o

ldquoser mesmordquo no sentido da totalidade das coisas Plotino prossegue dizendo ldquoA alma ou mente

movimentando-se rumo ao que eacute sem forma encontra-se em estado de incompetecircncia para

apreender ali onde nada se limita ou onde a se impinge a realidade difusardquo (ID IBID 615 VI

9 3) Assim ldquo(hellip) ante o puro pavor de se sustentar no nada esvai-se O estado eacute doloroso

geralmente busca aliacutevio ao se retratar de sua vagueza na regiatildeo do sentido para ali repousar em

um fundamento soacutelido bem como a visatildeo aflige-se com o minuto no qual repousa na escuridatildeordquo

(ID IBID) Mas para onde olhar frente ao desconforto de natildeo se ter onde repousar Quando se

percebe o quatildeo vago eacute todo e qualquer presumido fundamento ou sentido quando a escuridatildeo

natildeo reflete senatildeo a angustia de uma contemplaccedilatildeo exausta pelo esvair de todo sustento o que

resta para aleacutem discoacuterdia que atinge o intelecto Plotino sintetiza a afliccedilatildeo

A alma deve ver em sua proacutepria maneira isto se daacute por coalescecircncia a unificaccedilatildeo

mas buscando assim conhecer a unidade eacute impedida por esta mesma unificaccedilatildeo de

reconhecer o que foi encontrado natildeo se pode distinguir a si mesmo do objeto de sua

intuiccedilatildeo No entanto este eacute nosso uacutenico recurso caso nossa filosofia busque o

conhecimento da Unidade (ID IBID)

O uacutenico caminho rumo ao conhecimento da unidade eacute um caminho impossiacutevel em si mesmo

uma via cerrada pela proacutepria natureza do questionamento proposto Intuir as trecircs hipoacutestases ou

encadeaacute-las conforme uma loacutegica sistemaacutetica portanto elucida o caminho mas natildeo

necessariamente introspecta e absorve a pureza da experiecircncia Para isto eacute necessaacuterio mais ou

melhor menos ndash muito menos O uacutenico ponto de apoio aqui seraacute a identificaccedilatildeo entre o uno e

bem ou a compreensatildeo da primeira hipoacutestase como uno-bem (τὸ ἑν καὶ αγαθον) cujo sentido

eacute por um lado extrema e pura simplicidade e por outro inefabilidade total devido agrave perfeiccedilatildeo

78

Reivindicar este caminho soacute pode portanto levar a uma supressatildeo absoluta onde

ldquoAinda esta abstenccedilatildeo de autoconhecimento natildeo comporta ignoracircncia ignoracircncia eacute algo de fora

ndash um conhecedor ignorante de um cognosciacutevel ndash mas no solitaacuterio natildeo haacute nem conhecimento

nem nada desconhecidordquo (ID IBID 620 VI 9 6) Plotino entatildeo apresenta uma formulaccedilatildeo

nada usual conforme a qual certo direcionamento de suas intenccedilotildees pode ser entendido em

uma passagem tatildeo emblemaacutetica quanto enigmaacutetica ele escreve

Neste coro a alma olha para a nascente da Vida tambeacutem nascente do Intelecto iniacutecio

do Ser fonte do Bem raiz da Alma Natildeo que eles tenham sido despejados do Supremo

menosprezando-os como se fosse uma massa Nisto aquilo que emana seria pereciacutevel

mas eles satildeo eternos eles nasce de um princiacutepio eterno que produz deles sua

fragmentaccedilatildeo mas em virtude de sua identidade inata portanto eles se manteacutem muito

firmes conto o sol brilhe contanto haveraacute luz

()

Aqueles para os quais toda esta experiecircncia eacute estranha podem entende-la como nossos

anseios terrenos e a alegria que temos ao ganhar o que mais desejamos ndash lembrando

sempre que aqui o que noacutes amamos eacute pereciacutevel doloroso que nosso amor eacute mimeacutetico

e se afasta porque foi tudo um engano nosso bem natildeo estava laacute isto natildeo era o que

procuraacutevamos Haacute apenas o verdadeiro amor onde haacute uniatildeo natildeo segurando isto com

algum tipo de abraccedilo carnal mas possuindo na totalidade sua veracidade Todos

aqueles que viram sabem o que tenho em mente a alma toma outra vida quando se

aproxima de Deus assim restaurada sente que o distribuidor da verdadeira vida estaacute

laacute para ver que agora natildeo temos nada para procurar senatildeo aquilo que precisamos

deixar de lado e deixar assim sozinho assim vindouro assim soacute tudo o que o ambiente

terreno aniquilou na pressa de ser livre impaciente em relaccedilatildeo a qualquer laccedilo que

nos sustenta na base para que com todo nosso ser possamos agarrar-nos sobre isto

quando natildeo sobra nada em noacutes senatildeo aquilo pelo qual tocamos em Deus (ID IBID

623 VI 9 9)

79

As palavras de Plotino ressoam como uma conduta que eacute antes como postura que doutrina O

uso termo ldquoamorrdquo denota claramente uma experiecircncia irregulaacutevel uma tensatildeo entre ausecircncia e

presenccedila preenchimento e falta ndash sem embargo um misteacuterio

O misteacuterio que indicado por Plotino se configura como o guia para a visatildeo que permite

descortinar o sentido pensamento filosoacutefico Um misteacuterio que segue a mesma regra de Platatildeo e

do platonismo onde ldquoNada eacute divulgado para os natildeo-iniciadosrdquo (ID IBID 624 VI 9 11) e do

qual natildeo se pode simplesmente exibir uma estoacuteria ordinaacuteria ldquoCoisas aqui satildeo sinaisrdquo (ID IBID)

adverte Plotino Sinais para aqueles que entram em solo sagrado e tornam real a visatildeo do

inacessiacutevel Ele esclarece ainda ldquoQuando a alma comeccedila novamente a se colocar natildeo se torna

outra mas si mesma assim desprendida natildeo eacute nada senatildeo si mesma auto-reunida natildeo eacute mais

da ordem do ser estaacute no Supremordquo (ID IBID) O desprendimento e a supressatildeo a visatildeo do uno

e o movimento de uniatildeo encaminham para o ldquotodo-transcendenterdquo que jaacute natildeo mais estaacute no niacutevel

daquilo que eacute do ente mesmo do ser mas em uma esfera para aleacutem de todas as coisas que satildeo

e que natildeo satildeo A culminaccedilatildeo do pensamento henoloacutegico de Plotino como uma ldquomiacutestica da

unidaderdquo eacute o berccedilo do neoplatonismo e necessariamente o iniacutecio de sua radicalizaccedilatildeo

Neste fluxo considera-se que existam dois momentos fundamentais do desdobramento

do neoplatonismo a partir da henologia plotiniana quais sejam a teologizaccedilatildeo da henologia

desenvolvida por Proclo e a teologia negativa do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita Em ambos eacute

possiacutevel observar como o caminho da negatividade se configura partir de uma profunda

introspecccedilatildeo de temas que tendem agrave dissoluccedilatildeo do conhecimento ateacute entatildeo concebido

estruturado e instaurado ndash e ainda agrave subversatildeo completa de seus meios de expressatildeo e

significaccedilatildeo isto eacute agrave supressatildeo do saber e do dizer Eles natildeo representam meramente o ldquopasso

adianterdquo como se houvessem ainda superado o discurso antecessor mas antes o ldquopasso atraacutesrdquo

enquanto retorno agraves bases e aos princiacutepios por meio da reivindicaccedilatildeo da atitude desvelada pela

miacutestica onde o misteacuterio natildeo eacute o problema a ser desvendado mas o elemento a ser incorporado

80

O obra de Proclo eacute composta por diversos comentaacuterios aos diaacutelogos de Platatildeo dentre os

quais ao Timeu ao Parmecircnides ao Alcebiacuteades agrave Repuacuteblica entre outros aleacutem de escritos

sistemaacuteticos como os Elementos de Teologia e a Teologia Platocircnica Existem ainda obras que

abordam temas de matemaacutetica astronomia arte magia e tratados propedecircuticos sobre doutrinas

filosoacuteficas Especialmente em relaccedilatildeo agraves contribuiccedilatildeo em torno agrave henologia duas obras satildeo de

suma importacircncia o Comentaacuterio ao Parmecircnides de Platatildeo e os Elementos de Teologia

A leitura de Proclo do Parmecircnides de Platatildeo eacute considerada uma das mais sistemaacuteticas e

originais que teria sobrevivido agraves vicissitudes dos tempos Ademais guardaria ainda um apelo

ao resguardo da filosofia de Platatildeo bem como uma preparaccedilatildeo para um projeto de resgate da

vitalidade do paganismo por meio de um platonismo revigorado 31 Decorreria disto uma

profunda incursatildeo na filosofia como teologia que culminaria em seus Elementos Ainda no

Comentaacuterio Proclo descreve o percurso de Platatildeo em relaccedilatildeo agrave Parmecircnides e manifesta uma

linha argumentativa similar a Plotino

Mas caso se queira chegar o mais proacuteximo da verdade deve-se seguir a linha de nosso

Mestre que Parmecircnides inicia desde o Uno (Ser) (para a proposiccedilatildeo ldquose haacute um unordquo

jaacute que conteacutem aleacutem do ldquoUnordquo o conceito de existecircncia pertence a este tipo de coisas)

ascendendo do Uno Ser para o Uno assim demonstrando que o Uno em sentido estrito

deseja apenas isto ser One e ldquoarrebatar-se para longerdquo do Ser e o Uno Ser eacute

secundaacuterio a este pela razatildeo de sua descendecircncia em direccedilatildeo ao Ser ao passo que o

Uno mesmo eacute superior mesmo agrave designaccedilatildeo ldquoeacuterdquo e a hipoacutetese ldquose haacuterdquo assim que

adicionamos eacute o Uno no sentido estrito natildeo mais permanece (PROCLUS 1987 379-380

In Parm 1033)

31 Estas consideraccedilotildees satildeo de Ciacutecero Cunha Bezerra em Algumas consideraccedilotildees sobre leitura procleana do

Parmecircnides de Platatildeo (2004) Neste artigo ele ainda sustenta em consonacircncia com H D Saffrey (Proclus

diadoque de Platon 1990) que Proclo entra na linha de inteacuterpretes de Platatildeo que entendem sua filosofia como

revelaccedilatildeo de uma verdade divina estruturada a partir do uno filiando Platatildeo aos teoacutelogos gregos (cf BEZERRA 2004

99-100)

81

Proclo apresentaraacute na sequecircncia a impossibilidade de ldquohipotetizarrdquo o uno cindindo de um lado

hipoacutetese-condicionada e de outro anti-hipoacutetese-incondicionada O problema que estaacute sendo

colocado parte da ideia de que natildeo se pode pensar a multiplicidade isolada senatildeo somente por

meio da concepccedilatildeo de uma unificaccedilatildeo Para aleacutem da estrutura binaacuteria uno-muacuteltiplo deve-se

considerar a unificaccedilatildeo como consequecircncia necessaacuteria dando origem agrave formulaccedilatildeo ldquouno-

unificado-muacuteltiplordquo para explicar como eacute simplesmente possiacutevel que hajam elementos pelos

quais outros se unificam32

O resultado da formulaccedilatildeo de Proclo parece ser a absolutizaccedilatildeo do uno e sua

identificaccedilatildeo com Deus algo sobremaneira evidente na proposiccedilatildeo de seus Elementos que diz

ldquoTodo intelecto divino eacute uniforme ou possui a forma do Uno e eacute perfeito E o primeiro intelecto

subsiste por si mesmo e produz outros intelectosrdquo (IDEM 1998 86 Elem Theo Prop CLX)

Proclo argumenta ainda que se haacute um Deus ele eacute preenchido de unidades divinas e eacute uniforme

sendo ainda perfeito e cheio da bondade divina havendo um Deus primeiro que provecirc as

hipoacutestases para outros intelectos

Este eacute precisamente o ponto que seraacute aprofundado pelo Pseudo-Dioniacutesio Areopagita em

sua teologia negativa Tanto em Proclo quanto no Pseudo-Dioniacutesio o divino habita a

compreensatildeo filosoacutefica da realidade como incorporaccedilatildeo do misteacuterio seguindo ainda a esteira

da muacutetua reciprocidade entre filosofia e religiatildeo demanda por Plotino desde o iniacutecio Pseudo-

Dioniacutesio coroa a radicalizaccedilatildeo do uno e sua identidade com o Deus primeiro apresentado como

supraessencial (ὑπερούσιε) suprabondoso (ὑπεράγαθε) e mesmo supradivino (ὑπερθεε) razatildeo

pela qual ele demanda que ldquo() em absoluta renuacutencia de si mesmo e de todas as coisas deveraacutes

na pureza deixar todas as coisas de lado liberando-se de tudo e sendo assim levado para cima

para o Raio da Divina Treva que excede toda existecircnciardquo (DIONYSIUS THE AREOPAGITE 1920 192)

32 Esta passagem eacute cuidadosamente explicada por Giuseppe Girgenti que esclarece que ldquoO ponto culminante do

primeiro grupo de teoremas eacute o alargamento da hierarquia de quatro termos uma vez que o raciociacutenio de Proclo

levou a distinguir o intermediaacuterio entre o proacuteprio Uno e o unificado ou seja elementos que compotildeem o unificada

as primeiras unidades do natildeo-unificado ou a henadirdquo (GIRGENTI 2009 113-114)

82

Discursar acerca da inefabilidade impotildee no Pseudo-Dioniacutesio uma superaccedilatildeo da proacutepria

linguagem que se revela agora como uma construccedilatildeo liberta de qualquer fronteira e acima de

qualquer paradoxo onde negaccedilatildeo (ἀπόφασις) e afirmaccedilatildeo (κατσφάσις) comungam de igual

valor e sentido em uma mesma e uacutenica esfera A primazia propriamente apofaacutetica que toma

conta da fala do Pseudo-Dioniacutesio ganha forccedila quando supera toda definiccedilatildeo conceitual e

identifica Deus como nada daquilo que eacute

Uma vez mais indo ainda mais alto mantemos que Ele natildeo eacute alma ou mente ou

concebido pela faculdade da imaginaccedilatildeo conjuntura razatildeo ou entendimento nem eacute

nenhum ato de razatildeo ou compreensatildeo nem pode ser descrito pela razatildeo ou percebido

pelo entendimento jaacute que natildeo eacute nuacutemero ou ordem ou magnificecircncia ou pequenez

ou igualdade ou desigualdade e jaacute que natildeo estaacute inerte nem em movimento ou em

descanso e natildeo possui poder e natildeo eacute poder nem luz e natildeo vive e natildeo eacute vida nem eacute

essecircncia pessoal ou eternidade ou tempo nem pode ser apreendido pelo

entendimento jaacute que natildeo eacute nem conhecimento nem verdade nem eacute reinado ou

sabedoria nem eacute uno nem unidade nem deidade ou bondade natildeo eacute um espiacuterito como

se entende o termo jaacute que natildeo eacute Filho nem Pai nem eacute nenhuma outra coisa tal como

noacutes ou qualquer outro ente do qual se possa ter conhecimento nem pertence a

categoria de natildeo-existecircncia ou de existecircncia nem os entes existentes o conhecem

como realmente eacute nem Ele os conhece como realmente satildeo nem a razatildeo pode o

atingir nomear ou conhecer nem eacute escuridatildeo nem eacute luz ou erro ou verdade nem

nenhuma afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo pode ser aplicada porquanto aplicar afirmaccedilotildees e

negaccedilotildees natildeo se aproximam Dele noacutes natildeo aplicamos nem negaccedilatildeo nem afirmaccedilatildeo

enquanto transcende toda afirmaccedilatildeo por ser perfeita e uacutenica Causa dos seres e

transcende toda negaccedilatildeo pela preeminecircncia de sua livre natureza simples e absoluta

de qualquer limitaccedilatildeo e para aleacutem de tudo (DIONYSIUS THE AREOPAGITE 1920 200-201)

83

Seria justo afirmar que esta densa passagem da Teologia Miacutestica eacute muito mais proacutexima de uma

declaraccedilatildeo de amor do que uma articulaccedilatildeo filosoacutefica (e caberia aiacute perguntar se haacute enfim

alguma diferenccedila entre uma coisa e outra) Pseudo-Dioniacutesio natildeo apenas promove um

movimento de negaccedilatildeo em direccedilatildeo agrave toda afirmaccedilatildeo mas ainda rumo agrave proacutepria negaccedilatildeo Neste

sentido a definiccedilatildeo mais justa conforme a qual se utiliza aqui o termo negatividade seguiria

com precisatildeo os termos do Pseudo-Dioniacutesio entendendo que o caminho negativo estaacute mais

aleacutem de toda afirmaccedilatildeo e mesmo de toda negaccedilatildeo Esta eacute ainda a via para entender o que pode

ser nomeado como meontologia um percurso intelectual que apoiado pela henologia

neoplatocircnica natildeo se fundamenta mais no ente mas antes no natildeo-ente (μή ὄν) ou mesmo no

nada

As consequecircncias da henologia neoplatocircnica de Plotino e Proclo e da meontologia

miacutestica do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita natildeo passaratildeo incoacutelumes pelos seacuteculos que se seguiriam

agrave composiccedilatildeo dos escritos aqui conjurados Contudo algumas recepccedilotildees bastante acuradas e

inspiradas criativas e bem desenvolvidas ocupar-se-iam de resgatar o sentido do pensamento

negativo e desdobrar a profundidade do problema Eacute possiacutevel citar algumas dezenas de filoacutesofos

que se dedicaram ao diaacutelogo com o neoplatonismo e a teologia negativa Aqui gostaria de

encerrar este capiacutetulo direcionando-o para uma interlocuccedilatildeo especial e ao meu ver central para

a difusatildeo da negatividade na filosofia medieval moderna e contemporacircnea Tenho em mente

Joatildeo o Escoto chamado Eriuacutegena

Eriuacutegena ocupou um lugar de destaque nas altercaccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas durante

o chamado Renascimento Caroliacutengio sendo-lhe atribuiacutedas tarefas como a traduccedilatildeo do grego

para o latim das obras do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita bem como explanaccedilotildees em torno agrave

contenda da divina predestinaccedilatildeo e agraves interpretaccedilotildees e exegeses suscitadas pela disputa erguida

pela cultura biacuteblica do periacuteodo33

33 Para especificaccedilotildees em torno a Eriuacutegena e seu tempo confira CONTRENI 1996 e MCNAMARA 1996

84

A presenccedila do neoplatonismo em Eriuacutegena parece se posicionar de maneira estrateacutegica

ao longo dos movimentos por ele realizados em sua magna obra o Periphyseon Natildeo se pode

perder de vista as possiacuteveis definiccedilotildees do neoplatonismo natildeo apenas dentro de suas esferas

relacionais e a partir das tendecircncias de leitura mas ainda por meio da questatildeo fundamental que

problematiza todo conteuacutedo qual seja como o uno se relaciona com o muacuteltiplo ou ainda como

o que eacute primeiro se relaciona com o que eacute posterior Oscar Federico Bauchwitz sustenta que

ldquo() a questatildeo pela antonomaacutesia do neoplatonismo enquanto uma reflexatildeo acerca da relaccedilatildeo

entre o Criador e a criatura entre o Uno e a multiplicidade pode ser enfocada na obra de

Eriuacutegena no que diz respeito a creatio ex nihilo e ao sentido original que eacute determinado ao

termo nihilrdquo (BAUCHWITZ 2001 11) Assumindo esta hipoacutetese como vaacutelida torna-se

imprescindiacutevel compreender o lugar que tal questatildeo ocupa na obra eriugeneana e como ela se

desenvolve

Conforme os apontamentos de Bauchwitz o ldquonadardquo se apresenta pela primeira vez jaacute

no iniacutecio do Periphyseon ao serem articulados os modos da diferenccedila fundamental da divisatildeo

da natureza (φύσις natura) definida como tudo aquilo que eacute e que natildeo eacute (quae sunt et quae non

sunt) sendo dividida em quatro espeacutecies ldquo() primeiro naquilo que cria e natildeo eacute criado segundo

naquilo que eacute criado e tambeacutem cria terceiro naquilo que eacute criado e natildeo cria enquanto o quarto

nem cria nem eacute criadordquo (ERIVGENAE 1999 37 441ordf) O que eacute pode ser percebido apreendido e

conhecido O que natildeo eacute todavia natildeo se pode perceber apreender ou conhecer (cognoscitur non

quid est sed quia est) De acordo com Bauchwitz o termo quid est (ldquoo que eacuterdquo) diz respeito agrave

essecircncia de tudo que permanece incompreensiacutevel e infinito ao passo que quia est (ldquoque eacuterdquo)

indica a existecircncia da essecircncia divina ou seja seus efeitos como algo determinado e que eacute O

incompreensiacutevel da natureza divina Eriuacutegena deixa ver quando escreve ldquoPortanto se eacute por

causa de sua excelecircncia inefaacutevel e incompreensiacutevel infinitude que a Natureza Divina eacute dita natildeo

ser disto se segue que ela eacute nada ()rdquo (IDEM 2005 61 634C)

85

A impossibilidade de compreender a natureza divina eacute o que permite a Eriuacutegena

descortinar seu entendimento acerca da creatio ex nihilo Bauchwitz escreve sobre este ponto

ldquoA questatildeo se origina eacute que se a diferenccedila fundamental abarca a totalidade da natureza o que

se poderia predicar de Deus Isto eacute o que haacute para mais aleacutem do ser e do natildeo ser senatildeo o Nada

desde o qual Deus cria todas as coisasrdquo (BAUCHWITZ OP CIT 12) O problema eacute apresentado por

Eriuacutegena a partir da busca pelo sentido conforme o qual se questiona de que maneira eacute possiacutevel

compreender como todas as coisas que satildeo se originam do nada (ou nos termos do

neoplatonismo pagatildeo a mesma questatildeo de ldquocomo do uno se origina a multiplicidade) Eacute

possiacutevel interpretar esta passagem alegando que Eriuacutegena se refere ao nihilo em perfeita

sintonia com toda doutrina Cristatilde da criaccedilatildeo como de fato faz sentido afirmar Contudo

Eriuacutegena vislumbra o que considera ldquoa verdadeira essecircncia da natureza divinardquo O Criador que

cria todas as coisas que satildeo criadas insere-se naquela parte da divisatildeo da natureza na qual ldquocria

mas natildeo eacute criadordquo enquanto sua ldquoessecircnciardquo reflete aquilo que ldquonatildeo eacute nem criado nem criardquo

Em outros temos indica-se que nada eacute a natureza divina de Deus ou ainda que natildeo-ser

corresponde agrave divindade

Resta ainda resolver o mesmo problema ante ao qual se encontraram Plotino Proclo o

Pseudo-Dioniacutesio entre outros a saber como eacute possiacutevel para Deus desarraigar-se de seu nada

ou desdobrar-se desde si mesmo Bauchwitz oferece uma explicaccedilatildeo quando potildee em relevo o

problema da expressatildeo do paradoxo

() por meio da criatura eacute Deus quem se manifesta e portanto todas as criaturas

podem ser entendidas como certas apariccedilotildees divinas isto eacute teofania Neste sentido a

teofania nomeia o paradoxo da ineffabilis difusio que diz que o infinito devem finito

que o incompreensiacutevel devem compreensiacutevel que o silecircncio clama (BAUCHWITZ 2003ordf

57)

86

Em Eriuacutegena eacute possiacutevel acompanhar o sentido da explicaccedilatildeo de Bauchwitz na passagem que

diz

Tudo o que eacute entendido e sentido nada mais eacute senatildeo apariccedilatildeo do que natildeo eacute aparente

a manifestaccedilatildeo do oculto afirmaccedilatildeo da negaccedilatildeo compreensatildeo do incompreensiacutevel [a

expressatildeo do inexpressiacutevel o acesso ao inacessiacutevel] o intelecccedilatildeo do ininteligiacutevel o

corpo do incorpoacutereo a essecircncia do supraessencial a forma do informado a medida

do incomensuraacutevel o nuacutemero do inumeraacutevel o peso do impensaacutevel a materializaccedilatildeo

do espiritual a visibilidade do invisiacutevel o lugar do natildeo-lugar o tempo do natildeo-tempo

a definiccedilatildeo do infinito a circunscriccedilatildeo do incircunscrito e as outras coisas que satildeo

ambas consideradas e percebidas pelo intelecto sozinho e natildeo podem se restringir

dentro de recessos da memoacuteria e nas quais escapa agrave destreza da mente (ERIVGENAE OP

CIT 59 633BC)

A despeito da possibilidade de sintonia com a doutrina Cristatilde da criaccedilatildeo (especificamente o

sentido moralizante da gecircnese) natildeo haacute forccedila catequeacutetica senatildeo puramente especulativa na

maneira pela qual Eriuacutegena aborda a questatildeo O acesso ao sagrado aparece antes como uma

atitude fundamental na qual se insiste no misteacuterio da nadidade do divino

O resultado do caminho meditativo de Eriuacutegena eacute uma postura na qual o pensamento

natildeo responde apenas agraves demandas imediatas agraves preocupaccedilotildees que sanem os conflitos

existenciais e sociais mas uma intelecccedilatildeo cujo grau de alcance atinge toda mensurabilidade e

incomensurabilidade da estruturaccedilatildeo do real como internalizaccedilatildeo do segredo oculto e dos

misteacuterios da natureza Parece ser neste sentido que Bauchwitz sugere uma eacutetica do silecircncio

onde ldquo() natildeo basta enunciar o princiacutepio que deve reger as accedilotildees do ser humano () O silecircncio

como destino a ser alcanccedilado soacute tem sentido na medida em que nomeia a incessante e natural

disposiccedilatildeo do proacuteprio homem em dirigir-se a elerdquo (BAUCHWTZ OP CIT 12) Antes de resolver

qualquer problema assume-se o respeito para com a profundeza do incocircndito

87

Durante a introduccedilatildeo desta tese referi-me a um outro escrito de Bauchwitz Nihilismo

e Neoplatonismo assumindo que aquele artigo havia sido responsaacutevel por traccedilar uma direccedilatildeo

ou mesmo proporcionar um estiacutemulo ao desenvolvimento deste trabalho Gostaria de retornar

agravequele artigo uma vez mais para encerrar esta seccedilatildeo com definiccedilotildees mais precisas a respeito da

henologia e da meontologia como ultrapassagem dos limites da metafiacutesica

O capiacutetulo anterior evidenciou que com a ontologia ou a substantivaccedilatildeo do pensamento

ocidental por meio da confusatildeo entre ser e ente perdeu-se natildeo a capacidade intelectual do ser

humano mas o atino para o seu fundamento Em razatildeo da urgecircncia de respostas abandonou-se

tudo aquilo que era por princiacutepio incoacutegnito inefaacutevel inexprimiacutevel Como havia dito na

introduccedilatildeo com o apoio do trabalho de Bauchwitz a consumaccedilatildeo deste movimento eacute anunciado

por meio de um diagnoacutestico do niilismo Neste sentido Bauchwitz escreve

A relaccedilatildeo entre Nihilismo e Neoplatonismo que aponta para uma eacutetica aleacutem dos

limites da temporalidade e de crenccedilas religiosas ainda estaacute para ser esclarecida Uma

tal eacutetica somente poderaacute ser realmente quando cumpridas umas exigecircncias que neste

trabalho foram apenas assinaladas a superaccedilatildeo da vontade e em consequecircncia da

proacutepria liberdade soacute pode ser interpretada em uma perspectiva que jaacute natildeo se encontra

nos limites da ontologia tradicional ou no dizer de Heidegger no acircmbito da metafiacutesica

O sem-propoacutesito de uma tal eacutetica que abnega qualquer visatildeo utilitarista e

simplesmente dada do mundo exige pensar a partir de novas fundamentaccedilotildees e

valores o retorno do divino eacute uma metaacutefora que atende a tais exigecircncias na medida

em que ao tempo que nos abre uma concepccedilatildeo totalmente outra daquele que ancora

os principais valores vigentes questiona pelos conceitos fundamentais que

homologaram esses valores como superiores porque quantificaacuteveis A ausecircncia de

referecircncias fixadas pelos padrotildees contemporacircneos que mensuram o bem-estar de cada

indiviacuteduo e o resgate de uma vivecircncia que se justifica nela mesma e natildeo pelas suas

finalidades devem servir de origem para superar a ldquonoite do mundordquo (BAUCHWITZ OP

CIT 179-180)

88

Em primeiro lugar eacute importante destacar que a falta de esclarecimento da ldquoeacutetica aleacutem dos

limitesrdquo ou como prefiro colocar aqui ldquopara aleacutem das fronteirasrdquo natildeo soacute natildeo estaacute clara como

assim deve permanecer caso queira responder agrave exigecircncia de absorver a negatividade que

tambeacutem faz parte da humanidade do humano mas que foi todavia afasta de sua visatildeo da

realidade Por este motivo utiliza-se aqui o termo conflito das fronteiras para indicar natildeo uma

resoluccedilatildeo de problemas mas a assunccedilatildeo de um confronto Sendo assim a ultrapassagem de

limites deve se dar apenas no que tange agrave possibilidade de abrir o pensamento para aleacutem da

metafiacutesica tradicional Explorar o que haacute de propriamente fraco o que natildeo se sustenta o que

natildeo pode ser

A temaacutetica poderia ser encerrada aqui Seria possiacutevel retornar ao neoplatonismo com

ainda mais cautela e extrair de laacute mesmo os elementos para subverter toda sorte de ordenamento

que lanccedila o ser humano na ldquonoite do mundordquo Contudo meu interesse aqui eacute explorar mais um

momento da histoacuteria da filosofia e se possiacutevel encontrar um ponto de apoio para reunir a

tradiccedilatildeo metafiacutesica e o neoplatonismo em um uacutenico problema Minhas hipoacutetese conforme seraacute

desenvolvida no terceiro e uacuteltimo capiacutetulo eacute encontrar uma orientaccedilatildeo Orientaccedilatildeo extrema

Ali no Extremo Oriente

89

3 O EXTREMO ORIENTE E O CONFLITO DAS FRONTEIRAS A FILOSOFIA COMPARADA INTERCULTURAL

COMO CHAVE DE LEITURA PARA ALGUNS PROBLEMAS DO PENSAMENTO CONTEMPORAcircNEO

O ambiente acadecircmico britacircnico do final da deacutecada de 1970 foi palco de uma fervorosa disputa

acerca das interpretaccedilotildees e definiccedilotildees culturais entre Ocidente e Oriente A publicaccedilatildeo do livro

Orientalism (1978) de Edward Wadie Said (ع إدوارد Idwārd Wadīʿ Saʿīd) fomentou ديعس ودي

uma inesgotaacutevel discussatildeo acerca de qualquer suposta correspondecircncia deste ou daquele

elemento nos princiacutepios da tradiccedilatildeo oriental sustentando em termos bem simples que o

Oriente era antes uma invenccedilatildeo convencional Said sofreu diversas criacuteticas algumas mais

significativas outras menos Uma de suas consideraccedilotildees mais discutidas afirma que ldquo() o

Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente) como sua imagem ideacuteia personalidade e

experiecircncia de contraste Contudo nada desse Oriente eacute meramente imaginativordquo (SAID 1990

13-14) acrescentando ainda de forma incisiva que ldquoO Oriente expressa e representa esse

papel cultural e ateacute mesmo ideologicamente como um modo de discurso com o apoio de

instituiccedilotildees vocabulaacuterio erudiccedilatildeo imagiacutestica doutrina e ateacute burocracias e estilos coloniaisrdquo

(IDEM IBIDEM 14) Said defendeu que o Oriente tal qual eacute conhecido pelo mundo ocidental natildeo

corresponde agrave proveniecircncia originaacuteria de suas tradiccedilotildees mas eacute antes uma estrateacutegia (poliacutetica e

econocircmica) de manutenccedilatildeo geograacutefica Toda designaccedilatildeo acadecircmica de qualquer orientalismo

ateacute entatildeo desenvolvido estaria entatildeo equivocada apoiada em pressupostos que natildeo condizem

com a tradiccedilatildeo oriental Sem embargo o mesmo poderia ser dito a respeito da introspecccedilatildeo do

mundo grego pelo mundo romano-latino e no decorrer da histoacuteria da humanidade eacute possiacutevel

ainda identificar outras centenas de casos semelhantes ateacute o ponto no qual se afirma a

globalizaccedilatildeo por meio da modernizaccedilatildeo de todos os recantos do planeta dentro do iacutempeto de

igualar todas as culturas em um niacutevel comum

90

Entretanto apesar de ser possiacutevel interpretar as assertivas de Said de forma mais

ponderada aproveitando com isto certo direcionamento fatalista embora natildeo necessariamente

inveriacutedico de sua investigaccedilatildeo algumas gafes de sua compreensatildeo da histoacuteria se revelam

bastante perturbadoras Um dos principais criacuteticos de Said Robert Irwin publicou uma obra

onde ampla parte eacute dedicada agrave refutaccedilatildeo direta dos principais argumentos de Said Em For the

Lust of Knowning (2006) Irwin destaca algumas inverdades de Said e contrargumenta de

maneira precisa certas falaacutecias Contudo Irwin eacute tambeacutem bastante emotivo em sua abordagem

ele escreve ldquoPara pocircr minhas cartas na mesa jaacute de iniacutecio a meu ver aquele livro [Orientalism]

eacute uma obra de uma impostura maleacutevola na qual eacute difiacutecil distinguir erros verdadeiros de

falsidades propositadasrdquo (IRWIN 2006 11) Irwin ataca principalmente os erros fatuais de Said

apontando para lacunas na fundamentaccedilatildeo da obra Orientalism34 destacando vaacuterios enganos e

afirmando em siacutentese ldquoPois se eacute possiacutevel apresentar uma imagem falsa do orientalismo do

cristianismo e do imperialismo britacircnico natildeo seria tatildeo obviamente errado apresentar de modo

semelhante uma falsa imagem do islatilde da histoacuteria aacuterabe ou da difiacutecil situaccedilatildeo dos palestinosrdquo

(IDEM IBIDEM 330-331) fazendo referecircncia agraves posiccedilotildees por Said defendidas Em suma Irwin daacute

a entender nas entrelinhas que a politizaccedilatildeo de um criacutetico literaacuterio no caso Said tornou a obra

Orientalism um intento mal construiacutedo como ferramenta para sustentaccedilatildeo de posiccedilotildees poliacuteticas

condenando todo seacuterio estudo que envolve o orientalismo Ateacute entatildeo muitos outros

pesquisadores e eruditos atacaram Said bem como tantos outros o admiravam e o defenderam

Todavia com a apresentaccedilatildeo desta disputa quero aqui destacar um fator iacutempar que natildeo

necessariamente se prende agrave contenda mas que encobre o toacutepico de modo geral

34 Irwin destaca alguns erros ldquoOrientalismo daacute a impressatildeo de um livro escrito agraves pressas Eacute repetitivo e conteacutem

muitos erros factuais Said menciona lsquoPedro o Veneraacutevel e outros orientalistas cluniacensesrsquo Que outros

orientalistas cluniacenses Seria interessante conhecer seus nomes (Mas naturalmente a ideia de que houvesse toda

uma escola de orientalistas cluniacenses eacute absurda Pedro o Veneraacutevel trabalhou sozinho) Como Bernard Lewis

ressaltou Said faz com que exeacutercitos muccedilulmanos conquistem a Turquia antes de conquistarem o norte da Aacutefrica

Isso realmente sugere uma ignoracircncia espantosa da histoacuteria do Oriente Meacutedio da mesma forma que sua crenccedila

quanto a terem a Gratilde-Bretanha e a Franccedila dominado a regiatildeo oriental do Mediterracircneo a partir do final do seacuteculo

XVIIrdquo (IRWIN 2006 329)

91

Com a discussatildeo entre os orientalistas e seus inimigos o importante eacute destacar natildeo

apenas as dificuldades que envolvem todo e qualquer estudo comparado entre Ocidente e

Oriente mas o fato de que eacute da natureza do proacuteprio estudo comparado que haja divergecircncias

A divergecircncia e o erro satildeo de fato disposiccedilotildees naturais dos estudos comparados sem os quais

natildeo seria possiacutevel sequer dar iniacutecio agrave discussatildeo ou desenvolver qualquer linha de raciociacutenio

preparatoacuteria Soacute eacute possiacutevel falar em estudos comparados porque houve de antematildeo a percepccedilatildeo

de uma divergecircncia Mais ainda a necessidade do momento e os acasos eventuais direcionam

os estudiosos para um ou para outro lado Assim como Said saiu em defesa da Palestina durante

um periacuteodo no qual os conflitos haviam se asseverado em decorrecircncia da expulsatildeo das forccedilas

de paz das Naccedilotildees Unidas em 1967 tambeacutem outros pensadores em outros momentos da histoacuteria

foram motivados por acontecimentos histoacutericos sejam eles de guerra ou de paz poliacuteticos

econocircmicos ou religiosos Como por exemplo as diversas manifestaccedilotildees de revolta e

indignaccedilatildeo de Theodor Wiesengrund Adorno e Gershom Scholem apoacutes Auschwitz ou as

anaacutelises polecircmicas de Slavoj Žižek das revoltas do subuacuterbio de Londres e da Primavera Aacuterabe

Contudo algumas deacutecadas antes da publicaccedilatildeo da obra de Said precisamente durante a

deacutecada de 1950 o Departamento de Filosofia da University of Hawairsquoi at Mānoa havia

alavancado uma seacuterie de trabalhos a respeito dos fundamentos e procedimentos dos estudos

comparados Eacute preciso considerar que proacuteprio departamento jaacute havia sido estruturado entre

1930 e 1940 com o objetivo de suprir a lacuna que havia a respeito dos estudos comparados na

filosofia A primeira East-West Philosophers Conferece em 1939 ditou o tom pelo qual se

tornaria possiacutevel falar abertamente alguns anos mais tarde de uma filosofia comparada

intercultural Ali natildeo escapou a ideia de que foi justamente por meio do ldquoerrordquo que se

estabelecia o diaacutelogo entre fronteiras Em outras palavras este diaacutelogo nascia jaacute sempre de um

conflito das fronteiras A hipoacutetese de consenso eacute explorada neste sentido apenas mediante a

assunccedilatildeo de certa ignoracircncia parcial e sopesando ainda as variaccedilotildees de interpretaccedilatildeo

92

O rigor filosoacutefico que direcionou as primeiras tentativas da filosofia comparada em

confrontar as tradiccedilotildees sapienciais ocidentais e orientais permitiu a instauraccedilatildeo de uma postura

cuidadosa e quase mesmo analiacutetica do problema35 Com isto foi possiacutevel comeccedilar a pensar de

que forma elementos do pensamento oriental e da filosofia ocidental poderiam convergir ou

divergir e quais as contribuiccedilotildees que este tipo de comparaccedilatildeo pode trazer aos problemas da

contemporaneidade Todavia como anos mais tarde discutiriam Said Irwin e outros natildeo se

pode desprezar o fato de que nada escapa aos entrelaccedilamentos ldquoirrastreaacuteveisrdquo das relaccedilotildees entre

Ocidente e Oriente Neste sentido embora qualquer comprovaccedilatildeo cientiacutefica empaque frente aos

desafios historiograacuteficos natildeo eacute de todo ingecircnuo especular as influecircncias que por exemplo

Platatildeo teria sofrido da sabedoria primitiva de hinduiacutesta e budistas como sustentam diversos

especialistas36 Ou ainda da indagaccedilatildeo acerca de ateacute que ponto o Aristoacuteteles que conhecemos

natildeo foi orientalizado por Al-Farabi (صر ون ن محمس اب ی محمس ب اراب Abū Naṣr Muḥammad ibn ف

Muḥammad Fārābī) Avicena (ن نا اب ع د ou و لی اب نا ع ع د Pūr Sinɑʼ ou ainda ور نا پ ع د Pur-

e Sina em aacuterabe و لي أب عن ع س ح ن ال بس ب الله ع ن نا ب ع د Abū ʿAlī al-Ḥusayn ibn ʿAbd Allāh

ibn Al-Hasan ibn Ali ibn Sīnā) entre outros filoacutesofos da tradiccedilatildeo aacuterabe Sem contar os

sincretismos que permearam a filosofia do helenismo tardio em Alexandria onde pagatildeos

judeus cristatildeo e mulccedilumanos travavam interminaacuteveis disputas teoacutericas (e natildeo apenas teoacutericas)

a respeitos dos fundamento filosoacuteficos e teoloacutegicos religiosidade momento no qual fica difiacutecil

empreender uma anaacutelise pormenorizada de quem influenciou quem quando o quanto e como37

35 Charles A Moore ponderou no trabalho Some Problems of Comparative Philosophy (1951) a dificuldade em

posicionar as doutrinas orientais em um grupo homogecircneo como podia ser feito com a ocidentais apontando ainda

para o cuidado em evitar as caracterizaccedilotildees e comparaccedilotildees a partir de tendecircncias mais gerais (cf MOORE 1951 67)

Kwee Swan Liat escreveu ainda em Methods of Comparative Philosophy (1951) que ao menos sete esferas de

aplicaccedilatildeo metodoloacutegica devem ser previamente levadas em consideraccedilatildeo (aproximaccedilatildeo filoloacutegica histoacuterica

comparativa formal-valorativa psicoloacutegica fenomenoloacutegica e socioloacutegica-antropoloacutegica) avaliando uma por

uma e propondo por conseguinte uma oitava aproximaccedilatildeo total-integrativa (cf KWEE SWAN LIAT 1951 10ss) 36 Estas hipoacuteteses satildeo levantadas por Graham Parkes na introduccedilatildeo de Heidegger and Asian Thought (1987) (cf

PARKES 1987 1) 37 Este ponto especiacutefico acerca das contendas do periacuteodo heleniacutestico foram sobremaneira bem expostas por Jean

Pepiacuten no escrito intitulado Heacutelleacutenisme et christianisme no volume de Franccedilois Chacirctelet La Philosophie v 1 De

Platon agrave Saint Thomas Paris Marabout 1995

93

Falar efetivamente de uma filosofia comparada intercultural todavia pressupotildee outra

perspectiva aquela na qual ambas as tradiccedilotildees estatildeo culturalmente niacutetidas e bem delineadas

(ainda que por meio de caracterizaccedilotildees vulgares pouco precisas ou mesmo caricatas) e satildeo

entendidas como exponencialmente distintas Entretanto as mesmas dificuldades permanecem

Com isto quero dizer fica difiacutecil afirmar ateacute que ponto um lado compreendeu o outro de modo

suficiente e satisfatoacuterio sendo possiacutevel indagar ainda se as apropriaccedilotildees natildeo se deram mediante

interpretaccedilotildees equivocadas ou leituras transviadas sobretudo quando natildeo haacute domiacutenio pleno dos

idiomas envolvidos

Estas asseveraccedilotildees tomaram conta de muitos pensadores no decorrer da histoacuteria da

humanidade Ateacute onde eacute possiacutevel investigar dois momentos marcam o iniacutecio da relaccedilatildeo

expliacutecita (e natildeo meramente impliacutecita como no caso dos primeiros filoacutesofos gregos de Platatildeo e

de Aristoacuteteles) entre Ocidente e Oriente na filosofia a apropriaccedilatildeo latina durante a Idade Meacutedia

dos escritos aacuterabes do Oriente Meacutedio38 e a interlocuccedilatildeo e introspecccedilatildeo da tradiccedilatildeo do Extremo

Oriente (sobretudo chinesa em um primeiro momento) na filosofia alematilde dos seacuteculos dezessete

e dezoito Aqui interessa especialmente o diaacutelogo com o Extremo Oriente e como ele natildeo se

encerrou no mero intercacircmbio de tradiccedilotildees fomentando um movimento de reversatildeo no qual os

orientais por sua vez tambeacutem abriram interlocuccedilatildeo direta com o pensamento ocidental

introspectando a filosofia e desenvolvendo ao seu modo formas de reflexatildeo nos mesmos

moldes da estrutura categoacuterica ocidental mas partindo dos princiacutepios orientais ainda que em

certa medida (como se veraacute) tais princiacutepios por vezes comunguem em muitos aspectos de

elementos e direcionamentos comuns aos ocidentais e por vezes natildeo Para isto eacute preciso

investigar brevemente a gecircnese desta relaccedilatildeo e como ela tem iniacutecio

38 Sobre este toacutepico que natildeo seraacute abordado aqui confira W Raven e A Akasoy (eds) Islamic Thought in the

Middle Ages Studies in Text Transmissions and Translations in Honour of Hand Daiber Leiden Brill 2008 D

Calma Eacutetudes sur le premier siegravecle de lrsquoaverroisme latin approches et textes ineacutedits Turnhout Brepols 2010

entre outros

94

A despeito da culminaccedilatildeo das luzes no periacuteodo moderno diversos temas obscuros

perpassaram o seacuteculo dezessete sobretudo aqueles motivados pelas missotildees catequeacuteticas

jesuiacutetas na China que inevitavelmente influenciaram o ambiente intelectual da eacutepoca 39

Independente dos transtornos causados pelos europeus em suas incursotildees tambeacutem na Europa

os problemas apareceram Quando os documentos acerca das tradiccedilotildees chinesas de pensamento

desembarcaram no continente europeu despertaram imediato interesse em diversos estudiosos

Contudo tampouco foi ameno o iniacutecio deste diaacutelogo O caso mais draacutestico se deu em

1723 quando Christian Wolff fugiu de Halle an der Saale em Sachsen-Anhalt na Alemanha

em decorrecircncia de uma seacuterie de perseguiccedilotildees despertadas por um discurso por ele pronunciado

dois anos antes sob o tiacutetulo Oratio de Sinarum philosophia practica (1721) O motivo era

polecircmico e suscetiacutevel de distintas interpretaccedilotildees Wolff afirmara que ldquoA mesma autoridade que

possui os ditos e feitos de Cristo possui tambeacutem Confuacutecio para os chineses Moiseacutes para os

judeus e Mohammed para os turcosrdquo (WOLFF 1985 117) Embora Wolff tenha impressionado

grande parte de seus ouvintes com o teor apaixonado de sua preleccedilatildeo tal comparaccedilatildeo redundou

em acirradas criacuteticas por diversos professores e eruditos que acompanhavam a fala e a

interpretaram como uma espeacutecie de ateiacutesmo mais ou menos mitigado Estas acusaccedilotildees todavia

natildeo eram fruto apenas da sinofilia de Wolff mas advinham jaacute de seu confronto com colegas

pietistas da Universidade de Halle devido agrave inclinaccedilatildeo bastante evidente para um pensamento

racionalista e secular40

39 Sobre as missotildees jesuiacutetas confira Wenzhao Li Die christliche China-Mission im 17 Jahrhundert Stuttgart

Franz Steiner 2000 Acerca do caso especiacutefico do diaacutelogo com a filosofia alematilde confira ainda Antonio Florentino

Neto Von der Interpretation zum Gespraumlch Das chinesische Denken in deutschen Philosophie Saarbruumlcken

SVH 2013 Florentino Neto ainda comenta que as missotildees tiveram iniacutecio ainda no seacuteculo dezesseis tendo

comeccedilado no Japatildeo e soacute entatildeo atingido a China no seacuteculo dezessete (cf FLORENTINO NETO 2009 41) 40 Os interesses de Wolff pela China bem como pelo racionalismo paulatinamente aparecem em seus escritos

desde a influecircncia direta de Leibniz ateacute a leitura dos tratados dos jesuiacutetas a respeito da China Menccedilotildees ao

pensamento chinecircs e o peso da admiraccedilatildeo que nutria por Reneacute Descartes satildeo evidentes em seus trabalhos a partir

de 1721 (cf LACH 1953) A despeito dos interesses de Wolff pelo pensamento chinecircs sobretudo acerca dos temas

morais constata-se que ele considerava o cristianismo moralmente superior e mais bem desenvolvido (cf KANAMORI

1997 302-303)

95

A hipoacutetese de que a natureza comum do ser humano possibilita o discurso intercultural

nasce sobretudo da comunhatildeo entre uma radicalizaccedilatildeo quase miacutestica do racionalismo moderno

e o impacto causado por escritos de ordem semelhante embora com princiacutepios e fundamentos

distintos Aleacutem de Wolff tambeacutem Nicolas Malebranche e Gottfried Leibniz se dedicaram agraves

leituras do material trazido pelos jesuiacutetas no mesmo periacuteodo Malebranche compocircs em 1707 o

escrito Entretien drsquoun Philosophe Chreacutetien et drsquoun Philosophe chinois sur lrsquoexistence et la

nature de Dieu por meio do qual mais tarde aproveitou para se livrar das acusaccedilotildees de ser um

ldquospinozistardquo Malebranche ainda encarou uma acirrada disputa acerca da condenaccedilatildeo do Papa

Clemente XI agraves missotildees jesuiacutetas sustentando posiccedilotildees bastante polecircmicas em seu diaacutelogo

Malebranche levanta em sua obra a questatildeo fundamental acerca da entificaccedilatildeo do deus

cristatildeo instigando a pergunta acerca do infinito que eacute respondida pelo filoacutesofo chinecircs da

seguinte maneira ldquoEstou convencido de que quando penso sobre o infinito estou muito longe

de pensar qualquer coisa Mas entatildeo eu penso em um tal ser individual e determinado Agora

o Deus que vocecircs adoram natildeo eacute assim um ser individual e particularrdquo (MALEBRANCHE 1708

17) As preocupaccedilotildees de Malebranche caminham no sentido de articular ser e ente no problema

da ontologia do cristianismo Quando Leibniz escreve seu Discours sur la theacuteologie naturelle

des Chinois (1716) ele o faz justamente tendo em vista repetidos pedidos de esclarecer pontos

levantados por Malebranche apoacutes o escrito ter sido enviado a ele por Nicholas Reacutemond41

Eacute possiacutevel considerar que Leibniz foi o que se devotou com mais afinco agrave tradiccedilatildeo

chinesa Ele teria se envolvido principalmente com o direcionamento praacutetico da sabedoria

chinesa profundamente norteada pelo propoacutesito de melhorar a si mesmo e agrave sociedade por meio

da noccedilatildeo confucionista de cultivo de si (修身 xiushen) no sentido propriamente moral42

41 Leibniz trocou extensa correspondecircncia com os missionaacuterios jesuiacutetas a respeito da filosofia chinesa aleacutem de

apresentar comentaacuterios pontuais em sua Novissima Sinica (1697) Contudo eacute no Discours que suas ponderaccedilotildees

mais seacuterias e cuidadosas satildeo delineadas e manifestas (cf KANG 2009 6-8) 42 Mais especificaccedilotildees sobre este tema podem ser encontrados em Karyn T Lay Introduccedilatildeo agrave filosofia chinesa

Trad Saulo Alencastre Satildeo Paulo Madras 2009

96

Leibniz escreve em seu discurso ldquoMas quem poderia pensar que houvesse na terra um

povo que superasse os nossos aspectos da vida cultural Se formos iguais nos modos de

produccedilatildeo somo superiores nas ciecircncias teoacutericas mas inferiores na filosofia praacuteticardquo (LEIBNIZ

1979 11) concluindo que ldquo() somos inferiores na aacuterea da eacutetica na poliacutetica e na vida dos

haacutebitos cotidianosrdquo (IDEM IBIDEM) A interpretaccedilatildeo de Leibniz exalta a capacidade dos chineses

em se organizarem e valorarem as tensotildees promovidas pelo campo social com base no cultivo

de si e ainda identificando o ldquosirdquo ao povo em geral Importante eacute ressaltar natildeo apenas desta

breve sentenccedila ilustrativa mas a partir de uma visatildeo mais ampla de suas reflexotildees o profundo

interesse em preencher lacunas a respeito da proveniecircncia intelectual de certos problemas

filosoacuteficos

Anos depois tambeacutem Georg W F Hegel Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche

nutririam interesses pelo Oriente43 Contudo a resposta propriamente oriental a respeito do

intercacircmbio filosoacutefico se daria apenas na virada do seacuteculo dezenove para o seacuteculo vinte Este eacute

o momento no qual a filosofia comparada intercultural comeccedila a ganhar corpo precisamente

com a abertura poliacutetica e intelectual do Japatildeo e o desenvolvimento da chamada Escola de

Filosofia de Kyōto44 Embora natildeo haja tempo nem espaccedilo para abordar de maneira mais

cuidadosa os enlaces teoacutericos e praacuteticos da Escola de Kyōto escrutinando as estruturas de

pensamento de cada um de seus primeiros membros (e ainda de seus membros tardios) gostaria

aqui de destacar alguns aspectos fundamentais direcionados por duas questotildees a primeira

sustentando o porquecirc a filosofia tem iniacutecio propriamente acadecircmico no Extremo Oriente e

precisamente no Japatildeo e a segunda indagando como (ou de que modo) isto acontece Uma

hipoacutetese necessariamente leva agrave outra e isto pode ser facilmente observado

43 Um panorama mais especiacutefico das aproximaccedilotildees pode ser visto em Florentino Neto 2009 44 Em minha dissertaccedilatildeo de mestrado jaacute havia explanado os movimentos histoacutericos que levaram agrave abertura do Japatildeo

e ao surgimento da filosofia japonesa moderna ou contemporacircnea Uma bibliografia mais completa acerca do tema

pode ser extraiacuteda das obras de referecircncia William Beasley The Meiji Restoration (Stanford Stanford UP 1972) e

The Rise of Modern Japan (New York St Matinrsquos Press 1995)

97

Em primeira matildeo sustento que os motivos que proporcionaram o surgimento de uma

ldquoescola filosoacuteficardquo no Japatildeo modernizado estatildeo intimamente ligadas com sua introspecccedilatildeo da

tradiccedilatildeo oriental precedente Em palavras mais simples a maneira pela qual os japoneses

compreenderam e sintetizaram as principais linhas de pensamento orientais (hinduiacutesmo

budismo confucionismo e daoiacutesmo) culminando no chamado budismo zen foi sem embargo

a chave para absorver a filosofia ocidental Em segunda matildeo sustento ainda que a filosofia

japonesa nasce cresce e se estabelece mediante duas perspectivas (justamente os ldquoparadigmasrdquo

anteriormente abordados na tese) metafiacutesica e negatividade em decorrecircncia do florescimento

do zen no Japatildeo Por fim argumento que justamente pelo entrelaccedilamento de metafiacutesica

negatividade e o pensamento do Extremo Oriente que nasce a uacutenica filosofia possiacutevel para o

momento histoacuterico pelo qual passava o Japatildeo e com isto abre-se uma pertinente chave de

leitura para o momento que agora mesmo atravessa a filosofia contemporacircnea

Portanto inicialmente eacute essencial destacar a singularidade do budismo zen em relaccedilatildeo

agraves tradiccedilotildees precedentes Existem muacuteltiplas maneiras pelas quais eacute possiacutevel empreender esta

tarefa Acredito ser plausiacutevel direcionar este toacutepico mediante um problema especiacutefico qual seja

da fundamentaccedilatildeo uacuteltima da realidade a partir da meditaccedilatildeo a respeito da questatildeo da vacuidade

entendida como śūnyatā (शनयता)

A ideia de śūnyatā deriva do budismo indiano primitivo Relatos de reflexotildees em torno

ao problema do fundamento da realidade aparecem (como jaacute havia exposto na introduccedilatildeo desta

tese) desde os cacircnones Pāḷi e satildeo expressos de maneira mais clara e niacutetida no budismo mahāyāna

principalmente no Sūtra do Coraccedilatildeo (Prajntildeāpāramitā Hṛdaya परझञापारनमताहरदय) passando pela escola

mādhyamaka de budismo indiano e ainda nos Versos Fundamentais sobre o Caminho do Meio

(Mūlamadhyamaka-kārikā मलमधयमककाररका) de Nāgārjuna (िागारि) onde foi apresentada de maneira

mais profunda e sistemaacutetica

98

Algumas interpretaccedilotildees do escrito de Nāgārjuna destacam o śūnyatā como constituiccedilatildeo

da totalidade da realidade enfatizando que isto significa uma muacutetua dependecircncia (pratītya-

samutpāda परतीतयसमतपाद) de todas as coisas de todas aquelas que possuiriam existecircncia individual

ou substancial e ateacute da proacutepria ideia de nada o que significa propriamente uma anulaccedilatildeo de

qualquer Ente Supremo ou mesmo qualquer verdade absoluta45

Quando os ensinamentos do budismo indiano chegam agrave China e no Japatildeo alguns

princiacutepios fundamentais satildeo radicalizados por ambas as naccedilotildees Existem vaacuterias hipoacuteteses

conforme as quais eacute possiacutevel indagar os motivos desta radicalizaccedilatildeo Alguns consideram que a

doutrina radical do budismo se deve ao gecircnio do monge Boddidharma embora outros

argumentem que o motivo foi o encontro com o daoiacutesmo e o neoconfucionismo A questatildeo pode

permanecer suspensa sem que isto afete a compreensatildeo das bases e dos caminhos do budismo

zen Ao que concerne propriamente agrave introspecccedilatildeo deste conceito fundamental na filosofia

japonesa contemporacircnea (sem embargo o ponto ao qual quero chegar) existem tambeacutem

inuacutemeras controveacutersias embora haja ainda certos pontos solidamente estabelecidos e

mutuamente consentidos que se pode explorar com o intuito de apresentar o problema

O expoente da Escola de Kyōto que pela primeira vez explorou de maneira sistemaacutetica

a questatildeo e a colocou via uma formulaccedilatildeo filosoacutefica foi Kitarō Nishida (西田 幾多郎) Sua

biografia eacute repleta de elementos que o fariam parecer ou bem um rebelde visionaacuterio ou bem

um precoce e intempestivo intelectual permeado por desacordos com o sistema Sem embargo

muitos pesquisadores descreveram com minuacutecia os percalccedilos de sua biografia Por isto natildeo eacute

de todo liacutecito perder muito tempo aqui descrevendo seu percurso pessoal Gostaria apenas de

atentar para alguns pontos sobremaneira importantes no que tange agrave formaccedilatildeo intelectual de

Nishida

45 Este ponto eacute melhor analisado por Michael Barnhart que considera que de acordo com Nāgārjuna ldquo() natildeo se

pode sustentar nenhuma feacute na realidade ou princiacutepio transcendente nem nenhuma razatildeo humana pode pretender

independecircncia de nenhum tipo ()rdquo (BARNHART 1994 649)

99

Em primeiro lugar Nishida viveu em meio agrave restauraccedilatildeo Meiji (1868-1912) um periacuteodo

que divide a histoacuteria do Japatildeo entre preacute-moderna e moderna no qual a sociedade feudal entra

em decliacutenio e a naccedilatildeo eacute ocidentalizada pela forccedila maior da pressatildeo do Departamento de Estado

Norte-Americano A evidecircncia de que o ensino japonecircs estava defasado frente aos desafios do

novo mundo levou seus governantes a implementarem um sistema educacional semelhante ao

ocidental sendo neste periacuteodo fundadas as primeiras universidades japonesas Nishida

frequentou tais universidades embora tivesse seu proacuteprio percurso intelectual independente

tendo a oportunidade de estudar com Raphael von Koumlber professor russo-alematildeo convidado

para ministrar aulas de filosofia no Japatildeo Com Koumlber Nishida estudou a histoacuteria do

cristianismo (com ecircnfase nas influecircncias do paganismo de Plotino) aleacutem da filosofia criacutetica de

Immanuel Kant e da esteacutetica claacutessica Eacute preciso ponderar ainda que Nishida lia com fluecircncia o

francecircs o alematildeo e o inglecircs tendo acesso integral agraves principais obras da filosofia ocidental Por

outro lado o mesmo estudante dedicado era ainda um pensador radical que encontrou na

tradiccedilatildeo do zen budismo um rumo para suas inquietaccedilotildees

Quando Nishida se aproxima do zen budismo e comeccedila a praticar mediaccedilatildeo o impacto

da destruiccedilatildeo dos meacutetodos convencionais de ensino o afeta largamente ponderando sobretudo

que ele jaacute havia abandonado a escola primaacuteria por desentendimentos com o regime educacional

Um artigo de Lothar Knauth intitulado Life is Tragic The Diary of Nishida Kitaro (1965)

destaca uma passagem do diaacuterio de Nishida onde eacute possiacutevel observar sua postura conforme suas

proacutepria palavras

Faccedila sua proacutepria mente e depois disto natildeo dependa dos outros

Natildeo acredite indiscriminadamente nas palavras das pessoas

Natildeo fale de assuntos que ainda natildeo foram amadurecidos

Natildeo desperdice tempo precioso com fofocas ociosas

A lei da mateacuteria de leitura ler pensar escrever

100

Se vocecirc ainda natildeo terminou de pensar sobre um assunto

natildeo mude para outro

Se vocecirc natildeo terminou de ler um livro ateacute o fim

natildeo pegue outro

Non multa sed multum

Diaacuterio Ano Novo 1897 (NISHIDA apud KNAUTH 1965 337)

O trecho do diaacuterio aponta para um jovem estudioso preocupado com o rigor a tensatildeo

proveniente do impacto surtido pelas leituras Knauth expotildee consecutivamente um outro trecho

do diaacuterio este datado de 1 de julho de 1945 jaacute no final da vida de Nishida que diz

simplesmente ldquoEscurecendo nublado vinte grausrdquo (IDEM IBIDEM) A intenccedilatildeo de Knauth com

isto eacute mostrar a profunda introspecccedilatildeo redundante de um amadurecimento especulativo

proveniente de anos de meditaccedilatildeo Contudo ao que interessa ao propoacutesito do toacutepico vale

salientar que mesmo em um conturbado espiacuterito jovem havia jaacute sempre a necessidade de forccedilar

uma ldquoaquietamentordquo da mente uma busca por um lugar silencioso no qual prevalece a maacutexima

non multa sed multum natildeo muito mas bastante

Entre 1891 e 1897 (a ano da primeira citaccedilatildeo) Nishida praticou incessantemente a

meditaccedilatildeo zen havendo tambeacutem contribuiacutedo para uma revista do secto do Budismo da Terra

Pura Sua transformaccedilatildeo efetiva se daria em 1903 onde uma draacutestica revoluccedilatildeo de seu

entendimento abriria caminho para dar iniacutecio ao seu pensamento efetivo

O homens natildeo podem pensar em morrer natildeo podem ter grandes pensamentos ambos

Kawai e Gordon jaacute disseram isto Tentei pensar em mim mesmo morto aos trinta e um

de dezembro de meu trigeacutesimo quinto ano mas entretanto por mais que tentasse natildeo

podia pensar sobre isto seriamente Natildeo importa o quanto eu pense na morte eu natildeo

consigo me fazer esquecer o mundo (ID IBID 341)

101

Para Knauth este trecho evidencia uma iluminaccedilatildeo por meio da ideia de morte miacutestica e

renascimento O resultado imediato da iluminaccedilatildeo ao contraacuterio do que poderia parecer coerente

aos olhos ocidentais daacute-se na publicaccedilatildeo imediata de um artigo onde Nishida afirma ldquoEu

estava errado em usar o Zen em consideraccedilatildeo ao conhecimento Eu deveria tecirc-lo usado para o

espiacuterito e alma Ateacute eu comeccedilar a sentir pela visatildeo eu natildeo pensarei nem em filosofia nem em

religiatildeordquo (ID IBID 342) Este momento representa uma iluminaccedilatildeo justamente pelo fato de que

haacute sem embargo a assunccedilatildeo de uma correta postura mas com um propoacutesito enganoso ndash a busca

pelo conhecimento havia posto em xeque absolutamente todos os anos dedicados agrave meditaccedilatildeo

era necessaacuterio portanto comeccedilar novamente

Conforme Knauth Nishida iraacute se preparar nos proacuteximos anos para exprimir o potencial

introspectado durante sua iluminaccedilatildeo Trecircs pontos satildeo neste momento fundamentais O

primeiro eacute a leitura profundamente marcante para Nishida de Mestre Eckhart46 O segundo eacute

o falecimento de sua filha Yūko viacutetima de um ataque de bronquite O terceiro (diretamente

ligado ao segundo) eacute sua luta contra o cigarro Em 1923 Nishida escreve ldquoDeste dia em diante

eu morri para mundo Eu vivo em minha proacutepria filosofia Tudo sacrificado tudo sacrificado

Profunda impressionante experiecircnciardquo (ID IBID 344) e em 1927 ldquoAgrave tarde eu estava sozinho

na casa Pensamento quietos Quietamente eu passei metade do dia Eu natildeo fumei nem sequer

um cigarro Renascimento despertado de um sonho ruim De uma aacutervore podre de alguma

maneira um novo broto de vida pode florescer Hoje eu estava quase felizrdquo (ID IBID) O motivo

pelo qual Knauth intitula seu artigo com a expressatildeo Life is Tragic adveacutem justamente desta

postura de Nishida conforme a qual a vida humana natildeo passaria de preocupaccedilotildees e problemas

46 Nishida inicia a leitura de Eckhart em 1907 Seria interessante ao propoacutesito da tese que houvesse uma explanaccedilatildeo

maior e mais cuidadosa do pensamento de Eckhart sobretudo no segundo capiacutetulo onde seu posicionamento eacute

fundamental para o desenvolvimento do neoplatonismo e da miacutestica Contudo esta difiacutecil tarefa tornaria o percurso

da tese demasiado longo e cansativo podendo desviar a atenccedilatildeo primordial do trabalho Todavia possuo a intenccedilatildeo

de desdobrar este toacutepico em um trabalho futuro

102

A despeito de um aparente pessimismo o que pode ser destacado do percurso intelectual

e pessoal de Nishida eacute a profundidade com qual ele sentiu o peso da vida A doutrina buacutedica do

sofrimento eacute por ele absorvida de maneira natildeo soacute transcendente mas ainda imanente Os

escritos de Nishida revelaratildeo natildeo apenas um caminho filosoacutefico no qual se imbricam a tradiccedilatildeo

sapiencial oriental e a filosofia ocidental mas a descriccedilatildeo de uma experiecircncia vital na qual pulsa

a forccedila do pensamento especulativo Por esta e outras razotildees Nishida havia sido nomeado com

o nome laico-budista ldquosunshinrdquo uma polegada de mente

A produccedilatildeo propriamente filosoacutefica de Nishida eacute tanto mais densa quando suas reflexotildees

pessoais anotadas em seu diaacuterio contudo relativamente mais faacuteceis de serem abordadas devido

agrave sistematicidade que permeia os escritos A despeito de suas incompatibilidades com o sistema

de ensino sua carreira acadecircmica foi coroada em 1894 quando recebeu o tiacutetulo de licenciado

em filosofia com uma tese acerca da causalidade em David Hume culminando no professorado

junto agrave Universidade Imperial de Kyōto em 1913 Neste iacutenterim dedicou-se ao desdobramento

das bases de sua filosofia que teria sido divulgada de maneira mais consistente na obra que

havia publicado em 1911 sob o tiacutetulo Zen no kenkyū (善の研究 Investigaccedilatildeo sobre o bem) A

obra mais conhecida de Nishida busca o autodespertar o que significa uma visatildeo dos

fenocircmenos que compreendem a experiecircncia pura evidente desde a movimentaccedilatildeo de uma

loacutegica toacutepica O termo ldquoloacutegica toacutepicardquo eacute propositalmente ambivalente Por um lado indica uma

loacutegica do espaccedilo do lugar por outro denuncia como esse lugar (locus) revela uma locuccedilatildeo um

discurso Eacute neste lugar que se desenvolvem os limites do pensamento Relatos de alunos de

Nishida comentam que ele costumava desenhar no quadro negro trecircs esferas uma sobre a outra

na qual a primeira representaria os acidentes circundaacuteveis ao sujeito a segunda os elementos

incapturaacuteveis pela percepccedilatildeo e a terceira (com linhas tracejadas) a impossibilidade final de

limitaccedilatildeo e a esfera do absoluto insuperaacutevel e infinitamente expansiacutevel nomeado com o signo

do nada absoluto (絶対無 Zettaina) sua interpretaccedilatildeo para a noccedilatildeo budista de śūnyatā

103

Com isto Nishida arrancaria da tradiccedilatildeo zen budista uma negatividade total para

fundamentar sua ideia de experiecircncia pura (純粋経験 Junsui keiken) que segundo ele ldquo() se

entende conhecer os fatos como eles simplesmente satildeo (hellip)rdquo (NISHIDA 1990 3) Estaacute presente

nesta formulaccedilatildeo a absorccedilatildeo de Nishida da psicologia funcional de William James onde se

depura a correspondecircncia da percepccedilatildeo com a teoria da verdade Nishida ainda afirma ldquo() o

que usualmente se refere como experiecircncia eacute via de regra adulterado por algum tipo de

pensamento portanto por experiecircncia pura se entende aquele estado no qual se tem experiecircncia

sem qualquer discriminaccedilatildeo deliberativardquo (IDEM IBIDEM) O claacutessico exemplo pelo qual se ilustra

a condiccedilatildeo primaacuteria da pureza da experiecircncia sugere que em uma expressatildeo como ldquoouvi uma

moscardquo haacute um momento no qual o sujeito que ouve a mosca e seu barulho e o ato mesmo de

ouvir ainda natildeo foram distinguidos O fundamento da realidade enquanto nada absoluto para

Nishida encontra-se neste preciso momento neste instante incapturaacutevel na inefabilidade do

indescritiacutevel Entretanto embora a erudiccedilatildeo filosoacutefica de Nishida fosse sobremaneira evidente

bem como sua dedicaccedilatildeo ao zen budismo suas ideias natildeo estavam livres de criacuteticas em ambas

as esferas

Uma das criacuteticas mais ferrenhas a Nishida foi apresentada por Hajime Tanabe (田辺 元)

seu sucessor na caacutetedra de filosofia da Universidade Imperial de Kyōto (em 1928) Ao contraacuterio

de Nishida que nunca havia saiacutedo do Japatildeo Tanabe foi contemplado com um intercacircmbio pelo

governo japonecircs e teve a oportunidade de estudar ao lado de Husserl e Heidegger Sua maior

obra Zangedo to shite no tetsugaku (懺悔道としての哲學 A filosofia como caminho metanoeacutetico

1946) ocupava-se da superaccedilatildeo do inevitaacutevel problema epistemoloacutegico que envolvia a questatildeo

do nada absoluto propondo o termo metanoeacutetica derivado do grego μετανόησις e vertido ao

japonecircs como zangedo (懺悔道) cuja definiccedilatildeo seria nas palavras de Tanabe ldquoum baacutelsamo para

a dor do pesar e ao mesmo tempo o recurso para uma luz absoluta que paradoxalmente torna

vigente a escuridatildeo sem expulsaacute-lardquo (TANABE 1986 2)

104

Em decorrecircncia da necessidade de superaccedilatildeo do proacuteprio pensamento a criacutetica de Tanabe

emerge no sentido de questionar se a filosofia possui condiccedilotildees de enquadrar o autodespertar

religioso conforme exposto por Nishida de maneira sistemaacutetica Conforme Agustiacuten Jacinto

Zavala ldquoResumidamente ao tomar como base o ponto de vista da religiatildeo a filosofia de

Nishida lsquoconverte o trans-histoacuterico absoluto em principium [princiacutepio fundamental] do sistema

e mediante esta determinaccedilatildeo vem [finalmente] ordenar e organizar o histoacuterico relativordquo

(ZAVALA 2013 106) ao passo que ldquoPor isto Tanabe diz lsquoa duacutevida fundamental que albergo

frente a filosofia mestre Nishida se relaciona com este ponto () se a filosofia trata de tomar o

ponto de vista religioso como seu proacuteprio ponto de vista necessariamente deixa de ser si mesmardquo

(IDEM IBIDEM) sintetizando a preocupaccedilatildeo de Tanabe

Os conflitos entre a filosofia a auto-percepccedilatildeo religiosa a partir do estabelecimento do

nada absoluto como fundamento da realidade passaratildeo ainda prelo crivo de diversos

interlocutores sofrendo alteraccedilotildees e recebendo criacuteticas diretas e indiretas Em linhas gerais o

problema de Tanabe estaacute diretamente relacionado com suas compreensotildees estritas da religiatildeo e

da filosofia Em primeiro lugar porque ao contraacuterio de Nishida (que era praticante do zen

budismo) Tanabe partia antes do budismo Jōdo Shinshū (浄土真宗 A Escola da Terra Pura) do

monge Shinran (親鸞)47 Em segundo lugar devido aos interesses de Tanabe pela filosofia da

histoacuteria de Wilhelm Wundt e Heinrich Rickert aleacutem da influecircncia da Lebensphilosophie e o

compromisso histoacuterico que ele alimentou a partir de tais influecircncias Por este motivo era

necessaacuterio tanto para resolver a disputa entre Nishida e Tanabe quanto para superar os estaacutegios

preliminares das discussotildees da Escola de Kyōto reformular as compreensotildees de filosofia e

religiatildeo algo que acontece de maneira somente com Keiji Nishitani (西谷 啓治)

47 Sobre a fundamentaccedilatildeo budista de Tanabe confira Joaquim Antonio Bernardes Carneiro Monteiro ldquoO lsquoNada

Absolutorsquo em Hajime Tanabe uma avaliaccedilatildeo criacuteticardquo In Antonio Florentino Neto e Oswaldo Giacoia Jr (orgs)

O Nada absoluto e a superaccedilatildeo do niilismo Os fundamentos filosoacuteficos da Escola de Kyoto Campinas Phi 2013

155-188

105

Keiji Nishitani eacute talvez o filoacutesofo japonecircs contemporacircneo mais popular entre os

ocidentais O motivo eacute provavelmente o estilo bastante solto e livre de seus ensaios

principalmente os que chegaram traduzidos ao Ocidente ndash precisamente os mais maduros

compostos apoacutes a deacutecada de 1960 como Shūkyo to wa Nanika (宗敎とは何か O que eacute religiatildeo

1961) e Nihirizumu (ニヒリズム Niilismo 1986) Estes mesmos trabalhos sofreram diversas

criacuteticas por parte de colegas japoneses que o acusaram de se afastar dos modos propriamente

orientais de expressatildeo supostamente sugerindo uma indiferenccedila ao idioma vernaacuteculo agraves

tradiccedilotildees e aos projetos de seus antecessores Sobre isto Nishitani teria argumentado que as

lacunas do pensamento japonecircs tradicional sobretudo as idiomaacuteticas impossibilitariam o

alcance do sentido de alguns problemas colocados pela filosofia ocidental motivo pelo qual a

criaccedilatildeo de novas palavras em japonecircs se mostrava absolutamente necessaacuterios48 Sem embargo

os questionamentos impostos pelos novos tempos natildeo se prendiam agraves fronteiras linguiacutesticas e

invadiam o Japatildeo modernizado e ocidentalizado com especial forccedila razatildeo pela qual a

aproximaccedilatildeo com a filosofia sua interiorizaccedilatildeo e reflexatildeo era simplesmente inevitaacutevel

Todavia embora Nishitani tenha realmente pendido para o pensamento filosoacutefico ou para a

maneira pela qual os pensadores ocidentais liam as questotildees conflituosas da contemporaneidade

ao mesmo tempo ele se voltava com ainda maior introspecccedilatildeo para o budismo sobretudo para

o zen Esta ambiguidade intencional do pensamento de Nishitani se revela nas inquiriccedilotildees por

ele levantadas e pelo teor de suas investigaccedilotildees deixando ver claramente sua preocupaccedilatildeo a

respeito do direcionamento reflexivo da filosofia contemporacircnea

48 James Heisig discute esta questatildeo pormenorizadamente quando apresenta o estilo filosoacutefico de Nishitani

Conforme Heisig a influecircncia ocidental absorvida por Nishitani cujas maiores expressotildees foram a esteacutetica de

Immanuel Kant o idealismo alematildeo (especialmente Friedrich W J Schelling) Plotino e o neoplatonismo a

miacutestica de Mestre Eckhart e Francisco de Assis e ainda a hermenecircutica existencial de Wilhelm Dilthey e Martin

Heidegger deixam bastante claro o porquecirc ele subverte e converte os limites e alcances da linguagem Heisig

ainda destaca o momento no qual Nishitani afirma que nos miacutesticos a confluecircncia e a uniatildeo entre religiatildeo e

filosofia alcanccedilaram um ponto elevado despertando seu profundo interesse por tais autores A despeito dos temas

eleitos Heisig considera ainda que por este mesmo motivo o estilo de Nishitani se mostra superior ao de Tanabe

e ao de Nishida (cf HEISIG 2002 233-242)

106

Eacute possiacutevel considerar que o problema com o qual Nishitani se defrontou e que norteou

o andamento geral de seu pensamento mais cuidadosamente desenvolvido possui um ponto de

partido muito bem estabelecido qual seja o problema do niilismo denunciado na virada do

seacuteculo por autores como Friedrich Nietzsche Ernst Juumlnger Fioacutedor Dostoievsky Ivan

Turgeniev entre outros Em Shūkyo to wa Nanika longe de tentar elucidar o sentido da religiatildeo

em termos sistemaacuteticos a despeito do tiacutetulo do escrito Nishitani parece buscar uma imersatildeo na

tensatildeo contraditoacuteria que os seres humanos possuem com a experiecircncia religiosa segundo ele

ldquo() para quem a religiatildeo natildeo eacute uma necessidade precisamente por esta razatildeo ela eacute uma

necessidade Natildeo haacute nenhuma outra coisa sobre a qual se possa dizer o mesmordquo (NISHITANI

1983 1) Sua definiccedilatildeo de religiatildeo se abre a partir da compreensatildeo de uma ldquoauto-despertar da

realidaderdquo cuja explicaccedilatildeo se apoia no termo inglecircs realize segundo ele um termo polissecircmico

que possuem tanto o sentido de actualize (atualizar mas tambeacutem trazer o sentido real como na

expressatildeo actually cujo significado seria na verdade) quanto de understand (compreender)

Nishitani explica ldquo() estou utilizando esta palavra para indicar que nossa habilidade para

perceber a realidade significa realizar (atualizar) a realidade por si mesma em noacutesrdquo (IDEM IBIDEM

5) Esta explicaccedilatildeo apareceria para confrontar o sentido do niilismo que segundo Nishitani

ldquo() se refere agravequilo que torna sem sentido o sentido da vida () sinalizando nada menos do

que fato de que o despertar da nossa existecircncia penetrou em uma profundidade extraordinaacuteriardquo

(ID IBID 4) Em suma Nishitani possui um alvo muito claro lidar com o abismo existencial

que se deixa ver sobremaneira angustiante nos novos tempos aqueles mesmos ldquotempos de

penuacuteriardquo da ldquonoite do mundordquo anunciados por Nietzsche denunciados por Heidegger e que

assombravam os filoacutesofos que se deparavam com a instituiccedilatildeo da morte do pensamento

reflexivo mediante a Era Atocircmica dos desastres ambientais e dos deliacuterios da modernizaccedilatildeo

industrializaccedilatildeo e tecnologizaccedilatildeo do mundo Fatos inegaacuteveis cuja profunda relaccedilatildeo com a

histoacuteria do pensamento torna seu sentido cada vez mais obscuro

107

A forccedila interpretativa que moveraacute o pensamento de Nishitani rumo agraves tentativas de

resoluccedilatildeo dos conflitos passaraacute em primeiro lugar por sua leitura a respeito do problema do

niilismo e sua relaccedilatildeo com a ideia de śūnyatā Quando Nishitani alcanccedila esta abordagem ele

frisa de iniacutecio que ldquo() um dos maiores e mais fundamentais problemas que todas as religiotildees

encaram em nossos tempos eacute sua relaccedilatildeo com a ciecircnciardquo (IDEM IBIDEM 77) O motivo aparenta

ser a incompatibilidade entre o pensamento cientiacutefico e o sentido essencial da vida religiosa

Nishitani entatildeo argumenta de maneira incisiva (e que sintetiza o propoacutesito desta tese no final

das contas)

Uma em cada dez pessoas escuta que a religiatildeo e a ciecircncia tem cada uma seu proacuteprio

domiacutenio e tarefa e que as duas nunca precisaratildeo entrar em conflito caso permaneccedilam

confinadas em suas fronteiras originais Isto eacute inadequado Uma fronteira separa uma

aacuterea da outra e ao mesmo tempo pertence a ambas as aacutereas Os fundamentos do

conflito entre religiatildeo e ciecircncia repousam certamente em tais fronteiras De fato desde

os tempos mais antigos metafiacutesica e filosofia consistiram na exploraccedilatildeo destas

fronteiras entre ciecircncia e religiatildeo (IDEM IBIDEM 77-78)

Nishitani ainda questiona se tais fronteiras podem ser consideradas realmente fronteiras ou natildeo

admitindo que a ciecircncia contemporacircnea natildeo parece se preocupar com a questatildeo A criteacuterio de

verdade objetiva da ciecircncia com o apoio das leis da natureza seria responsaacutevel por de certo

modo menosprezar o conhecimento religioso e mesmo o conhecimento filosoacutefico em

decorrecircncia da verdade cientiacutefica absoluta Mas Nishitani contesta no contrafluxo da tendecircncia

mais geral ldquoMas eacute realmente tatildeo evidente Uma nova maneira de olhar para o absoluto e o

relativo conforme a qual dois absolutos podem se tornar conjuntos impensaacutevel em uacuteltima

instacircnciardquo (ID IBID 78) Para Nishitani o problema vige no fechamento das possibilidades

108

Natildeo haacute aqui uma criacutetica ldquocientofoacutebicardquo mas o levantamento de uma questatildeo qual seja

ldquoNatildeo possuiacutemos uma outra maneira de conceber o relativo senatildeo em termos de estabelecimento

de limites ndash como fazemos por exemplo quando dividimos uma folha de papel em duas ao

traccedilar uma linha nelardquo (ID IBID 79) Nishitani mostraraacute esta possibilidade por meio de sua

interpretaccedilatildeo da ideia de śūnyatā e como ela desvela uma perspectiva que explora os elementos

abandonados pela objetividade cientiacutefica Seja como for eacute possiacutevel considerar jaacute de iniacutecio que

se concentra aiacute toda a potecircncia do diaacutelogo entre metafiacutesica e negatividade apresentado ao longo

desta tese sendo possiacutevel acompanhar Nishitani em uma definiccedilatildeo do conflito das fronteiras

Agora bem quais as saiacutedas ou quais as possiacuteveis chaves de leitura para o problema que

se apresenta a saber a questatildeo do niilismo contemporacircneo Quando emprego aqui o termo

filosofia comparada intercultural tenho em vista a maneira pela Nishitani (entre outros)

exploram as muacuteltiplas significaccedilotildees de distintas tradiccedilotildees culturais em suas convergecircncias e

divergecircncias para se aproximar do problema e propor novos pontos de vista A respeito

especificamente da questatildeo levantada Nishitani utiliza a proacutepria ambivalecircncia do niilismo para

propor uma soluccedilatildeo Seu caminho seraacute resgatar o sentido pelo qual a ciecircncia se apropria das

leis da natureza e desenvolve a tecnologia argumento que eacute precisamente por meio desta

apropriaccedilatildeo que se revelam a medida da liberdade do homem em relaccedilatildeo agraves fronteiras impostas

pelas leis naturais Contudo haacute uma inversatildeo pela qual o controlador se torna o controlado

Conforme Graham Parkes ldquo() a vida humana e o trabalho como um todo se tornam

progressivamente mecanizados e impessoais (nos termos de Heidegger perdemos nossa lsquolivre

relaccedilatildeorsquo com a teacutecnica e estamos lsquoacorrentadosrsquo agrave ela)rdquo explicando ademais que para Nishitani

ldquoA liberdade advinda das leis da natureza que a tecnologia mecanizada nos concede aleacutem do

sentimento concomitante de distacircncia ou separaccedilatildeo do mundo natural levam os seres humanos

a lsquose comportarem como se eles estivessem completamente fora das leis da naturezarsquordquo (PARKES

2013a 103) Sendo assim a uacutenica via possiacutevel eacute restabelecer esta relaccedilatildeo humano-natureza

109

O ponto de apoio de Nishitani para colocar o problema parte da compreensatildeo que

oferece o neoplatonismo e a miacutestica medieval de Deus como nada absoluto (ele cita

especificamente Mestre Eckhart neste ponto) para trazer agrave tona a questatildeo morte-sive-vida

Nishitani evidencia portanto que ldquoEste ponto natildeo pode repousar em um lado mais distante

aleacutem deste mundo e desta vida terrena que possuiacutemos Deve repousar no lado mais proacuteximo

tanto mais proacuteximo quanto nossas vidas ordinariamente devem serrdquo (ID IBID 90) Aproveitando

a perspectiva budista para elucidar este caminho Nishitani esclarece de maneira precisa que

ldquoŚūnyatā eacute o ponto no qual noacutes nos tornamos manifestos de nossa proacutepria talidade (suchness)

como seres humanos concretos como indiviacuteduos com alma e personalidade Ao mesmo tempo

eacute o ponto no qual tudo ao redor se manifesta para noacutes em sua proacutepria talidade (suchness)rdquo (ID

IBID 90)49 Śūnyatā envolve inevitaacutevel e necessariamente este complexo conceito de talidade

(真如 Shinrsquonyo ndash Tathatā तथता) que eacute sem embargo o berccedilo da meditaccedilatildeo oriental

A talidade eacute a via pela qual se extrai a conduccedilatildeo do sistema eacutetico e moral da sociedade

hinduiacutesta primitiva Sua disseminaccedilatildeo no Extremo Oriente eacute carregada por duas tradiccedilotildees quais

sejam o daoiacutesmo e o budismo Os daoiacutestas centram sua noccedilatildeo de ldquoprinciacutepiordquo por meio da noccedilatildeo

de dao (道) e sua relaccedilatildeo com de (德) O famoso Dao De Jing (道德经) bem como a obra do

mestre Zhuangzi (莊子) satildeo os principais responsaacuteveis por colocarem ambos os princiacutepios (dao

e de) e movimento dinacircmico conforme o qual a relaccedilatildeo com natureza natildeo seria entendida nem

como celestial nem como humana mas como ambas sem que uma tenha privileacutegio sobre a

outra ndash e este seria enfim o caminho (dao) da virtude (de) (cf ZHUANGZI 2009 42)

49 Traduzo aqui suchness por talidade com base na ideia de que Nishitani se refere ao conceito budista de Tathatā

(तथता) que em japonecircs se ilustra com o kanji 真如 (Shinnyo) cuja traduccedilatildeo seria ldquorealidade absolutardquo mas natildeo

corresponde ao peso do termo Sobre isto Antonio Morillas escreve que ldquoO termo tathata eacute de difiacutecil traduccedilatildeo

em castelhano Em inglecircs se verte com as expressotildees suchness (a condiccedilatildeo de ser ldquotalrdquo e como se eacute) thatness (o

fato de ser ldquoissordquo que se eacute) e isness (a qualidade de algo que ldquoeacuterdquo sem mais o que eacute e como eacute) () A talidade

[traduccedilatildeo castelhana de tathata] eacute a noccedilatildeo do fato de que a realidade e as coisas e fenocircmenos que a compotildeem satildeo

ldquoassimrdquo ldquotalrdquo e como satildeo que satildeo ldquoissordquo ldquoo que satildeordquo em seu caraacuteter plenamente desnudo na existecircncia luminosardquo

(MORILLAS 2006 167) Pela proximidade com o idioma castelhano opto aqui por adotar a sugestatildeo de Morillas

110

O budismo especialmente o budismo zen absorveria tais ideias com especial forma nos

pensamentos de Kūkai (空海) e Dōgen Zenji (道元禅師) Graham Parkes explica que para Kūkai

duas ideias se configuram essenciais Sokushinjobutsu (即身成仏) a possibilidade de atingir a

iluminaccedilatildeo na vida presente (em contraste ao princiacutepio budista tradicional conforme o qual

seriam necessaacuterias muitas vidas) e Hosshin seppo (発疹 説法 ) o entendimento de que a

personificaccedilatildeo buacutedica eacute desprovida de forma e imagem natildeo permitindo conceitualizaccedilatildeo nem

verbalizaccedilatildeo (cf PARKES 2003 81) A despeito da uniatildeo suscitada pelo daoiacutesmo o budismo

chinecircs do oitavo seacuteculo estava imerso em uma profunda discussatildeo acerca da questatildeo se a

natureza buacutedica podia ser atribuiacuteda somente aos seres sencientes ou tambeacutem agraves miacutenimas

partiacuteculas de poeira Kūkai articula as duas ideias acima mencionadas e interpretas as chamadas

ldquotrecircs intimidadesrdquo (corpo fala mente) do Dainichi Nyorai (木造大日如来坐像) que representa a

revelaccedilatildeo esoteacuterica dos ensinamentos no Budismo para sustentar o muacutetuo pertencimento da

relaccedilatildeo do todo com suas partes assumindo a natureza buacutedica para absolutamente tudo Ele

escreve neste sentido ldquoEssa existecircncia estaacute naquela e aquela estaacute nessa A Existecircncia do Buda

(Mahāvairocana) eacute a existecircncia dos seres sencientes e vice e versa Eles natildeo satildeo idecircnticos mas

satildeo todavia idecircnticos eles natildeo satildeo diferentes mas satildeo todavia diferentesrdquo (KŪKAI 1972 93)

Jaacute para Dōgen a evocaccedilatildeo da conduta zen se daria por meio de uma miacutestica cotidiana

alimentando a noccedilatildeo de que toda atividade eacute expressatildeo da natureza buacutedica Parkes argumenta

que algumas atividades satildeo especialmente ilustrativas como por exemplo preparar a comida

servi-la e come-la Dōgen citaria um trecho do Vimalakīrti Nirdeśa Sūtra (नवमलकीनत निदश सतर) que

diria ldquoQuando somos unos com a comida que comemos somos unos com todo o universordquo

evocando o uso do silecircncio como veiacuteculo para o esclarecimento do śūnyatā como fundamento

absoluto da realidade (cf PARKES OP CIT 84) As praacuteticas rituais natildeo possuiriam todavia

conotaccedilatildeo lituacutergica pontual e direcionada mas antes a totalidade de uma experiecircncia de vida

religiosa

111

Tanto Kūkai quanto Dōgen influenciaram amplamente o pensamento de Nishitani e o

ponto de vista conforme o qual o śūnyatā direciona uma atitude por meio da qual se mostra a

talidade Tanto no daoiacutesmo de Zhuangzi quando no zen budismo de Kūkai e Dōgen estatildeo em

jogo o aspecto formal a aparecircncia (rūpa shiki) da realidade em torno por um lado e a assunccedilatildeo

da dissoluccedilatildeo do fundamento dessa realidade por outro (sua vacuidade śūnyatā kū) Por este

motivo haacute uma muacutetua reciprocidade entre a totalidade e as coisas entre uno e muacuteltiplo Isto eacute

o que permite a participaccedilatildeo e ao mesmo tempo incorporaccedilatildeo da realidade (dharmakāya)

Contudo natildeo seraacute o mero resgate das tradiccedilotildees orientais que forneceraacute a Nishitani a resposta

ao problema no que concerne ao impacto da questatildeo frente aos tempos de niilismo mas sim o

resultado da confrontaccedilatildeo desta tradiccedilatildeo com a filosofia contemporacircnea ocidental ou sem

embargo o confronto entre as fronteiras

Graham Parkes atenta para uma reivindicaccedilatildeo de Nishitani de haver superado em certa

medida o desenvolvimento das filosofias de pensadores como Hegel Nietzsche e Heidegger

(cf PARKES 2013b 189-190) Contudo no cerne desta proposiccedilatildeo estaacute a ideia de que o que foi

superado natildeo foi propriamente o conteuacutedo da meditaccedilatildeo mas a forma da abordagem ou seja

a perspectiva intercultural privilegiada da comparaccedilatildeo filosoacutefica de Nishitani Com o anuacutencio

da morte de Deus e dos tempos de niilismo em Nietzsche ficou evidente um diagnoacutestico da

atividade humana inerente aos valores que a guiam por um lado e a induccedilatildeo ao desespero

suscitado pela projeccedilatildeo cognoscitiva ao ente por outro A saiacuteda de Nietzsche por meio do

ldquogrande antiacutedotordquo da transvaloraccedilatildeo de todos os valores eacute recebida em Nishitani considerando

trecircs ideias chave de sua leitura budista (1) a constituiccedilatildeo do fundamento da existecircncia como

uma experiecircncia aleacutem da relaccedilatildeo entre sujeito objeto por meio do conceito de (referente agrave noccedilatildeo

de dharma धम) (2) a reaccedilatildeo de retorno ao mesmo de toda atividade (a partir do conceito de

karma कम) e a noccedilatildeo de que natildeo haacute nada que exista independente de circunstacircncias e

condicionamento ou a chamada ldquoco-originaccedilatildeo dependenterdquo (o pratītya-samutpāda परतीतयसमतपाद)

112

Portanto o que em Nietzsche seria postulado como destino enquanto o ldquomesmordquo (o ego

fatum nietzscheano) engendrando um ponto de vista criativo em Nishitani seria entendido

desde a ideia do karma Em Nihirizumu Nishitani escreve acerca deste ponto especiacutefico que

ldquoNeste niacutevel fundamental o mundo se move na esfera do mesmo e o mesmo na esfera do

mundo Esta ideia estaacute proacutexima da ideia budista de karma embora em Nietzsche o ponto de

vista do mesmo como destino eacute fundamentalmente criativordquo (NISHITANI 1990 50) Em termos

mais simples de acordo com Parkes ldquo() o que parece um golpe do destino pode ser entendido

antes como uma parte de nossa proacutepria atividaderdquo (PARKES OP CIT 196) O florescimento desta

consideraccedilatildeo se daacute na afirmaccedilatildeo niezscheana do amor fati e da superaccedilatildeo do abismo da grande

suspeita niilista por meio da grande dor pela qual se renasce o que seraacute entendido em Nishitani

a partir do retorno ao abismo onde ldquo() uma vez que algueacutem eacute libertado do abismo a

necessidade se torna um elemento desta vida de liberdade Neste caso necessidade se torna

uma com a criatividaderdquo (NISHITANI OP CIT 52) Entretanto a ressalva de Nishitani consiste que

a afirmaccedilatildeo resultante da superaccedilatildeo do abismo niilista pode ainda ser superar e que a vontade

de poder eacute ainda uma ldquocoisardquo chamada ldquovontaderdquo (cf IDEM OP CIT 234) cuja uacutenica possibilidade

de ser pensada para aleacutem dos fundamentos que redundam no destino como mesmo seria

justamente o ponto de vista do śūnyatā Uma ilustraccedilatildeo possiacutevel de ldquopara onderdquo este ponto de

vista levaria pode ser encontrada quando Nishitani comenta a arte japonesa de arranjo de flores

a chamada Ikebana (生け花) Ali fica niacutetido qual a postura que se assume quando se daacute conda

da vacuidade da realidade uacuteltima e absoluta Nishitani escreve

Desde a perspectiva de sua natureza fundamental todas as coisas no mundo satildeo

lacircminas de grama sem raiacutezes Tal grama entretanto tenho fincado suas raiacutezes no solo

esconde a si mesma em sua fundamental ausecircncia de raiacutezes () sendo cortadas de suas

raiacutezes as flores satildeo feitas pela primeira vez pela manifestaccedilatildeo minuciosa de sua

natureza fundamenta ndash sua falta de raiacutezes (IDEM 2011 1199)

113

Ao fim e ao cabo Nishitani estaacute chamando atenccedilatildeo para uma aprendizagem decorrente da ldquoco-

originaccedilatildeo dependenterdquo a partir da natureza Sobre este ponto e sua relaccedilatildeo com o niilismo

Parkes escreve ldquo() noacutes humanos diferimos de outros entes por meio da possibilidade de nos

tornamos conscientes de nossa proacutepria finitude no estado da niilidade (kyomu) um tipo de

ldquovacuidade ocardquo que eacute uma antecacircmara para a vacuidade criativa (śūnyatā kū)rdquo (PARKES OP

CIT 112) Resumidamente o ponto de vista do śūnyatā se configura para Nishitani a partir da

tradiccedilatildeo do zen budismo oriental e de sua leitura da filosofia ocidental como uma iluminaccedilatildeo

a respeito do fundamento da realidade enquanto vacuidade evidenciado sobremaneira pelo

abismo do niilismo contemporacircneo e que direciona o ser humano para uma vacuidade criativa

na qual sua relaccedilatildeo com as coisas congrega tudo em uma mesma natureza buacutedica ou seja o

lugar onde as flores o arranjo o florista e o ato de fazer o arranjo satildeo a mesma coisa ou o lugar

onde a mosca o anjo Deus e o eu satildeo o mesmo

114

CONCLUSAtildeO

Durante o primeiro semestre de 2011 estava profundamente motivado com a preparaccedilatildeo do

texto final desta tese doutoral Ocupava-me ao mesmo tempo das pesquisas leituras

sistematizaccedilatildeo dos esquemas defesa da versatildeo do final do projeto e dos cursos que iria ministrar

na Universidade Federal do Rio Grande do Norte nos meses seguintes A abordagem agrave histoacuteria

da metafiacutesica agrave tradiccedilatildeo do neoplatonismo e agrave filosofia japonesa contemporacircnea atingiam-me

simultaneamente por meio de muacuteltiplas construccedilotildees conceituais interligadas pela lucidez

provocada mediante a histoacuteria dos efeitos de cada ambiente temaacutetica Contudo ao 11 de marccedilo

daquele ano foi transmitida uma notiacutecia que imediatamente cessou minha produccedilatildeo e

empolgaccedilatildeo com todo e qualquer toacutepico Os jornais incessantemente transmitiam as uacuteltimas

notiacutecias a respeito de um terremoto seguido por um tsunami que havia atingido o Japatildeo e

danificado a estrutura da usina nuclear de Fukushima na cidade de Ōkuma expondo a

comunidade da regiatildeo agrave alarmantes niacuteveis de radioatividade O desastre ambiental seria

considerado algum tempo mais tarde a maior cataacutestrofe nuclear desde Chernobyl em 1986

Evidentemente como havia ocorrido tambeacutem em 2001 durante o ataque terrorista ao

World Trade Center em Nova Iorque as reportagens que chocavam o mundo se tornariam

rapidamente repetitivas e esgotariam o puacuteblico O motivo pelo qual se daria tal neutralizaccedilatildeo e

letargia frente aos fatos foi denunciado por Slavoj Žižek na obra The Year of Dreaming

Dangerously (2012) Ele pondera os eventos destrutivos de 2011 tais quais a Primavera Aacuterabe

e o Occupy Wall Street desde a neutralizaccedilatildeo ideoloacutegica promovida pela miacutedia dando margem

agrave interpretaccedilatildeo conforme a qual os veiacuteculos de comunicaccedilatildeo vigentes aniquilam o potencial

emancipatoacuterio dos eventos por meio da pasteurizaccedilatildeo de sua difusatildeo

115

Žižek destaca o termo da liacutengua persa ldquowar nam nihadanrdquo cujo abstruso significado

seria em linhas gerais ldquomatar algueacutem enterrar seu corpo e plantar flores sobre sua cova para

esconder o cadaacuteverrdquo Para Žižek os meios de comunicaccedilatildeo do capitalismo global destroem a

absorccedilatildeo propriamente humana dos eventos do mundo contemporacircneo exatamente neste

mesmo sentido (cf ŽIŽEK 2012 9) Sem sombra de duacutevidas o mesmo se daria em relaccedilatildeo ao

desastre de Fukushima e hoje trecircs anos depois uma pedra foi posta por sobre o assunto e poucas

pessoas sequer se lembram do ocorrido

Entretanto meu denso envolvimento com a filosofia japonesa natildeo permitiu que os

acontecimentos fossem dissolvidos assim tatildeo facilmente Passei um bom tempo tocado pela

calamidade e mesmo ateacute agora ainda tenho dificuldades em lidar com o assunto As

adversidades emotivas todavia natildeo me impediram de pensar com devoccedilatildeo sobre a questatildeo

pelo contraacuterio estimularam ainda mais o rumo da reflexatildeo filosoacutefica

O ano seguinte seria marcado em meu percurso pessoal pela saiacuteda do paiacutes e realizaccedilatildeo

de estaacutegio sanduiacuteche junto agrave University College Cork (Colaacuteiste na hOllscoile Corcaigh) para

realizar minhas pesquisas sob a supervisatildeo do professor Graham Parkes na Irlanda Parkes

havia publicado no iniacutecio daquele ano um breve artigo intitulado Nuclear Power after

Fukushima 2011 Buddhist and Promethean Perspectives (2012) no qual natildeo apenas analisava

os fatos mas ainda apresentava uma meditaccedilatildeo a respeito de uma filosofia da natureza para

aleacutem das ecologias profundas ou natildeo

Simplificando o assunto o estiacutemulo para o fornecimento de energia nuclear eacute

alimentado pela conclusatildeo de que se trata de uma fonte limpa e autossustentaacutevel em contraste

agrave queima do combustiacutevel e exploraccedilatildeo de recursos foacutesseis ou mesmo aos impactos ambientais

causados pela obstruccedilatildeo de fluxos de aacutegua Aparentemente trata-se de uma soluccedilatildeo emergente

frente ao ainda ineficaz suporte das energias ecologicamente viaacuteveis como a eoacutelica e a solar

116

Parkes pontua sobre isto que ldquoA questatildeo crucial natildeo diz respeito aos meacuteritos relativos

e agraves desvantagens do poder nuclear versus a energia dos combustiacuteveis foacutesseis Antes trata-se

de pensar o que norteia nosso desejo de consumir tanta energia em primeiro lugarrdquo (PARKES

2012 103) O posicionamento diz respeito a um ldquopasso atraacutesrdquo A pergunta eacute o que move no

final das contas o irredutiacutevel e irrefreaacutevel iacutempeto de explorar todos os recursos naturais para

fomentar a manutenccedilatildeo da vida humana na Terra Mesmo com a leitura do escrito eu

particularmente soacute conseguiria compreender o direcionamento proposto por Parkes apoacutes

acompanhar seus seminaacuterios sobre filosofias da natureza entre Ocidente e Oriente no qual

ficariam claras as bases pelas quais ele questionava a conduta contemporacircnea face agrave crise

ambiental

Entretanto quando me deparei com as primeiras leituras oferecidas por Parkes (muitas

das quais constam na bibliografia desta tese) natildeo fui acometido pelo espanto da novidade mas

pela pulsatildeo da comparaccedilatildeo A experiecircncia que jaacute havia acumulado sob a orientaccedilatildeo do

professor Oscar Federico Bauchwitz durante meus anos de pesquisa acadecircmica dedicado agrave

leitura de Nietzsche Heidegger e da tradiccedilatildeo do neoplatonismo e da miacutestica medieval proveu-

me de uma arquitetocircnica meditativa que com a aproximaccedilatildeo com a filosofia oriental apenas

nutriu imediata empatia e introspecccedilatildeo Sendo assim quando congreguei o focirclego e as forccedilas

necessaacuterias para encerrar este trabalho natildeo tinha em mente uma tese levantada de um mero

problema particular mas um longo percurso especulativo que ao longo das paacuteginas aqui

apresentadas tentei descrever da melhor maneira possiacutevel

Sobreveio-me durante os termos finais uma intensa obrigaccedilatildeo de sustentar que a uacutenica

via possiacutevel para enfrentar os problemas filosoacutefico contemporacircneos era a instauraccedilatildeo de um

retorno aos fundamentos por meio da interculturalidade Portanto a conclusatildeo desta tese soacute

pode caminhar rumo agrave elucidaccedilatildeo de quais fundamentos no final das contas satildeo estes que estatildeo

aqui e ali indicados no interior do trabalho

117

Em 1953 Martin Heidegger pronunciou a conferecircncia intitulada Die Frage nach

Technik O escrito eacute talvez uma de suas mais claras expressotildees acerca de sua anaacutelise da

consumaccedilatildeo da histoacuteria da metafiacutesica a instauraccedilatildeo do niilismo europeu e o advento da Era

Teacutecnica Paralelamente durante o mesmo periacuteodo (na verdade em 1954) Nishitani finalizava

a composiccedilatildeo de seu ensaio sobre ldquoNiilismo e Śūnyatārdquo mais tarde incluiacutedo no volume Shūkyo

to wa Nanika abordado aqui ao longo do terceiro capiacutetulo Como foi possiacutevel observar em

Nishitani a saiacuteda do ponto de vista da vacuidade ou nada absoluto demandava a busca por

uma postura interior do ser humano na qual se tornava evidente nada mais senatildeo o elemento

inexplicaacutevel e inexprimiacutevel do fundamento uacuteltimo da realidade que era assumido agora como

oriente para o comportamento humano frente ao colapso do novo mundo A dificuldade inerente

de absorver a proposta de Nishitani todavia eacute ilustrada de maneira praacutetica quando ele aborda

uma questatildeo particular qual seja a relaccedilatildeo entre ser humano e natureza na imagem do jardim

zen Noacutes estamos dentro do jardim e natildeo somos apenas espectadores porque noacutes nos tornamos

parte da real manifestaccedilatildeo da expressatildeo da proacutepria experiecircncia iluminadora do arquiteto do

jardim O jardim eacute meu mestre Zen agora e eacute seu mestre Zen tambeacutem (NISHITANI 1992 55)

Quando Heidegger indica em sua conferecircncia que a essecircncia da teacutecnica natildeo eacute ela mesma nada

teacutecnico ele estaacute em um movimento similar ao de Nishitani chamando atenccedilatildeo para o fato de

que eacute necessaacuterio tambeacutem retornar a algo que natildeo pode ser submetido agrave objetividade cientiacutefica

da relaccedilatildeo sujeito-objeto que sustenta a tecnicizaccedilatildeo do mundo Neste sentido a saiacuteda de

Heidegger eacute ilustrada por meio de um dos conceitos mais enigmaacuteticos de toda sua obra

Gelassenheit Heidegger escreve ldquoTalvez se oculte na Gelassenheit uma accedilatildeo mais elevada do

que em todos os atos do mundo e do que nas maquinaccedilotildees das reliacutequias humanasrdquo (HEIDEGGER

1983a 41) O sentido contudo permanece oculto Resta apenas a ideia de que esta postura

evocada por Heidegger demanda um ldquodeixarrdquo (lassen) que atina para um recolhimento da

paradoxal ambiguidade do que se revela na essecircncia do humano

118

Ressoa tanto em Heidegger quanto em Nishitani uma raiz comum aquela na qual se

ldquoRenuncia aos sentidos agraves operaccedilotildees intelectuais a todo sensiacutevel e ao inteligiacutevelrdquo ainda mais

aquela onde se pede ldquoDespoja-te de todas as coisas que satildeo e ainda das que natildeo satildeo Deixa de

lado teu entender e esforccedila-te por subir o mais que possa ateacute unir-se com aquele que estaacute mais

aleacutem de todo ser e todo saberrdquo Estas palavras aqui propositalmente citadas sem a indicaccedilatildeo

bibliograacutefica satildeo do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita onde neoplatonismo e miacutestica se encontram

no caminho da negatividade Tanto o ldquoprestar atenccedilatildeo aos misteacuterios da naturezardquo em Nishitani

quando a ldquoabstenccedilatildeo da vontade por meio da natildeo-vontaderdquo o ldquoquerer o natildeo-quererrdquo em

Heidegger estatildeo depositados nas sentenccedilas do miacutestico siacuterio

Agora qual eacute este lugar ou natildeo-lugar aleacutem de todo ser e todo saber O que se revela

por meio do despojo e da supressatildeo de todo saber e todo o dizer Esta pergunta natildeo eacute respondida

Natildeo pode ser respondida O que se desvela aiacute eacute justamente o incoacutegnito o misteacuterio Como reagir

portanto frente a tal proposta de em meio a existecircncia contemporacircnea remar no contrafluxo

do sentido do mundo e buscar uma quietude absoluta no silecircncio que adveacutem do misteacuterio da

existecircncia Agrave esta pergunta tampouco se ofereceraacute resposta mas desta vez porque ela jaacute estaacute

respondida A reaccedilatildeo foi nomeada com diversos termos ao longo da histoacuteria recebendo distintas

designaccedilotildees Algumas tradiccedilotildees orientais optam por chama-la ldquoiluminaccedilatildeordquo

Por fim o conflito das fronteiras aqui abordado natildeo eacute um evento especiacutefico um

momento ou instante captaacutevel uma situaccedilatildeo ou circunstacircncia particular O conflito das

fronteiras eacute um caminho ou melhor uma caminhada Uma caminhada rumo ao desconhecido

cujo uacutenico sinal evidente acena para o clamor de um silecircncio ensurdecedor indicando que jaacute eacute

hora de se recolher

119

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Page 3: O CONFLITO DAS FRONTEIRAS · enquanto delimitaÇÃo das fronteiras do pensamento 2. o caminho da negatividade: henologia e meontologia e a ultrapassagem 61 dos limites da metafÍsica

3

FICHA CATALOGRAacuteFICA ELABORADA PELA

BIBLIOTECA DO CCHLA ndash UFRN

Catalogaccedilatildeo da Publicaccedilatildeo na Fonte

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Biblioteca Setorial do Centro de Ciecircncias Humanas Letras e Artes (CCHLA)

Fontes Teixeira Luiz Fernando

O conflito das fronteiras Metafiacutesica Negatividade e o Extremo Oriente

Luiz Fernando Fontes Teixeira ndash 2014

125 f -

Tese (doutorado) ndash Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro

de Ciecircncias Humanas Letras e Artes Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em

Filosofia

Orientador Prof Dr Oscar Federico Bauchwitz

1 Metafiacutesica 2 Negatividade (Filosofia) I Bauchwitz Oscar Federico

II Universidade Federal do Rio Grande do Norte III Tiacutetulo

RNBSE-CCHLA CDU 111

4

FOLHA DE APROVACcedilAtildeO

LUIZ FERNANDO FONTES TEIXEIRA

O CONFLITO DAS FRONTEIRAS

Metafiacutesica Negatividade e o Extremo Oriente

Tese aprovada como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do grau de Doutor em Filosofia no

Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da Universidade Federal da Paraiacuteba

Universidade Federal de Pernambuco e Universidade Federal do Rio Grande do Norte pela

seguinte banca examinadora

Orientador Prof Dr Oscar Federico Bauchwitz (presidente)

Departamento de Filosofia UFRN

Profa Dra Gisele Amaral dos Santos

Departamento de Filosofia UFRN

Dr Edrisi de Arauacutejo Fernandes

Departamento de Filosofia UFRNUnB

Prof Dr Leonel Ribeiro dos Santos

Faculdade de Letras Universidade de Lisboa

Profa Dra Claudia DrsquoAmico

Departamento de Filosofia Universidad de Buenos Aires

Prof Dr Ciacutecero Cunha Bezerra (suplente)

Departamento de Filosofia UFS

Profa Dra Claudia Pellegrini Drucker (suplente)

Departamento de Filosofia UFSC

Natal 30 de maio de 2014

5

AGRADECIMENTOS

Pelos anos de orientaccedilatildeo e suporte pela incansaacutevel e paciente instruccedilatildeo pelo sempre presente

companheirismo e por tornar possiacutevel o caminho percorrido agradeccedilo ao Prof Dr Oscar

Federico Bauchwitz Pela hospitalidade e cortesia pelos conselhos e indicaccedilotildees pelos diaacutelogos

e por abrir um novo horizonte especulativo para muito aleacutem do trabalho acadecircmico agradeccedilo

ao Prof Dr Graham Parkes

Pela oportunidade de discussatildeo e criacuteticas pela atenccedilatildeo na leitura do trabalho e pelos

inestimaacuteveis acreacutescimos agradeccedilo aos membros das bancas de qualificaccedilatildeo e defesa Profa

Dra Claudia DrsquoAmico Prof Dr Leonel Ribeiro dos Santos Dr Edrisi de Arauacutejo Fernandes e

Profa Dra Gisele Amaral dos Santos

Agradeccedilo ao Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da Universidade Federal

da Paraiacuteba Universidade Federal de Pernambuco e Universidade Federal do Rio Grande do

Norte pela aceitaccedilatildeo do projeto de tese doutoral Agradeccedilo agrave University College Cork (Colaacuteiste

na hOllscoile Corcaigh) pela recepccedilatildeo do estaacutegio sanduiacuteche Agradeccedilo ao Trinity College

Dublin (Colaacuteiste na Triacuteonoacuteide Baile Aacutetha Cliath) pela oportunidade de frequentar os

seminaacuterios e bibliotecas Agradeccedilo agrave Alianccedila Cultural Brasil-Japatildeo e agrave Biblioteca Joatildeo Hideo

Matsumoto e ao Instituto Goethe de Satildeo Paulo e sua biblioteca Agradeccedilo ao Instituto Paulista

de Sacircnscrito e ao Prof Dr Adriano Aprigliano Agradeccedilo ainda agrave Coordenaccedilatildeo de

Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior pelo fomento da tese doutoral e do estaacutegio no

exterior

Agradeccedilo agraves pessoas que direta ou indiretamente contribuiacuteram no processo de

composiccedilatildeo da tese Alan Marinho Lopes Dax Moraes Marcus Vinicius Cavalcante Dantas

Tulio Madson de Oliveira Galvatildeo Sara Barrera Rubio Bastien Duval Javier Coloacuten Joseph

Sexton Agnieszka Klęczar Rodrigo Ferreira Braga Abrahatildeo Marcelo Ferreira Braga e Carla

Almeida

Agradeccedilo especialmente agrave Thaiacutes Ricci Conesa pelo apoio e pela motivaccedilatildeo sem os

quais natildeo concluiria este trabalho Finally yet importantly agradeccedilo ao absoluto integral e

irrestrito apoio de meus pais Luiz Pinto Teixeira e Tereza Cristina Fontes

6

Eacute preciso ainda ter caos dentro de si para dar

luz a uma estrela danccedilante

Friedrich Nietzsche Assim falou Zaratustra

7

RESUMO

O conflito das fronteiras se desdobra como um percurso natural da histoacuteria do pensamento

humano Torna-se manifesto todavia apenas mediante um expliacutecito choque cultural que

evidencia distintas formataccedilotildees conceituais Pensar este conflito pode esclarecer os enlaces

responsaacuteveis pelo desenvolvimento do pensamento contemporacircneo Esta tese pretende analisar

em um primeiro momento a histoacuteria do pensamento enquanto metafiacutesica apresentando um

diagnoacutestico da maneira pela qual o Ocidente impinge sua loacutegica categoacuterica Por conseguinte

apresenta a tradiccedilatildeo da negatividade evidenciando um pensamento para aleacutem da ontologia

claacutessica mediante uma henologia e uma meontologia no neoplatonismo e na miacutestica medieval

Por fim expotildee o pensamento do Extremo Oriente como possiblidade de recepccedilatildeo

contemporacircnea da negatividade e escapatoacuteria para a formataccedilatildeo ocidentalizante da filosofia

vigente

Palavras-chave Fronteiras Metafiacutesica Negatividade Extremo Oriente

8

ABSTRACT

The conflict of borderlines unfolds itself as a natural path in history of human thought It

becomes clear only through an explicit cultural clash which conveys distinct conceptual

formatting Thinking this conflict might enlighten the bindings responsible for development of

contemporary way of thought This thesis intent to analyse in a first moment the history of

thought as Metaphysics presenting a diagnostic towards the way through which the West

impinges its categorical logic Thereafter presents the tradition of Negativity showing a

thinking beyond Classic Ontology through a Henology and a Meontology in Neoplatonism and

Medieval Mysticism At the end exposes the Far Eastern thought as possibility of contemporary

reception of Negativity and escape from the Westernizer formatting of contemporary

philosophy

Key words Frontiers Metaphysics Negativity Far East

9

ZUSAMMENFASSUNG

Der Konflikt der Grenzen entfaltet sich als einen natuumlrlichen Weg in der Geschichte des

menschlichen Denkens Es wird nur klar durch eine explizite Kulturkampf die unterschiedliche

konzeptionelle Formatierung vermittelt Denken dieses Konflikts koumlnnte die Bindungen fuumlr die

Entwicklung der zeitgenoumlssischen Denkweise verantwortlich zu erleuchten Diese These

versuchen zu analysieren in einem ersten Moment die Geschichte des Denkens als Metaphysik

praumlsentiert eine Diagnose auf die Moumlglichkeit durch die der Westen trifft seine kategorische

Logik Danach praumlsentiert die Tradition der Negativitaumlt zeigt ein Denken jenseits Klassische

Ontologie durch eine Henologie und Meontologie im Neuplatonismus und mittelalterliche

Mystik Am Ende macht der Fernost gedacht als Moumlglichkeit der zeitgenoumlssischen Rezeption

von Negativitaumlt und Flucht aus der Westler Formatierung der zeitgenoumlssischen Philosophie

Schuumlsselwoumlrter Frontiers Metaphysik Negativitaumlt Fernost

10

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 11

1 ONTOLOGIA A SUBSTANTIVACcedilAtildeO DO OCIDENTE E O PROBLEMA DA METAFIacuteSICA 28

ENQUANTO DELIMITACcedilAtildeO DAS FRONTEIRAS DO PENSAMENTO

2 O CAMINHO DA NEGATIVIDADE HENOLOGIA E MEONTOLOGIA E A ULTRAPASSAGEM 61

DOS LIMITES DA METAFIacuteSICA

3 O EXTREMO ORIENTE E O CONFLITO DAS FRONTEIRAS A FILOSOFIA COMPARADA 89

INTERCULTURAL COMO CHAVE DE LEITURA PARA ALGUNS PROBLEMAS DO

PENSAMENTO CONTEMPORAcircNEO

CONCLUSAtildeO 113

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 119

11

INTRODUCcedilAtildeO

Aos 16 de abril de 2010 sob a avaliaccedilatildeo de uma banca composta pelos professores Oscar

Federico Bauchwitz Gisele Amaral dos Santos e Acylene Maria Cabral Ferreira defendi a

dissertaccedilatildeo de mestrado intitulada A caminho da fronteira Embora possa ainda dedicar mais

dez anos agrave correta composiccedilatildeo estiliacutestica daquele texto aleacutem da estruturaccedilatildeo dos argumentos

laacute natildeo tatildeo bem encadeados imagino ter alcanccedilado o objetivo de tornar claro natildeo apenas o intuito

do trabalho mas o problema movimentado pela questatildeo do conflito fronteiriccedilo de uma filosofia

comparada intercultural por meio de uma histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica

A questatildeo ldquoentre Heidegger e os japonesesrdquo (subtiacutetulo da dissertaccedilatildeo) abordada ao longo

dos dois anos de mestrado acadecircmico referia-se a uma virada de pontos de vista se em um

primeiro momento os orientais se perguntavam o quecirc a filosofia ocidental podia oferecer ao

pensamento e desenvolvimento do Extremo Oriente em um segundo momento os ocidentais

passaram a se perguntar de que forma os japoneses podiam acrescentar agrave filosofia um elemento

meditativo perdido no periacuteodo da consumaccedilatildeo da teacutecnica moderna e do cientificismo desde

suas perspectivas milenares de pensamento reflexivo

Ao passo em que a pesquisa ia se desenvolvendo o trabalho caminhou paulatinamente

rumo ao impacto violento surtido pelo diaacutelogo entre limites bem delineados de um Ocidente

estruturalmente metafiacutesico e um Oriente especulativo quase inefaacutevel para um leitor ocidental

A conclusatildeo extraiacuteda do caminho percorrido entre os anos de 2008 e 2010 apresentou antes de

qualquer soluccedilatildeo a constataccedilatildeo da instalaccedilatildeo de uma impertinecircncia petrificada no seio da

filosofia contemporacircnea sobre a qual pouco se pode acrescentar na dissoluccedilatildeo de problemas

mas muito se pode desdobrar no que tange ao entrelaccedilamento do alcance de um grau distinto

de movimentaccedilatildeo das arquitetocircnicas conceituais

12

Embora tais palavras pareccedilam abstratas em demasia (e de fato satildeo) o foco atingido se

concentrou em uma inquiriccedilatildeo a respeito do pensamento da linguagem e da verdade a partir

de um inusitado enigma sobre a negatividade do impensaacutevel ou seja sobre o silecircncio que

emerge no preciso momento no qual o pensamento eacute estarrecido e a liacutengua cala

A armadilha construiacuteda a partir das muacuteltiplas tentativas de elaboraccedilatildeo de conceitos afeta

natildeo somente a formataccedilatildeo silogiacutestica do intelecto humano comum mas ainda as

particularidades dos diversos modos de expressatildeo geograficamente distintos Correndo o risco

de se tornar antes uma antropologia filosoacutefica do que propriamente uma histoacuteria e criacutetica da

metafiacutesica o trabalhou refletiu uma anaacutelise agrave proacutepria concepccedilatildeo pela qual se distingue uma

filosofia da outra execrando qualquer nacionalismo filosoacutefico e investigando as questotildees que

envolvem a existecircncia humana dentro de seu modo relacional com o ser e com o ambiente que

a cerca O resultado foi a apresentaccedilatildeo de uma filosofia comparada intercultural que aparece

natildeo simplesmente como um campo disciplina ou subaacuterea da filosofia mas antes como uma

maneira pela qual eacute possiacutevel pensar filosoficamente para aleacutem das fronteiras de uma mera

linguagem de primeira ordem Dentro deste contexto nasce a hipoacutetese do tema o conflito das

fronteiras a partir do pressuposto de uma abordagem aos temas centrais do pensamento

contemporacircneo sustentando a interculturalidade filosoacutefica como aporte central

A proposiccedilatildeo fundamental desta tese adveacutem de alguns questionamentos particulares e

pontuais em um fluxo semelhante ao da dissertaccedilatildeo de 2010 Em abril de 2009 enquanto ainda

trabalhava no texto do mestrado teve lugar no campus da Universidade Federal do Rio Grande

do Norte o III Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica comissionado pelos professores Oscar

Federico Bauchwitz Jaimir Conte Maria da Paz Nunes de Medeiros e Markus Figueira da Silva

O evento marcava a consolidaccedilatildeo da linha de pesquisa em Metafiacutesica do Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Filosofia da universidade trazendo em sua terceira ediccedilatildeo o tema O que eacute

metafiacutesica Em homenagem aos oitenta anos da preleccedilatildeo homocircnima de Martin Heidegger

13

A conferecircncia pronunciada por Heidegger aos 24 de julho de 1929 foi preparada como

aula inaugural para a assunccedilatildeo da caacutetedra de filosofia que antes pertencera a Edmund Husserl

na Albert-Luumldwigs Universitaumlt Freiburg im Breisgau O escrito se tornou um dos mais

emblemaacuteticos conhecidos e discutidos textos de Heidegger Talvez o fator mais impactante da

preleccedilatildeo seja antes mesmo da abordagem temaacutetica o meacutetodo pouco usual conforme o qual o

questionamento eacute elaborado Heidegger inicia a aula dizendo que embora a questatildeo suscite a

expectativa de que se falaraacute sobre a metafiacutesica ele iraacute na verdade discutir uma questatildeo

metafiacutesica particular proporcionando uma movimentaccedilatildeo em seu interior e habilitando a

oportunidade para que a ela apareccedila por si soacute a partir do problema levantado (cf HEIDEGGER

1976 103) Deixar a metafiacutesica se apresentar por si soacute antes do que sobre ela discorrer

evidencia uma feiccedilatildeo um tanto distinta da abordagem de Heidegger ao problema uma de suas

marcas registradas todavia

Raras vezes a tradiccedilatildeo ocidental se deparou com tal niacutevel de heterodoxia no que tange

agrave instruccedilatildeo filosoacutefica (talvez apenas Platatildeo tenha cunhado semelhante meacutetodo ao perseguir o

pescador com o anzol antes de se aproximar da figura do sofista por exemplo ndash natildeo consigo

pensar em outras ilustraccedilotildees agora mesmo embora certamente elas existam) Uma linha de

raciociacutenio como esta aproxima-se muito mais de uma postura oriental

Durante o Coloacutequio aleacutem de retomar pela eneacutesima vez a leitura da preleccedilatildeo de

Heidegger lembro-me de me dedicar agrave leitura da claacutessica obra propedecircutica de Kaiten Nukariya

The Religion of Samurai (1913) a primeira obra sobre zen budismo publicada no Ocidente (em

liacutengua ocidental) Apoacutes uma breve introduccedilatildeo sobre a origem do budismo na Iacutendia e o percurso

de Śākyamuni Siddhārta Gautama (o Buddha Śākyamuni शाकयमनि) Nukariya relata a maneira

pela qual o monge Bodhidharma introduz o budismo na China destacando que seu meacutetodo era

inteiramente diferente dos outros instrutores de ensino ordinaacuterios

14

Sobre Bodhidharma Nukariya relata ldquoEle natildeo explicaria nenhum problema ao

estudante mas simplesmente ajudaacute-lo-ia a ser iluminado colocando-o um abrupto poreacutem eficaz

questionamentordquo (NUKARIYA 2006 10) Com esta metodologia tem iniacutecio a tradiccedilatildeo de

budismo chinecircs nomeada chrsquoan (dʑjen 禪) uma traduccedilatildeo do termo sacircnscrito dhyāna (धयाि) cujo

significado mais geral seria ldquomeditaccedilatildeordquo ou ldquopensamentordquo que futuramente seria lido na

pronuacutencia japonesa (くんよみ kun-yomi) do ideograma como zen (禅 ) Apoacutes expor esta

caracteriacutestica iacutempar do ensino de Bodhidharma Nukariya ainda relata uma breve histoacuteria na

qual um tal Shang Kwang havia requisitado ao mestre que ldquolhe pacificasse a menterdquo

Prontamente Bodhidharma teria respondido ldquoTraga-me aqui sua mente ante mim para que eu

a pacifiquerdquo e Shang Kwang teria replicado ldquomas isto eacute impossiacutevelrdquo recebendo em seguida

a resposta ldquoentatildeo jaacute pacifiquei sua menterdquo Shang Kwang foi instantaneamente iluminado

Certamente Martin Heidegger natildeo exige de seus ouvintes leitores e interlocutores uma

iluminaccedilatildeo tatildeo abrupta e desprovida de raciociacutenio loacutegico mas nem por isto suas reivindicaccedilotildees

satildeo menos ousadas e intensas ou sua meditaccedilatildeo menos profunda Heidegger propocircs diversas

reflexotildees que extraiacutedas de seu contexto especiacutefico configuram-se tatildeo inusitadas quanto as

passagens da tradiccedilatildeo chrsquoan ou zen sendo por vezes consideradas mesmo impertinentes Eacute o

caso de uma de suas mais arrojadas e emblemaacuteticas afirmaccedilotildees ldquoO mais grave eacute que natildeo

pensamosrdquo (HEIDEGGER 2002 6) Desconsiderando o sentido ao qual a sentenccedila pertence

certamente as palavras de Heidegger parecem uma afronta Todavia o leitor atento sabe que

Heidegger se refere agrave distinccedilatildeo entre um pensamento calculador (rechnende Denken) e um

pensamento meditativo (Besinnung) reportando-se ao velamento deste uacuteltimo e da supremacia

exclusiva do primeiro por meio do qual se faz ciecircncia e se daacute o desenvolvimento estrutural da

condiccedilatildeo tecnoloacutegica imperiosa Eacute justamente dentro deste fluxo que Heidegger afirma a

predominacircncia do pensamento cientiacutefico tambeacutem em Was ist Metaphysik

15

Para ingressar no interior da metafiacutesica Heidegger chama atenccedilatildeo ao fato de que a

existecircncia humana eacute hoje sobremaneira norteada pela ciecircncia Embora alguns opositores ainda

resistam agrave tal afirmaccedilatildeo natildeo eacute todavia difiacutecil convencecirc-los do contraacuterio argumentando em

favor da tese de Heidegger Natildeo se trata apenas de afirmar que o ser humano se apoia e confia

uacutenica e exclusivamente (quiccedilaacute mesmo cegamente) na ciecircncia como modo de desenvolvimento

e sustentaccedilatildeo da vida humana na Terra Antes disto e mais grave ainda trata-se de constatar

que a maneira pela qual o ser humano hoje pensa eacute tatildeo somente cientiacutefica mesmo em casos nos

quais o discurso supostamente se volta para um tema espiritual ou de feacute (ou qualquer outro

assunto) ndash a despeito de qualquer pretensa e torta teosofia eacute ainda a teologia a ciecircncia reinante

dos seminaacuterios sem embargo Independente do tema ou assunto da circunstacircncia ou

necessidade a maneira de proceder eacute jaacute sempre cientiacutefica sustentada por uma loacutegica inflexiacutevel

que imputa sua norma de que ldquosendo algo aquilo mesmo isto ou bem eacute ou bem natildeo eacute natildeo

havendo uma terceira opccedilatildeordquo

Em outras palavras parece ter se ocultado na mente humana qualquer outro modo de

pensar que natildeo seja o propriamente cientiacutefico Este modo cientiacutefico de pensar possui algumas

caracteriacutestica pelas quais se pode evidenciaacute-lo estritamente desde um triacuteplice entendimento que

compreende ldquoreferecircncia ao mundordquo ldquoposturardquo e ldquoirrupccedilatildeordquo Heidegger explica estes pontos

ldquoAquilo que na referecircncia ao mundo permanece eacute o ente em si mesmo ndash e mais nada Aquilo

que lidera toda postura eacute o ente em si mesmo ndash e nada mais Aquilo que faz acontecer a

discussatildeo investigativa da irrupccedilatildeo eacute o ente em si mesmo ndash e aleacutem disto nadardquo (IDEM OP CIT

105) A cientificidade da existecircncia humana se expressa mediante uma projeccedilatildeo ao ente e nada

mais Ao afirmar a determinaccedilatildeo da ciecircncia na vida e conduta humanas Heidegger quer deixar

ver sobretudo isto o fato de que hoje soacute eacute validado o discurso de um sujeito cujo objeto

cognosciacutevel eacute um ente este mesmo que subjacente obsta-lhe Dentro da relaccedilatildeo entre sujeito

e objeto toda uma tradiccedilatildeo se fundamenta e doravante prossegue da mesma maneira

16

Fazendo uma revisatildeo dos passos da histoacuteria do pensamento humano seria mais ou menos

faacutecil portanto imaginar como a partir da metafiacutesica claacutessica se desdobra o cientificismo

sobretudo tendo em vista a doutrina das Categorias de Aristoacuteteles aleacutem da tatildeo aclamada

ldquociecircncia do ente enquanto enterdquo Contudo natildeo eacute este o alvo de Heidegger Deixar a metafiacutesica

aparecer por si soacute deve contemplar a totalidade do questionamento proposto e natildeo um

historicismo vulgar Que todo raciociacutenio eacute regulado e direcionado pelo ente facilmente

constata-se Agora bem o que se passa com a outra parte da inquiriccedilatildeo qual seja o ldquonada

maisrdquo Heidegger formula a questatildeo ldquoA ciecircncia natildeo quer saber do nada Mas certamente em

sua permanecircncia ao manifestar sua proacutepria natureza chama o nada para ajudar O que ela

rejeita eacute necessaacuterio para classificaacute-la Que ambiacutegua essecircncia se revela aiacuterdquo (ID IBIDEM 106) Ao

perquirir o ente e aleacutem disto nada o elemento que confere a exatidatildeo de sua pesquisa eacute

auxiliado pelo ldquonadardquo ou seja trata-se disto e nada mais (por mais redundante e ambivalente

que soe ateacute mesmo um pouco non sense) Heidegger pergunta ldquoO que acontece com o nadardquo

(ID IBID) ou ainda para onde vai esse nada em meio agrave existecircncia cientiacutefica

Eacute justamente a inusitada apariccedilatildeo deste nada que revela o incocircmodo de um elemento

impensaacutevel e inexprimiacutevel que natildeo se dobra ante agrave relaccedilatildeo sujeito-objeto Natildeo eacute preciso aqui

destrinchar todo o caminho percorrido por Heidegger em Was ist Metaphysik Trata-se de um

texto bastante lido e amplamente comentado Basta apenas pontuar a sentenccedila central da

conferecircncia (ou a pergunta-condutora a Leitfrage) por meio da qual emerge a resposta agrave

questatildeo ldquoo que eacute metafiacutesicardquo ldquoPor que haacute absolutamente o ente e natildeo antes nadardquo (ID IBID

122) O extraordinaacuterio da questatildeo eacute justamente a capacidade do ser humano em por ela

perguntar A capacidade de questionar ldquopor que natildeo nadardquo define uma disposiccedilatildeo fundamental

da existecircncia quiccedilaacute mesmo aquela ocultada pelo modo cientiacutefico de existir (ou seja

paradoxalmente este mesmo modo eacute responsaacutevel por evidenciar o que nele se perde)

17

A disposiccedilatildeo que regula a eleiccedilatildeo do modo cientiacutefico de pensar tem em vista

salvaguardar o humano do abismo (da falta de fundamento) que se abre quando o nada emerge

silencia o discurso e joga o ser humano em uma situaccedilatildeo incocircmoda uma anguacutestia profunda

Quase como um mestre zen Heidegger deixa a metafiacutesica se abrir natildeo pela pergunta nem

sequer pela acircnsia de prover ao interlocutor (ou a si mesmo) uma resposta mas pela simples

possibilidade e capacidade de perguntar A metafiacutesica neste sentido perdura antes como uma

decisatildeo Ao que parece por este motivo Heidegger cita um trecho de Eacutedipo em Colonos de

Soacutefocles no posfaacutecio agrave preleccedilatildeo (em 1943) destacando os versos (em sua traduccedilatildeo particular

por mim aqui pobremente e quiccedilaacute mesmo irresponsavelmente adaptada) que dizem

ἀλλ᾽ ἀποπαύετε μηδ᾽ ἐπὶ πλείω

θρῆνον ἐγείρετε˙

πάντως γὰρ ἔχει τάδε κῡρος

Mas paremos e nunca mais a partir de agora

despertaremos o lamento

Em todos os lugares se deteacutem o evento

assegurando-lhe uma decisatildeo pela conclusatildeo (ID IBID 312)

A ldquodecisatildeo pela conclusatildeordquo coloniza todos os lugares e se deteacutem a partir de agora em uma

posiccedilatildeo da qual natildeo mais se sairaacute A anguacutestia revelada a partir do pensamento em torno ao

nada manifesta os limites da linguagem e vislumbra o destino do ente no ser em sua plenitude

e predominacircncia Mas para aleacutem da constataccedilatildeo da indigecircncia da linguagem haacute todavia uma

possibilidade de abordar efetivamente esse nada Como eacute possiacutevel pensar para aleacutem da

delimitaccedilatildeo entificante da referecircncia ao mundo da postura e da irrupccedilatildeo Haacute um caminho de

ultrapassagem e superaccedilatildeo possiacutevel ainda nos dias de hoje

18

Ao passo em que avanccedilava nas leituras e Heidegger e em algumas outras esta se tornou

a pergunta-chave pela qual imaginava atingir certo direcionamento temaacutetico A despeito da

disposiccedilatildeo de humor apresentada na conferecircncia bem como das consideraccedilotildees do posfaacutecio de

1943 os trabalhos de Heidegger dos anos de 1930 em diante datildeo a entender um claro

direcionamento pelo qual os elementos abandonados pela entificaccedilatildeo do pensamento podem ser

evidenciados qual seja a partir da poesia Os versos de Soacutefocles segundo o proacuteprio Heidegger

ldquoa uacuteltima poesia do uacuteltimo poeta gregordquo natildeo estatildeo ali dispostos sem motivo Tambeacutem natildeo eacute

sem razatildeo que a partir de aiacute haacute uma incansaacutevel busca pela poesia de Friedrich Houmllderlin (aleacutem

de Georg Trakl Stephan George Rainer Maria Rilke e de outros poetas escolhidos por

Heidegger) Ateacute certo ponto eacute possiacutevel afirmar que Heidegger encontra na poesia a

possibilidade de superar a linguagem por meio da proacutepria linguagem Em alguns outros

momentos uma meditaccedilatildeo de teor semelhante aparece como no encontro entre Heidegger e os

japoneses (como apresentei na dissertaccedilatildeo de 2010) Contudo restava ainda buscar os modos

de reflexatildeo que natildeo simplesmente podiam ir aleacutem da expressatildeo da ciecircncia do ente enquanto

ente mas ainda colocaacute-la em questionamento mediante outros meacutetodos

Foi na abertura do III Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica que minhas inquietaccedilotildees

comeccedilaram a se asseverar e ganhar corpo para o que viria a ser esta tese A conferecircncia

inaugural do evento foi sobremaneira marcante neste processo O professor Gilvan Fogel da

Universidade Federal do Rio Janeiro havia sido convidado para encerrar o primeiro dia de

evento Ele apresentou naquela noite a conferecircncia O que eacute metafiacutesica Como ele mesmo frisou

ldquonatildeo a pergunta mas a respostardquo Havia sem embargo a intenccedilatildeo de responder a pergunta

em um certo direcionamento eacute claro O texto vinha ainda acompanhado de um subtiacutetulo (com

o qual foi publicado como tiacutetulo oficial alguns anos depois diga-se de passagem) Sobre a

metafiacutesica ou a respeito do jejum O mote para o subtiacutetulo o proacuteprio professor o explica na

passagem inicial do texto que gostaria de citar por completo agora mesmo

19

O subtiacutetulo pode soar estranho insoacutelito e natildeo muito seacuterio Mas pelo que ele insinua

pretende anunciar algo seacuterio mesmo muito seacuterio a saber a metafiacutesica E a inspiraccedilatildeo

ou a motivaccedilatildeo que propicia o encaminhamento para a questatildeo anunciada a

metafiacutesica vem de uma obra igualmente seacuteria muito seacuteria ainda que se possa melhor

que se deva dela se ocupar tambeacutem com grandes e gostosas gargalhadas ndash aquelas que

no destampar do riso sacudindo a barriga bem solta e largada deixam escorrer

viacutesceras pela boca afora Estou me referindo ao Dom Quixote o Engenhoso Fidalgo

Dom Quixote lsquode la Mancharsquo ndash o ldquoda Triste Figurardquo

Entre as poesias que preludiam a primeira parte e que homenageiam seus personagens

maiores temos o uacuteltimo que eacute um diaacutelogo em forma de soneto entre Babieca o

cavalo de El Cid e Rocinante o grande rocim o pangareacute erado de Dom Quixote A

certa altura do diaacutelogo-soneto Babieca pergunta ldquoSeraacute tolice amarrdquo e Rocinante

responde ldquoNatildeo eacute muito prudenterdquo Babieca retruca ldquoEstaacutes metafiacutesicordquo E Rocinante

contesta enfaacutetico ldquoEacute que natildeo comordquo (FOGEL 2011 101)

A passagem sugere que a metafiacutesica eacute antes de tudo coisa de fome Por isto ldquoa respeito do jejumrdquo

denuncia a indisposiccedilatildeo que envolve a metafiacutesica A metafiacutesica eacute portanto certo incocircmodo que

eacute tambeacutem necessidade premente decorrente de certa privaccedilatildeo A partir disto Fogel delineia o

tipo de jejum ao qual se refere natildeo se trata de um jejum nutricional alimentiacutecio mas jejum de

vida conforme ele mesmo diz ldquo() natildeo vida no sentido bioloacutegico mas no sentido banal e

corriqueiro como falamos da vida de ldquonossa vidardquo ndash que ela eacute boa ou ruim ou um buracordquo

(IDEM IBIDEM 102) Esta vida a vida imanente a vida do cotidiano do dia-a-dia esta mesma

que ocupa o tempo e o espaccedilo sofre priva-se absteacutem-se Esta abstenccedilatildeo e privaccedilatildeo satildeo a

condiccedilatildeo pela qual reverbera sua constituiccedilatildeo enquanto sujeito ndash e nasce aiacute uma interpretaccedilatildeo

do que eacute enfim metafiacutesica A partir da conferecircncia de Fogel aleacutem de algumas outras

consideraccedilotildees comecei a ponderar a maneira pela qual abordaria o problema

20

Natildeo por meio de uma definiccedilatildeo conceitual acontecimento histoacuterico ou muacutetuo

consentimento temaacutetico mas por meio de uma experiecircncia de pensamento que sem deixar de

lado nenhum dos elementos supracitados configura-se antes como algo intriacutenseco agrave proacutepria

natureza do pensar Ponderando as consideraccedilotildees da conferecircncia de Heidegger a metafiacutesica se

deixa mostrar como uma decisatildeo pela conclusatildeo Um iacutempeto maior do ser humano em

resguardar sua condiccedilatildeo de pacificidade A humanidade teme o caos teme o desalinho receia

o incoacutegnito e inexprimiacutevel Elege por isto seu caminho de seguranccedila com aquilo que lhe eacute

papaacutevel o ente enquanto ente e nada mais Nada quer saber do nada que nada lhe oferece aleacutem

de um indisposto silecircncio um insoacutelito vazio Mediante esta postura embora sob o risco de

ocultar algo em si mesmo que talvez lhe sirva para alcanccedilar siacutetios recocircnditos do misteacuterio de

sua proacutepria existecircncia constitui-se o ser humano um metafiacutesico Sem embargo eacute preciso abster-

se de algo em prol disto ou daquilo que se lhe afigura mais propiacutecio ao momento Fogel enxerga

isto como privaccedilatildeo como jejum como fome Fica muito claro em sua interpretaccedilatildeo o caraacuteter

inflexiacutevel da decisatildeo pela conclusatildeo sobretudo quando traz agrave luz o curioso caso de Vicent van

Gogh

Fogel cita uma carta que van Gogh teria enviado em maio de 1888 a seu irmatildeo Theacuteo

onde descreve sua nova moradia e ao mesmo tempo atelier afirmando que o local eacute pouco

atraente para desenvolver qualquer tipo de flerte ou paquera acrescentando que dificilmente

enxerga como compatiacuteveis o trabalhar e o farrear (faire la noce) A verdade eacute que van Gogh

natildeo possui outra opccedilatildeo senatildeo se privar da diversatildeo do faire la noce natildeo porque eacute asceta ou

abstecircmio nem porque precisa dedicar mais tempo ao seu trabalho ou pagar suas contas (todos

sabem da condiccedilatildeo por vezes paupeacuterrima na qual ele se encontrou ao longo de seu percurso)

mas por ser artista por ser pintor por pintar Urge no artista uma realidade que parece muito

mais real que a vida comum na qual o farrear remete ao contentamento agrave felicidade Natildeo viver

a vida para van Gogh seria natildeo pintar

21

Se viver a vida eacute buscar este contentamento esta felicidade entatildeo van Gogh vive para

natildeo-viver Natildeo-viver se torna paradoxalmente a expressatildeo maacutexima da vida metafisicamente

entendida Fogel completa ldquoE por que natildeo viver este natildeo-viver seria ingratidatildeo Seria isso a

saber a distacircncia o agrave parte um dom um presente uma graccedilardquo (IDEM IBIDEM 105)

acrescentando ainda ldquoA metafiacutesica desde que jejum abstinecircncia de vida de viver seria

igualmente muita vida e natildeo cumpri-la natildeo realizaacute-la isto eacute natildeo pensar uma grande

ingratidatildeordquo (ID IBID) e por fim sugerindo ldquoAqui precisa-se confessar viver natildeo eacute preciso

Pintar pensar fazer quadros fazer metafiacutesica ndash isso eacute precisordquo (ID IBID) Ressalte-se o tom das

inquiriccedilotildees da interrogaccedilatildeo acompanhada pela exclamaccedilatildeo A precisatildeo da qual fala fazendo

menccedilatildeo a Fernando Pessoa eacute a necessidade de justeza de ser preciso e acurado destro

rigorosamente alinhado ao fazer metafiacutesica Assim se configura algo muito iacutentimo e sem

embargo inevitaacutevel na natureza humana

Fogel prossegue sua exposiccedilatildeo chamando ao diaacutelogo o Zaratustra de Friedrich

Nietzsche especificamente a seccedilatildeo intitulada Da Visatildeo e do Enigma na qual reincide o anuacutencio

da famosa doutrina do Eterno Retorno citando o trecho que diz

O homem eacute todavia o mais corajoso animal assim ele supera todo e cada animal Com

o jogo sonoro supera ele tambeacutem a dor Mas a dor humana eacute a dor mais profunda A

coragem tambeacutem indica a tontura morte em abismos e onde estaria o homem senatildeo

em abismos Ele natildeo vecirc a si mesmo ndash vecirc abismos (NIETZSCHE 2005 119)

Para Fogel o ldquoverrdquo natildeo denuncia uma observaccedilatildeo circunvisatildeo ou vislumbre mas antes um

acontecimento uma iluminaccedilatildeo um tornar visiacutevel Torna-se visiacutevel o abismo o sem fundo

sem fundamento Ao que parece quanto mais o ser humano contempla sua proacutepria existecircncia

mais sem chatildeo fica maior eacute a falta de fundamento e com maior radicalidade se abre um abismo

frente aos seus peacutes

22

Eacute possiacutevel todavia prosseguir caminhando ao lado de Nietzsche e Heidegger bem como

por meio das reflexotildees e interpretaccedilotildees oferecidas por Fogel buscando alcanccedilar uma feiccedilatildeo da

vida humana que permita descortinar a proveniecircncia metafiacutesica de seu percurso e ateacute mesmo

suscitando uma ultrapassagem deste fenocircmeno Contudo eacute necessaacuterio ainda precisar com maior

cuidado os termos contidos na questatildeo Faz parte do labor filosoacutefico se afundar mais e mais em

algo que por si soacute jaacute eacute bastante fundo

Natildeo apenas os pensamentos de Nietzsche e Heidegger oferecem uma especulaccedilatildeo de

formidaacutevel profundidade difiacutecil de ser absorvida em primeira matildeo como tambeacutem por vezes

pode se mostrar demasiado complexo empreender um rastreamento do sentido originaacuterio das

palavras e sentenccedilas salvo mediante uma anaacutelise completa (empresa complicadiacutessima

provavelmente impossiacutevel) de suas obras Mesmo assim talvez ainda natildeo se mostre com

suficiente nitidez se natildeo houver de antematildeo uma explanaccedilatildeo das fontes e referecircncias cruzadas

Com estas ideias em mente buscando avanccedilar cada vez mais no tema e sobre ele meditar

com cada vez mais dedicada atenccedilatildeo e profundidade tentando ampliar com ferocidade o

vocabulaacuterio (para fazer minhas as palavras de Marco Lucchesi) outro escrito me sobreveio

durante o processo de composiccedilatildeo das hipoacuteteses contidas neste trabalho Em Nihilismo e

Neoplatonismo (2003) Oscar Federico Bauchwitz traccedila algumas linhas que especificam a

condiccedilatildeo por meio da qual o problema efetivamente se apresenta

Haacute no texto de Bauchwitz tambeacutem um necessaacuterio retorno a Nietzsche e Heidegger Natildeo

apenas dentro do contexto de um estudo da metafiacutesica enquanto histoacuteria intelectual mas ainda

constatando os tempos onde ela se apresenta como formataccedilatildeo do modo de ldquoagir-pensarrdquo torna-

se imprescindiacutevel resgatar a lembranccedila de que ldquo() com Nietzsche se estabelece uma criacutetica da

metafiacutesica que acaba por homologar o seu oacutebitordquo (BAUCHWTIZ 2003b 169) Como explica

Bauchwitz a declaraccedilatildeo da morte da metafiacutesica eacute aquela mesma da morte do platonismo

cristianismo niilismo e outros sinocircnimos para o mesmo fenocircmeno

23

Esta morte natildeo eacute todavia apenas uma declaraccedilatildeo da inexistecircncia corrente do pensamento

metafiacutesico senatildeo sua consumaccedilatildeo total e absoluta A ldquociecircncia do ente enquanto enterdquo entifica

tudo aquilo que outrora foi nomeado vida (φύσις) pelos gregos dos periacuteodos arcaico e claacutessico

ndash das coisas ao redor aos pensamentos e aos deuses A entificaccedilatildeo do mundo em torno eacute sem

sombra de duacutevidas a maneira pela qual a ciecircncia vigente concebe o mundo configurando o que

Heidegger havia chamado de ldquoreferecircncia ao mundordquo A entificaccedilatildeo do pensamento por sua vez

denota a ldquoposturardquo tambeacutem mencionada por Heidegger aquela mesma segundo a qual haacute uma

maneira ldquocorretardquo de pensar Ao passo que a entificaccedilatildeo dos deuses um pouco mais complicada

apresenta-se como ldquoirrupccedilatildeordquo na qual a circunvisatildeo resultante dos dois elementos acima

mencionados denuncia a morte de deus a fuga dos deuses o viver sem o divino sem o

iluminado sem o deslumbre Desatados os laccedilos entre ser humano e divindade Bauchwitz

questiona ldquoO que natildeo pode o homem modernordquo (IDEM IBIDEM 170) questionamento que

poderia ainda ser vertido nos termos (mais ou menos) de Dostoievsky ldquose deus morreu entatildeo

tudo eacute permitidordquo ou ainda nos (mais ou menos novamente) de Heidegger ldquose apagou da

histoacuteria universal o esplendor da divindade Essa eacute a eacutepoca da noite do mundordquo Contudo para

Bauchwitz perdura algo no labor filosoacutefico que torna liacutecito novamente regressar agrave questatildeo Ele

explica que ldquoResgatar a forccedila mais originaacuteria das palavras eacute o ofiacutecio do filoacutesofo Por isso

dizemos que a miacutestica se mostra no fechar de olhos no fechar da bocardquo (ID IBID 173) Recordo-

me acompanhando os seminaacuterios matinais do professor Bauchwitz de ouvir certa vez a

sentenccedila ldquoo miacutestico estaacute sempre em conflito com a linguagemrdquo Conflito ou confronto natildeo me

lembro muito bem Havia de fato escrito a frase literalmente ao peacute da paacutegina de algum livro

(ou alguma fotocoacutepia) que agora mesmo esqueccedilo qual era e natildeo consigo encontrar

Independente das palavras exatas o que se apresenta no texto de Bauchwitz eacute a sugestatildeo de um

caminho para este resgate por meio de um conflito o confronto suscitado pela miacutestica

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Bauchwitz escreve ldquoO miacutestico eacute em primeiro lugar aquele que acolhe o misteacuterio dentro

de si recolhendo em silecircncio o sentido oculto da realidade soacute depois eacute que o silecircncio rompe a

barreira dos dentes para mostrar-se linguagemrdquo (ID IBID) E ainda prossegue especificando que

ldquoPor isso a miacutestica eacute uma experiecircncia radical da liberdade proacutepria Abrindo matildeo de um mundo

que clama sua atenccedilatildeo o miacutestico encontra-se com o que nele eacute totalmente incoacutegnito e

incognosciacutevel um eu que se mostra como puro nadardquo (ID IBID) A maneira pela qual Bauchwitz

iraacute desdobrar a explicaccedilatildeo destas sentenccedilas sobremaneira enigmaacuteticas percorreraacute trecircs

pensadores que marcam a tradiccedilatildeo do neoplatonismo e da chamada miacutestica medieval quais

sejam Pseudo-Dioniacutesio Areopagita Joatildeo Escoto Eriuacutegena e Mestre Eckhart Contudo o que

havia me saltado aos olhos antes da eleiccedilatildeo temaacutetica autoral ou metodoloacutegica havia sido a

sentenccedila ldquoum eu que se mostra como puro nadardquo Jaacute havia encontrado semelhante formulaccedilatildeo

todavia nunca em autores ocidentais Remeti diretamente a maneira pela qual a tradiccedilatildeo

mahāyāna do budismo do leste asiaacutetico havia compreendido a noccedilatildeo do natildeo-si-mesmo ou natildeo-

ego (anātman अितमि) como dissoluccedilatildeo do eu por meio da tensatildeo entre forma (ou fenocircmeno ou

ainda aparecircncia rūpa रप) e nada (ou vacuidade śūnyatā शनयता) Estas ideias derivam

diretamente do chamado Cacircnone Pāḷi tendo sido transmitidas em sacircnscrito pelo Sūtra do

Coraccedilatildeo (Prajntildeāpāramitā Hṛdaya परझञापारनमताहरदय) ateacute alcanccedilarem formas mais refinadas no

budismo chrsquoan e no zen budismo japonecircs assumindo as configuraccedilotildees de ldquoformardquo ou

ldquoaparecircnciardquo enquanto shiki (色) e ldquonadardquo ou ldquovacuidaderdquo enquanto kū (空) elementos centrais

do pensamento da filosofia japonesa contemporacircnea da Escola de Kyōto (e que tambeacutem havia

abordado brevemente em minha dissertaccedilatildeo de mestrado) Tornou-se imperioso investigar ateacute

que ponto tais ideias se aproximam ou comungam de princiacutepios convergentes aleacutem da maneira

como elas repercutem em suas tradiccedilotildees e particularidades Mais uma vez encontrava-me frente

ao sem-fim nuacutemero de possibilidades comparativas e complementares

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Contudo temia o risco de cair no engodo certa vez denunciado por Immanuel Kant

quando afirmou em seus Prolegomena zu einer jeden kuumlnftigen Metaphyysik (1783) que ldquo()

dificilmente se espera que natildeo seja possiacutevel descobrir analogias para cada nova ideia entre ditos

de eras passadasrdquo (KANT 1911 7) natildeo havendo grande meacuterito nisto e sendo necessaacuterio admitir

que estes historiadores da filosofia ocupados com tal empreendimento devam antes aguardar

que os ldquoverdadeiros filoacutesofosrdquo esgotem as fontes da razatildeo Sob pena de realizar uma mera

comparaccedilatildeo friacutevola (embora com a consciecircncia de que passo longe de ser um ldquoverdadeiro

filoacutesofordquo ao menos no sentido Kantiano ndash talvez o seja em outro digamos mais Ginsbergiano

de pura pretensatildeo mas certamente natildeo muito talento) ocupei-me em corretamente designar o

problema que me afligia de modo que fosse possiacutevel corretamente endireitar o roteiro da tese

Era preciso encontrar um mote mesmo que ele natildeo deixasse ver claramente os passos a serem

percorridos mas que provessem alguma direccedilatildeo

Tendo isto em vista natildeo podia negar que o interesse pelo que ousei chamar de ldquoconflito

das fronteirasrdquo crescia a partir de um ldquopar de viacutergulasrdquo que aparentemente haviam escapado agrave

anaacutelise da histoacuteria do pensamento Em outras palavras um determinado momento no qual o

transcurso metafiacutesico foi levemente desviado em uma guinada espontacircnea e natural como um

marinheiro que sutilmente move o leme para a esquerda ou para direita ao perceber o advento

de uma portentosa onda logo atraacutes de si soltando o motor e deixando o barco ser levado pelo

mar ndash saacutebia decisatildeo em momentos de tormenta (passei por esta situaccedilatildeo certa vez em mar

aberto transitando entre Paraty e uma praia recocircndita Pouso do Cajaiacuteba se natildeo me falha a

memoacuteria gostaria de poder descrever em pormenores a experiecircncia que seria proveitosa ao

leitor em termos ilustrativos mas estava muito enjoado no barco para congregar detalhes

miacutesticos em minha massa cinzenta) E eram momentos de tormenta Como poderiam natildeo ser

Sendo assim estabeleci um conveniente itineraacuterio (ao menos sob meu ponto de vista) que

compartilho antes de iniciar o trabalho

26

O primeiro passo importante eacute estabelecer dentro de quais termos se apresenta a

metafiacutesica pela qual se nomeia a histoacuteria do pensamento ocidental O primeiro capiacutetulo da tese

intitulado Ontologia a substantivaccedilatildeo do Ocidente e a delimitaccedilatildeo das fronteiras do

pensamento ocupa-se de tal apresentaccedilatildeo e eacute na verdade bastante simples apesar do tiacutetulo

pomposo A despeito da abordagem histoacuterico-conceitual desdobrada em um primeiro momento

o capiacutetulo segue em consonacircncia com a avaliaccedilatildeo de Martin Heidegger assumindo-o como

interlocutor e inteacuterprete da histoacuteria e criacutetica da metafiacutesic Haacute aqui uma ecircnfase nas leituras por

meio das quais Heidegger caracterizou de maneira direta a passagem de uma fisiologia grega

claacutessica (por ele nomeada ldquopensamento originaacuteriordquo) para o acircmbito da ontologia latina e o modo

conforme o qual a proacutepria ideia de ldquoserrdquo eacute compreendida de maneira tatildeo somente substantivada

a partir de seu particiacutepio presente ldquoenterdquo Um necessaacuterio retorno cronoloacutegico-regressivo eacute

estabelecido do fim ao iniacutecio da modernidade pontuando autores como Jacob Lorhard e

Francisco Suaacuterez Todavia o objetivo principal do capiacutetulo eacute compreender este modo de

substantivaccedilatildeo e quais as consequecircncias disto para o pensamento em um sentido geral (a

delimitaccedilatildeo de suas fronteiras no final das contas) sem nunca perder de vista o peso aristoteacutelico

da designaccedilatildeo e realizando algumas especificaccedilotildees sobre isto

O segundo capiacutetulo intitulado O caminho da negatividade henologia e meontologia e

a ultrapassagem dos limites da metafiacutesica pretende caracterizar efetivamente essa nomeada

ldquonegatividaderdquo Negatividade que natildeo eacute simplesmente predominacircncia de um ldquonatildeordquo ou partiacutecula

de privaccedilatildeo mas antes assunccedilatildeo de um oxiacutemoro o auscultar de um inaudito Desenvolve-se

como argumento central por meio do qual se evidencia as estruturas baacutesicas de um pensamento

radical a evidenciaccedilatildeo de uma meditaccedilatildeo que jaacute natildeo eacute mais norteada pelo ldquoenterdquo mas sim pelo

ldquounordquo (henologia) neoplatocircnico ou mesmo por uma profunda meditaccedilatildeo em torno ao ldquonadardquo

(meontologia) presentes no neoplatonismo e sobremaneira evidentes no pensamento miacutestico

27

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo nomeado O Extremo Oriente e o conflito das fronteiras a

filosofia comparada intercultural como chave de leitura para alguns problemas do pensamento

contemporacircneo pretende conectar os pontos e resgatar o sentido da tese O capiacutetulo traz uma

breve apresentaccedilatildeo da chamada Escola de Kyōto e a constituiccedilatildeo da filosofia japonesa

contemporacircnea Este eacute o momento no qual eacute possiacutevel observar a recepccedilatildeo contemporacircnea da

filosofia ocidental (tanto dentro da tradiccedilatildeo metafiacutesica quanto ldquoforardquo dela na dita negatividade)

e o diaacutelogo (e siacutentese) com o mundo do Extremo Oriente O objetivo eacute portanto pensar em

comunhatildeo com os pensadores da Escola de Kyōto com especial atenccedilatildeo para Keiji Nishitani

(西谷 啓治) observando suas propostas para anaacutelise e resoluccedilatildeo dos problemas de filosofia

contemporacircnea e buscando um esclarecimento a respeito dos termos indicados

Ao fim e ao cabo a intenccedilatildeo aqui eacute convidar os leitores ao diaacutelogo intercultural

apresentando em um diaacuterio de minhas leituras diferentes nuances e pontos de vista a respeito

de algumas questotildees especiacuteficas e ousando um diagnoacutestico da filosofia contemporacircnea bem

como uma vaacutelvula de escape para a atual condiccedilatildeo do pensamento filosoacutefico Caso a empreitada

logre ecircxito acredito que uma nova conversa se abra e novas ideias venham agrave mente Sem

embargo trata-se de uma composiccedilatildeo acerca de um conflito o conflito das fronteiras

28

ONTOLOGIA A SUBSTANTIVACcedilAtildeO DO OCIDENTE E O PROBLEMA DA METAFIacuteSICA

ENQUANTO DELIMITACcedilAtildeO DAS FRONTEIRAS DO PENSAMENTO

Embora ontologia tenha um sentido bastante amplo (que seraacute melhor explorado ao longo do

capiacutetulo) aleacutem de uma sem-fim variedade de definiccedilotildees distintas de autor para autor (algumas

das quais seratildeo eleitas e apresentadas aqui) entende-se o conceito (de forma simplificada) como

um discurso capaz de reunir em uma unidade a polissemia do verbo ser O resultado eacute a

centralizaccedilatildeo conceitual de qualquer ulterior doutrina a partir da definiccedilatildeo desenrolada desde

sua compreensatildeo Por substantivaccedilatildeo do Ocidente refiro-me aqui agrave corrente historial

responsaacutevel por compreender o verbo ser de modo substantivado a partir de seu particiacutepio

presente ldquoenterdquo A intenccedilatildeo do capiacutetulo portanto concentra-se na investigaccedilatildeo do processo

decorrido dessa substantivaccedilatildeo e quais as consequecircncias disto para o pensamento ocidental e

contemporacircneo em uma concepccedilatildeo geral no que diz respeito agrave delimitaccedilatildeo das fronteiras do

pensamento

Em primeiro lugar gostaria de abrir uma interlocuccedilatildeo com o professor Charles H Kahn

da University of Pennsylvania dada a relevacircncia e pertinecircncia de sua obra The Verb lsquoBersquo in

Ancient Greek (1973) para o desenvolvimento do capiacutetulo Antes de desdobrar em pormenores

seu estudo bastante extenso e detalhado Kahn sustenta a tese de que haacute uma relatividade

linguiacutestica referente ao verbo ser (cf KAHN 2003 1-3) Em sua introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo de 2003 (cf

IDEM IBIDEM vii) Kahn se reposiciona em relaccedilatildeo ao argumento expresso em sua obra clamando

ser uma posiccedilatildeo bastante defensiva e ldquofora de modardquo para os tempos atuais Ainda assim trata-

se de uma hipoacutetese bastante interessante

29

A posiccedilatildeo de Kahn (cf IBID 1-3) se apoia na afirmaccedilatildeo de Angus C Graham1 acerca

do mesmo verbo dentro do chinecircs claacutessico onde o sinoacutelogo posiciona o ser relativamente agrave

regra gramatical inerente agrave formulaccedilatildeo de uma determinada sentenccedila significando portanto a

impossibilidade de uma doutrina universal acerca do ser compatiacutevel com liacutenguas distintas

(como o grego o aacuterabe ou o chinecircs) Isto concorda em absoluto com a ideia de que no proacuteprio

grego claacutessico e nas liacutenguas indo-europeias em geral conforme a menccedilatildeo feita por Kahn a

Eacutemile Benveniste2 natildeo haacute em hipoacutetese alguma a implementaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo universal ou

condiccedilatildeo necessaacuteria envolta na distribuiccedilatildeo dos significados do verbo ser Haacute sim e Benveniste

endossa a ideia uma predisposiccedilatildeo da linguiacutestica grega agrave ldquovocaccedilatildeo filosoacutefica da noccedilatildeo de serrdquo

Vocaccedilatildeo esta segundo Kahn muito geral e diversificada no desenvolvimento sistemaacutetico de

seu conceito desde Parmecircnides ateacute Aristoacuteteles e de uma maneira mais sistemaacutetica dos Estoicos

ateacute Plotino Em siacutentese Kahn sustenta que a tese de um determinismo linguiacutestico do ser eacute

claramente falsa ou seja mesmo em falantes de uma mesma liacutengua natildeo eacute possiacutevel encontrar

uma mesma doutrina em torno ao ser como eacute possiacutevel ver nos pensamentos distintos de Platatildeo

e Aristoacuteteles Epicuro e Plotino

Todavia natildeo haacute duacutevidas para Kahn a respeito das condiccedilotildees intriacutensecas da liacutengua de um

autor em sua atividade intelectual seus recursos e suas tendecircncias Ele afirma que natildeo haveria

possibilidade de especificar a determinaccedilatildeo ontoloacutegica se o verbo grego εἰμί natildeo fosse provido

do particiacutepio presente τὸ ὄν ou se natildeo houvesse a derivaccedilatildeo nominal ndashία da qual redunda a

noccedilatildeo de οὐσία Ou ainda a classe de morfemas que compreende ἐστί εἶναι e ἐών derivadas

do indo-europeu ndashes Satildeo as formas nominais do verbo que permitem segundo Kahn (cf IBID

451) natildeo soacute uma clara expressatildeo senatildeo tambeacutem a tematizaccedilatildeo do conceito como um toacutepico

distinto para a reflexatildeo filosoacutefica

1 Angus C Graham ldquoBeing in Classical Chineserdquo In The Verb lsquoBersquo and its Synonyms John W M Verhaar (ed)

Dordrecht Holland D Reidel 1967 1-39 2 Eacutemile Benveniste ldquoCateacutegories de penseacutee et cateacutegories de languerdquo Les Eacutetudes philosophiques n 4 (out-dez

1958) PUF Paris 419-429

30

Kahn fala dos primeiros usos do verbo εἰμί (em formas participiais) em sua

possibilidade de representar qualquer construccedilatildeo copulativa (natildeo muito diferente de qualquer

outro particiacutepio em grego) adaptando-se agraves construccedilotildees coordenadas ou subordinadas (em

nuacutemero gecircnero e causa) e expressando diferentes nuances (concessiva causal adversativa)

Contudo frisa haver ainda outras expressotildees para aleacutem do caso copulativo como nos casos

vital veriacutedico ou existencial Quando o verbo aparece dentro da expressatildeo existencial e emerge

a necessidade de indicar uma referecircncia ou seja um caso gramatical locativo surgem as formas

do uso filosoacutefico do ser como τὰ ὄντα o berccedilo para o desenvolvimento da ontologia O sentido

de τὰ ὄντα apareceria em Aristoacuteteles de acordo com Kahn (cf ID IBID 457) em primeira matildeo

como ldquoo que eacuterdquo (o caso os fatos ou eventos) e em segunda matildeo existencialmente como ldquocoisas

que existemrdquo ldquocoisas que estatildeo presentesrdquo ldquocoisas que podem ser encontradas em algum lugarrdquo

Em ambos os casos o verbo ser eacute entificado Como neste sentido haacute uma conotaccedilatildeo ldquodo que

eacuterdquo algo Aristoacuteteles considerou a referecircncia aos atributos de um determinado ente para expressar

a muacuteltipla significaccedilatildeo de τὸ ὄν partindo em seguida para a definiccedilatildeo do ser no sentido primaacuterio

e fazendo uso de seu derivado nominal οὐσία

A manifestaccedilatildeo de οὐσία surge como uma nominalizaccedilatildeo abstrata ou substantivo de

accedilatildeo Kahn enumera trecircs aspectos distintos do uso de οὐσία em uma concepccedilatildeo filosoacutefica o

primeiro uso refere-se agrave nominalizaccedilatildeo do verbo na qual οὐσία representaria ldquoo que algo eacuterdquo

dando abertura para as formas platocircnicas e essecircncias aristoteacutelicas (τὸ τί ἐστι τὸ τί ἦν εἶναι) o

segundo uso eacute todavia menos teacutecnico e predica οὐσία como ldquoserrdquo ldquoexistecircnciardquo ou ldquorealidade

verdadeirardquo o terceiro uso enuncia uma equivalecircncia entre οὐσία e τὸ ὄν referindo ldquoas coisas

que satildeo (neste mundo)rdquo τὰ ὄντα (cf ID IBID 461) Aristoacuteteles pontua precisamente a intenccedilatildeo

socraacutetica primaacuteria de buscar a essecircncia das coisas (τὸ τί ἐστι) por meio do procedimento

silogiacutestico cujo princiacutepio eacute justamente a quididade (ἀρχὴ δὲ τῶν συλλογισμῶν τὸ τί ἐστι)

(ARISTOacuteTELES 2002 604-605 Metafiacutesica 1078b 24-25)

31

O que em Soacutecrates apareceria de fato como τί ἐστι e em Platatildeo como (τὸ) ὅ ἐστι em

Aristoacuteteles seria simplificado como τὸ τί ἐστι e τὸ τί ἦν εἶναι em um uso que expressa a essecircncia

ou natureza das coisas pela definiccedilatildeo ao passo que a definiccedilatildeo propriamente existencial caberia

ao termo οὐσία 3 Kahn ilustra as distinccedilotildees dizendo que

Enquanto o substantivo no primeiro e no segundo usos serve como uma

nominalizaccedilatildeo ldquoabstratardquo para o verbo finito como predicado isto eacute para o ldquoser aquilo

que eacuterdquo (e eacute assim sintaticamente paralelo ao infinitivo articular τὸ εἶναι) οὐσία no

terceiro sentido eacute utilizado ndash como em muitos outros substantivos abstratos ndash para o

sujeito caracterizado (isto eacute o que eu chamo de concreto ou agente de nominalizaccedilatildeo

como tipicamente ilustrado pelo particiacutepio articular τὸ ὄν ou como por exemplo ὁ

τρέχων ldquoo corredorrdquo em contraste agrave accedilatildeo de nominalizaccedilatildeo abstrata τὸ τρέχειν

ldquocorrerrdquo Esta distinccedilatildeo sintaacutetica corresponde em parte ao contraste de Heidegger

entre das Seiende e das Sein der Seienden) (ID IBID)

Embora haja tal distinccedilatildeo Kahn prossegue afirmando que em seu uso tardio (poacutes-platocircnico)

οὐσία e τὸ ὄν satildeo claramente sinocircnimos sendo um utilizado para enfatizar o outro como na

doutrina das Categorias de Aristoacuteteles4 O resultado eacute a inexistecircncia de uma diferenccedila entre o

agente concreto e a accedilatildeo abstrata de nominalizaccedilatildeo do εἰμί onde natildeo haacute distinccedilatildeo conceitual

entre οὐσία e τὸ ὄν ou seja entre a entidade e o que ela eacute Em outras palavras ser e ente se

tornam o mesmo confundem-se em sua aplicaccedilatildeo a despeito das distinccedilotildees conceituais que

definem substacircncia (οὐσία) e essecircncia (τὸ τί ἦν εἶναι)

3 Um comentaacuterio mais preciso foi apresentado em Luiacutes Andreacutes Berdlow ldquoParmenides and the Grammar of Beingrdquo

Classical Philology v 106 (2011) 283-298 4 As Categorias de Aristoacuteteles apresentam a classificaccedilatildeo das coisas que satildeo (τὰ ὄντα) dentre as quais encontra-

se a substacircncia (οὐσία) (cf ARISTOTLE 1952 5-6 Categorias 1a-2b) Na Metafiacutesica Aristoacuteteles deixa isto mais

claro quando diz ldquoMas em primeiro lugar se o ldquoenterdquo (τὸ ὂν) se diz de muitas maneiras ndash dentre as quais algumas

vezes substacircncia (οὐσία) em outras qualidade ou mesmo quantidade aleacutem de todas as outras categorias ndash qual

deles portanto eacute aquele pelo qual as coisas satildeo ()rdquo (ARISTOacuteTELES 2002 669 Metafiacutesica 1089a 5-15) A diferenccedila

conceitual ou mesmo hieraacuterquica eacute paulatinamente abandonada pela necessidade de exprimir um niacutevel de

realidade no qual jaacute natildeo eacute mais possiacutevel discorrer acerca do ente se redundar a palavra definida na proacutepria definiccedilatildeo

32

Essa indistinccedilatildeo entre ser e ente eacute sabido foi o que chamou a atenccedilatildeo de Martin

Heidegger no processo ldquodestrutivordquo de histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica realizado em seu projeto

Sein und Zeit (1927) Conforme Heidegger haacute uma γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας de haacute muito

abandonada O motivo aparente se concentra nas caracteriacutesticas emergentes do proacuteprio ser

quais sejam sua maacutexima universalidade sua vacuidade sua obscuridade sua maacutexima

evidecircncia Neste sentido Heidegger diz

O conceito de ldquoserrdquo eacute indefiniacutevel Isto pode ser concluiacutedo desde sua maacutexima

universalidade E isto com razatildeo ndash se definitio fit per genus proximum et differentiam

specificam De fato ldquoserrdquo natildeo pode ser entendido conceitualmente como ente enti

non additur aliqua natura ldquoserrdquo natildeo pode estar em uma determinaccedilatildeo concebendo

dele um ente O ser por definiccedilatildeo natildeo pode ser derivado de conceitos superiores e

nem dado por nenhuma ilustraccedilatildeo Contudo disto se segue que do ser natildeo se pode

derivar nenhum problema Pode-se concluir em absoluto apenas que o ldquoserrdquo natildeo eacute

algo como um ente Portanto o legiacutetimo dentro de certos limites de determinaccedilatildeo dos

entes ndash a ldquodefiniccedilatildeordquo da loacutegica tradicional que em si tem suas bases na antiga

ontologia ndash natildeo eacute aplicaacutevel ao ser A indefiniccedilatildeo do ser natildeo dispensa a pergunta por

seu significado senatildeo que justamente a intima isto (HEIDEGGER 1967 4)

As observaccedilotildees de Heidegger concordam com a conclusatildeo de Kahn a respeito da tomada de

rumo do verbo ser dentro da filosofia grega claacutessica sobretudo na concepccedilatildeo das bases da antiga

ontologia acerca da indistinccedilatildeo entre ser e ente A γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας agrave qual se refere

Heidegger parece ser a natureza inevitaacutevel da proacutepria metafiacutesica em fechar a porta aberta por

ela mesma para o modo de se relacionar com o ser uma espeacutecie de destinaccedilatildeo forccedilosa da qual

natildeo se poderia de maneira alguma escapar ponderando a projeccedilatildeo que reverbera em cada um

dos sentidos

33

O conflito acerca do entendimento e expressatildeo da φύσις revela em boa parte a maneira

pela qual o conjunto do ser se tornou alvo de disputas A contenda eacute ilustrada na histoacuteria

primaacuteria da filosofia grega enquanto fisiologia e na ldquocontroveacutersiardquo paradigmaacutetica entre

Heraacuteclito e Parmecircnides Uma realidade em constante movimento e mutaccedilatildeo absorvida desde a

observaccedilatildeo teoreacutetica do mundo entorno ou simplesmente o ponto de vista do ldquodevirrdquo parece

compatiacutevel com a natureza infinitiva e inapreensiacutevel do verbo ser como eacute possiacutevel rastrear no

πάντα ῥεῖ heracliacutetico 5 Heraacuteclito expressa o movimento intriacutenseco de abertura do modo

relacional do ser Todavia tal entendimento natildeo eacute compatiacutevel com qualquer tipo de silogismo

loacutegico onde eacute possiacutevel desenhar um conhecimento comum Para assumir a cogniccedilatildeo e percepccedilatildeo

vaacutelidas seria necessaacuterio assumir a permanecircncia de algo como eacute possiacutevel acompanhar na

elaboraccedilatildeo da univocidade do ser em Parmecircnides6

O primeiro ponto de vista paradoxalmente leva agrave evidecircncia da diferenccedila e a posiccedilatildeo do

oxiacutemoro enquanto o segundo permite a identificaccedilatildeo e a possibilidade de conclusatildeo por meio

das loacutegicas da identidade e natildeo-contradiccedilatildeo Aparentemente o primeiro natildeo resulta em nenhum

avanccedilo imediato a respeito de assuntos praacuteticos ou na dissoluccedilatildeo de questotildees teoacutericas enquanto

o segundo iraacute provavelmente resolver problemas de quase todos os tipos no campo pragmaacutetico

e em toda sorte de adversidades naturais e sociais Por meio da loacutegica natural do ser humano

social eacute bastante evidente qual ponto de vista deve ser eleito no intuito de estabelecer a

coexistecircncia mais faacutecil e paciacutefica aquela que afasta o homem da falta de fundamento da

existecircncia ou seja do abismo existencial da afliccedilatildeo que eacute existir

5 Conforme cita Platatildeo no Craacutetilo ldquotodas as coisas estatildeo em processo e nada permanece paradordquo (τά ὄντα ἱέναι

τε πάντα καὶ μένειν οὑδέν) (PLATO 1997 119-120 Craacutetilo 401d-402a) (KIRK E RAVEN 1957 197) Kirk e Raven

ponderam ainda que se trata de um momento ldquoOnde φύσις provavelmente natildeo significa lsquonaturezarsquo mas lsquoas coisas

em sua verdadeira constituiccedilatildeorsquordquo (IDEM IBIDEM 184) 6 ldquoO uacutenico caminho de inquiriccedilatildeo que pode ser pensadordquo (αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι) (KIRK E RAVEN

1957 269) Haacute uma anaacutelise mais detalhada acerca do toacutepico em Ciacutecero Cunha Bezerra ldquoParmeacutenides y la

univocidad del serrdquo Caacutetedra v 1 (2003) 33-48

34

Eacute possiacutevel especular que com a ausecircncia de um princiacutepio solidamente identificado e

natildeo-contraditoacuterio quiccedilaacute nem mesmo uma regra gramatical linguiacutestica poderia ser estabelecida

dando margem mesmo agrave impossibilidade de comunicaccedilatildeo Igualmente tampouco se poderia

delinear uma corrente de haacutebitos pessoais compatiacuteveis aos costumes sociais desabilitando toda

e qualquer eacutetica ou ciecircncia poliacutetica pela qual se pode regulamentar a conduta humana Com a

perspectiva de um devir total e assunccedilatildeo da diferenccedila a presenccedila de certo caos eacute inegaacutevel Com

a fundaccedilatildeo de uma estrutura loacutegica todavia eacute possiacutevel organizar e controlar os pensamentos e

accedilotildees do ser humano e sua convivecircncia social Contudo natildeo necessariamente esta postura iraacute

levar a humanidade para as escolhas mais coerentes ndash e a histoacuteria pode comprovar isto inuacutemeras

vezes O abandono da multiplicidade de perspectivas sobretudo as supracitadas (uma em

detrimento de outra) parece ter dirigido a histoacuteria por vias pouco luacutecidas e por vezes mesmo

autodestrutivas

Mas a anaacutelise da histoacuteria fatual natildeo eacute o que realmente interessa aqui tampouco a

atribuiccedilatildeo de uma culpa ou indicaccedilatildeo de um erro neste ou naquele ponto de vista O que

interessa aqui eacute como identificar a predileccedilatildeo loacutegica do pensamento ocidental com o cerne de

sua postura contemporacircnea e inquirir se eacute possiacutevel (ou se jaacute foi tomado) um caminho de

pensamento distinto e quais os resultados da confrontaccedilatildeo de um ponto de vista com o outro

Para isto eacute preciso retomar uma anaacutelise da histoacuteria da ontologia observando a maneira pela

qual ela se movimenta intriacutenseca e extrinsecamente Dentro das possibilidades de eleiccedilatildeo de um

caminho interpretativo opto aqui em um primeiro momento por absorver a histoacuteria e criacutetica

da metafiacutesica feita por Heidegger durante o seacuteculo vinte com o fito de deixar um pouco mais

evidente o problema fundamental da indistinccedilatildeo entre ser e ente que eacute sem embargo o pontapeacute

inicial de toda a contenda Muito embora seja possiacutevel descortinar a histoacuteria do pensamento

ocidental mediante distintos autores a ecircnfase na nomeada questatildeo do ldquoesquecimento do serrdquo

serve sobremaneira bem ao propoacutesito desta tese

35

Portanto em primeiro lugar eacute preciso considerar que embora ilustrativo Martin

Heidegger passou ao largo de resolver os problemas suscitados pela histoacuteria das ideias Antes

ele desenvolveu problemaacuteticas ainda mais insoluacuteveis e como se natildeo bastasse propocircs novos

enigmas A maior dentre todas as dificuldades talvez ainda precise aguardar muito tempo para

ser descortinada Durante um longo periacuteodo o entretenimento geral dos eruditos se contentou

em traccedilar um denominador comum dentre as vaacuterias questotildees pertinentes aos problemas de sua

filosofia em um movimento enciclopeacutedico quiccedilaacute tatildeo importuno quanto improfiacutecuo de decifrar

seu pensamento Mais conveniente talvez seja simplesmente resguardar o segredo de certas

passagens e aguardar a maturaccedilatildeo necessaacuteria para interpelaacute-las independentemente da espera

suscitada por tal postura

Ainda assim alguns pontos merecem ser postos em relevo e sobre eles decerto vale

despender alguma energia no esforccedilo de meditar acerca de seu sentido Certos trabalhos

compostos por Heidegger guardam de uma soacute vez todo o peso de sua leitura da realidade

notadamente em trechos sutis e aparentemente inofensivos Em momentos nos quais o leitor se

daacute por satisfeito em compreender um posicionamento aparentemente simples e historial como

pueril revisatildeo da histoacuteria da filosofia aiacute mesmo se lhe eacute possiacutevel abrir uma brecha para absorver

a atitude fundamental de seu pensamento Heidegger sempre foi um historiador da filosofia e

natildeo renegou em momento algum o peso de um ofiacutecio como este pelo contraacuterio coube-lhe fazecirc-

lo por diversas vezes e em distintos modos Mesmo quando seus ensaios e conferecircncias se

projetavam a um tema especiacutefico e natildeo a um autor a forte presenccedila de suas interpretaccedilotildees da

histoacuteria da filosofia eacute inegaacutevel Cabe ao propoacutesito desta tese realccedilar um exemplo que torne liacutecito

ilustrar uma fissura por onde seja possiacutevel se esgueirar ateacute a fonte da emanaccedilatildeo especulativa

acerca do sentido da histoacuteria da filosofia e do desenvolvimento do pensamento ocidental

sinocircnimos para o que conveacutem nomear metafiacutesica

36

Aos 13 de novembro de 1935 como sabem os leitores assiacuteduos de Heidegger foi

pronunciada uma conferecircncia preparada para a Kunstwissenschaftlichen Gesellschaft de

Freiburg im Breisgau7 Der Ursprung des Kunstwerkes se tornou de forma veloz e viral um

trabalho amplamente comentado no circuito acadecircmico em geral principalmente no campo da

esteacutetica filosoacutefica e teorias da arte O ponto de vista quase unacircnime dos receptores do trabalho

assentou na interpretaccedilatildeo do texto como uma tese a respeito da arte como ldquoposta em marcha da

verdade enquanto desvelamentordquo uma frase natildeo tatildeo simples de ser decifrada mas repetida

quase como uma foacutermula automaacutetica que se tornou rapidamente um emblemaacutetico clichecirc e uma

resposta imediata agrave pergunta pelo sentido da arte em Heidegger

A popular obra de Michael Inwood A Heidegger Dictionary (1999) destaca

enfaticamente o caraacuteter essencial da proposiccedilatildeo-chave quando pontua no mesmo sentido que

ldquoA obra de arte eacute mais bem um projeto que abre um mundo no qual escolhas podem ser feitas

A verdade a revelaccedilatildeo do lsquoserrsquo eacute o configurar em uma obra e configurar para obra iluminando

o mundo e a terra naquilo que neles perdurardquo (INWOOD 1999 18) Inwood ressalta a

proximidade encontrada por Heidegger entre o termo alematildeo ldquoproteger manterrdquo (bewahren) e

a proacutepria palavra ldquoverdaderdquo (Wahrheit) embora os termos natildeo necessariamente estejam

etimologicamente conectados Ele aponta para a ldquopreservaccedilatildeordquo como elemento pelo qual ldquoA

arte eacute o deixar-acontecer da chegada da verdade do ser enquanto talrdquo (IDEM IBIDEM) com especial

atenccedilatildeo para o proacuteprio fazer (ποίησις) da arte e particularmente da poesia Haacute contudo uma

seacuterie de consideraccedilotildees mais sutis a serem levadas em consideraccedilatildeo nas conferecircncias de

Heidegger proporcionando uma anaacutelise um pouco mais cuidadosa do que estaacute propriamente

em jogo quando Heidegger sobreleva a questatildeo da obra de arte

7 O mesmo trabalho sofreu novas releituras durante todo o ano de 1936 sendo reapresentado respectivamente na

Einladung der Studentenschaft der Universitaumlt em Zuumlrich durante o mecircs de janeiro e na Deutschen Hochstift em

Frankfurt am Main entre novembro e dezembro O ciclo de conferecircncias recebeu ediccedilotildees retrabalhadas em 1956 e

1960 publicadas pela Reclam de Stuttgart e sendo incluiacutedo em 1977 no tomo Holzwege da Gesamtausgabe

37

O editor do volume Holzwege Friedrich-Wilhelm von Hermann dedicou toda uma obra

agrave anaacutelise temaacutetica envolta naquele escrito publicando em 1980 o livro Heideggers Philosophie

der Kunst Em algumas de suas consideraccedilotildees mais amplas sobre as conferecircncias de Heidegger

Hermann atenta para o fato da questatildeo da obra de arte ser levantada a partir de um problema

desdobrado pela ontologia fundamental Hermann observa a problemaacutetica geral do escrito

desde o estabelecimento do ldquoserrdquo como ldquoacontecimentordquo (Ereignis) Conforme ele pondera

trata-se de um trabalho contemporacircneo aos Beitraumlge zur Philosophie (1936-38) Para Hermann

a questatildeo em torno ao ldquoserrdquo como ldquoacontecimentordquo (Ereignis) estende-se em Der Ursprung des

Kunstwerkes por meio de quatro outros problemas (1) o estabelecimento constitutivo da arte

(2) da obra de arte (3) da criaccedilatildeo artiacutestica e (4) da compreensatildeo da arte (cf HERMANN 2001 7)

Contudo circunscrita agrave conferecircncia sobre a arte estaacute a elaboraccedilatildeo da passagem da discussatildeo em

torno agrave verdade do ser para o ldquopensamento da histoacuteria do serrdquo (seinsgeschichtliches Denken)

Trata-se especificamente do momento de transiccedilatildeo do pensamento de Heidegger8 Em

linhas gerais Der Ursprung des Kunstwerkes ressalta uma preocupaccedilatildeo da lida do homem para

com a essecircncia da verdade mediante a obra de arte enquanto coisa Haacute toda uma histoacuteria dos

efeitos pertinentes agraves anaacutelises de Heidegger da obra de Vincent van Gogh9 aleacutem de inuacutemeras

teorizaccedilotildees em torno ao poder salvador da obra de arte Todavia salta aos olhos uma passagem

muito mais peculiar (para qual gostaria de chamar a atenccedilatildeo agora mesmo) qual seja aquela

na qual Heidegger aborda o problema da transposiccedilatildeo da experiecircncia fundamental grega para a

intepretaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo do pensamento romano-latino (cf HEIDEGGER 1977 7)

8 A perspectiva da ontologia fundamental de Sein und Zeit (1927) continuada no curso Grundprobleme der

Phaumlnomenologie ministrado em Marburg durante o semestre de veratildeo de 1927 receberia seu desenvolvimento

desde uma visatildeo historial-reflexiva jaacute na primavera de 1932 ocasiatildeo na qual conforme Hermann satildeo elaboradas

as primeiras linhas de Beitraumlge zur Philosophie redigido entre 1936 e 1938 mas publicado postumamente somente

em 1989 9 Em uma das mais famosas passagens de Der Ursprung des Kunstwerkes Heidegger interpreta os sapatos de um

dos quadros de Vincent van Gogh (natildeo identifica qual todavia) descortinando com isto o cotidiano campesino e

oferecendo uma leitura da realidade a partir de aiacute Uma criacutetica direta foi apresentada por Meyer Shapiro (em The

Still Life as a Personal Object ndash A Note on Heidegger and van Gogh 1968 e ainda em Further Notes on Heidegger

and van Gogh 1994) onde ele sustenta que os sapatos retratados por van Gogh natildeo satildeo de uma pessoa do campo

mas as botas do proacuteprio artista apontando com isto graves mal entendidos na interpretaccedilatildeo de Heidegger

38

Ainda no iniacutecio do escrito Heidegger busca a compreensatildeo mais geral da ldquocoisardquo

abordando como exemplo um bloco de granito A despeito de suas muacuteltiplas caracteriacutesticas ele

enfatiza o ldquoao redorrdquo (das herum sich) pelo qual suas propriedades se agrupam podendo entatildeo

falar de algo como um ldquonuacutecleordquo (Kern) da coisa Esse nuacutecleo de acordo com Heidegger

chamaram-lhe os gregos claacutessicos de ὑποκείμενον Embora ilustrativa a descriccedilatildeo eacute decerto

passiacutevel de baixo niacutevel de representaccedilatildeo posta sua exposiccedilatildeo pouco objetiva O termo eacute mesmo

tatildeo controverso quanto as proacuteprias ideias de ser e ente dentro da perspectiva grega Ela possui

uma carga conceitual talvez natildeo tatildeo difiacutecil de ser desvelada mas que tampouco garante exatidatildeo

e lucidez em sua abordagem variando de eacutepoca para eacutepoca de filoacutesofo para filoacutesofo de

interpretaccedilatildeo para interpretaccedilatildeo Ademais vaacuterias histoacuterias metaforizam o sentido do termo

ὑποκείμενον Uma das mais conhecidas (conto-a sem embasamento ou referecircncias quiccedilaacute

mesmo de maneira inapropriada) relata que certa vez um rei se espantara ao conhecer a obra de

um escultor haacutebil em reproduzir as formas da natureza em blocos de maacutermore Tamanha era a

destreza do artista que se postas lado a lado a escultura e a coisa mesma confundiam-se os

espectadores exceto pelo caraacuteter inanimado da escultura Intrigado o rei mandou chamar o

escultor e perguntou-lhe como fazia para reproduzir com tanta fidelidade o mundo em torno

Natildeo sabendo explicar senatildeo por meio da praacutetica pediu um bloco de maacutermore e agraves vistas do rei

reproduziu perfeitamente um cavalo em tamanho real faltando-lhe apenas galopar O rei lhe

questionou ldquoComo o fizesterdquo e respondeu o escultor ldquofaacutecil apenas retirei do bloco de

maacutermore o que natildeo era cavalordquo O ὑποκείμενον seria portanto aquele elemento sem o qual o

cavalo natildeo seria cavalo ou sem o qual uma coisa natildeo eacute uma coisa Contudo o grande problema

envolto nas tentativas de atingir um entendimento deste sentido por meio de um silogismo uma

loacutegica racional ou uma explicaccedilatildeo conceitual (e natildeo por uma metaacutefora ou estoacuteria) consiste na

dificuldade em elaborar uma equaccedilatildeo que exija menos esforccedilo do ouvinte capacitando uma

lucidez mais ampla e geral que a todos possa atingir

39

Toda definiccedilatildeo a partir de uma predicaccedilatildeo direta pode se configurar ainda mais obscura

e lanccedilar aquele que se propotildee a entender o conceito para um mero encadeamento e conexatildeo de

termos sem contudo realmente promover a experiecircncia do sentido da palavra Sem embargo o

Impeacuterio Romano foi a eacutegide da popularizaccedilatildeo e introspecccedilatildeo do mundo grego competindo-lhes

a tarefa de transpor ao modo latino de pensar os sentidos das meditaccedilotildees gregas Sobre isto

Heidegger ostenta uma posiccedilatildeo bastante firme e vale a pena destacar por completo o trecho no

qual se lhe pode observar sua atitude

Estas denominaccedilotildees natildeo eram meros nomes Em sua fala a experiecircncia fundamental

grega do ser do ente no sentido de sua presenccedila mostrava o que natildeo se podia mostrar

Por meio dessa disposiccedilatildeo instaura-se a interpretaccedilatildeo oficial da coisidade da coisa e

a interpretaccedilatildeo ocidental do ser do ente Comeccedila com a traduccedilatildeo das palavras gregas

para o pensamento romano-latino ὑποκείμενον torna-se subjectum ὑπόστασις torna-

se substantia συνβεβηκός torna-se accidens O processo desta traduccedilatildeo dos nomes

gregos para a liacutengua latina natildeo se daacute sem consequecircncias e nos dias de hoje toma-se

ainda a mesma compreensatildeo Antes pelo contraacuterio por detraacutes da traduccedilatildeo

aparentemente literal haacute um traslado da experiecircncia grega para outro modo de pensar

O pensamento romano assume para si as palavras gregas sem a devida

correspondecircncia com a experiecircncia originaacuteria do que dizem sem a palavra grega A

falta de fundamento do pensamento ocidental comeccedila com essas traduccedilotildees (IDEM

IBIDEM 7-8)

Responsabilizar o pensamento romano-latino pela queda do Ocidente no abismo da falta de

fundamento delega a Heidegger um encargo de peso formidaacutevel cujo maior perigo talvez seja

o de natildeo se ambientar aqui ou ali dentro deste ou daquele territoacuterio neste ou naquele lugar

mas na posiccedilatildeo do meio na esfera do entre no desenho do limite da linha da fronteira

40

A direccedilatildeo do pensamento de Heidegger a partir desta passagem claramente se constitui

desde uma divisatildeo da metafiacutesica ocidental em dois momentos muito distintos embora

interligados A emboscada se encontra na percepccedilatildeo de que todo e qualquer ocidental eacute jaacute

sempre forccedilado a se movimentar na esfera da ontologia latina ao passo que o retorno aos

fundamentos da ontologia grega eacute antes de tudo calcar terreno em solo incerto e regiatildeo

desconhecida Estabelecer uma ponte que permita ao ser humano contemporacircneo entender a

proveniecircncia de sua apreensatildeo da existecircncia eacute um roteiro deveras ousado Resta saber como eacute

possiacutevel ainda pensar os conceitos fundamentais da metafiacutesica dentro de sua propriedade sem

causaacute-los algum tipo de dano que faccedila seu sentido se perder ser obscurecido ou transviado

A partir da colocaccedilatildeo do problema da obra de arte enquanto coisa Heidegger questiona

o que enfim se compreende pelo termo mesmo ldquocoisardquo quando se compromete com a ideia de

tentar envolvecirc-lo conceitualmente (a partir de ὑποκείμενον ὑπόστασις e συνβεβηκός) e desde

aiacute extrair uma explicaccedilatildeo Sobre isto Hermann comenta ldquoComo podemos ver ainda mais e

melhor resolver o problema da obra de arte se torna um problema ontoloacutegico ndash isto eacute em

primeira instacircncia o problema ontoloacutegico do ser-res da resrdquo (HERMANN OP CIT 87) entenda-se

ainda o problema da coisidade da coisa Ele ainda complementa deixando ver a postura exigida

pela tarefa de entender a ontologia grega ldquoPortanto explicar o pensamento grego significa

antes de tudo revelar novamente a experiecircncia de estar no lugar em que se encontra a expressatildeo

de acordo com o fio condutor da palavra filosoacutefica gregardquo (IDEM IBIDEM 93-94) Sem embargo

conforme aponta Hermann (em coerecircncia com Heidegger) o ofiacutecio de introduzir a filosofia

grega (ou se introduzir na filosofia grega sua ontologia e berccedilo da metafiacutesica) constitui-se

desde o caminhar ao lado do fio condutor de sua expressatildeo e manifestaccedilatildeo A caminhada talvez

seja ela mesma o ldquoestar no lugar em que se encontra a expressatildeordquo ou o espaccedilo do ldquoentrerdquo a

ldquolinha de fronteirardquo

41

Algumas dezenas de leituras podem ser desdobradas desde a interpretaccedilatildeo de Heidegger

do lugar de transiccedilatildeo da histoacuteria do ser O itineraacuterio do pensamento de Heidegger legou aos

fieacuteis depositaacuterios de sua vasta caminhada a tarefa ingloacuteria de dar uma passo aleacutem Gostaria de

destacar aqui um direcionamento um pouco menos ousado nem por isto ingecircnuo Considerar

uma histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica em Heidegger eacute procurar pela fenda cuja passagem

encaminha diretamente ao salto no abismo da superaccedilatildeo da metafiacutesica embora natildeo fique ainda

claro o significado destes termos Ademais a intenccedilatildeo aqui eacute justamente esta esclarecer os

enlaces desse percurso histoacuterico nomeado sob o signo da metafiacutesica agrave luz da trajetoacuteria

interpretativa de Heidegger

Justamente sob o tiacutetulo Itineraacuterio do Pensamento de Heidegger (1965) Emmanuel

Carneiro Leatildeo apresenta sua traduccedilatildeo para o portuguecircs da Einfuumlhrung in die Metaphysik (1935)

de Heidegger ndash segundo ele nem de perto uma obra de faacutecil acesso Em primeiro lugar pela

impossibilidade geral de uma introduccedilatildeo em filosofia no sentido amplo Em outras palavras

natildeo haacute caminho de iniciaccedilatildeo agrave filosofia como se houvesse ainda um siacutetio no qual se a conquista

Haacute na verdade o puro levantar de questotildees responsaacuteveis por conduzir o pensamento para dentro

da proacutepria filosofia Carneiro Leatildeo elucida tal dificuldade quando especifica o tiacutetulo da obra

Introduzir agrave metafiacutesica eacute movimentar-lhe a questatildeo fundamental de maneira a

conduzi-la (-ducere) para dentro (-intro) das origens donde a metafiacutesica procede Um

esforccedilo de pensamento que nada tem de horizontal e progressivo Cujo movimento

se processa antes no sentido vertical e regressivo (CARNEIRO LEAtildeO 1999 10)

A filosofia busca o movimento imputado para originaacute-la para com isto retornar agraves suas origens

proacuteprias Em segundo lugar e natildeo menos importante a obra ainda guarda certa inacessibilidade

devido agrave intencional ambiguidade de um periacuteodo conturbado de transiccedilatildeo do pensamento de

Heidegger (tambeacutem evidenciado por Hermann)

42

Eacute preciso movimentar a questatildeo fundamental da metafiacutesica para conduzi-la para dentro

de suas origens Agora bem destacar a questatildeo fundamental eacute o primeiro passo de Heidegger

na obra quando questiona ldquoPorque haacute em geral o ente e natildeo antes nadardquo (HEIDEGGER 1983b

3) Um adendo eacute necessaacuterio ao leitor lusoacutefono Carneiro Leatildeo em sua traduccedilatildeo explica o

emprego do termo ldquoenterdquo para traduzir o alematildeo Seiendes justificando o uso da forma erudita

referida ao latim ens entis para salvaguardar o caraacuteter de tudo que eacute independentemente de

seu modo de ser (cf CARNEIRO LEAtildeO OP CIT 77 nota) Ponderando isto a leitura de Carneiro

Leatildeo segue um rumo bastante simples e esclarecedor ele afirma

O homem natildeo pode existir senatildeo em comeacutercio e comunhatildeo com o mundo dos entes

Ente significa tudo que de algum modo eacute o homem as coisas os acontecimentos ateacute

mesmo o Nada enquanto eacute um Nada ieacute enquanto tem um significado () (IDEM IBIDEM

11)

A forccedila responsaacutevel por manter a decisatildeo a respeito dos entes depende diretamente da

capacidade de enxergar suas distinccedilotildees Em um compecircndio unitaacuterio a base de sustentaccedilatildeo no

comeacutercio com os entes se daacute na e pela linguagem mediante a qual o homem simplesmente

afirma eacute Uma afirmaccedilatildeo aparentemente simples guarda contudo uma relaccedilatildeo complexa e

ambiacutegua talvez mesmo em decorrecircncia de sua extrema simplicidade

A existecircncia humana se agita dentro da tensatildeo entre imanecircncia e transcendecircncia

porque o homem existe enquanto in-siste no domiacutenio da Verdade do Ser ieacute a

vicissitude instaurada pela diferenccedila irredutiacutevel e referecircncia necessaacuteria entre ente e

ser A tarefa do pensamento natildeo eacute procurar sair decircsse ciacuterculo de diferenccedila e referecircncia

e sim necircle ingressar de maneira a poder regressar ateacute a fonte originaacuteria de sua tensatildeo

e unidade (ID IBID 15)

43

O atino para o ingresso ao interior da tarefa do pensamento deixa bastante evidente a intitulaccedilatildeo

da obra Eacute possiacutevel conceber a empreitada em regressar ao fundamento desde o qual a metafiacutesica

eacute ela mesma a proveniecircncia da tensatildeo em torno agrave unidade da existecircncia perante a multiplicidade

Eacute preciso destarte compreender que ldquoSoacute poderemos entender os pensamentos os conceitos

ou as explicaccedilotildees dados na medida em que nos ex-pusermos e dis-pusermos aquilo que se pensa

que se concebe ou que se explicardquo (ID IBID 29) acompanhando assim os passos de Heidegger

e verificando sua coerecircncia teoacuterica de levar colocar e se pocircr no estado da questatildeo

Esta mesma ambivalecircncia eacute tambeacutem destacada por Heidegger quando ele se refere ao

ambiacuteguo das formas essenciais do espiacuterito Natildeo se trata portanto de uma dedicaccedilatildeo integral agraves

possibilidades de captar de maneira exclusivamente formal os procedimentos que envolvem os

estudos mas de perceber (αἴσθησις) e experienciar os fenocircmenos Heidegger adverte ainda

Tomada na totalidade de seu sentido mais cru a filosofia sempre lida com o

fundamento do ente de tal maneira que o proacuteprio ser humano tem enfaticamente a

experiecircncia de seu significado e propoacutesito Por isto agora se vislumbra facilmente a

amplitude da filosofia que poderia e deveria proporcionar o fundamento da existecircncia

da eacutepoca histoacuterica atual e futura pela qual se estabelece a cultura Com tais

espectativas e demandas o estado e a essecircncia da filosofia satildeo sobrecarregadas Na

maior parte das vezes essa demanda excessiva se mostra pela forma de uma censura

da filosofia Diz-se por exemplo porque a metafiacutesica natildeo participou na preparaccedilatildeo

para a revoluccedilatildeo ela deve ser rejeitada Isto eacute tatildeo espirituoso quanto dizer que porque

vocecirc natildeo pode voar com um tocircrno portanto este deve ser abandonado A filosofia

natildeo provecirc diretamente forccedilas nem modos de accedilatildeo e criaccedilatildeo para ajeitar a condiccedilatildeo

histoacuterica simplesmente pelo motivo de dizer respeito apenas a poucos Quais poucos

Aqueles que transformam criativamente convertendo os fins Afetando uma vastidatildeo

apenas indiretamente e nunca fazendo rodeios ateacute certo ponto onde finalmente desde

o longo esquecimento da filosofia degenera-se como autocompreensatildeo da existecircncia

(HEIDEGGER OP CIT 12)

44

Heidegger aponta certa responsabilidade da filosofia na formaccedilatildeo da cultura e direcionamento

da eacutepoca presente e futura A chamada ldquoessencializaccedilatildeo da filosofiardquo eacute em grande parte

responsaacutevel pela tomada de rumo e pela constituiccedilatildeo da histoacuteria ateacute mesmo por seu abandono

Agrave ela estaacute diretamente conectada a ldquoessencializaccedilatildeo do serrdquo e maneira pela qual a filosofia se

apresenta como contemplaccedilatildeo dos fundamentos do ente

Heidegger explica em pormenores a diferenccedila entre ser e ente quando expotildee a gramaacutetica

e etimologia da palavra Certa advertecircncia contudo clama a petrificaccedilatildeo das normas

gramaticais ocas e vazias destituindo a Escola do Mundo do Espiacuterito que circunda a

morfologia dos termos e se restringindo tatildeo somente agrave transmissatildeo de regras do uso da palavra

Neste sentido a maneira pela qual se ostenta a ldquogrande gramaacuteticardquo eacute em si mesma o processo

de substantivaccedilatildeo do Ocidente visto como o cerrar das fronteiras como delimitaccedilatildeo

Tambeacutem em Einfuumlhrung in die Metaphysik Heidegger insiste no argumento exprimido

em Der Ursprung des Kunstwerkes seguindo o fluxo comentado acima quando afirma outra

vez ldquoQue essas formas gramaticais natildeo dissecaram desde toda eternidade uma linguagem

absoluta enquanto controle elas satildeo de fato erigidas de uma particular interpretaccedilatildeo da liacutengua

grega pela liacutengua latinardquo (ID IBID 56) Em outras palavras a linguagem possibilita sendo ela

tambeacutem um ente manipulaccedilatildeo e controle por sobre suas formas Por este motivo eacute possiacutevel

transmitir o conhecimento de uma liacutengua estrangeira somente com o ensino da gramaacutetica

mesmo para pessoas que nunca realmente entraram em contato com essa determinada liacutengua

Ou ainda aprender um idioma antigo natildeo mais utilizado ou cujo vigor ou esplendor se apagou

como o latim o grego claacutessico ou o sacircnscrito antigo sem ter a possibilidade de experenciaacute-los

no cotidiano O domiacutenio teoacuterico de uma liacutengua pode permitir ainda intuiccedilotildees e analogias a

respeito da experiecircncia que esta liacutengua provocava em seus falantes originais sem contudo

garantir exatidatildeo das disposiccedilotildees ou estados de acircnimo referidos pelos termos

45

Dentro da gramaacutetica e morfologia do ser Heidegger evidencia que existe um duplo

sentido para a palavra dentro de seu entendimento como consistecircncia (Staumlndigkeit) qual seja

a) o estar em si mesmo enquanto proveniente de si mesmo e b) o que perdura constantemente

enquanto tal Consistecircncia eacute a palavra-chave de sua leitura do termo ser dentro da circunvisatildeo

grega claacutessica Heidegger aponta que justamente por isso o natildeo-ser denota a desistecircncia ou a

saiacuteda da existecircncia ou ainda o abrir matildeo do ldquosalto para aleacutemrdquo Jaacute a etimologia da palavra ser

revela como os sentidos manifestos pela gramaacutetica e morfologia foram confundidos

historicamente Heidegger expotildee trecircs raiacutezes do termo uma sacircnscrita (es asus) outra indo-

germacircnica (bhuuml) e uma apenas germacircnica (sein) Conforme suas interpretaccedilotildees elas se

desdobram respectivamente em um sentido de ldquoviverrdquo ldquosurgirrdquo e ldquopermanecerrdquo Tratam-se de

verbos distintos todavia Heidegger natildeo citas as fontes das quais ele extrai tais etimologias

Ateacute onde eacute possiacutevel investigar o termo sacircnscrito mais proacuteximo ao que ele considera es

asus seria asti (अनतत) cuja raiz ās (आस) possui incontaacuteveis significados dentre os quais ldquoexistirrdquo

ldquoestar presenterdquo ldquopermanecerrdquo entre vaacuterios outros Aparentemente eacute a origem do indo-europeu

es cujo similar em grego seria o morfema ἐστί e em latim esse (sobremaneira visiacutevel no

portuguecircs estar) Jaacute a palavra bhuuml provavelmente indicada por Heidegger como ldquoindo-

germacircnicardquo em consequecircncia da formataccedilatildeo do verbo ser como ldquobinrdquo ldquobistrdquo (ou ainda ist e em

inglecircs ldquoisrdquo) eacute tambeacutem ela sacircnscrita (bhū भ) e estaacute presente em vaacuterias outras liacutenguas indo-

europeias (como no inglecircs being) Seu significado mais geral seria ldquoserrdquo ou ldquoexistirrdquo embora

aponte tambeacutem para ldquoacontecerrdquo ou ldquoperceberrdquo aleacutem de outros sentidos Sein tambeacutem pode ser

rastreado ateacute certo ponto em sua origem germacircnica no mittelhochdeutsch sīn e no

althochdeutsch wesan derivado da raiz sacircnscrita ves (वस) que daria as formas de Wesen

(essecircncia) ou (war o preteacuterito de Sein ser) em alematildeo De qualquer forma a questatildeo leva

imediatamente ao que Heidegger chama de ldquoessencializaccedilatildeo do serrdquo O motivo eacute simples viver

surgir e permanecer satildeo manifestaccedilotildees que interpelam o ser humano inevitavelmente

46

Contudo o ser ao interpelar o humano natildeo se manifesta antes se oculta esconde sua

proveniecircncia mostra-se ambiacuteguo e pela metade A forma de manifestaccedilatildeo do ser passiacutevel de

ser apreendida como uma realidade existente daacute-se por meio de sua participaccedilatildeo na realidade

presente qual seja ente (seu particiacutepio presente) A predileccedilatildeo pelo ente nasceria justamente

de seu caraacuteter manipulaacutevel embora haja uma conclusatildeo que clama as variaccedilotildees da palavra ser

e seu comportamento com respeito ao ldquoser em si mesmordquo evocado de modo distinto de outros

substantivos e verbos com relaccedilatildeo aos seus respectivos entes A eleiccedilatildeo de uma manifestaccedilatildeo

do ser diz muito sobre o modo relacional do humano com a conduccedilatildeo de sua existecircncia10

Alguns anos antes da composiccedilatildeo da Einfuumlhrung em um compecircndio posteriormente

publicado sob o tiacutetulo Sein und Wahrheit (1933-34) Heidegger se aproximou sistematicamente

da constituiccedilatildeo histoacuterica da metafiacutesica A obra eacute todavia pouco comentada O motivo eacute simples

haacute certo complexo ou trauma envolto na abordagem de um texto do periacuteodo da ascensatildeo do

Partido Nazi e do consentimento ao seu propoacutesito inicial Embora haja certos traccedilos de sintonia

com o discurso do momento pelo qual o povo alematildeo atravessava natildeo haacute nenhum resquiacutecio em

Heidegger dos preconceitos intriacutensecos ao desenrolar do totalitarismo Dentro do ambiente

promissoramente inovador Heidegger escreve ldquoToda gestatildeo essencial se vivifica desde uma

grande determinaccedilatildeo oculta no fundamentordquo (ID 2001 3) As palavras de Heidegger parecem

indicar antes de uma referecircncia ao destino da Alemanha o fato de que a questatildeo fundamental

estaacute contida no proacuteprio fundamento Por este motivo Heidegger ainda sugere um ldquo() caminho

histoacuterico na essecircncia da filosofia ndash e natildeo se poderia ter outro e isto justamente porque a filosofia

eacute ela mesma o acontecimento fundamental da histoacuteria da existecircnciardquo (ID IBIDEM 17) Resta

saber portanto como esse acontecimento fundamental se constitui como metafiacutesica

10 Heidegger justifica este ponto na sua apresentaccedilatildeo do conceito de Cura Sorgen em Sein und Zeit que embora

seja de suma importacircncia uma explanaccedilatildeo mais cuidadosa tomaria aqui e agora demasiado tempo mas que

precisa ao menos ser mencionada Seria esta caracteriacutestica originaacuteria do ser humano Cura Cuidado (Sorgen)

aquilo que o impulsionaria a preservar sua condiccedilatildeo evitando a queda nos abismos existenciais e a confusatildeo

generalizada (cf HEIDEGGER OP CIT 196-200)

47

Quando a tarefa eacute compreender a histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica realizada por Heidegger

insisto nunca eacute demasiada repeticcedilatildeo retomar as primeiras linhas de Sein und Zeit Vale lembrar

uma vez mais a disputa titacircnica a respeito da essecircncia (γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας) que

envolve os questionamentos aparentemente desprestigiados da metafiacutesica Conforme Heidegger

a maneira pela qual o problema perdurou sofreu alteraccedilotildees de Platatildeo e Aristoacuteteles ateacute sua

formulaccedilatildeo mais sofisticada na Wissenschaft der Logik (1812-16) de Georg W F Hegel Em

Sein und Wahrheit eacute tambeacutem a discussatildeo com Hegel que orienta a anaacutelise da metafiacutesica

tradicional Ateacute alcanccedilar Hegel entretanto Heidegger se preocupa em delinear as feiccedilotildees da

perda de sentido da μετὰ τὰ φυσικά aristoteacutelica na recepccedilatildeo tardia de seus escritos onde

ldquoGrandeza e iacutempeto desaparecem tanto na singularidade do questionamento criativo quanto na

designaccedilatildeo conceitual a praccedila desocupada daacute lugar agrave atividade de uma escola ndash somente

sobraram palavras e conceitos mas natildeo o poder estimulante da coisardquo (ID IBID 21)

Para Heidegger a unificaccedilatildeo do termo grego na palavra latina metaphysica natildeo eacute

acompanhada somente de uma correspondecircncia senatildeo ao mesmo tempo de uma mudanccedila em

seu significado Inerente agrave transformaccedilatildeo de seu sentido estaacute a apropriaccedilatildeo cristatilde do conceito

imputando um conhecimento suprassensiacutevel (trans physicam) de maior grau de importacircncia e

relevacircncia e diretamente relacionado ao divino Onde antes havia perplexidade na aspiraccedilatildeo agrave

sapiecircncia e observaccedilatildeo da realidade haacute agora um conhecimento humano elevado e suscetiacutevel agrave

confirmaccedilatildeo pela ciecircncia superior Heidegger visa e cita textualmente a formulaccedilatildeo de

Immanuel Kant da metafiacutesica como a ultrapassagem de todos os objetos empiacutericos a fim de

alcanccedilar um conhecimento viaacutevel e puro ou a superaccedilatildeo do conhecimento sensiacutevel pelo

conhecimento suprassensiacutevel11

11 Embora esta premissa esteja presente jaacute na Kritik der reinen Vernunft e em certa medida em suas especulaccedilotildees

preacute-criacuteticas atingindo ainda todos os escritos intercalados agraves duas outras criacuteticas e ainda os posteriores ele parece

se referir agraves conferecircncias de Kant reunidas por Karl Heinrich Ludwig Poumllitz publicadas em Vorlesungen Kants

uumlber Metaphysik aus drei Semestern Max Heine (org) Leipzig Hirzel 1984 (natildeo tenho certeza disto entretanto)

48

Haacute ainda a absorccedilatildeo do direito agrave verdade metafiacutesica pela ontologia claacutessica e neste

sentido Heidegger cita Alexander Baumgarten onde a verdade metafiacutesica eacute o princiacutepio

universal e fundamental em conveniecircncia agrave determinaccedilatildeo do ente enquanto tal Deste modo

conclui que a metafiacutesica se constitui como uma determinaccedilatildeo cristatilde e ideia matemaacutetico-

metoacutedica de fundamentaccedilatildeo nos sistemas metafiacutesicos da modernidade onde ela se apresenta

como conhecimento do ente em seu todo Hegel ocuparia neste sentido o lugar da consumaccedilatildeo

da plenitude da filosofia ocidental na metafiacutesica destacado o caraacuteter teoloacutegico no qual a medida

do saber eacute o ldquoinfinitordquo (perfectum) manifesto enquanto identidade absoluta (perfectissimus)

ou espiacuterito absoluto Por este motivo ao que parece quando se refere agrave histoacuteria da disputa

titacircnica sobre a essecircncia em Sein und Zeit Heidegger aponta a Wissenschaft der Logik de Hegel

como ponto de chegada Ali a loacutegica eacute entendida como ciecircncia do pensamento todavia natildeo

como ciecircncia responsaacutevel por regular o pensamento mas como fundamento do conceito e em

uacuteltima instacircncia fundamento do ente em si mesmo Heidegger explica dizendo que em Hegel

ldquoA metafiacutesica como ciecircncia do ser do ente eacute lsquoLoacutegicarsquo e esta Loacutegica eacute Loacutegica lsquodorsquo Absoluto isto

eacute de Deus Genitivo deliberadamente ambiacuteguo Natildeo apenas um genitivus objectivus Deus

representado mas sim genitivus subjectivus a essecircncia de deus como presenccedila do Espiacuterito

Absolutordquo (ID IBID 76) Em um momento final da exposiccedilatildeo da questatildeo fundamental da

filosofia Heidegger faz uma divisatildeo entre a filosofia ocidental em seu princiacutepio e em seu fim

escrevendo que

No princiacutepio a mais profunda necessidade era o questionamento na luta com os

poderes incontrolaacuteveis da verdade e da decepccedilatildeo A filosofia causava o mais alto

poder clarificante da naccedilatildeo e de sua existecircncia Riqueza de decisatildeo momento de

decisatildeo No fim alta bem-aventuranccedila na suspensatildeo das contradiccedilotildees fraqueza de

meros conceitos opostos fracasso e morte de todo questionamento Eternidade vazia

cheia de indecisotildees (ID IBID 77)

49

A eternidade vazia cheia de indecisotildees todavia natildeo soa aqui como algo proveniente de um

descontentamento Pelo contraacuterio emerge desde a simples oposiccedilatildeo de conceitos com o fito de

suspender contradiccedilotildees e evidenciar uma maacutexima clareza e nitidez com o intuito de um suposto

pleno contentamento como se a profunda necessidade de questionamento houvesse sido calada

pela extrema emergecircncia de soluccedilatildeo Um abismo entre a filosofia ocidental em seu princiacutepio e

em seu fim eacute diagnosticado de maneira direta e evidente Longe de apontar culpados ou

referendar uma condenaccedilatildeo agrave metafiacutesica claacutessica Heidegger explica o processo intriacutenseco de

explicaccedilatildeo e complicaccedilatildeo da metafiacutesica evidenciando fatualmente a transiccedilatildeo do pensamento

da histoacuteria do ser da ontologia grega agrave latina A distacircncia que provecirc de clareza a anaacutelise eacute todavia

bastante tendenciosa aos propoacutesitos da ontologia fundamental A maneira pela qual a proacutepria

ontologia se protege com uma complexidade de conceitos dificulta a visualizaccedilatildeo do percurso

histoacuterico e da explanaccedilatildeo esclarecedora

Vale portanto retomar alguns aspectos relevantes embora por vezes sutis da pesquisa

acerca da ontologia na metafiacutesica claacutessica Gostaria de propor um breve desvio que agrave primeira

vista pareceraacute desnecessaacuterio contudo configura-se como extremamente pertinente ao

propoacutesito do capiacutetulo Atualmente as pesquisas voltadas ao estudo da ontologia se restringem

ou bem ao estudo histoacuterico ou bem agraves repercussotildees da metafiacutesica na filosofia contemporacircnea

Via de regra servem de embasamento para questotildees projetadas aos assuntos pertinentes da

eacutepoca vigente A ontologia se torna assim uma ldquoaacuterea da filosofiardquo uma ldquodisciplinardquo ou mesmo

um tronco braccedilo ou ramificaccedilatildeo dos estudos filosoacuteficos Os pesquisadores responsaacuteveis por

esta aacuterea da filosofia desdobram prolegocircmenos e comentaacuterios explicativos aos textos claacutessicos

fundamentando muacuteltiplas outras aacutereas Poucas vezes eacute possiacutevel observar um trabalho sobre

ontologia que realmente conecte seu sentido primaacuterio aos problemas apresentados nos dias de

hoje todavia escavando com devoccedilatildeo algumas pesquisas emergem sobremaneira conexas

50

A ontologia parece ser mesmo ldquoutilizadardquo como ponte para abrir novos caminhos como

por exemplo as discussotildees histoacutericas na anaacutelise do desenvolvimento da cultura as

investigaccedilotildees epistemoloacutegicas na confrontaccedilatildeo das possibilidades de conhecimento as

consideraccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas na constituiccedilatildeo dos haacutebitos e costumes da relaccedilatildeo do ser humano

com as virtudes deveres e utilidades os juiacutezos esteacuteticos na relaccedilatildeo com a obra de arte ou

mesmo as bases psicanaliacuteticas do entendimento do proacuteprio humano e sua relaccedilatildeo com as coisas

e o mundo entorno

Um dos exemplos mais niacutetidos de um pensamento comprometido em discutir a

ontologia por si mesma observando a maneira pela qual as categorias ontoloacutegicas dispotildeem

ainda hoje os modos de estruturar a realidade talvez se apresente nas recentes discussotildees em

torno ao ldquodigitalrdquo e ao ldquovirtualrdquo ou as propostas de uma ldquoontologia digitalrdquo Ouvi falar pela

primeira vez sobre ldquoontologia digitalrdquo por meio de Rafael Capurro em 2009 durante o III

Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica realizado em Natal na Universidade Federal do Rio

Grande do Norte12 Ateacute entatildeo possuiacutea minhas proacuteprias teorias acerca do mundo digital e da

esfera virtual da internet todavia natildeo tinha sequer noccedilatildeo da envergadura do problema e da

maneira pela qual o assunto podia ser pensado desde uma perspectiva ontoloacutegica e natildeo

meramente poliacutetico-ativista ou mesmo teoacuterico-juriacutedica Embora este natildeo seja propriamente o

assunto do capiacutetulo gostaria de abordar o tema como forma de justificar o questionamento pela

ontologia claacutessica para aleacutem da mera constataccedilatildeo historiograacutefica Conforme pude acompanhar

a inquietaccedilatildeo que move os trabalhos se concentra na crenccedila segundo a qual todos os fenocircmenos

podem ser analisados construiacutedos e manipulados sob a condiccedilatildeo de poderem ser digitalizados

12 A discussatildeo de Capurro havia comeccedilado com uma troca de e-mails com Michael Eldred A conversa redundou

em primeira matildeo nos trabalhos de Capurro intitulados Entwurf einer digitalen Ontologie (1999) e Beitraumlge zu

einer digitalen Ontologie (1999) sendo estendida em ulteriores escritos como Interpreting the digital human

(2008) e Einfuumlhrung in die digitale Ontologie (2009) aleacutem do livro publicado por Eldred The Digital Cast of

Being (2009) Provavelmente a discussatildeo ainda prossegue e outros trabalhos foram ou estatildeo sendo publicados

51

Talvez como um chiste mas bastante pertinente e veriacutedico Capurro afirma que

atualmente se algueacutem natildeo estaacute na rede eacute como se natildeo existisse Dando impulso para uma

formulaccedilatildeo inusitada esse est computari em analogia agrave famosa foacutermula de George Berkeley

(esse est percipi) A conclusatildeo bastante perspicaz extraiacuteda por Capurro eacute a de que seria correto

dizer que hoje vemos a realidade no horizonte de sua digitabilidade Uma seacuterie de outros termos

e expressotildees natildeo-convencionais emergem do texto de Capurro como ldquoem tudo que eacute puramente

virtual as coisas consistem essencialmente em bitsrdquo ou a denominaccedilatildeo ldquopitagorismo digitalrdquo

Entretanto todas as definiccedilotildees e determinaccedilotildees estatildeo conectadas ao arcano questionamento em

torno ao ente

O que eacute o ente Esta pergunta fundamental da metafiacutesica natildeo pode ter uma resposta

definitiva a partir da perspectiva de um conhecimento finito sem cair na ilusatildeo

essencialista Isto tem consequecircncias para a problemaacutetica de como pensar uma cultura

digital Uma ontologia digital eacute uma interpretaccedilatildeo possiacutevel do ser dos entes vistos

desde sua digitabilidade No entanto tal ontologia corre sempre o perigo de

transformar-se em uma metafiacutesica digital no momento em que acredita ser a

verdadeira ou uacutenica resposta agrave pergunta pelo ser A ontologia digital eacute uma possiacutevel

compreensatildeo do ser por parte do conhecimento humano finito Todas as regiotildees ou

esferas dos entes satildeo concebidas entatildeo como digitais (CAPURRO 2009 322)

A introduccedilatildeo da digitabilidade para aleacutem da anaacutelise do ldquoserrdquo quantificado pela ciecircncia moderna

confere uma perspectiva nova de experimentaccedilatildeo do ente em sua totalidade Chama atenccedilatildeo o

perigo envolto na transformaccedilatildeo em uma ldquometafiacutesica digitalrdquo na qual uma virada ontocecircntrica

concentraria o poder da verdade enquanto julgamento como oriente agrave pergunta pelo ldquoserrdquo

Talvez o mais importante da anaacutelise de Capurro consista justamente na renovaccedilatildeo desta criacutetica

na qual se chama atenccedilatildeo para a imprecisatildeo especulativa por meio da indefiniccedilatildeo do virtual

52

Natildeo eacute difiacutecil perceber que o mundo digital oferece uma vasta gama de temas e

possibilidades de se pensar filosoficamente sob as mais diversas perspectivas Natildeo haacute grande

espanto na busca dos filoacutesofos por reflexotildees em torno aos acontecimentos revolucionaacuterios dos

veiacuteculos de informaccedilatildeo e tecnologias em geral no seacuteculo vinte-e-um Contudo admiraacutevel eacute

encontrar o caminho oposto o momento no qual desenvolvedores da ciecircncia e da teacutecnica

buscam a filosofia para fundamentar seus trabalhos Eacute caso dos estudos realizados por Peter

Oslashhrstroslashm Henrik Schaumlrfe e Sara L Uckelman cujos resultados foram publicados nos anais da

International Conference on Conceptual Structures um evento dedicado agrave ciecircncia da

computaccedilatildeo Os trecircs investigadores fundamentam desde a ontologia moderna claacutessica a

concepccedilatildeo de hipertexto um conceito fundamental da computaccedilatildeo13 Para Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e

Uckelman o nascimento do termo ldquoontologiardquo representa o estabelecimento de um hipertexto

sobre a realidade e a temporalidade em pleno seacuteculo dezessete Os pesquisadores se referem

especificamente a Jacob Lorhard autor dos oito volumes intitulados Ogdoas Scholastica (1606)

responsaacutevel por cunhar o termo ldquoontologiardquo pela primeira vez na histoacuteria

Lorhard compocircs sua Ogdoas como uma gramaacutetica para o ensino escolar por meio de

aacutervores diagramaticais A teacutecnica utilizada por Lorhard foi profundamente influenciada por

Petrus Ramus (Pierre de la Rameacutee) cujo objetivo era transformar a razatildeo dialeacutetica em um

meacutetodo de loacutegica pedagoacutegica Petrus Ramus foi uma figura controversa e polecircmica Aleacutem de

suas interpretaccedilotildees pouco ortodoxas de Aristoacuteteles Ramus defendia uma completa reforma no

sistema educacional Ele fomentava o espiacuterito humanista pelo qual procurava devolver agrave

retoacuterica sua posiccedilatildeo proeminente visando desautorizar o peso da loacutegica escolaacutestica14

13 A ideia de hipertexto eacute bastante antiga todavia o termo no sentido moderno foi cunhado por Ted Nelson em

1965 para descrever o sistema de escrita natildeo-sequencial que envolvia o ligamento entre textos distintos em uma

mesma interface na internet O sistema de hyperlinks em um siacutetio da internet eacute um exemplo bastante simples de

um hipertexto 14 Cf Petrus Ramus Sa Vie Ses Eacutecrits et Ses Opinions Charles Waddington (ed) Paris Librairie de Ch Meyrteis

1855 Acerca das singularidades de Petrus Ramus confira Laura Adriaacuten Lara ldquoPetrus Ramus y el ocaso de la

retoacuterica ciacutevicardquo Utopiacutea y Praxis Latinoamericana v 13 n 43 (out-dez 2008) 11-31 e ainda Frank P Graves

Petrus Ramus and the Educational Reformation of Sixteenth Century New York Macmillan 1912

53

Havia um profundo espiacuterito anti-escolaacutestico que movia os interesses de Ramus

enfatizando uma postura radical na qual a filosofia ramista considerava falsa todas as

afirmaccedilotildees de Aristoacuteteles Para facilitar o processo de aprendizagem pelo qual o domiacutenio das

ciecircncias e artes liberais pode ser alcanccedilado Ramus emprega seus ldquoesquemas visuais abstratosrdquo

Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman se referem aos esquemas de Ramus como base para a aacutervore

diagramatical de Jacob Lorhard ndash para os pesquisadores este tipo de diagrama eacute o berccedilo de

todo futuro hipertexto

Eacute faacutecil observar que a estrutura da Ogdoas Scholastica de Jacob Lorhard permite ao

leitor localizar conceitos especiacuteficos e suas respectivas definiccedilotildees por meio de uma rede de

interconexotildees na forma de diagramas A ldquoaacutervorerdquo facilita natildeo soacute a compreensatildeo dos conceitos

como tambeacutem a maneira pela qual eles se relacionam uns com os outros Sem embargo trata-

se de uma gramaacutetica pela qual o domiacutenio de conceitos fundamentais da metafiacutesica se torna

bastante simples concordando em absoluto com a demanda da eacutepoca em introduzir este tipo de

estudo nos niacuteveis baacutesicos de ensino Com obras como as de Lorhard a exigecircncia do estudo da

ontologia foi difundida durante o seacuteculo dezoito como parte essencial da formaccedilatildeo acadecircmica

baacutesica15 Aleacutem disto a Ogdoas ainda sustentava a eacutegide da clarificaccedilatildeo da ontologia como base

para todo ulterior desenvolvimento intelectual Em outros termos Lorhard (assim como Ramus)

acreditava que natildeo era possiacutevel esclarecer nenhuma ciecircncia se natildeo houvesse de antematildeo uma

lucidez absoluta a respeito dos fundamentos do ente que poderia ser proporcionada apenas pelo

estudo por ele nomeado ldquoontologiardquo um discurso que buscava um pleno esclarecimento dos

termos empregados para definir todo e qualquer ulterior passo tomado tanto nas ciecircncias do

espiacuterito quanto nas ciecircncias da natureza

15 Muito disto deve-se ao filoacutesofo norueguecircs Jens Kraft cuja obra (influenciada em larga escala pela Metaphysica

sive Ontologia de Christian Wolff) reforccedilou o peso dos estudos em ontologia Dentro da compreensatildeo de Kraft

compartilhada tambeacutem por Lorhard e outros a ontologia ganha um lugar privilegiado como unificaccedilatildeo sistemaacutetica

das estruturas do pensamento como um todo

54

O oitavo livro da Ogdoas de Lorhard que encerra o compecircndio e eacute dedicado agrave ontologia

no sentido de unificar todos os escritos anteriores define a metafiacutesica como ldquo() o

conhecimento de um inteligiacutevel enquanto inteligiacutevel ()rdquo (LORHARD sd 3) Este conhecimento

eacute divido entre conhecimento dos particulares e dos universais Para Lorhard a parte da

metafiacutesica responsaacutevel pelo conhecimento dos particulares ou bem se refere acirc substacircncia

pertinente aos seres natildeo-complexos que subsistem em si mesmos (sejam eles criados ou natildeo)

ou bem aos acidentes

Jaacute o conhecimento dos universais se refere a tudo o que eacute inteligiacutevel redundando nos

atributos gerais ou nas distribuiccedilotildees conforme as quais o λόγος eacute entendido como um inteligiacutevel

As distribuiccedilotildees dizem respeito ao nada por um lado ou a algo por outro sendo este uacuteltimo

em seu aspecto positivo o que envolve as ideias de ldquoessecircnciardquo e ldquoenterdquo As noccedilotildees de ldquoessecircnciardquo

e ldquoenterdquo satildeo centrais natildeo apenas para o sistema de Lorhard mas tambeacutem para todas as

subsequentes compreensotildees da ontologia Em uma primeira definiccedilatildeo Lorhard observa a

ldquoessecircnciardquo em sua relaccedilatildeo com o λόγος definindo que ldquoEssecircncia eacute algo produtivo pelo qual o

Ser eacute o que eacute Esta palavra estrangeira eacute chamada pelos Escolaacutesticos de Entidade ou quidditasrdquo

(IDEM IBIDEM 4) Em segundo lugar considera a ldquoessecircnciardquo em relaccedilatildeo a sua distribuiccedilatildeo na

qual ela eacute ou bem ldquorealrdquo (ou seja uma atualizaccedilatildeorealizaccedilatildeo do ser) ou bem ldquoimaginaacuteriardquo (no

caso de um ser puramente racional) Ambas podem ser ldquosimplesrdquo ou ldquocompostasrdquo ldquoabsolutasrdquo

ou ldquorespectivasrdquo ldquouniversaisrdquo ou ldquosingularesrdquo Dentro do uacuteltimo destes casos a ldquoessecircnciardquo

pode ser ainda ldquogeneacutericardquo (ou um gecircnero compartilhado por outras espeacutecies) ou ldquoespeciacuteficardquo

(relativa a uma uacutenica espeacutecie) Natildeo haacute grande espanto nos pontos apresentados ateacute entatildeo por

Lorhard O que haacute na verdade eacute uma constituiccedilatildeo sistemaacutetica de um diaacutelogo que estava sendo

travado jaacute haacute muito tempo e sobremaneira evidente no periacuteodo no qual ele compocircs sua obra

Suas contribuiccedilotildees mais significantes talvez se deem na seccedilatildeo seguinte quando aborda a

questatildeo do ldquoenterdquo

55

Lorhard tambeacutem considera o ldquoenterdquo no discurso unificador bem como na questatildeo da

ldquoessecircnciardquo afirmando dele algo produtivo ldquodotado de certa essecircnciardquo Em seu caraacuteter

distributivo o ldquoenterdquo (assim como a ldquoessecircnciardquo) eacute ou bem ldquorealrdquo ou bem ldquoracionalrdquo Ele define

o ldquoente de razatildeo ou racionalrdquo afirmando que ldquoEacute um ente de razatildeo que eacute tocado pela cogitaccedilatildeo

de uma mente singular de acordo com o modo real do ente agrave parte disto eacute nada Eacute tambeacutem

chamado ente fictiacutecio e imaginaacuteriordquo (ID IBID 5) Jaacute o ldquoente realrdquo pode se dar por meio do

discurso (λόγος) de sua proacutepria essecircncia ou ainda ser distribuiacutedo em entes primaacuterios e

secundaacuterios (estes uacuteltimos decorrentes dos primeiros) sendo ambos ldquosimplesrdquo ou ldquocomplexosrdquo

ldquoabsolutosrdquo ou ldquorespectivosrdquo ldquouniversaisrdquo ou ldquoparticularesrdquo ldquoimateriaisrdquo ou ldquomateriaisrdquo

ldquopermanentesrdquo ou ldquosucessivosrdquo

Toda a divisatildeo da ontologia de Lorhard acompanha em muitos aspectos a ontologia

derivada da filosofia grega claacutessica desde o processo dialeacutetico de questionamento da realidade

conforme a doutrina platocircnica e a divisatildeo das Categorias de Aristoacuteteles A principal distinccedilatildeo

do emprego do termo ontologia como expressatildeo e manifestaccedilatildeo das doutrinas metafiacutesicas em

Lorhard eacute o foco especiacutefico de uma ldquodoutrina dos inteligiacuteveisrdquo Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman

comentam que

Conforme Lorhard haacute uma importante dualidade entre os entes e nossa discussatildeo

racional a respeito deles Parece que ele insistiu na necessidade dessa dualidade no

sentido de que cada vez que noacutes discutimos os entes no mundo tentando classificaacute-

los tambeacutem temos que refletir sobre os conceitos usados para fazecirc-los (OslashHRSTOslashM

SCHAumlRFE E UCKELMAN OP CIT 4)

Em termos mais simples apoacutes um longo periacuteodo de aristotelismo escolaacutestico talvez tenha sido

Lorhard o primeiro a atentar para o fato de certa confusatildeo gerada dentro da metafiacutesica a respeito

da maneira pela qual se predica o ser do ente em sua participaccedilatildeo presente na realidade

56

Seria liacutecito portanto argumentar que a evidecircncia da confusatildeo de termos se deve ao fato

de Lorhard ter deslocado o ontocentrismo metafiacutesico para uma teoria dos intiligiacuteveis Ainda

conforme Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman a postura de Lorhard eacute diretamente influenciada pela

obra de Clemens Timpler que sustentava a mesma posiccedilatildeo a respeito da metafiacutesica desde uma

confrontaccedilatildeo direta com a filosofia de Francisco Suaacuterez Esta seria a contenda principal do

iniacutecio da modernidade responsaacutevel por conformar e enformar a metafiacutesica como ontologia tal

qual hoje ainda se a concebe Joseph S Freedman desenvolve uma anaacutelise bastante precisa da

maneira pela qual Timpler fundamentou sua postura e as consequecircncias de seu trabalho

sobretudo no que tange agrave disputa com Francisco Suaacuterez A respeito da proposiccedilatildeo ldquotudo que eacute

inteligiacutevelrdquo (omne intelligibile) o tema constitutivo da metafiacutesica Freedman (cf 2009 10-11)

comenta que Timpler provecirc uma moldura conceitual dentro da qual alguns conceitos

ontologicamente baacutesicos satildeo englobados quais sejam ldquoalgordquo (aliquid) ldquoprivaccedilatildeordquo (privatio)

ldquoessecircnciardquo (essentia) e ldquoentidaderdquo (ens) Dentro da dissoluccedilatildeo dos conceitos na obra central de

Timpler Metaphysicae systema methodicum (1604) Freedman comenta

Conforme Timpler ldquotudo aquilo que eacute Inteligiacutevelrdquo eacute dividido entre nihil (ie ldquonadardquo

ou ldquonatildeo-serrdquo) e aliquid aut est (ldquoalgordquo ou ldquoenterdquo) esta eacute basicamente a mesma

dicotomia que William Shakespeare aludiu quando ele coloca no Ato 3 Cena 1 de

Hamlet ndash alguns anos antes (c 1600) da publicaccedilatildeo do texto de Timpler sobre

metafiacutesica ndash que ldquoser ou natildeo ser estaacute eacute a questatildeo []rdquo Mas esta foi a questatildeo que

Timpler e todos os seus (conhecidos) contemporacircneos acadecircmicos aparentemente

desejaram evitar de discutir A discussatildeo da questatildeo de Shakespeare ndash e da dicotomia

de Timpler ndash poderia ter provido as bases para o levantamento de toacutepicos altamente

sensiacuteveis por exemplo 1) a relaccedilatildeo entre Deus e Nada (nihil) 2) a relaccedilatildeo entre Deus

entidade e privaccedilatildeo (ie mal) e 3) a relaccedilatildeo entre Deus e o princiacutepio de contradiccedilatildeo

(FREEDMAN op cit 12)

57

Embora estas questotildees estivessem jaacute sempre presentes dentro dos questionamentos de Timpler

e de seus contemporacircneos elas eram todavia caladas de acordo com Freedman (IDEM IBIDEM)

pela imposiccedilatildeo das instituiccedilotildees cristatildes das coisas sobre as quais se era proibido falar ou acreditar

O que perdura das apresentaccedilotildees filosoacuteficas da metafiacutesica como ontologia em Timpler

ponderando seu princiacutepio do inteligiacutevel concentra-se em primeiro lugar como o mateacuteria de

todas as disciplinas e subdisciplinas acadecircmicas e em segundo lugar como foco de disciplinas

separadas como a archeologia gnostologia hexiologia intelligentia pansophia e tecnologia

(cf ID IBID 14)

O motivo da predileccedilatildeo da questatildeo dos intiligiacuteveis como foco principal de todos os

temas concernentes ao pensamento aparece dentro da possibilidade de envolver todos os

aspectos responsaacuteveis pelos modos operativos de pensar 16 Desta forma por exemplo as

disciplinas separadas como a ldquotecnologiardquo seriam desenvolvidas para as consideraccedilotildees gerais

e universais da estrutura das disciplinas liberais (cf ID IBID 16) Embora discrimine em parte

o princiacutepio da cogniccedilatildeo a metafiacutesica tampouco envolve a loacutegica por levar em consideraccedilatildeo

apenas os princiacutepios excluindo entidades complexas que redundem no princiacutepio de contradiccedilatildeo

Em contrapartida ao sistema metoacutedico de Timpler vecirc-se em Francisco Suaacuterez um

caraacuteter muito mais ontocecircntrico As Disputationes Metaphysicae (1597) de Francisco Suaacuterez

satildeo publicadas dentro de um contexto de desarmonia e conflitos entre a teologia e a filosofia

onde os conceitos fundamentais na discussatildeo sobre o divino estavam sendo postos em questatildeo

A despeito das influecircncias de Suaacuterez e dos necessaacuterios posicionamentos poliacuteticos sua obra

parece instaurar um regulamento por meio do qual nada poderia ser legado agrave mera

inteligibilidade

16 Freedman (ID IBID 15) cita o teoacutelogo calvinista Matthias Martinius contemporacircneo de Timpler que evidencia

de maneira mais clara os motivos das proposiccedilotildees fundamentais Ele atesta que conforme esta designaccedilatildeo agrave

metafiacutesica ldquopertence tudo aquilo que eacute cognosciacutevelrdquo (de omni cogitabili) mas com certas restriccedilotildees englobando

a ldquouniversalidade das coisasrdquo (rerum universitatem) mas natildeo envolvendo disciplinas acadecircmicas especializadas

singulares ou particulares

58

As Disputationes de Suaacuterez podem ser entendidas desde uma divisatildeo da obra na qual a

primeira parte (as primeiras vinte-e-sete questotildees) se refere ao ente no sentido geral enquanto

a segunda parte (as vinte-e-sete uacuteltimas questotildees) lida com o ente particular redundando em

uma dupla divisatildeo da proacutepria metafiacutesica entre ldquometafiacutesica geralrdquo e ldquometafiacutesica especialrdquo (cf

SUAacuteREZ 2004 DOYLE 2004) Ao comentar o desenvolvimento deste aspecto da filosofia de

Suaacuterez Ludger Honnefelder ainda acrescenta

Conforme Suaacuterez a metafiacutesica lida com o conceito de ente tanto ldquoformalrdquo quanto

ldquoobjetivordquo Pelo conceito formal Suaacuterez entende o ato de conhecer do qual ldquoex unica

et prima impositionerdquo que rende uma representaccedilatildeo intencional do objeto pelo

conceito objetivo ele designa aquilo que representa intencionalmente o ato Em outras

palavras Suaacuterez natildeo assume a teoria dos conceitos caracterizada pelo paralelismo

noeacutetico-noemaacutetico de res e conceptus antes ele aceita a abordagem criacutetica de Ockham

em direccedilatildeo a interpretaccedilatildeo realiacutestica dos conceitos universais Desde que Scottus ele

mesmo natildeo depende desse paralelismo quando isto vem a dizer respeito sobre o ente

Suaacuterez substancialmente segue Scottus e aplica ldquoenterdquo para um conceito formal

primaacuterio e unificado que em virtude de sua imposiccedilatildeo representa um objetivo

primaacuterio e unificado do conteuacutedo absolutamente simples que envolve todos os entes

distintos de uma maneira indeterminada ie como ente (HONNEFELDER 2003)

Segundo a exposiccedilatildeo de Honnefelder o direcionamento da metafiacutesica de Suaacuterez iraacute redundar

em alguns pontos baacutesicos em primeiro lugar o fato de que a determinaccedilatildeo do ente transcende

a generalidade dos gecircneros em segundo que a determinaccedilatildeo natildeo pode ela mesma ser definida

podendo apenas ser explicada em relaccedilatildeo agrave existecircncia real em terceiro que toda existecircncia estaacute

sujeita agrave fundamentaccedilatildeo de disposiccedilatildeo ontoloacutegica em uacuteltimo lugar que o ente finito perdura

em um modo indeterminaacutevel de quantidade sendo o ente infinito eacute aquilo que eacute perfeito e

totalmente indivisiacutevel em si mesmo e mais real e completo (cf IDEM IBIDEM)

59

Agora bem com o fito de retomar a linha de raciociacutenio desenvolvida no capiacutetulo eacute

preciso retomar a ideia de substantivaccedilatildeo do Ocidente e a maneira pela qual esse processo se

deixar ver ao longo da histoacuteria da ontologia Martin Heidegger indica em primeiro lugar o que

ele considera como o problema fundamental pelo qual a metafiacutesica se desdobra no Ocidente

qual seja o fato de que o ldquoserrdquo natildeo eacute um ldquoenterdquo mas que todavia um foi tomado pelo outro Ele

apresenta ainda o argumento de que a transposiccedilatildeo da experiecircncia fundamental grega (conforme

apresentada tambeacutem por Charles H Kahn) sofre uma violaccedilatildeo na absorccedilatildeo latina e na

transferecircncia de conceitos de um modo de pensar para o outro Eacute dentro deste ambiente latino

que eacute possiacutevel rastrear a maneira pela qual a metafiacutesica se forma e transforma em ontologia ou

bem dentro de uma filosofia do inteligiacutevel (como em Lorhard e Timpler) ou bem como um

ontocentrismo filosoacutefico (como em Suaacuterez) Sem embargo trata-se de uma disputa em torno agraves

formas primaacuterias da discussatildeo em torno ao ldquoserrdquo e ao ldquoenterdquo Eacute possiacutevel concluir desde a

constataccedilatildeo da entificaccedilatildeo do ser ou substantivaccedilatildeo do Ocidente que a demanda pela resposta

ao problema primeiro da filosofia necessariamente a encaminha para um percurso que natildeo

poderia ser outro Mas qual eacute propriamente este problema primeiro e como se constroacutei esse

caminho Natildeo haveria outra indicaccedilatildeo senatildeo a da ciecircncia dos primeiros princiacutepios e causas de

Aristoacuteteles Jaacute na doutrina das Categorias de Aristoacuteteles eacute possiacutevel observar a confusatildeo entre

ldquoserrdquo e ldquoenterdquo A questatildeo pode ser melhor observada na proposiccedilatildeo baacutesica e amplamente

difundida da Metafiacutesica ldquoO ente se diz em muacuteltiplos significados mas sempre em referecircncia a

uma unidade e a uma realidade determinadardquo (ARISTOacuteTELES 2002 131)17 A referecircncia a uma

unidade e uma realidade determinada eacute a chave para compreender a maneira pela qual a

ontologia se torna a ciecircncia responsaacutevel por esse tema (conforme Aristoacuteteles ldquoHaacute uma ciecircncia

que considera o ente enquanto ente e as propriedades que lhe competem enquanto talrdquo ID IBID)18

17 Τὸ δὲ λέγεται μὲν πολλαχῶς ἀλλὰ πρὸς ἓν καὶ μίαν τινὰ φύσις καὶ οὐχ ὁμωνύμως ἀλλrsquo (Metafiacutesica 1003a 30-

35) 18 Ἔστιν ἐπιστήμη τις ἧ τὸ ὄν ᾗ ὄν καὶ τὰ τούτῳ ὑπάρχοντα καθ αὑτό (Metafiacutesica 1003a 20)

60

Dentro desta ciecircncia o conceito central que unifica e determina ldquoenterdquo e ldquoserrdquo eacute

apresentado como οὐσία O conceito de οὐσία (substantia substacircncia) eacute bem desenvolvido nas

Categorias entre as expressotildees que natildeo satildeo compostas quais sejam a substacircncia mesma

quantidade qualidade relaccedilatildeo lugar tempo posiccedilatildeo estado accedilatildeo ou afecccedilatildeo Ela eacute

apresentada desde duas perspectivas uma primaacuteria outra secundaacuteria A substacircncia primeira

natildeo se afirma de um sujeito nem em um sujeito mas comporta as substacircncias segundas nas

quais a forma afirma a espeacutecie e o gecircnero (ldquoserrdquo do sujeito) comportando tambeacutem os acidentes

(ldquoserrdquo no sujeito) que a eles se atribui Embora o conceito em sua primeira formulaccedilatildeo

contemple o aspecto formal bem como o elemento inteligiacutevel envolve ainda o aspecto material

em seu segundo modo natildeo podendo ser um sem o outro

As consequecircncias do desenvolvimento de uma ciecircncia responsaacutevel pelo ente enquanto

ente centralizando o conceito de substacircncia e substantivando a ideia de ldquoserrdquo por meio de seu

particiacutepio presente ldquoenterdquo satildeo o que se pode considerar como o desenvolvimento da histoacuteria do

ldquoserrdquo ou a histoacuteria da maneira pela qual o Ocidente compreende o ldquoserrdquo e a si mesmo Por meio

desta postulaccedilatildeo o ldquoτὰ ὄνταrdquo eacute posicionado no centro do pensamento ocidental Mais ainda do

que uma simples constataccedilatildeo da maneira pelo qual coube ao Ocidente pensar curioso eacute

especular o fato de que se natildeo fosse possiacutevel pensar fora da delimitaccedilatildeo do ente natildeo haveria

sequer indagaccedilatildeo alguma sobre as limitaccedilotildees ou prejuiacutezos imbuiacutedos nesta formulaccedilatildeo Sem

embargo eacute possiacutevel constatar desde os recursos apresentados (e ainda por muitos outros

caminhos que natildeo este) a necessidade incontida do ser humano ocidental eacute desenhar de maneira

niacutetida as fronteiras do pensamento e da maneira pela qual esse pensamento deve e pode ser

aplicado Resta saber apoacutes esta delimitaccedilatildeo o que haacute para aleacutem da fronteira

61

2 O CAMINHO DA NEGATIVIDADE HENEOLOGIA E MEONTOLOGIA E A

ULTRAPASSAGEM DOS LIMITES DA METAFIacuteSICA

O discurso ontoloacutegico tanto grego quanto latino personificou a atividade filosoacutefica ocidental

em larga escala A maneira pela qual a ontologia habilitava ao raciociacutenio uma seacuterie de

procedimentos facilmente verificaacuteveis nutriu seguranccedila metodoloacutegica aos assuntos

concernentes aos problemas intelectuais com os quais o ser humano fatalmente se deparava ao

longo de suas especulaccedilotildees e que reverberavam ainda na conjuntura soacutecio-pragmaacutetica Eacute neste

sentido que teria afirmado Immanuel Kant de maneira perspicaz que a razatildeo humana se

defronta com inevitaacuteveis questotildees impostas por sua proacutepria natureza19 Tanto para Aristoacuteteles

quanto para Francisco Suaacuterez aleacutem de tantos outros entrementes a importacircncia de assegurar

uma linha de raciociacutenio vaacutelida natildeo somente atribuiacutea autoridade ao argumento como tambeacutem

provia de suficiente clareza a linguagem que advogava suas doutrinas Em outras palavras

tornava-se faacutecil convencer outrem de seus pressupostos dada a indefectiacutevel loacutegica empregada

para encadear as sentenccedilas e alcanccedilar uma conclusatildeo A ontologia por meio de suas loacutegicas de

identidade e natildeo-contradiccedilatildeo (e ateacute certo ponto tambeacutem via argumento do terceiro excluiacutedo)

visava alcanccedilar tanto para afirmaccedilatildeo quanto para negaccedilatildeo a dissoluccedilatildeo de todo e qualquer

paradoxo que colocasse a mente em estado de confusatildeo e discoacuterdia Independente daquilo que

estava sendo afirmado ou negado da linha de raciociacutenio ou doutrina em jogo os procedimentos

discursivos e intelectuais eram basicamente os mesmos com variaccedilotildees conceituais maiores ou

menores dependendo da vertente Todavia prosseguia-se sempre da mesma maneira

19 Kant afirma ldquoA razatildeo humana no seu gecircnio de seu conhecimento possui o peculiar destino de ser incomodada

por questotildees que natildeo pode evitar porque elas satildeo dadas pela natureza da razatildeo mesma mas tambeacutem natildeo possuem

respostas porque elas excedem a capacidade da razatildeo humanardquo (KANT 1956 5 Criacutetica da razatildeo pura AVII-

AVIII)

62

Contudo a despeito da supremacia ontoloacutegica outras formas de pensamento foram

desenvolvidas no decorrer da histoacuteria da filosofia fossem elas similares ou totalmente opostas

Alguns pensadores especialmente radicais se dedicaram a um modo reflexivo que se distanciava

consideravelmente da estrutura ontoloacutegica Suas bases seus pressupostos e seus meacutetodos pelos

quais prosseguiam no caminho especulativo dos temas propostos (muitas vezes os mesmos dos

formuladores da ontologia claacutessica) projetavam-se de maneira consideravelmente diversa Para

eles havia uma necessidade imperativa de incluir todos os elementos presentes na estrutura da

realidade pensada em sua maacutexima possibilidade de concepccedilatildeo tanto os que satildeo quanto os que

natildeo satildeo Ao que parece por este motivo Werner Beierwaltes considera que as caracteriacutesticas

pelas quais se configuram a ontologia claacutessica satildeo sobretudo frutos da interrogaccedilatildeo pelo nexo

da identidade e da diferenccedila quer seja na afirmaccedilatildeo parmeniacutedica da natildeo legitimaccedilatildeo filosoacutefica

da alteridade quer seja na resposta platocircnica do necessaacuterio estabelecimento da diferenccedila na

constituiccedilatildeo do ldquoserrdquo em seu inteiro (cf BEIERWALTES 1989 25) Para Beierwaltes o rigoroso

conceito de unidade demandado por Platatildeo em reposta agrave univocidade do ser de Parmecircnides

resultou na possibilidade de inclusatildeo do ldquonatildeo-serrdquo relativo ao ldquoserrdquo para afirmar sua totalidade

Disto derivaria a altercaccedilatildeo originaacuteria entre identidade e diferenccedila e nisto consiste a

possibilidade de desvio do pensamento ontoloacutegico20 Sem embargo precisamente neste ponto

que acredito poder encontrar o que chamo aqui de caminho da negatividade ou a possibilidade

de inclusatildeo do oxiacutemoro no caminho de pensamento delineado pela ontologia considerando que

ele se desdobra na tradiccedilatildeo do chamado neoplatonismo e ainda na miacutestica medieval

20 Trata-se da definiccedilatildeo do natildeo-ser como alteridade apresentada no Sofista Apoacutes a discussatildeo acerca da comunidade

de gecircneros e a questatildeo do ldquomesmordquo e do ldquooutrordquo que configuram o problema da identidade e da diferenccedila Platatildeo

apresenta a hipoacutetese de compreender o ldquomovimentordquo como ldquooutrordquo do ldquoserrdquo questionando a tese parmeniacutedica a

respeito da ldquoestaticidade do serrdquo Assim Platatildeo coloca a questatildeo ldquoDevemos trabalhar nossa coragem agora para

dizer que aquilo que lsquonatildeo eacutersquo definitivamente eacute algo que possui natureza proacutepria Devemos dizer que assim como

o grande era grande o belo era belo o natildeo grande eacute natildeo grande e o natildeo belo eacute natildeo belo da mesma maneira pela

qual natildeo eacute tambeacutem foi e eacute natildeo-ser e eacute uma das formas dentre as quais satildeordquo (PLATO 1997 282 Sofista 258 c-d)

A sequecircncia do diaacutelogo questionaraacute a realidade deste natildeo-ser relativo culminando na identidade entre pensamento

e discurso abrindo a possibilidade para o discurso falso (o do sofista) e introduzindo a assunccedilatildeo do paradoxo no

seio do pensamento representando o chamado parriciacutedio aos eleatas

63

Ateacute onde eacute possiacutevel investigar o termo neoplatonismo teria sido cunhado pela primeira

vez pelo helenista e medievalista Thomas Gale nos idos de 1670 Gale foi responsaacutevel por uma

seacuterie de estudos sobre o neoplatonismo pagatildeo e cristatildeo escrevendo sobre Plotino Jacircmblico

Joatildeo Escoto Eriuacutegena Maacuteximo Confessor entre outros21 Definiccedilotildees agrave parte os primeiros

elementos responsaacuteveis por delinearem um ldquoneoplatonismo originaacuteriordquo apenas tardiamente

nomeado satildeo atribuiacutedos a Amocircnio Sacas Contudo como a figura histoacuterica de Amocircnio Sacas

eacute tatildeo envolta em controveacutersias e misteacuterios quanto a vida de Pitaacutegoras ou Soacutecrates atribui-se

diretamente a fundaccedilatildeo de uma ldquoescola neoplatocircnicardquo a Plotino disciacutepulo de Amocircnio

Muacuteltiplos debates mais ou menos coerentes envolvem os relatos sobre a relaccedilatildeo entre Plotino e

Amocircnio aleacutem de polecircmicas acerca do proacuteprio Amocircnio22 Destaca-se apenas a autoridade dos

relatos de Porfiacuterio (em sua Vida de Plotino) nos quais se considera que o meacutetodo de pesquisa

aplicado por Plotino estava profundamente ligado ao de seu mestre O conteuacutedo dos discursos

de Plotino tambeacutem teria uma iacutentima relaccedilatildeo com as tentativas de Amocircnio de unificar os diversos

planos do ser e estabelecer a derivaccedilatildeo de todas as coisas a partir do uno23 Sem embargo

Plotino teria absorvido e desenvolvido a doutrina de Amocircnio e necessariamente de Platatildeo em

suas Eneacuteadas em um movimento de exegese ao discurso platocircnico Exegese esta suscetiacutevel de

diversas interpretaccedilotildees dos caminhos por Plotino tomados e mesmo natildeo muito consensual entre

os estudiosos da obra24

21 Extraiacute estes dados de Aaron W Huges em um trabalho intitulado ldquoMedievalrdquo and the Politics of Nostalgia

Ideology Scholarship and the Creation of the Rational Jew (2012) Huges natildeo apenas investiga as origens das

designaccedilotildees do neoplatonismo mas ainda constata que a alcunha de ldquoneoplatocircnicosrdquo continuou sendo utilizada

por eruditos alematildees no seacuteculo dezenove como uma menccedilatildeo pejorativa aos ldquofalsificadoresrdquo das doutrinas de Platatildeo

e Aristoacuteteles (cf HUGES 2012) 22 Conforme Giovanni Reale em sua Storia della filosofia antica (1975-1980) Sobre este ponto especificamente

acerca das incertezas em torno agrave figura de Amocircnio confira REALE 2008 5-13 23 Esta consideraccedilatildeo eacute apresentada por Giovanni Reale com base nos relatos de Nemeacutesio em De natura hominis

(cf REALE 2008 11) Conforme Francisco B Harriet a questatildeo fundamental se encontraria na foacutermula ldquoestaacute mais

aleacutem do intelecto e da essecircnciardquo (ἐπέκεινα νοῦϛ καὶ οὐσίας) conforme a formulaccedilatildeo de Oriacutegenes de Alexandria

em Contra Celsum (fons ex quo initium totius intellectualis naturae uel mentir est) presente em Plotino (Eneacuteadas

V 1 8 e VI 8 16) e derivada do ciacuterculo de Amocircnio (cf HARRIET 2012 153) 24 Sobre a questatildeo da exegese Marcus Reis Pinheiro (em Plotino exegeta de Platatildeo e Parmecircnides 2007)

argumenta que natildeo se pode reduzir a exegeacutetica agrave mera interpretaccedilatildeo dos diaacutelogos de Platatildeo e outros escritos Trata-

se antes do desdobramento de um discurso muito antigo onde ldquo() fazer exegese () natildeo eacute interpretar

objetivamente os textos mas caminhar rumo aos niacuteveis superiores junto com os antigosrdquo (P INHEIRO 2007 80)

64

Neste fluxo talvez o mais cabiacutevel usual e conhecido de todos os estabelecimentos de

um ldquoponto de partidardquo seja o do claacutessico artigo Jean Trouillard Le Parmeacutenide de Platon et son

interpretation neacuteoplatonicienne (1973) onde o neoplatonismo eacute pensado desde a busca da

doutrina originaacuteria de Platatildeo principalmente a partir de uma releitura de seu diaacutelogo

Parmecircnides Todavia a maneira pela qual eacute possiacutevel explanar esta releitura levanta suspeitas

sendo necessaacuterio ponderar em quais formas a exegese plotiniana converge ou diverge das

tentativas de uma interpretaccedilatildeo das doutrinas originaacuterias de Platatildeo Mais ainda estaacute tambeacutem

em jogo a autoridade de apontar que existam de fato doutrinas originaacuterias havendo ainda

abertura para questionar a fiabilidade e o suposto peso das chamadas ldquodoutrinas natildeo-escritasrdquo25

Seja como for interessa sobretudo destacar como com as Eneacuteadas de Plotino o pensamento

filosoacutefico experimenta um movimento iacutempar em relaccedilatildeo agravequilo que vinha sendo apresentado

Para Ciacutecero Cunha Bezerra eacute possiacutevel elencar alguns pontos que evidenciam de maneira

clara a renovaccedilatildeo do neoplatonismo Destaca-se em primeiro lugar a junccedilatildeo entre os elementos

aristoteacutelicos e pitagoacutericos em siacutentese com uma perfeita sintonia entre o platonismo acadecircmico

e as ldquodoutrinas natildeo-escritasrdquo Ademais a ldquohierarquizaccedilatildeordquo do real a partir da qual todos os

graus satildeo derivados desde o uno permite uma sistematizaccedilatildeo do platonismo anterior Por este

motivo tende-se agrave leitura conforme a qual o neoplatonismo possuiria um sistema ldquomonopolarrdquo

frente a um suposto ldquobipolarismordquo platocircnico Por fim haacute ldquo() o fim uacuteltimo do processo de

conhecimento que para o neoplatocircnico eacute a uniatildeo plena com Deus (fugir soacute ao soacute) uma uniatildeo

que tem como marca a supressatildeo (aphaiacuteresis) de todo saber e dizerrdquo (BEZERRA 2006 57)

Dentre os pontos apresentados interessa-me particularmente o uacuteltimo (evidente consequecircncia

dos trecircs primeiros) no qual o neoplatonismo aparece como uma ldquosupressatildeo de todo saber e

dizerrdquo

25 Haacute uma interessante e profunda discussatildeo acerca do tema na tradiccedilatildeo de leitores e inteacuterpretes do platonismo e

do neoplatonismo a respeito deste toacutepico Ciacutecero Cunha Bezerra (em Compreender Plotino e Proclo 2006) aborda

o tema abrindo uma interlocuccedilatildeo com a obra Platone alla ricerca della spienza segreta de Giovanni Reale e ainda

com as investigaccedilotildees de W K C Guthrie e a chamada Escola de Tuumlbingen (cf BEZERRA 200617-24)

65

O senso comum ocidental regula a atividade filosoacutefica como um progresso ininterrupto

rumo ao acuacutemulo de conhecimento e dissoluccedilatildeo dos problemas Curioso agora eacute pensar a

maneira pela qual uma doutrina filosoacutefica pode suprimir o saber e o dizer ao inveacutes de

acrescentar Mas eacute apenas possiacutevel atingir a compreensatildeo necessaacuteria desta supressatildeo uma vez

esclarecido o que eacute propriamente o princiacutepio negativo do pensamento de Plotino Para isto natildeo

se pode perder de vista as duas questotildees que levariam agrave construccedilatildeo do pensamento de Plotino

quais sejam ldquo() o problema religioso (que corresponde agrave busca de compreensatildeo do destino

da alma assim como sua restauraccedilatildeo) e o problema filosoacutefico relativo agrave explicaccedilatildeo racional da

realidade ()rdquo (IDEM IBIDEM 66)26 ponderando ainda que em Plotino ambas estatildeo perfeitamente

inter-relacionadas Para atingir este entendimento todavia eacute necessaacuterio analisar as chamadas

trecircs hipoacutestases de Plotino presentes em suas Eneacuteadas

O conjunto de circunstacircncia que acompanham a formulaccedilatildeo do pensamento de Plotino

eacute todavia aquele anteriormente citado apresentado por Werner Beierwaltes que remete agrave

contenda entre Parmecircnides e Platatildeo Contextualizar a disputa Parmecircnides-Platatildeo da qual

derivam centralmente as hipoacutestases de Plotino natildeo eacute necessariamente complicado embora

interpretaacute-la e desde aiacute desdobrar um novo caminho reflexivo seja uma tarefa bastante

trabalhosa A demanda especulativa eacute altiacutessima e envolve uma bibliografia excessivamente

extensa e complexa Contudo como o interesse aqui eacute a apresentaccedilatildeo dos aspectos centrais do

pensamento de Plotino e como deles redunda uma nova postura e atitude filosoacuteficas o trabalho

fica menos penoso Portanto para colocar em relevo as hipoacutestases de Plotino eacute importante ao

menos demonstrar de forma simples os pontos originais dos quais elas derivam seja em

Parmecircnides seja em Platatildeo (e ateacute certo ponto tambeacutem no neopitagorismo e em Aristoacuteteles

embora esta tarefa exija um pouco mais e seja um pouco mais complicada de rastrear) Para

alcanccedilar este objetivo torna-se imperioso retornar brevemente a Parmecircnides

26 Esta hipoacutetese eacute destacada por Bezerra diretamente da obra de Eacutemile Breacutehier La Philosophie de Plotin (1928)

66

O segundo fragmento do poema Sobre a Natureza de Parmecircnides catalisa os principais

argumentos do conflito permitindo compreender quais satildeo os pontos mais problemaacuteticos do

estabelecimento de sua doutrina na tradiccedilatildeo Aleacutem da Fiacutesica de Simpliacutecio as fontes pelas quais

se estruturou esse fragmento adveacutem dos Comentaacuterios ao Timeu e Comentaacuterios ao Parmecircnides

de Proclo Os oito versos contidos no fragmento centralizam a doutrina de Parmecircnides como

foi herdada pela tradiccedilatildeo a partir da manifestaccedilatildeo das duas uacutenicas vias possiacuteveis para o

pensamento quais sejam a via da verdade e a via da aparecircncia O fragmento diz

εἰ δ᾽ ἄγ᾽ ἐρὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας

αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι

ἡ μέν ὄπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι

πειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ)

ἡ δ᾽ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι

τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν

οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐόν (οὐ γὰρ ἀνυστόν)

οὔτε φράσαις

(KIRK E RAVEN 1957 269)

Pois bem agora vou eu falar e tu presta atenccedilatildeo ouvindo a palavra

acerca das uacutenicas vias de questionamento que satildeo a pensar

uma para o que eacute e como tal natildeo eacute para natildeo ser

eacute o caminho de persuasatildeo ndash pois Verdade o segue ndash

outra para o que natildeo eacute e como tal eacute preciso natildeo ser

esta via indico-te que eacute uma trilha inteiramente inviaacutevel

pois nem ao menos se reconheceria o natildeo ente pois natildeo eacute realizaacutevel

nem tampouco se mostraria

(Traduccedilatildeo de Fernando Santoro cf PARMEcircNIDES 200612)

67

O caminho da verdade que eacute e natildeo eacute para natildeo ser (ἡ μέν ὄπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ

εἶναι) e o caminho da aparecircncia que natildeo eacute e natildeo pode ser (ἡ δ᾽ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών

ἐστι μὴ εἶναι) satildeo via de regra estabelecidos como a manifestaccedilatildeo maacutexima da loacutegica ocidental

e berccedilo dos princiacutepios de identidade e natildeo-contradiccedilatildeo A partir deles eacute possiacutevel natildeo soacute

estabelecer uma identidade (o ser eacute representada pela claacutessica foacutermula A=A) como ainda

verificar a veracidade dessa mesma identidade ndash natildeo eacute possiacutevel que o ser sendo natildeo seja

ilustrado pela foacutermula not (A ˄ notA) um tanto esdruacutexula sem duacutevidas27

O legado de Parmecircnides eacute marcado em sua difusatildeo pelos chamados ldquofiloacutesofos eleatasrdquo

sobretudo por Zenatildeo de Eleacuteia Seus argumentos contra a pluralidade (cf KIRK E RAVEN OP CIT

288-291) e contra o movimento (cf IDEM IBIDEM 291-297) se tornaram assaz populares

sobretudo no que concerne aos paradoxos da flecha no estaacutedio e de Aquiles e a tartaruga Aleacutem

da constataccedilatildeo da univocidade do ser presente em toda linha de pensamento parmeniacutedica28 O

resultado imediato dos exerciacutecios de raciociacutenio de Zenatildeo demonstraram a formataccedilatildeo de uma

estaticidade do ser e da realidade em torno alertando para a ilusatildeo do movimento e alteraccedilotildees

na substacircncia do real O momento no qual Platatildeo compotildee seu diaacutelogo Parmecircnides retrata

justamente o evento no qual tanto Parmecircnides quanto Zenatildeo estatildeo no aacutepice da divulgaccedilatildeo de

sua doutrina dialogando com um ainda jovem Soacutecrates Trata-se de um dos momentos mais

emblemaacuteticos da histoacuteria da filosofia ocidental

27 Haacute uma discussatildeo em torno a uma suposta terceira via aquela na qual o que ldquoeacuterdquo eacute e natildeo eacute ao mesmo tempo

baseada no sexto fragmento onde se lecirc ldquoοἶς τὸ πέλειν τε καὶ οὐκ ταῦτὸν νενόμισταιrdquo (KIRK E RAVEN OP CIT 271)

Embora ainda em um sentido pejorativo de uma via do engano emerge a possibilidade de que algo seja e natildeo seja

Mesmo que natildeo seja profiacutecuo para o andamento da tese se fixar na discussatildeo vale ao menos citaacute-la sobretudo

ponderando os apontamentos feitos por Jean Beaufret acerca da interpretaccedilatildeo de Martin Heidegger da terceira via

como a via dos entes Ao que cabe no propoacutesito do trabalho basta apenas atentar para como a tensatildeo entre as duas

primeiras vias jaacute foram suficientes para levantar controveacutersias Eacute possiacutevel especular ainda que jaacute na primeira via

aparece tambeacutem uma possibilidade de que o ser seja e natildeo seja quando se afirma que ele ldquoeacute e natildeo eacute para natildeo serrdquo

Seria possiacutevel conectar o ldquonatildeo eacuterdquo da sentenccedila como o natildeo-ser relativo necessaacuterio agrave constituiccedilatildeo da inteireza do

ser como argumentado no Sofista de Platatildeo 28 O que significa afirmar que natildeo existem ldquograusrdquo do ser uma coisa ou eacute real (ser) ou irreal (nada) (cf BEZERRA

2003 47)

68

As chamadas ldquotrecircs hipoacutetesesrdquo do Parmecircnides de Platatildeo satildeo apresentadas

respectivamente nas passagens 137c-142a 142b-157a e 157b-159a Elas constituem a mateacuteria

bruta para a elaboraccedilatildeo das trecircs hipoacutestases de Plotino Todas as trecircs hipoacuteteses de Platatildeo satildeo

apresentadas pela personagem do entatildeo velho Parmecircnides arguindo Soacutecrates a respeito da

viabilidade de cada argumento Elas se apresentam ainda a partir do problema constituiacutedo pela

questatildeo da unidade e da multiplicidade A pulsatildeo do jovem Soacutecrates ao inquirir Parmecircnides a

respeito de sua teoria fazendo-o apresentar as trecircs hipoacuteteses parte da colocaccedilatildeo de Parmecircnides

a respeito da assunccedilatildeo da multiplicidade por um lado e da impossibilidade do muacuteltiplo por

outro Parmecircnides eacute levado pelo jovem Soacutecrates a confirmar natildeo apenas sua teoria mas sua

metodologia e plano doutrinaacuterio

Para confrontar a teoria parmeniacutedica Platatildeo desenvolve a primeira hipoacutetese Ela

consiste basicamente na afirmaccedilatildeo de o que o ldquouno eacute unordquo ou seja se haacute uno natildeo eacute possiacutevel

que o uno seja muacuteltiplo Por este motivo ele natildeo pode conter partes nem tampouco ser um

inteiro (composto por partes) Tambeacutem natildeo pode ter um comeccedilo nem um meio nem um fim

natildeo possuindo nada que o limite ou delimite Tampouco pode possuir um formato nem se

encontrar em lugar algum nem estar se movimentando de um lugar para outro (porque entatildeo

assumir-se-ia algo outro que natildeo o uno pelo qual ele se movimenta) e nem em si mesmo

(porque com isto se movimentaria entre suas partes que por definiccedilatildeo natildeo pode conter) Natildeo

pode ainda ser diferente de si mesmo nem o mesmo que si mesmo porque assumindo sua

diferenccedila se assumiria algo outro que natildeo o uno ndash e assumindo sua identidade se assumiria que

haacute algo a saber a proacutepria identidade predicada do uno e que natildeo eacute o uno Natildeo pode tambeacutem

estar no tempo nem ter surgido em momento algum Por fim o uno natildeo pode possuir um nome

ou seja eacute inominaacutevel natildeo podendo ser objeto de opiniatildeo nem conhecimento nem percepccedilatildeo

caso contraacuterio assumir-se-ia um ser ou essecircncia distintos do uno pelo qual se alcanccedila seu

entendimento

69

Necessariamente a primeira hipoacutetese leva a uma outra questatildeo ou ao levantamento de

uma segunda hipoacutetese qual seja o uno eacute e quais satildeo as consequecircncias disto para ele mesmo

Essa hipoacutetese eacute consideravelmente mais complicada e envolve algumas nuances bastante

delicadas O argumento geral se concentra na ideia de que a proposiccedilatildeo uno eacute envolve

necessariamente a ideia de essecircncia do uno O grande problema em afirmar que o uno participa

da essecircncia de uno eacute justamente estabelecer a diferenccedila entre uma coisa e outra ou seja torna-

se inevitaacutevel afirmar que existem duas coisas a saber o uno e a essecircncia do uno O embargo

consiste na simples afirmaccedilatildeo uno eacute em contraposiccedilatildeo agrave afirmaccedilatildeo uno uno Logo desdobram-

se dois unos um uno que eacute e um uno e o ser O primeiro como afirmaccedilatildeo do proacuteprio uno o

segundo como assunccedilatildeo da participaccedilatildeo dele mesmo em sua essecircncia A reaccedilatildeo imediata agrave

afirmaccedilatildeo de que o uno eacute caminha em sentido contraacuterio das negaccedilotildees da primeira hipoacutetese

Sem embargo jaacute neste momento mesmo antes da apresentaccedilatildeo da terceira hipoacutetese

torna-se possiacutevel fazer algumas consideraccedilotildees Em primeiro lugar a hipoacutetese de que o ldquouno eacute

unordquo a despeito da aplicaccedilatildeo da categoria do ser para a predicaccedilatildeo da sentenccedila direciona o

pensamento para um caminho no qual natildeo haacute outra possibilidade senatildeo a completa negaccedilatildeo de

tudo que possivelmente competiria ao uno levando mesmo agrave dissoluccedilatildeo do eacute presente na frase

Em segundo lugar a hipoacutetese de que o ldquouno eacuterdquo desta vez com ecircnfase no eacute gera o movimento

oposto de afirmaccedilatildeo de tudo o que porventura poderia ser predicado de qualquer elemento

Estas duas hipoacuteteses (como se veraacute na apresentaccedilatildeo das hipoacutestases de Plotino)

discriminam perfeitamente as duas vias aqui cogitadas quais sejam uma via afirmativa da

ontologia claacutessica na afirmaccedilatildeo das coisas por meio da qual percebe-se compreende-se e se

faz ciecircncia e uma via negativa do que seraacute ulteriormente nomeada henologia na qual a maacutexima

especulaccedilatildeo acerca da natureza do uno natildeo leva senatildeo agrave negaccedilatildeo absoluta ndash as caracteriacutesticas

desta negaccedilatildeo ou negatividade ver-se-aacute mais claramente nas Eneacuteadas

70

A terceira hipoacutetese do Parmecircnides de Platatildeo eacute apresentada no diaacutelogo muito brevemente

Ela abarca ambos os aspectos centrais das duas primeiras hipoacuteteses sugerindo que o uno eacute e

natildeo eacute imputando a categoria de mudanccedila em sua natureza Trata-se de diagnosticar o fato de

que sendo o uno uno por um lado e muacuteltiplo por outro participa e natildeo participa de sua

essecircncia vem a ser e deixa de ser ponderando ainda que esta mudanccedila se daacute no instante Sendo

assim tanto o movimento de retorno ao uno quanto o movimento de procedecircncia a partir do

uno daacute-se ao mesmo tempo em uma reciprocidade na qual tanto a geraccedilatildeo da multiplicidade

configura o uno nem como uno nem como muacuteltiplo quanto a reuniatildeo da multiplicidade ao

uno tampouco configura o uno nem como uno nem como muacuteltiplo ndash como se a proacutepria ideia

de uno flutuasse em um ldquoinstante incapturaacutevelrdquo

Natildeo haacute duacutevida que o raciociacutenio apresentado por Platatildeo constitui um dos maiores

desafios especulativos da histoacuteria do pensamento ocidental seja nos esforccedilos empreendidos

pela loacutegica de compreensatildeo seja pelo desafio meditativo aflorado da temaacutetica proposta Neste

contexto Marcus Reis Pinheiro indica a interpretaccedilatildeo de Jean-Luc Brisson (Annexe I Les

interpretation du Parmeacutenide dans lrsquoAntiquiteacute presente na ediccedilatildeo Parmenide Paris Flamarion

1999) conforme a qual ldquo() Plotino estaacute no grupo dos inteacuterpretes do diaacutelogo que natildeo o vecirc

apenas como um exerciacutecio loacutegico mas que procura determinar a que tipo de objeto se refere o

diaacutelogordquo (PINHEIRO 2006 3) Seguindo esta linha de raciociacutenio o importante seria portanto

compreender como Plotino absorve a temaacutetica Considerar uma interpretaccedilatildeo para aleacutem da mera

concatenaccedilatildeo loacutegica de conceitos eacute basicamente absorver o sentido de cada termo Isto significa

natildeo apenas expor as formataccedilotildees daquilo que foi introduzido no discurso como ldquounordquo mas

ainda entender de que forma a simples possibilidade de concebecirc-lo no raciociacutenio implica em

uma reduccedilatildeo draacutestica das estruturas hieraacuterquicas do real ou seja constitui uma compreensatildeo

da realidade que possui como primeiro princiacutepio algo que coloca o pensamento em um niacutevel de

paradoxo que necessariamente denota a assunccedilatildeo de uma impossibilidade loacutegica

71

As trecircs hipoacutestases de Plotino seratildeo teoricamente encadeadas de maneira semelhante agraves

hipoacuteteses de Platatildeo embora natildeo sequencialmente Contudo a primeira (e talvez a mais

complexa) jaacute iniciaraacute o movimento de negatividade em direccedilatildeo agraves seguintes estabelecendo os

conflitos presentes na ideia de uno (τὸ ἑν) Plotino considera que ldquoO Uno eacute todas as coisas e

nenhuma delas a fonte para todas as coisas eacute nenhuma das coisas e ainda eacute todas as coisas em

um sentido transcendental ndash todas as coisas para assim dizer tendo seu retorno agrave isto ()rdquo

(PLOTINUS 1969 380 Eneacuteadas V 2 1) Ele ainda assevera a inefabilidade inerente ao uno

conforme a qual todo discurso eacute jaacute sempre indireto e impreciso Apenas mediante referecircncias

como ldquotodas as coisas e nenhuma delasrdquo torna-se possiacutevel acenar para o uno ndash e apenas isto

acenar Entretanto esta eacute para Plotino a uacutenica maneira de compreender a estrutura da realidade

como tal pelo simples motivo de que ldquoEacute precisamente porque haacute nada no Uno que todas as

coisas derivam dele para que o Ser possa ser trazido a fonte natildeo pode ser o Ser mesmo mas o

gerador do Ser ()rdquo (IDEM IBIDEM) que natildeo pode possuir a natureza do ser mas deve se constituir

como outro dele qual seja natildeo-ser ou mesmo nada Plotino prossegue ainda dizendo

ldquoBuscando nada possuindo nada faltando nada o Uno eacute perfeito e em nossa metaacutefora

transborda e sua exuberacircncia produz o novo este produto torna-se novamente seu progenitor

e eacute preenchido e se torna seu contemplador e Princiacutepio-Intelectualrdquo (ID IBID) A passagem

altamente especulativa denota que tudo eacute contemplaccedilatildeo dotada de uma atividade suprema que

comeccedila pelo uno e retorna a ele no simples olhar que natildeo implica nem em complexidade nem

em necessidade29 Mediante uma reflexatildeo propriamente loacutegica a contemplaccedilatildeo por meio da

qual o uno se desdobra e gera todas as coisas se daacute devido a sua proacutepria perfeiccedilatildeo ou seja o

uno natildeo eacute coisa nenhuma e necessariamente engendra todas as coisas porque eacute completo

porque eacute a totalidade de tudo e para isto eacute necessaacuterio que seja ele mesmo e ainda outro de si

29 Estes apontamentos satildeo de John Bussanich que ainda explica que ldquo() a doutrina plotiniana da derivaccedilatildeo do

Uno eacute lsquoprocessatildeorsquo o adjetivo que melhor qualifica isto eacute lsquocontemplativorsquo o movimento no qual a hipoacutestase eacute

gerada coincide com a contemplaccedilatildeo De fato o ponto cardial a chave para a estrutura da processatildeo da metafiacutesica

plotiniana era contemplaccedilatildeo ou theocircriardquo (BUSSANICH 1999 32)

72

Ciacutecero Cunha Bezerra apresenta a organizaccedilatildeo feita por Pierre Aubenque30 conforme a

qual haveriam trecircs esferas argumentativas no desenvolvimento da primeira hipoacutestase uma

loacutegica outra epistemoloacutegica e uma metafiacutesica Bezerra cita uma das passagens mais conhecidas

de Plotino que diz ldquoPrivado de unidade uma coisa cessa de ser aquilo pelo qual eacute chamada

um exeacutercito natildeo eacute um exeacutercito se natildeo eacute uno um coro um rebanho devem ser uma coisa soacuterdquo

(ID IBID 612 VI 9 1) sobretudo para enfatizar o aspecto loacutegico pelo qual Plotino ldquosubverterdquo

a resposta aristoteacutelica da entidade da coisa pela definiccedilatildeo substancial Bezerra argumenta

dizendo que ldquo() Plotino por uma exigecircncia loacutegica jaacute que o princiacutepio originaacuterio natildeo pode

possuir qualquer caraacuteter dos seres relativiza a ontologia e estabelece a henologia como

fundamento de todo serrdquo (BEZERRA OP CIT 67) O problema epistemoloacutegico sobressalta a

ultrapassagem necessaacuteria de todo conhecimento para alcanccedilar tal niacutevel de especulaccedilatildeo ao passo

que a questatildeo metafiacutesica retorna aos trechos anteriormente citados no qual a geraccedilatildeo de todas

as coisas soacute pode derivar de coisa nenhuma

O emprego do termo henologia define aqui o primeiro passo para o caminho da

negatividade Institui-se como negativo o princiacutepio que jaacute natildeo mais decorre de um rendimento

ldquopositivordquo por meio do qual se pode construir um conhecimento soacutelido e confiaacutevel mas uma

base que possui caracteriacutesticas muito diversas e que desafiam a capacidade loacutegica Por este

motivo a primeira demanda eacute jaacute a superaccedilatildeo intelectual (ἐπέκεινα νοῦϛ καὶ οὐσίας) que deve

assumir que o comeccedilo de todas as coisas eacute incoacutegnito O discurso eacute indireto e metafoacuterico porque

somente assim eacute possiacutevel indicar sua possibilidade de ser pensado ndash entendendo principalmente

que o ldquoser pensadordquo natildeo indica nem conota existecircncia porque o ser e a existecircncia mesmo satildeo

ainda posteriores agrave ideia de uno As segunda e terceira hipoacutestases portanto natildeo podem ser

concebidas se de antematildeo natildeo for assumida a negatividade do primeiro princiacutepio

30 Pierre Aubenque ldquoPlotin et le deacutepassement de lrsquoontologie grecque classiquerdquo Colloque des Royaumont Le

Neacuteoplatonisme Paris Centre National de Recherche Scientifique 1971 101-110

73

Somente por meio da completude da pensamento henoloacutegico de Plotino fica possiacutevel

deixar claro os termos pelos quais se destaca a negatividade como ldquosupressatildeo de todo saber e

dizerrdquo Os motivos contudo jaacute satildeo bastante evidentes se levado em consideraccedilatildeo que a

inefabilidade do uno indica que sobre ele natildeo se pode falar e ele natildeo se pode conhecer Portanto

o neoplatonismo necessariamente parte do pressuposto de que o ponto de partida e o ponto de

chegada do pensamento satildeo ambos uma caminhada rumo agrave supressatildeo Ao explicar a processatildeo

por meio da qual o uno engendra todas as coisas destaca-se uma consideraccedilatildeo importante se

os seres engendram o eternamente perfeito engendra eternamente algo inferior a si mesmo por

isto mesmo ldquoEacute preciso observar que a processatildeo plotiniana implica necessariamente uma

negaccedilatildeo A negaccedilatildeo eacute uma condiccedilatildeo a priori no sentido de que o engendrado deve assimilar-se

ao seu gerador mas mantendo uma resistecircncia que diferencia um do outrordquo (IDEM IBIDEM 74)

Em outras palavras a geraccedilatildeo do uno e a abertura da segunda hipoacutestase soacute eacute possiacutevel por meio

da introduccedilatildeo da diferenccedila A diferenccedila eacute o que aqui constitui o passo fundamental da sequecircncia

do pensamento neoplatocircnico O ser eacute na medida em que eacute diferente do uno e por ele eacute

engendrado justamente porque apenas a diferenccedila pode advir do eternamente perfeito

Assim sendo resta saber como o uno engendra e o quecirc ele engendra O que significa

ainda resgatar a pergunta anteriormente colocada por Parmecircnides e Platatildeo como do uno

provem o muacuteltiplo Esta questatildeo eacute sem sombra de duacutevidas uma das mais complexas do sistema

neoplatocircnico em geral A ideia de processatildeo (πρόοδος) pressupotildee uma emanaccedilatildeo a partir do

uno na qual todas as outras coisas satildeo engendradas o que significa dizer que se trata de um

movimento que abarca a realidade em toda sua estrutura na qual ldquo() difere completamente de

um mecanicismo dado que estaacute mais aleacutem de toda contingecircncia e necessidade Nesse sentido

natildeo se pode dizer que se trata de algo que implique um livre-arbiacutetrio ou uma produccedilatildeo artesanalrdquo

(ID IBID 76) Ou seja o uno natildeo necessita de nada e por isto mesmo daacute origem a tudo A

espontaneidade (se eacute que se pode utilizar tal termo) eacute natural e natildeo possui um motor

74

Ao mesmo tempo tudo aquilo que eacute gerado pelo uno possui um poder de conversatildeo

(επιστροφή) um voltar-se sobre si mesmo e voltar-se em direccedilatildeo ao uno (cf ID IBID 76)

movimentada pelo autoconhecimento daquilo que eacute Este autoconhecimento soacute eacute possiacutevel

todavia pelo proacuteprio movimento de emanaccedilatildeo conforme o qual se identifica ldquoserrdquo e

ldquopensamentordquo como havia postulado Parmecircnides e eacute justamente este o momento no qual

emerge a segunda hipoacutestase qual seja a inteligecircncia (νοῦϛ)

As caracteriacutesticas pelas quais a inteligecircncia se mostra desde a compreensatildeo da processatildeo

satildeo a chave para o sentido da filosofia de Plotino Sobre isto Thomas Alexander Szlezaacutek

escreve ldquoNatildeo persegue o Uno com esforccedilo deliberado mas espera tranquilamente ateacute que ele

apreccedila Assim a alma soacute recebe unicamente o Uno eacute uma volta do lsquosolitaacuterio para o solitaacuteriorsquordquo

(SZLEZAacuteK 2010 11) acrescentando ainda que ldquoO caminho que conduz ao Uno natildeo passa poreacutem

pela praacutetica asceacutetica de um anacoreta mas pela apropriaccedilatildeo conceitual do mundo inteligiacutevel

()rdquo (IDEM IBIDEM) Os termos inteligecircncia e inteligiacutevel referem-se aqui a uma definiccedilatildeo

particular que compreende o nuacutecleo da segunda hipoacutestase Bezerra escreve acerca deste ponto

ldquoPlotino no tratado oitavo da terceira Eneacuteada define a Inteligecircncia natildeo como uma coisa

particular mas como algo universal e muacuteltiplordquo (BEZERRA OP CIT 78) explicando que eacute

ldquoUniversal porque abarca todos os seres e muacuteltiplo porque coexistem em sua natureza

simultaneamente o inteligente (Inteligecircncia) e o inteligiacutevel (ser) ()rdquo (IDEM IBIDEM) Plotino

encadeia seu raciociacutenio elucidando como o Princiacutepio-Intelectual eacute universal e iniacutecio de todas as

coisas de maneira que ldquo() assim todas as coisas e o Princiacutepio de tudo deve ser tal que cada

parte dele seja universal eacute todas coisas do contraacuterio conteria partes que natildeo satildeo o Princiacutepio-

Intelectualrdquo (PLOTINUS OP CIT 246 Eneadas III 8 8) Conclui a partir de entatildeo que ldquo() este

Ser eacute ilimitado e que em tudo que flui dele natildeo haacute reduccedilatildeo nem em sua emanaccedilatildeo desde que eacute

o universo inteiro nem em si mesmo o ponto de partida desde que natildeo haacute reuniatildeo de partes

()rdquo (IDEM IBIDEM 246-247) Fica claro o caraacuteter ascendente e natildeo descendente da processatildeo

75

Plotino explica que ldquo() um ser desta natureza natildeo eacute existecircncia primaacuteria deve existir a

partir daquilo do qual transcende o Ser (o Absoluto) ()rdquo (ID IBID 247) e prossegue dizendo

que ldquo() Pluralidade eacute mais tardia que Unidade O Princiacutepio-Intelectual eacute um nuacutemero (=a

expressatildeo de uma pluralidade) e o nuacutemero deriva da unidade a fonte de um nuacutemero como este

deve ser o autecircntico Unordquo (ID IBID) A transcendecircncia que evidencia o caraacuteter progressivo

pode ainda ser entendida desde a ideia de que ldquo() ao contemplar-se a si mesmo a Inteligecircncia

se une ao objeto contemplando uma unidade entre o eu e o ser universal que supera toda

alteridade ()rdquo (BEZERRA OP CIT 79) Com isto eacute possiacutevel resgatar ainda o sentido pelo qual

Beierwaltes destaca a diferenccedila como princiacutepio pelo qual haacute um desvio de Plotino em relaccedilatildeo

agrave ontologia claacutessica (cf BEIERWALTES OP CIT 58) Contudo como se compreende esta

contemplaccedilatildeo eacute o que levaraacute agrave terceira hipoacutestase a alma (ψυχή) Bezerra explica recapitulando

os passos anteriores ldquoVimos anteriormente que o Uno e o Muacuteltiplo apresentam-se sob duas

maneiras distintas a) Uno e natildeo muacuteltiplo (I hipoacutetese) b) Uno-Muacuteltiplo (II hipoacutetese) A alma eacute

portanto ao mesmo tempo uno e muacuteltiplordquo (BEZERRA OP CIT 82) o que significa evidenciar

que ela representa uma distinccedilatildeo radical e afastamento do primeiro princiacutepio o uno

Ainda no oitavo tratado da terceira Eneacuteada Plotino aborda a natureza enquanto ato

criador compreendendo o fenocircmeno a partir de uma tensatildeo entre um Princiacutepio-Racional inerte

e um Princiacutepio-Natural em movimento (cf PLOTINUS OP CIT 239-240 Eneadas III 8 2) que

responderia ainda ao conflito entre unidade e multiplicidade e ainda agrave questatildeo entre tempo e

eternidade Plotino indaga como a natureza responderia ao questionamento colocando

literalmente o argumento na fala da natureza que diria que ldquoOs matemaacuteticos desde suas visotildees

desenham suas figuras mas eu desenho nada eu contemplo as figuras do material do mundo

tomando os seres como eu os sinto desde minha contemplaccedilatildeordquo (IDEM IBDEM 241) chegando a

conclusatildeo de que ldquo() o que noacutes conhecemos por Natureza eacute uma Alma cria de uma Alma

ainda anterior () uma visatildeo interna de si mesmardquo (ID IBID)

76

A visatildeo interna de si mesma mencionada por Plotino prove o entendimento de que ldquoA

alma portanto autodetermina-se e ao mesmo tempo autofragmenta-se pois ao separar-se do

todo volta-se maravilhada para o particularrdquo (BEZERRA OP CIT 84) Disto adveacutem a geraccedilatildeo do

tempo como desordem introduzida no equiliacutebrio primordial e ao mesmo tempo a introduccedilatildeo

de uma ordenaccedilatildeo mediada pela conversatildeo (επιστροφή) ndash pelo retorno maravilhado ao uno ou

uniatildeo ao fundamento por meio da contemplaccedilatildeo

Agora bem toda esta inevitaacutevel breve introduccedilatildeo ao pensamento de Plotino deve

direcionar para uma postura distinta daquela antes observada com a ontologia claacutessica e o

pensamento metafiacutesico Que postura eacute esta Ou melhor qual o caminho que se abre a partir das

trecircs hipoacutestases plotinianas Este eacute o momento no qual o caminho da negatividade comeccedila a se

encorpar e mostrar seu caraacuteter decisivo na constituiccedilatildeo do desvio intelectual do neoplatonismo

Gostaria de fazer um recorte especiacutefico do nono tratado da sexta Eneacuteada para alcanccedilar este

esclarecimento

Plotino reconstitui seu caminho a partir da afirmaccedilatildeo ldquoEacute em virtude da unidade que os

seres satildeo seresrdquo (PLOTINUS OP CIT 614 Eneadas VI 9 1) O que significa afirmar que sem a

unidade natildeo se pode considera que algo seja o que seja Em termos mais simples se nomeio

braccedilo pernas cabeccedila razatildeo sensibilidade entre outras muacuteltiplas singularidades presentes em

um ser humano mas natildeo as congrego em uma unidade pela qual afirmo ldquoser humanordquo que

compreende todas as particulares em questatildeo inexoravelmente perco de vista seu sentido Por

isto ldquoQualquer coisa que possa ser descrita como uma unidade o eacute no preciso grau pelo qual

sustenta um ser caracteriacutestico quanto menor ou maior o niacutevel do ser menor ou maior seraacute a

unidaderdquo (IDEM IBIDEM) Portanto alma seria (em razatildeo de sua distinccedilatildeo da unidade mesma)

uma grande unidade em proporccedilatildeo e na autenticidade do ser e assim ldquoUnidade absoluta natildeo eacute

eacute a alma e a primeira alma a unidade em algum sentido concomitante ()rdquo (ID IBID) deixando

ver como a unidade natildeo eacute e eacute

77

Desta forma pode-se compreender que o uno natildeo pode ser a totalidade dos seres que

anularia sua unidade nem tampouco o ldquoPrinciacutepio-Intelectualrdquo pelo qual as coisas satildeo nem o

ldquoser mesmordquo no sentido da totalidade das coisas Plotino prossegue dizendo ldquoA alma ou mente

movimentando-se rumo ao que eacute sem forma encontra-se em estado de incompetecircncia para

apreender ali onde nada se limita ou onde a se impinge a realidade difusardquo (ID IBID 615 VI

9 3) Assim ldquo(hellip) ante o puro pavor de se sustentar no nada esvai-se O estado eacute doloroso

geralmente busca aliacutevio ao se retratar de sua vagueza na regiatildeo do sentido para ali repousar em

um fundamento soacutelido bem como a visatildeo aflige-se com o minuto no qual repousa na escuridatildeordquo

(ID IBID) Mas para onde olhar frente ao desconforto de natildeo se ter onde repousar Quando se

percebe o quatildeo vago eacute todo e qualquer presumido fundamento ou sentido quando a escuridatildeo

natildeo reflete senatildeo a angustia de uma contemplaccedilatildeo exausta pelo esvair de todo sustento o que

resta para aleacutem discoacuterdia que atinge o intelecto Plotino sintetiza a afliccedilatildeo

A alma deve ver em sua proacutepria maneira isto se daacute por coalescecircncia a unificaccedilatildeo

mas buscando assim conhecer a unidade eacute impedida por esta mesma unificaccedilatildeo de

reconhecer o que foi encontrado natildeo se pode distinguir a si mesmo do objeto de sua

intuiccedilatildeo No entanto este eacute nosso uacutenico recurso caso nossa filosofia busque o

conhecimento da Unidade (ID IBID)

O uacutenico caminho rumo ao conhecimento da unidade eacute um caminho impossiacutevel em si mesmo

uma via cerrada pela proacutepria natureza do questionamento proposto Intuir as trecircs hipoacutestases ou

encadeaacute-las conforme uma loacutegica sistemaacutetica portanto elucida o caminho mas natildeo

necessariamente introspecta e absorve a pureza da experiecircncia Para isto eacute necessaacuterio mais ou

melhor menos ndash muito menos O uacutenico ponto de apoio aqui seraacute a identificaccedilatildeo entre o uno e

bem ou a compreensatildeo da primeira hipoacutestase como uno-bem (τὸ ἑν καὶ αγαθον) cujo sentido

eacute por um lado extrema e pura simplicidade e por outro inefabilidade total devido agrave perfeiccedilatildeo

78

Reivindicar este caminho soacute pode portanto levar a uma supressatildeo absoluta onde

ldquoAinda esta abstenccedilatildeo de autoconhecimento natildeo comporta ignoracircncia ignoracircncia eacute algo de fora

ndash um conhecedor ignorante de um cognosciacutevel ndash mas no solitaacuterio natildeo haacute nem conhecimento

nem nada desconhecidordquo (ID IBID 620 VI 9 6) Plotino entatildeo apresenta uma formulaccedilatildeo

nada usual conforme a qual certo direcionamento de suas intenccedilotildees pode ser entendido em

uma passagem tatildeo emblemaacutetica quanto enigmaacutetica ele escreve

Neste coro a alma olha para a nascente da Vida tambeacutem nascente do Intelecto iniacutecio

do Ser fonte do Bem raiz da Alma Natildeo que eles tenham sido despejados do Supremo

menosprezando-os como se fosse uma massa Nisto aquilo que emana seria pereciacutevel

mas eles satildeo eternos eles nasce de um princiacutepio eterno que produz deles sua

fragmentaccedilatildeo mas em virtude de sua identidade inata portanto eles se manteacutem muito

firmes conto o sol brilhe contanto haveraacute luz

()

Aqueles para os quais toda esta experiecircncia eacute estranha podem entende-la como nossos

anseios terrenos e a alegria que temos ao ganhar o que mais desejamos ndash lembrando

sempre que aqui o que noacutes amamos eacute pereciacutevel doloroso que nosso amor eacute mimeacutetico

e se afasta porque foi tudo um engano nosso bem natildeo estava laacute isto natildeo era o que

procuraacutevamos Haacute apenas o verdadeiro amor onde haacute uniatildeo natildeo segurando isto com

algum tipo de abraccedilo carnal mas possuindo na totalidade sua veracidade Todos

aqueles que viram sabem o que tenho em mente a alma toma outra vida quando se

aproxima de Deus assim restaurada sente que o distribuidor da verdadeira vida estaacute

laacute para ver que agora natildeo temos nada para procurar senatildeo aquilo que precisamos

deixar de lado e deixar assim sozinho assim vindouro assim soacute tudo o que o ambiente

terreno aniquilou na pressa de ser livre impaciente em relaccedilatildeo a qualquer laccedilo que

nos sustenta na base para que com todo nosso ser possamos agarrar-nos sobre isto

quando natildeo sobra nada em noacutes senatildeo aquilo pelo qual tocamos em Deus (ID IBID

623 VI 9 9)

79

As palavras de Plotino ressoam como uma conduta que eacute antes como postura que doutrina O

uso termo ldquoamorrdquo denota claramente uma experiecircncia irregulaacutevel uma tensatildeo entre ausecircncia e

presenccedila preenchimento e falta ndash sem embargo um misteacuterio

O misteacuterio que indicado por Plotino se configura como o guia para a visatildeo que permite

descortinar o sentido pensamento filosoacutefico Um misteacuterio que segue a mesma regra de Platatildeo e

do platonismo onde ldquoNada eacute divulgado para os natildeo-iniciadosrdquo (ID IBID 624 VI 9 11) e do

qual natildeo se pode simplesmente exibir uma estoacuteria ordinaacuteria ldquoCoisas aqui satildeo sinaisrdquo (ID IBID)

adverte Plotino Sinais para aqueles que entram em solo sagrado e tornam real a visatildeo do

inacessiacutevel Ele esclarece ainda ldquoQuando a alma comeccedila novamente a se colocar natildeo se torna

outra mas si mesma assim desprendida natildeo eacute nada senatildeo si mesma auto-reunida natildeo eacute mais

da ordem do ser estaacute no Supremordquo (ID IBID) O desprendimento e a supressatildeo a visatildeo do uno

e o movimento de uniatildeo encaminham para o ldquotodo-transcendenterdquo que jaacute natildeo mais estaacute no niacutevel

daquilo que eacute do ente mesmo do ser mas em uma esfera para aleacutem de todas as coisas que satildeo

e que natildeo satildeo A culminaccedilatildeo do pensamento henoloacutegico de Plotino como uma ldquomiacutestica da

unidaderdquo eacute o berccedilo do neoplatonismo e necessariamente o iniacutecio de sua radicalizaccedilatildeo

Neste fluxo considera-se que existam dois momentos fundamentais do desdobramento

do neoplatonismo a partir da henologia plotiniana quais sejam a teologizaccedilatildeo da henologia

desenvolvida por Proclo e a teologia negativa do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita Em ambos eacute

possiacutevel observar como o caminho da negatividade se configura partir de uma profunda

introspecccedilatildeo de temas que tendem agrave dissoluccedilatildeo do conhecimento ateacute entatildeo concebido

estruturado e instaurado ndash e ainda agrave subversatildeo completa de seus meios de expressatildeo e

significaccedilatildeo isto eacute agrave supressatildeo do saber e do dizer Eles natildeo representam meramente o ldquopasso

adianterdquo como se houvessem ainda superado o discurso antecessor mas antes o ldquopasso atraacutesrdquo

enquanto retorno agraves bases e aos princiacutepios por meio da reivindicaccedilatildeo da atitude desvelada pela

miacutestica onde o misteacuterio natildeo eacute o problema a ser desvendado mas o elemento a ser incorporado

80

O obra de Proclo eacute composta por diversos comentaacuterios aos diaacutelogos de Platatildeo dentre os

quais ao Timeu ao Parmecircnides ao Alcebiacuteades agrave Repuacuteblica entre outros aleacutem de escritos

sistemaacuteticos como os Elementos de Teologia e a Teologia Platocircnica Existem ainda obras que

abordam temas de matemaacutetica astronomia arte magia e tratados propedecircuticos sobre doutrinas

filosoacuteficas Especialmente em relaccedilatildeo agraves contribuiccedilatildeo em torno agrave henologia duas obras satildeo de

suma importacircncia o Comentaacuterio ao Parmecircnides de Platatildeo e os Elementos de Teologia

A leitura de Proclo do Parmecircnides de Platatildeo eacute considerada uma das mais sistemaacuteticas e

originais que teria sobrevivido agraves vicissitudes dos tempos Ademais guardaria ainda um apelo

ao resguardo da filosofia de Platatildeo bem como uma preparaccedilatildeo para um projeto de resgate da

vitalidade do paganismo por meio de um platonismo revigorado 31 Decorreria disto uma

profunda incursatildeo na filosofia como teologia que culminaria em seus Elementos Ainda no

Comentaacuterio Proclo descreve o percurso de Platatildeo em relaccedilatildeo agrave Parmecircnides e manifesta uma

linha argumentativa similar a Plotino

Mas caso se queira chegar o mais proacuteximo da verdade deve-se seguir a linha de nosso

Mestre que Parmecircnides inicia desde o Uno (Ser) (para a proposiccedilatildeo ldquose haacute um unordquo

jaacute que conteacutem aleacutem do ldquoUnordquo o conceito de existecircncia pertence a este tipo de coisas)

ascendendo do Uno Ser para o Uno assim demonstrando que o Uno em sentido estrito

deseja apenas isto ser One e ldquoarrebatar-se para longerdquo do Ser e o Uno Ser eacute

secundaacuterio a este pela razatildeo de sua descendecircncia em direccedilatildeo ao Ser ao passo que o

Uno mesmo eacute superior mesmo agrave designaccedilatildeo ldquoeacuterdquo e a hipoacutetese ldquose haacuterdquo assim que

adicionamos eacute o Uno no sentido estrito natildeo mais permanece (PROCLUS 1987 379-380

In Parm 1033)

31 Estas consideraccedilotildees satildeo de Ciacutecero Cunha Bezerra em Algumas consideraccedilotildees sobre leitura procleana do

Parmecircnides de Platatildeo (2004) Neste artigo ele ainda sustenta em consonacircncia com H D Saffrey (Proclus

diadoque de Platon 1990) que Proclo entra na linha de inteacuterpretes de Platatildeo que entendem sua filosofia como

revelaccedilatildeo de uma verdade divina estruturada a partir do uno filiando Platatildeo aos teoacutelogos gregos (cf BEZERRA 2004

99-100)

81

Proclo apresentaraacute na sequecircncia a impossibilidade de ldquohipotetizarrdquo o uno cindindo de um lado

hipoacutetese-condicionada e de outro anti-hipoacutetese-incondicionada O problema que estaacute sendo

colocado parte da ideia de que natildeo se pode pensar a multiplicidade isolada senatildeo somente por

meio da concepccedilatildeo de uma unificaccedilatildeo Para aleacutem da estrutura binaacuteria uno-muacuteltiplo deve-se

considerar a unificaccedilatildeo como consequecircncia necessaacuteria dando origem agrave formulaccedilatildeo ldquouno-

unificado-muacuteltiplordquo para explicar como eacute simplesmente possiacutevel que hajam elementos pelos

quais outros se unificam32

O resultado da formulaccedilatildeo de Proclo parece ser a absolutizaccedilatildeo do uno e sua

identificaccedilatildeo com Deus algo sobremaneira evidente na proposiccedilatildeo de seus Elementos que diz

ldquoTodo intelecto divino eacute uniforme ou possui a forma do Uno e eacute perfeito E o primeiro intelecto

subsiste por si mesmo e produz outros intelectosrdquo (IDEM 1998 86 Elem Theo Prop CLX)

Proclo argumenta ainda que se haacute um Deus ele eacute preenchido de unidades divinas e eacute uniforme

sendo ainda perfeito e cheio da bondade divina havendo um Deus primeiro que provecirc as

hipoacutestases para outros intelectos

Este eacute precisamente o ponto que seraacute aprofundado pelo Pseudo-Dioniacutesio Areopagita em

sua teologia negativa Tanto em Proclo quanto no Pseudo-Dioniacutesio o divino habita a

compreensatildeo filosoacutefica da realidade como incorporaccedilatildeo do misteacuterio seguindo ainda a esteira

da muacutetua reciprocidade entre filosofia e religiatildeo demanda por Plotino desde o iniacutecio Pseudo-

Dioniacutesio coroa a radicalizaccedilatildeo do uno e sua identidade com o Deus primeiro apresentado como

supraessencial (ὑπερούσιε) suprabondoso (ὑπεράγαθε) e mesmo supradivino (ὑπερθεε) razatildeo

pela qual ele demanda que ldquo() em absoluta renuacutencia de si mesmo e de todas as coisas deveraacutes

na pureza deixar todas as coisas de lado liberando-se de tudo e sendo assim levado para cima

para o Raio da Divina Treva que excede toda existecircnciardquo (DIONYSIUS THE AREOPAGITE 1920 192)

32 Esta passagem eacute cuidadosamente explicada por Giuseppe Girgenti que esclarece que ldquoO ponto culminante do

primeiro grupo de teoremas eacute o alargamento da hierarquia de quatro termos uma vez que o raciociacutenio de Proclo

levou a distinguir o intermediaacuterio entre o proacuteprio Uno e o unificado ou seja elementos que compotildeem o unificada

as primeiras unidades do natildeo-unificado ou a henadirdquo (GIRGENTI 2009 113-114)

82

Discursar acerca da inefabilidade impotildee no Pseudo-Dioniacutesio uma superaccedilatildeo da proacutepria

linguagem que se revela agora como uma construccedilatildeo liberta de qualquer fronteira e acima de

qualquer paradoxo onde negaccedilatildeo (ἀπόφασις) e afirmaccedilatildeo (κατσφάσις) comungam de igual

valor e sentido em uma mesma e uacutenica esfera A primazia propriamente apofaacutetica que toma

conta da fala do Pseudo-Dioniacutesio ganha forccedila quando supera toda definiccedilatildeo conceitual e

identifica Deus como nada daquilo que eacute

Uma vez mais indo ainda mais alto mantemos que Ele natildeo eacute alma ou mente ou

concebido pela faculdade da imaginaccedilatildeo conjuntura razatildeo ou entendimento nem eacute

nenhum ato de razatildeo ou compreensatildeo nem pode ser descrito pela razatildeo ou percebido

pelo entendimento jaacute que natildeo eacute nuacutemero ou ordem ou magnificecircncia ou pequenez

ou igualdade ou desigualdade e jaacute que natildeo estaacute inerte nem em movimento ou em

descanso e natildeo possui poder e natildeo eacute poder nem luz e natildeo vive e natildeo eacute vida nem eacute

essecircncia pessoal ou eternidade ou tempo nem pode ser apreendido pelo

entendimento jaacute que natildeo eacute nem conhecimento nem verdade nem eacute reinado ou

sabedoria nem eacute uno nem unidade nem deidade ou bondade natildeo eacute um espiacuterito como

se entende o termo jaacute que natildeo eacute Filho nem Pai nem eacute nenhuma outra coisa tal como

noacutes ou qualquer outro ente do qual se possa ter conhecimento nem pertence a

categoria de natildeo-existecircncia ou de existecircncia nem os entes existentes o conhecem

como realmente eacute nem Ele os conhece como realmente satildeo nem a razatildeo pode o

atingir nomear ou conhecer nem eacute escuridatildeo nem eacute luz ou erro ou verdade nem

nenhuma afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo pode ser aplicada porquanto aplicar afirmaccedilotildees e

negaccedilotildees natildeo se aproximam Dele noacutes natildeo aplicamos nem negaccedilatildeo nem afirmaccedilatildeo

enquanto transcende toda afirmaccedilatildeo por ser perfeita e uacutenica Causa dos seres e

transcende toda negaccedilatildeo pela preeminecircncia de sua livre natureza simples e absoluta

de qualquer limitaccedilatildeo e para aleacutem de tudo (DIONYSIUS THE AREOPAGITE 1920 200-201)

83

Seria justo afirmar que esta densa passagem da Teologia Miacutestica eacute muito mais proacutexima de uma

declaraccedilatildeo de amor do que uma articulaccedilatildeo filosoacutefica (e caberia aiacute perguntar se haacute enfim

alguma diferenccedila entre uma coisa e outra) Pseudo-Dioniacutesio natildeo apenas promove um

movimento de negaccedilatildeo em direccedilatildeo agrave toda afirmaccedilatildeo mas ainda rumo agrave proacutepria negaccedilatildeo Neste

sentido a definiccedilatildeo mais justa conforme a qual se utiliza aqui o termo negatividade seguiria

com precisatildeo os termos do Pseudo-Dioniacutesio entendendo que o caminho negativo estaacute mais

aleacutem de toda afirmaccedilatildeo e mesmo de toda negaccedilatildeo Esta eacute ainda a via para entender o que pode

ser nomeado como meontologia um percurso intelectual que apoiado pela henologia

neoplatocircnica natildeo se fundamenta mais no ente mas antes no natildeo-ente (μή ὄν) ou mesmo no

nada

As consequecircncias da henologia neoplatocircnica de Plotino e Proclo e da meontologia

miacutestica do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita natildeo passaratildeo incoacutelumes pelos seacuteculos que se seguiriam

agrave composiccedilatildeo dos escritos aqui conjurados Contudo algumas recepccedilotildees bastante acuradas e

inspiradas criativas e bem desenvolvidas ocupar-se-iam de resgatar o sentido do pensamento

negativo e desdobrar a profundidade do problema Eacute possiacutevel citar algumas dezenas de filoacutesofos

que se dedicaram ao diaacutelogo com o neoplatonismo e a teologia negativa Aqui gostaria de

encerrar este capiacutetulo direcionando-o para uma interlocuccedilatildeo especial e ao meu ver central para

a difusatildeo da negatividade na filosofia medieval moderna e contemporacircnea Tenho em mente

Joatildeo o Escoto chamado Eriuacutegena

Eriuacutegena ocupou um lugar de destaque nas altercaccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas durante

o chamado Renascimento Caroliacutengio sendo-lhe atribuiacutedas tarefas como a traduccedilatildeo do grego

para o latim das obras do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita bem como explanaccedilotildees em torno agrave

contenda da divina predestinaccedilatildeo e agraves interpretaccedilotildees e exegeses suscitadas pela disputa erguida

pela cultura biacuteblica do periacuteodo33

33 Para especificaccedilotildees em torno a Eriuacutegena e seu tempo confira CONTRENI 1996 e MCNAMARA 1996

84

A presenccedila do neoplatonismo em Eriuacutegena parece se posicionar de maneira estrateacutegica

ao longo dos movimentos por ele realizados em sua magna obra o Periphyseon Natildeo se pode

perder de vista as possiacuteveis definiccedilotildees do neoplatonismo natildeo apenas dentro de suas esferas

relacionais e a partir das tendecircncias de leitura mas ainda por meio da questatildeo fundamental que

problematiza todo conteuacutedo qual seja como o uno se relaciona com o muacuteltiplo ou ainda como

o que eacute primeiro se relaciona com o que eacute posterior Oscar Federico Bauchwitz sustenta que

ldquo() a questatildeo pela antonomaacutesia do neoplatonismo enquanto uma reflexatildeo acerca da relaccedilatildeo

entre o Criador e a criatura entre o Uno e a multiplicidade pode ser enfocada na obra de

Eriuacutegena no que diz respeito a creatio ex nihilo e ao sentido original que eacute determinado ao

termo nihilrdquo (BAUCHWITZ 2001 11) Assumindo esta hipoacutetese como vaacutelida torna-se

imprescindiacutevel compreender o lugar que tal questatildeo ocupa na obra eriugeneana e como ela se

desenvolve

Conforme os apontamentos de Bauchwitz o ldquonadardquo se apresenta pela primeira vez jaacute

no iniacutecio do Periphyseon ao serem articulados os modos da diferenccedila fundamental da divisatildeo

da natureza (φύσις natura) definida como tudo aquilo que eacute e que natildeo eacute (quae sunt et quae non

sunt) sendo dividida em quatro espeacutecies ldquo() primeiro naquilo que cria e natildeo eacute criado segundo

naquilo que eacute criado e tambeacutem cria terceiro naquilo que eacute criado e natildeo cria enquanto o quarto

nem cria nem eacute criadordquo (ERIVGENAE 1999 37 441ordf) O que eacute pode ser percebido apreendido e

conhecido O que natildeo eacute todavia natildeo se pode perceber apreender ou conhecer (cognoscitur non

quid est sed quia est) De acordo com Bauchwitz o termo quid est (ldquoo que eacuterdquo) diz respeito agrave

essecircncia de tudo que permanece incompreensiacutevel e infinito ao passo que quia est (ldquoque eacuterdquo)

indica a existecircncia da essecircncia divina ou seja seus efeitos como algo determinado e que eacute O

incompreensiacutevel da natureza divina Eriuacutegena deixa ver quando escreve ldquoPortanto se eacute por

causa de sua excelecircncia inefaacutevel e incompreensiacutevel infinitude que a Natureza Divina eacute dita natildeo

ser disto se segue que ela eacute nada ()rdquo (IDEM 2005 61 634C)

85

A impossibilidade de compreender a natureza divina eacute o que permite a Eriuacutegena

descortinar seu entendimento acerca da creatio ex nihilo Bauchwitz escreve sobre este ponto

ldquoA questatildeo se origina eacute que se a diferenccedila fundamental abarca a totalidade da natureza o que

se poderia predicar de Deus Isto eacute o que haacute para mais aleacutem do ser e do natildeo ser senatildeo o Nada

desde o qual Deus cria todas as coisasrdquo (BAUCHWITZ OP CIT 12) O problema eacute apresentado por

Eriuacutegena a partir da busca pelo sentido conforme o qual se questiona de que maneira eacute possiacutevel

compreender como todas as coisas que satildeo se originam do nada (ou nos termos do

neoplatonismo pagatildeo a mesma questatildeo de ldquocomo do uno se origina a multiplicidade) Eacute

possiacutevel interpretar esta passagem alegando que Eriuacutegena se refere ao nihilo em perfeita

sintonia com toda doutrina Cristatilde da criaccedilatildeo como de fato faz sentido afirmar Contudo

Eriuacutegena vislumbra o que considera ldquoa verdadeira essecircncia da natureza divinardquo O Criador que

cria todas as coisas que satildeo criadas insere-se naquela parte da divisatildeo da natureza na qual ldquocria

mas natildeo eacute criadordquo enquanto sua ldquoessecircnciardquo reflete aquilo que ldquonatildeo eacute nem criado nem criardquo

Em outros temos indica-se que nada eacute a natureza divina de Deus ou ainda que natildeo-ser

corresponde agrave divindade

Resta ainda resolver o mesmo problema ante ao qual se encontraram Plotino Proclo o

Pseudo-Dioniacutesio entre outros a saber como eacute possiacutevel para Deus desarraigar-se de seu nada

ou desdobrar-se desde si mesmo Bauchwitz oferece uma explicaccedilatildeo quando potildee em relevo o

problema da expressatildeo do paradoxo

() por meio da criatura eacute Deus quem se manifesta e portanto todas as criaturas

podem ser entendidas como certas apariccedilotildees divinas isto eacute teofania Neste sentido a

teofania nomeia o paradoxo da ineffabilis difusio que diz que o infinito devem finito

que o incompreensiacutevel devem compreensiacutevel que o silecircncio clama (BAUCHWITZ 2003ordf

57)

86

Em Eriuacutegena eacute possiacutevel acompanhar o sentido da explicaccedilatildeo de Bauchwitz na passagem que

diz

Tudo o que eacute entendido e sentido nada mais eacute senatildeo apariccedilatildeo do que natildeo eacute aparente

a manifestaccedilatildeo do oculto afirmaccedilatildeo da negaccedilatildeo compreensatildeo do incompreensiacutevel [a

expressatildeo do inexpressiacutevel o acesso ao inacessiacutevel] o intelecccedilatildeo do ininteligiacutevel o

corpo do incorpoacutereo a essecircncia do supraessencial a forma do informado a medida

do incomensuraacutevel o nuacutemero do inumeraacutevel o peso do impensaacutevel a materializaccedilatildeo

do espiritual a visibilidade do invisiacutevel o lugar do natildeo-lugar o tempo do natildeo-tempo

a definiccedilatildeo do infinito a circunscriccedilatildeo do incircunscrito e as outras coisas que satildeo

ambas consideradas e percebidas pelo intelecto sozinho e natildeo podem se restringir

dentro de recessos da memoacuteria e nas quais escapa agrave destreza da mente (ERIVGENAE OP

CIT 59 633BC)

A despeito da possibilidade de sintonia com a doutrina Cristatilde da criaccedilatildeo (especificamente o

sentido moralizante da gecircnese) natildeo haacute forccedila catequeacutetica senatildeo puramente especulativa na

maneira pela qual Eriuacutegena aborda a questatildeo O acesso ao sagrado aparece antes como uma

atitude fundamental na qual se insiste no misteacuterio da nadidade do divino

O resultado do caminho meditativo de Eriuacutegena eacute uma postura na qual o pensamento

natildeo responde apenas agraves demandas imediatas agraves preocupaccedilotildees que sanem os conflitos

existenciais e sociais mas uma intelecccedilatildeo cujo grau de alcance atinge toda mensurabilidade e

incomensurabilidade da estruturaccedilatildeo do real como internalizaccedilatildeo do segredo oculto e dos

misteacuterios da natureza Parece ser neste sentido que Bauchwitz sugere uma eacutetica do silecircncio

onde ldquo() natildeo basta enunciar o princiacutepio que deve reger as accedilotildees do ser humano () O silecircncio

como destino a ser alcanccedilado soacute tem sentido na medida em que nomeia a incessante e natural

disposiccedilatildeo do proacuteprio homem em dirigir-se a elerdquo (BAUCHWTZ OP CIT 12) Antes de resolver

qualquer problema assume-se o respeito para com a profundeza do incocircndito

87

Durante a introduccedilatildeo desta tese referi-me a um outro escrito de Bauchwitz Nihilismo

e Neoplatonismo assumindo que aquele artigo havia sido responsaacutevel por traccedilar uma direccedilatildeo

ou mesmo proporcionar um estiacutemulo ao desenvolvimento deste trabalho Gostaria de retornar

agravequele artigo uma vez mais para encerrar esta seccedilatildeo com definiccedilotildees mais precisas a respeito da

henologia e da meontologia como ultrapassagem dos limites da metafiacutesica

O capiacutetulo anterior evidenciou que com a ontologia ou a substantivaccedilatildeo do pensamento

ocidental por meio da confusatildeo entre ser e ente perdeu-se natildeo a capacidade intelectual do ser

humano mas o atino para o seu fundamento Em razatildeo da urgecircncia de respostas abandonou-se

tudo aquilo que era por princiacutepio incoacutegnito inefaacutevel inexprimiacutevel Como havia dito na

introduccedilatildeo com o apoio do trabalho de Bauchwitz a consumaccedilatildeo deste movimento eacute anunciado

por meio de um diagnoacutestico do niilismo Neste sentido Bauchwitz escreve

A relaccedilatildeo entre Nihilismo e Neoplatonismo que aponta para uma eacutetica aleacutem dos

limites da temporalidade e de crenccedilas religiosas ainda estaacute para ser esclarecida Uma

tal eacutetica somente poderaacute ser realmente quando cumpridas umas exigecircncias que neste

trabalho foram apenas assinaladas a superaccedilatildeo da vontade e em consequecircncia da

proacutepria liberdade soacute pode ser interpretada em uma perspectiva que jaacute natildeo se encontra

nos limites da ontologia tradicional ou no dizer de Heidegger no acircmbito da metafiacutesica

O sem-propoacutesito de uma tal eacutetica que abnega qualquer visatildeo utilitarista e

simplesmente dada do mundo exige pensar a partir de novas fundamentaccedilotildees e

valores o retorno do divino eacute uma metaacutefora que atende a tais exigecircncias na medida

em que ao tempo que nos abre uma concepccedilatildeo totalmente outra daquele que ancora

os principais valores vigentes questiona pelos conceitos fundamentais que

homologaram esses valores como superiores porque quantificaacuteveis A ausecircncia de

referecircncias fixadas pelos padrotildees contemporacircneos que mensuram o bem-estar de cada

indiviacuteduo e o resgate de uma vivecircncia que se justifica nela mesma e natildeo pelas suas

finalidades devem servir de origem para superar a ldquonoite do mundordquo (BAUCHWITZ OP

CIT 179-180)

88

Em primeiro lugar eacute importante destacar que a falta de esclarecimento da ldquoeacutetica aleacutem dos

limitesrdquo ou como prefiro colocar aqui ldquopara aleacutem das fronteirasrdquo natildeo soacute natildeo estaacute clara como

assim deve permanecer caso queira responder agrave exigecircncia de absorver a negatividade que

tambeacutem faz parte da humanidade do humano mas que foi todavia afasta de sua visatildeo da

realidade Por este motivo utiliza-se aqui o termo conflito das fronteiras para indicar natildeo uma

resoluccedilatildeo de problemas mas a assunccedilatildeo de um confronto Sendo assim a ultrapassagem de

limites deve se dar apenas no que tange agrave possibilidade de abrir o pensamento para aleacutem da

metafiacutesica tradicional Explorar o que haacute de propriamente fraco o que natildeo se sustenta o que

natildeo pode ser

A temaacutetica poderia ser encerrada aqui Seria possiacutevel retornar ao neoplatonismo com

ainda mais cautela e extrair de laacute mesmo os elementos para subverter toda sorte de ordenamento

que lanccedila o ser humano na ldquonoite do mundordquo Contudo meu interesse aqui eacute explorar mais um

momento da histoacuteria da filosofia e se possiacutevel encontrar um ponto de apoio para reunir a

tradiccedilatildeo metafiacutesica e o neoplatonismo em um uacutenico problema Minhas hipoacutetese conforme seraacute

desenvolvida no terceiro e uacuteltimo capiacutetulo eacute encontrar uma orientaccedilatildeo Orientaccedilatildeo extrema

Ali no Extremo Oriente

89

3 O EXTREMO ORIENTE E O CONFLITO DAS FRONTEIRAS A FILOSOFIA COMPARADA INTERCULTURAL

COMO CHAVE DE LEITURA PARA ALGUNS PROBLEMAS DO PENSAMENTO CONTEMPORAcircNEO

O ambiente acadecircmico britacircnico do final da deacutecada de 1970 foi palco de uma fervorosa disputa

acerca das interpretaccedilotildees e definiccedilotildees culturais entre Ocidente e Oriente A publicaccedilatildeo do livro

Orientalism (1978) de Edward Wadie Said (ع إدوارد Idwārd Wadīʿ Saʿīd) fomentou ديعس ودي

uma inesgotaacutevel discussatildeo acerca de qualquer suposta correspondecircncia deste ou daquele

elemento nos princiacutepios da tradiccedilatildeo oriental sustentando em termos bem simples que o

Oriente era antes uma invenccedilatildeo convencional Said sofreu diversas criacuteticas algumas mais

significativas outras menos Uma de suas consideraccedilotildees mais discutidas afirma que ldquo() o

Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente) como sua imagem ideacuteia personalidade e

experiecircncia de contraste Contudo nada desse Oriente eacute meramente imaginativordquo (SAID 1990

13-14) acrescentando ainda de forma incisiva que ldquoO Oriente expressa e representa esse

papel cultural e ateacute mesmo ideologicamente como um modo de discurso com o apoio de

instituiccedilotildees vocabulaacuterio erudiccedilatildeo imagiacutestica doutrina e ateacute burocracias e estilos coloniaisrdquo

(IDEM IBIDEM 14) Said defendeu que o Oriente tal qual eacute conhecido pelo mundo ocidental natildeo

corresponde agrave proveniecircncia originaacuteria de suas tradiccedilotildees mas eacute antes uma estrateacutegia (poliacutetica e

econocircmica) de manutenccedilatildeo geograacutefica Toda designaccedilatildeo acadecircmica de qualquer orientalismo

ateacute entatildeo desenvolvido estaria entatildeo equivocada apoiada em pressupostos que natildeo condizem

com a tradiccedilatildeo oriental Sem embargo o mesmo poderia ser dito a respeito da introspecccedilatildeo do

mundo grego pelo mundo romano-latino e no decorrer da histoacuteria da humanidade eacute possiacutevel

ainda identificar outras centenas de casos semelhantes ateacute o ponto no qual se afirma a

globalizaccedilatildeo por meio da modernizaccedilatildeo de todos os recantos do planeta dentro do iacutempeto de

igualar todas as culturas em um niacutevel comum

90

Entretanto apesar de ser possiacutevel interpretar as assertivas de Said de forma mais

ponderada aproveitando com isto certo direcionamento fatalista embora natildeo necessariamente

inveriacutedico de sua investigaccedilatildeo algumas gafes de sua compreensatildeo da histoacuteria se revelam

bastante perturbadoras Um dos principais criacuteticos de Said Robert Irwin publicou uma obra

onde ampla parte eacute dedicada agrave refutaccedilatildeo direta dos principais argumentos de Said Em For the

Lust of Knowning (2006) Irwin destaca algumas inverdades de Said e contrargumenta de

maneira precisa certas falaacutecias Contudo Irwin eacute tambeacutem bastante emotivo em sua abordagem

ele escreve ldquoPara pocircr minhas cartas na mesa jaacute de iniacutecio a meu ver aquele livro [Orientalism]

eacute uma obra de uma impostura maleacutevola na qual eacute difiacutecil distinguir erros verdadeiros de

falsidades propositadasrdquo (IRWIN 2006 11) Irwin ataca principalmente os erros fatuais de Said

apontando para lacunas na fundamentaccedilatildeo da obra Orientalism34 destacando vaacuterios enganos e

afirmando em siacutentese ldquoPois se eacute possiacutevel apresentar uma imagem falsa do orientalismo do

cristianismo e do imperialismo britacircnico natildeo seria tatildeo obviamente errado apresentar de modo

semelhante uma falsa imagem do islatilde da histoacuteria aacuterabe ou da difiacutecil situaccedilatildeo dos palestinosrdquo

(IDEM IBIDEM 330-331) fazendo referecircncia agraves posiccedilotildees por Said defendidas Em suma Irwin daacute

a entender nas entrelinhas que a politizaccedilatildeo de um criacutetico literaacuterio no caso Said tornou a obra

Orientalism um intento mal construiacutedo como ferramenta para sustentaccedilatildeo de posiccedilotildees poliacuteticas

condenando todo seacuterio estudo que envolve o orientalismo Ateacute entatildeo muitos outros

pesquisadores e eruditos atacaram Said bem como tantos outros o admiravam e o defenderam

Todavia com a apresentaccedilatildeo desta disputa quero aqui destacar um fator iacutempar que natildeo

necessariamente se prende agrave contenda mas que encobre o toacutepico de modo geral

34 Irwin destaca alguns erros ldquoOrientalismo daacute a impressatildeo de um livro escrito agraves pressas Eacute repetitivo e conteacutem

muitos erros factuais Said menciona lsquoPedro o Veneraacutevel e outros orientalistas cluniacensesrsquo Que outros

orientalistas cluniacenses Seria interessante conhecer seus nomes (Mas naturalmente a ideia de que houvesse toda

uma escola de orientalistas cluniacenses eacute absurda Pedro o Veneraacutevel trabalhou sozinho) Como Bernard Lewis

ressaltou Said faz com que exeacutercitos muccedilulmanos conquistem a Turquia antes de conquistarem o norte da Aacutefrica

Isso realmente sugere uma ignoracircncia espantosa da histoacuteria do Oriente Meacutedio da mesma forma que sua crenccedila

quanto a terem a Gratilde-Bretanha e a Franccedila dominado a regiatildeo oriental do Mediterracircneo a partir do final do seacuteculo

XVIIrdquo (IRWIN 2006 329)

91

Com a discussatildeo entre os orientalistas e seus inimigos o importante eacute destacar natildeo

apenas as dificuldades que envolvem todo e qualquer estudo comparado entre Ocidente e

Oriente mas o fato de que eacute da natureza do proacuteprio estudo comparado que haja divergecircncias

A divergecircncia e o erro satildeo de fato disposiccedilotildees naturais dos estudos comparados sem os quais

natildeo seria possiacutevel sequer dar iniacutecio agrave discussatildeo ou desenvolver qualquer linha de raciociacutenio

preparatoacuteria Soacute eacute possiacutevel falar em estudos comparados porque houve de antematildeo a percepccedilatildeo

de uma divergecircncia Mais ainda a necessidade do momento e os acasos eventuais direcionam

os estudiosos para um ou para outro lado Assim como Said saiu em defesa da Palestina durante

um periacuteodo no qual os conflitos haviam se asseverado em decorrecircncia da expulsatildeo das forccedilas

de paz das Naccedilotildees Unidas em 1967 tambeacutem outros pensadores em outros momentos da histoacuteria

foram motivados por acontecimentos histoacutericos sejam eles de guerra ou de paz poliacuteticos

econocircmicos ou religiosos Como por exemplo as diversas manifestaccedilotildees de revolta e

indignaccedilatildeo de Theodor Wiesengrund Adorno e Gershom Scholem apoacutes Auschwitz ou as

anaacutelises polecircmicas de Slavoj Žižek das revoltas do subuacuterbio de Londres e da Primavera Aacuterabe

Contudo algumas deacutecadas antes da publicaccedilatildeo da obra de Said precisamente durante a

deacutecada de 1950 o Departamento de Filosofia da University of Hawairsquoi at Mānoa havia

alavancado uma seacuterie de trabalhos a respeito dos fundamentos e procedimentos dos estudos

comparados Eacute preciso considerar que proacuteprio departamento jaacute havia sido estruturado entre

1930 e 1940 com o objetivo de suprir a lacuna que havia a respeito dos estudos comparados na

filosofia A primeira East-West Philosophers Conferece em 1939 ditou o tom pelo qual se

tornaria possiacutevel falar abertamente alguns anos mais tarde de uma filosofia comparada

intercultural Ali natildeo escapou a ideia de que foi justamente por meio do ldquoerrordquo que se

estabelecia o diaacutelogo entre fronteiras Em outras palavras este diaacutelogo nascia jaacute sempre de um

conflito das fronteiras A hipoacutetese de consenso eacute explorada neste sentido apenas mediante a

assunccedilatildeo de certa ignoracircncia parcial e sopesando ainda as variaccedilotildees de interpretaccedilatildeo

92

O rigor filosoacutefico que direcionou as primeiras tentativas da filosofia comparada em

confrontar as tradiccedilotildees sapienciais ocidentais e orientais permitiu a instauraccedilatildeo de uma postura

cuidadosa e quase mesmo analiacutetica do problema35 Com isto foi possiacutevel comeccedilar a pensar de

que forma elementos do pensamento oriental e da filosofia ocidental poderiam convergir ou

divergir e quais as contribuiccedilotildees que este tipo de comparaccedilatildeo pode trazer aos problemas da

contemporaneidade Todavia como anos mais tarde discutiriam Said Irwin e outros natildeo se

pode desprezar o fato de que nada escapa aos entrelaccedilamentos ldquoirrastreaacuteveisrdquo das relaccedilotildees entre

Ocidente e Oriente Neste sentido embora qualquer comprovaccedilatildeo cientiacutefica empaque frente aos

desafios historiograacuteficos natildeo eacute de todo ingecircnuo especular as influecircncias que por exemplo

Platatildeo teria sofrido da sabedoria primitiva de hinduiacutesta e budistas como sustentam diversos

especialistas36 Ou ainda da indagaccedilatildeo acerca de ateacute que ponto o Aristoacuteteles que conhecemos

natildeo foi orientalizado por Al-Farabi (صر ون ن محمس اب ی محمس ب اراب Abū Naṣr Muḥammad ibn ف

Muḥammad Fārābī) Avicena (ن نا اب ع د ou و لی اب نا ع ع د Pūr Sinɑʼ ou ainda ور نا پ ع د Pur-

e Sina em aacuterabe و لي أب عن ع س ح ن ال بس ب الله ع ن نا ب ع د Abū ʿAlī al-Ḥusayn ibn ʿAbd Allāh

ibn Al-Hasan ibn Ali ibn Sīnā) entre outros filoacutesofos da tradiccedilatildeo aacuterabe Sem contar os

sincretismos que permearam a filosofia do helenismo tardio em Alexandria onde pagatildeos

judeus cristatildeo e mulccedilumanos travavam interminaacuteveis disputas teoacutericas (e natildeo apenas teoacutericas)

a respeitos dos fundamento filosoacuteficos e teoloacutegicos religiosidade momento no qual fica difiacutecil

empreender uma anaacutelise pormenorizada de quem influenciou quem quando o quanto e como37

35 Charles A Moore ponderou no trabalho Some Problems of Comparative Philosophy (1951) a dificuldade em

posicionar as doutrinas orientais em um grupo homogecircneo como podia ser feito com a ocidentais apontando ainda

para o cuidado em evitar as caracterizaccedilotildees e comparaccedilotildees a partir de tendecircncias mais gerais (cf MOORE 1951 67)

Kwee Swan Liat escreveu ainda em Methods of Comparative Philosophy (1951) que ao menos sete esferas de

aplicaccedilatildeo metodoloacutegica devem ser previamente levadas em consideraccedilatildeo (aproximaccedilatildeo filoloacutegica histoacuterica

comparativa formal-valorativa psicoloacutegica fenomenoloacutegica e socioloacutegica-antropoloacutegica) avaliando uma por

uma e propondo por conseguinte uma oitava aproximaccedilatildeo total-integrativa (cf KWEE SWAN LIAT 1951 10ss) 36 Estas hipoacuteteses satildeo levantadas por Graham Parkes na introduccedilatildeo de Heidegger and Asian Thought (1987) (cf

PARKES 1987 1) 37 Este ponto especiacutefico acerca das contendas do periacuteodo heleniacutestico foram sobremaneira bem expostas por Jean

Pepiacuten no escrito intitulado Heacutelleacutenisme et christianisme no volume de Franccedilois Chacirctelet La Philosophie v 1 De

Platon agrave Saint Thomas Paris Marabout 1995

93

Falar efetivamente de uma filosofia comparada intercultural todavia pressupotildee outra

perspectiva aquela na qual ambas as tradiccedilotildees estatildeo culturalmente niacutetidas e bem delineadas

(ainda que por meio de caracterizaccedilotildees vulgares pouco precisas ou mesmo caricatas) e satildeo

entendidas como exponencialmente distintas Entretanto as mesmas dificuldades permanecem

Com isto quero dizer fica difiacutecil afirmar ateacute que ponto um lado compreendeu o outro de modo

suficiente e satisfatoacuterio sendo possiacutevel indagar ainda se as apropriaccedilotildees natildeo se deram mediante

interpretaccedilotildees equivocadas ou leituras transviadas sobretudo quando natildeo haacute domiacutenio pleno dos

idiomas envolvidos

Estas asseveraccedilotildees tomaram conta de muitos pensadores no decorrer da histoacuteria da

humanidade Ateacute onde eacute possiacutevel investigar dois momentos marcam o iniacutecio da relaccedilatildeo

expliacutecita (e natildeo meramente impliacutecita como no caso dos primeiros filoacutesofos gregos de Platatildeo e

de Aristoacuteteles) entre Ocidente e Oriente na filosofia a apropriaccedilatildeo latina durante a Idade Meacutedia

dos escritos aacuterabes do Oriente Meacutedio38 e a interlocuccedilatildeo e introspecccedilatildeo da tradiccedilatildeo do Extremo

Oriente (sobretudo chinesa em um primeiro momento) na filosofia alematilde dos seacuteculos dezessete

e dezoito Aqui interessa especialmente o diaacutelogo com o Extremo Oriente e como ele natildeo se

encerrou no mero intercacircmbio de tradiccedilotildees fomentando um movimento de reversatildeo no qual os

orientais por sua vez tambeacutem abriram interlocuccedilatildeo direta com o pensamento ocidental

introspectando a filosofia e desenvolvendo ao seu modo formas de reflexatildeo nos mesmos

moldes da estrutura categoacuterica ocidental mas partindo dos princiacutepios orientais ainda que em

certa medida (como se veraacute) tais princiacutepios por vezes comunguem em muitos aspectos de

elementos e direcionamentos comuns aos ocidentais e por vezes natildeo Para isto eacute preciso

investigar brevemente a gecircnese desta relaccedilatildeo e como ela tem iniacutecio

38 Sobre este toacutepico que natildeo seraacute abordado aqui confira W Raven e A Akasoy (eds) Islamic Thought in the

Middle Ages Studies in Text Transmissions and Translations in Honour of Hand Daiber Leiden Brill 2008 D

Calma Eacutetudes sur le premier siegravecle de lrsquoaverroisme latin approches et textes ineacutedits Turnhout Brepols 2010

entre outros

94

A despeito da culminaccedilatildeo das luzes no periacuteodo moderno diversos temas obscuros

perpassaram o seacuteculo dezessete sobretudo aqueles motivados pelas missotildees catequeacuteticas

jesuiacutetas na China que inevitavelmente influenciaram o ambiente intelectual da eacutepoca 39

Independente dos transtornos causados pelos europeus em suas incursotildees tambeacutem na Europa

os problemas apareceram Quando os documentos acerca das tradiccedilotildees chinesas de pensamento

desembarcaram no continente europeu despertaram imediato interesse em diversos estudiosos

Contudo tampouco foi ameno o iniacutecio deste diaacutelogo O caso mais draacutestico se deu em

1723 quando Christian Wolff fugiu de Halle an der Saale em Sachsen-Anhalt na Alemanha

em decorrecircncia de uma seacuterie de perseguiccedilotildees despertadas por um discurso por ele pronunciado

dois anos antes sob o tiacutetulo Oratio de Sinarum philosophia practica (1721) O motivo era

polecircmico e suscetiacutevel de distintas interpretaccedilotildees Wolff afirmara que ldquoA mesma autoridade que

possui os ditos e feitos de Cristo possui tambeacutem Confuacutecio para os chineses Moiseacutes para os

judeus e Mohammed para os turcosrdquo (WOLFF 1985 117) Embora Wolff tenha impressionado

grande parte de seus ouvintes com o teor apaixonado de sua preleccedilatildeo tal comparaccedilatildeo redundou

em acirradas criacuteticas por diversos professores e eruditos que acompanhavam a fala e a

interpretaram como uma espeacutecie de ateiacutesmo mais ou menos mitigado Estas acusaccedilotildees todavia

natildeo eram fruto apenas da sinofilia de Wolff mas advinham jaacute de seu confronto com colegas

pietistas da Universidade de Halle devido agrave inclinaccedilatildeo bastante evidente para um pensamento

racionalista e secular40

39 Sobre as missotildees jesuiacutetas confira Wenzhao Li Die christliche China-Mission im 17 Jahrhundert Stuttgart

Franz Steiner 2000 Acerca do caso especiacutefico do diaacutelogo com a filosofia alematilde confira ainda Antonio Florentino

Neto Von der Interpretation zum Gespraumlch Das chinesische Denken in deutschen Philosophie Saarbruumlcken

SVH 2013 Florentino Neto ainda comenta que as missotildees tiveram iniacutecio ainda no seacuteculo dezesseis tendo

comeccedilado no Japatildeo e soacute entatildeo atingido a China no seacuteculo dezessete (cf FLORENTINO NETO 2009 41) 40 Os interesses de Wolff pela China bem como pelo racionalismo paulatinamente aparecem em seus escritos

desde a influecircncia direta de Leibniz ateacute a leitura dos tratados dos jesuiacutetas a respeito da China Menccedilotildees ao

pensamento chinecircs e o peso da admiraccedilatildeo que nutria por Reneacute Descartes satildeo evidentes em seus trabalhos a partir

de 1721 (cf LACH 1953) A despeito dos interesses de Wolff pelo pensamento chinecircs sobretudo acerca dos temas

morais constata-se que ele considerava o cristianismo moralmente superior e mais bem desenvolvido (cf KANAMORI

1997 302-303)

95

A hipoacutetese de que a natureza comum do ser humano possibilita o discurso intercultural

nasce sobretudo da comunhatildeo entre uma radicalizaccedilatildeo quase miacutestica do racionalismo moderno

e o impacto causado por escritos de ordem semelhante embora com princiacutepios e fundamentos

distintos Aleacutem de Wolff tambeacutem Nicolas Malebranche e Gottfried Leibniz se dedicaram agraves

leituras do material trazido pelos jesuiacutetas no mesmo periacuteodo Malebranche compocircs em 1707 o

escrito Entretien drsquoun Philosophe Chreacutetien et drsquoun Philosophe chinois sur lrsquoexistence et la

nature de Dieu por meio do qual mais tarde aproveitou para se livrar das acusaccedilotildees de ser um

ldquospinozistardquo Malebranche ainda encarou uma acirrada disputa acerca da condenaccedilatildeo do Papa

Clemente XI agraves missotildees jesuiacutetas sustentando posiccedilotildees bastante polecircmicas em seu diaacutelogo

Malebranche levanta em sua obra a questatildeo fundamental acerca da entificaccedilatildeo do deus

cristatildeo instigando a pergunta acerca do infinito que eacute respondida pelo filoacutesofo chinecircs da

seguinte maneira ldquoEstou convencido de que quando penso sobre o infinito estou muito longe

de pensar qualquer coisa Mas entatildeo eu penso em um tal ser individual e determinado Agora

o Deus que vocecircs adoram natildeo eacute assim um ser individual e particularrdquo (MALEBRANCHE 1708

17) As preocupaccedilotildees de Malebranche caminham no sentido de articular ser e ente no problema

da ontologia do cristianismo Quando Leibniz escreve seu Discours sur la theacuteologie naturelle

des Chinois (1716) ele o faz justamente tendo em vista repetidos pedidos de esclarecer pontos

levantados por Malebranche apoacutes o escrito ter sido enviado a ele por Nicholas Reacutemond41

Eacute possiacutevel considerar que Leibniz foi o que se devotou com mais afinco agrave tradiccedilatildeo

chinesa Ele teria se envolvido principalmente com o direcionamento praacutetico da sabedoria

chinesa profundamente norteada pelo propoacutesito de melhorar a si mesmo e agrave sociedade por meio

da noccedilatildeo confucionista de cultivo de si (修身 xiushen) no sentido propriamente moral42

41 Leibniz trocou extensa correspondecircncia com os missionaacuterios jesuiacutetas a respeito da filosofia chinesa aleacutem de

apresentar comentaacuterios pontuais em sua Novissima Sinica (1697) Contudo eacute no Discours que suas ponderaccedilotildees

mais seacuterias e cuidadosas satildeo delineadas e manifestas (cf KANG 2009 6-8) 42 Mais especificaccedilotildees sobre este tema podem ser encontrados em Karyn T Lay Introduccedilatildeo agrave filosofia chinesa

Trad Saulo Alencastre Satildeo Paulo Madras 2009

96

Leibniz escreve em seu discurso ldquoMas quem poderia pensar que houvesse na terra um

povo que superasse os nossos aspectos da vida cultural Se formos iguais nos modos de

produccedilatildeo somo superiores nas ciecircncias teoacutericas mas inferiores na filosofia praacuteticardquo (LEIBNIZ

1979 11) concluindo que ldquo() somos inferiores na aacuterea da eacutetica na poliacutetica e na vida dos

haacutebitos cotidianosrdquo (IDEM IBIDEM) A interpretaccedilatildeo de Leibniz exalta a capacidade dos chineses

em se organizarem e valorarem as tensotildees promovidas pelo campo social com base no cultivo

de si e ainda identificando o ldquosirdquo ao povo em geral Importante eacute ressaltar natildeo apenas desta

breve sentenccedila ilustrativa mas a partir de uma visatildeo mais ampla de suas reflexotildees o profundo

interesse em preencher lacunas a respeito da proveniecircncia intelectual de certos problemas

filosoacuteficos

Anos depois tambeacutem Georg W F Hegel Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche

nutririam interesses pelo Oriente43 Contudo a resposta propriamente oriental a respeito do

intercacircmbio filosoacutefico se daria apenas na virada do seacuteculo dezenove para o seacuteculo vinte Este eacute

o momento no qual a filosofia comparada intercultural comeccedila a ganhar corpo precisamente

com a abertura poliacutetica e intelectual do Japatildeo e o desenvolvimento da chamada Escola de

Filosofia de Kyōto44 Embora natildeo haja tempo nem espaccedilo para abordar de maneira mais

cuidadosa os enlaces teoacutericos e praacuteticos da Escola de Kyōto escrutinando as estruturas de

pensamento de cada um de seus primeiros membros (e ainda de seus membros tardios) gostaria

aqui de destacar alguns aspectos fundamentais direcionados por duas questotildees a primeira

sustentando o porquecirc a filosofia tem iniacutecio propriamente acadecircmico no Extremo Oriente e

precisamente no Japatildeo e a segunda indagando como (ou de que modo) isto acontece Uma

hipoacutetese necessariamente leva agrave outra e isto pode ser facilmente observado

43 Um panorama mais especiacutefico das aproximaccedilotildees pode ser visto em Florentino Neto 2009 44 Em minha dissertaccedilatildeo de mestrado jaacute havia explanado os movimentos histoacutericos que levaram agrave abertura do Japatildeo

e ao surgimento da filosofia japonesa moderna ou contemporacircnea Uma bibliografia mais completa acerca do tema

pode ser extraiacuteda das obras de referecircncia William Beasley The Meiji Restoration (Stanford Stanford UP 1972) e

The Rise of Modern Japan (New York St Matinrsquos Press 1995)

97

Em primeira matildeo sustento que os motivos que proporcionaram o surgimento de uma

ldquoescola filosoacuteficardquo no Japatildeo modernizado estatildeo intimamente ligadas com sua introspecccedilatildeo da

tradiccedilatildeo oriental precedente Em palavras mais simples a maneira pela qual os japoneses

compreenderam e sintetizaram as principais linhas de pensamento orientais (hinduiacutesmo

budismo confucionismo e daoiacutesmo) culminando no chamado budismo zen foi sem embargo

a chave para absorver a filosofia ocidental Em segunda matildeo sustento ainda que a filosofia

japonesa nasce cresce e se estabelece mediante duas perspectivas (justamente os ldquoparadigmasrdquo

anteriormente abordados na tese) metafiacutesica e negatividade em decorrecircncia do florescimento

do zen no Japatildeo Por fim argumento que justamente pelo entrelaccedilamento de metafiacutesica

negatividade e o pensamento do Extremo Oriente que nasce a uacutenica filosofia possiacutevel para o

momento histoacuterico pelo qual passava o Japatildeo e com isto abre-se uma pertinente chave de

leitura para o momento que agora mesmo atravessa a filosofia contemporacircnea

Portanto inicialmente eacute essencial destacar a singularidade do budismo zen em relaccedilatildeo

agraves tradiccedilotildees precedentes Existem muacuteltiplas maneiras pelas quais eacute possiacutevel empreender esta

tarefa Acredito ser plausiacutevel direcionar este toacutepico mediante um problema especiacutefico qual seja

da fundamentaccedilatildeo uacuteltima da realidade a partir da meditaccedilatildeo a respeito da questatildeo da vacuidade

entendida como śūnyatā (शनयता)

A ideia de śūnyatā deriva do budismo indiano primitivo Relatos de reflexotildees em torno

ao problema do fundamento da realidade aparecem (como jaacute havia exposto na introduccedilatildeo desta

tese) desde os cacircnones Pāḷi e satildeo expressos de maneira mais clara e niacutetida no budismo mahāyāna

principalmente no Sūtra do Coraccedilatildeo (Prajntildeāpāramitā Hṛdaya परझञापारनमताहरदय) passando pela escola

mādhyamaka de budismo indiano e ainda nos Versos Fundamentais sobre o Caminho do Meio

(Mūlamadhyamaka-kārikā मलमधयमककाररका) de Nāgārjuna (िागारि) onde foi apresentada de maneira

mais profunda e sistemaacutetica

98

Algumas interpretaccedilotildees do escrito de Nāgārjuna destacam o śūnyatā como constituiccedilatildeo

da totalidade da realidade enfatizando que isto significa uma muacutetua dependecircncia (pratītya-

samutpāda परतीतयसमतपाद) de todas as coisas de todas aquelas que possuiriam existecircncia individual

ou substancial e ateacute da proacutepria ideia de nada o que significa propriamente uma anulaccedilatildeo de

qualquer Ente Supremo ou mesmo qualquer verdade absoluta45

Quando os ensinamentos do budismo indiano chegam agrave China e no Japatildeo alguns

princiacutepios fundamentais satildeo radicalizados por ambas as naccedilotildees Existem vaacuterias hipoacuteteses

conforme as quais eacute possiacutevel indagar os motivos desta radicalizaccedilatildeo Alguns consideram que a

doutrina radical do budismo se deve ao gecircnio do monge Boddidharma embora outros

argumentem que o motivo foi o encontro com o daoiacutesmo e o neoconfucionismo A questatildeo pode

permanecer suspensa sem que isto afete a compreensatildeo das bases e dos caminhos do budismo

zen Ao que concerne propriamente agrave introspecccedilatildeo deste conceito fundamental na filosofia

japonesa contemporacircnea (sem embargo o ponto ao qual quero chegar) existem tambeacutem

inuacutemeras controveacutersias embora haja ainda certos pontos solidamente estabelecidos e

mutuamente consentidos que se pode explorar com o intuito de apresentar o problema

O expoente da Escola de Kyōto que pela primeira vez explorou de maneira sistemaacutetica

a questatildeo e a colocou via uma formulaccedilatildeo filosoacutefica foi Kitarō Nishida (西田 幾多郎) Sua

biografia eacute repleta de elementos que o fariam parecer ou bem um rebelde visionaacuterio ou bem

um precoce e intempestivo intelectual permeado por desacordos com o sistema Sem embargo

muitos pesquisadores descreveram com minuacutecia os percalccedilos de sua biografia Por isto natildeo eacute

de todo liacutecito perder muito tempo aqui descrevendo seu percurso pessoal Gostaria apenas de

atentar para alguns pontos sobremaneira importantes no que tange agrave formaccedilatildeo intelectual de

Nishida

45 Este ponto eacute melhor analisado por Michael Barnhart que considera que de acordo com Nāgārjuna ldquo() natildeo se

pode sustentar nenhuma feacute na realidade ou princiacutepio transcendente nem nenhuma razatildeo humana pode pretender

independecircncia de nenhum tipo ()rdquo (BARNHART 1994 649)

99

Em primeiro lugar Nishida viveu em meio agrave restauraccedilatildeo Meiji (1868-1912) um periacuteodo

que divide a histoacuteria do Japatildeo entre preacute-moderna e moderna no qual a sociedade feudal entra

em decliacutenio e a naccedilatildeo eacute ocidentalizada pela forccedila maior da pressatildeo do Departamento de Estado

Norte-Americano A evidecircncia de que o ensino japonecircs estava defasado frente aos desafios do

novo mundo levou seus governantes a implementarem um sistema educacional semelhante ao

ocidental sendo neste periacuteodo fundadas as primeiras universidades japonesas Nishida

frequentou tais universidades embora tivesse seu proacuteprio percurso intelectual independente

tendo a oportunidade de estudar com Raphael von Koumlber professor russo-alematildeo convidado

para ministrar aulas de filosofia no Japatildeo Com Koumlber Nishida estudou a histoacuteria do

cristianismo (com ecircnfase nas influecircncias do paganismo de Plotino) aleacutem da filosofia criacutetica de

Immanuel Kant e da esteacutetica claacutessica Eacute preciso ponderar ainda que Nishida lia com fluecircncia o

francecircs o alematildeo e o inglecircs tendo acesso integral agraves principais obras da filosofia ocidental Por

outro lado o mesmo estudante dedicado era ainda um pensador radical que encontrou na

tradiccedilatildeo do zen budismo um rumo para suas inquietaccedilotildees

Quando Nishida se aproxima do zen budismo e comeccedila a praticar mediaccedilatildeo o impacto

da destruiccedilatildeo dos meacutetodos convencionais de ensino o afeta largamente ponderando sobretudo

que ele jaacute havia abandonado a escola primaacuteria por desentendimentos com o regime educacional

Um artigo de Lothar Knauth intitulado Life is Tragic The Diary of Nishida Kitaro (1965)

destaca uma passagem do diaacuterio de Nishida onde eacute possiacutevel observar sua postura conforme suas

proacutepria palavras

Faccedila sua proacutepria mente e depois disto natildeo dependa dos outros

Natildeo acredite indiscriminadamente nas palavras das pessoas

Natildeo fale de assuntos que ainda natildeo foram amadurecidos

Natildeo desperdice tempo precioso com fofocas ociosas

A lei da mateacuteria de leitura ler pensar escrever

100

Se vocecirc ainda natildeo terminou de pensar sobre um assunto

natildeo mude para outro

Se vocecirc natildeo terminou de ler um livro ateacute o fim

natildeo pegue outro

Non multa sed multum

Diaacuterio Ano Novo 1897 (NISHIDA apud KNAUTH 1965 337)

O trecho do diaacuterio aponta para um jovem estudioso preocupado com o rigor a tensatildeo

proveniente do impacto surtido pelas leituras Knauth expotildee consecutivamente um outro trecho

do diaacuterio este datado de 1 de julho de 1945 jaacute no final da vida de Nishida que diz

simplesmente ldquoEscurecendo nublado vinte grausrdquo (IDEM IBIDEM) A intenccedilatildeo de Knauth com

isto eacute mostrar a profunda introspecccedilatildeo redundante de um amadurecimento especulativo

proveniente de anos de meditaccedilatildeo Contudo ao que interessa ao propoacutesito do toacutepico vale

salientar que mesmo em um conturbado espiacuterito jovem havia jaacute sempre a necessidade de forccedilar

uma ldquoaquietamentordquo da mente uma busca por um lugar silencioso no qual prevalece a maacutexima

non multa sed multum natildeo muito mas bastante

Entre 1891 e 1897 (a ano da primeira citaccedilatildeo) Nishida praticou incessantemente a

meditaccedilatildeo zen havendo tambeacutem contribuiacutedo para uma revista do secto do Budismo da Terra

Pura Sua transformaccedilatildeo efetiva se daria em 1903 onde uma draacutestica revoluccedilatildeo de seu

entendimento abriria caminho para dar iniacutecio ao seu pensamento efetivo

O homens natildeo podem pensar em morrer natildeo podem ter grandes pensamentos ambos

Kawai e Gordon jaacute disseram isto Tentei pensar em mim mesmo morto aos trinta e um

de dezembro de meu trigeacutesimo quinto ano mas entretanto por mais que tentasse natildeo

podia pensar sobre isto seriamente Natildeo importa o quanto eu pense na morte eu natildeo

consigo me fazer esquecer o mundo (ID IBID 341)

101

Para Knauth este trecho evidencia uma iluminaccedilatildeo por meio da ideia de morte miacutestica e

renascimento O resultado imediato da iluminaccedilatildeo ao contraacuterio do que poderia parecer coerente

aos olhos ocidentais daacute-se na publicaccedilatildeo imediata de um artigo onde Nishida afirma ldquoEu

estava errado em usar o Zen em consideraccedilatildeo ao conhecimento Eu deveria tecirc-lo usado para o

espiacuterito e alma Ateacute eu comeccedilar a sentir pela visatildeo eu natildeo pensarei nem em filosofia nem em

religiatildeordquo (ID IBID 342) Este momento representa uma iluminaccedilatildeo justamente pelo fato de que

haacute sem embargo a assunccedilatildeo de uma correta postura mas com um propoacutesito enganoso ndash a busca

pelo conhecimento havia posto em xeque absolutamente todos os anos dedicados agrave meditaccedilatildeo

era necessaacuterio portanto comeccedilar novamente

Conforme Knauth Nishida iraacute se preparar nos proacuteximos anos para exprimir o potencial

introspectado durante sua iluminaccedilatildeo Trecircs pontos satildeo neste momento fundamentais O

primeiro eacute a leitura profundamente marcante para Nishida de Mestre Eckhart46 O segundo eacute

o falecimento de sua filha Yūko viacutetima de um ataque de bronquite O terceiro (diretamente

ligado ao segundo) eacute sua luta contra o cigarro Em 1923 Nishida escreve ldquoDeste dia em diante

eu morri para mundo Eu vivo em minha proacutepria filosofia Tudo sacrificado tudo sacrificado

Profunda impressionante experiecircnciardquo (ID IBID 344) e em 1927 ldquoAgrave tarde eu estava sozinho

na casa Pensamento quietos Quietamente eu passei metade do dia Eu natildeo fumei nem sequer

um cigarro Renascimento despertado de um sonho ruim De uma aacutervore podre de alguma

maneira um novo broto de vida pode florescer Hoje eu estava quase felizrdquo (ID IBID) O motivo

pelo qual Knauth intitula seu artigo com a expressatildeo Life is Tragic adveacutem justamente desta

postura de Nishida conforme a qual a vida humana natildeo passaria de preocupaccedilotildees e problemas

46 Nishida inicia a leitura de Eckhart em 1907 Seria interessante ao propoacutesito da tese que houvesse uma explanaccedilatildeo

maior e mais cuidadosa do pensamento de Eckhart sobretudo no segundo capiacutetulo onde seu posicionamento eacute

fundamental para o desenvolvimento do neoplatonismo e da miacutestica Contudo esta difiacutecil tarefa tornaria o percurso

da tese demasiado longo e cansativo podendo desviar a atenccedilatildeo primordial do trabalho Todavia possuo a intenccedilatildeo

de desdobrar este toacutepico em um trabalho futuro

102

A despeito de um aparente pessimismo o que pode ser destacado do percurso intelectual

e pessoal de Nishida eacute a profundidade com qual ele sentiu o peso da vida A doutrina buacutedica do

sofrimento eacute por ele absorvida de maneira natildeo soacute transcendente mas ainda imanente Os

escritos de Nishida revelaratildeo natildeo apenas um caminho filosoacutefico no qual se imbricam a tradiccedilatildeo

sapiencial oriental e a filosofia ocidental mas a descriccedilatildeo de uma experiecircncia vital na qual pulsa

a forccedila do pensamento especulativo Por esta e outras razotildees Nishida havia sido nomeado com

o nome laico-budista ldquosunshinrdquo uma polegada de mente

A produccedilatildeo propriamente filosoacutefica de Nishida eacute tanto mais densa quando suas reflexotildees

pessoais anotadas em seu diaacuterio contudo relativamente mais faacuteceis de serem abordadas devido

agrave sistematicidade que permeia os escritos A despeito de suas incompatibilidades com o sistema

de ensino sua carreira acadecircmica foi coroada em 1894 quando recebeu o tiacutetulo de licenciado

em filosofia com uma tese acerca da causalidade em David Hume culminando no professorado

junto agrave Universidade Imperial de Kyōto em 1913 Neste iacutenterim dedicou-se ao desdobramento

das bases de sua filosofia que teria sido divulgada de maneira mais consistente na obra que

havia publicado em 1911 sob o tiacutetulo Zen no kenkyū (善の研究 Investigaccedilatildeo sobre o bem) A

obra mais conhecida de Nishida busca o autodespertar o que significa uma visatildeo dos

fenocircmenos que compreendem a experiecircncia pura evidente desde a movimentaccedilatildeo de uma

loacutegica toacutepica O termo ldquoloacutegica toacutepicardquo eacute propositalmente ambivalente Por um lado indica uma

loacutegica do espaccedilo do lugar por outro denuncia como esse lugar (locus) revela uma locuccedilatildeo um

discurso Eacute neste lugar que se desenvolvem os limites do pensamento Relatos de alunos de

Nishida comentam que ele costumava desenhar no quadro negro trecircs esferas uma sobre a outra

na qual a primeira representaria os acidentes circundaacuteveis ao sujeito a segunda os elementos

incapturaacuteveis pela percepccedilatildeo e a terceira (com linhas tracejadas) a impossibilidade final de

limitaccedilatildeo e a esfera do absoluto insuperaacutevel e infinitamente expansiacutevel nomeado com o signo

do nada absoluto (絶対無 Zettaina) sua interpretaccedilatildeo para a noccedilatildeo budista de śūnyatā

103

Com isto Nishida arrancaria da tradiccedilatildeo zen budista uma negatividade total para

fundamentar sua ideia de experiecircncia pura (純粋経験 Junsui keiken) que segundo ele ldquo() se

entende conhecer os fatos como eles simplesmente satildeo (hellip)rdquo (NISHIDA 1990 3) Estaacute presente

nesta formulaccedilatildeo a absorccedilatildeo de Nishida da psicologia funcional de William James onde se

depura a correspondecircncia da percepccedilatildeo com a teoria da verdade Nishida ainda afirma ldquo() o

que usualmente se refere como experiecircncia eacute via de regra adulterado por algum tipo de

pensamento portanto por experiecircncia pura se entende aquele estado no qual se tem experiecircncia

sem qualquer discriminaccedilatildeo deliberativardquo (IDEM IBIDEM) O claacutessico exemplo pelo qual se ilustra

a condiccedilatildeo primaacuteria da pureza da experiecircncia sugere que em uma expressatildeo como ldquoouvi uma

moscardquo haacute um momento no qual o sujeito que ouve a mosca e seu barulho e o ato mesmo de

ouvir ainda natildeo foram distinguidos O fundamento da realidade enquanto nada absoluto para

Nishida encontra-se neste preciso momento neste instante incapturaacutevel na inefabilidade do

indescritiacutevel Entretanto embora a erudiccedilatildeo filosoacutefica de Nishida fosse sobremaneira evidente

bem como sua dedicaccedilatildeo ao zen budismo suas ideias natildeo estavam livres de criacuteticas em ambas

as esferas

Uma das criacuteticas mais ferrenhas a Nishida foi apresentada por Hajime Tanabe (田辺 元)

seu sucessor na caacutetedra de filosofia da Universidade Imperial de Kyōto (em 1928) Ao contraacuterio

de Nishida que nunca havia saiacutedo do Japatildeo Tanabe foi contemplado com um intercacircmbio pelo

governo japonecircs e teve a oportunidade de estudar ao lado de Husserl e Heidegger Sua maior

obra Zangedo to shite no tetsugaku (懺悔道としての哲學 A filosofia como caminho metanoeacutetico

1946) ocupava-se da superaccedilatildeo do inevitaacutevel problema epistemoloacutegico que envolvia a questatildeo

do nada absoluto propondo o termo metanoeacutetica derivado do grego μετανόησις e vertido ao

japonecircs como zangedo (懺悔道) cuja definiccedilatildeo seria nas palavras de Tanabe ldquoum baacutelsamo para

a dor do pesar e ao mesmo tempo o recurso para uma luz absoluta que paradoxalmente torna

vigente a escuridatildeo sem expulsaacute-lardquo (TANABE 1986 2)

104

Em decorrecircncia da necessidade de superaccedilatildeo do proacuteprio pensamento a criacutetica de Tanabe

emerge no sentido de questionar se a filosofia possui condiccedilotildees de enquadrar o autodespertar

religioso conforme exposto por Nishida de maneira sistemaacutetica Conforme Agustiacuten Jacinto

Zavala ldquoResumidamente ao tomar como base o ponto de vista da religiatildeo a filosofia de

Nishida lsquoconverte o trans-histoacuterico absoluto em principium [princiacutepio fundamental] do sistema

e mediante esta determinaccedilatildeo vem [finalmente] ordenar e organizar o histoacuterico relativordquo

(ZAVALA 2013 106) ao passo que ldquoPor isto Tanabe diz lsquoa duacutevida fundamental que albergo

frente a filosofia mestre Nishida se relaciona com este ponto () se a filosofia trata de tomar o

ponto de vista religioso como seu proacuteprio ponto de vista necessariamente deixa de ser si mesmardquo

(IDEM IBIDEM) sintetizando a preocupaccedilatildeo de Tanabe

Os conflitos entre a filosofia a auto-percepccedilatildeo religiosa a partir do estabelecimento do

nada absoluto como fundamento da realidade passaratildeo ainda prelo crivo de diversos

interlocutores sofrendo alteraccedilotildees e recebendo criacuteticas diretas e indiretas Em linhas gerais o

problema de Tanabe estaacute diretamente relacionado com suas compreensotildees estritas da religiatildeo e

da filosofia Em primeiro lugar porque ao contraacuterio de Nishida (que era praticante do zen

budismo) Tanabe partia antes do budismo Jōdo Shinshū (浄土真宗 A Escola da Terra Pura) do

monge Shinran (親鸞)47 Em segundo lugar devido aos interesses de Tanabe pela filosofia da

histoacuteria de Wilhelm Wundt e Heinrich Rickert aleacutem da influecircncia da Lebensphilosophie e o

compromisso histoacuterico que ele alimentou a partir de tais influecircncias Por este motivo era

necessaacuterio tanto para resolver a disputa entre Nishida e Tanabe quanto para superar os estaacutegios

preliminares das discussotildees da Escola de Kyōto reformular as compreensotildees de filosofia e

religiatildeo algo que acontece de maneira somente com Keiji Nishitani (西谷 啓治)

47 Sobre a fundamentaccedilatildeo budista de Tanabe confira Joaquim Antonio Bernardes Carneiro Monteiro ldquoO lsquoNada

Absolutorsquo em Hajime Tanabe uma avaliaccedilatildeo criacuteticardquo In Antonio Florentino Neto e Oswaldo Giacoia Jr (orgs)

O Nada absoluto e a superaccedilatildeo do niilismo Os fundamentos filosoacuteficos da Escola de Kyoto Campinas Phi 2013

155-188

105

Keiji Nishitani eacute talvez o filoacutesofo japonecircs contemporacircneo mais popular entre os

ocidentais O motivo eacute provavelmente o estilo bastante solto e livre de seus ensaios

principalmente os que chegaram traduzidos ao Ocidente ndash precisamente os mais maduros

compostos apoacutes a deacutecada de 1960 como Shūkyo to wa Nanika (宗敎とは何か O que eacute religiatildeo

1961) e Nihirizumu (ニヒリズム Niilismo 1986) Estes mesmos trabalhos sofreram diversas

criacuteticas por parte de colegas japoneses que o acusaram de se afastar dos modos propriamente

orientais de expressatildeo supostamente sugerindo uma indiferenccedila ao idioma vernaacuteculo agraves

tradiccedilotildees e aos projetos de seus antecessores Sobre isto Nishitani teria argumentado que as

lacunas do pensamento japonecircs tradicional sobretudo as idiomaacuteticas impossibilitariam o

alcance do sentido de alguns problemas colocados pela filosofia ocidental motivo pelo qual a

criaccedilatildeo de novas palavras em japonecircs se mostrava absolutamente necessaacuterios48 Sem embargo

os questionamentos impostos pelos novos tempos natildeo se prendiam agraves fronteiras linguiacutesticas e

invadiam o Japatildeo modernizado e ocidentalizado com especial forccedila razatildeo pela qual a

aproximaccedilatildeo com a filosofia sua interiorizaccedilatildeo e reflexatildeo era simplesmente inevitaacutevel

Todavia embora Nishitani tenha realmente pendido para o pensamento filosoacutefico ou para a

maneira pela qual os pensadores ocidentais liam as questotildees conflituosas da contemporaneidade

ao mesmo tempo ele se voltava com ainda maior introspecccedilatildeo para o budismo sobretudo para

o zen Esta ambiguidade intencional do pensamento de Nishitani se revela nas inquiriccedilotildees por

ele levantadas e pelo teor de suas investigaccedilotildees deixando ver claramente sua preocupaccedilatildeo a

respeito do direcionamento reflexivo da filosofia contemporacircnea

48 James Heisig discute esta questatildeo pormenorizadamente quando apresenta o estilo filosoacutefico de Nishitani

Conforme Heisig a influecircncia ocidental absorvida por Nishitani cujas maiores expressotildees foram a esteacutetica de

Immanuel Kant o idealismo alematildeo (especialmente Friedrich W J Schelling) Plotino e o neoplatonismo a

miacutestica de Mestre Eckhart e Francisco de Assis e ainda a hermenecircutica existencial de Wilhelm Dilthey e Martin

Heidegger deixam bastante claro o porquecirc ele subverte e converte os limites e alcances da linguagem Heisig

ainda destaca o momento no qual Nishitani afirma que nos miacutesticos a confluecircncia e a uniatildeo entre religiatildeo e

filosofia alcanccedilaram um ponto elevado despertando seu profundo interesse por tais autores A despeito dos temas

eleitos Heisig considera ainda que por este mesmo motivo o estilo de Nishitani se mostra superior ao de Tanabe

e ao de Nishida (cf HEISIG 2002 233-242)

106

Eacute possiacutevel considerar que o problema com o qual Nishitani se defrontou e que norteou

o andamento geral de seu pensamento mais cuidadosamente desenvolvido possui um ponto de

partido muito bem estabelecido qual seja o problema do niilismo denunciado na virada do

seacuteculo por autores como Friedrich Nietzsche Ernst Juumlnger Fioacutedor Dostoievsky Ivan

Turgeniev entre outros Em Shūkyo to wa Nanika longe de tentar elucidar o sentido da religiatildeo

em termos sistemaacuteticos a despeito do tiacutetulo do escrito Nishitani parece buscar uma imersatildeo na

tensatildeo contraditoacuteria que os seres humanos possuem com a experiecircncia religiosa segundo ele

ldquo() para quem a religiatildeo natildeo eacute uma necessidade precisamente por esta razatildeo ela eacute uma

necessidade Natildeo haacute nenhuma outra coisa sobre a qual se possa dizer o mesmordquo (NISHITANI

1983 1) Sua definiccedilatildeo de religiatildeo se abre a partir da compreensatildeo de uma ldquoauto-despertar da

realidaderdquo cuja explicaccedilatildeo se apoia no termo inglecircs realize segundo ele um termo polissecircmico

que possuem tanto o sentido de actualize (atualizar mas tambeacutem trazer o sentido real como na

expressatildeo actually cujo significado seria na verdade) quanto de understand (compreender)

Nishitani explica ldquo() estou utilizando esta palavra para indicar que nossa habilidade para

perceber a realidade significa realizar (atualizar) a realidade por si mesma em noacutesrdquo (IDEM IBIDEM

5) Esta explicaccedilatildeo apareceria para confrontar o sentido do niilismo que segundo Nishitani

ldquo() se refere agravequilo que torna sem sentido o sentido da vida () sinalizando nada menos do

que fato de que o despertar da nossa existecircncia penetrou em uma profundidade extraordinaacuteriardquo

(ID IBID 4) Em suma Nishitani possui um alvo muito claro lidar com o abismo existencial

que se deixa ver sobremaneira angustiante nos novos tempos aqueles mesmos ldquotempos de

penuacuteriardquo da ldquonoite do mundordquo anunciados por Nietzsche denunciados por Heidegger e que

assombravam os filoacutesofos que se deparavam com a instituiccedilatildeo da morte do pensamento

reflexivo mediante a Era Atocircmica dos desastres ambientais e dos deliacuterios da modernizaccedilatildeo

industrializaccedilatildeo e tecnologizaccedilatildeo do mundo Fatos inegaacuteveis cuja profunda relaccedilatildeo com a

histoacuteria do pensamento torna seu sentido cada vez mais obscuro

107

A forccedila interpretativa que moveraacute o pensamento de Nishitani rumo agraves tentativas de

resoluccedilatildeo dos conflitos passaraacute em primeiro lugar por sua leitura a respeito do problema do

niilismo e sua relaccedilatildeo com a ideia de śūnyatā Quando Nishitani alcanccedila esta abordagem ele

frisa de iniacutecio que ldquo() um dos maiores e mais fundamentais problemas que todas as religiotildees

encaram em nossos tempos eacute sua relaccedilatildeo com a ciecircnciardquo (IDEM IBIDEM 77) O motivo aparenta

ser a incompatibilidade entre o pensamento cientiacutefico e o sentido essencial da vida religiosa

Nishitani entatildeo argumenta de maneira incisiva (e que sintetiza o propoacutesito desta tese no final

das contas)

Uma em cada dez pessoas escuta que a religiatildeo e a ciecircncia tem cada uma seu proacuteprio

domiacutenio e tarefa e que as duas nunca precisaratildeo entrar em conflito caso permaneccedilam

confinadas em suas fronteiras originais Isto eacute inadequado Uma fronteira separa uma

aacuterea da outra e ao mesmo tempo pertence a ambas as aacutereas Os fundamentos do

conflito entre religiatildeo e ciecircncia repousam certamente em tais fronteiras De fato desde

os tempos mais antigos metafiacutesica e filosofia consistiram na exploraccedilatildeo destas

fronteiras entre ciecircncia e religiatildeo (IDEM IBIDEM 77-78)

Nishitani ainda questiona se tais fronteiras podem ser consideradas realmente fronteiras ou natildeo

admitindo que a ciecircncia contemporacircnea natildeo parece se preocupar com a questatildeo A criteacuterio de

verdade objetiva da ciecircncia com o apoio das leis da natureza seria responsaacutevel por de certo

modo menosprezar o conhecimento religioso e mesmo o conhecimento filosoacutefico em

decorrecircncia da verdade cientiacutefica absoluta Mas Nishitani contesta no contrafluxo da tendecircncia

mais geral ldquoMas eacute realmente tatildeo evidente Uma nova maneira de olhar para o absoluto e o

relativo conforme a qual dois absolutos podem se tornar conjuntos impensaacutevel em uacuteltima

instacircnciardquo (ID IBID 78) Para Nishitani o problema vige no fechamento das possibilidades

108

Natildeo haacute aqui uma criacutetica ldquocientofoacutebicardquo mas o levantamento de uma questatildeo qual seja

ldquoNatildeo possuiacutemos uma outra maneira de conceber o relativo senatildeo em termos de estabelecimento

de limites ndash como fazemos por exemplo quando dividimos uma folha de papel em duas ao

traccedilar uma linha nelardquo (ID IBID 79) Nishitani mostraraacute esta possibilidade por meio de sua

interpretaccedilatildeo da ideia de śūnyatā e como ela desvela uma perspectiva que explora os elementos

abandonados pela objetividade cientiacutefica Seja como for eacute possiacutevel considerar jaacute de iniacutecio que

se concentra aiacute toda a potecircncia do diaacutelogo entre metafiacutesica e negatividade apresentado ao longo

desta tese sendo possiacutevel acompanhar Nishitani em uma definiccedilatildeo do conflito das fronteiras

Agora bem quais as saiacutedas ou quais as possiacuteveis chaves de leitura para o problema que

se apresenta a saber a questatildeo do niilismo contemporacircneo Quando emprego aqui o termo

filosofia comparada intercultural tenho em vista a maneira pela Nishitani (entre outros)

exploram as muacuteltiplas significaccedilotildees de distintas tradiccedilotildees culturais em suas convergecircncias e

divergecircncias para se aproximar do problema e propor novos pontos de vista A respeito

especificamente da questatildeo levantada Nishitani utiliza a proacutepria ambivalecircncia do niilismo para

propor uma soluccedilatildeo Seu caminho seraacute resgatar o sentido pelo qual a ciecircncia se apropria das

leis da natureza e desenvolve a tecnologia argumento que eacute precisamente por meio desta

apropriaccedilatildeo que se revelam a medida da liberdade do homem em relaccedilatildeo agraves fronteiras impostas

pelas leis naturais Contudo haacute uma inversatildeo pela qual o controlador se torna o controlado

Conforme Graham Parkes ldquo() a vida humana e o trabalho como um todo se tornam

progressivamente mecanizados e impessoais (nos termos de Heidegger perdemos nossa lsquolivre

relaccedilatildeorsquo com a teacutecnica e estamos lsquoacorrentadosrsquo agrave ela)rdquo explicando ademais que para Nishitani

ldquoA liberdade advinda das leis da natureza que a tecnologia mecanizada nos concede aleacutem do

sentimento concomitante de distacircncia ou separaccedilatildeo do mundo natural levam os seres humanos

a lsquose comportarem como se eles estivessem completamente fora das leis da naturezarsquordquo (PARKES

2013a 103) Sendo assim a uacutenica via possiacutevel eacute restabelecer esta relaccedilatildeo humano-natureza

109

O ponto de apoio de Nishitani para colocar o problema parte da compreensatildeo que

oferece o neoplatonismo e a miacutestica medieval de Deus como nada absoluto (ele cita

especificamente Mestre Eckhart neste ponto) para trazer agrave tona a questatildeo morte-sive-vida

Nishitani evidencia portanto que ldquoEste ponto natildeo pode repousar em um lado mais distante

aleacutem deste mundo e desta vida terrena que possuiacutemos Deve repousar no lado mais proacuteximo

tanto mais proacuteximo quanto nossas vidas ordinariamente devem serrdquo (ID IBID 90) Aproveitando

a perspectiva budista para elucidar este caminho Nishitani esclarece de maneira precisa que

ldquoŚūnyatā eacute o ponto no qual noacutes nos tornamos manifestos de nossa proacutepria talidade (suchness)

como seres humanos concretos como indiviacuteduos com alma e personalidade Ao mesmo tempo

eacute o ponto no qual tudo ao redor se manifesta para noacutes em sua proacutepria talidade (suchness)rdquo (ID

IBID 90)49 Śūnyatā envolve inevitaacutevel e necessariamente este complexo conceito de talidade

(真如 Shinrsquonyo ndash Tathatā तथता) que eacute sem embargo o berccedilo da meditaccedilatildeo oriental

A talidade eacute a via pela qual se extrai a conduccedilatildeo do sistema eacutetico e moral da sociedade

hinduiacutesta primitiva Sua disseminaccedilatildeo no Extremo Oriente eacute carregada por duas tradiccedilotildees quais

sejam o daoiacutesmo e o budismo Os daoiacutestas centram sua noccedilatildeo de ldquoprinciacutepiordquo por meio da noccedilatildeo

de dao (道) e sua relaccedilatildeo com de (德) O famoso Dao De Jing (道德经) bem como a obra do

mestre Zhuangzi (莊子) satildeo os principais responsaacuteveis por colocarem ambos os princiacutepios (dao

e de) e movimento dinacircmico conforme o qual a relaccedilatildeo com natureza natildeo seria entendida nem

como celestial nem como humana mas como ambas sem que uma tenha privileacutegio sobre a

outra ndash e este seria enfim o caminho (dao) da virtude (de) (cf ZHUANGZI 2009 42)

49 Traduzo aqui suchness por talidade com base na ideia de que Nishitani se refere ao conceito budista de Tathatā

(तथता) que em japonecircs se ilustra com o kanji 真如 (Shinnyo) cuja traduccedilatildeo seria ldquorealidade absolutardquo mas natildeo

corresponde ao peso do termo Sobre isto Antonio Morillas escreve que ldquoO termo tathata eacute de difiacutecil traduccedilatildeo

em castelhano Em inglecircs se verte com as expressotildees suchness (a condiccedilatildeo de ser ldquotalrdquo e como se eacute) thatness (o

fato de ser ldquoissordquo que se eacute) e isness (a qualidade de algo que ldquoeacuterdquo sem mais o que eacute e como eacute) () A talidade

[traduccedilatildeo castelhana de tathata] eacute a noccedilatildeo do fato de que a realidade e as coisas e fenocircmenos que a compotildeem satildeo

ldquoassimrdquo ldquotalrdquo e como satildeo que satildeo ldquoissordquo ldquoo que satildeordquo em seu caraacuteter plenamente desnudo na existecircncia luminosardquo

(MORILLAS 2006 167) Pela proximidade com o idioma castelhano opto aqui por adotar a sugestatildeo de Morillas

110

O budismo especialmente o budismo zen absorveria tais ideias com especial forma nos

pensamentos de Kūkai (空海) e Dōgen Zenji (道元禅師) Graham Parkes explica que para Kūkai

duas ideias se configuram essenciais Sokushinjobutsu (即身成仏) a possibilidade de atingir a

iluminaccedilatildeo na vida presente (em contraste ao princiacutepio budista tradicional conforme o qual

seriam necessaacuterias muitas vidas) e Hosshin seppo (発疹 説法 ) o entendimento de que a

personificaccedilatildeo buacutedica eacute desprovida de forma e imagem natildeo permitindo conceitualizaccedilatildeo nem

verbalizaccedilatildeo (cf PARKES 2003 81) A despeito da uniatildeo suscitada pelo daoiacutesmo o budismo

chinecircs do oitavo seacuteculo estava imerso em uma profunda discussatildeo acerca da questatildeo se a

natureza buacutedica podia ser atribuiacuteda somente aos seres sencientes ou tambeacutem agraves miacutenimas

partiacuteculas de poeira Kūkai articula as duas ideias acima mencionadas e interpretas as chamadas

ldquotrecircs intimidadesrdquo (corpo fala mente) do Dainichi Nyorai (木造大日如来坐像) que representa a

revelaccedilatildeo esoteacuterica dos ensinamentos no Budismo para sustentar o muacutetuo pertencimento da

relaccedilatildeo do todo com suas partes assumindo a natureza buacutedica para absolutamente tudo Ele

escreve neste sentido ldquoEssa existecircncia estaacute naquela e aquela estaacute nessa A Existecircncia do Buda

(Mahāvairocana) eacute a existecircncia dos seres sencientes e vice e versa Eles natildeo satildeo idecircnticos mas

satildeo todavia idecircnticos eles natildeo satildeo diferentes mas satildeo todavia diferentesrdquo (KŪKAI 1972 93)

Jaacute para Dōgen a evocaccedilatildeo da conduta zen se daria por meio de uma miacutestica cotidiana

alimentando a noccedilatildeo de que toda atividade eacute expressatildeo da natureza buacutedica Parkes argumenta

que algumas atividades satildeo especialmente ilustrativas como por exemplo preparar a comida

servi-la e come-la Dōgen citaria um trecho do Vimalakīrti Nirdeśa Sūtra (नवमलकीनत निदश सतर) que

diria ldquoQuando somos unos com a comida que comemos somos unos com todo o universordquo

evocando o uso do silecircncio como veiacuteculo para o esclarecimento do śūnyatā como fundamento

absoluto da realidade (cf PARKES OP CIT 84) As praacuteticas rituais natildeo possuiriam todavia

conotaccedilatildeo lituacutergica pontual e direcionada mas antes a totalidade de uma experiecircncia de vida

religiosa

111

Tanto Kūkai quanto Dōgen influenciaram amplamente o pensamento de Nishitani e o

ponto de vista conforme o qual o śūnyatā direciona uma atitude por meio da qual se mostra a

talidade Tanto no daoiacutesmo de Zhuangzi quando no zen budismo de Kūkai e Dōgen estatildeo em

jogo o aspecto formal a aparecircncia (rūpa shiki) da realidade em torno por um lado e a assunccedilatildeo

da dissoluccedilatildeo do fundamento dessa realidade por outro (sua vacuidade śūnyatā kū) Por este

motivo haacute uma muacutetua reciprocidade entre a totalidade e as coisas entre uno e muacuteltiplo Isto eacute

o que permite a participaccedilatildeo e ao mesmo tempo incorporaccedilatildeo da realidade (dharmakāya)

Contudo natildeo seraacute o mero resgate das tradiccedilotildees orientais que forneceraacute a Nishitani a resposta

ao problema no que concerne ao impacto da questatildeo frente aos tempos de niilismo mas sim o

resultado da confrontaccedilatildeo desta tradiccedilatildeo com a filosofia contemporacircnea ocidental ou sem

embargo o confronto entre as fronteiras

Graham Parkes atenta para uma reivindicaccedilatildeo de Nishitani de haver superado em certa

medida o desenvolvimento das filosofias de pensadores como Hegel Nietzsche e Heidegger

(cf PARKES 2013b 189-190) Contudo no cerne desta proposiccedilatildeo estaacute a ideia de que o que foi

superado natildeo foi propriamente o conteuacutedo da meditaccedilatildeo mas a forma da abordagem ou seja

a perspectiva intercultural privilegiada da comparaccedilatildeo filosoacutefica de Nishitani Com o anuacutencio

da morte de Deus e dos tempos de niilismo em Nietzsche ficou evidente um diagnoacutestico da

atividade humana inerente aos valores que a guiam por um lado e a induccedilatildeo ao desespero

suscitado pela projeccedilatildeo cognoscitiva ao ente por outro A saiacuteda de Nietzsche por meio do

ldquogrande antiacutedotordquo da transvaloraccedilatildeo de todos os valores eacute recebida em Nishitani considerando

trecircs ideias chave de sua leitura budista (1) a constituiccedilatildeo do fundamento da existecircncia como

uma experiecircncia aleacutem da relaccedilatildeo entre sujeito objeto por meio do conceito de (referente agrave noccedilatildeo

de dharma धम) (2) a reaccedilatildeo de retorno ao mesmo de toda atividade (a partir do conceito de

karma कम) e a noccedilatildeo de que natildeo haacute nada que exista independente de circunstacircncias e

condicionamento ou a chamada ldquoco-originaccedilatildeo dependenterdquo (o pratītya-samutpāda परतीतयसमतपाद)

112

Portanto o que em Nietzsche seria postulado como destino enquanto o ldquomesmordquo (o ego

fatum nietzscheano) engendrando um ponto de vista criativo em Nishitani seria entendido

desde a ideia do karma Em Nihirizumu Nishitani escreve acerca deste ponto especiacutefico que

ldquoNeste niacutevel fundamental o mundo se move na esfera do mesmo e o mesmo na esfera do

mundo Esta ideia estaacute proacutexima da ideia budista de karma embora em Nietzsche o ponto de

vista do mesmo como destino eacute fundamentalmente criativordquo (NISHITANI 1990 50) Em termos

mais simples de acordo com Parkes ldquo() o que parece um golpe do destino pode ser entendido

antes como uma parte de nossa proacutepria atividaderdquo (PARKES OP CIT 196) O florescimento desta

consideraccedilatildeo se daacute na afirmaccedilatildeo niezscheana do amor fati e da superaccedilatildeo do abismo da grande

suspeita niilista por meio da grande dor pela qual se renasce o que seraacute entendido em Nishitani

a partir do retorno ao abismo onde ldquo() uma vez que algueacutem eacute libertado do abismo a

necessidade se torna um elemento desta vida de liberdade Neste caso necessidade se torna

uma com a criatividaderdquo (NISHITANI OP CIT 52) Entretanto a ressalva de Nishitani consiste que

a afirmaccedilatildeo resultante da superaccedilatildeo do abismo niilista pode ainda ser superar e que a vontade

de poder eacute ainda uma ldquocoisardquo chamada ldquovontaderdquo (cf IDEM OP CIT 234) cuja uacutenica possibilidade

de ser pensada para aleacutem dos fundamentos que redundam no destino como mesmo seria

justamente o ponto de vista do śūnyatā Uma ilustraccedilatildeo possiacutevel de ldquopara onderdquo este ponto de

vista levaria pode ser encontrada quando Nishitani comenta a arte japonesa de arranjo de flores

a chamada Ikebana (生け花) Ali fica niacutetido qual a postura que se assume quando se daacute conda

da vacuidade da realidade uacuteltima e absoluta Nishitani escreve

Desde a perspectiva de sua natureza fundamental todas as coisas no mundo satildeo

lacircminas de grama sem raiacutezes Tal grama entretanto tenho fincado suas raiacutezes no solo

esconde a si mesma em sua fundamental ausecircncia de raiacutezes () sendo cortadas de suas

raiacutezes as flores satildeo feitas pela primeira vez pela manifestaccedilatildeo minuciosa de sua

natureza fundamenta ndash sua falta de raiacutezes (IDEM 2011 1199)

113

Ao fim e ao cabo Nishitani estaacute chamando atenccedilatildeo para uma aprendizagem decorrente da ldquoco-

originaccedilatildeo dependenterdquo a partir da natureza Sobre este ponto e sua relaccedilatildeo com o niilismo

Parkes escreve ldquo() noacutes humanos diferimos de outros entes por meio da possibilidade de nos

tornamos conscientes de nossa proacutepria finitude no estado da niilidade (kyomu) um tipo de

ldquovacuidade ocardquo que eacute uma antecacircmara para a vacuidade criativa (śūnyatā kū)rdquo (PARKES OP

CIT 112) Resumidamente o ponto de vista do śūnyatā se configura para Nishitani a partir da

tradiccedilatildeo do zen budismo oriental e de sua leitura da filosofia ocidental como uma iluminaccedilatildeo

a respeito do fundamento da realidade enquanto vacuidade evidenciado sobremaneira pelo

abismo do niilismo contemporacircneo e que direciona o ser humano para uma vacuidade criativa

na qual sua relaccedilatildeo com as coisas congrega tudo em uma mesma natureza buacutedica ou seja o

lugar onde as flores o arranjo o florista e o ato de fazer o arranjo satildeo a mesma coisa ou o lugar

onde a mosca o anjo Deus e o eu satildeo o mesmo

114

CONCLUSAtildeO

Durante o primeiro semestre de 2011 estava profundamente motivado com a preparaccedilatildeo do

texto final desta tese doutoral Ocupava-me ao mesmo tempo das pesquisas leituras

sistematizaccedilatildeo dos esquemas defesa da versatildeo do final do projeto e dos cursos que iria ministrar

na Universidade Federal do Rio Grande do Norte nos meses seguintes A abordagem agrave histoacuteria

da metafiacutesica agrave tradiccedilatildeo do neoplatonismo e agrave filosofia japonesa contemporacircnea atingiam-me

simultaneamente por meio de muacuteltiplas construccedilotildees conceituais interligadas pela lucidez

provocada mediante a histoacuteria dos efeitos de cada ambiente temaacutetica Contudo ao 11 de marccedilo

daquele ano foi transmitida uma notiacutecia que imediatamente cessou minha produccedilatildeo e

empolgaccedilatildeo com todo e qualquer toacutepico Os jornais incessantemente transmitiam as uacuteltimas

notiacutecias a respeito de um terremoto seguido por um tsunami que havia atingido o Japatildeo e

danificado a estrutura da usina nuclear de Fukushima na cidade de Ōkuma expondo a

comunidade da regiatildeo agrave alarmantes niacuteveis de radioatividade O desastre ambiental seria

considerado algum tempo mais tarde a maior cataacutestrofe nuclear desde Chernobyl em 1986

Evidentemente como havia ocorrido tambeacutem em 2001 durante o ataque terrorista ao

World Trade Center em Nova Iorque as reportagens que chocavam o mundo se tornariam

rapidamente repetitivas e esgotariam o puacuteblico O motivo pelo qual se daria tal neutralizaccedilatildeo e

letargia frente aos fatos foi denunciado por Slavoj Žižek na obra The Year of Dreaming

Dangerously (2012) Ele pondera os eventos destrutivos de 2011 tais quais a Primavera Aacuterabe

e o Occupy Wall Street desde a neutralizaccedilatildeo ideoloacutegica promovida pela miacutedia dando margem

agrave interpretaccedilatildeo conforme a qual os veiacuteculos de comunicaccedilatildeo vigentes aniquilam o potencial

emancipatoacuterio dos eventos por meio da pasteurizaccedilatildeo de sua difusatildeo

115

Žižek destaca o termo da liacutengua persa ldquowar nam nihadanrdquo cujo abstruso significado

seria em linhas gerais ldquomatar algueacutem enterrar seu corpo e plantar flores sobre sua cova para

esconder o cadaacuteverrdquo Para Žižek os meios de comunicaccedilatildeo do capitalismo global destroem a

absorccedilatildeo propriamente humana dos eventos do mundo contemporacircneo exatamente neste

mesmo sentido (cf ŽIŽEK 2012 9) Sem sombra de duacutevidas o mesmo se daria em relaccedilatildeo ao

desastre de Fukushima e hoje trecircs anos depois uma pedra foi posta por sobre o assunto e poucas

pessoas sequer se lembram do ocorrido

Entretanto meu denso envolvimento com a filosofia japonesa natildeo permitiu que os

acontecimentos fossem dissolvidos assim tatildeo facilmente Passei um bom tempo tocado pela

calamidade e mesmo ateacute agora ainda tenho dificuldades em lidar com o assunto As

adversidades emotivas todavia natildeo me impediram de pensar com devoccedilatildeo sobre a questatildeo

pelo contraacuterio estimularam ainda mais o rumo da reflexatildeo filosoacutefica

O ano seguinte seria marcado em meu percurso pessoal pela saiacuteda do paiacutes e realizaccedilatildeo

de estaacutegio sanduiacuteche junto agrave University College Cork (Colaacuteiste na hOllscoile Corcaigh) para

realizar minhas pesquisas sob a supervisatildeo do professor Graham Parkes na Irlanda Parkes

havia publicado no iniacutecio daquele ano um breve artigo intitulado Nuclear Power after

Fukushima 2011 Buddhist and Promethean Perspectives (2012) no qual natildeo apenas analisava

os fatos mas ainda apresentava uma meditaccedilatildeo a respeito de uma filosofia da natureza para

aleacutem das ecologias profundas ou natildeo

Simplificando o assunto o estiacutemulo para o fornecimento de energia nuclear eacute

alimentado pela conclusatildeo de que se trata de uma fonte limpa e autossustentaacutevel em contraste

agrave queima do combustiacutevel e exploraccedilatildeo de recursos foacutesseis ou mesmo aos impactos ambientais

causados pela obstruccedilatildeo de fluxos de aacutegua Aparentemente trata-se de uma soluccedilatildeo emergente

frente ao ainda ineficaz suporte das energias ecologicamente viaacuteveis como a eoacutelica e a solar

116

Parkes pontua sobre isto que ldquoA questatildeo crucial natildeo diz respeito aos meacuteritos relativos

e agraves desvantagens do poder nuclear versus a energia dos combustiacuteveis foacutesseis Antes trata-se

de pensar o que norteia nosso desejo de consumir tanta energia em primeiro lugarrdquo (PARKES

2012 103) O posicionamento diz respeito a um ldquopasso atraacutesrdquo A pergunta eacute o que move no

final das contas o irredutiacutevel e irrefreaacutevel iacutempeto de explorar todos os recursos naturais para

fomentar a manutenccedilatildeo da vida humana na Terra Mesmo com a leitura do escrito eu

particularmente soacute conseguiria compreender o direcionamento proposto por Parkes apoacutes

acompanhar seus seminaacuterios sobre filosofias da natureza entre Ocidente e Oriente no qual

ficariam claras as bases pelas quais ele questionava a conduta contemporacircnea face agrave crise

ambiental

Entretanto quando me deparei com as primeiras leituras oferecidas por Parkes (muitas

das quais constam na bibliografia desta tese) natildeo fui acometido pelo espanto da novidade mas

pela pulsatildeo da comparaccedilatildeo A experiecircncia que jaacute havia acumulado sob a orientaccedilatildeo do

professor Oscar Federico Bauchwitz durante meus anos de pesquisa acadecircmica dedicado agrave

leitura de Nietzsche Heidegger e da tradiccedilatildeo do neoplatonismo e da miacutestica medieval proveu-

me de uma arquitetocircnica meditativa que com a aproximaccedilatildeo com a filosofia oriental apenas

nutriu imediata empatia e introspecccedilatildeo Sendo assim quando congreguei o focirclego e as forccedilas

necessaacuterias para encerrar este trabalho natildeo tinha em mente uma tese levantada de um mero

problema particular mas um longo percurso especulativo que ao longo das paacuteginas aqui

apresentadas tentei descrever da melhor maneira possiacutevel

Sobreveio-me durante os termos finais uma intensa obrigaccedilatildeo de sustentar que a uacutenica

via possiacutevel para enfrentar os problemas filosoacutefico contemporacircneos era a instauraccedilatildeo de um

retorno aos fundamentos por meio da interculturalidade Portanto a conclusatildeo desta tese soacute

pode caminhar rumo agrave elucidaccedilatildeo de quais fundamentos no final das contas satildeo estes que estatildeo

aqui e ali indicados no interior do trabalho

117

Em 1953 Martin Heidegger pronunciou a conferecircncia intitulada Die Frage nach

Technik O escrito eacute talvez uma de suas mais claras expressotildees acerca de sua anaacutelise da

consumaccedilatildeo da histoacuteria da metafiacutesica a instauraccedilatildeo do niilismo europeu e o advento da Era

Teacutecnica Paralelamente durante o mesmo periacuteodo (na verdade em 1954) Nishitani finalizava

a composiccedilatildeo de seu ensaio sobre ldquoNiilismo e Śūnyatārdquo mais tarde incluiacutedo no volume Shūkyo

to wa Nanika abordado aqui ao longo do terceiro capiacutetulo Como foi possiacutevel observar em

Nishitani a saiacuteda do ponto de vista da vacuidade ou nada absoluto demandava a busca por

uma postura interior do ser humano na qual se tornava evidente nada mais senatildeo o elemento

inexplicaacutevel e inexprimiacutevel do fundamento uacuteltimo da realidade que era assumido agora como

oriente para o comportamento humano frente ao colapso do novo mundo A dificuldade inerente

de absorver a proposta de Nishitani todavia eacute ilustrada de maneira praacutetica quando ele aborda

uma questatildeo particular qual seja a relaccedilatildeo entre ser humano e natureza na imagem do jardim

zen Noacutes estamos dentro do jardim e natildeo somos apenas espectadores porque noacutes nos tornamos

parte da real manifestaccedilatildeo da expressatildeo da proacutepria experiecircncia iluminadora do arquiteto do

jardim O jardim eacute meu mestre Zen agora e eacute seu mestre Zen tambeacutem (NISHITANI 1992 55)

Quando Heidegger indica em sua conferecircncia que a essecircncia da teacutecnica natildeo eacute ela mesma nada

teacutecnico ele estaacute em um movimento similar ao de Nishitani chamando atenccedilatildeo para o fato de

que eacute necessaacuterio tambeacutem retornar a algo que natildeo pode ser submetido agrave objetividade cientiacutefica

da relaccedilatildeo sujeito-objeto que sustenta a tecnicizaccedilatildeo do mundo Neste sentido a saiacuteda de

Heidegger eacute ilustrada por meio de um dos conceitos mais enigmaacuteticos de toda sua obra

Gelassenheit Heidegger escreve ldquoTalvez se oculte na Gelassenheit uma accedilatildeo mais elevada do

que em todos os atos do mundo e do que nas maquinaccedilotildees das reliacutequias humanasrdquo (HEIDEGGER

1983a 41) O sentido contudo permanece oculto Resta apenas a ideia de que esta postura

evocada por Heidegger demanda um ldquodeixarrdquo (lassen) que atina para um recolhimento da

paradoxal ambiguidade do que se revela na essecircncia do humano

118

Ressoa tanto em Heidegger quanto em Nishitani uma raiz comum aquela na qual se

ldquoRenuncia aos sentidos agraves operaccedilotildees intelectuais a todo sensiacutevel e ao inteligiacutevelrdquo ainda mais

aquela onde se pede ldquoDespoja-te de todas as coisas que satildeo e ainda das que natildeo satildeo Deixa de

lado teu entender e esforccedila-te por subir o mais que possa ateacute unir-se com aquele que estaacute mais

aleacutem de todo ser e todo saberrdquo Estas palavras aqui propositalmente citadas sem a indicaccedilatildeo

bibliograacutefica satildeo do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita onde neoplatonismo e miacutestica se encontram

no caminho da negatividade Tanto o ldquoprestar atenccedilatildeo aos misteacuterios da naturezardquo em Nishitani

quando a ldquoabstenccedilatildeo da vontade por meio da natildeo-vontaderdquo o ldquoquerer o natildeo-quererrdquo em

Heidegger estatildeo depositados nas sentenccedilas do miacutestico siacuterio

Agora qual eacute este lugar ou natildeo-lugar aleacutem de todo ser e todo saber O que se revela

por meio do despojo e da supressatildeo de todo saber e todo o dizer Esta pergunta natildeo eacute respondida

Natildeo pode ser respondida O que se desvela aiacute eacute justamente o incoacutegnito o misteacuterio Como reagir

portanto frente a tal proposta de em meio a existecircncia contemporacircnea remar no contrafluxo

do sentido do mundo e buscar uma quietude absoluta no silecircncio que adveacutem do misteacuterio da

existecircncia Agrave esta pergunta tampouco se ofereceraacute resposta mas desta vez porque ela jaacute estaacute

respondida A reaccedilatildeo foi nomeada com diversos termos ao longo da histoacuteria recebendo distintas

designaccedilotildees Algumas tradiccedilotildees orientais optam por chama-la ldquoiluminaccedilatildeordquo

Por fim o conflito das fronteiras aqui abordado natildeo eacute um evento especiacutefico um

momento ou instante captaacutevel uma situaccedilatildeo ou circunstacircncia particular O conflito das

fronteiras eacute um caminho ou melhor uma caminhada Uma caminhada rumo ao desconhecido

cujo uacutenico sinal evidente acena para o clamor de um silecircncio ensurdecedor indicando que jaacute eacute

hora de se recolher

119

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4

FOLHA DE APROVACcedilAtildeO

LUIZ FERNANDO FONTES TEIXEIRA

O CONFLITO DAS FRONTEIRAS

Metafiacutesica Negatividade e o Extremo Oriente

Tese aprovada como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do grau de Doutor em Filosofia no

Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da Universidade Federal da Paraiacuteba

Universidade Federal de Pernambuco e Universidade Federal do Rio Grande do Norte pela

seguinte banca examinadora

Orientador Prof Dr Oscar Federico Bauchwitz (presidente)

Departamento de Filosofia UFRN

Profa Dra Gisele Amaral dos Santos

Departamento de Filosofia UFRN

Dr Edrisi de Arauacutejo Fernandes

Departamento de Filosofia UFRNUnB

Prof Dr Leonel Ribeiro dos Santos

Faculdade de Letras Universidade de Lisboa

Profa Dra Claudia DrsquoAmico

Departamento de Filosofia Universidad de Buenos Aires

Prof Dr Ciacutecero Cunha Bezerra (suplente)

Departamento de Filosofia UFS

Profa Dra Claudia Pellegrini Drucker (suplente)

Departamento de Filosofia UFSC

Natal 30 de maio de 2014

5

AGRADECIMENTOS

Pelos anos de orientaccedilatildeo e suporte pela incansaacutevel e paciente instruccedilatildeo pelo sempre presente

companheirismo e por tornar possiacutevel o caminho percorrido agradeccedilo ao Prof Dr Oscar

Federico Bauchwitz Pela hospitalidade e cortesia pelos conselhos e indicaccedilotildees pelos diaacutelogos

e por abrir um novo horizonte especulativo para muito aleacutem do trabalho acadecircmico agradeccedilo

ao Prof Dr Graham Parkes

Pela oportunidade de discussatildeo e criacuteticas pela atenccedilatildeo na leitura do trabalho e pelos

inestimaacuteveis acreacutescimos agradeccedilo aos membros das bancas de qualificaccedilatildeo e defesa Profa

Dra Claudia DrsquoAmico Prof Dr Leonel Ribeiro dos Santos Dr Edrisi de Arauacutejo Fernandes e

Profa Dra Gisele Amaral dos Santos

Agradeccedilo ao Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da Universidade Federal

da Paraiacuteba Universidade Federal de Pernambuco e Universidade Federal do Rio Grande do

Norte pela aceitaccedilatildeo do projeto de tese doutoral Agradeccedilo agrave University College Cork (Colaacuteiste

na hOllscoile Corcaigh) pela recepccedilatildeo do estaacutegio sanduiacuteche Agradeccedilo ao Trinity College

Dublin (Colaacuteiste na Triacuteonoacuteide Baile Aacutetha Cliath) pela oportunidade de frequentar os

seminaacuterios e bibliotecas Agradeccedilo agrave Alianccedila Cultural Brasil-Japatildeo e agrave Biblioteca Joatildeo Hideo

Matsumoto e ao Instituto Goethe de Satildeo Paulo e sua biblioteca Agradeccedilo ao Instituto Paulista

de Sacircnscrito e ao Prof Dr Adriano Aprigliano Agradeccedilo ainda agrave Coordenaccedilatildeo de

Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior pelo fomento da tese doutoral e do estaacutegio no

exterior

Agradeccedilo agraves pessoas que direta ou indiretamente contribuiacuteram no processo de

composiccedilatildeo da tese Alan Marinho Lopes Dax Moraes Marcus Vinicius Cavalcante Dantas

Tulio Madson de Oliveira Galvatildeo Sara Barrera Rubio Bastien Duval Javier Coloacuten Joseph

Sexton Agnieszka Klęczar Rodrigo Ferreira Braga Abrahatildeo Marcelo Ferreira Braga e Carla

Almeida

Agradeccedilo especialmente agrave Thaiacutes Ricci Conesa pelo apoio e pela motivaccedilatildeo sem os

quais natildeo concluiria este trabalho Finally yet importantly agradeccedilo ao absoluto integral e

irrestrito apoio de meus pais Luiz Pinto Teixeira e Tereza Cristina Fontes

6

Eacute preciso ainda ter caos dentro de si para dar

luz a uma estrela danccedilante

Friedrich Nietzsche Assim falou Zaratustra

7

RESUMO

O conflito das fronteiras se desdobra como um percurso natural da histoacuteria do pensamento

humano Torna-se manifesto todavia apenas mediante um expliacutecito choque cultural que

evidencia distintas formataccedilotildees conceituais Pensar este conflito pode esclarecer os enlaces

responsaacuteveis pelo desenvolvimento do pensamento contemporacircneo Esta tese pretende analisar

em um primeiro momento a histoacuteria do pensamento enquanto metafiacutesica apresentando um

diagnoacutestico da maneira pela qual o Ocidente impinge sua loacutegica categoacuterica Por conseguinte

apresenta a tradiccedilatildeo da negatividade evidenciando um pensamento para aleacutem da ontologia

claacutessica mediante uma henologia e uma meontologia no neoplatonismo e na miacutestica medieval

Por fim expotildee o pensamento do Extremo Oriente como possiblidade de recepccedilatildeo

contemporacircnea da negatividade e escapatoacuteria para a formataccedilatildeo ocidentalizante da filosofia

vigente

Palavras-chave Fronteiras Metafiacutesica Negatividade Extremo Oriente

8

ABSTRACT

The conflict of borderlines unfolds itself as a natural path in history of human thought It

becomes clear only through an explicit cultural clash which conveys distinct conceptual

formatting Thinking this conflict might enlighten the bindings responsible for development of

contemporary way of thought This thesis intent to analyse in a first moment the history of

thought as Metaphysics presenting a diagnostic towards the way through which the West

impinges its categorical logic Thereafter presents the tradition of Negativity showing a

thinking beyond Classic Ontology through a Henology and a Meontology in Neoplatonism and

Medieval Mysticism At the end exposes the Far Eastern thought as possibility of contemporary

reception of Negativity and escape from the Westernizer formatting of contemporary

philosophy

Key words Frontiers Metaphysics Negativity Far East

9

ZUSAMMENFASSUNG

Der Konflikt der Grenzen entfaltet sich als einen natuumlrlichen Weg in der Geschichte des

menschlichen Denkens Es wird nur klar durch eine explizite Kulturkampf die unterschiedliche

konzeptionelle Formatierung vermittelt Denken dieses Konflikts koumlnnte die Bindungen fuumlr die

Entwicklung der zeitgenoumlssischen Denkweise verantwortlich zu erleuchten Diese These

versuchen zu analysieren in einem ersten Moment die Geschichte des Denkens als Metaphysik

praumlsentiert eine Diagnose auf die Moumlglichkeit durch die der Westen trifft seine kategorische

Logik Danach praumlsentiert die Tradition der Negativitaumlt zeigt ein Denken jenseits Klassische

Ontologie durch eine Henologie und Meontologie im Neuplatonismus und mittelalterliche

Mystik Am Ende macht der Fernost gedacht als Moumlglichkeit der zeitgenoumlssischen Rezeption

von Negativitaumlt und Flucht aus der Westler Formatierung der zeitgenoumlssischen Philosophie

Schuumlsselwoumlrter Frontiers Metaphysik Negativitaumlt Fernost

10

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 11

1 ONTOLOGIA A SUBSTANTIVACcedilAtildeO DO OCIDENTE E O PROBLEMA DA METAFIacuteSICA 28

ENQUANTO DELIMITACcedilAtildeO DAS FRONTEIRAS DO PENSAMENTO

2 O CAMINHO DA NEGATIVIDADE HENOLOGIA E MEONTOLOGIA E A ULTRAPASSAGEM 61

DOS LIMITES DA METAFIacuteSICA

3 O EXTREMO ORIENTE E O CONFLITO DAS FRONTEIRAS A FILOSOFIA COMPARADA 89

INTERCULTURAL COMO CHAVE DE LEITURA PARA ALGUNS PROBLEMAS DO

PENSAMENTO CONTEMPORAcircNEO

CONCLUSAtildeO 113

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 119

11

INTRODUCcedilAtildeO

Aos 16 de abril de 2010 sob a avaliaccedilatildeo de uma banca composta pelos professores Oscar

Federico Bauchwitz Gisele Amaral dos Santos e Acylene Maria Cabral Ferreira defendi a

dissertaccedilatildeo de mestrado intitulada A caminho da fronteira Embora possa ainda dedicar mais

dez anos agrave correta composiccedilatildeo estiliacutestica daquele texto aleacutem da estruturaccedilatildeo dos argumentos

laacute natildeo tatildeo bem encadeados imagino ter alcanccedilado o objetivo de tornar claro natildeo apenas o intuito

do trabalho mas o problema movimentado pela questatildeo do conflito fronteiriccedilo de uma filosofia

comparada intercultural por meio de uma histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica

A questatildeo ldquoentre Heidegger e os japonesesrdquo (subtiacutetulo da dissertaccedilatildeo) abordada ao longo

dos dois anos de mestrado acadecircmico referia-se a uma virada de pontos de vista se em um

primeiro momento os orientais se perguntavam o quecirc a filosofia ocidental podia oferecer ao

pensamento e desenvolvimento do Extremo Oriente em um segundo momento os ocidentais

passaram a se perguntar de que forma os japoneses podiam acrescentar agrave filosofia um elemento

meditativo perdido no periacuteodo da consumaccedilatildeo da teacutecnica moderna e do cientificismo desde

suas perspectivas milenares de pensamento reflexivo

Ao passo em que a pesquisa ia se desenvolvendo o trabalho caminhou paulatinamente

rumo ao impacto violento surtido pelo diaacutelogo entre limites bem delineados de um Ocidente

estruturalmente metafiacutesico e um Oriente especulativo quase inefaacutevel para um leitor ocidental

A conclusatildeo extraiacuteda do caminho percorrido entre os anos de 2008 e 2010 apresentou antes de

qualquer soluccedilatildeo a constataccedilatildeo da instalaccedilatildeo de uma impertinecircncia petrificada no seio da

filosofia contemporacircnea sobre a qual pouco se pode acrescentar na dissoluccedilatildeo de problemas

mas muito se pode desdobrar no que tange ao entrelaccedilamento do alcance de um grau distinto

de movimentaccedilatildeo das arquitetocircnicas conceituais

12

Embora tais palavras pareccedilam abstratas em demasia (e de fato satildeo) o foco atingido se

concentrou em uma inquiriccedilatildeo a respeito do pensamento da linguagem e da verdade a partir

de um inusitado enigma sobre a negatividade do impensaacutevel ou seja sobre o silecircncio que

emerge no preciso momento no qual o pensamento eacute estarrecido e a liacutengua cala

A armadilha construiacuteda a partir das muacuteltiplas tentativas de elaboraccedilatildeo de conceitos afeta

natildeo somente a formataccedilatildeo silogiacutestica do intelecto humano comum mas ainda as

particularidades dos diversos modos de expressatildeo geograficamente distintos Correndo o risco

de se tornar antes uma antropologia filosoacutefica do que propriamente uma histoacuteria e criacutetica da

metafiacutesica o trabalhou refletiu uma anaacutelise agrave proacutepria concepccedilatildeo pela qual se distingue uma

filosofia da outra execrando qualquer nacionalismo filosoacutefico e investigando as questotildees que

envolvem a existecircncia humana dentro de seu modo relacional com o ser e com o ambiente que

a cerca O resultado foi a apresentaccedilatildeo de uma filosofia comparada intercultural que aparece

natildeo simplesmente como um campo disciplina ou subaacuterea da filosofia mas antes como uma

maneira pela qual eacute possiacutevel pensar filosoficamente para aleacutem das fronteiras de uma mera

linguagem de primeira ordem Dentro deste contexto nasce a hipoacutetese do tema o conflito das

fronteiras a partir do pressuposto de uma abordagem aos temas centrais do pensamento

contemporacircneo sustentando a interculturalidade filosoacutefica como aporte central

A proposiccedilatildeo fundamental desta tese adveacutem de alguns questionamentos particulares e

pontuais em um fluxo semelhante ao da dissertaccedilatildeo de 2010 Em abril de 2009 enquanto ainda

trabalhava no texto do mestrado teve lugar no campus da Universidade Federal do Rio Grande

do Norte o III Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica comissionado pelos professores Oscar

Federico Bauchwitz Jaimir Conte Maria da Paz Nunes de Medeiros e Markus Figueira da Silva

O evento marcava a consolidaccedilatildeo da linha de pesquisa em Metafiacutesica do Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Filosofia da universidade trazendo em sua terceira ediccedilatildeo o tema O que eacute

metafiacutesica Em homenagem aos oitenta anos da preleccedilatildeo homocircnima de Martin Heidegger

13

A conferecircncia pronunciada por Heidegger aos 24 de julho de 1929 foi preparada como

aula inaugural para a assunccedilatildeo da caacutetedra de filosofia que antes pertencera a Edmund Husserl

na Albert-Luumldwigs Universitaumlt Freiburg im Breisgau O escrito se tornou um dos mais

emblemaacuteticos conhecidos e discutidos textos de Heidegger Talvez o fator mais impactante da

preleccedilatildeo seja antes mesmo da abordagem temaacutetica o meacutetodo pouco usual conforme o qual o

questionamento eacute elaborado Heidegger inicia a aula dizendo que embora a questatildeo suscite a

expectativa de que se falaraacute sobre a metafiacutesica ele iraacute na verdade discutir uma questatildeo

metafiacutesica particular proporcionando uma movimentaccedilatildeo em seu interior e habilitando a

oportunidade para que a ela apareccedila por si soacute a partir do problema levantado (cf HEIDEGGER

1976 103) Deixar a metafiacutesica se apresentar por si soacute antes do que sobre ela discorrer

evidencia uma feiccedilatildeo um tanto distinta da abordagem de Heidegger ao problema uma de suas

marcas registradas todavia

Raras vezes a tradiccedilatildeo ocidental se deparou com tal niacutevel de heterodoxia no que tange

agrave instruccedilatildeo filosoacutefica (talvez apenas Platatildeo tenha cunhado semelhante meacutetodo ao perseguir o

pescador com o anzol antes de se aproximar da figura do sofista por exemplo ndash natildeo consigo

pensar em outras ilustraccedilotildees agora mesmo embora certamente elas existam) Uma linha de

raciociacutenio como esta aproxima-se muito mais de uma postura oriental

Durante o Coloacutequio aleacutem de retomar pela eneacutesima vez a leitura da preleccedilatildeo de

Heidegger lembro-me de me dedicar agrave leitura da claacutessica obra propedecircutica de Kaiten Nukariya

The Religion of Samurai (1913) a primeira obra sobre zen budismo publicada no Ocidente (em

liacutengua ocidental) Apoacutes uma breve introduccedilatildeo sobre a origem do budismo na Iacutendia e o percurso

de Śākyamuni Siddhārta Gautama (o Buddha Śākyamuni शाकयमनि) Nukariya relata a maneira

pela qual o monge Bodhidharma introduz o budismo na China destacando que seu meacutetodo era

inteiramente diferente dos outros instrutores de ensino ordinaacuterios

14

Sobre Bodhidharma Nukariya relata ldquoEle natildeo explicaria nenhum problema ao

estudante mas simplesmente ajudaacute-lo-ia a ser iluminado colocando-o um abrupto poreacutem eficaz

questionamentordquo (NUKARIYA 2006 10) Com esta metodologia tem iniacutecio a tradiccedilatildeo de

budismo chinecircs nomeada chrsquoan (dʑjen 禪) uma traduccedilatildeo do termo sacircnscrito dhyāna (धयाि) cujo

significado mais geral seria ldquomeditaccedilatildeordquo ou ldquopensamentordquo que futuramente seria lido na

pronuacutencia japonesa (くんよみ kun-yomi) do ideograma como zen (禅 ) Apoacutes expor esta

caracteriacutestica iacutempar do ensino de Bodhidharma Nukariya ainda relata uma breve histoacuteria na

qual um tal Shang Kwang havia requisitado ao mestre que ldquolhe pacificasse a menterdquo

Prontamente Bodhidharma teria respondido ldquoTraga-me aqui sua mente ante mim para que eu

a pacifiquerdquo e Shang Kwang teria replicado ldquomas isto eacute impossiacutevelrdquo recebendo em seguida

a resposta ldquoentatildeo jaacute pacifiquei sua menterdquo Shang Kwang foi instantaneamente iluminado

Certamente Martin Heidegger natildeo exige de seus ouvintes leitores e interlocutores uma

iluminaccedilatildeo tatildeo abrupta e desprovida de raciociacutenio loacutegico mas nem por isto suas reivindicaccedilotildees

satildeo menos ousadas e intensas ou sua meditaccedilatildeo menos profunda Heidegger propocircs diversas

reflexotildees que extraiacutedas de seu contexto especiacutefico configuram-se tatildeo inusitadas quanto as

passagens da tradiccedilatildeo chrsquoan ou zen sendo por vezes consideradas mesmo impertinentes Eacute o

caso de uma de suas mais arrojadas e emblemaacuteticas afirmaccedilotildees ldquoO mais grave eacute que natildeo

pensamosrdquo (HEIDEGGER 2002 6) Desconsiderando o sentido ao qual a sentenccedila pertence

certamente as palavras de Heidegger parecem uma afronta Todavia o leitor atento sabe que

Heidegger se refere agrave distinccedilatildeo entre um pensamento calculador (rechnende Denken) e um

pensamento meditativo (Besinnung) reportando-se ao velamento deste uacuteltimo e da supremacia

exclusiva do primeiro por meio do qual se faz ciecircncia e se daacute o desenvolvimento estrutural da

condiccedilatildeo tecnoloacutegica imperiosa Eacute justamente dentro deste fluxo que Heidegger afirma a

predominacircncia do pensamento cientiacutefico tambeacutem em Was ist Metaphysik

15

Para ingressar no interior da metafiacutesica Heidegger chama atenccedilatildeo ao fato de que a

existecircncia humana eacute hoje sobremaneira norteada pela ciecircncia Embora alguns opositores ainda

resistam agrave tal afirmaccedilatildeo natildeo eacute todavia difiacutecil convencecirc-los do contraacuterio argumentando em

favor da tese de Heidegger Natildeo se trata apenas de afirmar que o ser humano se apoia e confia

uacutenica e exclusivamente (quiccedilaacute mesmo cegamente) na ciecircncia como modo de desenvolvimento

e sustentaccedilatildeo da vida humana na Terra Antes disto e mais grave ainda trata-se de constatar

que a maneira pela qual o ser humano hoje pensa eacute tatildeo somente cientiacutefica mesmo em casos nos

quais o discurso supostamente se volta para um tema espiritual ou de feacute (ou qualquer outro

assunto) ndash a despeito de qualquer pretensa e torta teosofia eacute ainda a teologia a ciecircncia reinante

dos seminaacuterios sem embargo Independente do tema ou assunto da circunstacircncia ou

necessidade a maneira de proceder eacute jaacute sempre cientiacutefica sustentada por uma loacutegica inflexiacutevel

que imputa sua norma de que ldquosendo algo aquilo mesmo isto ou bem eacute ou bem natildeo eacute natildeo

havendo uma terceira opccedilatildeordquo

Em outras palavras parece ter se ocultado na mente humana qualquer outro modo de

pensar que natildeo seja o propriamente cientiacutefico Este modo cientiacutefico de pensar possui algumas

caracteriacutestica pelas quais se pode evidenciaacute-lo estritamente desde um triacuteplice entendimento que

compreende ldquoreferecircncia ao mundordquo ldquoposturardquo e ldquoirrupccedilatildeordquo Heidegger explica estes pontos

ldquoAquilo que na referecircncia ao mundo permanece eacute o ente em si mesmo ndash e mais nada Aquilo

que lidera toda postura eacute o ente em si mesmo ndash e nada mais Aquilo que faz acontecer a

discussatildeo investigativa da irrupccedilatildeo eacute o ente em si mesmo ndash e aleacutem disto nadardquo (IDEM OP CIT

105) A cientificidade da existecircncia humana se expressa mediante uma projeccedilatildeo ao ente e nada

mais Ao afirmar a determinaccedilatildeo da ciecircncia na vida e conduta humanas Heidegger quer deixar

ver sobretudo isto o fato de que hoje soacute eacute validado o discurso de um sujeito cujo objeto

cognosciacutevel eacute um ente este mesmo que subjacente obsta-lhe Dentro da relaccedilatildeo entre sujeito

e objeto toda uma tradiccedilatildeo se fundamenta e doravante prossegue da mesma maneira

16

Fazendo uma revisatildeo dos passos da histoacuteria do pensamento humano seria mais ou menos

faacutecil portanto imaginar como a partir da metafiacutesica claacutessica se desdobra o cientificismo

sobretudo tendo em vista a doutrina das Categorias de Aristoacuteteles aleacutem da tatildeo aclamada

ldquociecircncia do ente enquanto enterdquo Contudo natildeo eacute este o alvo de Heidegger Deixar a metafiacutesica

aparecer por si soacute deve contemplar a totalidade do questionamento proposto e natildeo um

historicismo vulgar Que todo raciociacutenio eacute regulado e direcionado pelo ente facilmente

constata-se Agora bem o que se passa com a outra parte da inquiriccedilatildeo qual seja o ldquonada

maisrdquo Heidegger formula a questatildeo ldquoA ciecircncia natildeo quer saber do nada Mas certamente em

sua permanecircncia ao manifestar sua proacutepria natureza chama o nada para ajudar O que ela

rejeita eacute necessaacuterio para classificaacute-la Que ambiacutegua essecircncia se revela aiacuterdquo (ID IBIDEM 106) Ao

perquirir o ente e aleacutem disto nada o elemento que confere a exatidatildeo de sua pesquisa eacute

auxiliado pelo ldquonadardquo ou seja trata-se disto e nada mais (por mais redundante e ambivalente

que soe ateacute mesmo um pouco non sense) Heidegger pergunta ldquoO que acontece com o nadardquo

(ID IBID) ou ainda para onde vai esse nada em meio agrave existecircncia cientiacutefica

Eacute justamente a inusitada apariccedilatildeo deste nada que revela o incocircmodo de um elemento

impensaacutevel e inexprimiacutevel que natildeo se dobra ante agrave relaccedilatildeo sujeito-objeto Natildeo eacute preciso aqui

destrinchar todo o caminho percorrido por Heidegger em Was ist Metaphysik Trata-se de um

texto bastante lido e amplamente comentado Basta apenas pontuar a sentenccedila central da

conferecircncia (ou a pergunta-condutora a Leitfrage) por meio da qual emerge a resposta agrave

questatildeo ldquoo que eacute metafiacutesicardquo ldquoPor que haacute absolutamente o ente e natildeo antes nadardquo (ID IBID

122) O extraordinaacuterio da questatildeo eacute justamente a capacidade do ser humano em por ela

perguntar A capacidade de questionar ldquopor que natildeo nadardquo define uma disposiccedilatildeo fundamental

da existecircncia quiccedilaacute mesmo aquela ocultada pelo modo cientiacutefico de existir (ou seja

paradoxalmente este mesmo modo eacute responsaacutevel por evidenciar o que nele se perde)

17

A disposiccedilatildeo que regula a eleiccedilatildeo do modo cientiacutefico de pensar tem em vista

salvaguardar o humano do abismo (da falta de fundamento) que se abre quando o nada emerge

silencia o discurso e joga o ser humano em uma situaccedilatildeo incocircmoda uma anguacutestia profunda

Quase como um mestre zen Heidegger deixa a metafiacutesica se abrir natildeo pela pergunta nem

sequer pela acircnsia de prover ao interlocutor (ou a si mesmo) uma resposta mas pela simples

possibilidade e capacidade de perguntar A metafiacutesica neste sentido perdura antes como uma

decisatildeo Ao que parece por este motivo Heidegger cita um trecho de Eacutedipo em Colonos de

Soacutefocles no posfaacutecio agrave preleccedilatildeo (em 1943) destacando os versos (em sua traduccedilatildeo particular

por mim aqui pobremente e quiccedilaacute mesmo irresponsavelmente adaptada) que dizem

ἀλλ᾽ ἀποπαύετε μηδ᾽ ἐπὶ πλείω

θρῆνον ἐγείρετε˙

πάντως γὰρ ἔχει τάδε κῡρος

Mas paremos e nunca mais a partir de agora

despertaremos o lamento

Em todos os lugares se deteacutem o evento

assegurando-lhe uma decisatildeo pela conclusatildeo (ID IBID 312)

A ldquodecisatildeo pela conclusatildeordquo coloniza todos os lugares e se deteacutem a partir de agora em uma

posiccedilatildeo da qual natildeo mais se sairaacute A anguacutestia revelada a partir do pensamento em torno ao

nada manifesta os limites da linguagem e vislumbra o destino do ente no ser em sua plenitude

e predominacircncia Mas para aleacutem da constataccedilatildeo da indigecircncia da linguagem haacute todavia uma

possibilidade de abordar efetivamente esse nada Como eacute possiacutevel pensar para aleacutem da

delimitaccedilatildeo entificante da referecircncia ao mundo da postura e da irrupccedilatildeo Haacute um caminho de

ultrapassagem e superaccedilatildeo possiacutevel ainda nos dias de hoje

18

Ao passo em que avanccedilava nas leituras e Heidegger e em algumas outras esta se tornou

a pergunta-chave pela qual imaginava atingir certo direcionamento temaacutetico A despeito da

disposiccedilatildeo de humor apresentada na conferecircncia bem como das consideraccedilotildees do posfaacutecio de

1943 os trabalhos de Heidegger dos anos de 1930 em diante datildeo a entender um claro

direcionamento pelo qual os elementos abandonados pela entificaccedilatildeo do pensamento podem ser

evidenciados qual seja a partir da poesia Os versos de Soacutefocles segundo o proacuteprio Heidegger

ldquoa uacuteltima poesia do uacuteltimo poeta gregordquo natildeo estatildeo ali dispostos sem motivo Tambeacutem natildeo eacute

sem razatildeo que a partir de aiacute haacute uma incansaacutevel busca pela poesia de Friedrich Houmllderlin (aleacutem

de Georg Trakl Stephan George Rainer Maria Rilke e de outros poetas escolhidos por

Heidegger) Ateacute certo ponto eacute possiacutevel afirmar que Heidegger encontra na poesia a

possibilidade de superar a linguagem por meio da proacutepria linguagem Em alguns outros

momentos uma meditaccedilatildeo de teor semelhante aparece como no encontro entre Heidegger e os

japoneses (como apresentei na dissertaccedilatildeo de 2010) Contudo restava ainda buscar os modos

de reflexatildeo que natildeo simplesmente podiam ir aleacutem da expressatildeo da ciecircncia do ente enquanto

ente mas ainda colocaacute-la em questionamento mediante outros meacutetodos

Foi na abertura do III Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica que minhas inquietaccedilotildees

comeccedilaram a se asseverar e ganhar corpo para o que viria a ser esta tese A conferecircncia

inaugural do evento foi sobremaneira marcante neste processo O professor Gilvan Fogel da

Universidade Federal do Rio Janeiro havia sido convidado para encerrar o primeiro dia de

evento Ele apresentou naquela noite a conferecircncia O que eacute metafiacutesica Como ele mesmo frisou

ldquonatildeo a pergunta mas a respostardquo Havia sem embargo a intenccedilatildeo de responder a pergunta

em um certo direcionamento eacute claro O texto vinha ainda acompanhado de um subtiacutetulo (com

o qual foi publicado como tiacutetulo oficial alguns anos depois diga-se de passagem) Sobre a

metafiacutesica ou a respeito do jejum O mote para o subtiacutetulo o proacuteprio professor o explica na

passagem inicial do texto que gostaria de citar por completo agora mesmo

19

O subtiacutetulo pode soar estranho insoacutelito e natildeo muito seacuterio Mas pelo que ele insinua

pretende anunciar algo seacuterio mesmo muito seacuterio a saber a metafiacutesica E a inspiraccedilatildeo

ou a motivaccedilatildeo que propicia o encaminhamento para a questatildeo anunciada a

metafiacutesica vem de uma obra igualmente seacuteria muito seacuteria ainda que se possa melhor

que se deva dela se ocupar tambeacutem com grandes e gostosas gargalhadas ndash aquelas que

no destampar do riso sacudindo a barriga bem solta e largada deixam escorrer

viacutesceras pela boca afora Estou me referindo ao Dom Quixote o Engenhoso Fidalgo

Dom Quixote lsquode la Mancharsquo ndash o ldquoda Triste Figurardquo

Entre as poesias que preludiam a primeira parte e que homenageiam seus personagens

maiores temos o uacuteltimo que eacute um diaacutelogo em forma de soneto entre Babieca o

cavalo de El Cid e Rocinante o grande rocim o pangareacute erado de Dom Quixote A

certa altura do diaacutelogo-soneto Babieca pergunta ldquoSeraacute tolice amarrdquo e Rocinante

responde ldquoNatildeo eacute muito prudenterdquo Babieca retruca ldquoEstaacutes metafiacutesicordquo E Rocinante

contesta enfaacutetico ldquoEacute que natildeo comordquo (FOGEL 2011 101)

A passagem sugere que a metafiacutesica eacute antes de tudo coisa de fome Por isto ldquoa respeito do jejumrdquo

denuncia a indisposiccedilatildeo que envolve a metafiacutesica A metafiacutesica eacute portanto certo incocircmodo que

eacute tambeacutem necessidade premente decorrente de certa privaccedilatildeo A partir disto Fogel delineia o

tipo de jejum ao qual se refere natildeo se trata de um jejum nutricional alimentiacutecio mas jejum de

vida conforme ele mesmo diz ldquo() natildeo vida no sentido bioloacutegico mas no sentido banal e

corriqueiro como falamos da vida de ldquonossa vidardquo ndash que ela eacute boa ou ruim ou um buracordquo

(IDEM IBIDEM 102) Esta vida a vida imanente a vida do cotidiano do dia-a-dia esta mesma

que ocupa o tempo e o espaccedilo sofre priva-se absteacutem-se Esta abstenccedilatildeo e privaccedilatildeo satildeo a

condiccedilatildeo pela qual reverbera sua constituiccedilatildeo enquanto sujeito ndash e nasce aiacute uma interpretaccedilatildeo

do que eacute enfim metafiacutesica A partir da conferecircncia de Fogel aleacutem de algumas outras

consideraccedilotildees comecei a ponderar a maneira pela qual abordaria o problema

20

Natildeo por meio de uma definiccedilatildeo conceitual acontecimento histoacuterico ou muacutetuo

consentimento temaacutetico mas por meio de uma experiecircncia de pensamento que sem deixar de

lado nenhum dos elementos supracitados configura-se antes como algo intriacutenseco agrave proacutepria

natureza do pensar Ponderando as consideraccedilotildees da conferecircncia de Heidegger a metafiacutesica se

deixa mostrar como uma decisatildeo pela conclusatildeo Um iacutempeto maior do ser humano em

resguardar sua condiccedilatildeo de pacificidade A humanidade teme o caos teme o desalinho receia

o incoacutegnito e inexprimiacutevel Elege por isto seu caminho de seguranccedila com aquilo que lhe eacute

papaacutevel o ente enquanto ente e nada mais Nada quer saber do nada que nada lhe oferece aleacutem

de um indisposto silecircncio um insoacutelito vazio Mediante esta postura embora sob o risco de

ocultar algo em si mesmo que talvez lhe sirva para alcanccedilar siacutetios recocircnditos do misteacuterio de

sua proacutepria existecircncia constitui-se o ser humano um metafiacutesico Sem embargo eacute preciso abster-

se de algo em prol disto ou daquilo que se lhe afigura mais propiacutecio ao momento Fogel enxerga

isto como privaccedilatildeo como jejum como fome Fica muito claro em sua interpretaccedilatildeo o caraacuteter

inflexiacutevel da decisatildeo pela conclusatildeo sobretudo quando traz agrave luz o curioso caso de Vicent van

Gogh

Fogel cita uma carta que van Gogh teria enviado em maio de 1888 a seu irmatildeo Theacuteo

onde descreve sua nova moradia e ao mesmo tempo atelier afirmando que o local eacute pouco

atraente para desenvolver qualquer tipo de flerte ou paquera acrescentando que dificilmente

enxerga como compatiacuteveis o trabalhar e o farrear (faire la noce) A verdade eacute que van Gogh

natildeo possui outra opccedilatildeo senatildeo se privar da diversatildeo do faire la noce natildeo porque eacute asceta ou

abstecircmio nem porque precisa dedicar mais tempo ao seu trabalho ou pagar suas contas (todos

sabem da condiccedilatildeo por vezes paupeacuterrima na qual ele se encontrou ao longo de seu percurso)

mas por ser artista por ser pintor por pintar Urge no artista uma realidade que parece muito

mais real que a vida comum na qual o farrear remete ao contentamento agrave felicidade Natildeo viver

a vida para van Gogh seria natildeo pintar

21

Se viver a vida eacute buscar este contentamento esta felicidade entatildeo van Gogh vive para

natildeo-viver Natildeo-viver se torna paradoxalmente a expressatildeo maacutexima da vida metafisicamente

entendida Fogel completa ldquoE por que natildeo viver este natildeo-viver seria ingratidatildeo Seria isso a

saber a distacircncia o agrave parte um dom um presente uma graccedilardquo (IDEM IBIDEM 105)

acrescentando ainda ldquoA metafiacutesica desde que jejum abstinecircncia de vida de viver seria

igualmente muita vida e natildeo cumpri-la natildeo realizaacute-la isto eacute natildeo pensar uma grande

ingratidatildeordquo (ID IBID) e por fim sugerindo ldquoAqui precisa-se confessar viver natildeo eacute preciso

Pintar pensar fazer quadros fazer metafiacutesica ndash isso eacute precisordquo (ID IBID) Ressalte-se o tom das

inquiriccedilotildees da interrogaccedilatildeo acompanhada pela exclamaccedilatildeo A precisatildeo da qual fala fazendo

menccedilatildeo a Fernando Pessoa eacute a necessidade de justeza de ser preciso e acurado destro

rigorosamente alinhado ao fazer metafiacutesica Assim se configura algo muito iacutentimo e sem

embargo inevitaacutevel na natureza humana

Fogel prossegue sua exposiccedilatildeo chamando ao diaacutelogo o Zaratustra de Friedrich

Nietzsche especificamente a seccedilatildeo intitulada Da Visatildeo e do Enigma na qual reincide o anuacutencio

da famosa doutrina do Eterno Retorno citando o trecho que diz

O homem eacute todavia o mais corajoso animal assim ele supera todo e cada animal Com

o jogo sonoro supera ele tambeacutem a dor Mas a dor humana eacute a dor mais profunda A

coragem tambeacutem indica a tontura morte em abismos e onde estaria o homem senatildeo

em abismos Ele natildeo vecirc a si mesmo ndash vecirc abismos (NIETZSCHE 2005 119)

Para Fogel o ldquoverrdquo natildeo denuncia uma observaccedilatildeo circunvisatildeo ou vislumbre mas antes um

acontecimento uma iluminaccedilatildeo um tornar visiacutevel Torna-se visiacutevel o abismo o sem fundo

sem fundamento Ao que parece quanto mais o ser humano contempla sua proacutepria existecircncia

mais sem chatildeo fica maior eacute a falta de fundamento e com maior radicalidade se abre um abismo

frente aos seus peacutes

22

Eacute possiacutevel todavia prosseguir caminhando ao lado de Nietzsche e Heidegger bem como

por meio das reflexotildees e interpretaccedilotildees oferecidas por Fogel buscando alcanccedilar uma feiccedilatildeo da

vida humana que permita descortinar a proveniecircncia metafiacutesica de seu percurso e ateacute mesmo

suscitando uma ultrapassagem deste fenocircmeno Contudo eacute necessaacuterio ainda precisar com maior

cuidado os termos contidos na questatildeo Faz parte do labor filosoacutefico se afundar mais e mais em

algo que por si soacute jaacute eacute bastante fundo

Natildeo apenas os pensamentos de Nietzsche e Heidegger oferecem uma especulaccedilatildeo de

formidaacutevel profundidade difiacutecil de ser absorvida em primeira matildeo como tambeacutem por vezes

pode se mostrar demasiado complexo empreender um rastreamento do sentido originaacuterio das

palavras e sentenccedilas salvo mediante uma anaacutelise completa (empresa complicadiacutessima

provavelmente impossiacutevel) de suas obras Mesmo assim talvez ainda natildeo se mostre com

suficiente nitidez se natildeo houver de antematildeo uma explanaccedilatildeo das fontes e referecircncias cruzadas

Com estas ideias em mente buscando avanccedilar cada vez mais no tema e sobre ele meditar

com cada vez mais dedicada atenccedilatildeo e profundidade tentando ampliar com ferocidade o

vocabulaacuterio (para fazer minhas as palavras de Marco Lucchesi) outro escrito me sobreveio

durante o processo de composiccedilatildeo das hipoacuteteses contidas neste trabalho Em Nihilismo e

Neoplatonismo (2003) Oscar Federico Bauchwitz traccedila algumas linhas que especificam a

condiccedilatildeo por meio da qual o problema efetivamente se apresenta

Haacute no texto de Bauchwitz tambeacutem um necessaacuterio retorno a Nietzsche e Heidegger Natildeo

apenas dentro do contexto de um estudo da metafiacutesica enquanto histoacuteria intelectual mas ainda

constatando os tempos onde ela se apresenta como formataccedilatildeo do modo de ldquoagir-pensarrdquo torna-

se imprescindiacutevel resgatar a lembranccedila de que ldquo() com Nietzsche se estabelece uma criacutetica da

metafiacutesica que acaba por homologar o seu oacutebitordquo (BAUCHWTIZ 2003b 169) Como explica

Bauchwitz a declaraccedilatildeo da morte da metafiacutesica eacute aquela mesma da morte do platonismo

cristianismo niilismo e outros sinocircnimos para o mesmo fenocircmeno

23

Esta morte natildeo eacute todavia apenas uma declaraccedilatildeo da inexistecircncia corrente do pensamento

metafiacutesico senatildeo sua consumaccedilatildeo total e absoluta A ldquociecircncia do ente enquanto enterdquo entifica

tudo aquilo que outrora foi nomeado vida (φύσις) pelos gregos dos periacuteodos arcaico e claacutessico

ndash das coisas ao redor aos pensamentos e aos deuses A entificaccedilatildeo do mundo em torno eacute sem

sombra de duacutevidas a maneira pela qual a ciecircncia vigente concebe o mundo configurando o que

Heidegger havia chamado de ldquoreferecircncia ao mundordquo A entificaccedilatildeo do pensamento por sua vez

denota a ldquoposturardquo tambeacutem mencionada por Heidegger aquela mesma segundo a qual haacute uma

maneira ldquocorretardquo de pensar Ao passo que a entificaccedilatildeo dos deuses um pouco mais complicada

apresenta-se como ldquoirrupccedilatildeordquo na qual a circunvisatildeo resultante dos dois elementos acima

mencionados denuncia a morte de deus a fuga dos deuses o viver sem o divino sem o

iluminado sem o deslumbre Desatados os laccedilos entre ser humano e divindade Bauchwitz

questiona ldquoO que natildeo pode o homem modernordquo (IDEM IBIDEM 170) questionamento que

poderia ainda ser vertido nos termos (mais ou menos) de Dostoievsky ldquose deus morreu entatildeo

tudo eacute permitidordquo ou ainda nos (mais ou menos novamente) de Heidegger ldquose apagou da

histoacuteria universal o esplendor da divindade Essa eacute a eacutepoca da noite do mundordquo Contudo para

Bauchwitz perdura algo no labor filosoacutefico que torna liacutecito novamente regressar agrave questatildeo Ele

explica que ldquoResgatar a forccedila mais originaacuteria das palavras eacute o ofiacutecio do filoacutesofo Por isso

dizemos que a miacutestica se mostra no fechar de olhos no fechar da bocardquo (ID IBID 173) Recordo-

me acompanhando os seminaacuterios matinais do professor Bauchwitz de ouvir certa vez a

sentenccedila ldquoo miacutestico estaacute sempre em conflito com a linguagemrdquo Conflito ou confronto natildeo me

lembro muito bem Havia de fato escrito a frase literalmente ao peacute da paacutegina de algum livro

(ou alguma fotocoacutepia) que agora mesmo esqueccedilo qual era e natildeo consigo encontrar

Independente das palavras exatas o que se apresenta no texto de Bauchwitz eacute a sugestatildeo de um

caminho para este resgate por meio de um conflito o confronto suscitado pela miacutestica

24

Bauchwitz escreve ldquoO miacutestico eacute em primeiro lugar aquele que acolhe o misteacuterio dentro

de si recolhendo em silecircncio o sentido oculto da realidade soacute depois eacute que o silecircncio rompe a

barreira dos dentes para mostrar-se linguagemrdquo (ID IBID) E ainda prossegue especificando que

ldquoPor isso a miacutestica eacute uma experiecircncia radical da liberdade proacutepria Abrindo matildeo de um mundo

que clama sua atenccedilatildeo o miacutestico encontra-se com o que nele eacute totalmente incoacutegnito e

incognosciacutevel um eu que se mostra como puro nadardquo (ID IBID) A maneira pela qual Bauchwitz

iraacute desdobrar a explicaccedilatildeo destas sentenccedilas sobremaneira enigmaacuteticas percorreraacute trecircs

pensadores que marcam a tradiccedilatildeo do neoplatonismo e da chamada miacutestica medieval quais

sejam Pseudo-Dioniacutesio Areopagita Joatildeo Escoto Eriuacutegena e Mestre Eckhart Contudo o que

havia me saltado aos olhos antes da eleiccedilatildeo temaacutetica autoral ou metodoloacutegica havia sido a

sentenccedila ldquoum eu que se mostra como puro nadardquo Jaacute havia encontrado semelhante formulaccedilatildeo

todavia nunca em autores ocidentais Remeti diretamente a maneira pela qual a tradiccedilatildeo

mahāyāna do budismo do leste asiaacutetico havia compreendido a noccedilatildeo do natildeo-si-mesmo ou natildeo-

ego (anātman अितमि) como dissoluccedilatildeo do eu por meio da tensatildeo entre forma (ou fenocircmeno ou

ainda aparecircncia rūpa रप) e nada (ou vacuidade śūnyatā शनयता) Estas ideias derivam

diretamente do chamado Cacircnone Pāḷi tendo sido transmitidas em sacircnscrito pelo Sūtra do

Coraccedilatildeo (Prajntildeāpāramitā Hṛdaya परझञापारनमताहरदय) ateacute alcanccedilarem formas mais refinadas no

budismo chrsquoan e no zen budismo japonecircs assumindo as configuraccedilotildees de ldquoformardquo ou

ldquoaparecircnciardquo enquanto shiki (色) e ldquonadardquo ou ldquovacuidaderdquo enquanto kū (空) elementos centrais

do pensamento da filosofia japonesa contemporacircnea da Escola de Kyōto (e que tambeacutem havia

abordado brevemente em minha dissertaccedilatildeo de mestrado) Tornou-se imperioso investigar ateacute

que ponto tais ideias se aproximam ou comungam de princiacutepios convergentes aleacutem da maneira

como elas repercutem em suas tradiccedilotildees e particularidades Mais uma vez encontrava-me frente

ao sem-fim nuacutemero de possibilidades comparativas e complementares

25

Contudo temia o risco de cair no engodo certa vez denunciado por Immanuel Kant

quando afirmou em seus Prolegomena zu einer jeden kuumlnftigen Metaphyysik (1783) que ldquo()

dificilmente se espera que natildeo seja possiacutevel descobrir analogias para cada nova ideia entre ditos

de eras passadasrdquo (KANT 1911 7) natildeo havendo grande meacuterito nisto e sendo necessaacuterio admitir

que estes historiadores da filosofia ocupados com tal empreendimento devam antes aguardar

que os ldquoverdadeiros filoacutesofosrdquo esgotem as fontes da razatildeo Sob pena de realizar uma mera

comparaccedilatildeo friacutevola (embora com a consciecircncia de que passo longe de ser um ldquoverdadeiro

filoacutesofordquo ao menos no sentido Kantiano ndash talvez o seja em outro digamos mais Ginsbergiano

de pura pretensatildeo mas certamente natildeo muito talento) ocupei-me em corretamente designar o

problema que me afligia de modo que fosse possiacutevel corretamente endireitar o roteiro da tese

Era preciso encontrar um mote mesmo que ele natildeo deixasse ver claramente os passos a serem

percorridos mas que provessem alguma direccedilatildeo

Tendo isto em vista natildeo podia negar que o interesse pelo que ousei chamar de ldquoconflito

das fronteirasrdquo crescia a partir de um ldquopar de viacutergulasrdquo que aparentemente haviam escapado agrave

anaacutelise da histoacuteria do pensamento Em outras palavras um determinado momento no qual o

transcurso metafiacutesico foi levemente desviado em uma guinada espontacircnea e natural como um

marinheiro que sutilmente move o leme para a esquerda ou para direita ao perceber o advento

de uma portentosa onda logo atraacutes de si soltando o motor e deixando o barco ser levado pelo

mar ndash saacutebia decisatildeo em momentos de tormenta (passei por esta situaccedilatildeo certa vez em mar

aberto transitando entre Paraty e uma praia recocircndita Pouso do Cajaiacuteba se natildeo me falha a

memoacuteria gostaria de poder descrever em pormenores a experiecircncia que seria proveitosa ao

leitor em termos ilustrativos mas estava muito enjoado no barco para congregar detalhes

miacutesticos em minha massa cinzenta) E eram momentos de tormenta Como poderiam natildeo ser

Sendo assim estabeleci um conveniente itineraacuterio (ao menos sob meu ponto de vista) que

compartilho antes de iniciar o trabalho

26

O primeiro passo importante eacute estabelecer dentro de quais termos se apresenta a

metafiacutesica pela qual se nomeia a histoacuteria do pensamento ocidental O primeiro capiacutetulo da tese

intitulado Ontologia a substantivaccedilatildeo do Ocidente e a delimitaccedilatildeo das fronteiras do

pensamento ocupa-se de tal apresentaccedilatildeo e eacute na verdade bastante simples apesar do tiacutetulo

pomposo A despeito da abordagem histoacuterico-conceitual desdobrada em um primeiro momento

o capiacutetulo segue em consonacircncia com a avaliaccedilatildeo de Martin Heidegger assumindo-o como

interlocutor e inteacuterprete da histoacuteria e criacutetica da metafiacutesic Haacute aqui uma ecircnfase nas leituras por

meio das quais Heidegger caracterizou de maneira direta a passagem de uma fisiologia grega

claacutessica (por ele nomeada ldquopensamento originaacuteriordquo) para o acircmbito da ontologia latina e o modo

conforme o qual a proacutepria ideia de ldquoserrdquo eacute compreendida de maneira tatildeo somente substantivada

a partir de seu particiacutepio presente ldquoenterdquo Um necessaacuterio retorno cronoloacutegico-regressivo eacute

estabelecido do fim ao iniacutecio da modernidade pontuando autores como Jacob Lorhard e

Francisco Suaacuterez Todavia o objetivo principal do capiacutetulo eacute compreender este modo de

substantivaccedilatildeo e quais as consequecircncias disto para o pensamento em um sentido geral (a

delimitaccedilatildeo de suas fronteiras no final das contas) sem nunca perder de vista o peso aristoteacutelico

da designaccedilatildeo e realizando algumas especificaccedilotildees sobre isto

O segundo capiacutetulo intitulado O caminho da negatividade henologia e meontologia e

a ultrapassagem dos limites da metafiacutesica pretende caracterizar efetivamente essa nomeada

ldquonegatividaderdquo Negatividade que natildeo eacute simplesmente predominacircncia de um ldquonatildeordquo ou partiacutecula

de privaccedilatildeo mas antes assunccedilatildeo de um oxiacutemoro o auscultar de um inaudito Desenvolve-se

como argumento central por meio do qual se evidencia as estruturas baacutesicas de um pensamento

radical a evidenciaccedilatildeo de uma meditaccedilatildeo que jaacute natildeo eacute mais norteada pelo ldquoenterdquo mas sim pelo

ldquounordquo (henologia) neoplatocircnico ou mesmo por uma profunda meditaccedilatildeo em torno ao ldquonadardquo

(meontologia) presentes no neoplatonismo e sobremaneira evidentes no pensamento miacutestico

27

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo nomeado O Extremo Oriente e o conflito das fronteiras a

filosofia comparada intercultural como chave de leitura para alguns problemas do pensamento

contemporacircneo pretende conectar os pontos e resgatar o sentido da tese O capiacutetulo traz uma

breve apresentaccedilatildeo da chamada Escola de Kyōto e a constituiccedilatildeo da filosofia japonesa

contemporacircnea Este eacute o momento no qual eacute possiacutevel observar a recepccedilatildeo contemporacircnea da

filosofia ocidental (tanto dentro da tradiccedilatildeo metafiacutesica quanto ldquoforardquo dela na dita negatividade)

e o diaacutelogo (e siacutentese) com o mundo do Extremo Oriente O objetivo eacute portanto pensar em

comunhatildeo com os pensadores da Escola de Kyōto com especial atenccedilatildeo para Keiji Nishitani

(西谷 啓治) observando suas propostas para anaacutelise e resoluccedilatildeo dos problemas de filosofia

contemporacircnea e buscando um esclarecimento a respeito dos termos indicados

Ao fim e ao cabo a intenccedilatildeo aqui eacute convidar os leitores ao diaacutelogo intercultural

apresentando em um diaacuterio de minhas leituras diferentes nuances e pontos de vista a respeito

de algumas questotildees especiacuteficas e ousando um diagnoacutestico da filosofia contemporacircnea bem

como uma vaacutelvula de escape para a atual condiccedilatildeo do pensamento filosoacutefico Caso a empreitada

logre ecircxito acredito que uma nova conversa se abra e novas ideias venham agrave mente Sem

embargo trata-se de uma composiccedilatildeo acerca de um conflito o conflito das fronteiras

28

ONTOLOGIA A SUBSTANTIVACcedilAtildeO DO OCIDENTE E O PROBLEMA DA METAFIacuteSICA

ENQUANTO DELIMITACcedilAtildeO DAS FRONTEIRAS DO PENSAMENTO

Embora ontologia tenha um sentido bastante amplo (que seraacute melhor explorado ao longo do

capiacutetulo) aleacutem de uma sem-fim variedade de definiccedilotildees distintas de autor para autor (algumas

das quais seratildeo eleitas e apresentadas aqui) entende-se o conceito (de forma simplificada) como

um discurso capaz de reunir em uma unidade a polissemia do verbo ser O resultado eacute a

centralizaccedilatildeo conceitual de qualquer ulterior doutrina a partir da definiccedilatildeo desenrolada desde

sua compreensatildeo Por substantivaccedilatildeo do Ocidente refiro-me aqui agrave corrente historial

responsaacutevel por compreender o verbo ser de modo substantivado a partir de seu particiacutepio

presente ldquoenterdquo A intenccedilatildeo do capiacutetulo portanto concentra-se na investigaccedilatildeo do processo

decorrido dessa substantivaccedilatildeo e quais as consequecircncias disto para o pensamento ocidental e

contemporacircneo em uma concepccedilatildeo geral no que diz respeito agrave delimitaccedilatildeo das fronteiras do

pensamento

Em primeiro lugar gostaria de abrir uma interlocuccedilatildeo com o professor Charles H Kahn

da University of Pennsylvania dada a relevacircncia e pertinecircncia de sua obra The Verb lsquoBersquo in

Ancient Greek (1973) para o desenvolvimento do capiacutetulo Antes de desdobrar em pormenores

seu estudo bastante extenso e detalhado Kahn sustenta a tese de que haacute uma relatividade

linguiacutestica referente ao verbo ser (cf KAHN 2003 1-3) Em sua introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo de 2003 (cf

IDEM IBIDEM vii) Kahn se reposiciona em relaccedilatildeo ao argumento expresso em sua obra clamando

ser uma posiccedilatildeo bastante defensiva e ldquofora de modardquo para os tempos atuais Ainda assim trata-

se de uma hipoacutetese bastante interessante

29

A posiccedilatildeo de Kahn (cf IBID 1-3) se apoia na afirmaccedilatildeo de Angus C Graham1 acerca

do mesmo verbo dentro do chinecircs claacutessico onde o sinoacutelogo posiciona o ser relativamente agrave

regra gramatical inerente agrave formulaccedilatildeo de uma determinada sentenccedila significando portanto a

impossibilidade de uma doutrina universal acerca do ser compatiacutevel com liacutenguas distintas

(como o grego o aacuterabe ou o chinecircs) Isto concorda em absoluto com a ideia de que no proacuteprio

grego claacutessico e nas liacutenguas indo-europeias em geral conforme a menccedilatildeo feita por Kahn a

Eacutemile Benveniste2 natildeo haacute em hipoacutetese alguma a implementaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo universal ou

condiccedilatildeo necessaacuteria envolta na distribuiccedilatildeo dos significados do verbo ser Haacute sim e Benveniste

endossa a ideia uma predisposiccedilatildeo da linguiacutestica grega agrave ldquovocaccedilatildeo filosoacutefica da noccedilatildeo de serrdquo

Vocaccedilatildeo esta segundo Kahn muito geral e diversificada no desenvolvimento sistemaacutetico de

seu conceito desde Parmecircnides ateacute Aristoacuteteles e de uma maneira mais sistemaacutetica dos Estoicos

ateacute Plotino Em siacutentese Kahn sustenta que a tese de um determinismo linguiacutestico do ser eacute

claramente falsa ou seja mesmo em falantes de uma mesma liacutengua natildeo eacute possiacutevel encontrar

uma mesma doutrina em torno ao ser como eacute possiacutevel ver nos pensamentos distintos de Platatildeo

e Aristoacuteteles Epicuro e Plotino

Todavia natildeo haacute duacutevidas para Kahn a respeito das condiccedilotildees intriacutensecas da liacutengua de um

autor em sua atividade intelectual seus recursos e suas tendecircncias Ele afirma que natildeo haveria

possibilidade de especificar a determinaccedilatildeo ontoloacutegica se o verbo grego εἰμί natildeo fosse provido

do particiacutepio presente τὸ ὄν ou se natildeo houvesse a derivaccedilatildeo nominal ndashία da qual redunda a

noccedilatildeo de οὐσία Ou ainda a classe de morfemas que compreende ἐστί εἶναι e ἐών derivadas

do indo-europeu ndashes Satildeo as formas nominais do verbo que permitem segundo Kahn (cf IBID

451) natildeo soacute uma clara expressatildeo senatildeo tambeacutem a tematizaccedilatildeo do conceito como um toacutepico

distinto para a reflexatildeo filosoacutefica

1 Angus C Graham ldquoBeing in Classical Chineserdquo In The Verb lsquoBersquo and its Synonyms John W M Verhaar (ed)

Dordrecht Holland D Reidel 1967 1-39 2 Eacutemile Benveniste ldquoCateacutegories de penseacutee et cateacutegories de languerdquo Les Eacutetudes philosophiques n 4 (out-dez

1958) PUF Paris 419-429

30

Kahn fala dos primeiros usos do verbo εἰμί (em formas participiais) em sua

possibilidade de representar qualquer construccedilatildeo copulativa (natildeo muito diferente de qualquer

outro particiacutepio em grego) adaptando-se agraves construccedilotildees coordenadas ou subordinadas (em

nuacutemero gecircnero e causa) e expressando diferentes nuances (concessiva causal adversativa)

Contudo frisa haver ainda outras expressotildees para aleacutem do caso copulativo como nos casos

vital veriacutedico ou existencial Quando o verbo aparece dentro da expressatildeo existencial e emerge

a necessidade de indicar uma referecircncia ou seja um caso gramatical locativo surgem as formas

do uso filosoacutefico do ser como τὰ ὄντα o berccedilo para o desenvolvimento da ontologia O sentido

de τὰ ὄντα apareceria em Aristoacuteteles de acordo com Kahn (cf ID IBID 457) em primeira matildeo

como ldquoo que eacuterdquo (o caso os fatos ou eventos) e em segunda matildeo existencialmente como ldquocoisas

que existemrdquo ldquocoisas que estatildeo presentesrdquo ldquocoisas que podem ser encontradas em algum lugarrdquo

Em ambos os casos o verbo ser eacute entificado Como neste sentido haacute uma conotaccedilatildeo ldquodo que

eacuterdquo algo Aristoacuteteles considerou a referecircncia aos atributos de um determinado ente para expressar

a muacuteltipla significaccedilatildeo de τὸ ὄν partindo em seguida para a definiccedilatildeo do ser no sentido primaacuterio

e fazendo uso de seu derivado nominal οὐσία

A manifestaccedilatildeo de οὐσία surge como uma nominalizaccedilatildeo abstrata ou substantivo de

accedilatildeo Kahn enumera trecircs aspectos distintos do uso de οὐσία em uma concepccedilatildeo filosoacutefica o

primeiro uso refere-se agrave nominalizaccedilatildeo do verbo na qual οὐσία representaria ldquoo que algo eacuterdquo

dando abertura para as formas platocircnicas e essecircncias aristoteacutelicas (τὸ τί ἐστι τὸ τί ἦν εἶναι) o

segundo uso eacute todavia menos teacutecnico e predica οὐσία como ldquoserrdquo ldquoexistecircnciardquo ou ldquorealidade

verdadeirardquo o terceiro uso enuncia uma equivalecircncia entre οὐσία e τὸ ὄν referindo ldquoas coisas

que satildeo (neste mundo)rdquo τὰ ὄντα (cf ID IBID 461) Aristoacuteteles pontua precisamente a intenccedilatildeo

socraacutetica primaacuteria de buscar a essecircncia das coisas (τὸ τί ἐστι) por meio do procedimento

silogiacutestico cujo princiacutepio eacute justamente a quididade (ἀρχὴ δὲ τῶν συλλογισμῶν τὸ τί ἐστι)

(ARISTOacuteTELES 2002 604-605 Metafiacutesica 1078b 24-25)

31

O que em Soacutecrates apareceria de fato como τί ἐστι e em Platatildeo como (τὸ) ὅ ἐστι em

Aristoacuteteles seria simplificado como τὸ τί ἐστι e τὸ τί ἦν εἶναι em um uso que expressa a essecircncia

ou natureza das coisas pela definiccedilatildeo ao passo que a definiccedilatildeo propriamente existencial caberia

ao termo οὐσία 3 Kahn ilustra as distinccedilotildees dizendo que

Enquanto o substantivo no primeiro e no segundo usos serve como uma

nominalizaccedilatildeo ldquoabstratardquo para o verbo finito como predicado isto eacute para o ldquoser aquilo

que eacuterdquo (e eacute assim sintaticamente paralelo ao infinitivo articular τὸ εἶναι) οὐσία no

terceiro sentido eacute utilizado ndash como em muitos outros substantivos abstratos ndash para o

sujeito caracterizado (isto eacute o que eu chamo de concreto ou agente de nominalizaccedilatildeo

como tipicamente ilustrado pelo particiacutepio articular τὸ ὄν ou como por exemplo ὁ

τρέχων ldquoo corredorrdquo em contraste agrave accedilatildeo de nominalizaccedilatildeo abstrata τὸ τρέχειν

ldquocorrerrdquo Esta distinccedilatildeo sintaacutetica corresponde em parte ao contraste de Heidegger

entre das Seiende e das Sein der Seienden) (ID IBID)

Embora haja tal distinccedilatildeo Kahn prossegue afirmando que em seu uso tardio (poacutes-platocircnico)

οὐσία e τὸ ὄν satildeo claramente sinocircnimos sendo um utilizado para enfatizar o outro como na

doutrina das Categorias de Aristoacuteteles4 O resultado eacute a inexistecircncia de uma diferenccedila entre o

agente concreto e a accedilatildeo abstrata de nominalizaccedilatildeo do εἰμί onde natildeo haacute distinccedilatildeo conceitual

entre οὐσία e τὸ ὄν ou seja entre a entidade e o que ela eacute Em outras palavras ser e ente se

tornam o mesmo confundem-se em sua aplicaccedilatildeo a despeito das distinccedilotildees conceituais que

definem substacircncia (οὐσία) e essecircncia (τὸ τί ἦν εἶναι)

3 Um comentaacuterio mais preciso foi apresentado em Luiacutes Andreacutes Berdlow ldquoParmenides and the Grammar of Beingrdquo

Classical Philology v 106 (2011) 283-298 4 As Categorias de Aristoacuteteles apresentam a classificaccedilatildeo das coisas que satildeo (τὰ ὄντα) dentre as quais encontra-

se a substacircncia (οὐσία) (cf ARISTOTLE 1952 5-6 Categorias 1a-2b) Na Metafiacutesica Aristoacuteteles deixa isto mais

claro quando diz ldquoMas em primeiro lugar se o ldquoenterdquo (τὸ ὂν) se diz de muitas maneiras ndash dentre as quais algumas

vezes substacircncia (οὐσία) em outras qualidade ou mesmo quantidade aleacutem de todas as outras categorias ndash qual

deles portanto eacute aquele pelo qual as coisas satildeo ()rdquo (ARISTOacuteTELES 2002 669 Metafiacutesica 1089a 5-15) A diferenccedila

conceitual ou mesmo hieraacuterquica eacute paulatinamente abandonada pela necessidade de exprimir um niacutevel de

realidade no qual jaacute natildeo eacute mais possiacutevel discorrer acerca do ente se redundar a palavra definida na proacutepria definiccedilatildeo

32

Essa indistinccedilatildeo entre ser e ente eacute sabido foi o que chamou a atenccedilatildeo de Martin

Heidegger no processo ldquodestrutivordquo de histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica realizado em seu projeto

Sein und Zeit (1927) Conforme Heidegger haacute uma γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας de haacute muito

abandonada O motivo aparente se concentra nas caracteriacutesticas emergentes do proacuteprio ser

quais sejam sua maacutexima universalidade sua vacuidade sua obscuridade sua maacutexima

evidecircncia Neste sentido Heidegger diz

O conceito de ldquoserrdquo eacute indefiniacutevel Isto pode ser concluiacutedo desde sua maacutexima

universalidade E isto com razatildeo ndash se definitio fit per genus proximum et differentiam

specificam De fato ldquoserrdquo natildeo pode ser entendido conceitualmente como ente enti

non additur aliqua natura ldquoserrdquo natildeo pode estar em uma determinaccedilatildeo concebendo

dele um ente O ser por definiccedilatildeo natildeo pode ser derivado de conceitos superiores e

nem dado por nenhuma ilustraccedilatildeo Contudo disto se segue que do ser natildeo se pode

derivar nenhum problema Pode-se concluir em absoluto apenas que o ldquoserrdquo natildeo eacute

algo como um ente Portanto o legiacutetimo dentro de certos limites de determinaccedilatildeo dos

entes ndash a ldquodefiniccedilatildeordquo da loacutegica tradicional que em si tem suas bases na antiga

ontologia ndash natildeo eacute aplicaacutevel ao ser A indefiniccedilatildeo do ser natildeo dispensa a pergunta por

seu significado senatildeo que justamente a intima isto (HEIDEGGER 1967 4)

As observaccedilotildees de Heidegger concordam com a conclusatildeo de Kahn a respeito da tomada de

rumo do verbo ser dentro da filosofia grega claacutessica sobretudo na concepccedilatildeo das bases da antiga

ontologia acerca da indistinccedilatildeo entre ser e ente A γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας agrave qual se refere

Heidegger parece ser a natureza inevitaacutevel da proacutepria metafiacutesica em fechar a porta aberta por

ela mesma para o modo de se relacionar com o ser uma espeacutecie de destinaccedilatildeo forccedilosa da qual

natildeo se poderia de maneira alguma escapar ponderando a projeccedilatildeo que reverbera em cada um

dos sentidos

33

O conflito acerca do entendimento e expressatildeo da φύσις revela em boa parte a maneira

pela qual o conjunto do ser se tornou alvo de disputas A contenda eacute ilustrada na histoacuteria

primaacuteria da filosofia grega enquanto fisiologia e na ldquocontroveacutersiardquo paradigmaacutetica entre

Heraacuteclito e Parmecircnides Uma realidade em constante movimento e mutaccedilatildeo absorvida desde a

observaccedilatildeo teoreacutetica do mundo entorno ou simplesmente o ponto de vista do ldquodevirrdquo parece

compatiacutevel com a natureza infinitiva e inapreensiacutevel do verbo ser como eacute possiacutevel rastrear no

πάντα ῥεῖ heracliacutetico 5 Heraacuteclito expressa o movimento intriacutenseco de abertura do modo

relacional do ser Todavia tal entendimento natildeo eacute compatiacutevel com qualquer tipo de silogismo

loacutegico onde eacute possiacutevel desenhar um conhecimento comum Para assumir a cogniccedilatildeo e percepccedilatildeo

vaacutelidas seria necessaacuterio assumir a permanecircncia de algo como eacute possiacutevel acompanhar na

elaboraccedilatildeo da univocidade do ser em Parmecircnides6

O primeiro ponto de vista paradoxalmente leva agrave evidecircncia da diferenccedila e a posiccedilatildeo do

oxiacutemoro enquanto o segundo permite a identificaccedilatildeo e a possibilidade de conclusatildeo por meio

das loacutegicas da identidade e natildeo-contradiccedilatildeo Aparentemente o primeiro natildeo resulta em nenhum

avanccedilo imediato a respeito de assuntos praacuteticos ou na dissoluccedilatildeo de questotildees teoacutericas enquanto

o segundo iraacute provavelmente resolver problemas de quase todos os tipos no campo pragmaacutetico

e em toda sorte de adversidades naturais e sociais Por meio da loacutegica natural do ser humano

social eacute bastante evidente qual ponto de vista deve ser eleito no intuito de estabelecer a

coexistecircncia mais faacutecil e paciacutefica aquela que afasta o homem da falta de fundamento da

existecircncia ou seja do abismo existencial da afliccedilatildeo que eacute existir

5 Conforme cita Platatildeo no Craacutetilo ldquotodas as coisas estatildeo em processo e nada permanece paradordquo (τά ὄντα ἱέναι

τε πάντα καὶ μένειν οὑδέν) (PLATO 1997 119-120 Craacutetilo 401d-402a) (KIRK E RAVEN 1957 197) Kirk e Raven

ponderam ainda que se trata de um momento ldquoOnde φύσις provavelmente natildeo significa lsquonaturezarsquo mas lsquoas coisas

em sua verdadeira constituiccedilatildeorsquordquo (IDEM IBIDEM 184) 6 ldquoO uacutenico caminho de inquiriccedilatildeo que pode ser pensadordquo (αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι) (KIRK E RAVEN

1957 269) Haacute uma anaacutelise mais detalhada acerca do toacutepico em Ciacutecero Cunha Bezerra ldquoParmeacutenides y la

univocidad del serrdquo Caacutetedra v 1 (2003) 33-48

34

Eacute possiacutevel especular que com a ausecircncia de um princiacutepio solidamente identificado e

natildeo-contraditoacuterio quiccedilaacute nem mesmo uma regra gramatical linguiacutestica poderia ser estabelecida

dando margem mesmo agrave impossibilidade de comunicaccedilatildeo Igualmente tampouco se poderia

delinear uma corrente de haacutebitos pessoais compatiacuteveis aos costumes sociais desabilitando toda

e qualquer eacutetica ou ciecircncia poliacutetica pela qual se pode regulamentar a conduta humana Com a

perspectiva de um devir total e assunccedilatildeo da diferenccedila a presenccedila de certo caos eacute inegaacutevel Com

a fundaccedilatildeo de uma estrutura loacutegica todavia eacute possiacutevel organizar e controlar os pensamentos e

accedilotildees do ser humano e sua convivecircncia social Contudo natildeo necessariamente esta postura iraacute

levar a humanidade para as escolhas mais coerentes ndash e a histoacuteria pode comprovar isto inuacutemeras

vezes O abandono da multiplicidade de perspectivas sobretudo as supracitadas (uma em

detrimento de outra) parece ter dirigido a histoacuteria por vias pouco luacutecidas e por vezes mesmo

autodestrutivas

Mas a anaacutelise da histoacuteria fatual natildeo eacute o que realmente interessa aqui tampouco a

atribuiccedilatildeo de uma culpa ou indicaccedilatildeo de um erro neste ou naquele ponto de vista O que

interessa aqui eacute como identificar a predileccedilatildeo loacutegica do pensamento ocidental com o cerne de

sua postura contemporacircnea e inquirir se eacute possiacutevel (ou se jaacute foi tomado) um caminho de

pensamento distinto e quais os resultados da confrontaccedilatildeo de um ponto de vista com o outro

Para isto eacute preciso retomar uma anaacutelise da histoacuteria da ontologia observando a maneira pela

qual ela se movimenta intriacutenseca e extrinsecamente Dentro das possibilidades de eleiccedilatildeo de um

caminho interpretativo opto aqui em um primeiro momento por absorver a histoacuteria e criacutetica

da metafiacutesica feita por Heidegger durante o seacuteculo vinte com o fito de deixar um pouco mais

evidente o problema fundamental da indistinccedilatildeo entre ser e ente que eacute sem embargo o pontapeacute

inicial de toda a contenda Muito embora seja possiacutevel descortinar a histoacuteria do pensamento

ocidental mediante distintos autores a ecircnfase na nomeada questatildeo do ldquoesquecimento do serrdquo

serve sobremaneira bem ao propoacutesito desta tese

35

Portanto em primeiro lugar eacute preciso considerar que embora ilustrativo Martin

Heidegger passou ao largo de resolver os problemas suscitados pela histoacuteria das ideias Antes

ele desenvolveu problemaacuteticas ainda mais insoluacuteveis e como se natildeo bastasse propocircs novos

enigmas A maior dentre todas as dificuldades talvez ainda precise aguardar muito tempo para

ser descortinada Durante um longo periacuteodo o entretenimento geral dos eruditos se contentou

em traccedilar um denominador comum dentre as vaacuterias questotildees pertinentes aos problemas de sua

filosofia em um movimento enciclopeacutedico quiccedilaacute tatildeo importuno quanto improfiacutecuo de decifrar

seu pensamento Mais conveniente talvez seja simplesmente resguardar o segredo de certas

passagens e aguardar a maturaccedilatildeo necessaacuteria para interpelaacute-las independentemente da espera

suscitada por tal postura

Ainda assim alguns pontos merecem ser postos em relevo e sobre eles decerto vale

despender alguma energia no esforccedilo de meditar acerca de seu sentido Certos trabalhos

compostos por Heidegger guardam de uma soacute vez todo o peso de sua leitura da realidade

notadamente em trechos sutis e aparentemente inofensivos Em momentos nos quais o leitor se

daacute por satisfeito em compreender um posicionamento aparentemente simples e historial como

pueril revisatildeo da histoacuteria da filosofia aiacute mesmo se lhe eacute possiacutevel abrir uma brecha para absorver

a atitude fundamental de seu pensamento Heidegger sempre foi um historiador da filosofia e

natildeo renegou em momento algum o peso de um ofiacutecio como este pelo contraacuterio coube-lhe fazecirc-

lo por diversas vezes e em distintos modos Mesmo quando seus ensaios e conferecircncias se

projetavam a um tema especiacutefico e natildeo a um autor a forte presenccedila de suas interpretaccedilotildees da

histoacuteria da filosofia eacute inegaacutevel Cabe ao propoacutesito desta tese realccedilar um exemplo que torne liacutecito

ilustrar uma fissura por onde seja possiacutevel se esgueirar ateacute a fonte da emanaccedilatildeo especulativa

acerca do sentido da histoacuteria da filosofia e do desenvolvimento do pensamento ocidental

sinocircnimos para o que conveacutem nomear metafiacutesica

36

Aos 13 de novembro de 1935 como sabem os leitores assiacuteduos de Heidegger foi

pronunciada uma conferecircncia preparada para a Kunstwissenschaftlichen Gesellschaft de

Freiburg im Breisgau7 Der Ursprung des Kunstwerkes se tornou de forma veloz e viral um

trabalho amplamente comentado no circuito acadecircmico em geral principalmente no campo da

esteacutetica filosoacutefica e teorias da arte O ponto de vista quase unacircnime dos receptores do trabalho

assentou na interpretaccedilatildeo do texto como uma tese a respeito da arte como ldquoposta em marcha da

verdade enquanto desvelamentordquo uma frase natildeo tatildeo simples de ser decifrada mas repetida

quase como uma foacutermula automaacutetica que se tornou rapidamente um emblemaacutetico clichecirc e uma

resposta imediata agrave pergunta pelo sentido da arte em Heidegger

A popular obra de Michael Inwood A Heidegger Dictionary (1999) destaca

enfaticamente o caraacuteter essencial da proposiccedilatildeo-chave quando pontua no mesmo sentido que

ldquoA obra de arte eacute mais bem um projeto que abre um mundo no qual escolhas podem ser feitas

A verdade a revelaccedilatildeo do lsquoserrsquo eacute o configurar em uma obra e configurar para obra iluminando

o mundo e a terra naquilo que neles perdurardquo (INWOOD 1999 18) Inwood ressalta a

proximidade encontrada por Heidegger entre o termo alematildeo ldquoproteger manterrdquo (bewahren) e

a proacutepria palavra ldquoverdaderdquo (Wahrheit) embora os termos natildeo necessariamente estejam

etimologicamente conectados Ele aponta para a ldquopreservaccedilatildeordquo como elemento pelo qual ldquoA

arte eacute o deixar-acontecer da chegada da verdade do ser enquanto talrdquo (IDEM IBIDEM) com especial

atenccedilatildeo para o proacuteprio fazer (ποίησις) da arte e particularmente da poesia Haacute contudo uma

seacuterie de consideraccedilotildees mais sutis a serem levadas em consideraccedilatildeo nas conferecircncias de

Heidegger proporcionando uma anaacutelise um pouco mais cuidadosa do que estaacute propriamente

em jogo quando Heidegger sobreleva a questatildeo da obra de arte

7 O mesmo trabalho sofreu novas releituras durante todo o ano de 1936 sendo reapresentado respectivamente na

Einladung der Studentenschaft der Universitaumlt em Zuumlrich durante o mecircs de janeiro e na Deutschen Hochstift em

Frankfurt am Main entre novembro e dezembro O ciclo de conferecircncias recebeu ediccedilotildees retrabalhadas em 1956 e

1960 publicadas pela Reclam de Stuttgart e sendo incluiacutedo em 1977 no tomo Holzwege da Gesamtausgabe

37

O editor do volume Holzwege Friedrich-Wilhelm von Hermann dedicou toda uma obra

agrave anaacutelise temaacutetica envolta naquele escrito publicando em 1980 o livro Heideggers Philosophie

der Kunst Em algumas de suas consideraccedilotildees mais amplas sobre as conferecircncias de Heidegger

Hermann atenta para o fato da questatildeo da obra de arte ser levantada a partir de um problema

desdobrado pela ontologia fundamental Hermann observa a problemaacutetica geral do escrito

desde o estabelecimento do ldquoserrdquo como ldquoacontecimentordquo (Ereignis) Conforme ele pondera

trata-se de um trabalho contemporacircneo aos Beitraumlge zur Philosophie (1936-38) Para Hermann

a questatildeo em torno ao ldquoserrdquo como ldquoacontecimentordquo (Ereignis) estende-se em Der Ursprung des

Kunstwerkes por meio de quatro outros problemas (1) o estabelecimento constitutivo da arte

(2) da obra de arte (3) da criaccedilatildeo artiacutestica e (4) da compreensatildeo da arte (cf HERMANN 2001 7)

Contudo circunscrita agrave conferecircncia sobre a arte estaacute a elaboraccedilatildeo da passagem da discussatildeo em

torno agrave verdade do ser para o ldquopensamento da histoacuteria do serrdquo (seinsgeschichtliches Denken)

Trata-se especificamente do momento de transiccedilatildeo do pensamento de Heidegger8 Em

linhas gerais Der Ursprung des Kunstwerkes ressalta uma preocupaccedilatildeo da lida do homem para

com a essecircncia da verdade mediante a obra de arte enquanto coisa Haacute toda uma histoacuteria dos

efeitos pertinentes agraves anaacutelises de Heidegger da obra de Vincent van Gogh9 aleacutem de inuacutemeras

teorizaccedilotildees em torno ao poder salvador da obra de arte Todavia salta aos olhos uma passagem

muito mais peculiar (para qual gostaria de chamar a atenccedilatildeo agora mesmo) qual seja aquela

na qual Heidegger aborda o problema da transposiccedilatildeo da experiecircncia fundamental grega para a

intepretaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo do pensamento romano-latino (cf HEIDEGGER 1977 7)

8 A perspectiva da ontologia fundamental de Sein und Zeit (1927) continuada no curso Grundprobleme der

Phaumlnomenologie ministrado em Marburg durante o semestre de veratildeo de 1927 receberia seu desenvolvimento

desde uma visatildeo historial-reflexiva jaacute na primavera de 1932 ocasiatildeo na qual conforme Hermann satildeo elaboradas

as primeiras linhas de Beitraumlge zur Philosophie redigido entre 1936 e 1938 mas publicado postumamente somente

em 1989 9 Em uma das mais famosas passagens de Der Ursprung des Kunstwerkes Heidegger interpreta os sapatos de um

dos quadros de Vincent van Gogh (natildeo identifica qual todavia) descortinando com isto o cotidiano campesino e

oferecendo uma leitura da realidade a partir de aiacute Uma criacutetica direta foi apresentada por Meyer Shapiro (em The

Still Life as a Personal Object ndash A Note on Heidegger and van Gogh 1968 e ainda em Further Notes on Heidegger

and van Gogh 1994) onde ele sustenta que os sapatos retratados por van Gogh natildeo satildeo de uma pessoa do campo

mas as botas do proacuteprio artista apontando com isto graves mal entendidos na interpretaccedilatildeo de Heidegger

38

Ainda no iniacutecio do escrito Heidegger busca a compreensatildeo mais geral da ldquocoisardquo

abordando como exemplo um bloco de granito A despeito de suas muacuteltiplas caracteriacutesticas ele

enfatiza o ldquoao redorrdquo (das herum sich) pelo qual suas propriedades se agrupam podendo entatildeo

falar de algo como um ldquonuacutecleordquo (Kern) da coisa Esse nuacutecleo de acordo com Heidegger

chamaram-lhe os gregos claacutessicos de ὑποκείμενον Embora ilustrativa a descriccedilatildeo eacute decerto

passiacutevel de baixo niacutevel de representaccedilatildeo posta sua exposiccedilatildeo pouco objetiva O termo eacute mesmo

tatildeo controverso quanto as proacuteprias ideias de ser e ente dentro da perspectiva grega Ela possui

uma carga conceitual talvez natildeo tatildeo difiacutecil de ser desvelada mas que tampouco garante exatidatildeo

e lucidez em sua abordagem variando de eacutepoca para eacutepoca de filoacutesofo para filoacutesofo de

interpretaccedilatildeo para interpretaccedilatildeo Ademais vaacuterias histoacuterias metaforizam o sentido do termo

ὑποκείμενον Uma das mais conhecidas (conto-a sem embasamento ou referecircncias quiccedilaacute

mesmo de maneira inapropriada) relata que certa vez um rei se espantara ao conhecer a obra de

um escultor haacutebil em reproduzir as formas da natureza em blocos de maacutermore Tamanha era a

destreza do artista que se postas lado a lado a escultura e a coisa mesma confundiam-se os

espectadores exceto pelo caraacuteter inanimado da escultura Intrigado o rei mandou chamar o

escultor e perguntou-lhe como fazia para reproduzir com tanta fidelidade o mundo em torno

Natildeo sabendo explicar senatildeo por meio da praacutetica pediu um bloco de maacutermore e agraves vistas do rei

reproduziu perfeitamente um cavalo em tamanho real faltando-lhe apenas galopar O rei lhe

questionou ldquoComo o fizesterdquo e respondeu o escultor ldquofaacutecil apenas retirei do bloco de

maacutermore o que natildeo era cavalordquo O ὑποκείμενον seria portanto aquele elemento sem o qual o

cavalo natildeo seria cavalo ou sem o qual uma coisa natildeo eacute uma coisa Contudo o grande problema

envolto nas tentativas de atingir um entendimento deste sentido por meio de um silogismo uma

loacutegica racional ou uma explicaccedilatildeo conceitual (e natildeo por uma metaacutefora ou estoacuteria) consiste na

dificuldade em elaborar uma equaccedilatildeo que exija menos esforccedilo do ouvinte capacitando uma

lucidez mais ampla e geral que a todos possa atingir

39

Toda definiccedilatildeo a partir de uma predicaccedilatildeo direta pode se configurar ainda mais obscura

e lanccedilar aquele que se propotildee a entender o conceito para um mero encadeamento e conexatildeo de

termos sem contudo realmente promover a experiecircncia do sentido da palavra Sem embargo o

Impeacuterio Romano foi a eacutegide da popularizaccedilatildeo e introspecccedilatildeo do mundo grego competindo-lhes

a tarefa de transpor ao modo latino de pensar os sentidos das meditaccedilotildees gregas Sobre isto

Heidegger ostenta uma posiccedilatildeo bastante firme e vale a pena destacar por completo o trecho no

qual se lhe pode observar sua atitude

Estas denominaccedilotildees natildeo eram meros nomes Em sua fala a experiecircncia fundamental

grega do ser do ente no sentido de sua presenccedila mostrava o que natildeo se podia mostrar

Por meio dessa disposiccedilatildeo instaura-se a interpretaccedilatildeo oficial da coisidade da coisa e

a interpretaccedilatildeo ocidental do ser do ente Comeccedila com a traduccedilatildeo das palavras gregas

para o pensamento romano-latino ὑποκείμενον torna-se subjectum ὑπόστασις torna-

se substantia συνβεβηκός torna-se accidens O processo desta traduccedilatildeo dos nomes

gregos para a liacutengua latina natildeo se daacute sem consequecircncias e nos dias de hoje toma-se

ainda a mesma compreensatildeo Antes pelo contraacuterio por detraacutes da traduccedilatildeo

aparentemente literal haacute um traslado da experiecircncia grega para outro modo de pensar

O pensamento romano assume para si as palavras gregas sem a devida

correspondecircncia com a experiecircncia originaacuteria do que dizem sem a palavra grega A

falta de fundamento do pensamento ocidental comeccedila com essas traduccedilotildees (IDEM

IBIDEM 7-8)

Responsabilizar o pensamento romano-latino pela queda do Ocidente no abismo da falta de

fundamento delega a Heidegger um encargo de peso formidaacutevel cujo maior perigo talvez seja

o de natildeo se ambientar aqui ou ali dentro deste ou daquele territoacuterio neste ou naquele lugar

mas na posiccedilatildeo do meio na esfera do entre no desenho do limite da linha da fronteira

40

A direccedilatildeo do pensamento de Heidegger a partir desta passagem claramente se constitui

desde uma divisatildeo da metafiacutesica ocidental em dois momentos muito distintos embora

interligados A emboscada se encontra na percepccedilatildeo de que todo e qualquer ocidental eacute jaacute

sempre forccedilado a se movimentar na esfera da ontologia latina ao passo que o retorno aos

fundamentos da ontologia grega eacute antes de tudo calcar terreno em solo incerto e regiatildeo

desconhecida Estabelecer uma ponte que permita ao ser humano contemporacircneo entender a

proveniecircncia de sua apreensatildeo da existecircncia eacute um roteiro deveras ousado Resta saber como eacute

possiacutevel ainda pensar os conceitos fundamentais da metafiacutesica dentro de sua propriedade sem

causaacute-los algum tipo de dano que faccedila seu sentido se perder ser obscurecido ou transviado

A partir da colocaccedilatildeo do problema da obra de arte enquanto coisa Heidegger questiona

o que enfim se compreende pelo termo mesmo ldquocoisardquo quando se compromete com a ideia de

tentar envolvecirc-lo conceitualmente (a partir de ὑποκείμενον ὑπόστασις e συνβεβηκός) e desde

aiacute extrair uma explicaccedilatildeo Sobre isto Hermann comenta ldquoComo podemos ver ainda mais e

melhor resolver o problema da obra de arte se torna um problema ontoloacutegico ndash isto eacute em

primeira instacircncia o problema ontoloacutegico do ser-res da resrdquo (HERMANN OP CIT 87) entenda-se

ainda o problema da coisidade da coisa Ele ainda complementa deixando ver a postura exigida

pela tarefa de entender a ontologia grega ldquoPortanto explicar o pensamento grego significa

antes de tudo revelar novamente a experiecircncia de estar no lugar em que se encontra a expressatildeo

de acordo com o fio condutor da palavra filosoacutefica gregardquo (IDEM IBIDEM 93-94) Sem embargo

conforme aponta Hermann (em coerecircncia com Heidegger) o ofiacutecio de introduzir a filosofia

grega (ou se introduzir na filosofia grega sua ontologia e berccedilo da metafiacutesica) constitui-se

desde o caminhar ao lado do fio condutor de sua expressatildeo e manifestaccedilatildeo A caminhada talvez

seja ela mesma o ldquoestar no lugar em que se encontra a expressatildeordquo ou o espaccedilo do ldquoentrerdquo a

ldquolinha de fronteirardquo

41

Algumas dezenas de leituras podem ser desdobradas desde a interpretaccedilatildeo de Heidegger

do lugar de transiccedilatildeo da histoacuteria do ser O itineraacuterio do pensamento de Heidegger legou aos

fieacuteis depositaacuterios de sua vasta caminhada a tarefa ingloacuteria de dar uma passo aleacutem Gostaria de

destacar aqui um direcionamento um pouco menos ousado nem por isto ingecircnuo Considerar

uma histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica em Heidegger eacute procurar pela fenda cuja passagem

encaminha diretamente ao salto no abismo da superaccedilatildeo da metafiacutesica embora natildeo fique ainda

claro o significado destes termos Ademais a intenccedilatildeo aqui eacute justamente esta esclarecer os

enlaces desse percurso histoacuterico nomeado sob o signo da metafiacutesica agrave luz da trajetoacuteria

interpretativa de Heidegger

Justamente sob o tiacutetulo Itineraacuterio do Pensamento de Heidegger (1965) Emmanuel

Carneiro Leatildeo apresenta sua traduccedilatildeo para o portuguecircs da Einfuumlhrung in die Metaphysik (1935)

de Heidegger ndash segundo ele nem de perto uma obra de faacutecil acesso Em primeiro lugar pela

impossibilidade geral de uma introduccedilatildeo em filosofia no sentido amplo Em outras palavras

natildeo haacute caminho de iniciaccedilatildeo agrave filosofia como se houvesse ainda um siacutetio no qual se a conquista

Haacute na verdade o puro levantar de questotildees responsaacuteveis por conduzir o pensamento para dentro

da proacutepria filosofia Carneiro Leatildeo elucida tal dificuldade quando especifica o tiacutetulo da obra

Introduzir agrave metafiacutesica eacute movimentar-lhe a questatildeo fundamental de maneira a

conduzi-la (-ducere) para dentro (-intro) das origens donde a metafiacutesica procede Um

esforccedilo de pensamento que nada tem de horizontal e progressivo Cujo movimento

se processa antes no sentido vertical e regressivo (CARNEIRO LEAtildeO 1999 10)

A filosofia busca o movimento imputado para originaacute-la para com isto retornar agraves suas origens

proacuteprias Em segundo lugar e natildeo menos importante a obra ainda guarda certa inacessibilidade

devido agrave intencional ambiguidade de um periacuteodo conturbado de transiccedilatildeo do pensamento de

Heidegger (tambeacutem evidenciado por Hermann)

42

Eacute preciso movimentar a questatildeo fundamental da metafiacutesica para conduzi-la para dentro

de suas origens Agora bem destacar a questatildeo fundamental eacute o primeiro passo de Heidegger

na obra quando questiona ldquoPorque haacute em geral o ente e natildeo antes nadardquo (HEIDEGGER 1983b

3) Um adendo eacute necessaacuterio ao leitor lusoacutefono Carneiro Leatildeo em sua traduccedilatildeo explica o

emprego do termo ldquoenterdquo para traduzir o alematildeo Seiendes justificando o uso da forma erudita

referida ao latim ens entis para salvaguardar o caraacuteter de tudo que eacute independentemente de

seu modo de ser (cf CARNEIRO LEAtildeO OP CIT 77 nota) Ponderando isto a leitura de Carneiro

Leatildeo segue um rumo bastante simples e esclarecedor ele afirma

O homem natildeo pode existir senatildeo em comeacutercio e comunhatildeo com o mundo dos entes

Ente significa tudo que de algum modo eacute o homem as coisas os acontecimentos ateacute

mesmo o Nada enquanto eacute um Nada ieacute enquanto tem um significado () (IDEM IBIDEM

11)

A forccedila responsaacutevel por manter a decisatildeo a respeito dos entes depende diretamente da

capacidade de enxergar suas distinccedilotildees Em um compecircndio unitaacuterio a base de sustentaccedilatildeo no

comeacutercio com os entes se daacute na e pela linguagem mediante a qual o homem simplesmente

afirma eacute Uma afirmaccedilatildeo aparentemente simples guarda contudo uma relaccedilatildeo complexa e

ambiacutegua talvez mesmo em decorrecircncia de sua extrema simplicidade

A existecircncia humana se agita dentro da tensatildeo entre imanecircncia e transcendecircncia

porque o homem existe enquanto in-siste no domiacutenio da Verdade do Ser ieacute a

vicissitude instaurada pela diferenccedila irredutiacutevel e referecircncia necessaacuteria entre ente e

ser A tarefa do pensamento natildeo eacute procurar sair decircsse ciacuterculo de diferenccedila e referecircncia

e sim necircle ingressar de maneira a poder regressar ateacute a fonte originaacuteria de sua tensatildeo

e unidade (ID IBID 15)

43

O atino para o ingresso ao interior da tarefa do pensamento deixa bastante evidente a intitulaccedilatildeo

da obra Eacute possiacutevel conceber a empreitada em regressar ao fundamento desde o qual a metafiacutesica

eacute ela mesma a proveniecircncia da tensatildeo em torno agrave unidade da existecircncia perante a multiplicidade

Eacute preciso destarte compreender que ldquoSoacute poderemos entender os pensamentos os conceitos

ou as explicaccedilotildees dados na medida em que nos ex-pusermos e dis-pusermos aquilo que se pensa

que se concebe ou que se explicardquo (ID IBID 29) acompanhando assim os passos de Heidegger

e verificando sua coerecircncia teoacuterica de levar colocar e se pocircr no estado da questatildeo

Esta mesma ambivalecircncia eacute tambeacutem destacada por Heidegger quando ele se refere ao

ambiacuteguo das formas essenciais do espiacuterito Natildeo se trata portanto de uma dedicaccedilatildeo integral agraves

possibilidades de captar de maneira exclusivamente formal os procedimentos que envolvem os

estudos mas de perceber (αἴσθησις) e experienciar os fenocircmenos Heidegger adverte ainda

Tomada na totalidade de seu sentido mais cru a filosofia sempre lida com o

fundamento do ente de tal maneira que o proacuteprio ser humano tem enfaticamente a

experiecircncia de seu significado e propoacutesito Por isto agora se vislumbra facilmente a

amplitude da filosofia que poderia e deveria proporcionar o fundamento da existecircncia

da eacutepoca histoacuterica atual e futura pela qual se estabelece a cultura Com tais

espectativas e demandas o estado e a essecircncia da filosofia satildeo sobrecarregadas Na

maior parte das vezes essa demanda excessiva se mostra pela forma de uma censura

da filosofia Diz-se por exemplo porque a metafiacutesica natildeo participou na preparaccedilatildeo

para a revoluccedilatildeo ela deve ser rejeitada Isto eacute tatildeo espirituoso quanto dizer que porque

vocecirc natildeo pode voar com um tocircrno portanto este deve ser abandonado A filosofia

natildeo provecirc diretamente forccedilas nem modos de accedilatildeo e criaccedilatildeo para ajeitar a condiccedilatildeo

histoacuterica simplesmente pelo motivo de dizer respeito apenas a poucos Quais poucos

Aqueles que transformam criativamente convertendo os fins Afetando uma vastidatildeo

apenas indiretamente e nunca fazendo rodeios ateacute certo ponto onde finalmente desde

o longo esquecimento da filosofia degenera-se como autocompreensatildeo da existecircncia

(HEIDEGGER OP CIT 12)

44

Heidegger aponta certa responsabilidade da filosofia na formaccedilatildeo da cultura e direcionamento

da eacutepoca presente e futura A chamada ldquoessencializaccedilatildeo da filosofiardquo eacute em grande parte

responsaacutevel pela tomada de rumo e pela constituiccedilatildeo da histoacuteria ateacute mesmo por seu abandono

Agrave ela estaacute diretamente conectada a ldquoessencializaccedilatildeo do serrdquo e maneira pela qual a filosofia se

apresenta como contemplaccedilatildeo dos fundamentos do ente

Heidegger explica em pormenores a diferenccedila entre ser e ente quando expotildee a gramaacutetica

e etimologia da palavra Certa advertecircncia contudo clama a petrificaccedilatildeo das normas

gramaticais ocas e vazias destituindo a Escola do Mundo do Espiacuterito que circunda a

morfologia dos termos e se restringindo tatildeo somente agrave transmissatildeo de regras do uso da palavra

Neste sentido a maneira pela qual se ostenta a ldquogrande gramaacuteticardquo eacute em si mesma o processo

de substantivaccedilatildeo do Ocidente visto como o cerrar das fronteiras como delimitaccedilatildeo

Tambeacutem em Einfuumlhrung in die Metaphysik Heidegger insiste no argumento exprimido

em Der Ursprung des Kunstwerkes seguindo o fluxo comentado acima quando afirma outra

vez ldquoQue essas formas gramaticais natildeo dissecaram desde toda eternidade uma linguagem

absoluta enquanto controle elas satildeo de fato erigidas de uma particular interpretaccedilatildeo da liacutengua

grega pela liacutengua latinardquo (ID IBID 56) Em outras palavras a linguagem possibilita sendo ela

tambeacutem um ente manipulaccedilatildeo e controle por sobre suas formas Por este motivo eacute possiacutevel

transmitir o conhecimento de uma liacutengua estrangeira somente com o ensino da gramaacutetica

mesmo para pessoas que nunca realmente entraram em contato com essa determinada liacutengua

Ou ainda aprender um idioma antigo natildeo mais utilizado ou cujo vigor ou esplendor se apagou

como o latim o grego claacutessico ou o sacircnscrito antigo sem ter a possibilidade de experenciaacute-los

no cotidiano O domiacutenio teoacuterico de uma liacutengua pode permitir ainda intuiccedilotildees e analogias a

respeito da experiecircncia que esta liacutengua provocava em seus falantes originais sem contudo

garantir exatidatildeo das disposiccedilotildees ou estados de acircnimo referidos pelos termos

45

Dentro da gramaacutetica e morfologia do ser Heidegger evidencia que existe um duplo

sentido para a palavra dentro de seu entendimento como consistecircncia (Staumlndigkeit) qual seja

a) o estar em si mesmo enquanto proveniente de si mesmo e b) o que perdura constantemente

enquanto tal Consistecircncia eacute a palavra-chave de sua leitura do termo ser dentro da circunvisatildeo

grega claacutessica Heidegger aponta que justamente por isso o natildeo-ser denota a desistecircncia ou a

saiacuteda da existecircncia ou ainda o abrir matildeo do ldquosalto para aleacutemrdquo Jaacute a etimologia da palavra ser

revela como os sentidos manifestos pela gramaacutetica e morfologia foram confundidos

historicamente Heidegger expotildee trecircs raiacutezes do termo uma sacircnscrita (es asus) outra indo-

germacircnica (bhuuml) e uma apenas germacircnica (sein) Conforme suas interpretaccedilotildees elas se

desdobram respectivamente em um sentido de ldquoviverrdquo ldquosurgirrdquo e ldquopermanecerrdquo Tratam-se de

verbos distintos todavia Heidegger natildeo citas as fontes das quais ele extrai tais etimologias

Ateacute onde eacute possiacutevel investigar o termo sacircnscrito mais proacuteximo ao que ele considera es

asus seria asti (अनतत) cuja raiz ās (आस) possui incontaacuteveis significados dentre os quais ldquoexistirrdquo

ldquoestar presenterdquo ldquopermanecerrdquo entre vaacuterios outros Aparentemente eacute a origem do indo-europeu

es cujo similar em grego seria o morfema ἐστί e em latim esse (sobremaneira visiacutevel no

portuguecircs estar) Jaacute a palavra bhuuml provavelmente indicada por Heidegger como ldquoindo-

germacircnicardquo em consequecircncia da formataccedilatildeo do verbo ser como ldquobinrdquo ldquobistrdquo (ou ainda ist e em

inglecircs ldquoisrdquo) eacute tambeacutem ela sacircnscrita (bhū भ) e estaacute presente em vaacuterias outras liacutenguas indo-

europeias (como no inglecircs being) Seu significado mais geral seria ldquoserrdquo ou ldquoexistirrdquo embora

aponte tambeacutem para ldquoacontecerrdquo ou ldquoperceberrdquo aleacutem de outros sentidos Sein tambeacutem pode ser

rastreado ateacute certo ponto em sua origem germacircnica no mittelhochdeutsch sīn e no

althochdeutsch wesan derivado da raiz sacircnscrita ves (वस) que daria as formas de Wesen

(essecircncia) ou (war o preteacuterito de Sein ser) em alematildeo De qualquer forma a questatildeo leva

imediatamente ao que Heidegger chama de ldquoessencializaccedilatildeo do serrdquo O motivo eacute simples viver

surgir e permanecer satildeo manifestaccedilotildees que interpelam o ser humano inevitavelmente

46

Contudo o ser ao interpelar o humano natildeo se manifesta antes se oculta esconde sua

proveniecircncia mostra-se ambiacuteguo e pela metade A forma de manifestaccedilatildeo do ser passiacutevel de

ser apreendida como uma realidade existente daacute-se por meio de sua participaccedilatildeo na realidade

presente qual seja ente (seu particiacutepio presente) A predileccedilatildeo pelo ente nasceria justamente

de seu caraacuteter manipulaacutevel embora haja uma conclusatildeo que clama as variaccedilotildees da palavra ser

e seu comportamento com respeito ao ldquoser em si mesmordquo evocado de modo distinto de outros

substantivos e verbos com relaccedilatildeo aos seus respectivos entes A eleiccedilatildeo de uma manifestaccedilatildeo

do ser diz muito sobre o modo relacional do humano com a conduccedilatildeo de sua existecircncia10

Alguns anos antes da composiccedilatildeo da Einfuumlhrung em um compecircndio posteriormente

publicado sob o tiacutetulo Sein und Wahrheit (1933-34) Heidegger se aproximou sistematicamente

da constituiccedilatildeo histoacuterica da metafiacutesica A obra eacute todavia pouco comentada O motivo eacute simples

haacute certo complexo ou trauma envolto na abordagem de um texto do periacuteodo da ascensatildeo do

Partido Nazi e do consentimento ao seu propoacutesito inicial Embora haja certos traccedilos de sintonia

com o discurso do momento pelo qual o povo alematildeo atravessava natildeo haacute nenhum resquiacutecio em

Heidegger dos preconceitos intriacutensecos ao desenrolar do totalitarismo Dentro do ambiente

promissoramente inovador Heidegger escreve ldquoToda gestatildeo essencial se vivifica desde uma

grande determinaccedilatildeo oculta no fundamentordquo (ID 2001 3) As palavras de Heidegger parecem

indicar antes de uma referecircncia ao destino da Alemanha o fato de que a questatildeo fundamental

estaacute contida no proacuteprio fundamento Por este motivo Heidegger ainda sugere um ldquo() caminho

histoacuterico na essecircncia da filosofia ndash e natildeo se poderia ter outro e isto justamente porque a filosofia

eacute ela mesma o acontecimento fundamental da histoacuteria da existecircnciardquo (ID IBIDEM 17) Resta

saber portanto como esse acontecimento fundamental se constitui como metafiacutesica

10 Heidegger justifica este ponto na sua apresentaccedilatildeo do conceito de Cura Sorgen em Sein und Zeit que embora

seja de suma importacircncia uma explanaccedilatildeo mais cuidadosa tomaria aqui e agora demasiado tempo mas que

precisa ao menos ser mencionada Seria esta caracteriacutestica originaacuteria do ser humano Cura Cuidado (Sorgen)

aquilo que o impulsionaria a preservar sua condiccedilatildeo evitando a queda nos abismos existenciais e a confusatildeo

generalizada (cf HEIDEGGER OP CIT 196-200)

47

Quando a tarefa eacute compreender a histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica realizada por Heidegger

insisto nunca eacute demasiada repeticcedilatildeo retomar as primeiras linhas de Sein und Zeit Vale lembrar

uma vez mais a disputa titacircnica a respeito da essecircncia (γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας) que

envolve os questionamentos aparentemente desprestigiados da metafiacutesica Conforme Heidegger

a maneira pela qual o problema perdurou sofreu alteraccedilotildees de Platatildeo e Aristoacuteteles ateacute sua

formulaccedilatildeo mais sofisticada na Wissenschaft der Logik (1812-16) de Georg W F Hegel Em

Sein und Wahrheit eacute tambeacutem a discussatildeo com Hegel que orienta a anaacutelise da metafiacutesica

tradicional Ateacute alcanccedilar Hegel entretanto Heidegger se preocupa em delinear as feiccedilotildees da

perda de sentido da μετὰ τὰ φυσικά aristoteacutelica na recepccedilatildeo tardia de seus escritos onde

ldquoGrandeza e iacutempeto desaparecem tanto na singularidade do questionamento criativo quanto na

designaccedilatildeo conceitual a praccedila desocupada daacute lugar agrave atividade de uma escola ndash somente

sobraram palavras e conceitos mas natildeo o poder estimulante da coisardquo (ID IBID 21)

Para Heidegger a unificaccedilatildeo do termo grego na palavra latina metaphysica natildeo eacute

acompanhada somente de uma correspondecircncia senatildeo ao mesmo tempo de uma mudanccedila em

seu significado Inerente agrave transformaccedilatildeo de seu sentido estaacute a apropriaccedilatildeo cristatilde do conceito

imputando um conhecimento suprassensiacutevel (trans physicam) de maior grau de importacircncia e

relevacircncia e diretamente relacionado ao divino Onde antes havia perplexidade na aspiraccedilatildeo agrave

sapiecircncia e observaccedilatildeo da realidade haacute agora um conhecimento humano elevado e suscetiacutevel agrave

confirmaccedilatildeo pela ciecircncia superior Heidegger visa e cita textualmente a formulaccedilatildeo de

Immanuel Kant da metafiacutesica como a ultrapassagem de todos os objetos empiacutericos a fim de

alcanccedilar um conhecimento viaacutevel e puro ou a superaccedilatildeo do conhecimento sensiacutevel pelo

conhecimento suprassensiacutevel11

11 Embora esta premissa esteja presente jaacute na Kritik der reinen Vernunft e em certa medida em suas especulaccedilotildees

preacute-criacuteticas atingindo ainda todos os escritos intercalados agraves duas outras criacuteticas e ainda os posteriores ele parece

se referir agraves conferecircncias de Kant reunidas por Karl Heinrich Ludwig Poumllitz publicadas em Vorlesungen Kants

uumlber Metaphysik aus drei Semestern Max Heine (org) Leipzig Hirzel 1984 (natildeo tenho certeza disto entretanto)

48

Haacute ainda a absorccedilatildeo do direito agrave verdade metafiacutesica pela ontologia claacutessica e neste

sentido Heidegger cita Alexander Baumgarten onde a verdade metafiacutesica eacute o princiacutepio

universal e fundamental em conveniecircncia agrave determinaccedilatildeo do ente enquanto tal Deste modo

conclui que a metafiacutesica se constitui como uma determinaccedilatildeo cristatilde e ideia matemaacutetico-

metoacutedica de fundamentaccedilatildeo nos sistemas metafiacutesicos da modernidade onde ela se apresenta

como conhecimento do ente em seu todo Hegel ocuparia neste sentido o lugar da consumaccedilatildeo

da plenitude da filosofia ocidental na metafiacutesica destacado o caraacuteter teoloacutegico no qual a medida

do saber eacute o ldquoinfinitordquo (perfectum) manifesto enquanto identidade absoluta (perfectissimus)

ou espiacuterito absoluto Por este motivo ao que parece quando se refere agrave histoacuteria da disputa

titacircnica sobre a essecircncia em Sein und Zeit Heidegger aponta a Wissenschaft der Logik de Hegel

como ponto de chegada Ali a loacutegica eacute entendida como ciecircncia do pensamento todavia natildeo

como ciecircncia responsaacutevel por regular o pensamento mas como fundamento do conceito e em

uacuteltima instacircncia fundamento do ente em si mesmo Heidegger explica dizendo que em Hegel

ldquoA metafiacutesica como ciecircncia do ser do ente eacute lsquoLoacutegicarsquo e esta Loacutegica eacute Loacutegica lsquodorsquo Absoluto isto

eacute de Deus Genitivo deliberadamente ambiacuteguo Natildeo apenas um genitivus objectivus Deus

representado mas sim genitivus subjectivus a essecircncia de deus como presenccedila do Espiacuterito

Absolutordquo (ID IBID 76) Em um momento final da exposiccedilatildeo da questatildeo fundamental da

filosofia Heidegger faz uma divisatildeo entre a filosofia ocidental em seu princiacutepio e em seu fim

escrevendo que

No princiacutepio a mais profunda necessidade era o questionamento na luta com os

poderes incontrolaacuteveis da verdade e da decepccedilatildeo A filosofia causava o mais alto

poder clarificante da naccedilatildeo e de sua existecircncia Riqueza de decisatildeo momento de

decisatildeo No fim alta bem-aventuranccedila na suspensatildeo das contradiccedilotildees fraqueza de

meros conceitos opostos fracasso e morte de todo questionamento Eternidade vazia

cheia de indecisotildees (ID IBID 77)

49

A eternidade vazia cheia de indecisotildees todavia natildeo soa aqui como algo proveniente de um

descontentamento Pelo contraacuterio emerge desde a simples oposiccedilatildeo de conceitos com o fito de

suspender contradiccedilotildees e evidenciar uma maacutexima clareza e nitidez com o intuito de um suposto

pleno contentamento como se a profunda necessidade de questionamento houvesse sido calada

pela extrema emergecircncia de soluccedilatildeo Um abismo entre a filosofia ocidental em seu princiacutepio e

em seu fim eacute diagnosticado de maneira direta e evidente Longe de apontar culpados ou

referendar uma condenaccedilatildeo agrave metafiacutesica claacutessica Heidegger explica o processo intriacutenseco de

explicaccedilatildeo e complicaccedilatildeo da metafiacutesica evidenciando fatualmente a transiccedilatildeo do pensamento

da histoacuteria do ser da ontologia grega agrave latina A distacircncia que provecirc de clareza a anaacutelise eacute todavia

bastante tendenciosa aos propoacutesitos da ontologia fundamental A maneira pela qual a proacutepria

ontologia se protege com uma complexidade de conceitos dificulta a visualizaccedilatildeo do percurso

histoacuterico e da explanaccedilatildeo esclarecedora

Vale portanto retomar alguns aspectos relevantes embora por vezes sutis da pesquisa

acerca da ontologia na metafiacutesica claacutessica Gostaria de propor um breve desvio que agrave primeira

vista pareceraacute desnecessaacuterio contudo configura-se como extremamente pertinente ao

propoacutesito do capiacutetulo Atualmente as pesquisas voltadas ao estudo da ontologia se restringem

ou bem ao estudo histoacuterico ou bem agraves repercussotildees da metafiacutesica na filosofia contemporacircnea

Via de regra servem de embasamento para questotildees projetadas aos assuntos pertinentes da

eacutepoca vigente A ontologia se torna assim uma ldquoaacuterea da filosofiardquo uma ldquodisciplinardquo ou mesmo

um tronco braccedilo ou ramificaccedilatildeo dos estudos filosoacuteficos Os pesquisadores responsaacuteveis por

esta aacuterea da filosofia desdobram prolegocircmenos e comentaacuterios explicativos aos textos claacutessicos

fundamentando muacuteltiplas outras aacutereas Poucas vezes eacute possiacutevel observar um trabalho sobre

ontologia que realmente conecte seu sentido primaacuterio aos problemas apresentados nos dias de

hoje todavia escavando com devoccedilatildeo algumas pesquisas emergem sobremaneira conexas

50

A ontologia parece ser mesmo ldquoutilizadardquo como ponte para abrir novos caminhos como

por exemplo as discussotildees histoacutericas na anaacutelise do desenvolvimento da cultura as

investigaccedilotildees epistemoloacutegicas na confrontaccedilatildeo das possibilidades de conhecimento as

consideraccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas na constituiccedilatildeo dos haacutebitos e costumes da relaccedilatildeo do ser humano

com as virtudes deveres e utilidades os juiacutezos esteacuteticos na relaccedilatildeo com a obra de arte ou

mesmo as bases psicanaliacuteticas do entendimento do proacuteprio humano e sua relaccedilatildeo com as coisas

e o mundo entorno

Um dos exemplos mais niacutetidos de um pensamento comprometido em discutir a

ontologia por si mesma observando a maneira pela qual as categorias ontoloacutegicas dispotildeem

ainda hoje os modos de estruturar a realidade talvez se apresente nas recentes discussotildees em

torno ao ldquodigitalrdquo e ao ldquovirtualrdquo ou as propostas de uma ldquoontologia digitalrdquo Ouvi falar pela

primeira vez sobre ldquoontologia digitalrdquo por meio de Rafael Capurro em 2009 durante o III

Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica realizado em Natal na Universidade Federal do Rio

Grande do Norte12 Ateacute entatildeo possuiacutea minhas proacuteprias teorias acerca do mundo digital e da

esfera virtual da internet todavia natildeo tinha sequer noccedilatildeo da envergadura do problema e da

maneira pela qual o assunto podia ser pensado desde uma perspectiva ontoloacutegica e natildeo

meramente poliacutetico-ativista ou mesmo teoacuterico-juriacutedica Embora este natildeo seja propriamente o

assunto do capiacutetulo gostaria de abordar o tema como forma de justificar o questionamento pela

ontologia claacutessica para aleacutem da mera constataccedilatildeo historiograacutefica Conforme pude acompanhar

a inquietaccedilatildeo que move os trabalhos se concentra na crenccedila segundo a qual todos os fenocircmenos

podem ser analisados construiacutedos e manipulados sob a condiccedilatildeo de poderem ser digitalizados

12 A discussatildeo de Capurro havia comeccedilado com uma troca de e-mails com Michael Eldred A conversa redundou

em primeira matildeo nos trabalhos de Capurro intitulados Entwurf einer digitalen Ontologie (1999) e Beitraumlge zu

einer digitalen Ontologie (1999) sendo estendida em ulteriores escritos como Interpreting the digital human

(2008) e Einfuumlhrung in die digitale Ontologie (2009) aleacutem do livro publicado por Eldred The Digital Cast of

Being (2009) Provavelmente a discussatildeo ainda prossegue e outros trabalhos foram ou estatildeo sendo publicados

51

Talvez como um chiste mas bastante pertinente e veriacutedico Capurro afirma que

atualmente se algueacutem natildeo estaacute na rede eacute como se natildeo existisse Dando impulso para uma

formulaccedilatildeo inusitada esse est computari em analogia agrave famosa foacutermula de George Berkeley

(esse est percipi) A conclusatildeo bastante perspicaz extraiacuteda por Capurro eacute a de que seria correto

dizer que hoje vemos a realidade no horizonte de sua digitabilidade Uma seacuterie de outros termos

e expressotildees natildeo-convencionais emergem do texto de Capurro como ldquoem tudo que eacute puramente

virtual as coisas consistem essencialmente em bitsrdquo ou a denominaccedilatildeo ldquopitagorismo digitalrdquo

Entretanto todas as definiccedilotildees e determinaccedilotildees estatildeo conectadas ao arcano questionamento em

torno ao ente

O que eacute o ente Esta pergunta fundamental da metafiacutesica natildeo pode ter uma resposta

definitiva a partir da perspectiva de um conhecimento finito sem cair na ilusatildeo

essencialista Isto tem consequecircncias para a problemaacutetica de como pensar uma cultura

digital Uma ontologia digital eacute uma interpretaccedilatildeo possiacutevel do ser dos entes vistos

desde sua digitabilidade No entanto tal ontologia corre sempre o perigo de

transformar-se em uma metafiacutesica digital no momento em que acredita ser a

verdadeira ou uacutenica resposta agrave pergunta pelo ser A ontologia digital eacute uma possiacutevel

compreensatildeo do ser por parte do conhecimento humano finito Todas as regiotildees ou

esferas dos entes satildeo concebidas entatildeo como digitais (CAPURRO 2009 322)

A introduccedilatildeo da digitabilidade para aleacutem da anaacutelise do ldquoserrdquo quantificado pela ciecircncia moderna

confere uma perspectiva nova de experimentaccedilatildeo do ente em sua totalidade Chama atenccedilatildeo o

perigo envolto na transformaccedilatildeo em uma ldquometafiacutesica digitalrdquo na qual uma virada ontocecircntrica

concentraria o poder da verdade enquanto julgamento como oriente agrave pergunta pelo ldquoserrdquo

Talvez o mais importante da anaacutelise de Capurro consista justamente na renovaccedilatildeo desta criacutetica

na qual se chama atenccedilatildeo para a imprecisatildeo especulativa por meio da indefiniccedilatildeo do virtual

52

Natildeo eacute difiacutecil perceber que o mundo digital oferece uma vasta gama de temas e

possibilidades de se pensar filosoficamente sob as mais diversas perspectivas Natildeo haacute grande

espanto na busca dos filoacutesofos por reflexotildees em torno aos acontecimentos revolucionaacuterios dos

veiacuteculos de informaccedilatildeo e tecnologias em geral no seacuteculo vinte-e-um Contudo admiraacutevel eacute

encontrar o caminho oposto o momento no qual desenvolvedores da ciecircncia e da teacutecnica

buscam a filosofia para fundamentar seus trabalhos Eacute caso dos estudos realizados por Peter

Oslashhrstroslashm Henrik Schaumlrfe e Sara L Uckelman cujos resultados foram publicados nos anais da

International Conference on Conceptual Structures um evento dedicado agrave ciecircncia da

computaccedilatildeo Os trecircs investigadores fundamentam desde a ontologia moderna claacutessica a

concepccedilatildeo de hipertexto um conceito fundamental da computaccedilatildeo13 Para Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e

Uckelman o nascimento do termo ldquoontologiardquo representa o estabelecimento de um hipertexto

sobre a realidade e a temporalidade em pleno seacuteculo dezessete Os pesquisadores se referem

especificamente a Jacob Lorhard autor dos oito volumes intitulados Ogdoas Scholastica (1606)

responsaacutevel por cunhar o termo ldquoontologiardquo pela primeira vez na histoacuteria

Lorhard compocircs sua Ogdoas como uma gramaacutetica para o ensino escolar por meio de

aacutervores diagramaticais A teacutecnica utilizada por Lorhard foi profundamente influenciada por

Petrus Ramus (Pierre de la Rameacutee) cujo objetivo era transformar a razatildeo dialeacutetica em um

meacutetodo de loacutegica pedagoacutegica Petrus Ramus foi uma figura controversa e polecircmica Aleacutem de

suas interpretaccedilotildees pouco ortodoxas de Aristoacuteteles Ramus defendia uma completa reforma no

sistema educacional Ele fomentava o espiacuterito humanista pelo qual procurava devolver agrave

retoacuterica sua posiccedilatildeo proeminente visando desautorizar o peso da loacutegica escolaacutestica14

13 A ideia de hipertexto eacute bastante antiga todavia o termo no sentido moderno foi cunhado por Ted Nelson em

1965 para descrever o sistema de escrita natildeo-sequencial que envolvia o ligamento entre textos distintos em uma

mesma interface na internet O sistema de hyperlinks em um siacutetio da internet eacute um exemplo bastante simples de

um hipertexto 14 Cf Petrus Ramus Sa Vie Ses Eacutecrits et Ses Opinions Charles Waddington (ed) Paris Librairie de Ch Meyrteis

1855 Acerca das singularidades de Petrus Ramus confira Laura Adriaacuten Lara ldquoPetrus Ramus y el ocaso de la

retoacuterica ciacutevicardquo Utopiacutea y Praxis Latinoamericana v 13 n 43 (out-dez 2008) 11-31 e ainda Frank P Graves

Petrus Ramus and the Educational Reformation of Sixteenth Century New York Macmillan 1912

53

Havia um profundo espiacuterito anti-escolaacutestico que movia os interesses de Ramus

enfatizando uma postura radical na qual a filosofia ramista considerava falsa todas as

afirmaccedilotildees de Aristoacuteteles Para facilitar o processo de aprendizagem pelo qual o domiacutenio das

ciecircncias e artes liberais pode ser alcanccedilado Ramus emprega seus ldquoesquemas visuais abstratosrdquo

Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman se referem aos esquemas de Ramus como base para a aacutervore

diagramatical de Jacob Lorhard ndash para os pesquisadores este tipo de diagrama eacute o berccedilo de

todo futuro hipertexto

Eacute faacutecil observar que a estrutura da Ogdoas Scholastica de Jacob Lorhard permite ao

leitor localizar conceitos especiacuteficos e suas respectivas definiccedilotildees por meio de uma rede de

interconexotildees na forma de diagramas A ldquoaacutervorerdquo facilita natildeo soacute a compreensatildeo dos conceitos

como tambeacutem a maneira pela qual eles se relacionam uns com os outros Sem embargo trata-

se de uma gramaacutetica pela qual o domiacutenio de conceitos fundamentais da metafiacutesica se torna

bastante simples concordando em absoluto com a demanda da eacutepoca em introduzir este tipo de

estudo nos niacuteveis baacutesicos de ensino Com obras como as de Lorhard a exigecircncia do estudo da

ontologia foi difundida durante o seacuteculo dezoito como parte essencial da formaccedilatildeo acadecircmica

baacutesica15 Aleacutem disto a Ogdoas ainda sustentava a eacutegide da clarificaccedilatildeo da ontologia como base

para todo ulterior desenvolvimento intelectual Em outros termos Lorhard (assim como Ramus)

acreditava que natildeo era possiacutevel esclarecer nenhuma ciecircncia se natildeo houvesse de antematildeo uma

lucidez absoluta a respeito dos fundamentos do ente que poderia ser proporcionada apenas pelo

estudo por ele nomeado ldquoontologiardquo um discurso que buscava um pleno esclarecimento dos

termos empregados para definir todo e qualquer ulterior passo tomado tanto nas ciecircncias do

espiacuterito quanto nas ciecircncias da natureza

15 Muito disto deve-se ao filoacutesofo norueguecircs Jens Kraft cuja obra (influenciada em larga escala pela Metaphysica

sive Ontologia de Christian Wolff) reforccedilou o peso dos estudos em ontologia Dentro da compreensatildeo de Kraft

compartilhada tambeacutem por Lorhard e outros a ontologia ganha um lugar privilegiado como unificaccedilatildeo sistemaacutetica

das estruturas do pensamento como um todo

54

O oitavo livro da Ogdoas de Lorhard que encerra o compecircndio e eacute dedicado agrave ontologia

no sentido de unificar todos os escritos anteriores define a metafiacutesica como ldquo() o

conhecimento de um inteligiacutevel enquanto inteligiacutevel ()rdquo (LORHARD sd 3) Este conhecimento

eacute divido entre conhecimento dos particulares e dos universais Para Lorhard a parte da

metafiacutesica responsaacutevel pelo conhecimento dos particulares ou bem se refere acirc substacircncia

pertinente aos seres natildeo-complexos que subsistem em si mesmos (sejam eles criados ou natildeo)

ou bem aos acidentes

Jaacute o conhecimento dos universais se refere a tudo o que eacute inteligiacutevel redundando nos

atributos gerais ou nas distribuiccedilotildees conforme as quais o λόγος eacute entendido como um inteligiacutevel

As distribuiccedilotildees dizem respeito ao nada por um lado ou a algo por outro sendo este uacuteltimo

em seu aspecto positivo o que envolve as ideias de ldquoessecircnciardquo e ldquoenterdquo As noccedilotildees de ldquoessecircnciardquo

e ldquoenterdquo satildeo centrais natildeo apenas para o sistema de Lorhard mas tambeacutem para todas as

subsequentes compreensotildees da ontologia Em uma primeira definiccedilatildeo Lorhard observa a

ldquoessecircnciardquo em sua relaccedilatildeo com o λόγος definindo que ldquoEssecircncia eacute algo produtivo pelo qual o

Ser eacute o que eacute Esta palavra estrangeira eacute chamada pelos Escolaacutesticos de Entidade ou quidditasrdquo

(IDEM IBIDEM 4) Em segundo lugar considera a ldquoessecircnciardquo em relaccedilatildeo a sua distribuiccedilatildeo na

qual ela eacute ou bem ldquorealrdquo (ou seja uma atualizaccedilatildeorealizaccedilatildeo do ser) ou bem ldquoimaginaacuteriardquo (no

caso de um ser puramente racional) Ambas podem ser ldquosimplesrdquo ou ldquocompostasrdquo ldquoabsolutasrdquo

ou ldquorespectivasrdquo ldquouniversaisrdquo ou ldquosingularesrdquo Dentro do uacuteltimo destes casos a ldquoessecircnciardquo

pode ser ainda ldquogeneacutericardquo (ou um gecircnero compartilhado por outras espeacutecies) ou ldquoespeciacuteficardquo

(relativa a uma uacutenica espeacutecie) Natildeo haacute grande espanto nos pontos apresentados ateacute entatildeo por

Lorhard O que haacute na verdade eacute uma constituiccedilatildeo sistemaacutetica de um diaacutelogo que estava sendo

travado jaacute haacute muito tempo e sobremaneira evidente no periacuteodo no qual ele compocircs sua obra

Suas contribuiccedilotildees mais significantes talvez se deem na seccedilatildeo seguinte quando aborda a

questatildeo do ldquoenterdquo

55

Lorhard tambeacutem considera o ldquoenterdquo no discurso unificador bem como na questatildeo da

ldquoessecircnciardquo afirmando dele algo produtivo ldquodotado de certa essecircnciardquo Em seu caraacuteter

distributivo o ldquoenterdquo (assim como a ldquoessecircnciardquo) eacute ou bem ldquorealrdquo ou bem ldquoracionalrdquo Ele define

o ldquoente de razatildeo ou racionalrdquo afirmando que ldquoEacute um ente de razatildeo que eacute tocado pela cogitaccedilatildeo

de uma mente singular de acordo com o modo real do ente agrave parte disto eacute nada Eacute tambeacutem

chamado ente fictiacutecio e imaginaacuteriordquo (ID IBID 5) Jaacute o ldquoente realrdquo pode se dar por meio do

discurso (λόγος) de sua proacutepria essecircncia ou ainda ser distribuiacutedo em entes primaacuterios e

secundaacuterios (estes uacuteltimos decorrentes dos primeiros) sendo ambos ldquosimplesrdquo ou ldquocomplexosrdquo

ldquoabsolutosrdquo ou ldquorespectivosrdquo ldquouniversaisrdquo ou ldquoparticularesrdquo ldquoimateriaisrdquo ou ldquomateriaisrdquo

ldquopermanentesrdquo ou ldquosucessivosrdquo

Toda a divisatildeo da ontologia de Lorhard acompanha em muitos aspectos a ontologia

derivada da filosofia grega claacutessica desde o processo dialeacutetico de questionamento da realidade

conforme a doutrina platocircnica e a divisatildeo das Categorias de Aristoacuteteles A principal distinccedilatildeo

do emprego do termo ontologia como expressatildeo e manifestaccedilatildeo das doutrinas metafiacutesicas em

Lorhard eacute o foco especiacutefico de uma ldquodoutrina dos inteligiacuteveisrdquo Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman

comentam que

Conforme Lorhard haacute uma importante dualidade entre os entes e nossa discussatildeo

racional a respeito deles Parece que ele insistiu na necessidade dessa dualidade no

sentido de que cada vez que noacutes discutimos os entes no mundo tentando classificaacute-

los tambeacutem temos que refletir sobre os conceitos usados para fazecirc-los (OslashHRSTOslashM

SCHAumlRFE E UCKELMAN OP CIT 4)

Em termos mais simples apoacutes um longo periacuteodo de aristotelismo escolaacutestico talvez tenha sido

Lorhard o primeiro a atentar para o fato de certa confusatildeo gerada dentro da metafiacutesica a respeito

da maneira pela qual se predica o ser do ente em sua participaccedilatildeo presente na realidade

56

Seria liacutecito portanto argumentar que a evidecircncia da confusatildeo de termos se deve ao fato

de Lorhard ter deslocado o ontocentrismo metafiacutesico para uma teoria dos intiligiacuteveis Ainda

conforme Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman a postura de Lorhard eacute diretamente influenciada pela

obra de Clemens Timpler que sustentava a mesma posiccedilatildeo a respeito da metafiacutesica desde uma

confrontaccedilatildeo direta com a filosofia de Francisco Suaacuterez Esta seria a contenda principal do

iniacutecio da modernidade responsaacutevel por conformar e enformar a metafiacutesica como ontologia tal

qual hoje ainda se a concebe Joseph S Freedman desenvolve uma anaacutelise bastante precisa da

maneira pela qual Timpler fundamentou sua postura e as consequecircncias de seu trabalho

sobretudo no que tange agrave disputa com Francisco Suaacuterez A respeito da proposiccedilatildeo ldquotudo que eacute

inteligiacutevelrdquo (omne intelligibile) o tema constitutivo da metafiacutesica Freedman (cf 2009 10-11)

comenta que Timpler provecirc uma moldura conceitual dentro da qual alguns conceitos

ontologicamente baacutesicos satildeo englobados quais sejam ldquoalgordquo (aliquid) ldquoprivaccedilatildeordquo (privatio)

ldquoessecircnciardquo (essentia) e ldquoentidaderdquo (ens) Dentro da dissoluccedilatildeo dos conceitos na obra central de

Timpler Metaphysicae systema methodicum (1604) Freedman comenta

Conforme Timpler ldquotudo aquilo que eacute Inteligiacutevelrdquo eacute dividido entre nihil (ie ldquonadardquo

ou ldquonatildeo-serrdquo) e aliquid aut est (ldquoalgordquo ou ldquoenterdquo) esta eacute basicamente a mesma

dicotomia que William Shakespeare aludiu quando ele coloca no Ato 3 Cena 1 de

Hamlet ndash alguns anos antes (c 1600) da publicaccedilatildeo do texto de Timpler sobre

metafiacutesica ndash que ldquoser ou natildeo ser estaacute eacute a questatildeo []rdquo Mas esta foi a questatildeo que

Timpler e todos os seus (conhecidos) contemporacircneos acadecircmicos aparentemente

desejaram evitar de discutir A discussatildeo da questatildeo de Shakespeare ndash e da dicotomia

de Timpler ndash poderia ter provido as bases para o levantamento de toacutepicos altamente

sensiacuteveis por exemplo 1) a relaccedilatildeo entre Deus e Nada (nihil) 2) a relaccedilatildeo entre Deus

entidade e privaccedilatildeo (ie mal) e 3) a relaccedilatildeo entre Deus e o princiacutepio de contradiccedilatildeo

(FREEDMAN op cit 12)

57

Embora estas questotildees estivessem jaacute sempre presentes dentro dos questionamentos de Timpler

e de seus contemporacircneos elas eram todavia caladas de acordo com Freedman (IDEM IBIDEM)

pela imposiccedilatildeo das instituiccedilotildees cristatildes das coisas sobre as quais se era proibido falar ou acreditar

O que perdura das apresentaccedilotildees filosoacuteficas da metafiacutesica como ontologia em Timpler

ponderando seu princiacutepio do inteligiacutevel concentra-se em primeiro lugar como o mateacuteria de

todas as disciplinas e subdisciplinas acadecircmicas e em segundo lugar como foco de disciplinas

separadas como a archeologia gnostologia hexiologia intelligentia pansophia e tecnologia

(cf ID IBID 14)

O motivo da predileccedilatildeo da questatildeo dos intiligiacuteveis como foco principal de todos os

temas concernentes ao pensamento aparece dentro da possibilidade de envolver todos os

aspectos responsaacuteveis pelos modos operativos de pensar 16 Desta forma por exemplo as

disciplinas separadas como a ldquotecnologiardquo seriam desenvolvidas para as consideraccedilotildees gerais

e universais da estrutura das disciplinas liberais (cf ID IBID 16) Embora discrimine em parte

o princiacutepio da cogniccedilatildeo a metafiacutesica tampouco envolve a loacutegica por levar em consideraccedilatildeo

apenas os princiacutepios excluindo entidades complexas que redundem no princiacutepio de contradiccedilatildeo

Em contrapartida ao sistema metoacutedico de Timpler vecirc-se em Francisco Suaacuterez um

caraacuteter muito mais ontocecircntrico As Disputationes Metaphysicae (1597) de Francisco Suaacuterez

satildeo publicadas dentro de um contexto de desarmonia e conflitos entre a teologia e a filosofia

onde os conceitos fundamentais na discussatildeo sobre o divino estavam sendo postos em questatildeo

A despeito das influecircncias de Suaacuterez e dos necessaacuterios posicionamentos poliacuteticos sua obra

parece instaurar um regulamento por meio do qual nada poderia ser legado agrave mera

inteligibilidade

16 Freedman (ID IBID 15) cita o teoacutelogo calvinista Matthias Martinius contemporacircneo de Timpler que evidencia

de maneira mais clara os motivos das proposiccedilotildees fundamentais Ele atesta que conforme esta designaccedilatildeo agrave

metafiacutesica ldquopertence tudo aquilo que eacute cognosciacutevelrdquo (de omni cogitabili) mas com certas restriccedilotildees englobando

a ldquouniversalidade das coisasrdquo (rerum universitatem) mas natildeo envolvendo disciplinas acadecircmicas especializadas

singulares ou particulares

58

As Disputationes de Suaacuterez podem ser entendidas desde uma divisatildeo da obra na qual a

primeira parte (as primeiras vinte-e-sete questotildees) se refere ao ente no sentido geral enquanto

a segunda parte (as vinte-e-sete uacuteltimas questotildees) lida com o ente particular redundando em

uma dupla divisatildeo da proacutepria metafiacutesica entre ldquometafiacutesica geralrdquo e ldquometafiacutesica especialrdquo (cf

SUAacuteREZ 2004 DOYLE 2004) Ao comentar o desenvolvimento deste aspecto da filosofia de

Suaacuterez Ludger Honnefelder ainda acrescenta

Conforme Suaacuterez a metafiacutesica lida com o conceito de ente tanto ldquoformalrdquo quanto

ldquoobjetivordquo Pelo conceito formal Suaacuterez entende o ato de conhecer do qual ldquoex unica

et prima impositionerdquo que rende uma representaccedilatildeo intencional do objeto pelo

conceito objetivo ele designa aquilo que representa intencionalmente o ato Em outras

palavras Suaacuterez natildeo assume a teoria dos conceitos caracterizada pelo paralelismo

noeacutetico-noemaacutetico de res e conceptus antes ele aceita a abordagem criacutetica de Ockham

em direccedilatildeo a interpretaccedilatildeo realiacutestica dos conceitos universais Desde que Scottus ele

mesmo natildeo depende desse paralelismo quando isto vem a dizer respeito sobre o ente

Suaacuterez substancialmente segue Scottus e aplica ldquoenterdquo para um conceito formal

primaacuterio e unificado que em virtude de sua imposiccedilatildeo representa um objetivo

primaacuterio e unificado do conteuacutedo absolutamente simples que envolve todos os entes

distintos de uma maneira indeterminada ie como ente (HONNEFELDER 2003)

Segundo a exposiccedilatildeo de Honnefelder o direcionamento da metafiacutesica de Suaacuterez iraacute redundar

em alguns pontos baacutesicos em primeiro lugar o fato de que a determinaccedilatildeo do ente transcende

a generalidade dos gecircneros em segundo que a determinaccedilatildeo natildeo pode ela mesma ser definida

podendo apenas ser explicada em relaccedilatildeo agrave existecircncia real em terceiro que toda existecircncia estaacute

sujeita agrave fundamentaccedilatildeo de disposiccedilatildeo ontoloacutegica em uacuteltimo lugar que o ente finito perdura

em um modo indeterminaacutevel de quantidade sendo o ente infinito eacute aquilo que eacute perfeito e

totalmente indivisiacutevel em si mesmo e mais real e completo (cf IDEM IBIDEM)

59

Agora bem com o fito de retomar a linha de raciociacutenio desenvolvida no capiacutetulo eacute

preciso retomar a ideia de substantivaccedilatildeo do Ocidente e a maneira pela qual esse processo se

deixar ver ao longo da histoacuteria da ontologia Martin Heidegger indica em primeiro lugar o que

ele considera como o problema fundamental pelo qual a metafiacutesica se desdobra no Ocidente

qual seja o fato de que o ldquoserrdquo natildeo eacute um ldquoenterdquo mas que todavia um foi tomado pelo outro Ele

apresenta ainda o argumento de que a transposiccedilatildeo da experiecircncia fundamental grega (conforme

apresentada tambeacutem por Charles H Kahn) sofre uma violaccedilatildeo na absorccedilatildeo latina e na

transferecircncia de conceitos de um modo de pensar para o outro Eacute dentro deste ambiente latino

que eacute possiacutevel rastrear a maneira pela qual a metafiacutesica se forma e transforma em ontologia ou

bem dentro de uma filosofia do inteligiacutevel (como em Lorhard e Timpler) ou bem como um

ontocentrismo filosoacutefico (como em Suaacuterez) Sem embargo trata-se de uma disputa em torno agraves

formas primaacuterias da discussatildeo em torno ao ldquoserrdquo e ao ldquoenterdquo Eacute possiacutevel concluir desde a

constataccedilatildeo da entificaccedilatildeo do ser ou substantivaccedilatildeo do Ocidente que a demanda pela resposta

ao problema primeiro da filosofia necessariamente a encaminha para um percurso que natildeo

poderia ser outro Mas qual eacute propriamente este problema primeiro e como se constroacutei esse

caminho Natildeo haveria outra indicaccedilatildeo senatildeo a da ciecircncia dos primeiros princiacutepios e causas de

Aristoacuteteles Jaacute na doutrina das Categorias de Aristoacuteteles eacute possiacutevel observar a confusatildeo entre

ldquoserrdquo e ldquoenterdquo A questatildeo pode ser melhor observada na proposiccedilatildeo baacutesica e amplamente

difundida da Metafiacutesica ldquoO ente se diz em muacuteltiplos significados mas sempre em referecircncia a

uma unidade e a uma realidade determinadardquo (ARISTOacuteTELES 2002 131)17 A referecircncia a uma

unidade e uma realidade determinada eacute a chave para compreender a maneira pela qual a

ontologia se torna a ciecircncia responsaacutevel por esse tema (conforme Aristoacuteteles ldquoHaacute uma ciecircncia

que considera o ente enquanto ente e as propriedades que lhe competem enquanto talrdquo ID IBID)18

17 Τὸ δὲ λέγεται μὲν πολλαχῶς ἀλλὰ πρὸς ἓν καὶ μίαν τινὰ φύσις καὶ οὐχ ὁμωνύμως ἀλλrsquo (Metafiacutesica 1003a 30-

35) 18 Ἔστιν ἐπιστήμη τις ἧ τὸ ὄν ᾗ ὄν καὶ τὰ τούτῳ ὑπάρχοντα καθ αὑτό (Metafiacutesica 1003a 20)

60

Dentro desta ciecircncia o conceito central que unifica e determina ldquoenterdquo e ldquoserrdquo eacute

apresentado como οὐσία O conceito de οὐσία (substantia substacircncia) eacute bem desenvolvido nas

Categorias entre as expressotildees que natildeo satildeo compostas quais sejam a substacircncia mesma

quantidade qualidade relaccedilatildeo lugar tempo posiccedilatildeo estado accedilatildeo ou afecccedilatildeo Ela eacute

apresentada desde duas perspectivas uma primaacuteria outra secundaacuteria A substacircncia primeira

natildeo se afirma de um sujeito nem em um sujeito mas comporta as substacircncias segundas nas

quais a forma afirma a espeacutecie e o gecircnero (ldquoserrdquo do sujeito) comportando tambeacutem os acidentes

(ldquoserrdquo no sujeito) que a eles se atribui Embora o conceito em sua primeira formulaccedilatildeo

contemple o aspecto formal bem como o elemento inteligiacutevel envolve ainda o aspecto material

em seu segundo modo natildeo podendo ser um sem o outro

As consequecircncias do desenvolvimento de uma ciecircncia responsaacutevel pelo ente enquanto

ente centralizando o conceito de substacircncia e substantivando a ideia de ldquoserrdquo por meio de seu

particiacutepio presente ldquoenterdquo satildeo o que se pode considerar como o desenvolvimento da histoacuteria do

ldquoserrdquo ou a histoacuteria da maneira pela qual o Ocidente compreende o ldquoserrdquo e a si mesmo Por meio

desta postulaccedilatildeo o ldquoτὰ ὄνταrdquo eacute posicionado no centro do pensamento ocidental Mais ainda do

que uma simples constataccedilatildeo da maneira pelo qual coube ao Ocidente pensar curioso eacute

especular o fato de que se natildeo fosse possiacutevel pensar fora da delimitaccedilatildeo do ente natildeo haveria

sequer indagaccedilatildeo alguma sobre as limitaccedilotildees ou prejuiacutezos imbuiacutedos nesta formulaccedilatildeo Sem

embargo eacute possiacutevel constatar desde os recursos apresentados (e ainda por muitos outros

caminhos que natildeo este) a necessidade incontida do ser humano ocidental eacute desenhar de maneira

niacutetida as fronteiras do pensamento e da maneira pela qual esse pensamento deve e pode ser

aplicado Resta saber apoacutes esta delimitaccedilatildeo o que haacute para aleacutem da fronteira

61

2 O CAMINHO DA NEGATIVIDADE HENEOLOGIA E MEONTOLOGIA E A

ULTRAPASSAGEM DOS LIMITES DA METAFIacuteSICA

O discurso ontoloacutegico tanto grego quanto latino personificou a atividade filosoacutefica ocidental

em larga escala A maneira pela qual a ontologia habilitava ao raciociacutenio uma seacuterie de

procedimentos facilmente verificaacuteveis nutriu seguranccedila metodoloacutegica aos assuntos

concernentes aos problemas intelectuais com os quais o ser humano fatalmente se deparava ao

longo de suas especulaccedilotildees e que reverberavam ainda na conjuntura soacutecio-pragmaacutetica Eacute neste

sentido que teria afirmado Immanuel Kant de maneira perspicaz que a razatildeo humana se

defronta com inevitaacuteveis questotildees impostas por sua proacutepria natureza19 Tanto para Aristoacuteteles

quanto para Francisco Suaacuterez aleacutem de tantos outros entrementes a importacircncia de assegurar

uma linha de raciociacutenio vaacutelida natildeo somente atribuiacutea autoridade ao argumento como tambeacutem

provia de suficiente clareza a linguagem que advogava suas doutrinas Em outras palavras

tornava-se faacutecil convencer outrem de seus pressupostos dada a indefectiacutevel loacutegica empregada

para encadear as sentenccedilas e alcanccedilar uma conclusatildeo A ontologia por meio de suas loacutegicas de

identidade e natildeo-contradiccedilatildeo (e ateacute certo ponto tambeacutem via argumento do terceiro excluiacutedo)

visava alcanccedilar tanto para afirmaccedilatildeo quanto para negaccedilatildeo a dissoluccedilatildeo de todo e qualquer

paradoxo que colocasse a mente em estado de confusatildeo e discoacuterdia Independente daquilo que

estava sendo afirmado ou negado da linha de raciociacutenio ou doutrina em jogo os procedimentos

discursivos e intelectuais eram basicamente os mesmos com variaccedilotildees conceituais maiores ou

menores dependendo da vertente Todavia prosseguia-se sempre da mesma maneira

19 Kant afirma ldquoA razatildeo humana no seu gecircnio de seu conhecimento possui o peculiar destino de ser incomodada

por questotildees que natildeo pode evitar porque elas satildeo dadas pela natureza da razatildeo mesma mas tambeacutem natildeo possuem

respostas porque elas excedem a capacidade da razatildeo humanardquo (KANT 1956 5 Criacutetica da razatildeo pura AVII-

AVIII)

62

Contudo a despeito da supremacia ontoloacutegica outras formas de pensamento foram

desenvolvidas no decorrer da histoacuteria da filosofia fossem elas similares ou totalmente opostas

Alguns pensadores especialmente radicais se dedicaram a um modo reflexivo que se distanciava

consideravelmente da estrutura ontoloacutegica Suas bases seus pressupostos e seus meacutetodos pelos

quais prosseguiam no caminho especulativo dos temas propostos (muitas vezes os mesmos dos

formuladores da ontologia claacutessica) projetavam-se de maneira consideravelmente diversa Para

eles havia uma necessidade imperativa de incluir todos os elementos presentes na estrutura da

realidade pensada em sua maacutexima possibilidade de concepccedilatildeo tanto os que satildeo quanto os que

natildeo satildeo Ao que parece por este motivo Werner Beierwaltes considera que as caracteriacutesticas

pelas quais se configuram a ontologia claacutessica satildeo sobretudo frutos da interrogaccedilatildeo pelo nexo

da identidade e da diferenccedila quer seja na afirmaccedilatildeo parmeniacutedica da natildeo legitimaccedilatildeo filosoacutefica

da alteridade quer seja na resposta platocircnica do necessaacuterio estabelecimento da diferenccedila na

constituiccedilatildeo do ldquoserrdquo em seu inteiro (cf BEIERWALTES 1989 25) Para Beierwaltes o rigoroso

conceito de unidade demandado por Platatildeo em reposta agrave univocidade do ser de Parmecircnides

resultou na possibilidade de inclusatildeo do ldquonatildeo-serrdquo relativo ao ldquoserrdquo para afirmar sua totalidade

Disto derivaria a altercaccedilatildeo originaacuteria entre identidade e diferenccedila e nisto consiste a

possibilidade de desvio do pensamento ontoloacutegico20 Sem embargo precisamente neste ponto

que acredito poder encontrar o que chamo aqui de caminho da negatividade ou a possibilidade

de inclusatildeo do oxiacutemoro no caminho de pensamento delineado pela ontologia considerando que

ele se desdobra na tradiccedilatildeo do chamado neoplatonismo e ainda na miacutestica medieval

20 Trata-se da definiccedilatildeo do natildeo-ser como alteridade apresentada no Sofista Apoacutes a discussatildeo acerca da comunidade

de gecircneros e a questatildeo do ldquomesmordquo e do ldquooutrordquo que configuram o problema da identidade e da diferenccedila Platatildeo

apresenta a hipoacutetese de compreender o ldquomovimentordquo como ldquooutrordquo do ldquoserrdquo questionando a tese parmeniacutedica a

respeito da ldquoestaticidade do serrdquo Assim Platatildeo coloca a questatildeo ldquoDevemos trabalhar nossa coragem agora para

dizer que aquilo que lsquonatildeo eacutersquo definitivamente eacute algo que possui natureza proacutepria Devemos dizer que assim como

o grande era grande o belo era belo o natildeo grande eacute natildeo grande e o natildeo belo eacute natildeo belo da mesma maneira pela

qual natildeo eacute tambeacutem foi e eacute natildeo-ser e eacute uma das formas dentre as quais satildeordquo (PLATO 1997 282 Sofista 258 c-d)

A sequecircncia do diaacutelogo questionaraacute a realidade deste natildeo-ser relativo culminando na identidade entre pensamento

e discurso abrindo a possibilidade para o discurso falso (o do sofista) e introduzindo a assunccedilatildeo do paradoxo no

seio do pensamento representando o chamado parriciacutedio aos eleatas

63

Ateacute onde eacute possiacutevel investigar o termo neoplatonismo teria sido cunhado pela primeira

vez pelo helenista e medievalista Thomas Gale nos idos de 1670 Gale foi responsaacutevel por uma

seacuterie de estudos sobre o neoplatonismo pagatildeo e cristatildeo escrevendo sobre Plotino Jacircmblico

Joatildeo Escoto Eriuacutegena Maacuteximo Confessor entre outros21 Definiccedilotildees agrave parte os primeiros

elementos responsaacuteveis por delinearem um ldquoneoplatonismo originaacuteriordquo apenas tardiamente

nomeado satildeo atribuiacutedos a Amocircnio Sacas Contudo como a figura histoacuterica de Amocircnio Sacas

eacute tatildeo envolta em controveacutersias e misteacuterios quanto a vida de Pitaacutegoras ou Soacutecrates atribui-se

diretamente a fundaccedilatildeo de uma ldquoescola neoplatocircnicardquo a Plotino disciacutepulo de Amocircnio

Muacuteltiplos debates mais ou menos coerentes envolvem os relatos sobre a relaccedilatildeo entre Plotino e

Amocircnio aleacutem de polecircmicas acerca do proacuteprio Amocircnio22 Destaca-se apenas a autoridade dos

relatos de Porfiacuterio (em sua Vida de Plotino) nos quais se considera que o meacutetodo de pesquisa

aplicado por Plotino estava profundamente ligado ao de seu mestre O conteuacutedo dos discursos

de Plotino tambeacutem teria uma iacutentima relaccedilatildeo com as tentativas de Amocircnio de unificar os diversos

planos do ser e estabelecer a derivaccedilatildeo de todas as coisas a partir do uno23 Sem embargo

Plotino teria absorvido e desenvolvido a doutrina de Amocircnio e necessariamente de Platatildeo em

suas Eneacuteadas em um movimento de exegese ao discurso platocircnico Exegese esta suscetiacutevel de

diversas interpretaccedilotildees dos caminhos por Plotino tomados e mesmo natildeo muito consensual entre

os estudiosos da obra24

21 Extraiacute estes dados de Aaron W Huges em um trabalho intitulado ldquoMedievalrdquo and the Politics of Nostalgia

Ideology Scholarship and the Creation of the Rational Jew (2012) Huges natildeo apenas investiga as origens das

designaccedilotildees do neoplatonismo mas ainda constata que a alcunha de ldquoneoplatocircnicosrdquo continuou sendo utilizada

por eruditos alematildees no seacuteculo dezenove como uma menccedilatildeo pejorativa aos ldquofalsificadoresrdquo das doutrinas de Platatildeo

e Aristoacuteteles (cf HUGES 2012) 22 Conforme Giovanni Reale em sua Storia della filosofia antica (1975-1980) Sobre este ponto especificamente

acerca das incertezas em torno agrave figura de Amocircnio confira REALE 2008 5-13 23 Esta consideraccedilatildeo eacute apresentada por Giovanni Reale com base nos relatos de Nemeacutesio em De natura hominis

(cf REALE 2008 11) Conforme Francisco B Harriet a questatildeo fundamental se encontraria na foacutermula ldquoestaacute mais

aleacutem do intelecto e da essecircnciardquo (ἐπέκεινα νοῦϛ καὶ οὐσίας) conforme a formulaccedilatildeo de Oriacutegenes de Alexandria

em Contra Celsum (fons ex quo initium totius intellectualis naturae uel mentir est) presente em Plotino (Eneacuteadas

V 1 8 e VI 8 16) e derivada do ciacuterculo de Amocircnio (cf HARRIET 2012 153) 24 Sobre a questatildeo da exegese Marcus Reis Pinheiro (em Plotino exegeta de Platatildeo e Parmecircnides 2007)

argumenta que natildeo se pode reduzir a exegeacutetica agrave mera interpretaccedilatildeo dos diaacutelogos de Platatildeo e outros escritos Trata-

se antes do desdobramento de um discurso muito antigo onde ldquo() fazer exegese () natildeo eacute interpretar

objetivamente os textos mas caminhar rumo aos niacuteveis superiores junto com os antigosrdquo (P INHEIRO 2007 80)

64

Neste fluxo talvez o mais cabiacutevel usual e conhecido de todos os estabelecimentos de

um ldquoponto de partidardquo seja o do claacutessico artigo Jean Trouillard Le Parmeacutenide de Platon et son

interpretation neacuteoplatonicienne (1973) onde o neoplatonismo eacute pensado desde a busca da

doutrina originaacuteria de Platatildeo principalmente a partir de uma releitura de seu diaacutelogo

Parmecircnides Todavia a maneira pela qual eacute possiacutevel explanar esta releitura levanta suspeitas

sendo necessaacuterio ponderar em quais formas a exegese plotiniana converge ou diverge das

tentativas de uma interpretaccedilatildeo das doutrinas originaacuterias de Platatildeo Mais ainda estaacute tambeacutem

em jogo a autoridade de apontar que existam de fato doutrinas originaacuterias havendo ainda

abertura para questionar a fiabilidade e o suposto peso das chamadas ldquodoutrinas natildeo-escritasrdquo25

Seja como for interessa sobretudo destacar como com as Eneacuteadas de Plotino o pensamento

filosoacutefico experimenta um movimento iacutempar em relaccedilatildeo agravequilo que vinha sendo apresentado

Para Ciacutecero Cunha Bezerra eacute possiacutevel elencar alguns pontos que evidenciam de maneira

clara a renovaccedilatildeo do neoplatonismo Destaca-se em primeiro lugar a junccedilatildeo entre os elementos

aristoteacutelicos e pitagoacutericos em siacutentese com uma perfeita sintonia entre o platonismo acadecircmico

e as ldquodoutrinas natildeo-escritasrdquo Ademais a ldquohierarquizaccedilatildeordquo do real a partir da qual todos os

graus satildeo derivados desde o uno permite uma sistematizaccedilatildeo do platonismo anterior Por este

motivo tende-se agrave leitura conforme a qual o neoplatonismo possuiria um sistema ldquomonopolarrdquo

frente a um suposto ldquobipolarismordquo platocircnico Por fim haacute ldquo() o fim uacuteltimo do processo de

conhecimento que para o neoplatocircnico eacute a uniatildeo plena com Deus (fugir soacute ao soacute) uma uniatildeo

que tem como marca a supressatildeo (aphaiacuteresis) de todo saber e dizerrdquo (BEZERRA 2006 57)

Dentre os pontos apresentados interessa-me particularmente o uacuteltimo (evidente consequecircncia

dos trecircs primeiros) no qual o neoplatonismo aparece como uma ldquosupressatildeo de todo saber e

dizerrdquo

25 Haacute uma interessante e profunda discussatildeo acerca do tema na tradiccedilatildeo de leitores e inteacuterpretes do platonismo e

do neoplatonismo a respeito deste toacutepico Ciacutecero Cunha Bezerra (em Compreender Plotino e Proclo 2006) aborda

o tema abrindo uma interlocuccedilatildeo com a obra Platone alla ricerca della spienza segreta de Giovanni Reale e ainda

com as investigaccedilotildees de W K C Guthrie e a chamada Escola de Tuumlbingen (cf BEZERRA 200617-24)

65

O senso comum ocidental regula a atividade filosoacutefica como um progresso ininterrupto

rumo ao acuacutemulo de conhecimento e dissoluccedilatildeo dos problemas Curioso agora eacute pensar a

maneira pela qual uma doutrina filosoacutefica pode suprimir o saber e o dizer ao inveacutes de

acrescentar Mas eacute apenas possiacutevel atingir a compreensatildeo necessaacuteria desta supressatildeo uma vez

esclarecido o que eacute propriamente o princiacutepio negativo do pensamento de Plotino Para isto natildeo

se pode perder de vista as duas questotildees que levariam agrave construccedilatildeo do pensamento de Plotino

quais sejam ldquo() o problema religioso (que corresponde agrave busca de compreensatildeo do destino

da alma assim como sua restauraccedilatildeo) e o problema filosoacutefico relativo agrave explicaccedilatildeo racional da

realidade ()rdquo (IDEM IBIDEM 66)26 ponderando ainda que em Plotino ambas estatildeo perfeitamente

inter-relacionadas Para atingir este entendimento todavia eacute necessaacuterio analisar as chamadas

trecircs hipoacutestases de Plotino presentes em suas Eneacuteadas

O conjunto de circunstacircncia que acompanham a formulaccedilatildeo do pensamento de Plotino

eacute todavia aquele anteriormente citado apresentado por Werner Beierwaltes que remete agrave

contenda entre Parmecircnides e Platatildeo Contextualizar a disputa Parmecircnides-Platatildeo da qual

derivam centralmente as hipoacutestases de Plotino natildeo eacute necessariamente complicado embora

interpretaacute-la e desde aiacute desdobrar um novo caminho reflexivo seja uma tarefa bastante

trabalhosa A demanda especulativa eacute altiacutessima e envolve uma bibliografia excessivamente

extensa e complexa Contudo como o interesse aqui eacute a apresentaccedilatildeo dos aspectos centrais do

pensamento de Plotino e como deles redunda uma nova postura e atitude filosoacuteficas o trabalho

fica menos penoso Portanto para colocar em relevo as hipoacutestases de Plotino eacute importante ao

menos demonstrar de forma simples os pontos originais dos quais elas derivam seja em

Parmecircnides seja em Platatildeo (e ateacute certo ponto tambeacutem no neopitagorismo e em Aristoacuteteles

embora esta tarefa exija um pouco mais e seja um pouco mais complicada de rastrear) Para

alcanccedilar este objetivo torna-se imperioso retornar brevemente a Parmecircnides

26 Esta hipoacutetese eacute destacada por Bezerra diretamente da obra de Eacutemile Breacutehier La Philosophie de Plotin (1928)

66

O segundo fragmento do poema Sobre a Natureza de Parmecircnides catalisa os principais

argumentos do conflito permitindo compreender quais satildeo os pontos mais problemaacuteticos do

estabelecimento de sua doutrina na tradiccedilatildeo Aleacutem da Fiacutesica de Simpliacutecio as fontes pelas quais

se estruturou esse fragmento adveacutem dos Comentaacuterios ao Timeu e Comentaacuterios ao Parmecircnides

de Proclo Os oito versos contidos no fragmento centralizam a doutrina de Parmecircnides como

foi herdada pela tradiccedilatildeo a partir da manifestaccedilatildeo das duas uacutenicas vias possiacuteveis para o

pensamento quais sejam a via da verdade e a via da aparecircncia O fragmento diz

εἰ δ᾽ ἄγ᾽ ἐρὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας

αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι

ἡ μέν ὄπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι

πειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ)

ἡ δ᾽ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι

τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν

οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐόν (οὐ γὰρ ἀνυστόν)

οὔτε φράσαις

(KIRK E RAVEN 1957 269)

Pois bem agora vou eu falar e tu presta atenccedilatildeo ouvindo a palavra

acerca das uacutenicas vias de questionamento que satildeo a pensar

uma para o que eacute e como tal natildeo eacute para natildeo ser

eacute o caminho de persuasatildeo ndash pois Verdade o segue ndash

outra para o que natildeo eacute e como tal eacute preciso natildeo ser

esta via indico-te que eacute uma trilha inteiramente inviaacutevel

pois nem ao menos se reconheceria o natildeo ente pois natildeo eacute realizaacutevel

nem tampouco se mostraria

(Traduccedilatildeo de Fernando Santoro cf PARMEcircNIDES 200612)

67

O caminho da verdade que eacute e natildeo eacute para natildeo ser (ἡ μέν ὄπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ

εἶναι) e o caminho da aparecircncia que natildeo eacute e natildeo pode ser (ἡ δ᾽ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών

ἐστι μὴ εἶναι) satildeo via de regra estabelecidos como a manifestaccedilatildeo maacutexima da loacutegica ocidental

e berccedilo dos princiacutepios de identidade e natildeo-contradiccedilatildeo A partir deles eacute possiacutevel natildeo soacute

estabelecer uma identidade (o ser eacute representada pela claacutessica foacutermula A=A) como ainda

verificar a veracidade dessa mesma identidade ndash natildeo eacute possiacutevel que o ser sendo natildeo seja

ilustrado pela foacutermula not (A ˄ notA) um tanto esdruacutexula sem duacutevidas27

O legado de Parmecircnides eacute marcado em sua difusatildeo pelos chamados ldquofiloacutesofos eleatasrdquo

sobretudo por Zenatildeo de Eleacuteia Seus argumentos contra a pluralidade (cf KIRK E RAVEN OP CIT

288-291) e contra o movimento (cf IDEM IBIDEM 291-297) se tornaram assaz populares

sobretudo no que concerne aos paradoxos da flecha no estaacutedio e de Aquiles e a tartaruga Aleacutem

da constataccedilatildeo da univocidade do ser presente em toda linha de pensamento parmeniacutedica28 O

resultado imediato dos exerciacutecios de raciociacutenio de Zenatildeo demonstraram a formataccedilatildeo de uma

estaticidade do ser e da realidade em torno alertando para a ilusatildeo do movimento e alteraccedilotildees

na substacircncia do real O momento no qual Platatildeo compotildee seu diaacutelogo Parmecircnides retrata

justamente o evento no qual tanto Parmecircnides quanto Zenatildeo estatildeo no aacutepice da divulgaccedilatildeo de

sua doutrina dialogando com um ainda jovem Soacutecrates Trata-se de um dos momentos mais

emblemaacuteticos da histoacuteria da filosofia ocidental

27 Haacute uma discussatildeo em torno a uma suposta terceira via aquela na qual o que ldquoeacuterdquo eacute e natildeo eacute ao mesmo tempo

baseada no sexto fragmento onde se lecirc ldquoοἶς τὸ πέλειν τε καὶ οὐκ ταῦτὸν νενόμισταιrdquo (KIRK E RAVEN OP CIT 271)

Embora ainda em um sentido pejorativo de uma via do engano emerge a possibilidade de que algo seja e natildeo seja

Mesmo que natildeo seja profiacutecuo para o andamento da tese se fixar na discussatildeo vale ao menos citaacute-la sobretudo

ponderando os apontamentos feitos por Jean Beaufret acerca da interpretaccedilatildeo de Martin Heidegger da terceira via

como a via dos entes Ao que cabe no propoacutesito do trabalho basta apenas atentar para como a tensatildeo entre as duas

primeiras vias jaacute foram suficientes para levantar controveacutersias Eacute possiacutevel especular ainda que jaacute na primeira via

aparece tambeacutem uma possibilidade de que o ser seja e natildeo seja quando se afirma que ele ldquoeacute e natildeo eacute para natildeo serrdquo

Seria possiacutevel conectar o ldquonatildeo eacuterdquo da sentenccedila como o natildeo-ser relativo necessaacuterio agrave constituiccedilatildeo da inteireza do

ser como argumentado no Sofista de Platatildeo 28 O que significa afirmar que natildeo existem ldquograusrdquo do ser uma coisa ou eacute real (ser) ou irreal (nada) (cf BEZERRA

2003 47)

68

As chamadas ldquotrecircs hipoacutetesesrdquo do Parmecircnides de Platatildeo satildeo apresentadas

respectivamente nas passagens 137c-142a 142b-157a e 157b-159a Elas constituem a mateacuteria

bruta para a elaboraccedilatildeo das trecircs hipoacutestases de Plotino Todas as trecircs hipoacuteteses de Platatildeo satildeo

apresentadas pela personagem do entatildeo velho Parmecircnides arguindo Soacutecrates a respeito da

viabilidade de cada argumento Elas se apresentam ainda a partir do problema constituiacutedo pela

questatildeo da unidade e da multiplicidade A pulsatildeo do jovem Soacutecrates ao inquirir Parmecircnides a

respeito de sua teoria fazendo-o apresentar as trecircs hipoacuteteses parte da colocaccedilatildeo de Parmecircnides

a respeito da assunccedilatildeo da multiplicidade por um lado e da impossibilidade do muacuteltiplo por

outro Parmecircnides eacute levado pelo jovem Soacutecrates a confirmar natildeo apenas sua teoria mas sua

metodologia e plano doutrinaacuterio

Para confrontar a teoria parmeniacutedica Platatildeo desenvolve a primeira hipoacutetese Ela

consiste basicamente na afirmaccedilatildeo de o que o ldquouno eacute unordquo ou seja se haacute uno natildeo eacute possiacutevel

que o uno seja muacuteltiplo Por este motivo ele natildeo pode conter partes nem tampouco ser um

inteiro (composto por partes) Tambeacutem natildeo pode ter um comeccedilo nem um meio nem um fim

natildeo possuindo nada que o limite ou delimite Tampouco pode possuir um formato nem se

encontrar em lugar algum nem estar se movimentando de um lugar para outro (porque entatildeo

assumir-se-ia algo outro que natildeo o uno pelo qual ele se movimenta) e nem em si mesmo

(porque com isto se movimentaria entre suas partes que por definiccedilatildeo natildeo pode conter) Natildeo

pode ainda ser diferente de si mesmo nem o mesmo que si mesmo porque assumindo sua

diferenccedila se assumiria algo outro que natildeo o uno ndash e assumindo sua identidade se assumiria que

haacute algo a saber a proacutepria identidade predicada do uno e que natildeo eacute o uno Natildeo pode tambeacutem

estar no tempo nem ter surgido em momento algum Por fim o uno natildeo pode possuir um nome

ou seja eacute inominaacutevel natildeo podendo ser objeto de opiniatildeo nem conhecimento nem percepccedilatildeo

caso contraacuterio assumir-se-ia um ser ou essecircncia distintos do uno pelo qual se alcanccedila seu

entendimento

69

Necessariamente a primeira hipoacutetese leva a uma outra questatildeo ou ao levantamento de

uma segunda hipoacutetese qual seja o uno eacute e quais satildeo as consequecircncias disto para ele mesmo

Essa hipoacutetese eacute consideravelmente mais complicada e envolve algumas nuances bastante

delicadas O argumento geral se concentra na ideia de que a proposiccedilatildeo uno eacute envolve

necessariamente a ideia de essecircncia do uno O grande problema em afirmar que o uno participa

da essecircncia de uno eacute justamente estabelecer a diferenccedila entre uma coisa e outra ou seja torna-

se inevitaacutevel afirmar que existem duas coisas a saber o uno e a essecircncia do uno O embargo

consiste na simples afirmaccedilatildeo uno eacute em contraposiccedilatildeo agrave afirmaccedilatildeo uno uno Logo desdobram-

se dois unos um uno que eacute e um uno e o ser O primeiro como afirmaccedilatildeo do proacuteprio uno o

segundo como assunccedilatildeo da participaccedilatildeo dele mesmo em sua essecircncia A reaccedilatildeo imediata agrave

afirmaccedilatildeo de que o uno eacute caminha em sentido contraacuterio das negaccedilotildees da primeira hipoacutetese

Sem embargo jaacute neste momento mesmo antes da apresentaccedilatildeo da terceira hipoacutetese

torna-se possiacutevel fazer algumas consideraccedilotildees Em primeiro lugar a hipoacutetese de que o ldquouno eacute

unordquo a despeito da aplicaccedilatildeo da categoria do ser para a predicaccedilatildeo da sentenccedila direciona o

pensamento para um caminho no qual natildeo haacute outra possibilidade senatildeo a completa negaccedilatildeo de

tudo que possivelmente competiria ao uno levando mesmo agrave dissoluccedilatildeo do eacute presente na frase

Em segundo lugar a hipoacutetese de que o ldquouno eacuterdquo desta vez com ecircnfase no eacute gera o movimento

oposto de afirmaccedilatildeo de tudo o que porventura poderia ser predicado de qualquer elemento

Estas duas hipoacuteteses (como se veraacute na apresentaccedilatildeo das hipoacutestases de Plotino)

discriminam perfeitamente as duas vias aqui cogitadas quais sejam uma via afirmativa da

ontologia claacutessica na afirmaccedilatildeo das coisas por meio da qual percebe-se compreende-se e se

faz ciecircncia e uma via negativa do que seraacute ulteriormente nomeada henologia na qual a maacutexima

especulaccedilatildeo acerca da natureza do uno natildeo leva senatildeo agrave negaccedilatildeo absoluta ndash as caracteriacutesticas

desta negaccedilatildeo ou negatividade ver-se-aacute mais claramente nas Eneacuteadas

70

A terceira hipoacutetese do Parmecircnides de Platatildeo eacute apresentada no diaacutelogo muito brevemente

Ela abarca ambos os aspectos centrais das duas primeiras hipoacuteteses sugerindo que o uno eacute e

natildeo eacute imputando a categoria de mudanccedila em sua natureza Trata-se de diagnosticar o fato de

que sendo o uno uno por um lado e muacuteltiplo por outro participa e natildeo participa de sua

essecircncia vem a ser e deixa de ser ponderando ainda que esta mudanccedila se daacute no instante Sendo

assim tanto o movimento de retorno ao uno quanto o movimento de procedecircncia a partir do

uno daacute-se ao mesmo tempo em uma reciprocidade na qual tanto a geraccedilatildeo da multiplicidade

configura o uno nem como uno nem como muacuteltiplo quanto a reuniatildeo da multiplicidade ao

uno tampouco configura o uno nem como uno nem como muacuteltiplo ndash como se a proacutepria ideia

de uno flutuasse em um ldquoinstante incapturaacutevelrdquo

Natildeo haacute duacutevida que o raciociacutenio apresentado por Platatildeo constitui um dos maiores

desafios especulativos da histoacuteria do pensamento ocidental seja nos esforccedilos empreendidos

pela loacutegica de compreensatildeo seja pelo desafio meditativo aflorado da temaacutetica proposta Neste

contexto Marcus Reis Pinheiro indica a interpretaccedilatildeo de Jean-Luc Brisson (Annexe I Les

interpretation du Parmeacutenide dans lrsquoAntiquiteacute presente na ediccedilatildeo Parmenide Paris Flamarion

1999) conforme a qual ldquo() Plotino estaacute no grupo dos inteacuterpretes do diaacutelogo que natildeo o vecirc

apenas como um exerciacutecio loacutegico mas que procura determinar a que tipo de objeto se refere o

diaacutelogordquo (PINHEIRO 2006 3) Seguindo esta linha de raciociacutenio o importante seria portanto

compreender como Plotino absorve a temaacutetica Considerar uma interpretaccedilatildeo para aleacutem da mera

concatenaccedilatildeo loacutegica de conceitos eacute basicamente absorver o sentido de cada termo Isto significa

natildeo apenas expor as formataccedilotildees daquilo que foi introduzido no discurso como ldquounordquo mas

ainda entender de que forma a simples possibilidade de concebecirc-lo no raciociacutenio implica em

uma reduccedilatildeo draacutestica das estruturas hieraacuterquicas do real ou seja constitui uma compreensatildeo

da realidade que possui como primeiro princiacutepio algo que coloca o pensamento em um niacutevel de

paradoxo que necessariamente denota a assunccedilatildeo de uma impossibilidade loacutegica

71

As trecircs hipoacutestases de Plotino seratildeo teoricamente encadeadas de maneira semelhante agraves

hipoacuteteses de Platatildeo embora natildeo sequencialmente Contudo a primeira (e talvez a mais

complexa) jaacute iniciaraacute o movimento de negatividade em direccedilatildeo agraves seguintes estabelecendo os

conflitos presentes na ideia de uno (τὸ ἑν) Plotino considera que ldquoO Uno eacute todas as coisas e

nenhuma delas a fonte para todas as coisas eacute nenhuma das coisas e ainda eacute todas as coisas em

um sentido transcendental ndash todas as coisas para assim dizer tendo seu retorno agrave isto ()rdquo

(PLOTINUS 1969 380 Eneacuteadas V 2 1) Ele ainda assevera a inefabilidade inerente ao uno

conforme a qual todo discurso eacute jaacute sempre indireto e impreciso Apenas mediante referecircncias

como ldquotodas as coisas e nenhuma delasrdquo torna-se possiacutevel acenar para o uno ndash e apenas isto

acenar Entretanto esta eacute para Plotino a uacutenica maneira de compreender a estrutura da realidade

como tal pelo simples motivo de que ldquoEacute precisamente porque haacute nada no Uno que todas as

coisas derivam dele para que o Ser possa ser trazido a fonte natildeo pode ser o Ser mesmo mas o

gerador do Ser ()rdquo (IDEM IBIDEM) que natildeo pode possuir a natureza do ser mas deve se constituir

como outro dele qual seja natildeo-ser ou mesmo nada Plotino prossegue ainda dizendo

ldquoBuscando nada possuindo nada faltando nada o Uno eacute perfeito e em nossa metaacutefora

transborda e sua exuberacircncia produz o novo este produto torna-se novamente seu progenitor

e eacute preenchido e se torna seu contemplador e Princiacutepio-Intelectualrdquo (ID IBID) A passagem

altamente especulativa denota que tudo eacute contemplaccedilatildeo dotada de uma atividade suprema que

comeccedila pelo uno e retorna a ele no simples olhar que natildeo implica nem em complexidade nem

em necessidade29 Mediante uma reflexatildeo propriamente loacutegica a contemplaccedilatildeo por meio da

qual o uno se desdobra e gera todas as coisas se daacute devido a sua proacutepria perfeiccedilatildeo ou seja o

uno natildeo eacute coisa nenhuma e necessariamente engendra todas as coisas porque eacute completo

porque eacute a totalidade de tudo e para isto eacute necessaacuterio que seja ele mesmo e ainda outro de si

29 Estes apontamentos satildeo de John Bussanich que ainda explica que ldquo() a doutrina plotiniana da derivaccedilatildeo do

Uno eacute lsquoprocessatildeorsquo o adjetivo que melhor qualifica isto eacute lsquocontemplativorsquo o movimento no qual a hipoacutestase eacute

gerada coincide com a contemplaccedilatildeo De fato o ponto cardial a chave para a estrutura da processatildeo da metafiacutesica

plotiniana era contemplaccedilatildeo ou theocircriardquo (BUSSANICH 1999 32)

72

Ciacutecero Cunha Bezerra apresenta a organizaccedilatildeo feita por Pierre Aubenque30 conforme a

qual haveriam trecircs esferas argumentativas no desenvolvimento da primeira hipoacutestase uma

loacutegica outra epistemoloacutegica e uma metafiacutesica Bezerra cita uma das passagens mais conhecidas

de Plotino que diz ldquoPrivado de unidade uma coisa cessa de ser aquilo pelo qual eacute chamada

um exeacutercito natildeo eacute um exeacutercito se natildeo eacute uno um coro um rebanho devem ser uma coisa soacuterdquo

(ID IBID 612 VI 9 1) sobretudo para enfatizar o aspecto loacutegico pelo qual Plotino ldquosubverterdquo

a resposta aristoteacutelica da entidade da coisa pela definiccedilatildeo substancial Bezerra argumenta

dizendo que ldquo() Plotino por uma exigecircncia loacutegica jaacute que o princiacutepio originaacuterio natildeo pode

possuir qualquer caraacuteter dos seres relativiza a ontologia e estabelece a henologia como

fundamento de todo serrdquo (BEZERRA OP CIT 67) O problema epistemoloacutegico sobressalta a

ultrapassagem necessaacuteria de todo conhecimento para alcanccedilar tal niacutevel de especulaccedilatildeo ao passo

que a questatildeo metafiacutesica retorna aos trechos anteriormente citados no qual a geraccedilatildeo de todas

as coisas soacute pode derivar de coisa nenhuma

O emprego do termo henologia define aqui o primeiro passo para o caminho da

negatividade Institui-se como negativo o princiacutepio que jaacute natildeo mais decorre de um rendimento

ldquopositivordquo por meio do qual se pode construir um conhecimento soacutelido e confiaacutevel mas uma

base que possui caracteriacutesticas muito diversas e que desafiam a capacidade loacutegica Por este

motivo a primeira demanda eacute jaacute a superaccedilatildeo intelectual (ἐπέκεινα νοῦϛ καὶ οὐσίας) que deve

assumir que o comeccedilo de todas as coisas eacute incoacutegnito O discurso eacute indireto e metafoacuterico porque

somente assim eacute possiacutevel indicar sua possibilidade de ser pensado ndash entendendo principalmente

que o ldquoser pensadordquo natildeo indica nem conota existecircncia porque o ser e a existecircncia mesmo satildeo

ainda posteriores agrave ideia de uno As segunda e terceira hipoacutestases portanto natildeo podem ser

concebidas se de antematildeo natildeo for assumida a negatividade do primeiro princiacutepio

30 Pierre Aubenque ldquoPlotin et le deacutepassement de lrsquoontologie grecque classiquerdquo Colloque des Royaumont Le

Neacuteoplatonisme Paris Centre National de Recherche Scientifique 1971 101-110

73

Somente por meio da completude da pensamento henoloacutegico de Plotino fica possiacutevel

deixar claro os termos pelos quais se destaca a negatividade como ldquosupressatildeo de todo saber e

dizerrdquo Os motivos contudo jaacute satildeo bastante evidentes se levado em consideraccedilatildeo que a

inefabilidade do uno indica que sobre ele natildeo se pode falar e ele natildeo se pode conhecer Portanto

o neoplatonismo necessariamente parte do pressuposto de que o ponto de partida e o ponto de

chegada do pensamento satildeo ambos uma caminhada rumo agrave supressatildeo Ao explicar a processatildeo

por meio da qual o uno engendra todas as coisas destaca-se uma consideraccedilatildeo importante se

os seres engendram o eternamente perfeito engendra eternamente algo inferior a si mesmo por

isto mesmo ldquoEacute preciso observar que a processatildeo plotiniana implica necessariamente uma

negaccedilatildeo A negaccedilatildeo eacute uma condiccedilatildeo a priori no sentido de que o engendrado deve assimilar-se

ao seu gerador mas mantendo uma resistecircncia que diferencia um do outrordquo (IDEM IBIDEM 74)

Em outras palavras a geraccedilatildeo do uno e a abertura da segunda hipoacutestase soacute eacute possiacutevel por meio

da introduccedilatildeo da diferenccedila A diferenccedila eacute o que aqui constitui o passo fundamental da sequecircncia

do pensamento neoplatocircnico O ser eacute na medida em que eacute diferente do uno e por ele eacute

engendrado justamente porque apenas a diferenccedila pode advir do eternamente perfeito

Assim sendo resta saber como o uno engendra e o quecirc ele engendra O que significa

ainda resgatar a pergunta anteriormente colocada por Parmecircnides e Platatildeo como do uno

provem o muacuteltiplo Esta questatildeo eacute sem sombra de duacutevidas uma das mais complexas do sistema

neoplatocircnico em geral A ideia de processatildeo (πρόοδος) pressupotildee uma emanaccedilatildeo a partir do

uno na qual todas as outras coisas satildeo engendradas o que significa dizer que se trata de um

movimento que abarca a realidade em toda sua estrutura na qual ldquo() difere completamente de

um mecanicismo dado que estaacute mais aleacutem de toda contingecircncia e necessidade Nesse sentido

natildeo se pode dizer que se trata de algo que implique um livre-arbiacutetrio ou uma produccedilatildeo artesanalrdquo

(ID IBID 76) Ou seja o uno natildeo necessita de nada e por isto mesmo daacute origem a tudo A

espontaneidade (se eacute que se pode utilizar tal termo) eacute natural e natildeo possui um motor

74

Ao mesmo tempo tudo aquilo que eacute gerado pelo uno possui um poder de conversatildeo

(επιστροφή) um voltar-se sobre si mesmo e voltar-se em direccedilatildeo ao uno (cf ID IBID 76)

movimentada pelo autoconhecimento daquilo que eacute Este autoconhecimento soacute eacute possiacutevel

todavia pelo proacuteprio movimento de emanaccedilatildeo conforme o qual se identifica ldquoserrdquo e

ldquopensamentordquo como havia postulado Parmecircnides e eacute justamente este o momento no qual

emerge a segunda hipoacutestase qual seja a inteligecircncia (νοῦϛ)

As caracteriacutesticas pelas quais a inteligecircncia se mostra desde a compreensatildeo da processatildeo

satildeo a chave para o sentido da filosofia de Plotino Sobre isto Thomas Alexander Szlezaacutek

escreve ldquoNatildeo persegue o Uno com esforccedilo deliberado mas espera tranquilamente ateacute que ele

apreccedila Assim a alma soacute recebe unicamente o Uno eacute uma volta do lsquosolitaacuterio para o solitaacuteriorsquordquo

(SZLEZAacuteK 2010 11) acrescentando ainda que ldquoO caminho que conduz ao Uno natildeo passa poreacutem

pela praacutetica asceacutetica de um anacoreta mas pela apropriaccedilatildeo conceitual do mundo inteligiacutevel

()rdquo (IDEM IBIDEM) Os termos inteligecircncia e inteligiacutevel referem-se aqui a uma definiccedilatildeo

particular que compreende o nuacutecleo da segunda hipoacutestase Bezerra escreve acerca deste ponto

ldquoPlotino no tratado oitavo da terceira Eneacuteada define a Inteligecircncia natildeo como uma coisa

particular mas como algo universal e muacuteltiplordquo (BEZERRA OP CIT 78) explicando que eacute

ldquoUniversal porque abarca todos os seres e muacuteltiplo porque coexistem em sua natureza

simultaneamente o inteligente (Inteligecircncia) e o inteligiacutevel (ser) ()rdquo (IDEM IBIDEM) Plotino

encadeia seu raciociacutenio elucidando como o Princiacutepio-Intelectual eacute universal e iniacutecio de todas as

coisas de maneira que ldquo() assim todas as coisas e o Princiacutepio de tudo deve ser tal que cada

parte dele seja universal eacute todas coisas do contraacuterio conteria partes que natildeo satildeo o Princiacutepio-

Intelectualrdquo (PLOTINUS OP CIT 246 Eneadas III 8 8) Conclui a partir de entatildeo que ldquo() este

Ser eacute ilimitado e que em tudo que flui dele natildeo haacute reduccedilatildeo nem em sua emanaccedilatildeo desde que eacute

o universo inteiro nem em si mesmo o ponto de partida desde que natildeo haacute reuniatildeo de partes

()rdquo (IDEM IBIDEM 246-247) Fica claro o caraacuteter ascendente e natildeo descendente da processatildeo

75

Plotino explica que ldquo() um ser desta natureza natildeo eacute existecircncia primaacuteria deve existir a

partir daquilo do qual transcende o Ser (o Absoluto) ()rdquo (ID IBID 247) e prossegue dizendo

que ldquo() Pluralidade eacute mais tardia que Unidade O Princiacutepio-Intelectual eacute um nuacutemero (=a

expressatildeo de uma pluralidade) e o nuacutemero deriva da unidade a fonte de um nuacutemero como este

deve ser o autecircntico Unordquo (ID IBID) A transcendecircncia que evidencia o caraacuteter progressivo

pode ainda ser entendida desde a ideia de que ldquo() ao contemplar-se a si mesmo a Inteligecircncia

se une ao objeto contemplando uma unidade entre o eu e o ser universal que supera toda

alteridade ()rdquo (BEZERRA OP CIT 79) Com isto eacute possiacutevel resgatar ainda o sentido pelo qual

Beierwaltes destaca a diferenccedila como princiacutepio pelo qual haacute um desvio de Plotino em relaccedilatildeo

agrave ontologia claacutessica (cf BEIERWALTES OP CIT 58) Contudo como se compreende esta

contemplaccedilatildeo eacute o que levaraacute agrave terceira hipoacutestase a alma (ψυχή) Bezerra explica recapitulando

os passos anteriores ldquoVimos anteriormente que o Uno e o Muacuteltiplo apresentam-se sob duas

maneiras distintas a) Uno e natildeo muacuteltiplo (I hipoacutetese) b) Uno-Muacuteltiplo (II hipoacutetese) A alma eacute

portanto ao mesmo tempo uno e muacuteltiplordquo (BEZERRA OP CIT 82) o que significa evidenciar

que ela representa uma distinccedilatildeo radical e afastamento do primeiro princiacutepio o uno

Ainda no oitavo tratado da terceira Eneacuteada Plotino aborda a natureza enquanto ato

criador compreendendo o fenocircmeno a partir de uma tensatildeo entre um Princiacutepio-Racional inerte

e um Princiacutepio-Natural em movimento (cf PLOTINUS OP CIT 239-240 Eneadas III 8 2) que

responderia ainda ao conflito entre unidade e multiplicidade e ainda agrave questatildeo entre tempo e

eternidade Plotino indaga como a natureza responderia ao questionamento colocando

literalmente o argumento na fala da natureza que diria que ldquoOs matemaacuteticos desde suas visotildees

desenham suas figuras mas eu desenho nada eu contemplo as figuras do material do mundo

tomando os seres como eu os sinto desde minha contemplaccedilatildeordquo (IDEM IBDEM 241) chegando a

conclusatildeo de que ldquo() o que noacutes conhecemos por Natureza eacute uma Alma cria de uma Alma

ainda anterior () uma visatildeo interna de si mesmardquo (ID IBID)

76

A visatildeo interna de si mesma mencionada por Plotino prove o entendimento de que ldquoA

alma portanto autodetermina-se e ao mesmo tempo autofragmenta-se pois ao separar-se do

todo volta-se maravilhada para o particularrdquo (BEZERRA OP CIT 84) Disto adveacutem a geraccedilatildeo do

tempo como desordem introduzida no equiliacutebrio primordial e ao mesmo tempo a introduccedilatildeo

de uma ordenaccedilatildeo mediada pela conversatildeo (επιστροφή) ndash pelo retorno maravilhado ao uno ou

uniatildeo ao fundamento por meio da contemplaccedilatildeo

Agora bem toda esta inevitaacutevel breve introduccedilatildeo ao pensamento de Plotino deve

direcionar para uma postura distinta daquela antes observada com a ontologia claacutessica e o

pensamento metafiacutesico Que postura eacute esta Ou melhor qual o caminho que se abre a partir das

trecircs hipoacutestases plotinianas Este eacute o momento no qual o caminho da negatividade comeccedila a se

encorpar e mostrar seu caraacuteter decisivo na constituiccedilatildeo do desvio intelectual do neoplatonismo

Gostaria de fazer um recorte especiacutefico do nono tratado da sexta Eneacuteada para alcanccedilar este

esclarecimento

Plotino reconstitui seu caminho a partir da afirmaccedilatildeo ldquoEacute em virtude da unidade que os

seres satildeo seresrdquo (PLOTINUS OP CIT 614 Eneadas VI 9 1) O que significa afirmar que sem a

unidade natildeo se pode considera que algo seja o que seja Em termos mais simples se nomeio

braccedilo pernas cabeccedila razatildeo sensibilidade entre outras muacuteltiplas singularidades presentes em

um ser humano mas natildeo as congrego em uma unidade pela qual afirmo ldquoser humanordquo que

compreende todas as particulares em questatildeo inexoravelmente perco de vista seu sentido Por

isto ldquoQualquer coisa que possa ser descrita como uma unidade o eacute no preciso grau pelo qual

sustenta um ser caracteriacutestico quanto menor ou maior o niacutevel do ser menor ou maior seraacute a

unidaderdquo (IDEM IBIDEM) Portanto alma seria (em razatildeo de sua distinccedilatildeo da unidade mesma)

uma grande unidade em proporccedilatildeo e na autenticidade do ser e assim ldquoUnidade absoluta natildeo eacute

eacute a alma e a primeira alma a unidade em algum sentido concomitante ()rdquo (ID IBID) deixando

ver como a unidade natildeo eacute e eacute

77

Desta forma pode-se compreender que o uno natildeo pode ser a totalidade dos seres que

anularia sua unidade nem tampouco o ldquoPrinciacutepio-Intelectualrdquo pelo qual as coisas satildeo nem o

ldquoser mesmordquo no sentido da totalidade das coisas Plotino prossegue dizendo ldquoA alma ou mente

movimentando-se rumo ao que eacute sem forma encontra-se em estado de incompetecircncia para

apreender ali onde nada se limita ou onde a se impinge a realidade difusardquo (ID IBID 615 VI

9 3) Assim ldquo(hellip) ante o puro pavor de se sustentar no nada esvai-se O estado eacute doloroso

geralmente busca aliacutevio ao se retratar de sua vagueza na regiatildeo do sentido para ali repousar em

um fundamento soacutelido bem como a visatildeo aflige-se com o minuto no qual repousa na escuridatildeordquo

(ID IBID) Mas para onde olhar frente ao desconforto de natildeo se ter onde repousar Quando se

percebe o quatildeo vago eacute todo e qualquer presumido fundamento ou sentido quando a escuridatildeo

natildeo reflete senatildeo a angustia de uma contemplaccedilatildeo exausta pelo esvair de todo sustento o que

resta para aleacutem discoacuterdia que atinge o intelecto Plotino sintetiza a afliccedilatildeo

A alma deve ver em sua proacutepria maneira isto se daacute por coalescecircncia a unificaccedilatildeo

mas buscando assim conhecer a unidade eacute impedida por esta mesma unificaccedilatildeo de

reconhecer o que foi encontrado natildeo se pode distinguir a si mesmo do objeto de sua

intuiccedilatildeo No entanto este eacute nosso uacutenico recurso caso nossa filosofia busque o

conhecimento da Unidade (ID IBID)

O uacutenico caminho rumo ao conhecimento da unidade eacute um caminho impossiacutevel em si mesmo

uma via cerrada pela proacutepria natureza do questionamento proposto Intuir as trecircs hipoacutestases ou

encadeaacute-las conforme uma loacutegica sistemaacutetica portanto elucida o caminho mas natildeo

necessariamente introspecta e absorve a pureza da experiecircncia Para isto eacute necessaacuterio mais ou

melhor menos ndash muito menos O uacutenico ponto de apoio aqui seraacute a identificaccedilatildeo entre o uno e

bem ou a compreensatildeo da primeira hipoacutestase como uno-bem (τὸ ἑν καὶ αγαθον) cujo sentido

eacute por um lado extrema e pura simplicidade e por outro inefabilidade total devido agrave perfeiccedilatildeo

78

Reivindicar este caminho soacute pode portanto levar a uma supressatildeo absoluta onde

ldquoAinda esta abstenccedilatildeo de autoconhecimento natildeo comporta ignoracircncia ignoracircncia eacute algo de fora

ndash um conhecedor ignorante de um cognosciacutevel ndash mas no solitaacuterio natildeo haacute nem conhecimento

nem nada desconhecidordquo (ID IBID 620 VI 9 6) Plotino entatildeo apresenta uma formulaccedilatildeo

nada usual conforme a qual certo direcionamento de suas intenccedilotildees pode ser entendido em

uma passagem tatildeo emblemaacutetica quanto enigmaacutetica ele escreve

Neste coro a alma olha para a nascente da Vida tambeacutem nascente do Intelecto iniacutecio

do Ser fonte do Bem raiz da Alma Natildeo que eles tenham sido despejados do Supremo

menosprezando-os como se fosse uma massa Nisto aquilo que emana seria pereciacutevel

mas eles satildeo eternos eles nasce de um princiacutepio eterno que produz deles sua

fragmentaccedilatildeo mas em virtude de sua identidade inata portanto eles se manteacutem muito

firmes conto o sol brilhe contanto haveraacute luz

()

Aqueles para os quais toda esta experiecircncia eacute estranha podem entende-la como nossos

anseios terrenos e a alegria que temos ao ganhar o que mais desejamos ndash lembrando

sempre que aqui o que noacutes amamos eacute pereciacutevel doloroso que nosso amor eacute mimeacutetico

e se afasta porque foi tudo um engano nosso bem natildeo estava laacute isto natildeo era o que

procuraacutevamos Haacute apenas o verdadeiro amor onde haacute uniatildeo natildeo segurando isto com

algum tipo de abraccedilo carnal mas possuindo na totalidade sua veracidade Todos

aqueles que viram sabem o que tenho em mente a alma toma outra vida quando se

aproxima de Deus assim restaurada sente que o distribuidor da verdadeira vida estaacute

laacute para ver que agora natildeo temos nada para procurar senatildeo aquilo que precisamos

deixar de lado e deixar assim sozinho assim vindouro assim soacute tudo o que o ambiente

terreno aniquilou na pressa de ser livre impaciente em relaccedilatildeo a qualquer laccedilo que

nos sustenta na base para que com todo nosso ser possamos agarrar-nos sobre isto

quando natildeo sobra nada em noacutes senatildeo aquilo pelo qual tocamos em Deus (ID IBID

623 VI 9 9)

79

As palavras de Plotino ressoam como uma conduta que eacute antes como postura que doutrina O

uso termo ldquoamorrdquo denota claramente uma experiecircncia irregulaacutevel uma tensatildeo entre ausecircncia e

presenccedila preenchimento e falta ndash sem embargo um misteacuterio

O misteacuterio que indicado por Plotino se configura como o guia para a visatildeo que permite

descortinar o sentido pensamento filosoacutefico Um misteacuterio que segue a mesma regra de Platatildeo e

do platonismo onde ldquoNada eacute divulgado para os natildeo-iniciadosrdquo (ID IBID 624 VI 9 11) e do

qual natildeo se pode simplesmente exibir uma estoacuteria ordinaacuteria ldquoCoisas aqui satildeo sinaisrdquo (ID IBID)

adverte Plotino Sinais para aqueles que entram em solo sagrado e tornam real a visatildeo do

inacessiacutevel Ele esclarece ainda ldquoQuando a alma comeccedila novamente a se colocar natildeo se torna

outra mas si mesma assim desprendida natildeo eacute nada senatildeo si mesma auto-reunida natildeo eacute mais

da ordem do ser estaacute no Supremordquo (ID IBID) O desprendimento e a supressatildeo a visatildeo do uno

e o movimento de uniatildeo encaminham para o ldquotodo-transcendenterdquo que jaacute natildeo mais estaacute no niacutevel

daquilo que eacute do ente mesmo do ser mas em uma esfera para aleacutem de todas as coisas que satildeo

e que natildeo satildeo A culminaccedilatildeo do pensamento henoloacutegico de Plotino como uma ldquomiacutestica da

unidaderdquo eacute o berccedilo do neoplatonismo e necessariamente o iniacutecio de sua radicalizaccedilatildeo

Neste fluxo considera-se que existam dois momentos fundamentais do desdobramento

do neoplatonismo a partir da henologia plotiniana quais sejam a teologizaccedilatildeo da henologia

desenvolvida por Proclo e a teologia negativa do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita Em ambos eacute

possiacutevel observar como o caminho da negatividade se configura partir de uma profunda

introspecccedilatildeo de temas que tendem agrave dissoluccedilatildeo do conhecimento ateacute entatildeo concebido

estruturado e instaurado ndash e ainda agrave subversatildeo completa de seus meios de expressatildeo e

significaccedilatildeo isto eacute agrave supressatildeo do saber e do dizer Eles natildeo representam meramente o ldquopasso

adianterdquo como se houvessem ainda superado o discurso antecessor mas antes o ldquopasso atraacutesrdquo

enquanto retorno agraves bases e aos princiacutepios por meio da reivindicaccedilatildeo da atitude desvelada pela

miacutestica onde o misteacuterio natildeo eacute o problema a ser desvendado mas o elemento a ser incorporado

80

O obra de Proclo eacute composta por diversos comentaacuterios aos diaacutelogos de Platatildeo dentre os

quais ao Timeu ao Parmecircnides ao Alcebiacuteades agrave Repuacuteblica entre outros aleacutem de escritos

sistemaacuteticos como os Elementos de Teologia e a Teologia Platocircnica Existem ainda obras que

abordam temas de matemaacutetica astronomia arte magia e tratados propedecircuticos sobre doutrinas

filosoacuteficas Especialmente em relaccedilatildeo agraves contribuiccedilatildeo em torno agrave henologia duas obras satildeo de

suma importacircncia o Comentaacuterio ao Parmecircnides de Platatildeo e os Elementos de Teologia

A leitura de Proclo do Parmecircnides de Platatildeo eacute considerada uma das mais sistemaacuteticas e

originais que teria sobrevivido agraves vicissitudes dos tempos Ademais guardaria ainda um apelo

ao resguardo da filosofia de Platatildeo bem como uma preparaccedilatildeo para um projeto de resgate da

vitalidade do paganismo por meio de um platonismo revigorado 31 Decorreria disto uma

profunda incursatildeo na filosofia como teologia que culminaria em seus Elementos Ainda no

Comentaacuterio Proclo descreve o percurso de Platatildeo em relaccedilatildeo agrave Parmecircnides e manifesta uma

linha argumentativa similar a Plotino

Mas caso se queira chegar o mais proacuteximo da verdade deve-se seguir a linha de nosso

Mestre que Parmecircnides inicia desde o Uno (Ser) (para a proposiccedilatildeo ldquose haacute um unordquo

jaacute que conteacutem aleacutem do ldquoUnordquo o conceito de existecircncia pertence a este tipo de coisas)

ascendendo do Uno Ser para o Uno assim demonstrando que o Uno em sentido estrito

deseja apenas isto ser One e ldquoarrebatar-se para longerdquo do Ser e o Uno Ser eacute

secundaacuterio a este pela razatildeo de sua descendecircncia em direccedilatildeo ao Ser ao passo que o

Uno mesmo eacute superior mesmo agrave designaccedilatildeo ldquoeacuterdquo e a hipoacutetese ldquose haacuterdquo assim que

adicionamos eacute o Uno no sentido estrito natildeo mais permanece (PROCLUS 1987 379-380

In Parm 1033)

31 Estas consideraccedilotildees satildeo de Ciacutecero Cunha Bezerra em Algumas consideraccedilotildees sobre leitura procleana do

Parmecircnides de Platatildeo (2004) Neste artigo ele ainda sustenta em consonacircncia com H D Saffrey (Proclus

diadoque de Platon 1990) que Proclo entra na linha de inteacuterpretes de Platatildeo que entendem sua filosofia como

revelaccedilatildeo de uma verdade divina estruturada a partir do uno filiando Platatildeo aos teoacutelogos gregos (cf BEZERRA 2004

99-100)

81

Proclo apresentaraacute na sequecircncia a impossibilidade de ldquohipotetizarrdquo o uno cindindo de um lado

hipoacutetese-condicionada e de outro anti-hipoacutetese-incondicionada O problema que estaacute sendo

colocado parte da ideia de que natildeo se pode pensar a multiplicidade isolada senatildeo somente por

meio da concepccedilatildeo de uma unificaccedilatildeo Para aleacutem da estrutura binaacuteria uno-muacuteltiplo deve-se

considerar a unificaccedilatildeo como consequecircncia necessaacuteria dando origem agrave formulaccedilatildeo ldquouno-

unificado-muacuteltiplordquo para explicar como eacute simplesmente possiacutevel que hajam elementos pelos

quais outros se unificam32

O resultado da formulaccedilatildeo de Proclo parece ser a absolutizaccedilatildeo do uno e sua

identificaccedilatildeo com Deus algo sobremaneira evidente na proposiccedilatildeo de seus Elementos que diz

ldquoTodo intelecto divino eacute uniforme ou possui a forma do Uno e eacute perfeito E o primeiro intelecto

subsiste por si mesmo e produz outros intelectosrdquo (IDEM 1998 86 Elem Theo Prop CLX)

Proclo argumenta ainda que se haacute um Deus ele eacute preenchido de unidades divinas e eacute uniforme

sendo ainda perfeito e cheio da bondade divina havendo um Deus primeiro que provecirc as

hipoacutestases para outros intelectos

Este eacute precisamente o ponto que seraacute aprofundado pelo Pseudo-Dioniacutesio Areopagita em

sua teologia negativa Tanto em Proclo quanto no Pseudo-Dioniacutesio o divino habita a

compreensatildeo filosoacutefica da realidade como incorporaccedilatildeo do misteacuterio seguindo ainda a esteira

da muacutetua reciprocidade entre filosofia e religiatildeo demanda por Plotino desde o iniacutecio Pseudo-

Dioniacutesio coroa a radicalizaccedilatildeo do uno e sua identidade com o Deus primeiro apresentado como

supraessencial (ὑπερούσιε) suprabondoso (ὑπεράγαθε) e mesmo supradivino (ὑπερθεε) razatildeo

pela qual ele demanda que ldquo() em absoluta renuacutencia de si mesmo e de todas as coisas deveraacutes

na pureza deixar todas as coisas de lado liberando-se de tudo e sendo assim levado para cima

para o Raio da Divina Treva que excede toda existecircnciardquo (DIONYSIUS THE AREOPAGITE 1920 192)

32 Esta passagem eacute cuidadosamente explicada por Giuseppe Girgenti que esclarece que ldquoO ponto culminante do

primeiro grupo de teoremas eacute o alargamento da hierarquia de quatro termos uma vez que o raciociacutenio de Proclo

levou a distinguir o intermediaacuterio entre o proacuteprio Uno e o unificado ou seja elementos que compotildeem o unificada

as primeiras unidades do natildeo-unificado ou a henadirdquo (GIRGENTI 2009 113-114)

82

Discursar acerca da inefabilidade impotildee no Pseudo-Dioniacutesio uma superaccedilatildeo da proacutepria

linguagem que se revela agora como uma construccedilatildeo liberta de qualquer fronteira e acima de

qualquer paradoxo onde negaccedilatildeo (ἀπόφασις) e afirmaccedilatildeo (κατσφάσις) comungam de igual

valor e sentido em uma mesma e uacutenica esfera A primazia propriamente apofaacutetica que toma

conta da fala do Pseudo-Dioniacutesio ganha forccedila quando supera toda definiccedilatildeo conceitual e

identifica Deus como nada daquilo que eacute

Uma vez mais indo ainda mais alto mantemos que Ele natildeo eacute alma ou mente ou

concebido pela faculdade da imaginaccedilatildeo conjuntura razatildeo ou entendimento nem eacute

nenhum ato de razatildeo ou compreensatildeo nem pode ser descrito pela razatildeo ou percebido

pelo entendimento jaacute que natildeo eacute nuacutemero ou ordem ou magnificecircncia ou pequenez

ou igualdade ou desigualdade e jaacute que natildeo estaacute inerte nem em movimento ou em

descanso e natildeo possui poder e natildeo eacute poder nem luz e natildeo vive e natildeo eacute vida nem eacute

essecircncia pessoal ou eternidade ou tempo nem pode ser apreendido pelo

entendimento jaacute que natildeo eacute nem conhecimento nem verdade nem eacute reinado ou

sabedoria nem eacute uno nem unidade nem deidade ou bondade natildeo eacute um espiacuterito como

se entende o termo jaacute que natildeo eacute Filho nem Pai nem eacute nenhuma outra coisa tal como

noacutes ou qualquer outro ente do qual se possa ter conhecimento nem pertence a

categoria de natildeo-existecircncia ou de existecircncia nem os entes existentes o conhecem

como realmente eacute nem Ele os conhece como realmente satildeo nem a razatildeo pode o

atingir nomear ou conhecer nem eacute escuridatildeo nem eacute luz ou erro ou verdade nem

nenhuma afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo pode ser aplicada porquanto aplicar afirmaccedilotildees e

negaccedilotildees natildeo se aproximam Dele noacutes natildeo aplicamos nem negaccedilatildeo nem afirmaccedilatildeo

enquanto transcende toda afirmaccedilatildeo por ser perfeita e uacutenica Causa dos seres e

transcende toda negaccedilatildeo pela preeminecircncia de sua livre natureza simples e absoluta

de qualquer limitaccedilatildeo e para aleacutem de tudo (DIONYSIUS THE AREOPAGITE 1920 200-201)

83

Seria justo afirmar que esta densa passagem da Teologia Miacutestica eacute muito mais proacutexima de uma

declaraccedilatildeo de amor do que uma articulaccedilatildeo filosoacutefica (e caberia aiacute perguntar se haacute enfim

alguma diferenccedila entre uma coisa e outra) Pseudo-Dioniacutesio natildeo apenas promove um

movimento de negaccedilatildeo em direccedilatildeo agrave toda afirmaccedilatildeo mas ainda rumo agrave proacutepria negaccedilatildeo Neste

sentido a definiccedilatildeo mais justa conforme a qual se utiliza aqui o termo negatividade seguiria

com precisatildeo os termos do Pseudo-Dioniacutesio entendendo que o caminho negativo estaacute mais

aleacutem de toda afirmaccedilatildeo e mesmo de toda negaccedilatildeo Esta eacute ainda a via para entender o que pode

ser nomeado como meontologia um percurso intelectual que apoiado pela henologia

neoplatocircnica natildeo se fundamenta mais no ente mas antes no natildeo-ente (μή ὄν) ou mesmo no

nada

As consequecircncias da henologia neoplatocircnica de Plotino e Proclo e da meontologia

miacutestica do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita natildeo passaratildeo incoacutelumes pelos seacuteculos que se seguiriam

agrave composiccedilatildeo dos escritos aqui conjurados Contudo algumas recepccedilotildees bastante acuradas e

inspiradas criativas e bem desenvolvidas ocupar-se-iam de resgatar o sentido do pensamento

negativo e desdobrar a profundidade do problema Eacute possiacutevel citar algumas dezenas de filoacutesofos

que se dedicaram ao diaacutelogo com o neoplatonismo e a teologia negativa Aqui gostaria de

encerrar este capiacutetulo direcionando-o para uma interlocuccedilatildeo especial e ao meu ver central para

a difusatildeo da negatividade na filosofia medieval moderna e contemporacircnea Tenho em mente

Joatildeo o Escoto chamado Eriuacutegena

Eriuacutegena ocupou um lugar de destaque nas altercaccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas durante

o chamado Renascimento Caroliacutengio sendo-lhe atribuiacutedas tarefas como a traduccedilatildeo do grego

para o latim das obras do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita bem como explanaccedilotildees em torno agrave

contenda da divina predestinaccedilatildeo e agraves interpretaccedilotildees e exegeses suscitadas pela disputa erguida

pela cultura biacuteblica do periacuteodo33

33 Para especificaccedilotildees em torno a Eriuacutegena e seu tempo confira CONTRENI 1996 e MCNAMARA 1996

84

A presenccedila do neoplatonismo em Eriuacutegena parece se posicionar de maneira estrateacutegica

ao longo dos movimentos por ele realizados em sua magna obra o Periphyseon Natildeo se pode

perder de vista as possiacuteveis definiccedilotildees do neoplatonismo natildeo apenas dentro de suas esferas

relacionais e a partir das tendecircncias de leitura mas ainda por meio da questatildeo fundamental que

problematiza todo conteuacutedo qual seja como o uno se relaciona com o muacuteltiplo ou ainda como

o que eacute primeiro se relaciona com o que eacute posterior Oscar Federico Bauchwitz sustenta que

ldquo() a questatildeo pela antonomaacutesia do neoplatonismo enquanto uma reflexatildeo acerca da relaccedilatildeo

entre o Criador e a criatura entre o Uno e a multiplicidade pode ser enfocada na obra de

Eriuacutegena no que diz respeito a creatio ex nihilo e ao sentido original que eacute determinado ao

termo nihilrdquo (BAUCHWITZ 2001 11) Assumindo esta hipoacutetese como vaacutelida torna-se

imprescindiacutevel compreender o lugar que tal questatildeo ocupa na obra eriugeneana e como ela se

desenvolve

Conforme os apontamentos de Bauchwitz o ldquonadardquo se apresenta pela primeira vez jaacute

no iniacutecio do Periphyseon ao serem articulados os modos da diferenccedila fundamental da divisatildeo

da natureza (φύσις natura) definida como tudo aquilo que eacute e que natildeo eacute (quae sunt et quae non

sunt) sendo dividida em quatro espeacutecies ldquo() primeiro naquilo que cria e natildeo eacute criado segundo

naquilo que eacute criado e tambeacutem cria terceiro naquilo que eacute criado e natildeo cria enquanto o quarto

nem cria nem eacute criadordquo (ERIVGENAE 1999 37 441ordf) O que eacute pode ser percebido apreendido e

conhecido O que natildeo eacute todavia natildeo se pode perceber apreender ou conhecer (cognoscitur non

quid est sed quia est) De acordo com Bauchwitz o termo quid est (ldquoo que eacuterdquo) diz respeito agrave

essecircncia de tudo que permanece incompreensiacutevel e infinito ao passo que quia est (ldquoque eacuterdquo)

indica a existecircncia da essecircncia divina ou seja seus efeitos como algo determinado e que eacute O

incompreensiacutevel da natureza divina Eriuacutegena deixa ver quando escreve ldquoPortanto se eacute por

causa de sua excelecircncia inefaacutevel e incompreensiacutevel infinitude que a Natureza Divina eacute dita natildeo

ser disto se segue que ela eacute nada ()rdquo (IDEM 2005 61 634C)

85

A impossibilidade de compreender a natureza divina eacute o que permite a Eriuacutegena

descortinar seu entendimento acerca da creatio ex nihilo Bauchwitz escreve sobre este ponto

ldquoA questatildeo se origina eacute que se a diferenccedila fundamental abarca a totalidade da natureza o que

se poderia predicar de Deus Isto eacute o que haacute para mais aleacutem do ser e do natildeo ser senatildeo o Nada

desde o qual Deus cria todas as coisasrdquo (BAUCHWITZ OP CIT 12) O problema eacute apresentado por

Eriuacutegena a partir da busca pelo sentido conforme o qual se questiona de que maneira eacute possiacutevel

compreender como todas as coisas que satildeo se originam do nada (ou nos termos do

neoplatonismo pagatildeo a mesma questatildeo de ldquocomo do uno se origina a multiplicidade) Eacute

possiacutevel interpretar esta passagem alegando que Eriuacutegena se refere ao nihilo em perfeita

sintonia com toda doutrina Cristatilde da criaccedilatildeo como de fato faz sentido afirmar Contudo

Eriuacutegena vislumbra o que considera ldquoa verdadeira essecircncia da natureza divinardquo O Criador que

cria todas as coisas que satildeo criadas insere-se naquela parte da divisatildeo da natureza na qual ldquocria

mas natildeo eacute criadordquo enquanto sua ldquoessecircnciardquo reflete aquilo que ldquonatildeo eacute nem criado nem criardquo

Em outros temos indica-se que nada eacute a natureza divina de Deus ou ainda que natildeo-ser

corresponde agrave divindade

Resta ainda resolver o mesmo problema ante ao qual se encontraram Plotino Proclo o

Pseudo-Dioniacutesio entre outros a saber como eacute possiacutevel para Deus desarraigar-se de seu nada

ou desdobrar-se desde si mesmo Bauchwitz oferece uma explicaccedilatildeo quando potildee em relevo o

problema da expressatildeo do paradoxo

() por meio da criatura eacute Deus quem se manifesta e portanto todas as criaturas

podem ser entendidas como certas apariccedilotildees divinas isto eacute teofania Neste sentido a

teofania nomeia o paradoxo da ineffabilis difusio que diz que o infinito devem finito

que o incompreensiacutevel devem compreensiacutevel que o silecircncio clama (BAUCHWITZ 2003ordf

57)

86

Em Eriuacutegena eacute possiacutevel acompanhar o sentido da explicaccedilatildeo de Bauchwitz na passagem que

diz

Tudo o que eacute entendido e sentido nada mais eacute senatildeo apariccedilatildeo do que natildeo eacute aparente

a manifestaccedilatildeo do oculto afirmaccedilatildeo da negaccedilatildeo compreensatildeo do incompreensiacutevel [a

expressatildeo do inexpressiacutevel o acesso ao inacessiacutevel] o intelecccedilatildeo do ininteligiacutevel o

corpo do incorpoacutereo a essecircncia do supraessencial a forma do informado a medida

do incomensuraacutevel o nuacutemero do inumeraacutevel o peso do impensaacutevel a materializaccedilatildeo

do espiritual a visibilidade do invisiacutevel o lugar do natildeo-lugar o tempo do natildeo-tempo

a definiccedilatildeo do infinito a circunscriccedilatildeo do incircunscrito e as outras coisas que satildeo

ambas consideradas e percebidas pelo intelecto sozinho e natildeo podem se restringir

dentro de recessos da memoacuteria e nas quais escapa agrave destreza da mente (ERIVGENAE OP

CIT 59 633BC)

A despeito da possibilidade de sintonia com a doutrina Cristatilde da criaccedilatildeo (especificamente o

sentido moralizante da gecircnese) natildeo haacute forccedila catequeacutetica senatildeo puramente especulativa na

maneira pela qual Eriuacutegena aborda a questatildeo O acesso ao sagrado aparece antes como uma

atitude fundamental na qual se insiste no misteacuterio da nadidade do divino

O resultado do caminho meditativo de Eriuacutegena eacute uma postura na qual o pensamento

natildeo responde apenas agraves demandas imediatas agraves preocupaccedilotildees que sanem os conflitos

existenciais e sociais mas uma intelecccedilatildeo cujo grau de alcance atinge toda mensurabilidade e

incomensurabilidade da estruturaccedilatildeo do real como internalizaccedilatildeo do segredo oculto e dos

misteacuterios da natureza Parece ser neste sentido que Bauchwitz sugere uma eacutetica do silecircncio

onde ldquo() natildeo basta enunciar o princiacutepio que deve reger as accedilotildees do ser humano () O silecircncio

como destino a ser alcanccedilado soacute tem sentido na medida em que nomeia a incessante e natural

disposiccedilatildeo do proacuteprio homem em dirigir-se a elerdquo (BAUCHWTZ OP CIT 12) Antes de resolver

qualquer problema assume-se o respeito para com a profundeza do incocircndito

87

Durante a introduccedilatildeo desta tese referi-me a um outro escrito de Bauchwitz Nihilismo

e Neoplatonismo assumindo que aquele artigo havia sido responsaacutevel por traccedilar uma direccedilatildeo

ou mesmo proporcionar um estiacutemulo ao desenvolvimento deste trabalho Gostaria de retornar

agravequele artigo uma vez mais para encerrar esta seccedilatildeo com definiccedilotildees mais precisas a respeito da

henologia e da meontologia como ultrapassagem dos limites da metafiacutesica

O capiacutetulo anterior evidenciou que com a ontologia ou a substantivaccedilatildeo do pensamento

ocidental por meio da confusatildeo entre ser e ente perdeu-se natildeo a capacidade intelectual do ser

humano mas o atino para o seu fundamento Em razatildeo da urgecircncia de respostas abandonou-se

tudo aquilo que era por princiacutepio incoacutegnito inefaacutevel inexprimiacutevel Como havia dito na

introduccedilatildeo com o apoio do trabalho de Bauchwitz a consumaccedilatildeo deste movimento eacute anunciado

por meio de um diagnoacutestico do niilismo Neste sentido Bauchwitz escreve

A relaccedilatildeo entre Nihilismo e Neoplatonismo que aponta para uma eacutetica aleacutem dos

limites da temporalidade e de crenccedilas religiosas ainda estaacute para ser esclarecida Uma

tal eacutetica somente poderaacute ser realmente quando cumpridas umas exigecircncias que neste

trabalho foram apenas assinaladas a superaccedilatildeo da vontade e em consequecircncia da

proacutepria liberdade soacute pode ser interpretada em uma perspectiva que jaacute natildeo se encontra

nos limites da ontologia tradicional ou no dizer de Heidegger no acircmbito da metafiacutesica

O sem-propoacutesito de uma tal eacutetica que abnega qualquer visatildeo utilitarista e

simplesmente dada do mundo exige pensar a partir de novas fundamentaccedilotildees e

valores o retorno do divino eacute uma metaacutefora que atende a tais exigecircncias na medida

em que ao tempo que nos abre uma concepccedilatildeo totalmente outra daquele que ancora

os principais valores vigentes questiona pelos conceitos fundamentais que

homologaram esses valores como superiores porque quantificaacuteveis A ausecircncia de

referecircncias fixadas pelos padrotildees contemporacircneos que mensuram o bem-estar de cada

indiviacuteduo e o resgate de uma vivecircncia que se justifica nela mesma e natildeo pelas suas

finalidades devem servir de origem para superar a ldquonoite do mundordquo (BAUCHWITZ OP

CIT 179-180)

88

Em primeiro lugar eacute importante destacar que a falta de esclarecimento da ldquoeacutetica aleacutem dos

limitesrdquo ou como prefiro colocar aqui ldquopara aleacutem das fronteirasrdquo natildeo soacute natildeo estaacute clara como

assim deve permanecer caso queira responder agrave exigecircncia de absorver a negatividade que

tambeacutem faz parte da humanidade do humano mas que foi todavia afasta de sua visatildeo da

realidade Por este motivo utiliza-se aqui o termo conflito das fronteiras para indicar natildeo uma

resoluccedilatildeo de problemas mas a assunccedilatildeo de um confronto Sendo assim a ultrapassagem de

limites deve se dar apenas no que tange agrave possibilidade de abrir o pensamento para aleacutem da

metafiacutesica tradicional Explorar o que haacute de propriamente fraco o que natildeo se sustenta o que

natildeo pode ser

A temaacutetica poderia ser encerrada aqui Seria possiacutevel retornar ao neoplatonismo com

ainda mais cautela e extrair de laacute mesmo os elementos para subverter toda sorte de ordenamento

que lanccedila o ser humano na ldquonoite do mundordquo Contudo meu interesse aqui eacute explorar mais um

momento da histoacuteria da filosofia e se possiacutevel encontrar um ponto de apoio para reunir a

tradiccedilatildeo metafiacutesica e o neoplatonismo em um uacutenico problema Minhas hipoacutetese conforme seraacute

desenvolvida no terceiro e uacuteltimo capiacutetulo eacute encontrar uma orientaccedilatildeo Orientaccedilatildeo extrema

Ali no Extremo Oriente

89

3 O EXTREMO ORIENTE E O CONFLITO DAS FRONTEIRAS A FILOSOFIA COMPARADA INTERCULTURAL

COMO CHAVE DE LEITURA PARA ALGUNS PROBLEMAS DO PENSAMENTO CONTEMPORAcircNEO

O ambiente acadecircmico britacircnico do final da deacutecada de 1970 foi palco de uma fervorosa disputa

acerca das interpretaccedilotildees e definiccedilotildees culturais entre Ocidente e Oriente A publicaccedilatildeo do livro

Orientalism (1978) de Edward Wadie Said (ع إدوارد Idwārd Wadīʿ Saʿīd) fomentou ديعس ودي

uma inesgotaacutevel discussatildeo acerca de qualquer suposta correspondecircncia deste ou daquele

elemento nos princiacutepios da tradiccedilatildeo oriental sustentando em termos bem simples que o

Oriente era antes uma invenccedilatildeo convencional Said sofreu diversas criacuteticas algumas mais

significativas outras menos Uma de suas consideraccedilotildees mais discutidas afirma que ldquo() o

Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente) como sua imagem ideacuteia personalidade e

experiecircncia de contraste Contudo nada desse Oriente eacute meramente imaginativordquo (SAID 1990

13-14) acrescentando ainda de forma incisiva que ldquoO Oriente expressa e representa esse

papel cultural e ateacute mesmo ideologicamente como um modo de discurso com o apoio de

instituiccedilotildees vocabulaacuterio erudiccedilatildeo imagiacutestica doutrina e ateacute burocracias e estilos coloniaisrdquo

(IDEM IBIDEM 14) Said defendeu que o Oriente tal qual eacute conhecido pelo mundo ocidental natildeo

corresponde agrave proveniecircncia originaacuteria de suas tradiccedilotildees mas eacute antes uma estrateacutegia (poliacutetica e

econocircmica) de manutenccedilatildeo geograacutefica Toda designaccedilatildeo acadecircmica de qualquer orientalismo

ateacute entatildeo desenvolvido estaria entatildeo equivocada apoiada em pressupostos que natildeo condizem

com a tradiccedilatildeo oriental Sem embargo o mesmo poderia ser dito a respeito da introspecccedilatildeo do

mundo grego pelo mundo romano-latino e no decorrer da histoacuteria da humanidade eacute possiacutevel

ainda identificar outras centenas de casos semelhantes ateacute o ponto no qual se afirma a

globalizaccedilatildeo por meio da modernizaccedilatildeo de todos os recantos do planeta dentro do iacutempeto de

igualar todas as culturas em um niacutevel comum

90

Entretanto apesar de ser possiacutevel interpretar as assertivas de Said de forma mais

ponderada aproveitando com isto certo direcionamento fatalista embora natildeo necessariamente

inveriacutedico de sua investigaccedilatildeo algumas gafes de sua compreensatildeo da histoacuteria se revelam

bastante perturbadoras Um dos principais criacuteticos de Said Robert Irwin publicou uma obra

onde ampla parte eacute dedicada agrave refutaccedilatildeo direta dos principais argumentos de Said Em For the

Lust of Knowning (2006) Irwin destaca algumas inverdades de Said e contrargumenta de

maneira precisa certas falaacutecias Contudo Irwin eacute tambeacutem bastante emotivo em sua abordagem

ele escreve ldquoPara pocircr minhas cartas na mesa jaacute de iniacutecio a meu ver aquele livro [Orientalism]

eacute uma obra de uma impostura maleacutevola na qual eacute difiacutecil distinguir erros verdadeiros de

falsidades propositadasrdquo (IRWIN 2006 11) Irwin ataca principalmente os erros fatuais de Said

apontando para lacunas na fundamentaccedilatildeo da obra Orientalism34 destacando vaacuterios enganos e

afirmando em siacutentese ldquoPois se eacute possiacutevel apresentar uma imagem falsa do orientalismo do

cristianismo e do imperialismo britacircnico natildeo seria tatildeo obviamente errado apresentar de modo

semelhante uma falsa imagem do islatilde da histoacuteria aacuterabe ou da difiacutecil situaccedilatildeo dos palestinosrdquo

(IDEM IBIDEM 330-331) fazendo referecircncia agraves posiccedilotildees por Said defendidas Em suma Irwin daacute

a entender nas entrelinhas que a politizaccedilatildeo de um criacutetico literaacuterio no caso Said tornou a obra

Orientalism um intento mal construiacutedo como ferramenta para sustentaccedilatildeo de posiccedilotildees poliacuteticas

condenando todo seacuterio estudo que envolve o orientalismo Ateacute entatildeo muitos outros

pesquisadores e eruditos atacaram Said bem como tantos outros o admiravam e o defenderam

Todavia com a apresentaccedilatildeo desta disputa quero aqui destacar um fator iacutempar que natildeo

necessariamente se prende agrave contenda mas que encobre o toacutepico de modo geral

34 Irwin destaca alguns erros ldquoOrientalismo daacute a impressatildeo de um livro escrito agraves pressas Eacute repetitivo e conteacutem

muitos erros factuais Said menciona lsquoPedro o Veneraacutevel e outros orientalistas cluniacensesrsquo Que outros

orientalistas cluniacenses Seria interessante conhecer seus nomes (Mas naturalmente a ideia de que houvesse toda

uma escola de orientalistas cluniacenses eacute absurda Pedro o Veneraacutevel trabalhou sozinho) Como Bernard Lewis

ressaltou Said faz com que exeacutercitos muccedilulmanos conquistem a Turquia antes de conquistarem o norte da Aacutefrica

Isso realmente sugere uma ignoracircncia espantosa da histoacuteria do Oriente Meacutedio da mesma forma que sua crenccedila

quanto a terem a Gratilde-Bretanha e a Franccedila dominado a regiatildeo oriental do Mediterracircneo a partir do final do seacuteculo

XVIIrdquo (IRWIN 2006 329)

91

Com a discussatildeo entre os orientalistas e seus inimigos o importante eacute destacar natildeo

apenas as dificuldades que envolvem todo e qualquer estudo comparado entre Ocidente e

Oriente mas o fato de que eacute da natureza do proacuteprio estudo comparado que haja divergecircncias

A divergecircncia e o erro satildeo de fato disposiccedilotildees naturais dos estudos comparados sem os quais

natildeo seria possiacutevel sequer dar iniacutecio agrave discussatildeo ou desenvolver qualquer linha de raciociacutenio

preparatoacuteria Soacute eacute possiacutevel falar em estudos comparados porque houve de antematildeo a percepccedilatildeo

de uma divergecircncia Mais ainda a necessidade do momento e os acasos eventuais direcionam

os estudiosos para um ou para outro lado Assim como Said saiu em defesa da Palestina durante

um periacuteodo no qual os conflitos haviam se asseverado em decorrecircncia da expulsatildeo das forccedilas

de paz das Naccedilotildees Unidas em 1967 tambeacutem outros pensadores em outros momentos da histoacuteria

foram motivados por acontecimentos histoacutericos sejam eles de guerra ou de paz poliacuteticos

econocircmicos ou religiosos Como por exemplo as diversas manifestaccedilotildees de revolta e

indignaccedilatildeo de Theodor Wiesengrund Adorno e Gershom Scholem apoacutes Auschwitz ou as

anaacutelises polecircmicas de Slavoj Žižek das revoltas do subuacuterbio de Londres e da Primavera Aacuterabe

Contudo algumas deacutecadas antes da publicaccedilatildeo da obra de Said precisamente durante a

deacutecada de 1950 o Departamento de Filosofia da University of Hawairsquoi at Mānoa havia

alavancado uma seacuterie de trabalhos a respeito dos fundamentos e procedimentos dos estudos

comparados Eacute preciso considerar que proacuteprio departamento jaacute havia sido estruturado entre

1930 e 1940 com o objetivo de suprir a lacuna que havia a respeito dos estudos comparados na

filosofia A primeira East-West Philosophers Conferece em 1939 ditou o tom pelo qual se

tornaria possiacutevel falar abertamente alguns anos mais tarde de uma filosofia comparada

intercultural Ali natildeo escapou a ideia de que foi justamente por meio do ldquoerrordquo que se

estabelecia o diaacutelogo entre fronteiras Em outras palavras este diaacutelogo nascia jaacute sempre de um

conflito das fronteiras A hipoacutetese de consenso eacute explorada neste sentido apenas mediante a

assunccedilatildeo de certa ignoracircncia parcial e sopesando ainda as variaccedilotildees de interpretaccedilatildeo

92

O rigor filosoacutefico que direcionou as primeiras tentativas da filosofia comparada em

confrontar as tradiccedilotildees sapienciais ocidentais e orientais permitiu a instauraccedilatildeo de uma postura

cuidadosa e quase mesmo analiacutetica do problema35 Com isto foi possiacutevel comeccedilar a pensar de

que forma elementos do pensamento oriental e da filosofia ocidental poderiam convergir ou

divergir e quais as contribuiccedilotildees que este tipo de comparaccedilatildeo pode trazer aos problemas da

contemporaneidade Todavia como anos mais tarde discutiriam Said Irwin e outros natildeo se

pode desprezar o fato de que nada escapa aos entrelaccedilamentos ldquoirrastreaacuteveisrdquo das relaccedilotildees entre

Ocidente e Oriente Neste sentido embora qualquer comprovaccedilatildeo cientiacutefica empaque frente aos

desafios historiograacuteficos natildeo eacute de todo ingecircnuo especular as influecircncias que por exemplo

Platatildeo teria sofrido da sabedoria primitiva de hinduiacutesta e budistas como sustentam diversos

especialistas36 Ou ainda da indagaccedilatildeo acerca de ateacute que ponto o Aristoacuteteles que conhecemos

natildeo foi orientalizado por Al-Farabi (صر ون ن محمس اب ی محمس ب اراب Abū Naṣr Muḥammad ibn ف

Muḥammad Fārābī) Avicena (ن نا اب ع د ou و لی اب نا ع ع د Pūr Sinɑʼ ou ainda ور نا پ ع د Pur-

e Sina em aacuterabe و لي أب عن ع س ح ن ال بس ب الله ع ن نا ب ع د Abū ʿAlī al-Ḥusayn ibn ʿAbd Allāh

ibn Al-Hasan ibn Ali ibn Sīnā) entre outros filoacutesofos da tradiccedilatildeo aacuterabe Sem contar os

sincretismos que permearam a filosofia do helenismo tardio em Alexandria onde pagatildeos

judeus cristatildeo e mulccedilumanos travavam interminaacuteveis disputas teoacutericas (e natildeo apenas teoacutericas)

a respeitos dos fundamento filosoacuteficos e teoloacutegicos religiosidade momento no qual fica difiacutecil

empreender uma anaacutelise pormenorizada de quem influenciou quem quando o quanto e como37

35 Charles A Moore ponderou no trabalho Some Problems of Comparative Philosophy (1951) a dificuldade em

posicionar as doutrinas orientais em um grupo homogecircneo como podia ser feito com a ocidentais apontando ainda

para o cuidado em evitar as caracterizaccedilotildees e comparaccedilotildees a partir de tendecircncias mais gerais (cf MOORE 1951 67)

Kwee Swan Liat escreveu ainda em Methods of Comparative Philosophy (1951) que ao menos sete esferas de

aplicaccedilatildeo metodoloacutegica devem ser previamente levadas em consideraccedilatildeo (aproximaccedilatildeo filoloacutegica histoacuterica

comparativa formal-valorativa psicoloacutegica fenomenoloacutegica e socioloacutegica-antropoloacutegica) avaliando uma por

uma e propondo por conseguinte uma oitava aproximaccedilatildeo total-integrativa (cf KWEE SWAN LIAT 1951 10ss) 36 Estas hipoacuteteses satildeo levantadas por Graham Parkes na introduccedilatildeo de Heidegger and Asian Thought (1987) (cf

PARKES 1987 1) 37 Este ponto especiacutefico acerca das contendas do periacuteodo heleniacutestico foram sobremaneira bem expostas por Jean

Pepiacuten no escrito intitulado Heacutelleacutenisme et christianisme no volume de Franccedilois Chacirctelet La Philosophie v 1 De

Platon agrave Saint Thomas Paris Marabout 1995

93

Falar efetivamente de uma filosofia comparada intercultural todavia pressupotildee outra

perspectiva aquela na qual ambas as tradiccedilotildees estatildeo culturalmente niacutetidas e bem delineadas

(ainda que por meio de caracterizaccedilotildees vulgares pouco precisas ou mesmo caricatas) e satildeo

entendidas como exponencialmente distintas Entretanto as mesmas dificuldades permanecem

Com isto quero dizer fica difiacutecil afirmar ateacute que ponto um lado compreendeu o outro de modo

suficiente e satisfatoacuterio sendo possiacutevel indagar ainda se as apropriaccedilotildees natildeo se deram mediante

interpretaccedilotildees equivocadas ou leituras transviadas sobretudo quando natildeo haacute domiacutenio pleno dos

idiomas envolvidos

Estas asseveraccedilotildees tomaram conta de muitos pensadores no decorrer da histoacuteria da

humanidade Ateacute onde eacute possiacutevel investigar dois momentos marcam o iniacutecio da relaccedilatildeo

expliacutecita (e natildeo meramente impliacutecita como no caso dos primeiros filoacutesofos gregos de Platatildeo e

de Aristoacuteteles) entre Ocidente e Oriente na filosofia a apropriaccedilatildeo latina durante a Idade Meacutedia

dos escritos aacuterabes do Oriente Meacutedio38 e a interlocuccedilatildeo e introspecccedilatildeo da tradiccedilatildeo do Extremo

Oriente (sobretudo chinesa em um primeiro momento) na filosofia alematilde dos seacuteculos dezessete

e dezoito Aqui interessa especialmente o diaacutelogo com o Extremo Oriente e como ele natildeo se

encerrou no mero intercacircmbio de tradiccedilotildees fomentando um movimento de reversatildeo no qual os

orientais por sua vez tambeacutem abriram interlocuccedilatildeo direta com o pensamento ocidental

introspectando a filosofia e desenvolvendo ao seu modo formas de reflexatildeo nos mesmos

moldes da estrutura categoacuterica ocidental mas partindo dos princiacutepios orientais ainda que em

certa medida (como se veraacute) tais princiacutepios por vezes comunguem em muitos aspectos de

elementos e direcionamentos comuns aos ocidentais e por vezes natildeo Para isto eacute preciso

investigar brevemente a gecircnese desta relaccedilatildeo e como ela tem iniacutecio

38 Sobre este toacutepico que natildeo seraacute abordado aqui confira W Raven e A Akasoy (eds) Islamic Thought in the

Middle Ages Studies in Text Transmissions and Translations in Honour of Hand Daiber Leiden Brill 2008 D

Calma Eacutetudes sur le premier siegravecle de lrsquoaverroisme latin approches et textes ineacutedits Turnhout Brepols 2010

entre outros

94

A despeito da culminaccedilatildeo das luzes no periacuteodo moderno diversos temas obscuros

perpassaram o seacuteculo dezessete sobretudo aqueles motivados pelas missotildees catequeacuteticas

jesuiacutetas na China que inevitavelmente influenciaram o ambiente intelectual da eacutepoca 39

Independente dos transtornos causados pelos europeus em suas incursotildees tambeacutem na Europa

os problemas apareceram Quando os documentos acerca das tradiccedilotildees chinesas de pensamento

desembarcaram no continente europeu despertaram imediato interesse em diversos estudiosos

Contudo tampouco foi ameno o iniacutecio deste diaacutelogo O caso mais draacutestico se deu em

1723 quando Christian Wolff fugiu de Halle an der Saale em Sachsen-Anhalt na Alemanha

em decorrecircncia de uma seacuterie de perseguiccedilotildees despertadas por um discurso por ele pronunciado

dois anos antes sob o tiacutetulo Oratio de Sinarum philosophia practica (1721) O motivo era

polecircmico e suscetiacutevel de distintas interpretaccedilotildees Wolff afirmara que ldquoA mesma autoridade que

possui os ditos e feitos de Cristo possui tambeacutem Confuacutecio para os chineses Moiseacutes para os

judeus e Mohammed para os turcosrdquo (WOLFF 1985 117) Embora Wolff tenha impressionado

grande parte de seus ouvintes com o teor apaixonado de sua preleccedilatildeo tal comparaccedilatildeo redundou

em acirradas criacuteticas por diversos professores e eruditos que acompanhavam a fala e a

interpretaram como uma espeacutecie de ateiacutesmo mais ou menos mitigado Estas acusaccedilotildees todavia

natildeo eram fruto apenas da sinofilia de Wolff mas advinham jaacute de seu confronto com colegas

pietistas da Universidade de Halle devido agrave inclinaccedilatildeo bastante evidente para um pensamento

racionalista e secular40

39 Sobre as missotildees jesuiacutetas confira Wenzhao Li Die christliche China-Mission im 17 Jahrhundert Stuttgart

Franz Steiner 2000 Acerca do caso especiacutefico do diaacutelogo com a filosofia alematilde confira ainda Antonio Florentino

Neto Von der Interpretation zum Gespraumlch Das chinesische Denken in deutschen Philosophie Saarbruumlcken

SVH 2013 Florentino Neto ainda comenta que as missotildees tiveram iniacutecio ainda no seacuteculo dezesseis tendo

comeccedilado no Japatildeo e soacute entatildeo atingido a China no seacuteculo dezessete (cf FLORENTINO NETO 2009 41) 40 Os interesses de Wolff pela China bem como pelo racionalismo paulatinamente aparecem em seus escritos

desde a influecircncia direta de Leibniz ateacute a leitura dos tratados dos jesuiacutetas a respeito da China Menccedilotildees ao

pensamento chinecircs e o peso da admiraccedilatildeo que nutria por Reneacute Descartes satildeo evidentes em seus trabalhos a partir

de 1721 (cf LACH 1953) A despeito dos interesses de Wolff pelo pensamento chinecircs sobretudo acerca dos temas

morais constata-se que ele considerava o cristianismo moralmente superior e mais bem desenvolvido (cf KANAMORI

1997 302-303)

95

A hipoacutetese de que a natureza comum do ser humano possibilita o discurso intercultural

nasce sobretudo da comunhatildeo entre uma radicalizaccedilatildeo quase miacutestica do racionalismo moderno

e o impacto causado por escritos de ordem semelhante embora com princiacutepios e fundamentos

distintos Aleacutem de Wolff tambeacutem Nicolas Malebranche e Gottfried Leibniz se dedicaram agraves

leituras do material trazido pelos jesuiacutetas no mesmo periacuteodo Malebranche compocircs em 1707 o

escrito Entretien drsquoun Philosophe Chreacutetien et drsquoun Philosophe chinois sur lrsquoexistence et la

nature de Dieu por meio do qual mais tarde aproveitou para se livrar das acusaccedilotildees de ser um

ldquospinozistardquo Malebranche ainda encarou uma acirrada disputa acerca da condenaccedilatildeo do Papa

Clemente XI agraves missotildees jesuiacutetas sustentando posiccedilotildees bastante polecircmicas em seu diaacutelogo

Malebranche levanta em sua obra a questatildeo fundamental acerca da entificaccedilatildeo do deus

cristatildeo instigando a pergunta acerca do infinito que eacute respondida pelo filoacutesofo chinecircs da

seguinte maneira ldquoEstou convencido de que quando penso sobre o infinito estou muito longe

de pensar qualquer coisa Mas entatildeo eu penso em um tal ser individual e determinado Agora

o Deus que vocecircs adoram natildeo eacute assim um ser individual e particularrdquo (MALEBRANCHE 1708

17) As preocupaccedilotildees de Malebranche caminham no sentido de articular ser e ente no problema

da ontologia do cristianismo Quando Leibniz escreve seu Discours sur la theacuteologie naturelle

des Chinois (1716) ele o faz justamente tendo em vista repetidos pedidos de esclarecer pontos

levantados por Malebranche apoacutes o escrito ter sido enviado a ele por Nicholas Reacutemond41

Eacute possiacutevel considerar que Leibniz foi o que se devotou com mais afinco agrave tradiccedilatildeo

chinesa Ele teria se envolvido principalmente com o direcionamento praacutetico da sabedoria

chinesa profundamente norteada pelo propoacutesito de melhorar a si mesmo e agrave sociedade por meio

da noccedilatildeo confucionista de cultivo de si (修身 xiushen) no sentido propriamente moral42

41 Leibniz trocou extensa correspondecircncia com os missionaacuterios jesuiacutetas a respeito da filosofia chinesa aleacutem de

apresentar comentaacuterios pontuais em sua Novissima Sinica (1697) Contudo eacute no Discours que suas ponderaccedilotildees

mais seacuterias e cuidadosas satildeo delineadas e manifestas (cf KANG 2009 6-8) 42 Mais especificaccedilotildees sobre este tema podem ser encontrados em Karyn T Lay Introduccedilatildeo agrave filosofia chinesa

Trad Saulo Alencastre Satildeo Paulo Madras 2009

96

Leibniz escreve em seu discurso ldquoMas quem poderia pensar que houvesse na terra um

povo que superasse os nossos aspectos da vida cultural Se formos iguais nos modos de

produccedilatildeo somo superiores nas ciecircncias teoacutericas mas inferiores na filosofia praacuteticardquo (LEIBNIZ

1979 11) concluindo que ldquo() somos inferiores na aacuterea da eacutetica na poliacutetica e na vida dos

haacutebitos cotidianosrdquo (IDEM IBIDEM) A interpretaccedilatildeo de Leibniz exalta a capacidade dos chineses

em se organizarem e valorarem as tensotildees promovidas pelo campo social com base no cultivo

de si e ainda identificando o ldquosirdquo ao povo em geral Importante eacute ressaltar natildeo apenas desta

breve sentenccedila ilustrativa mas a partir de uma visatildeo mais ampla de suas reflexotildees o profundo

interesse em preencher lacunas a respeito da proveniecircncia intelectual de certos problemas

filosoacuteficos

Anos depois tambeacutem Georg W F Hegel Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche

nutririam interesses pelo Oriente43 Contudo a resposta propriamente oriental a respeito do

intercacircmbio filosoacutefico se daria apenas na virada do seacuteculo dezenove para o seacuteculo vinte Este eacute

o momento no qual a filosofia comparada intercultural comeccedila a ganhar corpo precisamente

com a abertura poliacutetica e intelectual do Japatildeo e o desenvolvimento da chamada Escola de

Filosofia de Kyōto44 Embora natildeo haja tempo nem espaccedilo para abordar de maneira mais

cuidadosa os enlaces teoacutericos e praacuteticos da Escola de Kyōto escrutinando as estruturas de

pensamento de cada um de seus primeiros membros (e ainda de seus membros tardios) gostaria

aqui de destacar alguns aspectos fundamentais direcionados por duas questotildees a primeira

sustentando o porquecirc a filosofia tem iniacutecio propriamente acadecircmico no Extremo Oriente e

precisamente no Japatildeo e a segunda indagando como (ou de que modo) isto acontece Uma

hipoacutetese necessariamente leva agrave outra e isto pode ser facilmente observado

43 Um panorama mais especiacutefico das aproximaccedilotildees pode ser visto em Florentino Neto 2009 44 Em minha dissertaccedilatildeo de mestrado jaacute havia explanado os movimentos histoacutericos que levaram agrave abertura do Japatildeo

e ao surgimento da filosofia japonesa moderna ou contemporacircnea Uma bibliografia mais completa acerca do tema

pode ser extraiacuteda das obras de referecircncia William Beasley The Meiji Restoration (Stanford Stanford UP 1972) e

The Rise of Modern Japan (New York St Matinrsquos Press 1995)

97

Em primeira matildeo sustento que os motivos que proporcionaram o surgimento de uma

ldquoescola filosoacuteficardquo no Japatildeo modernizado estatildeo intimamente ligadas com sua introspecccedilatildeo da

tradiccedilatildeo oriental precedente Em palavras mais simples a maneira pela qual os japoneses

compreenderam e sintetizaram as principais linhas de pensamento orientais (hinduiacutesmo

budismo confucionismo e daoiacutesmo) culminando no chamado budismo zen foi sem embargo

a chave para absorver a filosofia ocidental Em segunda matildeo sustento ainda que a filosofia

japonesa nasce cresce e se estabelece mediante duas perspectivas (justamente os ldquoparadigmasrdquo

anteriormente abordados na tese) metafiacutesica e negatividade em decorrecircncia do florescimento

do zen no Japatildeo Por fim argumento que justamente pelo entrelaccedilamento de metafiacutesica

negatividade e o pensamento do Extremo Oriente que nasce a uacutenica filosofia possiacutevel para o

momento histoacuterico pelo qual passava o Japatildeo e com isto abre-se uma pertinente chave de

leitura para o momento que agora mesmo atravessa a filosofia contemporacircnea

Portanto inicialmente eacute essencial destacar a singularidade do budismo zen em relaccedilatildeo

agraves tradiccedilotildees precedentes Existem muacuteltiplas maneiras pelas quais eacute possiacutevel empreender esta

tarefa Acredito ser plausiacutevel direcionar este toacutepico mediante um problema especiacutefico qual seja

da fundamentaccedilatildeo uacuteltima da realidade a partir da meditaccedilatildeo a respeito da questatildeo da vacuidade

entendida como śūnyatā (शनयता)

A ideia de śūnyatā deriva do budismo indiano primitivo Relatos de reflexotildees em torno

ao problema do fundamento da realidade aparecem (como jaacute havia exposto na introduccedilatildeo desta

tese) desde os cacircnones Pāḷi e satildeo expressos de maneira mais clara e niacutetida no budismo mahāyāna

principalmente no Sūtra do Coraccedilatildeo (Prajntildeāpāramitā Hṛdaya परझञापारनमताहरदय) passando pela escola

mādhyamaka de budismo indiano e ainda nos Versos Fundamentais sobre o Caminho do Meio

(Mūlamadhyamaka-kārikā मलमधयमककाररका) de Nāgārjuna (िागारि) onde foi apresentada de maneira

mais profunda e sistemaacutetica

98

Algumas interpretaccedilotildees do escrito de Nāgārjuna destacam o śūnyatā como constituiccedilatildeo

da totalidade da realidade enfatizando que isto significa uma muacutetua dependecircncia (pratītya-

samutpāda परतीतयसमतपाद) de todas as coisas de todas aquelas que possuiriam existecircncia individual

ou substancial e ateacute da proacutepria ideia de nada o que significa propriamente uma anulaccedilatildeo de

qualquer Ente Supremo ou mesmo qualquer verdade absoluta45

Quando os ensinamentos do budismo indiano chegam agrave China e no Japatildeo alguns

princiacutepios fundamentais satildeo radicalizados por ambas as naccedilotildees Existem vaacuterias hipoacuteteses

conforme as quais eacute possiacutevel indagar os motivos desta radicalizaccedilatildeo Alguns consideram que a

doutrina radical do budismo se deve ao gecircnio do monge Boddidharma embora outros

argumentem que o motivo foi o encontro com o daoiacutesmo e o neoconfucionismo A questatildeo pode

permanecer suspensa sem que isto afete a compreensatildeo das bases e dos caminhos do budismo

zen Ao que concerne propriamente agrave introspecccedilatildeo deste conceito fundamental na filosofia

japonesa contemporacircnea (sem embargo o ponto ao qual quero chegar) existem tambeacutem

inuacutemeras controveacutersias embora haja ainda certos pontos solidamente estabelecidos e

mutuamente consentidos que se pode explorar com o intuito de apresentar o problema

O expoente da Escola de Kyōto que pela primeira vez explorou de maneira sistemaacutetica

a questatildeo e a colocou via uma formulaccedilatildeo filosoacutefica foi Kitarō Nishida (西田 幾多郎) Sua

biografia eacute repleta de elementos que o fariam parecer ou bem um rebelde visionaacuterio ou bem

um precoce e intempestivo intelectual permeado por desacordos com o sistema Sem embargo

muitos pesquisadores descreveram com minuacutecia os percalccedilos de sua biografia Por isto natildeo eacute

de todo liacutecito perder muito tempo aqui descrevendo seu percurso pessoal Gostaria apenas de

atentar para alguns pontos sobremaneira importantes no que tange agrave formaccedilatildeo intelectual de

Nishida

45 Este ponto eacute melhor analisado por Michael Barnhart que considera que de acordo com Nāgārjuna ldquo() natildeo se

pode sustentar nenhuma feacute na realidade ou princiacutepio transcendente nem nenhuma razatildeo humana pode pretender

independecircncia de nenhum tipo ()rdquo (BARNHART 1994 649)

99

Em primeiro lugar Nishida viveu em meio agrave restauraccedilatildeo Meiji (1868-1912) um periacuteodo

que divide a histoacuteria do Japatildeo entre preacute-moderna e moderna no qual a sociedade feudal entra

em decliacutenio e a naccedilatildeo eacute ocidentalizada pela forccedila maior da pressatildeo do Departamento de Estado

Norte-Americano A evidecircncia de que o ensino japonecircs estava defasado frente aos desafios do

novo mundo levou seus governantes a implementarem um sistema educacional semelhante ao

ocidental sendo neste periacuteodo fundadas as primeiras universidades japonesas Nishida

frequentou tais universidades embora tivesse seu proacuteprio percurso intelectual independente

tendo a oportunidade de estudar com Raphael von Koumlber professor russo-alematildeo convidado

para ministrar aulas de filosofia no Japatildeo Com Koumlber Nishida estudou a histoacuteria do

cristianismo (com ecircnfase nas influecircncias do paganismo de Plotino) aleacutem da filosofia criacutetica de

Immanuel Kant e da esteacutetica claacutessica Eacute preciso ponderar ainda que Nishida lia com fluecircncia o

francecircs o alematildeo e o inglecircs tendo acesso integral agraves principais obras da filosofia ocidental Por

outro lado o mesmo estudante dedicado era ainda um pensador radical que encontrou na

tradiccedilatildeo do zen budismo um rumo para suas inquietaccedilotildees

Quando Nishida se aproxima do zen budismo e comeccedila a praticar mediaccedilatildeo o impacto

da destruiccedilatildeo dos meacutetodos convencionais de ensino o afeta largamente ponderando sobretudo

que ele jaacute havia abandonado a escola primaacuteria por desentendimentos com o regime educacional

Um artigo de Lothar Knauth intitulado Life is Tragic The Diary of Nishida Kitaro (1965)

destaca uma passagem do diaacuterio de Nishida onde eacute possiacutevel observar sua postura conforme suas

proacutepria palavras

Faccedila sua proacutepria mente e depois disto natildeo dependa dos outros

Natildeo acredite indiscriminadamente nas palavras das pessoas

Natildeo fale de assuntos que ainda natildeo foram amadurecidos

Natildeo desperdice tempo precioso com fofocas ociosas

A lei da mateacuteria de leitura ler pensar escrever

100

Se vocecirc ainda natildeo terminou de pensar sobre um assunto

natildeo mude para outro

Se vocecirc natildeo terminou de ler um livro ateacute o fim

natildeo pegue outro

Non multa sed multum

Diaacuterio Ano Novo 1897 (NISHIDA apud KNAUTH 1965 337)

O trecho do diaacuterio aponta para um jovem estudioso preocupado com o rigor a tensatildeo

proveniente do impacto surtido pelas leituras Knauth expotildee consecutivamente um outro trecho

do diaacuterio este datado de 1 de julho de 1945 jaacute no final da vida de Nishida que diz

simplesmente ldquoEscurecendo nublado vinte grausrdquo (IDEM IBIDEM) A intenccedilatildeo de Knauth com

isto eacute mostrar a profunda introspecccedilatildeo redundante de um amadurecimento especulativo

proveniente de anos de meditaccedilatildeo Contudo ao que interessa ao propoacutesito do toacutepico vale

salientar que mesmo em um conturbado espiacuterito jovem havia jaacute sempre a necessidade de forccedilar

uma ldquoaquietamentordquo da mente uma busca por um lugar silencioso no qual prevalece a maacutexima

non multa sed multum natildeo muito mas bastante

Entre 1891 e 1897 (a ano da primeira citaccedilatildeo) Nishida praticou incessantemente a

meditaccedilatildeo zen havendo tambeacutem contribuiacutedo para uma revista do secto do Budismo da Terra

Pura Sua transformaccedilatildeo efetiva se daria em 1903 onde uma draacutestica revoluccedilatildeo de seu

entendimento abriria caminho para dar iniacutecio ao seu pensamento efetivo

O homens natildeo podem pensar em morrer natildeo podem ter grandes pensamentos ambos

Kawai e Gordon jaacute disseram isto Tentei pensar em mim mesmo morto aos trinta e um

de dezembro de meu trigeacutesimo quinto ano mas entretanto por mais que tentasse natildeo

podia pensar sobre isto seriamente Natildeo importa o quanto eu pense na morte eu natildeo

consigo me fazer esquecer o mundo (ID IBID 341)

101

Para Knauth este trecho evidencia uma iluminaccedilatildeo por meio da ideia de morte miacutestica e

renascimento O resultado imediato da iluminaccedilatildeo ao contraacuterio do que poderia parecer coerente

aos olhos ocidentais daacute-se na publicaccedilatildeo imediata de um artigo onde Nishida afirma ldquoEu

estava errado em usar o Zen em consideraccedilatildeo ao conhecimento Eu deveria tecirc-lo usado para o

espiacuterito e alma Ateacute eu comeccedilar a sentir pela visatildeo eu natildeo pensarei nem em filosofia nem em

religiatildeordquo (ID IBID 342) Este momento representa uma iluminaccedilatildeo justamente pelo fato de que

haacute sem embargo a assunccedilatildeo de uma correta postura mas com um propoacutesito enganoso ndash a busca

pelo conhecimento havia posto em xeque absolutamente todos os anos dedicados agrave meditaccedilatildeo

era necessaacuterio portanto comeccedilar novamente

Conforme Knauth Nishida iraacute se preparar nos proacuteximos anos para exprimir o potencial

introspectado durante sua iluminaccedilatildeo Trecircs pontos satildeo neste momento fundamentais O

primeiro eacute a leitura profundamente marcante para Nishida de Mestre Eckhart46 O segundo eacute

o falecimento de sua filha Yūko viacutetima de um ataque de bronquite O terceiro (diretamente

ligado ao segundo) eacute sua luta contra o cigarro Em 1923 Nishida escreve ldquoDeste dia em diante

eu morri para mundo Eu vivo em minha proacutepria filosofia Tudo sacrificado tudo sacrificado

Profunda impressionante experiecircnciardquo (ID IBID 344) e em 1927 ldquoAgrave tarde eu estava sozinho

na casa Pensamento quietos Quietamente eu passei metade do dia Eu natildeo fumei nem sequer

um cigarro Renascimento despertado de um sonho ruim De uma aacutervore podre de alguma

maneira um novo broto de vida pode florescer Hoje eu estava quase felizrdquo (ID IBID) O motivo

pelo qual Knauth intitula seu artigo com a expressatildeo Life is Tragic adveacutem justamente desta

postura de Nishida conforme a qual a vida humana natildeo passaria de preocupaccedilotildees e problemas

46 Nishida inicia a leitura de Eckhart em 1907 Seria interessante ao propoacutesito da tese que houvesse uma explanaccedilatildeo

maior e mais cuidadosa do pensamento de Eckhart sobretudo no segundo capiacutetulo onde seu posicionamento eacute

fundamental para o desenvolvimento do neoplatonismo e da miacutestica Contudo esta difiacutecil tarefa tornaria o percurso

da tese demasiado longo e cansativo podendo desviar a atenccedilatildeo primordial do trabalho Todavia possuo a intenccedilatildeo

de desdobrar este toacutepico em um trabalho futuro

102

A despeito de um aparente pessimismo o que pode ser destacado do percurso intelectual

e pessoal de Nishida eacute a profundidade com qual ele sentiu o peso da vida A doutrina buacutedica do

sofrimento eacute por ele absorvida de maneira natildeo soacute transcendente mas ainda imanente Os

escritos de Nishida revelaratildeo natildeo apenas um caminho filosoacutefico no qual se imbricam a tradiccedilatildeo

sapiencial oriental e a filosofia ocidental mas a descriccedilatildeo de uma experiecircncia vital na qual pulsa

a forccedila do pensamento especulativo Por esta e outras razotildees Nishida havia sido nomeado com

o nome laico-budista ldquosunshinrdquo uma polegada de mente

A produccedilatildeo propriamente filosoacutefica de Nishida eacute tanto mais densa quando suas reflexotildees

pessoais anotadas em seu diaacuterio contudo relativamente mais faacuteceis de serem abordadas devido

agrave sistematicidade que permeia os escritos A despeito de suas incompatibilidades com o sistema

de ensino sua carreira acadecircmica foi coroada em 1894 quando recebeu o tiacutetulo de licenciado

em filosofia com uma tese acerca da causalidade em David Hume culminando no professorado

junto agrave Universidade Imperial de Kyōto em 1913 Neste iacutenterim dedicou-se ao desdobramento

das bases de sua filosofia que teria sido divulgada de maneira mais consistente na obra que

havia publicado em 1911 sob o tiacutetulo Zen no kenkyū (善の研究 Investigaccedilatildeo sobre o bem) A

obra mais conhecida de Nishida busca o autodespertar o que significa uma visatildeo dos

fenocircmenos que compreendem a experiecircncia pura evidente desde a movimentaccedilatildeo de uma

loacutegica toacutepica O termo ldquoloacutegica toacutepicardquo eacute propositalmente ambivalente Por um lado indica uma

loacutegica do espaccedilo do lugar por outro denuncia como esse lugar (locus) revela uma locuccedilatildeo um

discurso Eacute neste lugar que se desenvolvem os limites do pensamento Relatos de alunos de

Nishida comentam que ele costumava desenhar no quadro negro trecircs esferas uma sobre a outra

na qual a primeira representaria os acidentes circundaacuteveis ao sujeito a segunda os elementos

incapturaacuteveis pela percepccedilatildeo e a terceira (com linhas tracejadas) a impossibilidade final de

limitaccedilatildeo e a esfera do absoluto insuperaacutevel e infinitamente expansiacutevel nomeado com o signo

do nada absoluto (絶対無 Zettaina) sua interpretaccedilatildeo para a noccedilatildeo budista de śūnyatā

103

Com isto Nishida arrancaria da tradiccedilatildeo zen budista uma negatividade total para

fundamentar sua ideia de experiecircncia pura (純粋経験 Junsui keiken) que segundo ele ldquo() se

entende conhecer os fatos como eles simplesmente satildeo (hellip)rdquo (NISHIDA 1990 3) Estaacute presente

nesta formulaccedilatildeo a absorccedilatildeo de Nishida da psicologia funcional de William James onde se

depura a correspondecircncia da percepccedilatildeo com a teoria da verdade Nishida ainda afirma ldquo() o

que usualmente se refere como experiecircncia eacute via de regra adulterado por algum tipo de

pensamento portanto por experiecircncia pura se entende aquele estado no qual se tem experiecircncia

sem qualquer discriminaccedilatildeo deliberativardquo (IDEM IBIDEM) O claacutessico exemplo pelo qual se ilustra

a condiccedilatildeo primaacuteria da pureza da experiecircncia sugere que em uma expressatildeo como ldquoouvi uma

moscardquo haacute um momento no qual o sujeito que ouve a mosca e seu barulho e o ato mesmo de

ouvir ainda natildeo foram distinguidos O fundamento da realidade enquanto nada absoluto para

Nishida encontra-se neste preciso momento neste instante incapturaacutevel na inefabilidade do

indescritiacutevel Entretanto embora a erudiccedilatildeo filosoacutefica de Nishida fosse sobremaneira evidente

bem como sua dedicaccedilatildeo ao zen budismo suas ideias natildeo estavam livres de criacuteticas em ambas

as esferas

Uma das criacuteticas mais ferrenhas a Nishida foi apresentada por Hajime Tanabe (田辺 元)

seu sucessor na caacutetedra de filosofia da Universidade Imperial de Kyōto (em 1928) Ao contraacuterio

de Nishida que nunca havia saiacutedo do Japatildeo Tanabe foi contemplado com um intercacircmbio pelo

governo japonecircs e teve a oportunidade de estudar ao lado de Husserl e Heidegger Sua maior

obra Zangedo to shite no tetsugaku (懺悔道としての哲學 A filosofia como caminho metanoeacutetico

1946) ocupava-se da superaccedilatildeo do inevitaacutevel problema epistemoloacutegico que envolvia a questatildeo

do nada absoluto propondo o termo metanoeacutetica derivado do grego μετανόησις e vertido ao

japonecircs como zangedo (懺悔道) cuja definiccedilatildeo seria nas palavras de Tanabe ldquoum baacutelsamo para

a dor do pesar e ao mesmo tempo o recurso para uma luz absoluta que paradoxalmente torna

vigente a escuridatildeo sem expulsaacute-lardquo (TANABE 1986 2)

104

Em decorrecircncia da necessidade de superaccedilatildeo do proacuteprio pensamento a criacutetica de Tanabe

emerge no sentido de questionar se a filosofia possui condiccedilotildees de enquadrar o autodespertar

religioso conforme exposto por Nishida de maneira sistemaacutetica Conforme Agustiacuten Jacinto

Zavala ldquoResumidamente ao tomar como base o ponto de vista da religiatildeo a filosofia de

Nishida lsquoconverte o trans-histoacuterico absoluto em principium [princiacutepio fundamental] do sistema

e mediante esta determinaccedilatildeo vem [finalmente] ordenar e organizar o histoacuterico relativordquo

(ZAVALA 2013 106) ao passo que ldquoPor isto Tanabe diz lsquoa duacutevida fundamental que albergo

frente a filosofia mestre Nishida se relaciona com este ponto () se a filosofia trata de tomar o

ponto de vista religioso como seu proacuteprio ponto de vista necessariamente deixa de ser si mesmardquo

(IDEM IBIDEM) sintetizando a preocupaccedilatildeo de Tanabe

Os conflitos entre a filosofia a auto-percepccedilatildeo religiosa a partir do estabelecimento do

nada absoluto como fundamento da realidade passaratildeo ainda prelo crivo de diversos

interlocutores sofrendo alteraccedilotildees e recebendo criacuteticas diretas e indiretas Em linhas gerais o

problema de Tanabe estaacute diretamente relacionado com suas compreensotildees estritas da religiatildeo e

da filosofia Em primeiro lugar porque ao contraacuterio de Nishida (que era praticante do zen

budismo) Tanabe partia antes do budismo Jōdo Shinshū (浄土真宗 A Escola da Terra Pura) do

monge Shinran (親鸞)47 Em segundo lugar devido aos interesses de Tanabe pela filosofia da

histoacuteria de Wilhelm Wundt e Heinrich Rickert aleacutem da influecircncia da Lebensphilosophie e o

compromisso histoacuterico que ele alimentou a partir de tais influecircncias Por este motivo era

necessaacuterio tanto para resolver a disputa entre Nishida e Tanabe quanto para superar os estaacutegios

preliminares das discussotildees da Escola de Kyōto reformular as compreensotildees de filosofia e

religiatildeo algo que acontece de maneira somente com Keiji Nishitani (西谷 啓治)

47 Sobre a fundamentaccedilatildeo budista de Tanabe confira Joaquim Antonio Bernardes Carneiro Monteiro ldquoO lsquoNada

Absolutorsquo em Hajime Tanabe uma avaliaccedilatildeo criacuteticardquo In Antonio Florentino Neto e Oswaldo Giacoia Jr (orgs)

O Nada absoluto e a superaccedilatildeo do niilismo Os fundamentos filosoacuteficos da Escola de Kyoto Campinas Phi 2013

155-188

105

Keiji Nishitani eacute talvez o filoacutesofo japonecircs contemporacircneo mais popular entre os

ocidentais O motivo eacute provavelmente o estilo bastante solto e livre de seus ensaios

principalmente os que chegaram traduzidos ao Ocidente ndash precisamente os mais maduros

compostos apoacutes a deacutecada de 1960 como Shūkyo to wa Nanika (宗敎とは何か O que eacute religiatildeo

1961) e Nihirizumu (ニヒリズム Niilismo 1986) Estes mesmos trabalhos sofreram diversas

criacuteticas por parte de colegas japoneses que o acusaram de se afastar dos modos propriamente

orientais de expressatildeo supostamente sugerindo uma indiferenccedila ao idioma vernaacuteculo agraves

tradiccedilotildees e aos projetos de seus antecessores Sobre isto Nishitani teria argumentado que as

lacunas do pensamento japonecircs tradicional sobretudo as idiomaacuteticas impossibilitariam o

alcance do sentido de alguns problemas colocados pela filosofia ocidental motivo pelo qual a

criaccedilatildeo de novas palavras em japonecircs se mostrava absolutamente necessaacuterios48 Sem embargo

os questionamentos impostos pelos novos tempos natildeo se prendiam agraves fronteiras linguiacutesticas e

invadiam o Japatildeo modernizado e ocidentalizado com especial forccedila razatildeo pela qual a

aproximaccedilatildeo com a filosofia sua interiorizaccedilatildeo e reflexatildeo era simplesmente inevitaacutevel

Todavia embora Nishitani tenha realmente pendido para o pensamento filosoacutefico ou para a

maneira pela qual os pensadores ocidentais liam as questotildees conflituosas da contemporaneidade

ao mesmo tempo ele se voltava com ainda maior introspecccedilatildeo para o budismo sobretudo para

o zen Esta ambiguidade intencional do pensamento de Nishitani se revela nas inquiriccedilotildees por

ele levantadas e pelo teor de suas investigaccedilotildees deixando ver claramente sua preocupaccedilatildeo a

respeito do direcionamento reflexivo da filosofia contemporacircnea

48 James Heisig discute esta questatildeo pormenorizadamente quando apresenta o estilo filosoacutefico de Nishitani

Conforme Heisig a influecircncia ocidental absorvida por Nishitani cujas maiores expressotildees foram a esteacutetica de

Immanuel Kant o idealismo alematildeo (especialmente Friedrich W J Schelling) Plotino e o neoplatonismo a

miacutestica de Mestre Eckhart e Francisco de Assis e ainda a hermenecircutica existencial de Wilhelm Dilthey e Martin

Heidegger deixam bastante claro o porquecirc ele subverte e converte os limites e alcances da linguagem Heisig

ainda destaca o momento no qual Nishitani afirma que nos miacutesticos a confluecircncia e a uniatildeo entre religiatildeo e

filosofia alcanccedilaram um ponto elevado despertando seu profundo interesse por tais autores A despeito dos temas

eleitos Heisig considera ainda que por este mesmo motivo o estilo de Nishitani se mostra superior ao de Tanabe

e ao de Nishida (cf HEISIG 2002 233-242)

106

Eacute possiacutevel considerar que o problema com o qual Nishitani se defrontou e que norteou

o andamento geral de seu pensamento mais cuidadosamente desenvolvido possui um ponto de

partido muito bem estabelecido qual seja o problema do niilismo denunciado na virada do

seacuteculo por autores como Friedrich Nietzsche Ernst Juumlnger Fioacutedor Dostoievsky Ivan

Turgeniev entre outros Em Shūkyo to wa Nanika longe de tentar elucidar o sentido da religiatildeo

em termos sistemaacuteticos a despeito do tiacutetulo do escrito Nishitani parece buscar uma imersatildeo na

tensatildeo contraditoacuteria que os seres humanos possuem com a experiecircncia religiosa segundo ele

ldquo() para quem a religiatildeo natildeo eacute uma necessidade precisamente por esta razatildeo ela eacute uma

necessidade Natildeo haacute nenhuma outra coisa sobre a qual se possa dizer o mesmordquo (NISHITANI

1983 1) Sua definiccedilatildeo de religiatildeo se abre a partir da compreensatildeo de uma ldquoauto-despertar da

realidaderdquo cuja explicaccedilatildeo se apoia no termo inglecircs realize segundo ele um termo polissecircmico

que possuem tanto o sentido de actualize (atualizar mas tambeacutem trazer o sentido real como na

expressatildeo actually cujo significado seria na verdade) quanto de understand (compreender)

Nishitani explica ldquo() estou utilizando esta palavra para indicar que nossa habilidade para

perceber a realidade significa realizar (atualizar) a realidade por si mesma em noacutesrdquo (IDEM IBIDEM

5) Esta explicaccedilatildeo apareceria para confrontar o sentido do niilismo que segundo Nishitani

ldquo() se refere agravequilo que torna sem sentido o sentido da vida () sinalizando nada menos do

que fato de que o despertar da nossa existecircncia penetrou em uma profundidade extraordinaacuteriardquo

(ID IBID 4) Em suma Nishitani possui um alvo muito claro lidar com o abismo existencial

que se deixa ver sobremaneira angustiante nos novos tempos aqueles mesmos ldquotempos de

penuacuteriardquo da ldquonoite do mundordquo anunciados por Nietzsche denunciados por Heidegger e que

assombravam os filoacutesofos que se deparavam com a instituiccedilatildeo da morte do pensamento

reflexivo mediante a Era Atocircmica dos desastres ambientais e dos deliacuterios da modernizaccedilatildeo

industrializaccedilatildeo e tecnologizaccedilatildeo do mundo Fatos inegaacuteveis cuja profunda relaccedilatildeo com a

histoacuteria do pensamento torna seu sentido cada vez mais obscuro

107

A forccedila interpretativa que moveraacute o pensamento de Nishitani rumo agraves tentativas de

resoluccedilatildeo dos conflitos passaraacute em primeiro lugar por sua leitura a respeito do problema do

niilismo e sua relaccedilatildeo com a ideia de śūnyatā Quando Nishitani alcanccedila esta abordagem ele

frisa de iniacutecio que ldquo() um dos maiores e mais fundamentais problemas que todas as religiotildees

encaram em nossos tempos eacute sua relaccedilatildeo com a ciecircnciardquo (IDEM IBIDEM 77) O motivo aparenta

ser a incompatibilidade entre o pensamento cientiacutefico e o sentido essencial da vida religiosa

Nishitani entatildeo argumenta de maneira incisiva (e que sintetiza o propoacutesito desta tese no final

das contas)

Uma em cada dez pessoas escuta que a religiatildeo e a ciecircncia tem cada uma seu proacuteprio

domiacutenio e tarefa e que as duas nunca precisaratildeo entrar em conflito caso permaneccedilam

confinadas em suas fronteiras originais Isto eacute inadequado Uma fronteira separa uma

aacuterea da outra e ao mesmo tempo pertence a ambas as aacutereas Os fundamentos do

conflito entre religiatildeo e ciecircncia repousam certamente em tais fronteiras De fato desde

os tempos mais antigos metafiacutesica e filosofia consistiram na exploraccedilatildeo destas

fronteiras entre ciecircncia e religiatildeo (IDEM IBIDEM 77-78)

Nishitani ainda questiona se tais fronteiras podem ser consideradas realmente fronteiras ou natildeo

admitindo que a ciecircncia contemporacircnea natildeo parece se preocupar com a questatildeo A criteacuterio de

verdade objetiva da ciecircncia com o apoio das leis da natureza seria responsaacutevel por de certo

modo menosprezar o conhecimento religioso e mesmo o conhecimento filosoacutefico em

decorrecircncia da verdade cientiacutefica absoluta Mas Nishitani contesta no contrafluxo da tendecircncia

mais geral ldquoMas eacute realmente tatildeo evidente Uma nova maneira de olhar para o absoluto e o

relativo conforme a qual dois absolutos podem se tornar conjuntos impensaacutevel em uacuteltima

instacircnciardquo (ID IBID 78) Para Nishitani o problema vige no fechamento das possibilidades

108

Natildeo haacute aqui uma criacutetica ldquocientofoacutebicardquo mas o levantamento de uma questatildeo qual seja

ldquoNatildeo possuiacutemos uma outra maneira de conceber o relativo senatildeo em termos de estabelecimento

de limites ndash como fazemos por exemplo quando dividimos uma folha de papel em duas ao

traccedilar uma linha nelardquo (ID IBID 79) Nishitani mostraraacute esta possibilidade por meio de sua

interpretaccedilatildeo da ideia de śūnyatā e como ela desvela uma perspectiva que explora os elementos

abandonados pela objetividade cientiacutefica Seja como for eacute possiacutevel considerar jaacute de iniacutecio que

se concentra aiacute toda a potecircncia do diaacutelogo entre metafiacutesica e negatividade apresentado ao longo

desta tese sendo possiacutevel acompanhar Nishitani em uma definiccedilatildeo do conflito das fronteiras

Agora bem quais as saiacutedas ou quais as possiacuteveis chaves de leitura para o problema que

se apresenta a saber a questatildeo do niilismo contemporacircneo Quando emprego aqui o termo

filosofia comparada intercultural tenho em vista a maneira pela Nishitani (entre outros)

exploram as muacuteltiplas significaccedilotildees de distintas tradiccedilotildees culturais em suas convergecircncias e

divergecircncias para se aproximar do problema e propor novos pontos de vista A respeito

especificamente da questatildeo levantada Nishitani utiliza a proacutepria ambivalecircncia do niilismo para

propor uma soluccedilatildeo Seu caminho seraacute resgatar o sentido pelo qual a ciecircncia se apropria das

leis da natureza e desenvolve a tecnologia argumento que eacute precisamente por meio desta

apropriaccedilatildeo que se revelam a medida da liberdade do homem em relaccedilatildeo agraves fronteiras impostas

pelas leis naturais Contudo haacute uma inversatildeo pela qual o controlador se torna o controlado

Conforme Graham Parkes ldquo() a vida humana e o trabalho como um todo se tornam

progressivamente mecanizados e impessoais (nos termos de Heidegger perdemos nossa lsquolivre

relaccedilatildeorsquo com a teacutecnica e estamos lsquoacorrentadosrsquo agrave ela)rdquo explicando ademais que para Nishitani

ldquoA liberdade advinda das leis da natureza que a tecnologia mecanizada nos concede aleacutem do

sentimento concomitante de distacircncia ou separaccedilatildeo do mundo natural levam os seres humanos

a lsquose comportarem como se eles estivessem completamente fora das leis da naturezarsquordquo (PARKES

2013a 103) Sendo assim a uacutenica via possiacutevel eacute restabelecer esta relaccedilatildeo humano-natureza

109

O ponto de apoio de Nishitani para colocar o problema parte da compreensatildeo que

oferece o neoplatonismo e a miacutestica medieval de Deus como nada absoluto (ele cita

especificamente Mestre Eckhart neste ponto) para trazer agrave tona a questatildeo morte-sive-vida

Nishitani evidencia portanto que ldquoEste ponto natildeo pode repousar em um lado mais distante

aleacutem deste mundo e desta vida terrena que possuiacutemos Deve repousar no lado mais proacuteximo

tanto mais proacuteximo quanto nossas vidas ordinariamente devem serrdquo (ID IBID 90) Aproveitando

a perspectiva budista para elucidar este caminho Nishitani esclarece de maneira precisa que

ldquoŚūnyatā eacute o ponto no qual noacutes nos tornamos manifestos de nossa proacutepria talidade (suchness)

como seres humanos concretos como indiviacuteduos com alma e personalidade Ao mesmo tempo

eacute o ponto no qual tudo ao redor se manifesta para noacutes em sua proacutepria talidade (suchness)rdquo (ID

IBID 90)49 Śūnyatā envolve inevitaacutevel e necessariamente este complexo conceito de talidade

(真如 Shinrsquonyo ndash Tathatā तथता) que eacute sem embargo o berccedilo da meditaccedilatildeo oriental

A talidade eacute a via pela qual se extrai a conduccedilatildeo do sistema eacutetico e moral da sociedade

hinduiacutesta primitiva Sua disseminaccedilatildeo no Extremo Oriente eacute carregada por duas tradiccedilotildees quais

sejam o daoiacutesmo e o budismo Os daoiacutestas centram sua noccedilatildeo de ldquoprinciacutepiordquo por meio da noccedilatildeo

de dao (道) e sua relaccedilatildeo com de (德) O famoso Dao De Jing (道德经) bem como a obra do

mestre Zhuangzi (莊子) satildeo os principais responsaacuteveis por colocarem ambos os princiacutepios (dao

e de) e movimento dinacircmico conforme o qual a relaccedilatildeo com natureza natildeo seria entendida nem

como celestial nem como humana mas como ambas sem que uma tenha privileacutegio sobre a

outra ndash e este seria enfim o caminho (dao) da virtude (de) (cf ZHUANGZI 2009 42)

49 Traduzo aqui suchness por talidade com base na ideia de que Nishitani se refere ao conceito budista de Tathatā

(तथता) que em japonecircs se ilustra com o kanji 真如 (Shinnyo) cuja traduccedilatildeo seria ldquorealidade absolutardquo mas natildeo

corresponde ao peso do termo Sobre isto Antonio Morillas escreve que ldquoO termo tathata eacute de difiacutecil traduccedilatildeo

em castelhano Em inglecircs se verte com as expressotildees suchness (a condiccedilatildeo de ser ldquotalrdquo e como se eacute) thatness (o

fato de ser ldquoissordquo que se eacute) e isness (a qualidade de algo que ldquoeacuterdquo sem mais o que eacute e como eacute) () A talidade

[traduccedilatildeo castelhana de tathata] eacute a noccedilatildeo do fato de que a realidade e as coisas e fenocircmenos que a compotildeem satildeo

ldquoassimrdquo ldquotalrdquo e como satildeo que satildeo ldquoissordquo ldquoo que satildeordquo em seu caraacuteter plenamente desnudo na existecircncia luminosardquo

(MORILLAS 2006 167) Pela proximidade com o idioma castelhano opto aqui por adotar a sugestatildeo de Morillas

110

O budismo especialmente o budismo zen absorveria tais ideias com especial forma nos

pensamentos de Kūkai (空海) e Dōgen Zenji (道元禅師) Graham Parkes explica que para Kūkai

duas ideias se configuram essenciais Sokushinjobutsu (即身成仏) a possibilidade de atingir a

iluminaccedilatildeo na vida presente (em contraste ao princiacutepio budista tradicional conforme o qual

seriam necessaacuterias muitas vidas) e Hosshin seppo (発疹 説法 ) o entendimento de que a

personificaccedilatildeo buacutedica eacute desprovida de forma e imagem natildeo permitindo conceitualizaccedilatildeo nem

verbalizaccedilatildeo (cf PARKES 2003 81) A despeito da uniatildeo suscitada pelo daoiacutesmo o budismo

chinecircs do oitavo seacuteculo estava imerso em uma profunda discussatildeo acerca da questatildeo se a

natureza buacutedica podia ser atribuiacuteda somente aos seres sencientes ou tambeacutem agraves miacutenimas

partiacuteculas de poeira Kūkai articula as duas ideias acima mencionadas e interpretas as chamadas

ldquotrecircs intimidadesrdquo (corpo fala mente) do Dainichi Nyorai (木造大日如来坐像) que representa a

revelaccedilatildeo esoteacuterica dos ensinamentos no Budismo para sustentar o muacutetuo pertencimento da

relaccedilatildeo do todo com suas partes assumindo a natureza buacutedica para absolutamente tudo Ele

escreve neste sentido ldquoEssa existecircncia estaacute naquela e aquela estaacute nessa A Existecircncia do Buda

(Mahāvairocana) eacute a existecircncia dos seres sencientes e vice e versa Eles natildeo satildeo idecircnticos mas

satildeo todavia idecircnticos eles natildeo satildeo diferentes mas satildeo todavia diferentesrdquo (KŪKAI 1972 93)

Jaacute para Dōgen a evocaccedilatildeo da conduta zen se daria por meio de uma miacutestica cotidiana

alimentando a noccedilatildeo de que toda atividade eacute expressatildeo da natureza buacutedica Parkes argumenta

que algumas atividades satildeo especialmente ilustrativas como por exemplo preparar a comida

servi-la e come-la Dōgen citaria um trecho do Vimalakīrti Nirdeśa Sūtra (नवमलकीनत निदश सतर) que

diria ldquoQuando somos unos com a comida que comemos somos unos com todo o universordquo

evocando o uso do silecircncio como veiacuteculo para o esclarecimento do śūnyatā como fundamento

absoluto da realidade (cf PARKES OP CIT 84) As praacuteticas rituais natildeo possuiriam todavia

conotaccedilatildeo lituacutergica pontual e direcionada mas antes a totalidade de uma experiecircncia de vida

religiosa

111

Tanto Kūkai quanto Dōgen influenciaram amplamente o pensamento de Nishitani e o

ponto de vista conforme o qual o śūnyatā direciona uma atitude por meio da qual se mostra a

talidade Tanto no daoiacutesmo de Zhuangzi quando no zen budismo de Kūkai e Dōgen estatildeo em

jogo o aspecto formal a aparecircncia (rūpa shiki) da realidade em torno por um lado e a assunccedilatildeo

da dissoluccedilatildeo do fundamento dessa realidade por outro (sua vacuidade śūnyatā kū) Por este

motivo haacute uma muacutetua reciprocidade entre a totalidade e as coisas entre uno e muacuteltiplo Isto eacute

o que permite a participaccedilatildeo e ao mesmo tempo incorporaccedilatildeo da realidade (dharmakāya)

Contudo natildeo seraacute o mero resgate das tradiccedilotildees orientais que forneceraacute a Nishitani a resposta

ao problema no que concerne ao impacto da questatildeo frente aos tempos de niilismo mas sim o

resultado da confrontaccedilatildeo desta tradiccedilatildeo com a filosofia contemporacircnea ocidental ou sem

embargo o confronto entre as fronteiras

Graham Parkes atenta para uma reivindicaccedilatildeo de Nishitani de haver superado em certa

medida o desenvolvimento das filosofias de pensadores como Hegel Nietzsche e Heidegger

(cf PARKES 2013b 189-190) Contudo no cerne desta proposiccedilatildeo estaacute a ideia de que o que foi

superado natildeo foi propriamente o conteuacutedo da meditaccedilatildeo mas a forma da abordagem ou seja

a perspectiva intercultural privilegiada da comparaccedilatildeo filosoacutefica de Nishitani Com o anuacutencio

da morte de Deus e dos tempos de niilismo em Nietzsche ficou evidente um diagnoacutestico da

atividade humana inerente aos valores que a guiam por um lado e a induccedilatildeo ao desespero

suscitado pela projeccedilatildeo cognoscitiva ao ente por outro A saiacuteda de Nietzsche por meio do

ldquogrande antiacutedotordquo da transvaloraccedilatildeo de todos os valores eacute recebida em Nishitani considerando

trecircs ideias chave de sua leitura budista (1) a constituiccedilatildeo do fundamento da existecircncia como

uma experiecircncia aleacutem da relaccedilatildeo entre sujeito objeto por meio do conceito de (referente agrave noccedilatildeo

de dharma धम) (2) a reaccedilatildeo de retorno ao mesmo de toda atividade (a partir do conceito de

karma कम) e a noccedilatildeo de que natildeo haacute nada que exista independente de circunstacircncias e

condicionamento ou a chamada ldquoco-originaccedilatildeo dependenterdquo (o pratītya-samutpāda परतीतयसमतपाद)

112

Portanto o que em Nietzsche seria postulado como destino enquanto o ldquomesmordquo (o ego

fatum nietzscheano) engendrando um ponto de vista criativo em Nishitani seria entendido

desde a ideia do karma Em Nihirizumu Nishitani escreve acerca deste ponto especiacutefico que

ldquoNeste niacutevel fundamental o mundo se move na esfera do mesmo e o mesmo na esfera do

mundo Esta ideia estaacute proacutexima da ideia budista de karma embora em Nietzsche o ponto de

vista do mesmo como destino eacute fundamentalmente criativordquo (NISHITANI 1990 50) Em termos

mais simples de acordo com Parkes ldquo() o que parece um golpe do destino pode ser entendido

antes como uma parte de nossa proacutepria atividaderdquo (PARKES OP CIT 196) O florescimento desta

consideraccedilatildeo se daacute na afirmaccedilatildeo niezscheana do amor fati e da superaccedilatildeo do abismo da grande

suspeita niilista por meio da grande dor pela qual se renasce o que seraacute entendido em Nishitani

a partir do retorno ao abismo onde ldquo() uma vez que algueacutem eacute libertado do abismo a

necessidade se torna um elemento desta vida de liberdade Neste caso necessidade se torna

uma com a criatividaderdquo (NISHITANI OP CIT 52) Entretanto a ressalva de Nishitani consiste que

a afirmaccedilatildeo resultante da superaccedilatildeo do abismo niilista pode ainda ser superar e que a vontade

de poder eacute ainda uma ldquocoisardquo chamada ldquovontaderdquo (cf IDEM OP CIT 234) cuja uacutenica possibilidade

de ser pensada para aleacutem dos fundamentos que redundam no destino como mesmo seria

justamente o ponto de vista do śūnyatā Uma ilustraccedilatildeo possiacutevel de ldquopara onderdquo este ponto de

vista levaria pode ser encontrada quando Nishitani comenta a arte japonesa de arranjo de flores

a chamada Ikebana (生け花) Ali fica niacutetido qual a postura que se assume quando se daacute conda

da vacuidade da realidade uacuteltima e absoluta Nishitani escreve

Desde a perspectiva de sua natureza fundamental todas as coisas no mundo satildeo

lacircminas de grama sem raiacutezes Tal grama entretanto tenho fincado suas raiacutezes no solo

esconde a si mesma em sua fundamental ausecircncia de raiacutezes () sendo cortadas de suas

raiacutezes as flores satildeo feitas pela primeira vez pela manifestaccedilatildeo minuciosa de sua

natureza fundamenta ndash sua falta de raiacutezes (IDEM 2011 1199)

113

Ao fim e ao cabo Nishitani estaacute chamando atenccedilatildeo para uma aprendizagem decorrente da ldquoco-

originaccedilatildeo dependenterdquo a partir da natureza Sobre este ponto e sua relaccedilatildeo com o niilismo

Parkes escreve ldquo() noacutes humanos diferimos de outros entes por meio da possibilidade de nos

tornamos conscientes de nossa proacutepria finitude no estado da niilidade (kyomu) um tipo de

ldquovacuidade ocardquo que eacute uma antecacircmara para a vacuidade criativa (śūnyatā kū)rdquo (PARKES OP

CIT 112) Resumidamente o ponto de vista do śūnyatā se configura para Nishitani a partir da

tradiccedilatildeo do zen budismo oriental e de sua leitura da filosofia ocidental como uma iluminaccedilatildeo

a respeito do fundamento da realidade enquanto vacuidade evidenciado sobremaneira pelo

abismo do niilismo contemporacircneo e que direciona o ser humano para uma vacuidade criativa

na qual sua relaccedilatildeo com as coisas congrega tudo em uma mesma natureza buacutedica ou seja o

lugar onde as flores o arranjo o florista e o ato de fazer o arranjo satildeo a mesma coisa ou o lugar

onde a mosca o anjo Deus e o eu satildeo o mesmo

114

CONCLUSAtildeO

Durante o primeiro semestre de 2011 estava profundamente motivado com a preparaccedilatildeo do

texto final desta tese doutoral Ocupava-me ao mesmo tempo das pesquisas leituras

sistematizaccedilatildeo dos esquemas defesa da versatildeo do final do projeto e dos cursos que iria ministrar

na Universidade Federal do Rio Grande do Norte nos meses seguintes A abordagem agrave histoacuteria

da metafiacutesica agrave tradiccedilatildeo do neoplatonismo e agrave filosofia japonesa contemporacircnea atingiam-me

simultaneamente por meio de muacuteltiplas construccedilotildees conceituais interligadas pela lucidez

provocada mediante a histoacuteria dos efeitos de cada ambiente temaacutetica Contudo ao 11 de marccedilo

daquele ano foi transmitida uma notiacutecia que imediatamente cessou minha produccedilatildeo e

empolgaccedilatildeo com todo e qualquer toacutepico Os jornais incessantemente transmitiam as uacuteltimas

notiacutecias a respeito de um terremoto seguido por um tsunami que havia atingido o Japatildeo e

danificado a estrutura da usina nuclear de Fukushima na cidade de Ōkuma expondo a

comunidade da regiatildeo agrave alarmantes niacuteveis de radioatividade O desastre ambiental seria

considerado algum tempo mais tarde a maior cataacutestrofe nuclear desde Chernobyl em 1986

Evidentemente como havia ocorrido tambeacutem em 2001 durante o ataque terrorista ao

World Trade Center em Nova Iorque as reportagens que chocavam o mundo se tornariam

rapidamente repetitivas e esgotariam o puacuteblico O motivo pelo qual se daria tal neutralizaccedilatildeo e

letargia frente aos fatos foi denunciado por Slavoj Žižek na obra The Year of Dreaming

Dangerously (2012) Ele pondera os eventos destrutivos de 2011 tais quais a Primavera Aacuterabe

e o Occupy Wall Street desde a neutralizaccedilatildeo ideoloacutegica promovida pela miacutedia dando margem

agrave interpretaccedilatildeo conforme a qual os veiacuteculos de comunicaccedilatildeo vigentes aniquilam o potencial

emancipatoacuterio dos eventos por meio da pasteurizaccedilatildeo de sua difusatildeo

115

Žižek destaca o termo da liacutengua persa ldquowar nam nihadanrdquo cujo abstruso significado

seria em linhas gerais ldquomatar algueacutem enterrar seu corpo e plantar flores sobre sua cova para

esconder o cadaacuteverrdquo Para Žižek os meios de comunicaccedilatildeo do capitalismo global destroem a

absorccedilatildeo propriamente humana dos eventos do mundo contemporacircneo exatamente neste

mesmo sentido (cf ŽIŽEK 2012 9) Sem sombra de duacutevidas o mesmo se daria em relaccedilatildeo ao

desastre de Fukushima e hoje trecircs anos depois uma pedra foi posta por sobre o assunto e poucas

pessoas sequer se lembram do ocorrido

Entretanto meu denso envolvimento com a filosofia japonesa natildeo permitiu que os

acontecimentos fossem dissolvidos assim tatildeo facilmente Passei um bom tempo tocado pela

calamidade e mesmo ateacute agora ainda tenho dificuldades em lidar com o assunto As

adversidades emotivas todavia natildeo me impediram de pensar com devoccedilatildeo sobre a questatildeo

pelo contraacuterio estimularam ainda mais o rumo da reflexatildeo filosoacutefica

O ano seguinte seria marcado em meu percurso pessoal pela saiacuteda do paiacutes e realizaccedilatildeo

de estaacutegio sanduiacuteche junto agrave University College Cork (Colaacuteiste na hOllscoile Corcaigh) para

realizar minhas pesquisas sob a supervisatildeo do professor Graham Parkes na Irlanda Parkes

havia publicado no iniacutecio daquele ano um breve artigo intitulado Nuclear Power after

Fukushima 2011 Buddhist and Promethean Perspectives (2012) no qual natildeo apenas analisava

os fatos mas ainda apresentava uma meditaccedilatildeo a respeito de uma filosofia da natureza para

aleacutem das ecologias profundas ou natildeo

Simplificando o assunto o estiacutemulo para o fornecimento de energia nuclear eacute

alimentado pela conclusatildeo de que se trata de uma fonte limpa e autossustentaacutevel em contraste

agrave queima do combustiacutevel e exploraccedilatildeo de recursos foacutesseis ou mesmo aos impactos ambientais

causados pela obstruccedilatildeo de fluxos de aacutegua Aparentemente trata-se de uma soluccedilatildeo emergente

frente ao ainda ineficaz suporte das energias ecologicamente viaacuteveis como a eoacutelica e a solar

116

Parkes pontua sobre isto que ldquoA questatildeo crucial natildeo diz respeito aos meacuteritos relativos

e agraves desvantagens do poder nuclear versus a energia dos combustiacuteveis foacutesseis Antes trata-se

de pensar o que norteia nosso desejo de consumir tanta energia em primeiro lugarrdquo (PARKES

2012 103) O posicionamento diz respeito a um ldquopasso atraacutesrdquo A pergunta eacute o que move no

final das contas o irredutiacutevel e irrefreaacutevel iacutempeto de explorar todos os recursos naturais para

fomentar a manutenccedilatildeo da vida humana na Terra Mesmo com a leitura do escrito eu

particularmente soacute conseguiria compreender o direcionamento proposto por Parkes apoacutes

acompanhar seus seminaacuterios sobre filosofias da natureza entre Ocidente e Oriente no qual

ficariam claras as bases pelas quais ele questionava a conduta contemporacircnea face agrave crise

ambiental

Entretanto quando me deparei com as primeiras leituras oferecidas por Parkes (muitas

das quais constam na bibliografia desta tese) natildeo fui acometido pelo espanto da novidade mas

pela pulsatildeo da comparaccedilatildeo A experiecircncia que jaacute havia acumulado sob a orientaccedilatildeo do

professor Oscar Federico Bauchwitz durante meus anos de pesquisa acadecircmica dedicado agrave

leitura de Nietzsche Heidegger e da tradiccedilatildeo do neoplatonismo e da miacutestica medieval proveu-

me de uma arquitetocircnica meditativa que com a aproximaccedilatildeo com a filosofia oriental apenas

nutriu imediata empatia e introspecccedilatildeo Sendo assim quando congreguei o focirclego e as forccedilas

necessaacuterias para encerrar este trabalho natildeo tinha em mente uma tese levantada de um mero

problema particular mas um longo percurso especulativo que ao longo das paacuteginas aqui

apresentadas tentei descrever da melhor maneira possiacutevel

Sobreveio-me durante os termos finais uma intensa obrigaccedilatildeo de sustentar que a uacutenica

via possiacutevel para enfrentar os problemas filosoacutefico contemporacircneos era a instauraccedilatildeo de um

retorno aos fundamentos por meio da interculturalidade Portanto a conclusatildeo desta tese soacute

pode caminhar rumo agrave elucidaccedilatildeo de quais fundamentos no final das contas satildeo estes que estatildeo

aqui e ali indicados no interior do trabalho

117

Em 1953 Martin Heidegger pronunciou a conferecircncia intitulada Die Frage nach

Technik O escrito eacute talvez uma de suas mais claras expressotildees acerca de sua anaacutelise da

consumaccedilatildeo da histoacuteria da metafiacutesica a instauraccedilatildeo do niilismo europeu e o advento da Era

Teacutecnica Paralelamente durante o mesmo periacuteodo (na verdade em 1954) Nishitani finalizava

a composiccedilatildeo de seu ensaio sobre ldquoNiilismo e Śūnyatārdquo mais tarde incluiacutedo no volume Shūkyo

to wa Nanika abordado aqui ao longo do terceiro capiacutetulo Como foi possiacutevel observar em

Nishitani a saiacuteda do ponto de vista da vacuidade ou nada absoluto demandava a busca por

uma postura interior do ser humano na qual se tornava evidente nada mais senatildeo o elemento

inexplicaacutevel e inexprimiacutevel do fundamento uacuteltimo da realidade que era assumido agora como

oriente para o comportamento humano frente ao colapso do novo mundo A dificuldade inerente

de absorver a proposta de Nishitani todavia eacute ilustrada de maneira praacutetica quando ele aborda

uma questatildeo particular qual seja a relaccedilatildeo entre ser humano e natureza na imagem do jardim

zen Noacutes estamos dentro do jardim e natildeo somos apenas espectadores porque noacutes nos tornamos

parte da real manifestaccedilatildeo da expressatildeo da proacutepria experiecircncia iluminadora do arquiteto do

jardim O jardim eacute meu mestre Zen agora e eacute seu mestre Zen tambeacutem (NISHITANI 1992 55)

Quando Heidegger indica em sua conferecircncia que a essecircncia da teacutecnica natildeo eacute ela mesma nada

teacutecnico ele estaacute em um movimento similar ao de Nishitani chamando atenccedilatildeo para o fato de

que eacute necessaacuterio tambeacutem retornar a algo que natildeo pode ser submetido agrave objetividade cientiacutefica

da relaccedilatildeo sujeito-objeto que sustenta a tecnicizaccedilatildeo do mundo Neste sentido a saiacuteda de

Heidegger eacute ilustrada por meio de um dos conceitos mais enigmaacuteticos de toda sua obra

Gelassenheit Heidegger escreve ldquoTalvez se oculte na Gelassenheit uma accedilatildeo mais elevada do

que em todos os atos do mundo e do que nas maquinaccedilotildees das reliacutequias humanasrdquo (HEIDEGGER

1983a 41) O sentido contudo permanece oculto Resta apenas a ideia de que esta postura

evocada por Heidegger demanda um ldquodeixarrdquo (lassen) que atina para um recolhimento da

paradoxal ambiguidade do que se revela na essecircncia do humano

118

Ressoa tanto em Heidegger quanto em Nishitani uma raiz comum aquela na qual se

ldquoRenuncia aos sentidos agraves operaccedilotildees intelectuais a todo sensiacutevel e ao inteligiacutevelrdquo ainda mais

aquela onde se pede ldquoDespoja-te de todas as coisas que satildeo e ainda das que natildeo satildeo Deixa de

lado teu entender e esforccedila-te por subir o mais que possa ateacute unir-se com aquele que estaacute mais

aleacutem de todo ser e todo saberrdquo Estas palavras aqui propositalmente citadas sem a indicaccedilatildeo

bibliograacutefica satildeo do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita onde neoplatonismo e miacutestica se encontram

no caminho da negatividade Tanto o ldquoprestar atenccedilatildeo aos misteacuterios da naturezardquo em Nishitani

quando a ldquoabstenccedilatildeo da vontade por meio da natildeo-vontaderdquo o ldquoquerer o natildeo-quererrdquo em

Heidegger estatildeo depositados nas sentenccedilas do miacutestico siacuterio

Agora qual eacute este lugar ou natildeo-lugar aleacutem de todo ser e todo saber O que se revela

por meio do despojo e da supressatildeo de todo saber e todo o dizer Esta pergunta natildeo eacute respondida

Natildeo pode ser respondida O que se desvela aiacute eacute justamente o incoacutegnito o misteacuterio Como reagir

portanto frente a tal proposta de em meio a existecircncia contemporacircnea remar no contrafluxo

do sentido do mundo e buscar uma quietude absoluta no silecircncio que adveacutem do misteacuterio da

existecircncia Agrave esta pergunta tampouco se ofereceraacute resposta mas desta vez porque ela jaacute estaacute

respondida A reaccedilatildeo foi nomeada com diversos termos ao longo da histoacuteria recebendo distintas

designaccedilotildees Algumas tradiccedilotildees orientais optam por chama-la ldquoiluminaccedilatildeordquo

Por fim o conflito das fronteiras aqui abordado natildeo eacute um evento especiacutefico um

momento ou instante captaacutevel uma situaccedilatildeo ou circunstacircncia particular O conflito das

fronteiras eacute um caminho ou melhor uma caminhada Uma caminhada rumo ao desconhecido

cujo uacutenico sinal evidente acena para o clamor de um silecircncio ensurdecedor indicando que jaacute eacute

hora de se recolher

119

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5

AGRADECIMENTOS

Pelos anos de orientaccedilatildeo e suporte pela incansaacutevel e paciente instruccedilatildeo pelo sempre presente

companheirismo e por tornar possiacutevel o caminho percorrido agradeccedilo ao Prof Dr Oscar

Federico Bauchwitz Pela hospitalidade e cortesia pelos conselhos e indicaccedilotildees pelos diaacutelogos

e por abrir um novo horizonte especulativo para muito aleacutem do trabalho acadecircmico agradeccedilo

ao Prof Dr Graham Parkes

Pela oportunidade de discussatildeo e criacuteticas pela atenccedilatildeo na leitura do trabalho e pelos

inestimaacuteveis acreacutescimos agradeccedilo aos membros das bancas de qualificaccedilatildeo e defesa Profa

Dra Claudia DrsquoAmico Prof Dr Leonel Ribeiro dos Santos Dr Edrisi de Arauacutejo Fernandes e

Profa Dra Gisele Amaral dos Santos

Agradeccedilo ao Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da Universidade Federal

da Paraiacuteba Universidade Federal de Pernambuco e Universidade Federal do Rio Grande do

Norte pela aceitaccedilatildeo do projeto de tese doutoral Agradeccedilo agrave University College Cork (Colaacuteiste

na hOllscoile Corcaigh) pela recepccedilatildeo do estaacutegio sanduiacuteche Agradeccedilo ao Trinity College

Dublin (Colaacuteiste na Triacuteonoacuteide Baile Aacutetha Cliath) pela oportunidade de frequentar os

seminaacuterios e bibliotecas Agradeccedilo agrave Alianccedila Cultural Brasil-Japatildeo e agrave Biblioteca Joatildeo Hideo

Matsumoto e ao Instituto Goethe de Satildeo Paulo e sua biblioteca Agradeccedilo ao Instituto Paulista

de Sacircnscrito e ao Prof Dr Adriano Aprigliano Agradeccedilo ainda agrave Coordenaccedilatildeo de

Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior pelo fomento da tese doutoral e do estaacutegio no

exterior

Agradeccedilo agraves pessoas que direta ou indiretamente contribuiacuteram no processo de

composiccedilatildeo da tese Alan Marinho Lopes Dax Moraes Marcus Vinicius Cavalcante Dantas

Tulio Madson de Oliveira Galvatildeo Sara Barrera Rubio Bastien Duval Javier Coloacuten Joseph

Sexton Agnieszka Klęczar Rodrigo Ferreira Braga Abrahatildeo Marcelo Ferreira Braga e Carla

Almeida

Agradeccedilo especialmente agrave Thaiacutes Ricci Conesa pelo apoio e pela motivaccedilatildeo sem os

quais natildeo concluiria este trabalho Finally yet importantly agradeccedilo ao absoluto integral e

irrestrito apoio de meus pais Luiz Pinto Teixeira e Tereza Cristina Fontes

6

Eacute preciso ainda ter caos dentro de si para dar

luz a uma estrela danccedilante

Friedrich Nietzsche Assim falou Zaratustra

7

RESUMO

O conflito das fronteiras se desdobra como um percurso natural da histoacuteria do pensamento

humano Torna-se manifesto todavia apenas mediante um expliacutecito choque cultural que

evidencia distintas formataccedilotildees conceituais Pensar este conflito pode esclarecer os enlaces

responsaacuteveis pelo desenvolvimento do pensamento contemporacircneo Esta tese pretende analisar

em um primeiro momento a histoacuteria do pensamento enquanto metafiacutesica apresentando um

diagnoacutestico da maneira pela qual o Ocidente impinge sua loacutegica categoacuterica Por conseguinte

apresenta a tradiccedilatildeo da negatividade evidenciando um pensamento para aleacutem da ontologia

claacutessica mediante uma henologia e uma meontologia no neoplatonismo e na miacutestica medieval

Por fim expotildee o pensamento do Extremo Oriente como possiblidade de recepccedilatildeo

contemporacircnea da negatividade e escapatoacuteria para a formataccedilatildeo ocidentalizante da filosofia

vigente

Palavras-chave Fronteiras Metafiacutesica Negatividade Extremo Oriente

8

ABSTRACT

The conflict of borderlines unfolds itself as a natural path in history of human thought It

becomes clear only through an explicit cultural clash which conveys distinct conceptual

formatting Thinking this conflict might enlighten the bindings responsible for development of

contemporary way of thought This thesis intent to analyse in a first moment the history of

thought as Metaphysics presenting a diagnostic towards the way through which the West

impinges its categorical logic Thereafter presents the tradition of Negativity showing a

thinking beyond Classic Ontology through a Henology and a Meontology in Neoplatonism and

Medieval Mysticism At the end exposes the Far Eastern thought as possibility of contemporary

reception of Negativity and escape from the Westernizer formatting of contemporary

philosophy

Key words Frontiers Metaphysics Negativity Far East

9

ZUSAMMENFASSUNG

Der Konflikt der Grenzen entfaltet sich als einen natuumlrlichen Weg in der Geschichte des

menschlichen Denkens Es wird nur klar durch eine explizite Kulturkampf die unterschiedliche

konzeptionelle Formatierung vermittelt Denken dieses Konflikts koumlnnte die Bindungen fuumlr die

Entwicklung der zeitgenoumlssischen Denkweise verantwortlich zu erleuchten Diese These

versuchen zu analysieren in einem ersten Moment die Geschichte des Denkens als Metaphysik

praumlsentiert eine Diagnose auf die Moumlglichkeit durch die der Westen trifft seine kategorische

Logik Danach praumlsentiert die Tradition der Negativitaumlt zeigt ein Denken jenseits Klassische

Ontologie durch eine Henologie und Meontologie im Neuplatonismus und mittelalterliche

Mystik Am Ende macht der Fernost gedacht als Moumlglichkeit der zeitgenoumlssischen Rezeption

von Negativitaumlt und Flucht aus der Westler Formatierung der zeitgenoumlssischen Philosophie

Schuumlsselwoumlrter Frontiers Metaphysik Negativitaumlt Fernost

10

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 11

1 ONTOLOGIA A SUBSTANTIVACcedilAtildeO DO OCIDENTE E O PROBLEMA DA METAFIacuteSICA 28

ENQUANTO DELIMITACcedilAtildeO DAS FRONTEIRAS DO PENSAMENTO

2 O CAMINHO DA NEGATIVIDADE HENOLOGIA E MEONTOLOGIA E A ULTRAPASSAGEM 61

DOS LIMITES DA METAFIacuteSICA

3 O EXTREMO ORIENTE E O CONFLITO DAS FRONTEIRAS A FILOSOFIA COMPARADA 89

INTERCULTURAL COMO CHAVE DE LEITURA PARA ALGUNS PROBLEMAS DO

PENSAMENTO CONTEMPORAcircNEO

CONCLUSAtildeO 113

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 119

11

INTRODUCcedilAtildeO

Aos 16 de abril de 2010 sob a avaliaccedilatildeo de uma banca composta pelos professores Oscar

Federico Bauchwitz Gisele Amaral dos Santos e Acylene Maria Cabral Ferreira defendi a

dissertaccedilatildeo de mestrado intitulada A caminho da fronteira Embora possa ainda dedicar mais

dez anos agrave correta composiccedilatildeo estiliacutestica daquele texto aleacutem da estruturaccedilatildeo dos argumentos

laacute natildeo tatildeo bem encadeados imagino ter alcanccedilado o objetivo de tornar claro natildeo apenas o intuito

do trabalho mas o problema movimentado pela questatildeo do conflito fronteiriccedilo de uma filosofia

comparada intercultural por meio de uma histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica

A questatildeo ldquoentre Heidegger e os japonesesrdquo (subtiacutetulo da dissertaccedilatildeo) abordada ao longo

dos dois anos de mestrado acadecircmico referia-se a uma virada de pontos de vista se em um

primeiro momento os orientais se perguntavam o quecirc a filosofia ocidental podia oferecer ao

pensamento e desenvolvimento do Extremo Oriente em um segundo momento os ocidentais

passaram a se perguntar de que forma os japoneses podiam acrescentar agrave filosofia um elemento

meditativo perdido no periacuteodo da consumaccedilatildeo da teacutecnica moderna e do cientificismo desde

suas perspectivas milenares de pensamento reflexivo

Ao passo em que a pesquisa ia se desenvolvendo o trabalho caminhou paulatinamente

rumo ao impacto violento surtido pelo diaacutelogo entre limites bem delineados de um Ocidente

estruturalmente metafiacutesico e um Oriente especulativo quase inefaacutevel para um leitor ocidental

A conclusatildeo extraiacuteda do caminho percorrido entre os anos de 2008 e 2010 apresentou antes de

qualquer soluccedilatildeo a constataccedilatildeo da instalaccedilatildeo de uma impertinecircncia petrificada no seio da

filosofia contemporacircnea sobre a qual pouco se pode acrescentar na dissoluccedilatildeo de problemas

mas muito se pode desdobrar no que tange ao entrelaccedilamento do alcance de um grau distinto

de movimentaccedilatildeo das arquitetocircnicas conceituais

12

Embora tais palavras pareccedilam abstratas em demasia (e de fato satildeo) o foco atingido se

concentrou em uma inquiriccedilatildeo a respeito do pensamento da linguagem e da verdade a partir

de um inusitado enigma sobre a negatividade do impensaacutevel ou seja sobre o silecircncio que

emerge no preciso momento no qual o pensamento eacute estarrecido e a liacutengua cala

A armadilha construiacuteda a partir das muacuteltiplas tentativas de elaboraccedilatildeo de conceitos afeta

natildeo somente a formataccedilatildeo silogiacutestica do intelecto humano comum mas ainda as

particularidades dos diversos modos de expressatildeo geograficamente distintos Correndo o risco

de se tornar antes uma antropologia filosoacutefica do que propriamente uma histoacuteria e criacutetica da

metafiacutesica o trabalhou refletiu uma anaacutelise agrave proacutepria concepccedilatildeo pela qual se distingue uma

filosofia da outra execrando qualquer nacionalismo filosoacutefico e investigando as questotildees que

envolvem a existecircncia humana dentro de seu modo relacional com o ser e com o ambiente que

a cerca O resultado foi a apresentaccedilatildeo de uma filosofia comparada intercultural que aparece

natildeo simplesmente como um campo disciplina ou subaacuterea da filosofia mas antes como uma

maneira pela qual eacute possiacutevel pensar filosoficamente para aleacutem das fronteiras de uma mera

linguagem de primeira ordem Dentro deste contexto nasce a hipoacutetese do tema o conflito das

fronteiras a partir do pressuposto de uma abordagem aos temas centrais do pensamento

contemporacircneo sustentando a interculturalidade filosoacutefica como aporte central

A proposiccedilatildeo fundamental desta tese adveacutem de alguns questionamentos particulares e

pontuais em um fluxo semelhante ao da dissertaccedilatildeo de 2010 Em abril de 2009 enquanto ainda

trabalhava no texto do mestrado teve lugar no campus da Universidade Federal do Rio Grande

do Norte o III Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica comissionado pelos professores Oscar

Federico Bauchwitz Jaimir Conte Maria da Paz Nunes de Medeiros e Markus Figueira da Silva

O evento marcava a consolidaccedilatildeo da linha de pesquisa em Metafiacutesica do Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Filosofia da universidade trazendo em sua terceira ediccedilatildeo o tema O que eacute

metafiacutesica Em homenagem aos oitenta anos da preleccedilatildeo homocircnima de Martin Heidegger

13

A conferecircncia pronunciada por Heidegger aos 24 de julho de 1929 foi preparada como

aula inaugural para a assunccedilatildeo da caacutetedra de filosofia que antes pertencera a Edmund Husserl

na Albert-Luumldwigs Universitaumlt Freiburg im Breisgau O escrito se tornou um dos mais

emblemaacuteticos conhecidos e discutidos textos de Heidegger Talvez o fator mais impactante da

preleccedilatildeo seja antes mesmo da abordagem temaacutetica o meacutetodo pouco usual conforme o qual o

questionamento eacute elaborado Heidegger inicia a aula dizendo que embora a questatildeo suscite a

expectativa de que se falaraacute sobre a metafiacutesica ele iraacute na verdade discutir uma questatildeo

metafiacutesica particular proporcionando uma movimentaccedilatildeo em seu interior e habilitando a

oportunidade para que a ela apareccedila por si soacute a partir do problema levantado (cf HEIDEGGER

1976 103) Deixar a metafiacutesica se apresentar por si soacute antes do que sobre ela discorrer

evidencia uma feiccedilatildeo um tanto distinta da abordagem de Heidegger ao problema uma de suas

marcas registradas todavia

Raras vezes a tradiccedilatildeo ocidental se deparou com tal niacutevel de heterodoxia no que tange

agrave instruccedilatildeo filosoacutefica (talvez apenas Platatildeo tenha cunhado semelhante meacutetodo ao perseguir o

pescador com o anzol antes de se aproximar da figura do sofista por exemplo ndash natildeo consigo

pensar em outras ilustraccedilotildees agora mesmo embora certamente elas existam) Uma linha de

raciociacutenio como esta aproxima-se muito mais de uma postura oriental

Durante o Coloacutequio aleacutem de retomar pela eneacutesima vez a leitura da preleccedilatildeo de

Heidegger lembro-me de me dedicar agrave leitura da claacutessica obra propedecircutica de Kaiten Nukariya

The Religion of Samurai (1913) a primeira obra sobre zen budismo publicada no Ocidente (em

liacutengua ocidental) Apoacutes uma breve introduccedilatildeo sobre a origem do budismo na Iacutendia e o percurso

de Śākyamuni Siddhārta Gautama (o Buddha Śākyamuni शाकयमनि) Nukariya relata a maneira

pela qual o monge Bodhidharma introduz o budismo na China destacando que seu meacutetodo era

inteiramente diferente dos outros instrutores de ensino ordinaacuterios

14

Sobre Bodhidharma Nukariya relata ldquoEle natildeo explicaria nenhum problema ao

estudante mas simplesmente ajudaacute-lo-ia a ser iluminado colocando-o um abrupto poreacutem eficaz

questionamentordquo (NUKARIYA 2006 10) Com esta metodologia tem iniacutecio a tradiccedilatildeo de

budismo chinecircs nomeada chrsquoan (dʑjen 禪) uma traduccedilatildeo do termo sacircnscrito dhyāna (धयाि) cujo

significado mais geral seria ldquomeditaccedilatildeordquo ou ldquopensamentordquo que futuramente seria lido na

pronuacutencia japonesa (くんよみ kun-yomi) do ideograma como zen (禅 ) Apoacutes expor esta

caracteriacutestica iacutempar do ensino de Bodhidharma Nukariya ainda relata uma breve histoacuteria na

qual um tal Shang Kwang havia requisitado ao mestre que ldquolhe pacificasse a menterdquo

Prontamente Bodhidharma teria respondido ldquoTraga-me aqui sua mente ante mim para que eu

a pacifiquerdquo e Shang Kwang teria replicado ldquomas isto eacute impossiacutevelrdquo recebendo em seguida

a resposta ldquoentatildeo jaacute pacifiquei sua menterdquo Shang Kwang foi instantaneamente iluminado

Certamente Martin Heidegger natildeo exige de seus ouvintes leitores e interlocutores uma

iluminaccedilatildeo tatildeo abrupta e desprovida de raciociacutenio loacutegico mas nem por isto suas reivindicaccedilotildees

satildeo menos ousadas e intensas ou sua meditaccedilatildeo menos profunda Heidegger propocircs diversas

reflexotildees que extraiacutedas de seu contexto especiacutefico configuram-se tatildeo inusitadas quanto as

passagens da tradiccedilatildeo chrsquoan ou zen sendo por vezes consideradas mesmo impertinentes Eacute o

caso de uma de suas mais arrojadas e emblemaacuteticas afirmaccedilotildees ldquoO mais grave eacute que natildeo

pensamosrdquo (HEIDEGGER 2002 6) Desconsiderando o sentido ao qual a sentenccedila pertence

certamente as palavras de Heidegger parecem uma afronta Todavia o leitor atento sabe que

Heidegger se refere agrave distinccedilatildeo entre um pensamento calculador (rechnende Denken) e um

pensamento meditativo (Besinnung) reportando-se ao velamento deste uacuteltimo e da supremacia

exclusiva do primeiro por meio do qual se faz ciecircncia e se daacute o desenvolvimento estrutural da

condiccedilatildeo tecnoloacutegica imperiosa Eacute justamente dentro deste fluxo que Heidegger afirma a

predominacircncia do pensamento cientiacutefico tambeacutem em Was ist Metaphysik

15

Para ingressar no interior da metafiacutesica Heidegger chama atenccedilatildeo ao fato de que a

existecircncia humana eacute hoje sobremaneira norteada pela ciecircncia Embora alguns opositores ainda

resistam agrave tal afirmaccedilatildeo natildeo eacute todavia difiacutecil convencecirc-los do contraacuterio argumentando em

favor da tese de Heidegger Natildeo se trata apenas de afirmar que o ser humano se apoia e confia

uacutenica e exclusivamente (quiccedilaacute mesmo cegamente) na ciecircncia como modo de desenvolvimento

e sustentaccedilatildeo da vida humana na Terra Antes disto e mais grave ainda trata-se de constatar

que a maneira pela qual o ser humano hoje pensa eacute tatildeo somente cientiacutefica mesmo em casos nos

quais o discurso supostamente se volta para um tema espiritual ou de feacute (ou qualquer outro

assunto) ndash a despeito de qualquer pretensa e torta teosofia eacute ainda a teologia a ciecircncia reinante

dos seminaacuterios sem embargo Independente do tema ou assunto da circunstacircncia ou

necessidade a maneira de proceder eacute jaacute sempre cientiacutefica sustentada por uma loacutegica inflexiacutevel

que imputa sua norma de que ldquosendo algo aquilo mesmo isto ou bem eacute ou bem natildeo eacute natildeo

havendo uma terceira opccedilatildeordquo

Em outras palavras parece ter se ocultado na mente humana qualquer outro modo de

pensar que natildeo seja o propriamente cientiacutefico Este modo cientiacutefico de pensar possui algumas

caracteriacutestica pelas quais se pode evidenciaacute-lo estritamente desde um triacuteplice entendimento que

compreende ldquoreferecircncia ao mundordquo ldquoposturardquo e ldquoirrupccedilatildeordquo Heidegger explica estes pontos

ldquoAquilo que na referecircncia ao mundo permanece eacute o ente em si mesmo ndash e mais nada Aquilo

que lidera toda postura eacute o ente em si mesmo ndash e nada mais Aquilo que faz acontecer a

discussatildeo investigativa da irrupccedilatildeo eacute o ente em si mesmo ndash e aleacutem disto nadardquo (IDEM OP CIT

105) A cientificidade da existecircncia humana se expressa mediante uma projeccedilatildeo ao ente e nada

mais Ao afirmar a determinaccedilatildeo da ciecircncia na vida e conduta humanas Heidegger quer deixar

ver sobretudo isto o fato de que hoje soacute eacute validado o discurso de um sujeito cujo objeto

cognosciacutevel eacute um ente este mesmo que subjacente obsta-lhe Dentro da relaccedilatildeo entre sujeito

e objeto toda uma tradiccedilatildeo se fundamenta e doravante prossegue da mesma maneira

16

Fazendo uma revisatildeo dos passos da histoacuteria do pensamento humano seria mais ou menos

faacutecil portanto imaginar como a partir da metafiacutesica claacutessica se desdobra o cientificismo

sobretudo tendo em vista a doutrina das Categorias de Aristoacuteteles aleacutem da tatildeo aclamada

ldquociecircncia do ente enquanto enterdquo Contudo natildeo eacute este o alvo de Heidegger Deixar a metafiacutesica

aparecer por si soacute deve contemplar a totalidade do questionamento proposto e natildeo um

historicismo vulgar Que todo raciociacutenio eacute regulado e direcionado pelo ente facilmente

constata-se Agora bem o que se passa com a outra parte da inquiriccedilatildeo qual seja o ldquonada

maisrdquo Heidegger formula a questatildeo ldquoA ciecircncia natildeo quer saber do nada Mas certamente em

sua permanecircncia ao manifestar sua proacutepria natureza chama o nada para ajudar O que ela

rejeita eacute necessaacuterio para classificaacute-la Que ambiacutegua essecircncia se revela aiacuterdquo (ID IBIDEM 106) Ao

perquirir o ente e aleacutem disto nada o elemento que confere a exatidatildeo de sua pesquisa eacute

auxiliado pelo ldquonadardquo ou seja trata-se disto e nada mais (por mais redundante e ambivalente

que soe ateacute mesmo um pouco non sense) Heidegger pergunta ldquoO que acontece com o nadardquo

(ID IBID) ou ainda para onde vai esse nada em meio agrave existecircncia cientiacutefica

Eacute justamente a inusitada apariccedilatildeo deste nada que revela o incocircmodo de um elemento

impensaacutevel e inexprimiacutevel que natildeo se dobra ante agrave relaccedilatildeo sujeito-objeto Natildeo eacute preciso aqui

destrinchar todo o caminho percorrido por Heidegger em Was ist Metaphysik Trata-se de um

texto bastante lido e amplamente comentado Basta apenas pontuar a sentenccedila central da

conferecircncia (ou a pergunta-condutora a Leitfrage) por meio da qual emerge a resposta agrave

questatildeo ldquoo que eacute metafiacutesicardquo ldquoPor que haacute absolutamente o ente e natildeo antes nadardquo (ID IBID

122) O extraordinaacuterio da questatildeo eacute justamente a capacidade do ser humano em por ela

perguntar A capacidade de questionar ldquopor que natildeo nadardquo define uma disposiccedilatildeo fundamental

da existecircncia quiccedilaacute mesmo aquela ocultada pelo modo cientiacutefico de existir (ou seja

paradoxalmente este mesmo modo eacute responsaacutevel por evidenciar o que nele se perde)

17

A disposiccedilatildeo que regula a eleiccedilatildeo do modo cientiacutefico de pensar tem em vista

salvaguardar o humano do abismo (da falta de fundamento) que se abre quando o nada emerge

silencia o discurso e joga o ser humano em uma situaccedilatildeo incocircmoda uma anguacutestia profunda

Quase como um mestre zen Heidegger deixa a metafiacutesica se abrir natildeo pela pergunta nem

sequer pela acircnsia de prover ao interlocutor (ou a si mesmo) uma resposta mas pela simples

possibilidade e capacidade de perguntar A metafiacutesica neste sentido perdura antes como uma

decisatildeo Ao que parece por este motivo Heidegger cita um trecho de Eacutedipo em Colonos de

Soacutefocles no posfaacutecio agrave preleccedilatildeo (em 1943) destacando os versos (em sua traduccedilatildeo particular

por mim aqui pobremente e quiccedilaacute mesmo irresponsavelmente adaptada) que dizem

ἀλλ᾽ ἀποπαύετε μηδ᾽ ἐπὶ πλείω

θρῆνον ἐγείρετε˙

πάντως γὰρ ἔχει τάδε κῡρος

Mas paremos e nunca mais a partir de agora

despertaremos o lamento

Em todos os lugares se deteacutem o evento

assegurando-lhe uma decisatildeo pela conclusatildeo (ID IBID 312)

A ldquodecisatildeo pela conclusatildeordquo coloniza todos os lugares e se deteacutem a partir de agora em uma

posiccedilatildeo da qual natildeo mais se sairaacute A anguacutestia revelada a partir do pensamento em torno ao

nada manifesta os limites da linguagem e vislumbra o destino do ente no ser em sua plenitude

e predominacircncia Mas para aleacutem da constataccedilatildeo da indigecircncia da linguagem haacute todavia uma

possibilidade de abordar efetivamente esse nada Como eacute possiacutevel pensar para aleacutem da

delimitaccedilatildeo entificante da referecircncia ao mundo da postura e da irrupccedilatildeo Haacute um caminho de

ultrapassagem e superaccedilatildeo possiacutevel ainda nos dias de hoje

18

Ao passo em que avanccedilava nas leituras e Heidegger e em algumas outras esta se tornou

a pergunta-chave pela qual imaginava atingir certo direcionamento temaacutetico A despeito da

disposiccedilatildeo de humor apresentada na conferecircncia bem como das consideraccedilotildees do posfaacutecio de

1943 os trabalhos de Heidegger dos anos de 1930 em diante datildeo a entender um claro

direcionamento pelo qual os elementos abandonados pela entificaccedilatildeo do pensamento podem ser

evidenciados qual seja a partir da poesia Os versos de Soacutefocles segundo o proacuteprio Heidegger

ldquoa uacuteltima poesia do uacuteltimo poeta gregordquo natildeo estatildeo ali dispostos sem motivo Tambeacutem natildeo eacute

sem razatildeo que a partir de aiacute haacute uma incansaacutevel busca pela poesia de Friedrich Houmllderlin (aleacutem

de Georg Trakl Stephan George Rainer Maria Rilke e de outros poetas escolhidos por

Heidegger) Ateacute certo ponto eacute possiacutevel afirmar que Heidegger encontra na poesia a

possibilidade de superar a linguagem por meio da proacutepria linguagem Em alguns outros

momentos uma meditaccedilatildeo de teor semelhante aparece como no encontro entre Heidegger e os

japoneses (como apresentei na dissertaccedilatildeo de 2010) Contudo restava ainda buscar os modos

de reflexatildeo que natildeo simplesmente podiam ir aleacutem da expressatildeo da ciecircncia do ente enquanto

ente mas ainda colocaacute-la em questionamento mediante outros meacutetodos

Foi na abertura do III Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica que minhas inquietaccedilotildees

comeccedilaram a se asseverar e ganhar corpo para o que viria a ser esta tese A conferecircncia

inaugural do evento foi sobremaneira marcante neste processo O professor Gilvan Fogel da

Universidade Federal do Rio Janeiro havia sido convidado para encerrar o primeiro dia de

evento Ele apresentou naquela noite a conferecircncia O que eacute metafiacutesica Como ele mesmo frisou

ldquonatildeo a pergunta mas a respostardquo Havia sem embargo a intenccedilatildeo de responder a pergunta

em um certo direcionamento eacute claro O texto vinha ainda acompanhado de um subtiacutetulo (com

o qual foi publicado como tiacutetulo oficial alguns anos depois diga-se de passagem) Sobre a

metafiacutesica ou a respeito do jejum O mote para o subtiacutetulo o proacuteprio professor o explica na

passagem inicial do texto que gostaria de citar por completo agora mesmo

19

O subtiacutetulo pode soar estranho insoacutelito e natildeo muito seacuterio Mas pelo que ele insinua

pretende anunciar algo seacuterio mesmo muito seacuterio a saber a metafiacutesica E a inspiraccedilatildeo

ou a motivaccedilatildeo que propicia o encaminhamento para a questatildeo anunciada a

metafiacutesica vem de uma obra igualmente seacuteria muito seacuteria ainda que se possa melhor

que se deva dela se ocupar tambeacutem com grandes e gostosas gargalhadas ndash aquelas que

no destampar do riso sacudindo a barriga bem solta e largada deixam escorrer

viacutesceras pela boca afora Estou me referindo ao Dom Quixote o Engenhoso Fidalgo

Dom Quixote lsquode la Mancharsquo ndash o ldquoda Triste Figurardquo

Entre as poesias que preludiam a primeira parte e que homenageiam seus personagens

maiores temos o uacuteltimo que eacute um diaacutelogo em forma de soneto entre Babieca o

cavalo de El Cid e Rocinante o grande rocim o pangareacute erado de Dom Quixote A

certa altura do diaacutelogo-soneto Babieca pergunta ldquoSeraacute tolice amarrdquo e Rocinante

responde ldquoNatildeo eacute muito prudenterdquo Babieca retruca ldquoEstaacutes metafiacutesicordquo E Rocinante

contesta enfaacutetico ldquoEacute que natildeo comordquo (FOGEL 2011 101)

A passagem sugere que a metafiacutesica eacute antes de tudo coisa de fome Por isto ldquoa respeito do jejumrdquo

denuncia a indisposiccedilatildeo que envolve a metafiacutesica A metafiacutesica eacute portanto certo incocircmodo que

eacute tambeacutem necessidade premente decorrente de certa privaccedilatildeo A partir disto Fogel delineia o

tipo de jejum ao qual se refere natildeo se trata de um jejum nutricional alimentiacutecio mas jejum de

vida conforme ele mesmo diz ldquo() natildeo vida no sentido bioloacutegico mas no sentido banal e

corriqueiro como falamos da vida de ldquonossa vidardquo ndash que ela eacute boa ou ruim ou um buracordquo

(IDEM IBIDEM 102) Esta vida a vida imanente a vida do cotidiano do dia-a-dia esta mesma

que ocupa o tempo e o espaccedilo sofre priva-se absteacutem-se Esta abstenccedilatildeo e privaccedilatildeo satildeo a

condiccedilatildeo pela qual reverbera sua constituiccedilatildeo enquanto sujeito ndash e nasce aiacute uma interpretaccedilatildeo

do que eacute enfim metafiacutesica A partir da conferecircncia de Fogel aleacutem de algumas outras

consideraccedilotildees comecei a ponderar a maneira pela qual abordaria o problema

20

Natildeo por meio de uma definiccedilatildeo conceitual acontecimento histoacuterico ou muacutetuo

consentimento temaacutetico mas por meio de uma experiecircncia de pensamento que sem deixar de

lado nenhum dos elementos supracitados configura-se antes como algo intriacutenseco agrave proacutepria

natureza do pensar Ponderando as consideraccedilotildees da conferecircncia de Heidegger a metafiacutesica se

deixa mostrar como uma decisatildeo pela conclusatildeo Um iacutempeto maior do ser humano em

resguardar sua condiccedilatildeo de pacificidade A humanidade teme o caos teme o desalinho receia

o incoacutegnito e inexprimiacutevel Elege por isto seu caminho de seguranccedila com aquilo que lhe eacute

papaacutevel o ente enquanto ente e nada mais Nada quer saber do nada que nada lhe oferece aleacutem

de um indisposto silecircncio um insoacutelito vazio Mediante esta postura embora sob o risco de

ocultar algo em si mesmo que talvez lhe sirva para alcanccedilar siacutetios recocircnditos do misteacuterio de

sua proacutepria existecircncia constitui-se o ser humano um metafiacutesico Sem embargo eacute preciso abster-

se de algo em prol disto ou daquilo que se lhe afigura mais propiacutecio ao momento Fogel enxerga

isto como privaccedilatildeo como jejum como fome Fica muito claro em sua interpretaccedilatildeo o caraacuteter

inflexiacutevel da decisatildeo pela conclusatildeo sobretudo quando traz agrave luz o curioso caso de Vicent van

Gogh

Fogel cita uma carta que van Gogh teria enviado em maio de 1888 a seu irmatildeo Theacuteo

onde descreve sua nova moradia e ao mesmo tempo atelier afirmando que o local eacute pouco

atraente para desenvolver qualquer tipo de flerte ou paquera acrescentando que dificilmente

enxerga como compatiacuteveis o trabalhar e o farrear (faire la noce) A verdade eacute que van Gogh

natildeo possui outra opccedilatildeo senatildeo se privar da diversatildeo do faire la noce natildeo porque eacute asceta ou

abstecircmio nem porque precisa dedicar mais tempo ao seu trabalho ou pagar suas contas (todos

sabem da condiccedilatildeo por vezes paupeacuterrima na qual ele se encontrou ao longo de seu percurso)

mas por ser artista por ser pintor por pintar Urge no artista uma realidade que parece muito

mais real que a vida comum na qual o farrear remete ao contentamento agrave felicidade Natildeo viver

a vida para van Gogh seria natildeo pintar

21

Se viver a vida eacute buscar este contentamento esta felicidade entatildeo van Gogh vive para

natildeo-viver Natildeo-viver se torna paradoxalmente a expressatildeo maacutexima da vida metafisicamente

entendida Fogel completa ldquoE por que natildeo viver este natildeo-viver seria ingratidatildeo Seria isso a

saber a distacircncia o agrave parte um dom um presente uma graccedilardquo (IDEM IBIDEM 105)

acrescentando ainda ldquoA metafiacutesica desde que jejum abstinecircncia de vida de viver seria

igualmente muita vida e natildeo cumpri-la natildeo realizaacute-la isto eacute natildeo pensar uma grande

ingratidatildeordquo (ID IBID) e por fim sugerindo ldquoAqui precisa-se confessar viver natildeo eacute preciso

Pintar pensar fazer quadros fazer metafiacutesica ndash isso eacute precisordquo (ID IBID) Ressalte-se o tom das

inquiriccedilotildees da interrogaccedilatildeo acompanhada pela exclamaccedilatildeo A precisatildeo da qual fala fazendo

menccedilatildeo a Fernando Pessoa eacute a necessidade de justeza de ser preciso e acurado destro

rigorosamente alinhado ao fazer metafiacutesica Assim se configura algo muito iacutentimo e sem

embargo inevitaacutevel na natureza humana

Fogel prossegue sua exposiccedilatildeo chamando ao diaacutelogo o Zaratustra de Friedrich

Nietzsche especificamente a seccedilatildeo intitulada Da Visatildeo e do Enigma na qual reincide o anuacutencio

da famosa doutrina do Eterno Retorno citando o trecho que diz

O homem eacute todavia o mais corajoso animal assim ele supera todo e cada animal Com

o jogo sonoro supera ele tambeacutem a dor Mas a dor humana eacute a dor mais profunda A

coragem tambeacutem indica a tontura morte em abismos e onde estaria o homem senatildeo

em abismos Ele natildeo vecirc a si mesmo ndash vecirc abismos (NIETZSCHE 2005 119)

Para Fogel o ldquoverrdquo natildeo denuncia uma observaccedilatildeo circunvisatildeo ou vislumbre mas antes um

acontecimento uma iluminaccedilatildeo um tornar visiacutevel Torna-se visiacutevel o abismo o sem fundo

sem fundamento Ao que parece quanto mais o ser humano contempla sua proacutepria existecircncia

mais sem chatildeo fica maior eacute a falta de fundamento e com maior radicalidade se abre um abismo

frente aos seus peacutes

22

Eacute possiacutevel todavia prosseguir caminhando ao lado de Nietzsche e Heidegger bem como

por meio das reflexotildees e interpretaccedilotildees oferecidas por Fogel buscando alcanccedilar uma feiccedilatildeo da

vida humana que permita descortinar a proveniecircncia metafiacutesica de seu percurso e ateacute mesmo

suscitando uma ultrapassagem deste fenocircmeno Contudo eacute necessaacuterio ainda precisar com maior

cuidado os termos contidos na questatildeo Faz parte do labor filosoacutefico se afundar mais e mais em

algo que por si soacute jaacute eacute bastante fundo

Natildeo apenas os pensamentos de Nietzsche e Heidegger oferecem uma especulaccedilatildeo de

formidaacutevel profundidade difiacutecil de ser absorvida em primeira matildeo como tambeacutem por vezes

pode se mostrar demasiado complexo empreender um rastreamento do sentido originaacuterio das

palavras e sentenccedilas salvo mediante uma anaacutelise completa (empresa complicadiacutessima

provavelmente impossiacutevel) de suas obras Mesmo assim talvez ainda natildeo se mostre com

suficiente nitidez se natildeo houver de antematildeo uma explanaccedilatildeo das fontes e referecircncias cruzadas

Com estas ideias em mente buscando avanccedilar cada vez mais no tema e sobre ele meditar

com cada vez mais dedicada atenccedilatildeo e profundidade tentando ampliar com ferocidade o

vocabulaacuterio (para fazer minhas as palavras de Marco Lucchesi) outro escrito me sobreveio

durante o processo de composiccedilatildeo das hipoacuteteses contidas neste trabalho Em Nihilismo e

Neoplatonismo (2003) Oscar Federico Bauchwitz traccedila algumas linhas que especificam a

condiccedilatildeo por meio da qual o problema efetivamente se apresenta

Haacute no texto de Bauchwitz tambeacutem um necessaacuterio retorno a Nietzsche e Heidegger Natildeo

apenas dentro do contexto de um estudo da metafiacutesica enquanto histoacuteria intelectual mas ainda

constatando os tempos onde ela se apresenta como formataccedilatildeo do modo de ldquoagir-pensarrdquo torna-

se imprescindiacutevel resgatar a lembranccedila de que ldquo() com Nietzsche se estabelece uma criacutetica da

metafiacutesica que acaba por homologar o seu oacutebitordquo (BAUCHWTIZ 2003b 169) Como explica

Bauchwitz a declaraccedilatildeo da morte da metafiacutesica eacute aquela mesma da morte do platonismo

cristianismo niilismo e outros sinocircnimos para o mesmo fenocircmeno

23

Esta morte natildeo eacute todavia apenas uma declaraccedilatildeo da inexistecircncia corrente do pensamento

metafiacutesico senatildeo sua consumaccedilatildeo total e absoluta A ldquociecircncia do ente enquanto enterdquo entifica

tudo aquilo que outrora foi nomeado vida (φύσις) pelos gregos dos periacuteodos arcaico e claacutessico

ndash das coisas ao redor aos pensamentos e aos deuses A entificaccedilatildeo do mundo em torno eacute sem

sombra de duacutevidas a maneira pela qual a ciecircncia vigente concebe o mundo configurando o que

Heidegger havia chamado de ldquoreferecircncia ao mundordquo A entificaccedilatildeo do pensamento por sua vez

denota a ldquoposturardquo tambeacutem mencionada por Heidegger aquela mesma segundo a qual haacute uma

maneira ldquocorretardquo de pensar Ao passo que a entificaccedilatildeo dos deuses um pouco mais complicada

apresenta-se como ldquoirrupccedilatildeordquo na qual a circunvisatildeo resultante dos dois elementos acima

mencionados denuncia a morte de deus a fuga dos deuses o viver sem o divino sem o

iluminado sem o deslumbre Desatados os laccedilos entre ser humano e divindade Bauchwitz

questiona ldquoO que natildeo pode o homem modernordquo (IDEM IBIDEM 170) questionamento que

poderia ainda ser vertido nos termos (mais ou menos) de Dostoievsky ldquose deus morreu entatildeo

tudo eacute permitidordquo ou ainda nos (mais ou menos novamente) de Heidegger ldquose apagou da

histoacuteria universal o esplendor da divindade Essa eacute a eacutepoca da noite do mundordquo Contudo para

Bauchwitz perdura algo no labor filosoacutefico que torna liacutecito novamente regressar agrave questatildeo Ele

explica que ldquoResgatar a forccedila mais originaacuteria das palavras eacute o ofiacutecio do filoacutesofo Por isso

dizemos que a miacutestica se mostra no fechar de olhos no fechar da bocardquo (ID IBID 173) Recordo-

me acompanhando os seminaacuterios matinais do professor Bauchwitz de ouvir certa vez a

sentenccedila ldquoo miacutestico estaacute sempre em conflito com a linguagemrdquo Conflito ou confronto natildeo me

lembro muito bem Havia de fato escrito a frase literalmente ao peacute da paacutegina de algum livro

(ou alguma fotocoacutepia) que agora mesmo esqueccedilo qual era e natildeo consigo encontrar

Independente das palavras exatas o que se apresenta no texto de Bauchwitz eacute a sugestatildeo de um

caminho para este resgate por meio de um conflito o confronto suscitado pela miacutestica

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Bauchwitz escreve ldquoO miacutestico eacute em primeiro lugar aquele que acolhe o misteacuterio dentro

de si recolhendo em silecircncio o sentido oculto da realidade soacute depois eacute que o silecircncio rompe a

barreira dos dentes para mostrar-se linguagemrdquo (ID IBID) E ainda prossegue especificando que

ldquoPor isso a miacutestica eacute uma experiecircncia radical da liberdade proacutepria Abrindo matildeo de um mundo

que clama sua atenccedilatildeo o miacutestico encontra-se com o que nele eacute totalmente incoacutegnito e

incognosciacutevel um eu que se mostra como puro nadardquo (ID IBID) A maneira pela qual Bauchwitz

iraacute desdobrar a explicaccedilatildeo destas sentenccedilas sobremaneira enigmaacuteticas percorreraacute trecircs

pensadores que marcam a tradiccedilatildeo do neoplatonismo e da chamada miacutestica medieval quais

sejam Pseudo-Dioniacutesio Areopagita Joatildeo Escoto Eriuacutegena e Mestre Eckhart Contudo o que

havia me saltado aos olhos antes da eleiccedilatildeo temaacutetica autoral ou metodoloacutegica havia sido a

sentenccedila ldquoum eu que se mostra como puro nadardquo Jaacute havia encontrado semelhante formulaccedilatildeo

todavia nunca em autores ocidentais Remeti diretamente a maneira pela qual a tradiccedilatildeo

mahāyāna do budismo do leste asiaacutetico havia compreendido a noccedilatildeo do natildeo-si-mesmo ou natildeo-

ego (anātman अितमि) como dissoluccedilatildeo do eu por meio da tensatildeo entre forma (ou fenocircmeno ou

ainda aparecircncia rūpa रप) e nada (ou vacuidade śūnyatā शनयता) Estas ideias derivam

diretamente do chamado Cacircnone Pāḷi tendo sido transmitidas em sacircnscrito pelo Sūtra do

Coraccedilatildeo (Prajntildeāpāramitā Hṛdaya परझञापारनमताहरदय) ateacute alcanccedilarem formas mais refinadas no

budismo chrsquoan e no zen budismo japonecircs assumindo as configuraccedilotildees de ldquoformardquo ou

ldquoaparecircnciardquo enquanto shiki (色) e ldquonadardquo ou ldquovacuidaderdquo enquanto kū (空) elementos centrais

do pensamento da filosofia japonesa contemporacircnea da Escola de Kyōto (e que tambeacutem havia

abordado brevemente em minha dissertaccedilatildeo de mestrado) Tornou-se imperioso investigar ateacute

que ponto tais ideias se aproximam ou comungam de princiacutepios convergentes aleacutem da maneira

como elas repercutem em suas tradiccedilotildees e particularidades Mais uma vez encontrava-me frente

ao sem-fim nuacutemero de possibilidades comparativas e complementares

25

Contudo temia o risco de cair no engodo certa vez denunciado por Immanuel Kant

quando afirmou em seus Prolegomena zu einer jeden kuumlnftigen Metaphyysik (1783) que ldquo()

dificilmente se espera que natildeo seja possiacutevel descobrir analogias para cada nova ideia entre ditos

de eras passadasrdquo (KANT 1911 7) natildeo havendo grande meacuterito nisto e sendo necessaacuterio admitir

que estes historiadores da filosofia ocupados com tal empreendimento devam antes aguardar

que os ldquoverdadeiros filoacutesofosrdquo esgotem as fontes da razatildeo Sob pena de realizar uma mera

comparaccedilatildeo friacutevola (embora com a consciecircncia de que passo longe de ser um ldquoverdadeiro

filoacutesofordquo ao menos no sentido Kantiano ndash talvez o seja em outro digamos mais Ginsbergiano

de pura pretensatildeo mas certamente natildeo muito talento) ocupei-me em corretamente designar o

problema que me afligia de modo que fosse possiacutevel corretamente endireitar o roteiro da tese

Era preciso encontrar um mote mesmo que ele natildeo deixasse ver claramente os passos a serem

percorridos mas que provessem alguma direccedilatildeo

Tendo isto em vista natildeo podia negar que o interesse pelo que ousei chamar de ldquoconflito

das fronteirasrdquo crescia a partir de um ldquopar de viacutergulasrdquo que aparentemente haviam escapado agrave

anaacutelise da histoacuteria do pensamento Em outras palavras um determinado momento no qual o

transcurso metafiacutesico foi levemente desviado em uma guinada espontacircnea e natural como um

marinheiro que sutilmente move o leme para a esquerda ou para direita ao perceber o advento

de uma portentosa onda logo atraacutes de si soltando o motor e deixando o barco ser levado pelo

mar ndash saacutebia decisatildeo em momentos de tormenta (passei por esta situaccedilatildeo certa vez em mar

aberto transitando entre Paraty e uma praia recocircndita Pouso do Cajaiacuteba se natildeo me falha a

memoacuteria gostaria de poder descrever em pormenores a experiecircncia que seria proveitosa ao

leitor em termos ilustrativos mas estava muito enjoado no barco para congregar detalhes

miacutesticos em minha massa cinzenta) E eram momentos de tormenta Como poderiam natildeo ser

Sendo assim estabeleci um conveniente itineraacuterio (ao menos sob meu ponto de vista) que

compartilho antes de iniciar o trabalho

26

O primeiro passo importante eacute estabelecer dentro de quais termos se apresenta a

metafiacutesica pela qual se nomeia a histoacuteria do pensamento ocidental O primeiro capiacutetulo da tese

intitulado Ontologia a substantivaccedilatildeo do Ocidente e a delimitaccedilatildeo das fronteiras do

pensamento ocupa-se de tal apresentaccedilatildeo e eacute na verdade bastante simples apesar do tiacutetulo

pomposo A despeito da abordagem histoacuterico-conceitual desdobrada em um primeiro momento

o capiacutetulo segue em consonacircncia com a avaliaccedilatildeo de Martin Heidegger assumindo-o como

interlocutor e inteacuterprete da histoacuteria e criacutetica da metafiacutesic Haacute aqui uma ecircnfase nas leituras por

meio das quais Heidegger caracterizou de maneira direta a passagem de uma fisiologia grega

claacutessica (por ele nomeada ldquopensamento originaacuteriordquo) para o acircmbito da ontologia latina e o modo

conforme o qual a proacutepria ideia de ldquoserrdquo eacute compreendida de maneira tatildeo somente substantivada

a partir de seu particiacutepio presente ldquoenterdquo Um necessaacuterio retorno cronoloacutegico-regressivo eacute

estabelecido do fim ao iniacutecio da modernidade pontuando autores como Jacob Lorhard e

Francisco Suaacuterez Todavia o objetivo principal do capiacutetulo eacute compreender este modo de

substantivaccedilatildeo e quais as consequecircncias disto para o pensamento em um sentido geral (a

delimitaccedilatildeo de suas fronteiras no final das contas) sem nunca perder de vista o peso aristoteacutelico

da designaccedilatildeo e realizando algumas especificaccedilotildees sobre isto

O segundo capiacutetulo intitulado O caminho da negatividade henologia e meontologia e

a ultrapassagem dos limites da metafiacutesica pretende caracterizar efetivamente essa nomeada

ldquonegatividaderdquo Negatividade que natildeo eacute simplesmente predominacircncia de um ldquonatildeordquo ou partiacutecula

de privaccedilatildeo mas antes assunccedilatildeo de um oxiacutemoro o auscultar de um inaudito Desenvolve-se

como argumento central por meio do qual se evidencia as estruturas baacutesicas de um pensamento

radical a evidenciaccedilatildeo de uma meditaccedilatildeo que jaacute natildeo eacute mais norteada pelo ldquoenterdquo mas sim pelo

ldquounordquo (henologia) neoplatocircnico ou mesmo por uma profunda meditaccedilatildeo em torno ao ldquonadardquo

(meontologia) presentes no neoplatonismo e sobremaneira evidentes no pensamento miacutestico

27

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo nomeado O Extremo Oriente e o conflito das fronteiras a

filosofia comparada intercultural como chave de leitura para alguns problemas do pensamento

contemporacircneo pretende conectar os pontos e resgatar o sentido da tese O capiacutetulo traz uma

breve apresentaccedilatildeo da chamada Escola de Kyōto e a constituiccedilatildeo da filosofia japonesa

contemporacircnea Este eacute o momento no qual eacute possiacutevel observar a recepccedilatildeo contemporacircnea da

filosofia ocidental (tanto dentro da tradiccedilatildeo metafiacutesica quanto ldquoforardquo dela na dita negatividade)

e o diaacutelogo (e siacutentese) com o mundo do Extremo Oriente O objetivo eacute portanto pensar em

comunhatildeo com os pensadores da Escola de Kyōto com especial atenccedilatildeo para Keiji Nishitani

(西谷 啓治) observando suas propostas para anaacutelise e resoluccedilatildeo dos problemas de filosofia

contemporacircnea e buscando um esclarecimento a respeito dos termos indicados

Ao fim e ao cabo a intenccedilatildeo aqui eacute convidar os leitores ao diaacutelogo intercultural

apresentando em um diaacuterio de minhas leituras diferentes nuances e pontos de vista a respeito

de algumas questotildees especiacuteficas e ousando um diagnoacutestico da filosofia contemporacircnea bem

como uma vaacutelvula de escape para a atual condiccedilatildeo do pensamento filosoacutefico Caso a empreitada

logre ecircxito acredito que uma nova conversa se abra e novas ideias venham agrave mente Sem

embargo trata-se de uma composiccedilatildeo acerca de um conflito o conflito das fronteiras

28

ONTOLOGIA A SUBSTANTIVACcedilAtildeO DO OCIDENTE E O PROBLEMA DA METAFIacuteSICA

ENQUANTO DELIMITACcedilAtildeO DAS FRONTEIRAS DO PENSAMENTO

Embora ontologia tenha um sentido bastante amplo (que seraacute melhor explorado ao longo do

capiacutetulo) aleacutem de uma sem-fim variedade de definiccedilotildees distintas de autor para autor (algumas

das quais seratildeo eleitas e apresentadas aqui) entende-se o conceito (de forma simplificada) como

um discurso capaz de reunir em uma unidade a polissemia do verbo ser O resultado eacute a

centralizaccedilatildeo conceitual de qualquer ulterior doutrina a partir da definiccedilatildeo desenrolada desde

sua compreensatildeo Por substantivaccedilatildeo do Ocidente refiro-me aqui agrave corrente historial

responsaacutevel por compreender o verbo ser de modo substantivado a partir de seu particiacutepio

presente ldquoenterdquo A intenccedilatildeo do capiacutetulo portanto concentra-se na investigaccedilatildeo do processo

decorrido dessa substantivaccedilatildeo e quais as consequecircncias disto para o pensamento ocidental e

contemporacircneo em uma concepccedilatildeo geral no que diz respeito agrave delimitaccedilatildeo das fronteiras do

pensamento

Em primeiro lugar gostaria de abrir uma interlocuccedilatildeo com o professor Charles H Kahn

da University of Pennsylvania dada a relevacircncia e pertinecircncia de sua obra The Verb lsquoBersquo in

Ancient Greek (1973) para o desenvolvimento do capiacutetulo Antes de desdobrar em pormenores

seu estudo bastante extenso e detalhado Kahn sustenta a tese de que haacute uma relatividade

linguiacutestica referente ao verbo ser (cf KAHN 2003 1-3) Em sua introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo de 2003 (cf

IDEM IBIDEM vii) Kahn se reposiciona em relaccedilatildeo ao argumento expresso em sua obra clamando

ser uma posiccedilatildeo bastante defensiva e ldquofora de modardquo para os tempos atuais Ainda assim trata-

se de uma hipoacutetese bastante interessante

29

A posiccedilatildeo de Kahn (cf IBID 1-3) se apoia na afirmaccedilatildeo de Angus C Graham1 acerca

do mesmo verbo dentro do chinecircs claacutessico onde o sinoacutelogo posiciona o ser relativamente agrave

regra gramatical inerente agrave formulaccedilatildeo de uma determinada sentenccedila significando portanto a

impossibilidade de uma doutrina universal acerca do ser compatiacutevel com liacutenguas distintas

(como o grego o aacuterabe ou o chinecircs) Isto concorda em absoluto com a ideia de que no proacuteprio

grego claacutessico e nas liacutenguas indo-europeias em geral conforme a menccedilatildeo feita por Kahn a

Eacutemile Benveniste2 natildeo haacute em hipoacutetese alguma a implementaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo universal ou

condiccedilatildeo necessaacuteria envolta na distribuiccedilatildeo dos significados do verbo ser Haacute sim e Benveniste

endossa a ideia uma predisposiccedilatildeo da linguiacutestica grega agrave ldquovocaccedilatildeo filosoacutefica da noccedilatildeo de serrdquo

Vocaccedilatildeo esta segundo Kahn muito geral e diversificada no desenvolvimento sistemaacutetico de

seu conceito desde Parmecircnides ateacute Aristoacuteteles e de uma maneira mais sistemaacutetica dos Estoicos

ateacute Plotino Em siacutentese Kahn sustenta que a tese de um determinismo linguiacutestico do ser eacute

claramente falsa ou seja mesmo em falantes de uma mesma liacutengua natildeo eacute possiacutevel encontrar

uma mesma doutrina em torno ao ser como eacute possiacutevel ver nos pensamentos distintos de Platatildeo

e Aristoacuteteles Epicuro e Plotino

Todavia natildeo haacute duacutevidas para Kahn a respeito das condiccedilotildees intriacutensecas da liacutengua de um

autor em sua atividade intelectual seus recursos e suas tendecircncias Ele afirma que natildeo haveria

possibilidade de especificar a determinaccedilatildeo ontoloacutegica se o verbo grego εἰμί natildeo fosse provido

do particiacutepio presente τὸ ὄν ou se natildeo houvesse a derivaccedilatildeo nominal ndashία da qual redunda a

noccedilatildeo de οὐσία Ou ainda a classe de morfemas que compreende ἐστί εἶναι e ἐών derivadas

do indo-europeu ndashes Satildeo as formas nominais do verbo que permitem segundo Kahn (cf IBID

451) natildeo soacute uma clara expressatildeo senatildeo tambeacutem a tematizaccedilatildeo do conceito como um toacutepico

distinto para a reflexatildeo filosoacutefica

1 Angus C Graham ldquoBeing in Classical Chineserdquo In The Verb lsquoBersquo and its Synonyms John W M Verhaar (ed)

Dordrecht Holland D Reidel 1967 1-39 2 Eacutemile Benveniste ldquoCateacutegories de penseacutee et cateacutegories de languerdquo Les Eacutetudes philosophiques n 4 (out-dez

1958) PUF Paris 419-429

30

Kahn fala dos primeiros usos do verbo εἰμί (em formas participiais) em sua

possibilidade de representar qualquer construccedilatildeo copulativa (natildeo muito diferente de qualquer

outro particiacutepio em grego) adaptando-se agraves construccedilotildees coordenadas ou subordinadas (em

nuacutemero gecircnero e causa) e expressando diferentes nuances (concessiva causal adversativa)

Contudo frisa haver ainda outras expressotildees para aleacutem do caso copulativo como nos casos

vital veriacutedico ou existencial Quando o verbo aparece dentro da expressatildeo existencial e emerge

a necessidade de indicar uma referecircncia ou seja um caso gramatical locativo surgem as formas

do uso filosoacutefico do ser como τὰ ὄντα o berccedilo para o desenvolvimento da ontologia O sentido

de τὰ ὄντα apareceria em Aristoacuteteles de acordo com Kahn (cf ID IBID 457) em primeira matildeo

como ldquoo que eacuterdquo (o caso os fatos ou eventos) e em segunda matildeo existencialmente como ldquocoisas

que existemrdquo ldquocoisas que estatildeo presentesrdquo ldquocoisas que podem ser encontradas em algum lugarrdquo

Em ambos os casos o verbo ser eacute entificado Como neste sentido haacute uma conotaccedilatildeo ldquodo que

eacuterdquo algo Aristoacuteteles considerou a referecircncia aos atributos de um determinado ente para expressar

a muacuteltipla significaccedilatildeo de τὸ ὄν partindo em seguida para a definiccedilatildeo do ser no sentido primaacuterio

e fazendo uso de seu derivado nominal οὐσία

A manifestaccedilatildeo de οὐσία surge como uma nominalizaccedilatildeo abstrata ou substantivo de

accedilatildeo Kahn enumera trecircs aspectos distintos do uso de οὐσία em uma concepccedilatildeo filosoacutefica o

primeiro uso refere-se agrave nominalizaccedilatildeo do verbo na qual οὐσία representaria ldquoo que algo eacuterdquo

dando abertura para as formas platocircnicas e essecircncias aristoteacutelicas (τὸ τί ἐστι τὸ τί ἦν εἶναι) o

segundo uso eacute todavia menos teacutecnico e predica οὐσία como ldquoserrdquo ldquoexistecircnciardquo ou ldquorealidade

verdadeirardquo o terceiro uso enuncia uma equivalecircncia entre οὐσία e τὸ ὄν referindo ldquoas coisas

que satildeo (neste mundo)rdquo τὰ ὄντα (cf ID IBID 461) Aristoacuteteles pontua precisamente a intenccedilatildeo

socraacutetica primaacuteria de buscar a essecircncia das coisas (τὸ τί ἐστι) por meio do procedimento

silogiacutestico cujo princiacutepio eacute justamente a quididade (ἀρχὴ δὲ τῶν συλλογισμῶν τὸ τί ἐστι)

(ARISTOacuteTELES 2002 604-605 Metafiacutesica 1078b 24-25)

31

O que em Soacutecrates apareceria de fato como τί ἐστι e em Platatildeo como (τὸ) ὅ ἐστι em

Aristoacuteteles seria simplificado como τὸ τί ἐστι e τὸ τί ἦν εἶναι em um uso que expressa a essecircncia

ou natureza das coisas pela definiccedilatildeo ao passo que a definiccedilatildeo propriamente existencial caberia

ao termo οὐσία 3 Kahn ilustra as distinccedilotildees dizendo que

Enquanto o substantivo no primeiro e no segundo usos serve como uma

nominalizaccedilatildeo ldquoabstratardquo para o verbo finito como predicado isto eacute para o ldquoser aquilo

que eacuterdquo (e eacute assim sintaticamente paralelo ao infinitivo articular τὸ εἶναι) οὐσία no

terceiro sentido eacute utilizado ndash como em muitos outros substantivos abstratos ndash para o

sujeito caracterizado (isto eacute o que eu chamo de concreto ou agente de nominalizaccedilatildeo

como tipicamente ilustrado pelo particiacutepio articular τὸ ὄν ou como por exemplo ὁ

τρέχων ldquoo corredorrdquo em contraste agrave accedilatildeo de nominalizaccedilatildeo abstrata τὸ τρέχειν

ldquocorrerrdquo Esta distinccedilatildeo sintaacutetica corresponde em parte ao contraste de Heidegger

entre das Seiende e das Sein der Seienden) (ID IBID)

Embora haja tal distinccedilatildeo Kahn prossegue afirmando que em seu uso tardio (poacutes-platocircnico)

οὐσία e τὸ ὄν satildeo claramente sinocircnimos sendo um utilizado para enfatizar o outro como na

doutrina das Categorias de Aristoacuteteles4 O resultado eacute a inexistecircncia de uma diferenccedila entre o

agente concreto e a accedilatildeo abstrata de nominalizaccedilatildeo do εἰμί onde natildeo haacute distinccedilatildeo conceitual

entre οὐσία e τὸ ὄν ou seja entre a entidade e o que ela eacute Em outras palavras ser e ente se

tornam o mesmo confundem-se em sua aplicaccedilatildeo a despeito das distinccedilotildees conceituais que

definem substacircncia (οὐσία) e essecircncia (τὸ τί ἦν εἶναι)

3 Um comentaacuterio mais preciso foi apresentado em Luiacutes Andreacutes Berdlow ldquoParmenides and the Grammar of Beingrdquo

Classical Philology v 106 (2011) 283-298 4 As Categorias de Aristoacuteteles apresentam a classificaccedilatildeo das coisas que satildeo (τὰ ὄντα) dentre as quais encontra-

se a substacircncia (οὐσία) (cf ARISTOTLE 1952 5-6 Categorias 1a-2b) Na Metafiacutesica Aristoacuteteles deixa isto mais

claro quando diz ldquoMas em primeiro lugar se o ldquoenterdquo (τὸ ὂν) se diz de muitas maneiras ndash dentre as quais algumas

vezes substacircncia (οὐσία) em outras qualidade ou mesmo quantidade aleacutem de todas as outras categorias ndash qual

deles portanto eacute aquele pelo qual as coisas satildeo ()rdquo (ARISTOacuteTELES 2002 669 Metafiacutesica 1089a 5-15) A diferenccedila

conceitual ou mesmo hieraacuterquica eacute paulatinamente abandonada pela necessidade de exprimir um niacutevel de

realidade no qual jaacute natildeo eacute mais possiacutevel discorrer acerca do ente se redundar a palavra definida na proacutepria definiccedilatildeo

32

Essa indistinccedilatildeo entre ser e ente eacute sabido foi o que chamou a atenccedilatildeo de Martin

Heidegger no processo ldquodestrutivordquo de histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica realizado em seu projeto

Sein und Zeit (1927) Conforme Heidegger haacute uma γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας de haacute muito

abandonada O motivo aparente se concentra nas caracteriacutesticas emergentes do proacuteprio ser

quais sejam sua maacutexima universalidade sua vacuidade sua obscuridade sua maacutexima

evidecircncia Neste sentido Heidegger diz

O conceito de ldquoserrdquo eacute indefiniacutevel Isto pode ser concluiacutedo desde sua maacutexima

universalidade E isto com razatildeo ndash se definitio fit per genus proximum et differentiam

specificam De fato ldquoserrdquo natildeo pode ser entendido conceitualmente como ente enti

non additur aliqua natura ldquoserrdquo natildeo pode estar em uma determinaccedilatildeo concebendo

dele um ente O ser por definiccedilatildeo natildeo pode ser derivado de conceitos superiores e

nem dado por nenhuma ilustraccedilatildeo Contudo disto se segue que do ser natildeo se pode

derivar nenhum problema Pode-se concluir em absoluto apenas que o ldquoserrdquo natildeo eacute

algo como um ente Portanto o legiacutetimo dentro de certos limites de determinaccedilatildeo dos

entes ndash a ldquodefiniccedilatildeordquo da loacutegica tradicional que em si tem suas bases na antiga

ontologia ndash natildeo eacute aplicaacutevel ao ser A indefiniccedilatildeo do ser natildeo dispensa a pergunta por

seu significado senatildeo que justamente a intima isto (HEIDEGGER 1967 4)

As observaccedilotildees de Heidegger concordam com a conclusatildeo de Kahn a respeito da tomada de

rumo do verbo ser dentro da filosofia grega claacutessica sobretudo na concepccedilatildeo das bases da antiga

ontologia acerca da indistinccedilatildeo entre ser e ente A γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας agrave qual se refere

Heidegger parece ser a natureza inevitaacutevel da proacutepria metafiacutesica em fechar a porta aberta por

ela mesma para o modo de se relacionar com o ser uma espeacutecie de destinaccedilatildeo forccedilosa da qual

natildeo se poderia de maneira alguma escapar ponderando a projeccedilatildeo que reverbera em cada um

dos sentidos

33

O conflito acerca do entendimento e expressatildeo da φύσις revela em boa parte a maneira

pela qual o conjunto do ser se tornou alvo de disputas A contenda eacute ilustrada na histoacuteria

primaacuteria da filosofia grega enquanto fisiologia e na ldquocontroveacutersiardquo paradigmaacutetica entre

Heraacuteclito e Parmecircnides Uma realidade em constante movimento e mutaccedilatildeo absorvida desde a

observaccedilatildeo teoreacutetica do mundo entorno ou simplesmente o ponto de vista do ldquodevirrdquo parece

compatiacutevel com a natureza infinitiva e inapreensiacutevel do verbo ser como eacute possiacutevel rastrear no

πάντα ῥεῖ heracliacutetico 5 Heraacuteclito expressa o movimento intriacutenseco de abertura do modo

relacional do ser Todavia tal entendimento natildeo eacute compatiacutevel com qualquer tipo de silogismo

loacutegico onde eacute possiacutevel desenhar um conhecimento comum Para assumir a cogniccedilatildeo e percepccedilatildeo

vaacutelidas seria necessaacuterio assumir a permanecircncia de algo como eacute possiacutevel acompanhar na

elaboraccedilatildeo da univocidade do ser em Parmecircnides6

O primeiro ponto de vista paradoxalmente leva agrave evidecircncia da diferenccedila e a posiccedilatildeo do

oxiacutemoro enquanto o segundo permite a identificaccedilatildeo e a possibilidade de conclusatildeo por meio

das loacutegicas da identidade e natildeo-contradiccedilatildeo Aparentemente o primeiro natildeo resulta em nenhum

avanccedilo imediato a respeito de assuntos praacuteticos ou na dissoluccedilatildeo de questotildees teoacutericas enquanto

o segundo iraacute provavelmente resolver problemas de quase todos os tipos no campo pragmaacutetico

e em toda sorte de adversidades naturais e sociais Por meio da loacutegica natural do ser humano

social eacute bastante evidente qual ponto de vista deve ser eleito no intuito de estabelecer a

coexistecircncia mais faacutecil e paciacutefica aquela que afasta o homem da falta de fundamento da

existecircncia ou seja do abismo existencial da afliccedilatildeo que eacute existir

5 Conforme cita Platatildeo no Craacutetilo ldquotodas as coisas estatildeo em processo e nada permanece paradordquo (τά ὄντα ἱέναι

τε πάντα καὶ μένειν οὑδέν) (PLATO 1997 119-120 Craacutetilo 401d-402a) (KIRK E RAVEN 1957 197) Kirk e Raven

ponderam ainda que se trata de um momento ldquoOnde φύσις provavelmente natildeo significa lsquonaturezarsquo mas lsquoas coisas

em sua verdadeira constituiccedilatildeorsquordquo (IDEM IBIDEM 184) 6 ldquoO uacutenico caminho de inquiriccedilatildeo que pode ser pensadordquo (αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι) (KIRK E RAVEN

1957 269) Haacute uma anaacutelise mais detalhada acerca do toacutepico em Ciacutecero Cunha Bezerra ldquoParmeacutenides y la

univocidad del serrdquo Caacutetedra v 1 (2003) 33-48

34

Eacute possiacutevel especular que com a ausecircncia de um princiacutepio solidamente identificado e

natildeo-contraditoacuterio quiccedilaacute nem mesmo uma regra gramatical linguiacutestica poderia ser estabelecida

dando margem mesmo agrave impossibilidade de comunicaccedilatildeo Igualmente tampouco se poderia

delinear uma corrente de haacutebitos pessoais compatiacuteveis aos costumes sociais desabilitando toda

e qualquer eacutetica ou ciecircncia poliacutetica pela qual se pode regulamentar a conduta humana Com a

perspectiva de um devir total e assunccedilatildeo da diferenccedila a presenccedila de certo caos eacute inegaacutevel Com

a fundaccedilatildeo de uma estrutura loacutegica todavia eacute possiacutevel organizar e controlar os pensamentos e

accedilotildees do ser humano e sua convivecircncia social Contudo natildeo necessariamente esta postura iraacute

levar a humanidade para as escolhas mais coerentes ndash e a histoacuteria pode comprovar isto inuacutemeras

vezes O abandono da multiplicidade de perspectivas sobretudo as supracitadas (uma em

detrimento de outra) parece ter dirigido a histoacuteria por vias pouco luacutecidas e por vezes mesmo

autodestrutivas

Mas a anaacutelise da histoacuteria fatual natildeo eacute o que realmente interessa aqui tampouco a

atribuiccedilatildeo de uma culpa ou indicaccedilatildeo de um erro neste ou naquele ponto de vista O que

interessa aqui eacute como identificar a predileccedilatildeo loacutegica do pensamento ocidental com o cerne de

sua postura contemporacircnea e inquirir se eacute possiacutevel (ou se jaacute foi tomado) um caminho de

pensamento distinto e quais os resultados da confrontaccedilatildeo de um ponto de vista com o outro

Para isto eacute preciso retomar uma anaacutelise da histoacuteria da ontologia observando a maneira pela

qual ela se movimenta intriacutenseca e extrinsecamente Dentro das possibilidades de eleiccedilatildeo de um

caminho interpretativo opto aqui em um primeiro momento por absorver a histoacuteria e criacutetica

da metafiacutesica feita por Heidegger durante o seacuteculo vinte com o fito de deixar um pouco mais

evidente o problema fundamental da indistinccedilatildeo entre ser e ente que eacute sem embargo o pontapeacute

inicial de toda a contenda Muito embora seja possiacutevel descortinar a histoacuteria do pensamento

ocidental mediante distintos autores a ecircnfase na nomeada questatildeo do ldquoesquecimento do serrdquo

serve sobremaneira bem ao propoacutesito desta tese

35

Portanto em primeiro lugar eacute preciso considerar que embora ilustrativo Martin

Heidegger passou ao largo de resolver os problemas suscitados pela histoacuteria das ideias Antes

ele desenvolveu problemaacuteticas ainda mais insoluacuteveis e como se natildeo bastasse propocircs novos

enigmas A maior dentre todas as dificuldades talvez ainda precise aguardar muito tempo para

ser descortinada Durante um longo periacuteodo o entretenimento geral dos eruditos se contentou

em traccedilar um denominador comum dentre as vaacuterias questotildees pertinentes aos problemas de sua

filosofia em um movimento enciclopeacutedico quiccedilaacute tatildeo importuno quanto improfiacutecuo de decifrar

seu pensamento Mais conveniente talvez seja simplesmente resguardar o segredo de certas

passagens e aguardar a maturaccedilatildeo necessaacuteria para interpelaacute-las independentemente da espera

suscitada por tal postura

Ainda assim alguns pontos merecem ser postos em relevo e sobre eles decerto vale

despender alguma energia no esforccedilo de meditar acerca de seu sentido Certos trabalhos

compostos por Heidegger guardam de uma soacute vez todo o peso de sua leitura da realidade

notadamente em trechos sutis e aparentemente inofensivos Em momentos nos quais o leitor se

daacute por satisfeito em compreender um posicionamento aparentemente simples e historial como

pueril revisatildeo da histoacuteria da filosofia aiacute mesmo se lhe eacute possiacutevel abrir uma brecha para absorver

a atitude fundamental de seu pensamento Heidegger sempre foi um historiador da filosofia e

natildeo renegou em momento algum o peso de um ofiacutecio como este pelo contraacuterio coube-lhe fazecirc-

lo por diversas vezes e em distintos modos Mesmo quando seus ensaios e conferecircncias se

projetavam a um tema especiacutefico e natildeo a um autor a forte presenccedila de suas interpretaccedilotildees da

histoacuteria da filosofia eacute inegaacutevel Cabe ao propoacutesito desta tese realccedilar um exemplo que torne liacutecito

ilustrar uma fissura por onde seja possiacutevel se esgueirar ateacute a fonte da emanaccedilatildeo especulativa

acerca do sentido da histoacuteria da filosofia e do desenvolvimento do pensamento ocidental

sinocircnimos para o que conveacutem nomear metafiacutesica

36

Aos 13 de novembro de 1935 como sabem os leitores assiacuteduos de Heidegger foi

pronunciada uma conferecircncia preparada para a Kunstwissenschaftlichen Gesellschaft de

Freiburg im Breisgau7 Der Ursprung des Kunstwerkes se tornou de forma veloz e viral um

trabalho amplamente comentado no circuito acadecircmico em geral principalmente no campo da

esteacutetica filosoacutefica e teorias da arte O ponto de vista quase unacircnime dos receptores do trabalho

assentou na interpretaccedilatildeo do texto como uma tese a respeito da arte como ldquoposta em marcha da

verdade enquanto desvelamentordquo uma frase natildeo tatildeo simples de ser decifrada mas repetida

quase como uma foacutermula automaacutetica que se tornou rapidamente um emblemaacutetico clichecirc e uma

resposta imediata agrave pergunta pelo sentido da arte em Heidegger

A popular obra de Michael Inwood A Heidegger Dictionary (1999) destaca

enfaticamente o caraacuteter essencial da proposiccedilatildeo-chave quando pontua no mesmo sentido que

ldquoA obra de arte eacute mais bem um projeto que abre um mundo no qual escolhas podem ser feitas

A verdade a revelaccedilatildeo do lsquoserrsquo eacute o configurar em uma obra e configurar para obra iluminando

o mundo e a terra naquilo que neles perdurardquo (INWOOD 1999 18) Inwood ressalta a

proximidade encontrada por Heidegger entre o termo alematildeo ldquoproteger manterrdquo (bewahren) e

a proacutepria palavra ldquoverdaderdquo (Wahrheit) embora os termos natildeo necessariamente estejam

etimologicamente conectados Ele aponta para a ldquopreservaccedilatildeordquo como elemento pelo qual ldquoA

arte eacute o deixar-acontecer da chegada da verdade do ser enquanto talrdquo (IDEM IBIDEM) com especial

atenccedilatildeo para o proacuteprio fazer (ποίησις) da arte e particularmente da poesia Haacute contudo uma

seacuterie de consideraccedilotildees mais sutis a serem levadas em consideraccedilatildeo nas conferecircncias de

Heidegger proporcionando uma anaacutelise um pouco mais cuidadosa do que estaacute propriamente

em jogo quando Heidegger sobreleva a questatildeo da obra de arte

7 O mesmo trabalho sofreu novas releituras durante todo o ano de 1936 sendo reapresentado respectivamente na

Einladung der Studentenschaft der Universitaumlt em Zuumlrich durante o mecircs de janeiro e na Deutschen Hochstift em

Frankfurt am Main entre novembro e dezembro O ciclo de conferecircncias recebeu ediccedilotildees retrabalhadas em 1956 e

1960 publicadas pela Reclam de Stuttgart e sendo incluiacutedo em 1977 no tomo Holzwege da Gesamtausgabe

37

O editor do volume Holzwege Friedrich-Wilhelm von Hermann dedicou toda uma obra

agrave anaacutelise temaacutetica envolta naquele escrito publicando em 1980 o livro Heideggers Philosophie

der Kunst Em algumas de suas consideraccedilotildees mais amplas sobre as conferecircncias de Heidegger

Hermann atenta para o fato da questatildeo da obra de arte ser levantada a partir de um problema

desdobrado pela ontologia fundamental Hermann observa a problemaacutetica geral do escrito

desde o estabelecimento do ldquoserrdquo como ldquoacontecimentordquo (Ereignis) Conforme ele pondera

trata-se de um trabalho contemporacircneo aos Beitraumlge zur Philosophie (1936-38) Para Hermann

a questatildeo em torno ao ldquoserrdquo como ldquoacontecimentordquo (Ereignis) estende-se em Der Ursprung des

Kunstwerkes por meio de quatro outros problemas (1) o estabelecimento constitutivo da arte

(2) da obra de arte (3) da criaccedilatildeo artiacutestica e (4) da compreensatildeo da arte (cf HERMANN 2001 7)

Contudo circunscrita agrave conferecircncia sobre a arte estaacute a elaboraccedilatildeo da passagem da discussatildeo em

torno agrave verdade do ser para o ldquopensamento da histoacuteria do serrdquo (seinsgeschichtliches Denken)

Trata-se especificamente do momento de transiccedilatildeo do pensamento de Heidegger8 Em

linhas gerais Der Ursprung des Kunstwerkes ressalta uma preocupaccedilatildeo da lida do homem para

com a essecircncia da verdade mediante a obra de arte enquanto coisa Haacute toda uma histoacuteria dos

efeitos pertinentes agraves anaacutelises de Heidegger da obra de Vincent van Gogh9 aleacutem de inuacutemeras

teorizaccedilotildees em torno ao poder salvador da obra de arte Todavia salta aos olhos uma passagem

muito mais peculiar (para qual gostaria de chamar a atenccedilatildeo agora mesmo) qual seja aquela

na qual Heidegger aborda o problema da transposiccedilatildeo da experiecircncia fundamental grega para a

intepretaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo do pensamento romano-latino (cf HEIDEGGER 1977 7)

8 A perspectiva da ontologia fundamental de Sein und Zeit (1927) continuada no curso Grundprobleme der

Phaumlnomenologie ministrado em Marburg durante o semestre de veratildeo de 1927 receberia seu desenvolvimento

desde uma visatildeo historial-reflexiva jaacute na primavera de 1932 ocasiatildeo na qual conforme Hermann satildeo elaboradas

as primeiras linhas de Beitraumlge zur Philosophie redigido entre 1936 e 1938 mas publicado postumamente somente

em 1989 9 Em uma das mais famosas passagens de Der Ursprung des Kunstwerkes Heidegger interpreta os sapatos de um

dos quadros de Vincent van Gogh (natildeo identifica qual todavia) descortinando com isto o cotidiano campesino e

oferecendo uma leitura da realidade a partir de aiacute Uma criacutetica direta foi apresentada por Meyer Shapiro (em The

Still Life as a Personal Object ndash A Note on Heidegger and van Gogh 1968 e ainda em Further Notes on Heidegger

and van Gogh 1994) onde ele sustenta que os sapatos retratados por van Gogh natildeo satildeo de uma pessoa do campo

mas as botas do proacuteprio artista apontando com isto graves mal entendidos na interpretaccedilatildeo de Heidegger

38

Ainda no iniacutecio do escrito Heidegger busca a compreensatildeo mais geral da ldquocoisardquo

abordando como exemplo um bloco de granito A despeito de suas muacuteltiplas caracteriacutesticas ele

enfatiza o ldquoao redorrdquo (das herum sich) pelo qual suas propriedades se agrupam podendo entatildeo

falar de algo como um ldquonuacutecleordquo (Kern) da coisa Esse nuacutecleo de acordo com Heidegger

chamaram-lhe os gregos claacutessicos de ὑποκείμενον Embora ilustrativa a descriccedilatildeo eacute decerto

passiacutevel de baixo niacutevel de representaccedilatildeo posta sua exposiccedilatildeo pouco objetiva O termo eacute mesmo

tatildeo controverso quanto as proacuteprias ideias de ser e ente dentro da perspectiva grega Ela possui

uma carga conceitual talvez natildeo tatildeo difiacutecil de ser desvelada mas que tampouco garante exatidatildeo

e lucidez em sua abordagem variando de eacutepoca para eacutepoca de filoacutesofo para filoacutesofo de

interpretaccedilatildeo para interpretaccedilatildeo Ademais vaacuterias histoacuterias metaforizam o sentido do termo

ὑποκείμενον Uma das mais conhecidas (conto-a sem embasamento ou referecircncias quiccedilaacute

mesmo de maneira inapropriada) relata que certa vez um rei se espantara ao conhecer a obra de

um escultor haacutebil em reproduzir as formas da natureza em blocos de maacutermore Tamanha era a

destreza do artista que se postas lado a lado a escultura e a coisa mesma confundiam-se os

espectadores exceto pelo caraacuteter inanimado da escultura Intrigado o rei mandou chamar o

escultor e perguntou-lhe como fazia para reproduzir com tanta fidelidade o mundo em torno

Natildeo sabendo explicar senatildeo por meio da praacutetica pediu um bloco de maacutermore e agraves vistas do rei

reproduziu perfeitamente um cavalo em tamanho real faltando-lhe apenas galopar O rei lhe

questionou ldquoComo o fizesterdquo e respondeu o escultor ldquofaacutecil apenas retirei do bloco de

maacutermore o que natildeo era cavalordquo O ὑποκείμενον seria portanto aquele elemento sem o qual o

cavalo natildeo seria cavalo ou sem o qual uma coisa natildeo eacute uma coisa Contudo o grande problema

envolto nas tentativas de atingir um entendimento deste sentido por meio de um silogismo uma

loacutegica racional ou uma explicaccedilatildeo conceitual (e natildeo por uma metaacutefora ou estoacuteria) consiste na

dificuldade em elaborar uma equaccedilatildeo que exija menos esforccedilo do ouvinte capacitando uma

lucidez mais ampla e geral que a todos possa atingir

39

Toda definiccedilatildeo a partir de uma predicaccedilatildeo direta pode se configurar ainda mais obscura

e lanccedilar aquele que se propotildee a entender o conceito para um mero encadeamento e conexatildeo de

termos sem contudo realmente promover a experiecircncia do sentido da palavra Sem embargo o

Impeacuterio Romano foi a eacutegide da popularizaccedilatildeo e introspecccedilatildeo do mundo grego competindo-lhes

a tarefa de transpor ao modo latino de pensar os sentidos das meditaccedilotildees gregas Sobre isto

Heidegger ostenta uma posiccedilatildeo bastante firme e vale a pena destacar por completo o trecho no

qual se lhe pode observar sua atitude

Estas denominaccedilotildees natildeo eram meros nomes Em sua fala a experiecircncia fundamental

grega do ser do ente no sentido de sua presenccedila mostrava o que natildeo se podia mostrar

Por meio dessa disposiccedilatildeo instaura-se a interpretaccedilatildeo oficial da coisidade da coisa e

a interpretaccedilatildeo ocidental do ser do ente Comeccedila com a traduccedilatildeo das palavras gregas

para o pensamento romano-latino ὑποκείμενον torna-se subjectum ὑπόστασις torna-

se substantia συνβεβηκός torna-se accidens O processo desta traduccedilatildeo dos nomes

gregos para a liacutengua latina natildeo se daacute sem consequecircncias e nos dias de hoje toma-se

ainda a mesma compreensatildeo Antes pelo contraacuterio por detraacutes da traduccedilatildeo

aparentemente literal haacute um traslado da experiecircncia grega para outro modo de pensar

O pensamento romano assume para si as palavras gregas sem a devida

correspondecircncia com a experiecircncia originaacuteria do que dizem sem a palavra grega A

falta de fundamento do pensamento ocidental comeccedila com essas traduccedilotildees (IDEM

IBIDEM 7-8)

Responsabilizar o pensamento romano-latino pela queda do Ocidente no abismo da falta de

fundamento delega a Heidegger um encargo de peso formidaacutevel cujo maior perigo talvez seja

o de natildeo se ambientar aqui ou ali dentro deste ou daquele territoacuterio neste ou naquele lugar

mas na posiccedilatildeo do meio na esfera do entre no desenho do limite da linha da fronteira

40

A direccedilatildeo do pensamento de Heidegger a partir desta passagem claramente se constitui

desde uma divisatildeo da metafiacutesica ocidental em dois momentos muito distintos embora

interligados A emboscada se encontra na percepccedilatildeo de que todo e qualquer ocidental eacute jaacute

sempre forccedilado a se movimentar na esfera da ontologia latina ao passo que o retorno aos

fundamentos da ontologia grega eacute antes de tudo calcar terreno em solo incerto e regiatildeo

desconhecida Estabelecer uma ponte que permita ao ser humano contemporacircneo entender a

proveniecircncia de sua apreensatildeo da existecircncia eacute um roteiro deveras ousado Resta saber como eacute

possiacutevel ainda pensar os conceitos fundamentais da metafiacutesica dentro de sua propriedade sem

causaacute-los algum tipo de dano que faccedila seu sentido se perder ser obscurecido ou transviado

A partir da colocaccedilatildeo do problema da obra de arte enquanto coisa Heidegger questiona

o que enfim se compreende pelo termo mesmo ldquocoisardquo quando se compromete com a ideia de

tentar envolvecirc-lo conceitualmente (a partir de ὑποκείμενον ὑπόστασις e συνβεβηκός) e desde

aiacute extrair uma explicaccedilatildeo Sobre isto Hermann comenta ldquoComo podemos ver ainda mais e

melhor resolver o problema da obra de arte se torna um problema ontoloacutegico ndash isto eacute em

primeira instacircncia o problema ontoloacutegico do ser-res da resrdquo (HERMANN OP CIT 87) entenda-se

ainda o problema da coisidade da coisa Ele ainda complementa deixando ver a postura exigida

pela tarefa de entender a ontologia grega ldquoPortanto explicar o pensamento grego significa

antes de tudo revelar novamente a experiecircncia de estar no lugar em que se encontra a expressatildeo

de acordo com o fio condutor da palavra filosoacutefica gregardquo (IDEM IBIDEM 93-94) Sem embargo

conforme aponta Hermann (em coerecircncia com Heidegger) o ofiacutecio de introduzir a filosofia

grega (ou se introduzir na filosofia grega sua ontologia e berccedilo da metafiacutesica) constitui-se

desde o caminhar ao lado do fio condutor de sua expressatildeo e manifestaccedilatildeo A caminhada talvez

seja ela mesma o ldquoestar no lugar em que se encontra a expressatildeordquo ou o espaccedilo do ldquoentrerdquo a

ldquolinha de fronteirardquo

41

Algumas dezenas de leituras podem ser desdobradas desde a interpretaccedilatildeo de Heidegger

do lugar de transiccedilatildeo da histoacuteria do ser O itineraacuterio do pensamento de Heidegger legou aos

fieacuteis depositaacuterios de sua vasta caminhada a tarefa ingloacuteria de dar uma passo aleacutem Gostaria de

destacar aqui um direcionamento um pouco menos ousado nem por isto ingecircnuo Considerar

uma histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica em Heidegger eacute procurar pela fenda cuja passagem

encaminha diretamente ao salto no abismo da superaccedilatildeo da metafiacutesica embora natildeo fique ainda

claro o significado destes termos Ademais a intenccedilatildeo aqui eacute justamente esta esclarecer os

enlaces desse percurso histoacuterico nomeado sob o signo da metafiacutesica agrave luz da trajetoacuteria

interpretativa de Heidegger

Justamente sob o tiacutetulo Itineraacuterio do Pensamento de Heidegger (1965) Emmanuel

Carneiro Leatildeo apresenta sua traduccedilatildeo para o portuguecircs da Einfuumlhrung in die Metaphysik (1935)

de Heidegger ndash segundo ele nem de perto uma obra de faacutecil acesso Em primeiro lugar pela

impossibilidade geral de uma introduccedilatildeo em filosofia no sentido amplo Em outras palavras

natildeo haacute caminho de iniciaccedilatildeo agrave filosofia como se houvesse ainda um siacutetio no qual se a conquista

Haacute na verdade o puro levantar de questotildees responsaacuteveis por conduzir o pensamento para dentro

da proacutepria filosofia Carneiro Leatildeo elucida tal dificuldade quando especifica o tiacutetulo da obra

Introduzir agrave metafiacutesica eacute movimentar-lhe a questatildeo fundamental de maneira a

conduzi-la (-ducere) para dentro (-intro) das origens donde a metafiacutesica procede Um

esforccedilo de pensamento que nada tem de horizontal e progressivo Cujo movimento

se processa antes no sentido vertical e regressivo (CARNEIRO LEAtildeO 1999 10)

A filosofia busca o movimento imputado para originaacute-la para com isto retornar agraves suas origens

proacuteprias Em segundo lugar e natildeo menos importante a obra ainda guarda certa inacessibilidade

devido agrave intencional ambiguidade de um periacuteodo conturbado de transiccedilatildeo do pensamento de

Heidegger (tambeacutem evidenciado por Hermann)

42

Eacute preciso movimentar a questatildeo fundamental da metafiacutesica para conduzi-la para dentro

de suas origens Agora bem destacar a questatildeo fundamental eacute o primeiro passo de Heidegger

na obra quando questiona ldquoPorque haacute em geral o ente e natildeo antes nadardquo (HEIDEGGER 1983b

3) Um adendo eacute necessaacuterio ao leitor lusoacutefono Carneiro Leatildeo em sua traduccedilatildeo explica o

emprego do termo ldquoenterdquo para traduzir o alematildeo Seiendes justificando o uso da forma erudita

referida ao latim ens entis para salvaguardar o caraacuteter de tudo que eacute independentemente de

seu modo de ser (cf CARNEIRO LEAtildeO OP CIT 77 nota) Ponderando isto a leitura de Carneiro

Leatildeo segue um rumo bastante simples e esclarecedor ele afirma

O homem natildeo pode existir senatildeo em comeacutercio e comunhatildeo com o mundo dos entes

Ente significa tudo que de algum modo eacute o homem as coisas os acontecimentos ateacute

mesmo o Nada enquanto eacute um Nada ieacute enquanto tem um significado () (IDEM IBIDEM

11)

A forccedila responsaacutevel por manter a decisatildeo a respeito dos entes depende diretamente da

capacidade de enxergar suas distinccedilotildees Em um compecircndio unitaacuterio a base de sustentaccedilatildeo no

comeacutercio com os entes se daacute na e pela linguagem mediante a qual o homem simplesmente

afirma eacute Uma afirmaccedilatildeo aparentemente simples guarda contudo uma relaccedilatildeo complexa e

ambiacutegua talvez mesmo em decorrecircncia de sua extrema simplicidade

A existecircncia humana se agita dentro da tensatildeo entre imanecircncia e transcendecircncia

porque o homem existe enquanto in-siste no domiacutenio da Verdade do Ser ieacute a

vicissitude instaurada pela diferenccedila irredutiacutevel e referecircncia necessaacuteria entre ente e

ser A tarefa do pensamento natildeo eacute procurar sair decircsse ciacuterculo de diferenccedila e referecircncia

e sim necircle ingressar de maneira a poder regressar ateacute a fonte originaacuteria de sua tensatildeo

e unidade (ID IBID 15)

43

O atino para o ingresso ao interior da tarefa do pensamento deixa bastante evidente a intitulaccedilatildeo

da obra Eacute possiacutevel conceber a empreitada em regressar ao fundamento desde o qual a metafiacutesica

eacute ela mesma a proveniecircncia da tensatildeo em torno agrave unidade da existecircncia perante a multiplicidade

Eacute preciso destarte compreender que ldquoSoacute poderemos entender os pensamentos os conceitos

ou as explicaccedilotildees dados na medida em que nos ex-pusermos e dis-pusermos aquilo que se pensa

que se concebe ou que se explicardquo (ID IBID 29) acompanhando assim os passos de Heidegger

e verificando sua coerecircncia teoacuterica de levar colocar e se pocircr no estado da questatildeo

Esta mesma ambivalecircncia eacute tambeacutem destacada por Heidegger quando ele se refere ao

ambiacuteguo das formas essenciais do espiacuterito Natildeo se trata portanto de uma dedicaccedilatildeo integral agraves

possibilidades de captar de maneira exclusivamente formal os procedimentos que envolvem os

estudos mas de perceber (αἴσθησις) e experienciar os fenocircmenos Heidegger adverte ainda

Tomada na totalidade de seu sentido mais cru a filosofia sempre lida com o

fundamento do ente de tal maneira que o proacuteprio ser humano tem enfaticamente a

experiecircncia de seu significado e propoacutesito Por isto agora se vislumbra facilmente a

amplitude da filosofia que poderia e deveria proporcionar o fundamento da existecircncia

da eacutepoca histoacuterica atual e futura pela qual se estabelece a cultura Com tais

espectativas e demandas o estado e a essecircncia da filosofia satildeo sobrecarregadas Na

maior parte das vezes essa demanda excessiva se mostra pela forma de uma censura

da filosofia Diz-se por exemplo porque a metafiacutesica natildeo participou na preparaccedilatildeo

para a revoluccedilatildeo ela deve ser rejeitada Isto eacute tatildeo espirituoso quanto dizer que porque

vocecirc natildeo pode voar com um tocircrno portanto este deve ser abandonado A filosofia

natildeo provecirc diretamente forccedilas nem modos de accedilatildeo e criaccedilatildeo para ajeitar a condiccedilatildeo

histoacuterica simplesmente pelo motivo de dizer respeito apenas a poucos Quais poucos

Aqueles que transformam criativamente convertendo os fins Afetando uma vastidatildeo

apenas indiretamente e nunca fazendo rodeios ateacute certo ponto onde finalmente desde

o longo esquecimento da filosofia degenera-se como autocompreensatildeo da existecircncia

(HEIDEGGER OP CIT 12)

44

Heidegger aponta certa responsabilidade da filosofia na formaccedilatildeo da cultura e direcionamento

da eacutepoca presente e futura A chamada ldquoessencializaccedilatildeo da filosofiardquo eacute em grande parte

responsaacutevel pela tomada de rumo e pela constituiccedilatildeo da histoacuteria ateacute mesmo por seu abandono

Agrave ela estaacute diretamente conectada a ldquoessencializaccedilatildeo do serrdquo e maneira pela qual a filosofia se

apresenta como contemplaccedilatildeo dos fundamentos do ente

Heidegger explica em pormenores a diferenccedila entre ser e ente quando expotildee a gramaacutetica

e etimologia da palavra Certa advertecircncia contudo clama a petrificaccedilatildeo das normas

gramaticais ocas e vazias destituindo a Escola do Mundo do Espiacuterito que circunda a

morfologia dos termos e se restringindo tatildeo somente agrave transmissatildeo de regras do uso da palavra

Neste sentido a maneira pela qual se ostenta a ldquogrande gramaacuteticardquo eacute em si mesma o processo

de substantivaccedilatildeo do Ocidente visto como o cerrar das fronteiras como delimitaccedilatildeo

Tambeacutem em Einfuumlhrung in die Metaphysik Heidegger insiste no argumento exprimido

em Der Ursprung des Kunstwerkes seguindo o fluxo comentado acima quando afirma outra

vez ldquoQue essas formas gramaticais natildeo dissecaram desde toda eternidade uma linguagem

absoluta enquanto controle elas satildeo de fato erigidas de uma particular interpretaccedilatildeo da liacutengua

grega pela liacutengua latinardquo (ID IBID 56) Em outras palavras a linguagem possibilita sendo ela

tambeacutem um ente manipulaccedilatildeo e controle por sobre suas formas Por este motivo eacute possiacutevel

transmitir o conhecimento de uma liacutengua estrangeira somente com o ensino da gramaacutetica

mesmo para pessoas que nunca realmente entraram em contato com essa determinada liacutengua

Ou ainda aprender um idioma antigo natildeo mais utilizado ou cujo vigor ou esplendor se apagou

como o latim o grego claacutessico ou o sacircnscrito antigo sem ter a possibilidade de experenciaacute-los

no cotidiano O domiacutenio teoacuterico de uma liacutengua pode permitir ainda intuiccedilotildees e analogias a

respeito da experiecircncia que esta liacutengua provocava em seus falantes originais sem contudo

garantir exatidatildeo das disposiccedilotildees ou estados de acircnimo referidos pelos termos

45

Dentro da gramaacutetica e morfologia do ser Heidegger evidencia que existe um duplo

sentido para a palavra dentro de seu entendimento como consistecircncia (Staumlndigkeit) qual seja

a) o estar em si mesmo enquanto proveniente de si mesmo e b) o que perdura constantemente

enquanto tal Consistecircncia eacute a palavra-chave de sua leitura do termo ser dentro da circunvisatildeo

grega claacutessica Heidegger aponta que justamente por isso o natildeo-ser denota a desistecircncia ou a

saiacuteda da existecircncia ou ainda o abrir matildeo do ldquosalto para aleacutemrdquo Jaacute a etimologia da palavra ser

revela como os sentidos manifestos pela gramaacutetica e morfologia foram confundidos

historicamente Heidegger expotildee trecircs raiacutezes do termo uma sacircnscrita (es asus) outra indo-

germacircnica (bhuuml) e uma apenas germacircnica (sein) Conforme suas interpretaccedilotildees elas se

desdobram respectivamente em um sentido de ldquoviverrdquo ldquosurgirrdquo e ldquopermanecerrdquo Tratam-se de

verbos distintos todavia Heidegger natildeo citas as fontes das quais ele extrai tais etimologias

Ateacute onde eacute possiacutevel investigar o termo sacircnscrito mais proacuteximo ao que ele considera es

asus seria asti (अनतत) cuja raiz ās (आस) possui incontaacuteveis significados dentre os quais ldquoexistirrdquo

ldquoestar presenterdquo ldquopermanecerrdquo entre vaacuterios outros Aparentemente eacute a origem do indo-europeu

es cujo similar em grego seria o morfema ἐστί e em latim esse (sobremaneira visiacutevel no

portuguecircs estar) Jaacute a palavra bhuuml provavelmente indicada por Heidegger como ldquoindo-

germacircnicardquo em consequecircncia da formataccedilatildeo do verbo ser como ldquobinrdquo ldquobistrdquo (ou ainda ist e em

inglecircs ldquoisrdquo) eacute tambeacutem ela sacircnscrita (bhū भ) e estaacute presente em vaacuterias outras liacutenguas indo-

europeias (como no inglecircs being) Seu significado mais geral seria ldquoserrdquo ou ldquoexistirrdquo embora

aponte tambeacutem para ldquoacontecerrdquo ou ldquoperceberrdquo aleacutem de outros sentidos Sein tambeacutem pode ser

rastreado ateacute certo ponto em sua origem germacircnica no mittelhochdeutsch sīn e no

althochdeutsch wesan derivado da raiz sacircnscrita ves (वस) que daria as formas de Wesen

(essecircncia) ou (war o preteacuterito de Sein ser) em alematildeo De qualquer forma a questatildeo leva

imediatamente ao que Heidegger chama de ldquoessencializaccedilatildeo do serrdquo O motivo eacute simples viver

surgir e permanecer satildeo manifestaccedilotildees que interpelam o ser humano inevitavelmente

46

Contudo o ser ao interpelar o humano natildeo se manifesta antes se oculta esconde sua

proveniecircncia mostra-se ambiacuteguo e pela metade A forma de manifestaccedilatildeo do ser passiacutevel de

ser apreendida como uma realidade existente daacute-se por meio de sua participaccedilatildeo na realidade

presente qual seja ente (seu particiacutepio presente) A predileccedilatildeo pelo ente nasceria justamente

de seu caraacuteter manipulaacutevel embora haja uma conclusatildeo que clama as variaccedilotildees da palavra ser

e seu comportamento com respeito ao ldquoser em si mesmordquo evocado de modo distinto de outros

substantivos e verbos com relaccedilatildeo aos seus respectivos entes A eleiccedilatildeo de uma manifestaccedilatildeo

do ser diz muito sobre o modo relacional do humano com a conduccedilatildeo de sua existecircncia10

Alguns anos antes da composiccedilatildeo da Einfuumlhrung em um compecircndio posteriormente

publicado sob o tiacutetulo Sein und Wahrheit (1933-34) Heidegger se aproximou sistematicamente

da constituiccedilatildeo histoacuterica da metafiacutesica A obra eacute todavia pouco comentada O motivo eacute simples

haacute certo complexo ou trauma envolto na abordagem de um texto do periacuteodo da ascensatildeo do

Partido Nazi e do consentimento ao seu propoacutesito inicial Embora haja certos traccedilos de sintonia

com o discurso do momento pelo qual o povo alematildeo atravessava natildeo haacute nenhum resquiacutecio em

Heidegger dos preconceitos intriacutensecos ao desenrolar do totalitarismo Dentro do ambiente

promissoramente inovador Heidegger escreve ldquoToda gestatildeo essencial se vivifica desde uma

grande determinaccedilatildeo oculta no fundamentordquo (ID 2001 3) As palavras de Heidegger parecem

indicar antes de uma referecircncia ao destino da Alemanha o fato de que a questatildeo fundamental

estaacute contida no proacuteprio fundamento Por este motivo Heidegger ainda sugere um ldquo() caminho

histoacuterico na essecircncia da filosofia ndash e natildeo se poderia ter outro e isto justamente porque a filosofia

eacute ela mesma o acontecimento fundamental da histoacuteria da existecircnciardquo (ID IBIDEM 17) Resta

saber portanto como esse acontecimento fundamental se constitui como metafiacutesica

10 Heidegger justifica este ponto na sua apresentaccedilatildeo do conceito de Cura Sorgen em Sein und Zeit que embora

seja de suma importacircncia uma explanaccedilatildeo mais cuidadosa tomaria aqui e agora demasiado tempo mas que

precisa ao menos ser mencionada Seria esta caracteriacutestica originaacuteria do ser humano Cura Cuidado (Sorgen)

aquilo que o impulsionaria a preservar sua condiccedilatildeo evitando a queda nos abismos existenciais e a confusatildeo

generalizada (cf HEIDEGGER OP CIT 196-200)

47

Quando a tarefa eacute compreender a histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica realizada por Heidegger

insisto nunca eacute demasiada repeticcedilatildeo retomar as primeiras linhas de Sein und Zeit Vale lembrar

uma vez mais a disputa titacircnica a respeito da essecircncia (γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας) que

envolve os questionamentos aparentemente desprestigiados da metafiacutesica Conforme Heidegger

a maneira pela qual o problema perdurou sofreu alteraccedilotildees de Platatildeo e Aristoacuteteles ateacute sua

formulaccedilatildeo mais sofisticada na Wissenschaft der Logik (1812-16) de Georg W F Hegel Em

Sein und Wahrheit eacute tambeacutem a discussatildeo com Hegel que orienta a anaacutelise da metafiacutesica

tradicional Ateacute alcanccedilar Hegel entretanto Heidegger se preocupa em delinear as feiccedilotildees da

perda de sentido da μετὰ τὰ φυσικά aristoteacutelica na recepccedilatildeo tardia de seus escritos onde

ldquoGrandeza e iacutempeto desaparecem tanto na singularidade do questionamento criativo quanto na

designaccedilatildeo conceitual a praccedila desocupada daacute lugar agrave atividade de uma escola ndash somente

sobraram palavras e conceitos mas natildeo o poder estimulante da coisardquo (ID IBID 21)

Para Heidegger a unificaccedilatildeo do termo grego na palavra latina metaphysica natildeo eacute

acompanhada somente de uma correspondecircncia senatildeo ao mesmo tempo de uma mudanccedila em

seu significado Inerente agrave transformaccedilatildeo de seu sentido estaacute a apropriaccedilatildeo cristatilde do conceito

imputando um conhecimento suprassensiacutevel (trans physicam) de maior grau de importacircncia e

relevacircncia e diretamente relacionado ao divino Onde antes havia perplexidade na aspiraccedilatildeo agrave

sapiecircncia e observaccedilatildeo da realidade haacute agora um conhecimento humano elevado e suscetiacutevel agrave

confirmaccedilatildeo pela ciecircncia superior Heidegger visa e cita textualmente a formulaccedilatildeo de

Immanuel Kant da metafiacutesica como a ultrapassagem de todos os objetos empiacutericos a fim de

alcanccedilar um conhecimento viaacutevel e puro ou a superaccedilatildeo do conhecimento sensiacutevel pelo

conhecimento suprassensiacutevel11

11 Embora esta premissa esteja presente jaacute na Kritik der reinen Vernunft e em certa medida em suas especulaccedilotildees

preacute-criacuteticas atingindo ainda todos os escritos intercalados agraves duas outras criacuteticas e ainda os posteriores ele parece

se referir agraves conferecircncias de Kant reunidas por Karl Heinrich Ludwig Poumllitz publicadas em Vorlesungen Kants

uumlber Metaphysik aus drei Semestern Max Heine (org) Leipzig Hirzel 1984 (natildeo tenho certeza disto entretanto)

48

Haacute ainda a absorccedilatildeo do direito agrave verdade metafiacutesica pela ontologia claacutessica e neste

sentido Heidegger cita Alexander Baumgarten onde a verdade metafiacutesica eacute o princiacutepio

universal e fundamental em conveniecircncia agrave determinaccedilatildeo do ente enquanto tal Deste modo

conclui que a metafiacutesica se constitui como uma determinaccedilatildeo cristatilde e ideia matemaacutetico-

metoacutedica de fundamentaccedilatildeo nos sistemas metafiacutesicos da modernidade onde ela se apresenta

como conhecimento do ente em seu todo Hegel ocuparia neste sentido o lugar da consumaccedilatildeo

da plenitude da filosofia ocidental na metafiacutesica destacado o caraacuteter teoloacutegico no qual a medida

do saber eacute o ldquoinfinitordquo (perfectum) manifesto enquanto identidade absoluta (perfectissimus)

ou espiacuterito absoluto Por este motivo ao que parece quando se refere agrave histoacuteria da disputa

titacircnica sobre a essecircncia em Sein und Zeit Heidegger aponta a Wissenschaft der Logik de Hegel

como ponto de chegada Ali a loacutegica eacute entendida como ciecircncia do pensamento todavia natildeo

como ciecircncia responsaacutevel por regular o pensamento mas como fundamento do conceito e em

uacuteltima instacircncia fundamento do ente em si mesmo Heidegger explica dizendo que em Hegel

ldquoA metafiacutesica como ciecircncia do ser do ente eacute lsquoLoacutegicarsquo e esta Loacutegica eacute Loacutegica lsquodorsquo Absoluto isto

eacute de Deus Genitivo deliberadamente ambiacuteguo Natildeo apenas um genitivus objectivus Deus

representado mas sim genitivus subjectivus a essecircncia de deus como presenccedila do Espiacuterito

Absolutordquo (ID IBID 76) Em um momento final da exposiccedilatildeo da questatildeo fundamental da

filosofia Heidegger faz uma divisatildeo entre a filosofia ocidental em seu princiacutepio e em seu fim

escrevendo que

No princiacutepio a mais profunda necessidade era o questionamento na luta com os

poderes incontrolaacuteveis da verdade e da decepccedilatildeo A filosofia causava o mais alto

poder clarificante da naccedilatildeo e de sua existecircncia Riqueza de decisatildeo momento de

decisatildeo No fim alta bem-aventuranccedila na suspensatildeo das contradiccedilotildees fraqueza de

meros conceitos opostos fracasso e morte de todo questionamento Eternidade vazia

cheia de indecisotildees (ID IBID 77)

49

A eternidade vazia cheia de indecisotildees todavia natildeo soa aqui como algo proveniente de um

descontentamento Pelo contraacuterio emerge desde a simples oposiccedilatildeo de conceitos com o fito de

suspender contradiccedilotildees e evidenciar uma maacutexima clareza e nitidez com o intuito de um suposto

pleno contentamento como se a profunda necessidade de questionamento houvesse sido calada

pela extrema emergecircncia de soluccedilatildeo Um abismo entre a filosofia ocidental em seu princiacutepio e

em seu fim eacute diagnosticado de maneira direta e evidente Longe de apontar culpados ou

referendar uma condenaccedilatildeo agrave metafiacutesica claacutessica Heidegger explica o processo intriacutenseco de

explicaccedilatildeo e complicaccedilatildeo da metafiacutesica evidenciando fatualmente a transiccedilatildeo do pensamento

da histoacuteria do ser da ontologia grega agrave latina A distacircncia que provecirc de clareza a anaacutelise eacute todavia

bastante tendenciosa aos propoacutesitos da ontologia fundamental A maneira pela qual a proacutepria

ontologia se protege com uma complexidade de conceitos dificulta a visualizaccedilatildeo do percurso

histoacuterico e da explanaccedilatildeo esclarecedora

Vale portanto retomar alguns aspectos relevantes embora por vezes sutis da pesquisa

acerca da ontologia na metafiacutesica claacutessica Gostaria de propor um breve desvio que agrave primeira

vista pareceraacute desnecessaacuterio contudo configura-se como extremamente pertinente ao

propoacutesito do capiacutetulo Atualmente as pesquisas voltadas ao estudo da ontologia se restringem

ou bem ao estudo histoacuterico ou bem agraves repercussotildees da metafiacutesica na filosofia contemporacircnea

Via de regra servem de embasamento para questotildees projetadas aos assuntos pertinentes da

eacutepoca vigente A ontologia se torna assim uma ldquoaacuterea da filosofiardquo uma ldquodisciplinardquo ou mesmo

um tronco braccedilo ou ramificaccedilatildeo dos estudos filosoacuteficos Os pesquisadores responsaacuteveis por

esta aacuterea da filosofia desdobram prolegocircmenos e comentaacuterios explicativos aos textos claacutessicos

fundamentando muacuteltiplas outras aacutereas Poucas vezes eacute possiacutevel observar um trabalho sobre

ontologia que realmente conecte seu sentido primaacuterio aos problemas apresentados nos dias de

hoje todavia escavando com devoccedilatildeo algumas pesquisas emergem sobremaneira conexas

50

A ontologia parece ser mesmo ldquoutilizadardquo como ponte para abrir novos caminhos como

por exemplo as discussotildees histoacutericas na anaacutelise do desenvolvimento da cultura as

investigaccedilotildees epistemoloacutegicas na confrontaccedilatildeo das possibilidades de conhecimento as

consideraccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas na constituiccedilatildeo dos haacutebitos e costumes da relaccedilatildeo do ser humano

com as virtudes deveres e utilidades os juiacutezos esteacuteticos na relaccedilatildeo com a obra de arte ou

mesmo as bases psicanaliacuteticas do entendimento do proacuteprio humano e sua relaccedilatildeo com as coisas

e o mundo entorno

Um dos exemplos mais niacutetidos de um pensamento comprometido em discutir a

ontologia por si mesma observando a maneira pela qual as categorias ontoloacutegicas dispotildeem

ainda hoje os modos de estruturar a realidade talvez se apresente nas recentes discussotildees em

torno ao ldquodigitalrdquo e ao ldquovirtualrdquo ou as propostas de uma ldquoontologia digitalrdquo Ouvi falar pela

primeira vez sobre ldquoontologia digitalrdquo por meio de Rafael Capurro em 2009 durante o III

Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica realizado em Natal na Universidade Federal do Rio

Grande do Norte12 Ateacute entatildeo possuiacutea minhas proacuteprias teorias acerca do mundo digital e da

esfera virtual da internet todavia natildeo tinha sequer noccedilatildeo da envergadura do problema e da

maneira pela qual o assunto podia ser pensado desde uma perspectiva ontoloacutegica e natildeo

meramente poliacutetico-ativista ou mesmo teoacuterico-juriacutedica Embora este natildeo seja propriamente o

assunto do capiacutetulo gostaria de abordar o tema como forma de justificar o questionamento pela

ontologia claacutessica para aleacutem da mera constataccedilatildeo historiograacutefica Conforme pude acompanhar

a inquietaccedilatildeo que move os trabalhos se concentra na crenccedila segundo a qual todos os fenocircmenos

podem ser analisados construiacutedos e manipulados sob a condiccedilatildeo de poderem ser digitalizados

12 A discussatildeo de Capurro havia comeccedilado com uma troca de e-mails com Michael Eldred A conversa redundou

em primeira matildeo nos trabalhos de Capurro intitulados Entwurf einer digitalen Ontologie (1999) e Beitraumlge zu

einer digitalen Ontologie (1999) sendo estendida em ulteriores escritos como Interpreting the digital human

(2008) e Einfuumlhrung in die digitale Ontologie (2009) aleacutem do livro publicado por Eldred The Digital Cast of

Being (2009) Provavelmente a discussatildeo ainda prossegue e outros trabalhos foram ou estatildeo sendo publicados

51

Talvez como um chiste mas bastante pertinente e veriacutedico Capurro afirma que

atualmente se algueacutem natildeo estaacute na rede eacute como se natildeo existisse Dando impulso para uma

formulaccedilatildeo inusitada esse est computari em analogia agrave famosa foacutermula de George Berkeley

(esse est percipi) A conclusatildeo bastante perspicaz extraiacuteda por Capurro eacute a de que seria correto

dizer que hoje vemos a realidade no horizonte de sua digitabilidade Uma seacuterie de outros termos

e expressotildees natildeo-convencionais emergem do texto de Capurro como ldquoem tudo que eacute puramente

virtual as coisas consistem essencialmente em bitsrdquo ou a denominaccedilatildeo ldquopitagorismo digitalrdquo

Entretanto todas as definiccedilotildees e determinaccedilotildees estatildeo conectadas ao arcano questionamento em

torno ao ente

O que eacute o ente Esta pergunta fundamental da metafiacutesica natildeo pode ter uma resposta

definitiva a partir da perspectiva de um conhecimento finito sem cair na ilusatildeo

essencialista Isto tem consequecircncias para a problemaacutetica de como pensar uma cultura

digital Uma ontologia digital eacute uma interpretaccedilatildeo possiacutevel do ser dos entes vistos

desde sua digitabilidade No entanto tal ontologia corre sempre o perigo de

transformar-se em uma metafiacutesica digital no momento em que acredita ser a

verdadeira ou uacutenica resposta agrave pergunta pelo ser A ontologia digital eacute uma possiacutevel

compreensatildeo do ser por parte do conhecimento humano finito Todas as regiotildees ou

esferas dos entes satildeo concebidas entatildeo como digitais (CAPURRO 2009 322)

A introduccedilatildeo da digitabilidade para aleacutem da anaacutelise do ldquoserrdquo quantificado pela ciecircncia moderna

confere uma perspectiva nova de experimentaccedilatildeo do ente em sua totalidade Chama atenccedilatildeo o

perigo envolto na transformaccedilatildeo em uma ldquometafiacutesica digitalrdquo na qual uma virada ontocecircntrica

concentraria o poder da verdade enquanto julgamento como oriente agrave pergunta pelo ldquoserrdquo

Talvez o mais importante da anaacutelise de Capurro consista justamente na renovaccedilatildeo desta criacutetica

na qual se chama atenccedilatildeo para a imprecisatildeo especulativa por meio da indefiniccedilatildeo do virtual

52

Natildeo eacute difiacutecil perceber que o mundo digital oferece uma vasta gama de temas e

possibilidades de se pensar filosoficamente sob as mais diversas perspectivas Natildeo haacute grande

espanto na busca dos filoacutesofos por reflexotildees em torno aos acontecimentos revolucionaacuterios dos

veiacuteculos de informaccedilatildeo e tecnologias em geral no seacuteculo vinte-e-um Contudo admiraacutevel eacute

encontrar o caminho oposto o momento no qual desenvolvedores da ciecircncia e da teacutecnica

buscam a filosofia para fundamentar seus trabalhos Eacute caso dos estudos realizados por Peter

Oslashhrstroslashm Henrik Schaumlrfe e Sara L Uckelman cujos resultados foram publicados nos anais da

International Conference on Conceptual Structures um evento dedicado agrave ciecircncia da

computaccedilatildeo Os trecircs investigadores fundamentam desde a ontologia moderna claacutessica a

concepccedilatildeo de hipertexto um conceito fundamental da computaccedilatildeo13 Para Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e

Uckelman o nascimento do termo ldquoontologiardquo representa o estabelecimento de um hipertexto

sobre a realidade e a temporalidade em pleno seacuteculo dezessete Os pesquisadores se referem

especificamente a Jacob Lorhard autor dos oito volumes intitulados Ogdoas Scholastica (1606)

responsaacutevel por cunhar o termo ldquoontologiardquo pela primeira vez na histoacuteria

Lorhard compocircs sua Ogdoas como uma gramaacutetica para o ensino escolar por meio de

aacutervores diagramaticais A teacutecnica utilizada por Lorhard foi profundamente influenciada por

Petrus Ramus (Pierre de la Rameacutee) cujo objetivo era transformar a razatildeo dialeacutetica em um

meacutetodo de loacutegica pedagoacutegica Petrus Ramus foi uma figura controversa e polecircmica Aleacutem de

suas interpretaccedilotildees pouco ortodoxas de Aristoacuteteles Ramus defendia uma completa reforma no

sistema educacional Ele fomentava o espiacuterito humanista pelo qual procurava devolver agrave

retoacuterica sua posiccedilatildeo proeminente visando desautorizar o peso da loacutegica escolaacutestica14

13 A ideia de hipertexto eacute bastante antiga todavia o termo no sentido moderno foi cunhado por Ted Nelson em

1965 para descrever o sistema de escrita natildeo-sequencial que envolvia o ligamento entre textos distintos em uma

mesma interface na internet O sistema de hyperlinks em um siacutetio da internet eacute um exemplo bastante simples de

um hipertexto 14 Cf Petrus Ramus Sa Vie Ses Eacutecrits et Ses Opinions Charles Waddington (ed) Paris Librairie de Ch Meyrteis

1855 Acerca das singularidades de Petrus Ramus confira Laura Adriaacuten Lara ldquoPetrus Ramus y el ocaso de la

retoacuterica ciacutevicardquo Utopiacutea y Praxis Latinoamericana v 13 n 43 (out-dez 2008) 11-31 e ainda Frank P Graves

Petrus Ramus and the Educational Reformation of Sixteenth Century New York Macmillan 1912

53

Havia um profundo espiacuterito anti-escolaacutestico que movia os interesses de Ramus

enfatizando uma postura radical na qual a filosofia ramista considerava falsa todas as

afirmaccedilotildees de Aristoacuteteles Para facilitar o processo de aprendizagem pelo qual o domiacutenio das

ciecircncias e artes liberais pode ser alcanccedilado Ramus emprega seus ldquoesquemas visuais abstratosrdquo

Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman se referem aos esquemas de Ramus como base para a aacutervore

diagramatical de Jacob Lorhard ndash para os pesquisadores este tipo de diagrama eacute o berccedilo de

todo futuro hipertexto

Eacute faacutecil observar que a estrutura da Ogdoas Scholastica de Jacob Lorhard permite ao

leitor localizar conceitos especiacuteficos e suas respectivas definiccedilotildees por meio de uma rede de

interconexotildees na forma de diagramas A ldquoaacutervorerdquo facilita natildeo soacute a compreensatildeo dos conceitos

como tambeacutem a maneira pela qual eles se relacionam uns com os outros Sem embargo trata-

se de uma gramaacutetica pela qual o domiacutenio de conceitos fundamentais da metafiacutesica se torna

bastante simples concordando em absoluto com a demanda da eacutepoca em introduzir este tipo de

estudo nos niacuteveis baacutesicos de ensino Com obras como as de Lorhard a exigecircncia do estudo da

ontologia foi difundida durante o seacuteculo dezoito como parte essencial da formaccedilatildeo acadecircmica

baacutesica15 Aleacutem disto a Ogdoas ainda sustentava a eacutegide da clarificaccedilatildeo da ontologia como base

para todo ulterior desenvolvimento intelectual Em outros termos Lorhard (assim como Ramus)

acreditava que natildeo era possiacutevel esclarecer nenhuma ciecircncia se natildeo houvesse de antematildeo uma

lucidez absoluta a respeito dos fundamentos do ente que poderia ser proporcionada apenas pelo

estudo por ele nomeado ldquoontologiardquo um discurso que buscava um pleno esclarecimento dos

termos empregados para definir todo e qualquer ulterior passo tomado tanto nas ciecircncias do

espiacuterito quanto nas ciecircncias da natureza

15 Muito disto deve-se ao filoacutesofo norueguecircs Jens Kraft cuja obra (influenciada em larga escala pela Metaphysica

sive Ontologia de Christian Wolff) reforccedilou o peso dos estudos em ontologia Dentro da compreensatildeo de Kraft

compartilhada tambeacutem por Lorhard e outros a ontologia ganha um lugar privilegiado como unificaccedilatildeo sistemaacutetica

das estruturas do pensamento como um todo

54

O oitavo livro da Ogdoas de Lorhard que encerra o compecircndio e eacute dedicado agrave ontologia

no sentido de unificar todos os escritos anteriores define a metafiacutesica como ldquo() o

conhecimento de um inteligiacutevel enquanto inteligiacutevel ()rdquo (LORHARD sd 3) Este conhecimento

eacute divido entre conhecimento dos particulares e dos universais Para Lorhard a parte da

metafiacutesica responsaacutevel pelo conhecimento dos particulares ou bem se refere acirc substacircncia

pertinente aos seres natildeo-complexos que subsistem em si mesmos (sejam eles criados ou natildeo)

ou bem aos acidentes

Jaacute o conhecimento dos universais se refere a tudo o que eacute inteligiacutevel redundando nos

atributos gerais ou nas distribuiccedilotildees conforme as quais o λόγος eacute entendido como um inteligiacutevel

As distribuiccedilotildees dizem respeito ao nada por um lado ou a algo por outro sendo este uacuteltimo

em seu aspecto positivo o que envolve as ideias de ldquoessecircnciardquo e ldquoenterdquo As noccedilotildees de ldquoessecircnciardquo

e ldquoenterdquo satildeo centrais natildeo apenas para o sistema de Lorhard mas tambeacutem para todas as

subsequentes compreensotildees da ontologia Em uma primeira definiccedilatildeo Lorhard observa a

ldquoessecircnciardquo em sua relaccedilatildeo com o λόγος definindo que ldquoEssecircncia eacute algo produtivo pelo qual o

Ser eacute o que eacute Esta palavra estrangeira eacute chamada pelos Escolaacutesticos de Entidade ou quidditasrdquo

(IDEM IBIDEM 4) Em segundo lugar considera a ldquoessecircnciardquo em relaccedilatildeo a sua distribuiccedilatildeo na

qual ela eacute ou bem ldquorealrdquo (ou seja uma atualizaccedilatildeorealizaccedilatildeo do ser) ou bem ldquoimaginaacuteriardquo (no

caso de um ser puramente racional) Ambas podem ser ldquosimplesrdquo ou ldquocompostasrdquo ldquoabsolutasrdquo

ou ldquorespectivasrdquo ldquouniversaisrdquo ou ldquosingularesrdquo Dentro do uacuteltimo destes casos a ldquoessecircnciardquo

pode ser ainda ldquogeneacutericardquo (ou um gecircnero compartilhado por outras espeacutecies) ou ldquoespeciacuteficardquo

(relativa a uma uacutenica espeacutecie) Natildeo haacute grande espanto nos pontos apresentados ateacute entatildeo por

Lorhard O que haacute na verdade eacute uma constituiccedilatildeo sistemaacutetica de um diaacutelogo que estava sendo

travado jaacute haacute muito tempo e sobremaneira evidente no periacuteodo no qual ele compocircs sua obra

Suas contribuiccedilotildees mais significantes talvez se deem na seccedilatildeo seguinte quando aborda a

questatildeo do ldquoenterdquo

55

Lorhard tambeacutem considera o ldquoenterdquo no discurso unificador bem como na questatildeo da

ldquoessecircnciardquo afirmando dele algo produtivo ldquodotado de certa essecircnciardquo Em seu caraacuteter

distributivo o ldquoenterdquo (assim como a ldquoessecircnciardquo) eacute ou bem ldquorealrdquo ou bem ldquoracionalrdquo Ele define

o ldquoente de razatildeo ou racionalrdquo afirmando que ldquoEacute um ente de razatildeo que eacute tocado pela cogitaccedilatildeo

de uma mente singular de acordo com o modo real do ente agrave parte disto eacute nada Eacute tambeacutem

chamado ente fictiacutecio e imaginaacuteriordquo (ID IBID 5) Jaacute o ldquoente realrdquo pode se dar por meio do

discurso (λόγος) de sua proacutepria essecircncia ou ainda ser distribuiacutedo em entes primaacuterios e

secundaacuterios (estes uacuteltimos decorrentes dos primeiros) sendo ambos ldquosimplesrdquo ou ldquocomplexosrdquo

ldquoabsolutosrdquo ou ldquorespectivosrdquo ldquouniversaisrdquo ou ldquoparticularesrdquo ldquoimateriaisrdquo ou ldquomateriaisrdquo

ldquopermanentesrdquo ou ldquosucessivosrdquo

Toda a divisatildeo da ontologia de Lorhard acompanha em muitos aspectos a ontologia

derivada da filosofia grega claacutessica desde o processo dialeacutetico de questionamento da realidade

conforme a doutrina platocircnica e a divisatildeo das Categorias de Aristoacuteteles A principal distinccedilatildeo

do emprego do termo ontologia como expressatildeo e manifestaccedilatildeo das doutrinas metafiacutesicas em

Lorhard eacute o foco especiacutefico de uma ldquodoutrina dos inteligiacuteveisrdquo Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman

comentam que

Conforme Lorhard haacute uma importante dualidade entre os entes e nossa discussatildeo

racional a respeito deles Parece que ele insistiu na necessidade dessa dualidade no

sentido de que cada vez que noacutes discutimos os entes no mundo tentando classificaacute-

los tambeacutem temos que refletir sobre os conceitos usados para fazecirc-los (OslashHRSTOslashM

SCHAumlRFE E UCKELMAN OP CIT 4)

Em termos mais simples apoacutes um longo periacuteodo de aristotelismo escolaacutestico talvez tenha sido

Lorhard o primeiro a atentar para o fato de certa confusatildeo gerada dentro da metafiacutesica a respeito

da maneira pela qual se predica o ser do ente em sua participaccedilatildeo presente na realidade

56

Seria liacutecito portanto argumentar que a evidecircncia da confusatildeo de termos se deve ao fato

de Lorhard ter deslocado o ontocentrismo metafiacutesico para uma teoria dos intiligiacuteveis Ainda

conforme Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman a postura de Lorhard eacute diretamente influenciada pela

obra de Clemens Timpler que sustentava a mesma posiccedilatildeo a respeito da metafiacutesica desde uma

confrontaccedilatildeo direta com a filosofia de Francisco Suaacuterez Esta seria a contenda principal do

iniacutecio da modernidade responsaacutevel por conformar e enformar a metafiacutesica como ontologia tal

qual hoje ainda se a concebe Joseph S Freedman desenvolve uma anaacutelise bastante precisa da

maneira pela qual Timpler fundamentou sua postura e as consequecircncias de seu trabalho

sobretudo no que tange agrave disputa com Francisco Suaacuterez A respeito da proposiccedilatildeo ldquotudo que eacute

inteligiacutevelrdquo (omne intelligibile) o tema constitutivo da metafiacutesica Freedman (cf 2009 10-11)

comenta que Timpler provecirc uma moldura conceitual dentro da qual alguns conceitos

ontologicamente baacutesicos satildeo englobados quais sejam ldquoalgordquo (aliquid) ldquoprivaccedilatildeordquo (privatio)

ldquoessecircnciardquo (essentia) e ldquoentidaderdquo (ens) Dentro da dissoluccedilatildeo dos conceitos na obra central de

Timpler Metaphysicae systema methodicum (1604) Freedman comenta

Conforme Timpler ldquotudo aquilo que eacute Inteligiacutevelrdquo eacute dividido entre nihil (ie ldquonadardquo

ou ldquonatildeo-serrdquo) e aliquid aut est (ldquoalgordquo ou ldquoenterdquo) esta eacute basicamente a mesma

dicotomia que William Shakespeare aludiu quando ele coloca no Ato 3 Cena 1 de

Hamlet ndash alguns anos antes (c 1600) da publicaccedilatildeo do texto de Timpler sobre

metafiacutesica ndash que ldquoser ou natildeo ser estaacute eacute a questatildeo []rdquo Mas esta foi a questatildeo que

Timpler e todos os seus (conhecidos) contemporacircneos acadecircmicos aparentemente

desejaram evitar de discutir A discussatildeo da questatildeo de Shakespeare ndash e da dicotomia

de Timpler ndash poderia ter provido as bases para o levantamento de toacutepicos altamente

sensiacuteveis por exemplo 1) a relaccedilatildeo entre Deus e Nada (nihil) 2) a relaccedilatildeo entre Deus

entidade e privaccedilatildeo (ie mal) e 3) a relaccedilatildeo entre Deus e o princiacutepio de contradiccedilatildeo

(FREEDMAN op cit 12)

57

Embora estas questotildees estivessem jaacute sempre presentes dentro dos questionamentos de Timpler

e de seus contemporacircneos elas eram todavia caladas de acordo com Freedman (IDEM IBIDEM)

pela imposiccedilatildeo das instituiccedilotildees cristatildes das coisas sobre as quais se era proibido falar ou acreditar

O que perdura das apresentaccedilotildees filosoacuteficas da metafiacutesica como ontologia em Timpler

ponderando seu princiacutepio do inteligiacutevel concentra-se em primeiro lugar como o mateacuteria de

todas as disciplinas e subdisciplinas acadecircmicas e em segundo lugar como foco de disciplinas

separadas como a archeologia gnostologia hexiologia intelligentia pansophia e tecnologia

(cf ID IBID 14)

O motivo da predileccedilatildeo da questatildeo dos intiligiacuteveis como foco principal de todos os

temas concernentes ao pensamento aparece dentro da possibilidade de envolver todos os

aspectos responsaacuteveis pelos modos operativos de pensar 16 Desta forma por exemplo as

disciplinas separadas como a ldquotecnologiardquo seriam desenvolvidas para as consideraccedilotildees gerais

e universais da estrutura das disciplinas liberais (cf ID IBID 16) Embora discrimine em parte

o princiacutepio da cogniccedilatildeo a metafiacutesica tampouco envolve a loacutegica por levar em consideraccedilatildeo

apenas os princiacutepios excluindo entidades complexas que redundem no princiacutepio de contradiccedilatildeo

Em contrapartida ao sistema metoacutedico de Timpler vecirc-se em Francisco Suaacuterez um

caraacuteter muito mais ontocecircntrico As Disputationes Metaphysicae (1597) de Francisco Suaacuterez

satildeo publicadas dentro de um contexto de desarmonia e conflitos entre a teologia e a filosofia

onde os conceitos fundamentais na discussatildeo sobre o divino estavam sendo postos em questatildeo

A despeito das influecircncias de Suaacuterez e dos necessaacuterios posicionamentos poliacuteticos sua obra

parece instaurar um regulamento por meio do qual nada poderia ser legado agrave mera

inteligibilidade

16 Freedman (ID IBID 15) cita o teoacutelogo calvinista Matthias Martinius contemporacircneo de Timpler que evidencia

de maneira mais clara os motivos das proposiccedilotildees fundamentais Ele atesta que conforme esta designaccedilatildeo agrave

metafiacutesica ldquopertence tudo aquilo que eacute cognosciacutevelrdquo (de omni cogitabili) mas com certas restriccedilotildees englobando

a ldquouniversalidade das coisasrdquo (rerum universitatem) mas natildeo envolvendo disciplinas acadecircmicas especializadas

singulares ou particulares

58

As Disputationes de Suaacuterez podem ser entendidas desde uma divisatildeo da obra na qual a

primeira parte (as primeiras vinte-e-sete questotildees) se refere ao ente no sentido geral enquanto

a segunda parte (as vinte-e-sete uacuteltimas questotildees) lida com o ente particular redundando em

uma dupla divisatildeo da proacutepria metafiacutesica entre ldquometafiacutesica geralrdquo e ldquometafiacutesica especialrdquo (cf

SUAacuteREZ 2004 DOYLE 2004) Ao comentar o desenvolvimento deste aspecto da filosofia de

Suaacuterez Ludger Honnefelder ainda acrescenta

Conforme Suaacuterez a metafiacutesica lida com o conceito de ente tanto ldquoformalrdquo quanto

ldquoobjetivordquo Pelo conceito formal Suaacuterez entende o ato de conhecer do qual ldquoex unica

et prima impositionerdquo que rende uma representaccedilatildeo intencional do objeto pelo

conceito objetivo ele designa aquilo que representa intencionalmente o ato Em outras

palavras Suaacuterez natildeo assume a teoria dos conceitos caracterizada pelo paralelismo

noeacutetico-noemaacutetico de res e conceptus antes ele aceita a abordagem criacutetica de Ockham

em direccedilatildeo a interpretaccedilatildeo realiacutestica dos conceitos universais Desde que Scottus ele

mesmo natildeo depende desse paralelismo quando isto vem a dizer respeito sobre o ente

Suaacuterez substancialmente segue Scottus e aplica ldquoenterdquo para um conceito formal

primaacuterio e unificado que em virtude de sua imposiccedilatildeo representa um objetivo

primaacuterio e unificado do conteuacutedo absolutamente simples que envolve todos os entes

distintos de uma maneira indeterminada ie como ente (HONNEFELDER 2003)

Segundo a exposiccedilatildeo de Honnefelder o direcionamento da metafiacutesica de Suaacuterez iraacute redundar

em alguns pontos baacutesicos em primeiro lugar o fato de que a determinaccedilatildeo do ente transcende

a generalidade dos gecircneros em segundo que a determinaccedilatildeo natildeo pode ela mesma ser definida

podendo apenas ser explicada em relaccedilatildeo agrave existecircncia real em terceiro que toda existecircncia estaacute

sujeita agrave fundamentaccedilatildeo de disposiccedilatildeo ontoloacutegica em uacuteltimo lugar que o ente finito perdura

em um modo indeterminaacutevel de quantidade sendo o ente infinito eacute aquilo que eacute perfeito e

totalmente indivisiacutevel em si mesmo e mais real e completo (cf IDEM IBIDEM)

59

Agora bem com o fito de retomar a linha de raciociacutenio desenvolvida no capiacutetulo eacute

preciso retomar a ideia de substantivaccedilatildeo do Ocidente e a maneira pela qual esse processo se

deixar ver ao longo da histoacuteria da ontologia Martin Heidegger indica em primeiro lugar o que

ele considera como o problema fundamental pelo qual a metafiacutesica se desdobra no Ocidente

qual seja o fato de que o ldquoserrdquo natildeo eacute um ldquoenterdquo mas que todavia um foi tomado pelo outro Ele

apresenta ainda o argumento de que a transposiccedilatildeo da experiecircncia fundamental grega (conforme

apresentada tambeacutem por Charles H Kahn) sofre uma violaccedilatildeo na absorccedilatildeo latina e na

transferecircncia de conceitos de um modo de pensar para o outro Eacute dentro deste ambiente latino

que eacute possiacutevel rastrear a maneira pela qual a metafiacutesica se forma e transforma em ontologia ou

bem dentro de uma filosofia do inteligiacutevel (como em Lorhard e Timpler) ou bem como um

ontocentrismo filosoacutefico (como em Suaacuterez) Sem embargo trata-se de uma disputa em torno agraves

formas primaacuterias da discussatildeo em torno ao ldquoserrdquo e ao ldquoenterdquo Eacute possiacutevel concluir desde a

constataccedilatildeo da entificaccedilatildeo do ser ou substantivaccedilatildeo do Ocidente que a demanda pela resposta

ao problema primeiro da filosofia necessariamente a encaminha para um percurso que natildeo

poderia ser outro Mas qual eacute propriamente este problema primeiro e como se constroacutei esse

caminho Natildeo haveria outra indicaccedilatildeo senatildeo a da ciecircncia dos primeiros princiacutepios e causas de

Aristoacuteteles Jaacute na doutrina das Categorias de Aristoacuteteles eacute possiacutevel observar a confusatildeo entre

ldquoserrdquo e ldquoenterdquo A questatildeo pode ser melhor observada na proposiccedilatildeo baacutesica e amplamente

difundida da Metafiacutesica ldquoO ente se diz em muacuteltiplos significados mas sempre em referecircncia a

uma unidade e a uma realidade determinadardquo (ARISTOacuteTELES 2002 131)17 A referecircncia a uma

unidade e uma realidade determinada eacute a chave para compreender a maneira pela qual a

ontologia se torna a ciecircncia responsaacutevel por esse tema (conforme Aristoacuteteles ldquoHaacute uma ciecircncia

que considera o ente enquanto ente e as propriedades que lhe competem enquanto talrdquo ID IBID)18

17 Τὸ δὲ λέγεται μὲν πολλαχῶς ἀλλὰ πρὸς ἓν καὶ μίαν τινὰ φύσις καὶ οὐχ ὁμωνύμως ἀλλrsquo (Metafiacutesica 1003a 30-

35) 18 Ἔστιν ἐπιστήμη τις ἧ τὸ ὄν ᾗ ὄν καὶ τὰ τούτῳ ὑπάρχοντα καθ αὑτό (Metafiacutesica 1003a 20)

60

Dentro desta ciecircncia o conceito central que unifica e determina ldquoenterdquo e ldquoserrdquo eacute

apresentado como οὐσία O conceito de οὐσία (substantia substacircncia) eacute bem desenvolvido nas

Categorias entre as expressotildees que natildeo satildeo compostas quais sejam a substacircncia mesma

quantidade qualidade relaccedilatildeo lugar tempo posiccedilatildeo estado accedilatildeo ou afecccedilatildeo Ela eacute

apresentada desde duas perspectivas uma primaacuteria outra secundaacuteria A substacircncia primeira

natildeo se afirma de um sujeito nem em um sujeito mas comporta as substacircncias segundas nas

quais a forma afirma a espeacutecie e o gecircnero (ldquoserrdquo do sujeito) comportando tambeacutem os acidentes

(ldquoserrdquo no sujeito) que a eles se atribui Embora o conceito em sua primeira formulaccedilatildeo

contemple o aspecto formal bem como o elemento inteligiacutevel envolve ainda o aspecto material

em seu segundo modo natildeo podendo ser um sem o outro

As consequecircncias do desenvolvimento de uma ciecircncia responsaacutevel pelo ente enquanto

ente centralizando o conceito de substacircncia e substantivando a ideia de ldquoserrdquo por meio de seu

particiacutepio presente ldquoenterdquo satildeo o que se pode considerar como o desenvolvimento da histoacuteria do

ldquoserrdquo ou a histoacuteria da maneira pela qual o Ocidente compreende o ldquoserrdquo e a si mesmo Por meio

desta postulaccedilatildeo o ldquoτὰ ὄνταrdquo eacute posicionado no centro do pensamento ocidental Mais ainda do

que uma simples constataccedilatildeo da maneira pelo qual coube ao Ocidente pensar curioso eacute

especular o fato de que se natildeo fosse possiacutevel pensar fora da delimitaccedilatildeo do ente natildeo haveria

sequer indagaccedilatildeo alguma sobre as limitaccedilotildees ou prejuiacutezos imbuiacutedos nesta formulaccedilatildeo Sem

embargo eacute possiacutevel constatar desde os recursos apresentados (e ainda por muitos outros

caminhos que natildeo este) a necessidade incontida do ser humano ocidental eacute desenhar de maneira

niacutetida as fronteiras do pensamento e da maneira pela qual esse pensamento deve e pode ser

aplicado Resta saber apoacutes esta delimitaccedilatildeo o que haacute para aleacutem da fronteira

61

2 O CAMINHO DA NEGATIVIDADE HENEOLOGIA E MEONTOLOGIA E A

ULTRAPASSAGEM DOS LIMITES DA METAFIacuteSICA

O discurso ontoloacutegico tanto grego quanto latino personificou a atividade filosoacutefica ocidental

em larga escala A maneira pela qual a ontologia habilitava ao raciociacutenio uma seacuterie de

procedimentos facilmente verificaacuteveis nutriu seguranccedila metodoloacutegica aos assuntos

concernentes aos problemas intelectuais com os quais o ser humano fatalmente se deparava ao

longo de suas especulaccedilotildees e que reverberavam ainda na conjuntura soacutecio-pragmaacutetica Eacute neste

sentido que teria afirmado Immanuel Kant de maneira perspicaz que a razatildeo humana se

defronta com inevitaacuteveis questotildees impostas por sua proacutepria natureza19 Tanto para Aristoacuteteles

quanto para Francisco Suaacuterez aleacutem de tantos outros entrementes a importacircncia de assegurar

uma linha de raciociacutenio vaacutelida natildeo somente atribuiacutea autoridade ao argumento como tambeacutem

provia de suficiente clareza a linguagem que advogava suas doutrinas Em outras palavras

tornava-se faacutecil convencer outrem de seus pressupostos dada a indefectiacutevel loacutegica empregada

para encadear as sentenccedilas e alcanccedilar uma conclusatildeo A ontologia por meio de suas loacutegicas de

identidade e natildeo-contradiccedilatildeo (e ateacute certo ponto tambeacutem via argumento do terceiro excluiacutedo)

visava alcanccedilar tanto para afirmaccedilatildeo quanto para negaccedilatildeo a dissoluccedilatildeo de todo e qualquer

paradoxo que colocasse a mente em estado de confusatildeo e discoacuterdia Independente daquilo que

estava sendo afirmado ou negado da linha de raciociacutenio ou doutrina em jogo os procedimentos

discursivos e intelectuais eram basicamente os mesmos com variaccedilotildees conceituais maiores ou

menores dependendo da vertente Todavia prosseguia-se sempre da mesma maneira

19 Kant afirma ldquoA razatildeo humana no seu gecircnio de seu conhecimento possui o peculiar destino de ser incomodada

por questotildees que natildeo pode evitar porque elas satildeo dadas pela natureza da razatildeo mesma mas tambeacutem natildeo possuem

respostas porque elas excedem a capacidade da razatildeo humanardquo (KANT 1956 5 Criacutetica da razatildeo pura AVII-

AVIII)

62

Contudo a despeito da supremacia ontoloacutegica outras formas de pensamento foram

desenvolvidas no decorrer da histoacuteria da filosofia fossem elas similares ou totalmente opostas

Alguns pensadores especialmente radicais se dedicaram a um modo reflexivo que se distanciava

consideravelmente da estrutura ontoloacutegica Suas bases seus pressupostos e seus meacutetodos pelos

quais prosseguiam no caminho especulativo dos temas propostos (muitas vezes os mesmos dos

formuladores da ontologia claacutessica) projetavam-se de maneira consideravelmente diversa Para

eles havia uma necessidade imperativa de incluir todos os elementos presentes na estrutura da

realidade pensada em sua maacutexima possibilidade de concepccedilatildeo tanto os que satildeo quanto os que

natildeo satildeo Ao que parece por este motivo Werner Beierwaltes considera que as caracteriacutesticas

pelas quais se configuram a ontologia claacutessica satildeo sobretudo frutos da interrogaccedilatildeo pelo nexo

da identidade e da diferenccedila quer seja na afirmaccedilatildeo parmeniacutedica da natildeo legitimaccedilatildeo filosoacutefica

da alteridade quer seja na resposta platocircnica do necessaacuterio estabelecimento da diferenccedila na

constituiccedilatildeo do ldquoserrdquo em seu inteiro (cf BEIERWALTES 1989 25) Para Beierwaltes o rigoroso

conceito de unidade demandado por Platatildeo em reposta agrave univocidade do ser de Parmecircnides

resultou na possibilidade de inclusatildeo do ldquonatildeo-serrdquo relativo ao ldquoserrdquo para afirmar sua totalidade

Disto derivaria a altercaccedilatildeo originaacuteria entre identidade e diferenccedila e nisto consiste a

possibilidade de desvio do pensamento ontoloacutegico20 Sem embargo precisamente neste ponto

que acredito poder encontrar o que chamo aqui de caminho da negatividade ou a possibilidade

de inclusatildeo do oxiacutemoro no caminho de pensamento delineado pela ontologia considerando que

ele se desdobra na tradiccedilatildeo do chamado neoplatonismo e ainda na miacutestica medieval

20 Trata-se da definiccedilatildeo do natildeo-ser como alteridade apresentada no Sofista Apoacutes a discussatildeo acerca da comunidade

de gecircneros e a questatildeo do ldquomesmordquo e do ldquooutrordquo que configuram o problema da identidade e da diferenccedila Platatildeo

apresenta a hipoacutetese de compreender o ldquomovimentordquo como ldquooutrordquo do ldquoserrdquo questionando a tese parmeniacutedica a

respeito da ldquoestaticidade do serrdquo Assim Platatildeo coloca a questatildeo ldquoDevemos trabalhar nossa coragem agora para

dizer que aquilo que lsquonatildeo eacutersquo definitivamente eacute algo que possui natureza proacutepria Devemos dizer que assim como

o grande era grande o belo era belo o natildeo grande eacute natildeo grande e o natildeo belo eacute natildeo belo da mesma maneira pela

qual natildeo eacute tambeacutem foi e eacute natildeo-ser e eacute uma das formas dentre as quais satildeordquo (PLATO 1997 282 Sofista 258 c-d)

A sequecircncia do diaacutelogo questionaraacute a realidade deste natildeo-ser relativo culminando na identidade entre pensamento

e discurso abrindo a possibilidade para o discurso falso (o do sofista) e introduzindo a assunccedilatildeo do paradoxo no

seio do pensamento representando o chamado parriciacutedio aos eleatas

63

Ateacute onde eacute possiacutevel investigar o termo neoplatonismo teria sido cunhado pela primeira

vez pelo helenista e medievalista Thomas Gale nos idos de 1670 Gale foi responsaacutevel por uma

seacuterie de estudos sobre o neoplatonismo pagatildeo e cristatildeo escrevendo sobre Plotino Jacircmblico

Joatildeo Escoto Eriuacutegena Maacuteximo Confessor entre outros21 Definiccedilotildees agrave parte os primeiros

elementos responsaacuteveis por delinearem um ldquoneoplatonismo originaacuteriordquo apenas tardiamente

nomeado satildeo atribuiacutedos a Amocircnio Sacas Contudo como a figura histoacuterica de Amocircnio Sacas

eacute tatildeo envolta em controveacutersias e misteacuterios quanto a vida de Pitaacutegoras ou Soacutecrates atribui-se

diretamente a fundaccedilatildeo de uma ldquoescola neoplatocircnicardquo a Plotino disciacutepulo de Amocircnio

Muacuteltiplos debates mais ou menos coerentes envolvem os relatos sobre a relaccedilatildeo entre Plotino e

Amocircnio aleacutem de polecircmicas acerca do proacuteprio Amocircnio22 Destaca-se apenas a autoridade dos

relatos de Porfiacuterio (em sua Vida de Plotino) nos quais se considera que o meacutetodo de pesquisa

aplicado por Plotino estava profundamente ligado ao de seu mestre O conteuacutedo dos discursos

de Plotino tambeacutem teria uma iacutentima relaccedilatildeo com as tentativas de Amocircnio de unificar os diversos

planos do ser e estabelecer a derivaccedilatildeo de todas as coisas a partir do uno23 Sem embargo

Plotino teria absorvido e desenvolvido a doutrina de Amocircnio e necessariamente de Platatildeo em

suas Eneacuteadas em um movimento de exegese ao discurso platocircnico Exegese esta suscetiacutevel de

diversas interpretaccedilotildees dos caminhos por Plotino tomados e mesmo natildeo muito consensual entre

os estudiosos da obra24

21 Extraiacute estes dados de Aaron W Huges em um trabalho intitulado ldquoMedievalrdquo and the Politics of Nostalgia

Ideology Scholarship and the Creation of the Rational Jew (2012) Huges natildeo apenas investiga as origens das

designaccedilotildees do neoplatonismo mas ainda constata que a alcunha de ldquoneoplatocircnicosrdquo continuou sendo utilizada

por eruditos alematildees no seacuteculo dezenove como uma menccedilatildeo pejorativa aos ldquofalsificadoresrdquo das doutrinas de Platatildeo

e Aristoacuteteles (cf HUGES 2012) 22 Conforme Giovanni Reale em sua Storia della filosofia antica (1975-1980) Sobre este ponto especificamente

acerca das incertezas em torno agrave figura de Amocircnio confira REALE 2008 5-13 23 Esta consideraccedilatildeo eacute apresentada por Giovanni Reale com base nos relatos de Nemeacutesio em De natura hominis

(cf REALE 2008 11) Conforme Francisco B Harriet a questatildeo fundamental se encontraria na foacutermula ldquoestaacute mais

aleacutem do intelecto e da essecircnciardquo (ἐπέκεινα νοῦϛ καὶ οὐσίας) conforme a formulaccedilatildeo de Oriacutegenes de Alexandria

em Contra Celsum (fons ex quo initium totius intellectualis naturae uel mentir est) presente em Plotino (Eneacuteadas

V 1 8 e VI 8 16) e derivada do ciacuterculo de Amocircnio (cf HARRIET 2012 153) 24 Sobre a questatildeo da exegese Marcus Reis Pinheiro (em Plotino exegeta de Platatildeo e Parmecircnides 2007)

argumenta que natildeo se pode reduzir a exegeacutetica agrave mera interpretaccedilatildeo dos diaacutelogos de Platatildeo e outros escritos Trata-

se antes do desdobramento de um discurso muito antigo onde ldquo() fazer exegese () natildeo eacute interpretar

objetivamente os textos mas caminhar rumo aos niacuteveis superiores junto com os antigosrdquo (P INHEIRO 2007 80)

64

Neste fluxo talvez o mais cabiacutevel usual e conhecido de todos os estabelecimentos de

um ldquoponto de partidardquo seja o do claacutessico artigo Jean Trouillard Le Parmeacutenide de Platon et son

interpretation neacuteoplatonicienne (1973) onde o neoplatonismo eacute pensado desde a busca da

doutrina originaacuteria de Platatildeo principalmente a partir de uma releitura de seu diaacutelogo

Parmecircnides Todavia a maneira pela qual eacute possiacutevel explanar esta releitura levanta suspeitas

sendo necessaacuterio ponderar em quais formas a exegese plotiniana converge ou diverge das

tentativas de uma interpretaccedilatildeo das doutrinas originaacuterias de Platatildeo Mais ainda estaacute tambeacutem

em jogo a autoridade de apontar que existam de fato doutrinas originaacuterias havendo ainda

abertura para questionar a fiabilidade e o suposto peso das chamadas ldquodoutrinas natildeo-escritasrdquo25

Seja como for interessa sobretudo destacar como com as Eneacuteadas de Plotino o pensamento

filosoacutefico experimenta um movimento iacutempar em relaccedilatildeo agravequilo que vinha sendo apresentado

Para Ciacutecero Cunha Bezerra eacute possiacutevel elencar alguns pontos que evidenciam de maneira

clara a renovaccedilatildeo do neoplatonismo Destaca-se em primeiro lugar a junccedilatildeo entre os elementos

aristoteacutelicos e pitagoacutericos em siacutentese com uma perfeita sintonia entre o platonismo acadecircmico

e as ldquodoutrinas natildeo-escritasrdquo Ademais a ldquohierarquizaccedilatildeordquo do real a partir da qual todos os

graus satildeo derivados desde o uno permite uma sistematizaccedilatildeo do platonismo anterior Por este

motivo tende-se agrave leitura conforme a qual o neoplatonismo possuiria um sistema ldquomonopolarrdquo

frente a um suposto ldquobipolarismordquo platocircnico Por fim haacute ldquo() o fim uacuteltimo do processo de

conhecimento que para o neoplatocircnico eacute a uniatildeo plena com Deus (fugir soacute ao soacute) uma uniatildeo

que tem como marca a supressatildeo (aphaiacuteresis) de todo saber e dizerrdquo (BEZERRA 2006 57)

Dentre os pontos apresentados interessa-me particularmente o uacuteltimo (evidente consequecircncia

dos trecircs primeiros) no qual o neoplatonismo aparece como uma ldquosupressatildeo de todo saber e

dizerrdquo

25 Haacute uma interessante e profunda discussatildeo acerca do tema na tradiccedilatildeo de leitores e inteacuterpretes do platonismo e

do neoplatonismo a respeito deste toacutepico Ciacutecero Cunha Bezerra (em Compreender Plotino e Proclo 2006) aborda

o tema abrindo uma interlocuccedilatildeo com a obra Platone alla ricerca della spienza segreta de Giovanni Reale e ainda

com as investigaccedilotildees de W K C Guthrie e a chamada Escola de Tuumlbingen (cf BEZERRA 200617-24)

65

O senso comum ocidental regula a atividade filosoacutefica como um progresso ininterrupto

rumo ao acuacutemulo de conhecimento e dissoluccedilatildeo dos problemas Curioso agora eacute pensar a

maneira pela qual uma doutrina filosoacutefica pode suprimir o saber e o dizer ao inveacutes de

acrescentar Mas eacute apenas possiacutevel atingir a compreensatildeo necessaacuteria desta supressatildeo uma vez

esclarecido o que eacute propriamente o princiacutepio negativo do pensamento de Plotino Para isto natildeo

se pode perder de vista as duas questotildees que levariam agrave construccedilatildeo do pensamento de Plotino

quais sejam ldquo() o problema religioso (que corresponde agrave busca de compreensatildeo do destino

da alma assim como sua restauraccedilatildeo) e o problema filosoacutefico relativo agrave explicaccedilatildeo racional da

realidade ()rdquo (IDEM IBIDEM 66)26 ponderando ainda que em Plotino ambas estatildeo perfeitamente

inter-relacionadas Para atingir este entendimento todavia eacute necessaacuterio analisar as chamadas

trecircs hipoacutestases de Plotino presentes em suas Eneacuteadas

O conjunto de circunstacircncia que acompanham a formulaccedilatildeo do pensamento de Plotino

eacute todavia aquele anteriormente citado apresentado por Werner Beierwaltes que remete agrave

contenda entre Parmecircnides e Platatildeo Contextualizar a disputa Parmecircnides-Platatildeo da qual

derivam centralmente as hipoacutestases de Plotino natildeo eacute necessariamente complicado embora

interpretaacute-la e desde aiacute desdobrar um novo caminho reflexivo seja uma tarefa bastante

trabalhosa A demanda especulativa eacute altiacutessima e envolve uma bibliografia excessivamente

extensa e complexa Contudo como o interesse aqui eacute a apresentaccedilatildeo dos aspectos centrais do

pensamento de Plotino e como deles redunda uma nova postura e atitude filosoacuteficas o trabalho

fica menos penoso Portanto para colocar em relevo as hipoacutestases de Plotino eacute importante ao

menos demonstrar de forma simples os pontos originais dos quais elas derivam seja em

Parmecircnides seja em Platatildeo (e ateacute certo ponto tambeacutem no neopitagorismo e em Aristoacuteteles

embora esta tarefa exija um pouco mais e seja um pouco mais complicada de rastrear) Para

alcanccedilar este objetivo torna-se imperioso retornar brevemente a Parmecircnides

26 Esta hipoacutetese eacute destacada por Bezerra diretamente da obra de Eacutemile Breacutehier La Philosophie de Plotin (1928)

66

O segundo fragmento do poema Sobre a Natureza de Parmecircnides catalisa os principais

argumentos do conflito permitindo compreender quais satildeo os pontos mais problemaacuteticos do

estabelecimento de sua doutrina na tradiccedilatildeo Aleacutem da Fiacutesica de Simpliacutecio as fontes pelas quais

se estruturou esse fragmento adveacutem dos Comentaacuterios ao Timeu e Comentaacuterios ao Parmecircnides

de Proclo Os oito versos contidos no fragmento centralizam a doutrina de Parmecircnides como

foi herdada pela tradiccedilatildeo a partir da manifestaccedilatildeo das duas uacutenicas vias possiacuteveis para o

pensamento quais sejam a via da verdade e a via da aparecircncia O fragmento diz

εἰ δ᾽ ἄγ᾽ ἐρὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας

αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι

ἡ μέν ὄπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι

πειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ)

ἡ δ᾽ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι

τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν

οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐόν (οὐ γὰρ ἀνυστόν)

οὔτε φράσαις

(KIRK E RAVEN 1957 269)

Pois bem agora vou eu falar e tu presta atenccedilatildeo ouvindo a palavra

acerca das uacutenicas vias de questionamento que satildeo a pensar

uma para o que eacute e como tal natildeo eacute para natildeo ser

eacute o caminho de persuasatildeo ndash pois Verdade o segue ndash

outra para o que natildeo eacute e como tal eacute preciso natildeo ser

esta via indico-te que eacute uma trilha inteiramente inviaacutevel

pois nem ao menos se reconheceria o natildeo ente pois natildeo eacute realizaacutevel

nem tampouco se mostraria

(Traduccedilatildeo de Fernando Santoro cf PARMEcircNIDES 200612)

67

O caminho da verdade que eacute e natildeo eacute para natildeo ser (ἡ μέν ὄπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ

εἶναι) e o caminho da aparecircncia que natildeo eacute e natildeo pode ser (ἡ δ᾽ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών

ἐστι μὴ εἶναι) satildeo via de regra estabelecidos como a manifestaccedilatildeo maacutexima da loacutegica ocidental

e berccedilo dos princiacutepios de identidade e natildeo-contradiccedilatildeo A partir deles eacute possiacutevel natildeo soacute

estabelecer uma identidade (o ser eacute representada pela claacutessica foacutermula A=A) como ainda

verificar a veracidade dessa mesma identidade ndash natildeo eacute possiacutevel que o ser sendo natildeo seja

ilustrado pela foacutermula not (A ˄ notA) um tanto esdruacutexula sem duacutevidas27

O legado de Parmecircnides eacute marcado em sua difusatildeo pelos chamados ldquofiloacutesofos eleatasrdquo

sobretudo por Zenatildeo de Eleacuteia Seus argumentos contra a pluralidade (cf KIRK E RAVEN OP CIT

288-291) e contra o movimento (cf IDEM IBIDEM 291-297) se tornaram assaz populares

sobretudo no que concerne aos paradoxos da flecha no estaacutedio e de Aquiles e a tartaruga Aleacutem

da constataccedilatildeo da univocidade do ser presente em toda linha de pensamento parmeniacutedica28 O

resultado imediato dos exerciacutecios de raciociacutenio de Zenatildeo demonstraram a formataccedilatildeo de uma

estaticidade do ser e da realidade em torno alertando para a ilusatildeo do movimento e alteraccedilotildees

na substacircncia do real O momento no qual Platatildeo compotildee seu diaacutelogo Parmecircnides retrata

justamente o evento no qual tanto Parmecircnides quanto Zenatildeo estatildeo no aacutepice da divulgaccedilatildeo de

sua doutrina dialogando com um ainda jovem Soacutecrates Trata-se de um dos momentos mais

emblemaacuteticos da histoacuteria da filosofia ocidental

27 Haacute uma discussatildeo em torno a uma suposta terceira via aquela na qual o que ldquoeacuterdquo eacute e natildeo eacute ao mesmo tempo

baseada no sexto fragmento onde se lecirc ldquoοἶς τὸ πέλειν τε καὶ οὐκ ταῦτὸν νενόμισταιrdquo (KIRK E RAVEN OP CIT 271)

Embora ainda em um sentido pejorativo de uma via do engano emerge a possibilidade de que algo seja e natildeo seja

Mesmo que natildeo seja profiacutecuo para o andamento da tese se fixar na discussatildeo vale ao menos citaacute-la sobretudo

ponderando os apontamentos feitos por Jean Beaufret acerca da interpretaccedilatildeo de Martin Heidegger da terceira via

como a via dos entes Ao que cabe no propoacutesito do trabalho basta apenas atentar para como a tensatildeo entre as duas

primeiras vias jaacute foram suficientes para levantar controveacutersias Eacute possiacutevel especular ainda que jaacute na primeira via

aparece tambeacutem uma possibilidade de que o ser seja e natildeo seja quando se afirma que ele ldquoeacute e natildeo eacute para natildeo serrdquo

Seria possiacutevel conectar o ldquonatildeo eacuterdquo da sentenccedila como o natildeo-ser relativo necessaacuterio agrave constituiccedilatildeo da inteireza do

ser como argumentado no Sofista de Platatildeo 28 O que significa afirmar que natildeo existem ldquograusrdquo do ser uma coisa ou eacute real (ser) ou irreal (nada) (cf BEZERRA

2003 47)

68

As chamadas ldquotrecircs hipoacutetesesrdquo do Parmecircnides de Platatildeo satildeo apresentadas

respectivamente nas passagens 137c-142a 142b-157a e 157b-159a Elas constituem a mateacuteria

bruta para a elaboraccedilatildeo das trecircs hipoacutestases de Plotino Todas as trecircs hipoacuteteses de Platatildeo satildeo

apresentadas pela personagem do entatildeo velho Parmecircnides arguindo Soacutecrates a respeito da

viabilidade de cada argumento Elas se apresentam ainda a partir do problema constituiacutedo pela

questatildeo da unidade e da multiplicidade A pulsatildeo do jovem Soacutecrates ao inquirir Parmecircnides a

respeito de sua teoria fazendo-o apresentar as trecircs hipoacuteteses parte da colocaccedilatildeo de Parmecircnides

a respeito da assunccedilatildeo da multiplicidade por um lado e da impossibilidade do muacuteltiplo por

outro Parmecircnides eacute levado pelo jovem Soacutecrates a confirmar natildeo apenas sua teoria mas sua

metodologia e plano doutrinaacuterio

Para confrontar a teoria parmeniacutedica Platatildeo desenvolve a primeira hipoacutetese Ela

consiste basicamente na afirmaccedilatildeo de o que o ldquouno eacute unordquo ou seja se haacute uno natildeo eacute possiacutevel

que o uno seja muacuteltiplo Por este motivo ele natildeo pode conter partes nem tampouco ser um

inteiro (composto por partes) Tambeacutem natildeo pode ter um comeccedilo nem um meio nem um fim

natildeo possuindo nada que o limite ou delimite Tampouco pode possuir um formato nem se

encontrar em lugar algum nem estar se movimentando de um lugar para outro (porque entatildeo

assumir-se-ia algo outro que natildeo o uno pelo qual ele se movimenta) e nem em si mesmo

(porque com isto se movimentaria entre suas partes que por definiccedilatildeo natildeo pode conter) Natildeo

pode ainda ser diferente de si mesmo nem o mesmo que si mesmo porque assumindo sua

diferenccedila se assumiria algo outro que natildeo o uno ndash e assumindo sua identidade se assumiria que

haacute algo a saber a proacutepria identidade predicada do uno e que natildeo eacute o uno Natildeo pode tambeacutem

estar no tempo nem ter surgido em momento algum Por fim o uno natildeo pode possuir um nome

ou seja eacute inominaacutevel natildeo podendo ser objeto de opiniatildeo nem conhecimento nem percepccedilatildeo

caso contraacuterio assumir-se-ia um ser ou essecircncia distintos do uno pelo qual se alcanccedila seu

entendimento

69

Necessariamente a primeira hipoacutetese leva a uma outra questatildeo ou ao levantamento de

uma segunda hipoacutetese qual seja o uno eacute e quais satildeo as consequecircncias disto para ele mesmo

Essa hipoacutetese eacute consideravelmente mais complicada e envolve algumas nuances bastante

delicadas O argumento geral se concentra na ideia de que a proposiccedilatildeo uno eacute envolve

necessariamente a ideia de essecircncia do uno O grande problema em afirmar que o uno participa

da essecircncia de uno eacute justamente estabelecer a diferenccedila entre uma coisa e outra ou seja torna-

se inevitaacutevel afirmar que existem duas coisas a saber o uno e a essecircncia do uno O embargo

consiste na simples afirmaccedilatildeo uno eacute em contraposiccedilatildeo agrave afirmaccedilatildeo uno uno Logo desdobram-

se dois unos um uno que eacute e um uno e o ser O primeiro como afirmaccedilatildeo do proacuteprio uno o

segundo como assunccedilatildeo da participaccedilatildeo dele mesmo em sua essecircncia A reaccedilatildeo imediata agrave

afirmaccedilatildeo de que o uno eacute caminha em sentido contraacuterio das negaccedilotildees da primeira hipoacutetese

Sem embargo jaacute neste momento mesmo antes da apresentaccedilatildeo da terceira hipoacutetese

torna-se possiacutevel fazer algumas consideraccedilotildees Em primeiro lugar a hipoacutetese de que o ldquouno eacute

unordquo a despeito da aplicaccedilatildeo da categoria do ser para a predicaccedilatildeo da sentenccedila direciona o

pensamento para um caminho no qual natildeo haacute outra possibilidade senatildeo a completa negaccedilatildeo de

tudo que possivelmente competiria ao uno levando mesmo agrave dissoluccedilatildeo do eacute presente na frase

Em segundo lugar a hipoacutetese de que o ldquouno eacuterdquo desta vez com ecircnfase no eacute gera o movimento

oposto de afirmaccedilatildeo de tudo o que porventura poderia ser predicado de qualquer elemento

Estas duas hipoacuteteses (como se veraacute na apresentaccedilatildeo das hipoacutestases de Plotino)

discriminam perfeitamente as duas vias aqui cogitadas quais sejam uma via afirmativa da

ontologia claacutessica na afirmaccedilatildeo das coisas por meio da qual percebe-se compreende-se e se

faz ciecircncia e uma via negativa do que seraacute ulteriormente nomeada henologia na qual a maacutexima

especulaccedilatildeo acerca da natureza do uno natildeo leva senatildeo agrave negaccedilatildeo absoluta ndash as caracteriacutesticas

desta negaccedilatildeo ou negatividade ver-se-aacute mais claramente nas Eneacuteadas

70

A terceira hipoacutetese do Parmecircnides de Platatildeo eacute apresentada no diaacutelogo muito brevemente

Ela abarca ambos os aspectos centrais das duas primeiras hipoacuteteses sugerindo que o uno eacute e

natildeo eacute imputando a categoria de mudanccedila em sua natureza Trata-se de diagnosticar o fato de

que sendo o uno uno por um lado e muacuteltiplo por outro participa e natildeo participa de sua

essecircncia vem a ser e deixa de ser ponderando ainda que esta mudanccedila se daacute no instante Sendo

assim tanto o movimento de retorno ao uno quanto o movimento de procedecircncia a partir do

uno daacute-se ao mesmo tempo em uma reciprocidade na qual tanto a geraccedilatildeo da multiplicidade

configura o uno nem como uno nem como muacuteltiplo quanto a reuniatildeo da multiplicidade ao

uno tampouco configura o uno nem como uno nem como muacuteltiplo ndash como se a proacutepria ideia

de uno flutuasse em um ldquoinstante incapturaacutevelrdquo

Natildeo haacute duacutevida que o raciociacutenio apresentado por Platatildeo constitui um dos maiores

desafios especulativos da histoacuteria do pensamento ocidental seja nos esforccedilos empreendidos

pela loacutegica de compreensatildeo seja pelo desafio meditativo aflorado da temaacutetica proposta Neste

contexto Marcus Reis Pinheiro indica a interpretaccedilatildeo de Jean-Luc Brisson (Annexe I Les

interpretation du Parmeacutenide dans lrsquoAntiquiteacute presente na ediccedilatildeo Parmenide Paris Flamarion

1999) conforme a qual ldquo() Plotino estaacute no grupo dos inteacuterpretes do diaacutelogo que natildeo o vecirc

apenas como um exerciacutecio loacutegico mas que procura determinar a que tipo de objeto se refere o

diaacutelogordquo (PINHEIRO 2006 3) Seguindo esta linha de raciociacutenio o importante seria portanto

compreender como Plotino absorve a temaacutetica Considerar uma interpretaccedilatildeo para aleacutem da mera

concatenaccedilatildeo loacutegica de conceitos eacute basicamente absorver o sentido de cada termo Isto significa

natildeo apenas expor as formataccedilotildees daquilo que foi introduzido no discurso como ldquounordquo mas

ainda entender de que forma a simples possibilidade de concebecirc-lo no raciociacutenio implica em

uma reduccedilatildeo draacutestica das estruturas hieraacuterquicas do real ou seja constitui uma compreensatildeo

da realidade que possui como primeiro princiacutepio algo que coloca o pensamento em um niacutevel de

paradoxo que necessariamente denota a assunccedilatildeo de uma impossibilidade loacutegica

71

As trecircs hipoacutestases de Plotino seratildeo teoricamente encadeadas de maneira semelhante agraves

hipoacuteteses de Platatildeo embora natildeo sequencialmente Contudo a primeira (e talvez a mais

complexa) jaacute iniciaraacute o movimento de negatividade em direccedilatildeo agraves seguintes estabelecendo os

conflitos presentes na ideia de uno (τὸ ἑν) Plotino considera que ldquoO Uno eacute todas as coisas e

nenhuma delas a fonte para todas as coisas eacute nenhuma das coisas e ainda eacute todas as coisas em

um sentido transcendental ndash todas as coisas para assim dizer tendo seu retorno agrave isto ()rdquo

(PLOTINUS 1969 380 Eneacuteadas V 2 1) Ele ainda assevera a inefabilidade inerente ao uno

conforme a qual todo discurso eacute jaacute sempre indireto e impreciso Apenas mediante referecircncias

como ldquotodas as coisas e nenhuma delasrdquo torna-se possiacutevel acenar para o uno ndash e apenas isto

acenar Entretanto esta eacute para Plotino a uacutenica maneira de compreender a estrutura da realidade

como tal pelo simples motivo de que ldquoEacute precisamente porque haacute nada no Uno que todas as

coisas derivam dele para que o Ser possa ser trazido a fonte natildeo pode ser o Ser mesmo mas o

gerador do Ser ()rdquo (IDEM IBIDEM) que natildeo pode possuir a natureza do ser mas deve se constituir

como outro dele qual seja natildeo-ser ou mesmo nada Plotino prossegue ainda dizendo

ldquoBuscando nada possuindo nada faltando nada o Uno eacute perfeito e em nossa metaacutefora

transborda e sua exuberacircncia produz o novo este produto torna-se novamente seu progenitor

e eacute preenchido e se torna seu contemplador e Princiacutepio-Intelectualrdquo (ID IBID) A passagem

altamente especulativa denota que tudo eacute contemplaccedilatildeo dotada de uma atividade suprema que

comeccedila pelo uno e retorna a ele no simples olhar que natildeo implica nem em complexidade nem

em necessidade29 Mediante uma reflexatildeo propriamente loacutegica a contemplaccedilatildeo por meio da

qual o uno se desdobra e gera todas as coisas se daacute devido a sua proacutepria perfeiccedilatildeo ou seja o

uno natildeo eacute coisa nenhuma e necessariamente engendra todas as coisas porque eacute completo

porque eacute a totalidade de tudo e para isto eacute necessaacuterio que seja ele mesmo e ainda outro de si

29 Estes apontamentos satildeo de John Bussanich que ainda explica que ldquo() a doutrina plotiniana da derivaccedilatildeo do

Uno eacute lsquoprocessatildeorsquo o adjetivo que melhor qualifica isto eacute lsquocontemplativorsquo o movimento no qual a hipoacutestase eacute

gerada coincide com a contemplaccedilatildeo De fato o ponto cardial a chave para a estrutura da processatildeo da metafiacutesica

plotiniana era contemplaccedilatildeo ou theocircriardquo (BUSSANICH 1999 32)

72

Ciacutecero Cunha Bezerra apresenta a organizaccedilatildeo feita por Pierre Aubenque30 conforme a

qual haveriam trecircs esferas argumentativas no desenvolvimento da primeira hipoacutestase uma

loacutegica outra epistemoloacutegica e uma metafiacutesica Bezerra cita uma das passagens mais conhecidas

de Plotino que diz ldquoPrivado de unidade uma coisa cessa de ser aquilo pelo qual eacute chamada

um exeacutercito natildeo eacute um exeacutercito se natildeo eacute uno um coro um rebanho devem ser uma coisa soacuterdquo

(ID IBID 612 VI 9 1) sobretudo para enfatizar o aspecto loacutegico pelo qual Plotino ldquosubverterdquo

a resposta aristoteacutelica da entidade da coisa pela definiccedilatildeo substancial Bezerra argumenta

dizendo que ldquo() Plotino por uma exigecircncia loacutegica jaacute que o princiacutepio originaacuterio natildeo pode

possuir qualquer caraacuteter dos seres relativiza a ontologia e estabelece a henologia como

fundamento de todo serrdquo (BEZERRA OP CIT 67) O problema epistemoloacutegico sobressalta a

ultrapassagem necessaacuteria de todo conhecimento para alcanccedilar tal niacutevel de especulaccedilatildeo ao passo

que a questatildeo metafiacutesica retorna aos trechos anteriormente citados no qual a geraccedilatildeo de todas

as coisas soacute pode derivar de coisa nenhuma

O emprego do termo henologia define aqui o primeiro passo para o caminho da

negatividade Institui-se como negativo o princiacutepio que jaacute natildeo mais decorre de um rendimento

ldquopositivordquo por meio do qual se pode construir um conhecimento soacutelido e confiaacutevel mas uma

base que possui caracteriacutesticas muito diversas e que desafiam a capacidade loacutegica Por este

motivo a primeira demanda eacute jaacute a superaccedilatildeo intelectual (ἐπέκεινα νοῦϛ καὶ οὐσίας) que deve

assumir que o comeccedilo de todas as coisas eacute incoacutegnito O discurso eacute indireto e metafoacuterico porque

somente assim eacute possiacutevel indicar sua possibilidade de ser pensado ndash entendendo principalmente

que o ldquoser pensadordquo natildeo indica nem conota existecircncia porque o ser e a existecircncia mesmo satildeo

ainda posteriores agrave ideia de uno As segunda e terceira hipoacutestases portanto natildeo podem ser

concebidas se de antematildeo natildeo for assumida a negatividade do primeiro princiacutepio

30 Pierre Aubenque ldquoPlotin et le deacutepassement de lrsquoontologie grecque classiquerdquo Colloque des Royaumont Le

Neacuteoplatonisme Paris Centre National de Recherche Scientifique 1971 101-110

73

Somente por meio da completude da pensamento henoloacutegico de Plotino fica possiacutevel

deixar claro os termos pelos quais se destaca a negatividade como ldquosupressatildeo de todo saber e

dizerrdquo Os motivos contudo jaacute satildeo bastante evidentes se levado em consideraccedilatildeo que a

inefabilidade do uno indica que sobre ele natildeo se pode falar e ele natildeo se pode conhecer Portanto

o neoplatonismo necessariamente parte do pressuposto de que o ponto de partida e o ponto de

chegada do pensamento satildeo ambos uma caminhada rumo agrave supressatildeo Ao explicar a processatildeo

por meio da qual o uno engendra todas as coisas destaca-se uma consideraccedilatildeo importante se

os seres engendram o eternamente perfeito engendra eternamente algo inferior a si mesmo por

isto mesmo ldquoEacute preciso observar que a processatildeo plotiniana implica necessariamente uma

negaccedilatildeo A negaccedilatildeo eacute uma condiccedilatildeo a priori no sentido de que o engendrado deve assimilar-se

ao seu gerador mas mantendo uma resistecircncia que diferencia um do outrordquo (IDEM IBIDEM 74)

Em outras palavras a geraccedilatildeo do uno e a abertura da segunda hipoacutestase soacute eacute possiacutevel por meio

da introduccedilatildeo da diferenccedila A diferenccedila eacute o que aqui constitui o passo fundamental da sequecircncia

do pensamento neoplatocircnico O ser eacute na medida em que eacute diferente do uno e por ele eacute

engendrado justamente porque apenas a diferenccedila pode advir do eternamente perfeito

Assim sendo resta saber como o uno engendra e o quecirc ele engendra O que significa

ainda resgatar a pergunta anteriormente colocada por Parmecircnides e Platatildeo como do uno

provem o muacuteltiplo Esta questatildeo eacute sem sombra de duacutevidas uma das mais complexas do sistema

neoplatocircnico em geral A ideia de processatildeo (πρόοδος) pressupotildee uma emanaccedilatildeo a partir do

uno na qual todas as outras coisas satildeo engendradas o que significa dizer que se trata de um

movimento que abarca a realidade em toda sua estrutura na qual ldquo() difere completamente de

um mecanicismo dado que estaacute mais aleacutem de toda contingecircncia e necessidade Nesse sentido

natildeo se pode dizer que se trata de algo que implique um livre-arbiacutetrio ou uma produccedilatildeo artesanalrdquo

(ID IBID 76) Ou seja o uno natildeo necessita de nada e por isto mesmo daacute origem a tudo A

espontaneidade (se eacute que se pode utilizar tal termo) eacute natural e natildeo possui um motor

74

Ao mesmo tempo tudo aquilo que eacute gerado pelo uno possui um poder de conversatildeo

(επιστροφή) um voltar-se sobre si mesmo e voltar-se em direccedilatildeo ao uno (cf ID IBID 76)

movimentada pelo autoconhecimento daquilo que eacute Este autoconhecimento soacute eacute possiacutevel

todavia pelo proacuteprio movimento de emanaccedilatildeo conforme o qual se identifica ldquoserrdquo e

ldquopensamentordquo como havia postulado Parmecircnides e eacute justamente este o momento no qual

emerge a segunda hipoacutestase qual seja a inteligecircncia (νοῦϛ)

As caracteriacutesticas pelas quais a inteligecircncia se mostra desde a compreensatildeo da processatildeo

satildeo a chave para o sentido da filosofia de Plotino Sobre isto Thomas Alexander Szlezaacutek

escreve ldquoNatildeo persegue o Uno com esforccedilo deliberado mas espera tranquilamente ateacute que ele

apreccedila Assim a alma soacute recebe unicamente o Uno eacute uma volta do lsquosolitaacuterio para o solitaacuteriorsquordquo

(SZLEZAacuteK 2010 11) acrescentando ainda que ldquoO caminho que conduz ao Uno natildeo passa poreacutem

pela praacutetica asceacutetica de um anacoreta mas pela apropriaccedilatildeo conceitual do mundo inteligiacutevel

()rdquo (IDEM IBIDEM) Os termos inteligecircncia e inteligiacutevel referem-se aqui a uma definiccedilatildeo

particular que compreende o nuacutecleo da segunda hipoacutestase Bezerra escreve acerca deste ponto

ldquoPlotino no tratado oitavo da terceira Eneacuteada define a Inteligecircncia natildeo como uma coisa

particular mas como algo universal e muacuteltiplordquo (BEZERRA OP CIT 78) explicando que eacute

ldquoUniversal porque abarca todos os seres e muacuteltiplo porque coexistem em sua natureza

simultaneamente o inteligente (Inteligecircncia) e o inteligiacutevel (ser) ()rdquo (IDEM IBIDEM) Plotino

encadeia seu raciociacutenio elucidando como o Princiacutepio-Intelectual eacute universal e iniacutecio de todas as

coisas de maneira que ldquo() assim todas as coisas e o Princiacutepio de tudo deve ser tal que cada

parte dele seja universal eacute todas coisas do contraacuterio conteria partes que natildeo satildeo o Princiacutepio-

Intelectualrdquo (PLOTINUS OP CIT 246 Eneadas III 8 8) Conclui a partir de entatildeo que ldquo() este

Ser eacute ilimitado e que em tudo que flui dele natildeo haacute reduccedilatildeo nem em sua emanaccedilatildeo desde que eacute

o universo inteiro nem em si mesmo o ponto de partida desde que natildeo haacute reuniatildeo de partes

()rdquo (IDEM IBIDEM 246-247) Fica claro o caraacuteter ascendente e natildeo descendente da processatildeo

75

Plotino explica que ldquo() um ser desta natureza natildeo eacute existecircncia primaacuteria deve existir a

partir daquilo do qual transcende o Ser (o Absoluto) ()rdquo (ID IBID 247) e prossegue dizendo

que ldquo() Pluralidade eacute mais tardia que Unidade O Princiacutepio-Intelectual eacute um nuacutemero (=a

expressatildeo de uma pluralidade) e o nuacutemero deriva da unidade a fonte de um nuacutemero como este

deve ser o autecircntico Unordquo (ID IBID) A transcendecircncia que evidencia o caraacuteter progressivo

pode ainda ser entendida desde a ideia de que ldquo() ao contemplar-se a si mesmo a Inteligecircncia

se une ao objeto contemplando uma unidade entre o eu e o ser universal que supera toda

alteridade ()rdquo (BEZERRA OP CIT 79) Com isto eacute possiacutevel resgatar ainda o sentido pelo qual

Beierwaltes destaca a diferenccedila como princiacutepio pelo qual haacute um desvio de Plotino em relaccedilatildeo

agrave ontologia claacutessica (cf BEIERWALTES OP CIT 58) Contudo como se compreende esta

contemplaccedilatildeo eacute o que levaraacute agrave terceira hipoacutestase a alma (ψυχή) Bezerra explica recapitulando

os passos anteriores ldquoVimos anteriormente que o Uno e o Muacuteltiplo apresentam-se sob duas

maneiras distintas a) Uno e natildeo muacuteltiplo (I hipoacutetese) b) Uno-Muacuteltiplo (II hipoacutetese) A alma eacute

portanto ao mesmo tempo uno e muacuteltiplordquo (BEZERRA OP CIT 82) o que significa evidenciar

que ela representa uma distinccedilatildeo radical e afastamento do primeiro princiacutepio o uno

Ainda no oitavo tratado da terceira Eneacuteada Plotino aborda a natureza enquanto ato

criador compreendendo o fenocircmeno a partir de uma tensatildeo entre um Princiacutepio-Racional inerte

e um Princiacutepio-Natural em movimento (cf PLOTINUS OP CIT 239-240 Eneadas III 8 2) que

responderia ainda ao conflito entre unidade e multiplicidade e ainda agrave questatildeo entre tempo e

eternidade Plotino indaga como a natureza responderia ao questionamento colocando

literalmente o argumento na fala da natureza que diria que ldquoOs matemaacuteticos desde suas visotildees

desenham suas figuras mas eu desenho nada eu contemplo as figuras do material do mundo

tomando os seres como eu os sinto desde minha contemplaccedilatildeordquo (IDEM IBDEM 241) chegando a

conclusatildeo de que ldquo() o que noacutes conhecemos por Natureza eacute uma Alma cria de uma Alma

ainda anterior () uma visatildeo interna de si mesmardquo (ID IBID)

76

A visatildeo interna de si mesma mencionada por Plotino prove o entendimento de que ldquoA

alma portanto autodetermina-se e ao mesmo tempo autofragmenta-se pois ao separar-se do

todo volta-se maravilhada para o particularrdquo (BEZERRA OP CIT 84) Disto adveacutem a geraccedilatildeo do

tempo como desordem introduzida no equiliacutebrio primordial e ao mesmo tempo a introduccedilatildeo

de uma ordenaccedilatildeo mediada pela conversatildeo (επιστροφή) ndash pelo retorno maravilhado ao uno ou

uniatildeo ao fundamento por meio da contemplaccedilatildeo

Agora bem toda esta inevitaacutevel breve introduccedilatildeo ao pensamento de Plotino deve

direcionar para uma postura distinta daquela antes observada com a ontologia claacutessica e o

pensamento metafiacutesico Que postura eacute esta Ou melhor qual o caminho que se abre a partir das

trecircs hipoacutestases plotinianas Este eacute o momento no qual o caminho da negatividade comeccedila a se

encorpar e mostrar seu caraacuteter decisivo na constituiccedilatildeo do desvio intelectual do neoplatonismo

Gostaria de fazer um recorte especiacutefico do nono tratado da sexta Eneacuteada para alcanccedilar este

esclarecimento

Plotino reconstitui seu caminho a partir da afirmaccedilatildeo ldquoEacute em virtude da unidade que os

seres satildeo seresrdquo (PLOTINUS OP CIT 614 Eneadas VI 9 1) O que significa afirmar que sem a

unidade natildeo se pode considera que algo seja o que seja Em termos mais simples se nomeio

braccedilo pernas cabeccedila razatildeo sensibilidade entre outras muacuteltiplas singularidades presentes em

um ser humano mas natildeo as congrego em uma unidade pela qual afirmo ldquoser humanordquo que

compreende todas as particulares em questatildeo inexoravelmente perco de vista seu sentido Por

isto ldquoQualquer coisa que possa ser descrita como uma unidade o eacute no preciso grau pelo qual

sustenta um ser caracteriacutestico quanto menor ou maior o niacutevel do ser menor ou maior seraacute a

unidaderdquo (IDEM IBIDEM) Portanto alma seria (em razatildeo de sua distinccedilatildeo da unidade mesma)

uma grande unidade em proporccedilatildeo e na autenticidade do ser e assim ldquoUnidade absoluta natildeo eacute

eacute a alma e a primeira alma a unidade em algum sentido concomitante ()rdquo (ID IBID) deixando

ver como a unidade natildeo eacute e eacute

77

Desta forma pode-se compreender que o uno natildeo pode ser a totalidade dos seres que

anularia sua unidade nem tampouco o ldquoPrinciacutepio-Intelectualrdquo pelo qual as coisas satildeo nem o

ldquoser mesmordquo no sentido da totalidade das coisas Plotino prossegue dizendo ldquoA alma ou mente

movimentando-se rumo ao que eacute sem forma encontra-se em estado de incompetecircncia para

apreender ali onde nada se limita ou onde a se impinge a realidade difusardquo (ID IBID 615 VI

9 3) Assim ldquo(hellip) ante o puro pavor de se sustentar no nada esvai-se O estado eacute doloroso

geralmente busca aliacutevio ao se retratar de sua vagueza na regiatildeo do sentido para ali repousar em

um fundamento soacutelido bem como a visatildeo aflige-se com o minuto no qual repousa na escuridatildeordquo

(ID IBID) Mas para onde olhar frente ao desconforto de natildeo se ter onde repousar Quando se

percebe o quatildeo vago eacute todo e qualquer presumido fundamento ou sentido quando a escuridatildeo

natildeo reflete senatildeo a angustia de uma contemplaccedilatildeo exausta pelo esvair de todo sustento o que

resta para aleacutem discoacuterdia que atinge o intelecto Plotino sintetiza a afliccedilatildeo

A alma deve ver em sua proacutepria maneira isto se daacute por coalescecircncia a unificaccedilatildeo

mas buscando assim conhecer a unidade eacute impedida por esta mesma unificaccedilatildeo de

reconhecer o que foi encontrado natildeo se pode distinguir a si mesmo do objeto de sua

intuiccedilatildeo No entanto este eacute nosso uacutenico recurso caso nossa filosofia busque o

conhecimento da Unidade (ID IBID)

O uacutenico caminho rumo ao conhecimento da unidade eacute um caminho impossiacutevel em si mesmo

uma via cerrada pela proacutepria natureza do questionamento proposto Intuir as trecircs hipoacutestases ou

encadeaacute-las conforme uma loacutegica sistemaacutetica portanto elucida o caminho mas natildeo

necessariamente introspecta e absorve a pureza da experiecircncia Para isto eacute necessaacuterio mais ou

melhor menos ndash muito menos O uacutenico ponto de apoio aqui seraacute a identificaccedilatildeo entre o uno e

bem ou a compreensatildeo da primeira hipoacutestase como uno-bem (τὸ ἑν καὶ αγαθον) cujo sentido

eacute por um lado extrema e pura simplicidade e por outro inefabilidade total devido agrave perfeiccedilatildeo

78

Reivindicar este caminho soacute pode portanto levar a uma supressatildeo absoluta onde

ldquoAinda esta abstenccedilatildeo de autoconhecimento natildeo comporta ignoracircncia ignoracircncia eacute algo de fora

ndash um conhecedor ignorante de um cognosciacutevel ndash mas no solitaacuterio natildeo haacute nem conhecimento

nem nada desconhecidordquo (ID IBID 620 VI 9 6) Plotino entatildeo apresenta uma formulaccedilatildeo

nada usual conforme a qual certo direcionamento de suas intenccedilotildees pode ser entendido em

uma passagem tatildeo emblemaacutetica quanto enigmaacutetica ele escreve

Neste coro a alma olha para a nascente da Vida tambeacutem nascente do Intelecto iniacutecio

do Ser fonte do Bem raiz da Alma Natildeo que eles tenham sido despejados do Supremo

menosprezando-os como se fosse uma massa Nisto aquilo que emana seria pereciacutevel

mas eles satildeo eternos eles nasce de um princiacutepio eterno que produz deles sua

fragmentaccedilatildeo mas em virtude de sua identidade inata portanto eles se manteacutem muito

firmes conto o sol brilhe contanto haveraacute luz

()

Aqueles para os quais toda esta experiecircncia eacute estranha podem entende-la como nossos

anseios terrenos e a alegria que temos ao ganhar o que mais desejamos ndash lembrando

sempre que aqui o que noacutes amamos eacute pereciacutevel doloroso que nosso amor eacute mimeacutetico

e se afasta porque foi tudo um engano nosso bem natildeo estava laacute isto natildeo era o que

procuraacutevamos Haacute apenas o verdadeiro amor onde haacute uniatildeo natildeo segurando isto com

algum tipo de abraccedilo carnal mas possuindo na totalidade sua veracidade Todos

aqueles que viram sabem o que tenho em mente a alma toma outra vida quando se

aproxima de Deus assim restaurada sente que o distribuidor da verdadeira vida estaacute

laacute para ver que agora natildeo temos nada para procurar senatildeo aquilo que precisamos

deixar de lado e deixar assim sozinho assim vindouro assim soacute tudo o que o ambiente

terreno aniquilou na pressa de ser livre impaciente em relaccedilatildeo a qualquer laccedilo que

nos sustenta na base para que com todo nosso ser possamos agarrar-nos sobre isto

quando natildeo sobra nada em noacutes senatildeo aquilo pelo qual tocamos em Deus (ID IBID

623 VI 9 9)

79

As palavras de Plotino ressoam como uma conduta que eacute antes como postura que doutrina O

uso termo ldquoamorrdquo denota claramente uma experiecircncia irregulaacutevel uma tensatildeo entre ausecircncia e

presenccedila preenchimento e falta ndash sem embargo um misteacuterio

O misteacuterio que indicado por Plotino se configura como o guia para a visatildeo que permite

descortinar o sentido pensamento filosoacutefico Um misteacuterio que segue a mesma regra de Platatildeo e

do platonismo onde ldquoNada eacute divulgado para os natildeo-iniciadosrdquo (ID IBID 624 VI 9 11) e do

qual natildeo se pode simplesmente exibir uma estoacuteria ordinaacuteria ldquoCoisas aqui satildeo sinaisrdquo (ID IBID)

adverte Plotino Sinais para aqueles que entram em solo sagrado e tornam real a visatildeo do

inacessiacutevel Ele esclarece ainda ldquoQuando a alma comeccedila novamente a se colocar natildeo se torna

outra mas si mesma assim desprendida natildeo eacute nada senatildeo si mesma auto-reunida natildeo eacute mais

da ordem do ser estaacute no Supremordquo (ID IBID) O desprendimento e a supressatildeo a visatildeo do uno

e o movimento de uniatildeo encaminham para o ldquotodo-transcendenterdquo que jaacute natildeo mais estaacute no niacutevel

daquilo que eacute do ente mesmo do ser mas em uma esfera para aleacutem de todas as coisas que satildeo

e que natildeo satildeo A culminaccedilatildeo do pensamento henoloacutegico de Plotino como uma ldquomiacutestica da

unidaderdquo eacute o berccedilo do neoplatonismo e necessariamente o iniacutecio de sua radicalizaccedilatildeo

Neste fluxo considera-se que existam dois momentos fundamentais do desdobramento

do neoplatonismo a partir da henologia plotiniana quais sejam a teologizaccedilatildeo da henologia

desenvolvida por Proclo e a teologia negativa do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita Em ambos eacute

possiacutevel observar como o caminho da negatividade se configura partir de uma profunda

introspecccedilatildeo de temas que tendem agrave dissoluccedilatildeo do conhecimento ateacute entatildeo concebido

estruturado e instaurado ndash e ainda agrave subversatildeo completa de seus meios de expressatildeo e

significaccedilatildeo isto eacute agrave supressatildeo do saber e do dizer Eles natildeo representam meramente o ldquopasso

adianterdquo como se houvessem ainda superado o discurso antecessor mas antes o ldquopasso atraacutesrdquo

enquanto retorno agraves bases e aos princiacutepios por meio da reivindicaccedilatildeo da atitude desvelada pela

miacutestica onde o misteacuterio natildeo eacute o problema a ser desvendado mas o elemento a ser incorporado

80

O obra de Proclo eacute composta por diversos comentaacuterios aos diaacutelogos de Platatildeo dentre os

quais ao Timeu ao Parmecircnides ao Alcebiacuteades agrave Repuacuteblica entre outros aleacutem de escritos

sistemaacuteticos como os Elementos de Teologia e a Teologia Platocircnica Existem ainda obras que

abordam temas de matemaacutetica astronomia arte magia e tratados propedecircuticos sobre doutrinas

filosoacuteficas Especialmente em relaccedilatildeo agraves contribuiccedilatildeo em torno agrave henologia duas obras satildeo de

suma importacircncia o Comentaacuterio ao Parmecircnides de Platatildeo e os Elementos de Teologia

A leitura de Proclo do Parmecircnides de Platatildeo eacute considerada uma das mais sistemaacuteticas e

originais que teria sobrevivido agraves vicissitudes dos tempos Ademais guardaria ainda um apelo

ao resguardo da filosofia de Platatildeo bem como uma preparaccedilatildeo para um projeto de resgate da

vitalidade do paganismo por meio de um platonismo revigorado 31 Decorreria disto uma

profunda incursatildeo na filosofia como teologia que culminaria em seus Elementos Ainda no

Comentaacuterio Proclo descreve o percurso de Platatildeo em relaccedilatildeo agrave Parmecircnides e manifesta uma

linha argumentativa similar a Plotino

Mas caso se queira chegar o mais proacuteximo da verdade deve-se seguir a linha de nosso

Mestre que Parmecircnides inicia desde o Uno (Ser) (para a proposiccedilatildeo ldquose haacute um unordquo

jaacute que conteacutem aleacutem do ldquoUnordquo o conceito de existecircncia pertence a este tipo de coisas)

ascendendo do Uno Ser para o Uno assim demonstrando que o Uno em sentido estrito

deseja apenas isto ser One e ldquoarrebatar-se para longerdquo do Ser e o Uno Ser eacute

secundaacuterio a este pela razatildeo de sua descendecircncia em direccedilatildeo ao Ser ao passo que o

Uno mesmo eacute superior mesmo agrave designaccedilatildeo ldquoeacuterdquo e a hipoacutetese ldquose haacuterdquo assim que

adicionamos eacute o Uno no sentido estrito natildeo mais permanece (PROCLUS 1987 379-380

In Parm 1033)

31 Estas consideraccedilotildees satildeo de Ciacutecero Cunha Bezerra em Algumas consideraccedilotildees sobre leitura procleana do

Parmecircnides de Platatildeo (2004) Neste artigo ele ainda sustenta em consonacircncia com H D Saffrey (Proclus

diadoque de Platon 1990) que Proclo entra na linha de inteacuterpretes de Platatildeo que entendem sua filosofia como

revelaccedilatildeo de uma verdade divina estruturada a partir do uno filiando Platatildeo aos teoacutelogos gregos (cf BEZERRA 2004

99-100)

81

Proclo apresentaraacute na sequecircncia a impossibilidade de ldquohipotetizarrdquo o uno cindindo de um lado

hipoacutetese-condicionada e de outro anti-hipoacutetese-incondicionada O problema que estaacute sendo

colocado parte da ideia de que natildeo se pode pensar a multiplicidade isolada senatildeo somente por

meio da concepccedilatildeo de uma unificaccedilatildeo Para aleacutem da estrutura binaacuteria uno-muacuteltiplo deve-se

considerar a unificaccedilatildeo como consequecircncia necessaacuteria dando origem agrave formulaccedilatildeo ldquouno-

unificado-muacuteltiplordquo para explicar como eacute simplesmente possiacutevel que hajam elementos pelos

quais outros se unificam32

O resultado da formulaccedilatildeo de Proclo parece ser a absolutizaccedilatildeo do uno e sua

identificaccedilatildeo com Deus algo sobremaneira evidente na proposiccedilatildeo de seus Elementos que diz

ldquoTodo intelecto divino eacute uniforme ou possui a forma do Uno e eacute perfeito E o primeiro intelecto

subsiste por si mesmo e produz outros intelectosrdquo (IDEM 1998 86 Elem Theo Prop CLX)

Proclo argumenta ainda que se haacute um Deus ele eacute preenchido de unidades divinas e eacute uniforme

sendo ainda perfeito e cheio da bondade divina havendo um Deus primeiro que provecirc as

hipoacutestases para outros intelectos

Este eacute precisamente o ponto que seraacute aprofundado pelo Pseudo-Dioniacutesio Areopagita em

sua teologia negativa Tanto em Proclo quanto no Pseudo-Dioniacutesio o divino habita a

compreensatildeo filosoacutefica da realidade como incorporaccedilatildeo do misteacuterio seguindo ainda a esteira

da muacutetua reciprocidade entre filosofia e religiatildeo demanda por Plotino desde o iniacutecio Pseudo-

Dioniacutesio coroa a radicalizaccedilatildeo do uno e sua identidade com o Deus primeiro apresentado como

supraessencial (ὑπερούσιε) suprabondoso (ὑπεράγαθε) e mesmo supradivino (ὑπερθεε) razatildeo

pela qual ele demanda que ldquo() em absoluta renuacutencia de si mesmo e de todas as coisas deveraacutes

na pureza deixar todas as coisas de lado liberando-se de tudo e sendo assim levado para cima

para o Raio da Divina Treva que excede toda existecircnciardquo (DIONYSIUS THE AREOPAGITE 1920 192)

32 Esta passagem eacute cuidadosamente explicada por Giuseppe Girgenti que esclarece que ldquoO ponto culminante do

primeiro grupo de teoremas eacute o alargamento da hierarquia de quatro termos uma vez que o raciociacutenio de Proclo

levou a distinguir o intermediaacuterio entre o proacuteprio Uno e o unificado ou seja elementos que compotildeem o unificada

as primeiras unidades do natildeo-unificado ou a henadirdquo (GIRGENTI 2009 113-114)

82

Discursar acerca da inefabilidade impotildee no Pseudo-Dioniacutesio uma superaccedilatildeo da proacutepria

linguagem que se revela agora como uma construccedilatildeo liberta de qualquer fronteira e acima de

qualquer paradoxo onde negaccedilatildeo (ἀπόφασις) e afirmaccedilatildeo (κατσφάσις) comungam de igual

valor e sentido em uma mesma e uacutenica esfera A primazia propriamente apofaacutetica que toma

conta da fala do Pseudo-Dioniacutesio ganha forccedila quando supera toda definiccedilatildeo conceitual e

identifica Deus como nada daquilo que eacute

Uma vez mais indo ainda mais alto mantemos que Ele natildeo eacute alma ou mente ou

concebido pela faculdade da imaginaccedilatildeo conjuntura razatildeo ou entendimento nem eacute

nenhum ato de razatildeo ou compreensatildeo nem pode ser descrito pela razatildeo ou percebido

pelo entendimento jaacute que natildeo eacute nuacutemero ou ordem ou magnificecircncia ou pequenez

ou igualdade ou desigualdade e jaacute que natildeo estaacute inerte nem em movimento ou em

descanso e natildeo possui poder e natildeo eacute poder nem luz e natildeo vive e natildeo eacute vida nem eacute

essecircncia pessoal ou eternidade ou tempo nem pode ser apreendido pelo

entendimento jaacute que natildeo eacute nem conhecimento nem verdade nem eacute reinado ou

sabedoria nem eacute uno nem unidade nem deidade ou bondade natildeo eacute um espiacuterito como

se entende o termo jaacute que natildeo eacute Filho nem Pai nem eacute nenhuma outra coisa tal como

noacutes ou qualquer outro ente do qual se possa ter conhecimento nem pertence a

categoria de natildeo-existecircncia ou de existecircncia nem os entes existentes o conhecem

como realmente eacute nem Ele os conhece como realmente satildeo nem a razatildeo pode o

atingir nomear ou conhecer nem eacute escuridatildeo nem eacute luz ou erro ou verdade nem

nenhuma afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo pode ser aplicada porquanto aplicar afirmaccedilotildees e

negaccedilotildees natildeo se aproximam Dele noacutes natildeo aplicamos nem negaccedilatildeo nem afirmaccedilatildeo

enquanto transcende toda afirmaccedilatildeo por ser perfeita e uacutenica Causa dos seres e

transcende toda negaccedilatildeo pela preeminecircncia de sua livre natureza simples e absoluta

de qualquer limitaccedilatildeo e para aleacutem de tudo (DIONYSIUS THE AREOPAGITE 1920 200-201)

83

Seria justo afirmar que esta densa passagem da Teologia Miacutestica eacute muito mais proacutexima de uma

declaraccedilatildeo de amor do que uma articulaccedilatildeo filosoacutefica (e caberia aiacute perguntar se haacute enfim

alguma diferenccedila entre uma coisa e outra) Pseudo-Dioniacutesio natildeo apenas promove um

movimento de negaccedilatildeo em direccedilatildeo agrave toda afirmaccedilatildeo mas ainda rumo agrave proacutepria negaccedilatildeo Neste

sentido a definiccedilatildeo mais justa conforme a qual se utiliza aqui o termo negatividade seguiria

com precisatildeo os termos do Pseudo-Dioniacutesio entendendo que o caminho negativo estaacute mais

aleacutem de toda afirmaccedilatildeo e mesmo de toda negaccedilatildeo Esta eacute ainda a via para entender o que pode

ser nomeado como meontologia um percurso intelectual que apoiado pela henologia

neoplatocircnica natildeo se fundamenta mais no ente mas antes no natildeo-ente (μή ὄν) ou mesmo no

nada

As consequecircncias da henologia neoplatocircnica de Plotino e Proclo e da meontologia

miacutestica do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita natildeo passaratildeo incoacutelumes pelos seacuteculos que se seguiriam

agrave composiccedilatildeo dos escritos aqui conjurados Contudo algumas recepccedilotildees bastante acuradas e

inspiradas criativas e bem desenvolvidas ocupar-se-iam de resgatar o sentido do pensamento

negativo e desdobrar a profundidade do problema Eacute possiacutevel citar algumas dezenas de filoacutesofos

que se dedicaram ao diaacutelogo com o neoplatonismo e a teologia negativa Aqui gostaria de

encerrar este capiacutetulo direcionando-o para uma interlocuccedilatildeo especial e ao meu ver central para

a difusatildeo da negatividade na filosofia medieval moderna e contemporacircnea Tenho em mente

Joatildeo o Escoto chamado Eriuacutegena

Eriuacutegena ocupou um lugar de destaque nas altercaccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas durante

o chamado Renascimento Caroliacutengio sendo-lhe atribuiacutedas tarefas como a traduccedilatildeo do grego

para o latim das obras do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita bem como explanaccedilotildees em torno agrave

contenda da divina predestinaccedilatildeo e agraves interpretaccedilotildees e exegeses suscitadas pela disputa erguida

pela cultura biacuteblica do periacuteodo33

33 Para especificaccedilotildees em torno a Eriuacutegena e seu tempo confira CONTRENI 1996 e MCNAMARA 1996

84

A presenccedila do neoplatonismo em Eriuacutegena parece se posicionar de maneira estrateacutegica

ao longo dos movimentos por ele realizados em sua magna obra o Periphyseon Natildeo se pode

perder de vista as possiacuteveis definiccedilotildees do neoplatonismo natildeo apenas dentro de suas esferas

relacionais e a partir das tendecircncias de leitura mas ainda por meio da questatildeo fundamental que

problematiza todo conteuacutedo qual seja como o uno se relaciona com o muacuteltiplo ou ainda como

o que eacute primeiro se relaciona com o que eacute posterior Oscar Federico Bauchwitz sustenta que

ldquo() a questatildeo pela antonomaacutesia do neoplatonismo enquanto uma reflexatildeo acerca da relaccedilatildeo

entre o Criador e a criatura entre o Uno e a multiplicidade pode ser enfocada na obra de

Eriuacutegena no que diz respeito a creatio ex nihilo e ao sentido original que eacute determinado ao

termo nihilrdquo (BAUCHWITZ 2001 11) Assumindo esta hipoacutetese como vaacutelida torna-se

imprescindiacutevel compreender o lugar que tal questatildeo ocupa na obra eriugeneana e como ela se

desenvolve

Conforme os apontamentos de Bauchwitz o ldquonadardquo se apresenta pela primeira vez jaacute

no iniacutecio do Periphyseon ao serem articulados os modos da diferenccedila fundamental da divisatildeo

da natureza (φύσις natura) definida como tudo aquilo que eacute e que natildeo eacute (quae sunt et quae non

sunt) sendo dividida em quatro espeacutecies ldquo() primeiro naquilo que cria e natildeo eacute criado segundo

naquilo que eacute criado e tambeacutem cria terceiro naquilo que eacute criado e natildeo cria enquanto o quarto

nem cria nem eacute criadordquo (ERIVGENAE 1999 37 441ordf) O que eacute pode ser percebido apreendido e

conhecido O que natildeo eacute todavia natildeo se pode perceber apreender ou conhecer (cognoscitur non

quid est sed quia est) De acordo com Bauchwitz o termo quid est (ldquoo que eacuterdquo) diz respeito agrave

essecircncia de tudo que permanece incompreensiacutevel e infinito ao passo que quia est (ldquoque eacuterdquo)

indica a existecircncia da essecircncia divina ou seja seus efeitos como algo determinado e que eacute O

incompreensiacutevel da natureza divina Eriuacutegena deixa ver quando escreve ldquoPortanto se eacute por

causa de sua excelecircncia inefaacutevel e incompreensiacutevel infinitude que a Natureza Divina eacute dita natildeo

ser disto se segue que ela eacute nada ()rdquo (IDEM 2005 61 634C)

85

A impossibilidade de compreender a natureza divina eacute o que permite a Eriuacutegena

descortinar seu entendimento acerca da creatio ex nihilo Bauchwitz escreve sobre este ponto

ldquoA questatildeo se origina eacute que se a diferenccedila fundamental abarca a totalidade da natureza o que

se poderia predicar de Deus Isto eacute o que haacute para mais aleacutem do ser e do natildeo ser senatildeo o Nada

desde o qual Deus cria todas as coisasrdquo (BAUCHWITZ OP CIT 12) O problema eacute apresentado por

Eriuacutegena a partir da busca pelo sentido conforme o qual se questiona de que maneira eacute possiacutevel

compreender como todas as coisas que satildeo se originam do nada (ou nos termos do

neoplatonismo pagatildeo a mesma questatildeo de ldquocomo do uno se origina a multiplicidade) Eacute

possiacutevel interpretar esta passagem alegando que Eriuacutegena se refere ao nihilo em perfeita

sintonia com toda doutrina Cristatilde da criaccedilatildeo como de fato faz sentido afirmar Contudo

Eriuacutegena vislumbra o que considera ldquoa verdadeira essecircncia da natureza divinardquo O Criador que

cria todas as coisas que satildeo criadas insere-se naquela parte da divisatildeo da natureza na qual ldquocria

mas natildeo eacute criadordquo enquanto sua ldquoessecircnciardquo reflete aquilo que ldquonatildeo eacute nem criado nem criardquo

Em outros temos indica-se que nada eacute a natureza divina de Deus ou ainda que natildeo-ser

corresponde agrave divindade

Resta ainda resolver o mesmo problema ante ao qual se encontraram Plotino Proclo o

Pseudo-Dioniacutesio entre outros a saber como eacute possiacutevel para Deus desarraigar-se de seu nada

ou desdobrar-se desde si mesmo Bauchwitz oferece uma explicaccedilatildeo quando potildee em relevo o

problema da expressatildeo do paradoxo

() por meio da criatura eacute Deus quem se manifesta e portanto todas as criaturas

podem ser entendidas como certas apariccedilotildees divinas isto eacute teofania Neste sentido a

teofania nomeia o paradoxo da ineffabilis difusio que diz que o infinito devem finito

que o incompreensiacutevel devem compreensiacutevel que o silecircncio clama (BAUCHWITZ 2003ordf

57)

86

Em Eriuacutegena eacute possiacutevel acompanhar o sentido da explicaccedilatildeo de Bauchwitz na passagem que

diz

Tudo o que eacute entendido e sentido nada mais eacute senatildeo apariccedilatildeo do que natildeo eacute aparente

a manifestaccedilatildeo do oculto afirmaccedilatildeo da negaccedilatildeo compreensatildeo do incompreensiacutevel [a

expressatildeo do inexpressiacutevel o acesso ao inacessiacutevel] o intelecccedilatildeo do ininteligiacutevel o

corpo do incorpoacutereo a essecircncia do supraessencial a forma do informado a medida

do incomensuraacutevel o nuacutemero do inumeraacutevel o peso do impensaacutevel a materializaccedilatildeo

do espiritual a visibilidade do invisiacutevel o lugar do natildeo-lugar o tempo do natildeo-tempo

a definiccedilatildeo do infinito a circunscriccedilatildeo do incircunscrito e as outras coisas que satildeo

ambas consideradas e percebidas pelo intelecto sozinho e natildeo podem se restringir

dentro de recessos da memoacuteria e nas quais escapa agrave destreza da mente (ERIVGENAE OP

CIT 59 633BC)

A despeito da possibilidade de sintonia com a doutrina Cristatilde da criaccedilatildeo (especificamente o

sentido moralizante da gecircnese) natildeo haacute forccedila catequeacutetica senatildeo puramente especulativa na

maneira pela qual Eriuacutegena aborda a questatildeo O acesso ao sagrado aparece antes como uma

atitude fundamental na qual se insiste no misteacuterio da nadidade do divino

O resultado do caminho meditativo de Eriuacutegena eacute uma postura na qual o pensamento

natildeo responde apenas agraves demandas imediatas agraves preocupaccedilotildees que sanem os conflitos

existenciais e sociais mas uma intelecccedilatildeo cujo grau de alcance atinge toda mensurabilidade e

incomensurabilidade da estruturaccedilatildeo do real como internalizaccedilatildeo do segredo oculto e dos

misteacuterios da natureza Parece ser neste sentido que Bauchwitz sugere uma eacutetica do silecircncio

onde ldquo() natildeo basta enunciar o princiacutepio que deve reger as accedilotildees do ser humano () O silecircncio

como destino a ser alcanccedilado soacute tem sentido na medida em que nomeia a incessante e natural

disposiccedilatildeo do proacuteprio homem em dirigir-se a elerdquo (BAUCHWTZ OP CIT 12) Antes de resolver

qualquer problema assume-se o respeito para com a profundeza do incocircndito

87

Durante a introduccedilatildeo desta tese referi-me a um outro escrito de Bauchwitz Nihilismo

e Neoplatonismo assumindo que aquele artigo havia sido responsaacutevel por traccedilar uma direccedilatildeo

ou mesmo proporcionar um estiacutemulo ao desenvolvimento deste trabalho Gostaria de retornar

agravequele artigo uma vez mais para encerrar esta seccedilatildeo com definiccedilotildees mais precisas a respeito da

henologia e da meontologia como ultrapassagem dos limites da metafiacutesica

O capiacutetulo anterior evidenciou que com a ontologia ou a substantivaccedilatildeo do pensamento

ocidental por meio da confusatildeo entre ser e ente perdeu-se natildeo a capacidade intelectual do ser

humano mas o atino para o seu fundamento Em razatildeo da urgecircncia de respostas abandonou-se

tudo aquilo que era por princiacutepio incoacutegnito inefaacutevel inexprimiacutevel Como havia dito na

introduccedilatildeo com o apoio do trabalho de Bauchwitz a consumaccedilatildeo deste movimento eacute anunciado

por meio de um diagnoacutestico do niilismo Neste sentido Bauchwitz escreve

A relaccedilatildeo entre Nihilismo e Neoplatonismo que aponta para uma eacutetica aleacutem dos

limites da temporalidade e de crenccedilas religiosas ainda estaacute para ser esclarecida Uma

tal eacutetica somente poderaacute ser realmente quando cumpridas umas exigecircncias que neste

trabalho foram apenas assinaladas a superaccedilatildeo da vontade e em consequecircncia da

proacutepria liberdade soacute pode ser interpretada em uma perspectiva que jaacute natildeo se encontra

nos limites da ontologia tradicional ou no dizer de Heidegger no acircmbito da metafiacutesica

O sem-propoacutesito de uma tal eacutetica que abnega qualquer visatildeo utilitarista e

simplesmente dada do mundo exige pensar a partir de novas fundamentaccedilotildees e

valores o retorno do divino eacute uma metaacutefora que atende a tais exigecircncias na medida

em que ao tempo que nos abre uma concepccedilatildeo totalmente outra daquele que ancora

os principais valores vigentes questiona pelos conceitos fundamentais que

homologaram esses valores como superiores porque quantificaacuteveis A ausecircncia de

referecircncias fixadas pelos padrotildees contemporacircneos que mensuram o bem-estar de cada

indiviacuteduo e o resgate de uma vivecircncia que se justifica nela mesma e natildeo pelas suas

finalidades devem servir de origem para superar a ldquonoite do mundordquo (BAUCHWITZ OP

CIT 179-180)

88

Em primeiro lugar eacute importante destacar que a falta de esclarecimento da ldquoeacutetica aleacutem dos

limitesrdquo ou como prefiro colocar aqui ldquopara aleacutem das fronteirasrdquo natildeo soacute natildeo estaacute clara como

assim deve permanecer caso queira responder agrave exigecircncia de absorver a negatividade que

tambeacutem faz parte da humanidade do humano mas que foi todavia afasta de sua visatildeo da

realidade Por este motivo utiliza-se aqui o termo conflito das fronteiras para indicar natildeo uma

resoluccedilatildeo de problemas mas a assunccedilatildeo de um confronto Sendo assim a ultrapassagem de

limites deve se dar apenas no que tange agrave possibilidade de abrir o pensamento para aleacutem da

metafiacutesica tradicional Explorar o que haacute de propriamente fraco o que natildeo se sustenta o que

natildeo pode ser

A temaacutetica poderia ser encerrada aqui Seria possiacutevel retornar ao neoplatonismo com

ainda mais cautela e extrair de laacute mesmo os elementos para subverter toda sorte de ordenamento

que lanccedila o ser humano na ldquonoite do mundordquo Contudo meu interesse aqui eacute explorar mais um

momento da histoacuteria da filosofia e se possiacutevel encontrar um ponto de apoio para reunir a

tradiccedilatildeo metafiacutesica e o neoplatonismo em um uacutenico problema Minhas hipoacutetese conforme seraacute

desenvolvida no terceiro e uacuteltimo capiacutetulo eacute encontrar uma orientaccedilatildeo Orientaccedilatildeo extrema

Ali no Extremo Oriente

89

3 O EXTREMO ORIENTE E O CONFLITO DAS FRONTEIRAS A FILOSOFIA COMPARADA INTERCULTURAL

COMO CHAVE DE LEITURA PARA ALGUNS PROBLEMAS DO PENSAMENTO CONTEMPORAcircNEO

O ambiente acadecircmico britacircnico do final da deacutecada de 1970 foi palco de uma fervorosa disputa

acerca das interpretaccedilotildees e definiccedilotildees culturais entre Ocidente e Oriente A publicaccedilatildeo do livro

Orientalism (1978) de Edward Wadie Said (ع إدوارد Idwārd Wadīʿ Saʿīd) fomentou ديعس ودي

uma inesgotaacutevel discussatildeo acerca de qualquer suposta correspondecircncia deste ou daquele

elemento nos princiacutepios da tradiccedilatildeo oriental sustentando em termos bem simples que o

Oriente era antes uma invenccedilatildeo convencional Said sofreu diversas criacuteticas algumas mais

significativas outras menos Uma de suas consideraccedilotildees mais discutidas afirma que ldquo() o

Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente) como sua imagem ideacuteia personalidade e

experiecircncia de contraste Contudo nada desse Oriente eacute meramente imaginativordquo (SAID 1990

13-14) acrescentando ainda de forma incisiva que ldquoO Oriente expressa e representa esse

papel cultural e ateacute mesmo ideologicamente como um modo de discurso com o apoio de

instituiccedilotildees vocabulaacuterio erudiccedilatildeo imagiacutestica doutrina e ateacute burocracias e estilos coloniaisrdquo

(IDEM IBIDEM 14) Said defendeu que o Oriente tal qual eacute conhecido pelo mundo ocidental natildeo

corresponde agrave proveniecircncia originaacuteria de suas tradiccedilotildees mas eacute antes uma estrateacutegia (poliacutetica e

econocircmica) de manutenccedilatildeo geograacutefica Toda designaccedilatildeo acadecircmica de qualquer orientalismo

ateacute entatildeo desenvolvido estaria entatildeo equivocada apoiada em pressupostos que natildeo condizem

com a tradiccedilatildeo oriental Sem embargo o mesmo poderia ser dito a respeito da introspecccedilatildeo do

mundo grego pelo mundo romano-latino e no decorrer da histoacuteria da humanidade eacute possiacutevel

ainda identificar outras centenas de casos semelhantes ateacute o ponto no qual se afirma a

globalizaccedilatildeo por meio da modernizaccedilatildeo de todos os recantos do planeta dentro do iacutempeto de

igualar todas as culturas em um niacutevel comum

90

Entretanto apesar de ser possiacutevel interpretar as assertivas de Said de forma mais

ponderada aproveitando com isto certo direcionamento fatalista embora natildeo necessariamente

inveriacutedico de sua investigaccedilatildeo algumas gafes de sua compreensatildeo da histoacuteria se revelam

bastante perturbadoras Um dos principais criacuteticos de Said Robert Irwin publicou uma obra

onde ampla parte eacute dedicada agrave refutaccedilatildeo direta dos principais argumentos de Said Em For the

Lust of Knowning (2006) Irwin destaca algumas inverdades de Said e contrargumenta de

maneira precisa certas falaacutecias Contudo Irwin eacute tambeacutem bastante emotivo em sua abordagem

ele escreve ldquoPara pocircr minhas cartas na mesa jaacute de iniacutecio a meu ver aquele livro [Orientalism]

eacute uma obra de uma impostura maleacutevola na qual eacute difiacutecil distinguir erros verdadeiros de

falsidades propositadasrdquo (IRWIN 2006 11) Irwin ataca principalmente os erros fatuais de Said

apontando para lacunas na fundamentaccedilatildeo da obra Orientalism34 destacando vaacuterios enganos e

afirmando em siacutentese ldquoPois se eacute possiacutevel apresentar uma imagem falsa do orientalismo do

cristianismo e do imperialismo britacircnico natildeo seria tatildeo obviamente errado apresentar de modo

semelhante uma falsa imagem do islatilde da histoacuteria aacuterabe ou da difiacutecil situaccedilatildeo dos palestinosrdquo

(IDEM IBIDEM 330-331) fazendo referecircncia agraves posiccedilotildees por Said defendidas Em suma Irwin daacute

a entender nas entrelinhas que a politizaccedilatildeo de um criacutetico literaacuterio no caso Said tornou a obra

Orientalism um intento mal construiacutedo como ferramenta para sustentaccedilatildeo de posiccedilotildees poliacuteticas

condenando todo seacuterio estudo que envolve o orientalismo Ateacute entatildeo muitos outros

pesquisadores e eruditos atacaram Said bem como tantos outros o admiravam e o defenderam

Todavia com a apresentaccedilatildeo desta disputa quero aqui destacar um fator iacutempar que natildeo

necessariamente se prende agrave contenda mas que encobre o toacutepico de modo geral

34 Irwin destaca alguns erros ldquoOrientalismo daacute a impressatildeo de um livro escrito agraves pressas Eacute repetitivo e conteacutem

muitos erros factuais Said menciona lsquoPedro o Veneraacutevel e outros orientalistas cluniacensesrsquo Que outros

orientalistas cluniacenses Seria interessante conhecer seus nomes (Mas naturalmente a ideia de que houvesse toda

uma escola de orientalistas cluniacenses eacute absurda Pedro o Veneraacutevel trabalhou sozinho) Como Bernard Lewis

ressaltou Said faz com que exeacutercitos muccedilulmanos conquistem a Turquia antes de conquistarem o norte da Aacutefrica

Isso realmente sugere uma ignoracircncia espantosa da histoacuteria do Oriente Meacutedio da mesma forma que sua crenccedila

quanto a terem a Gratilde-Bretanha e a Franccedila dominado a regiatildeo oriental do Mediterracircneo a partir do final do seacuteculo

XVIIrdquo (IRWIN 2006 329)

91

Com a discussatildeo entre os orientalistas e seus inimigos o importante eacute destacar natildeo

apenas as dificuldades que envolvem todo e qualquer estudo comparado entre Ocidente e

Oriente mas o fato de que eacute da natureza do proacuteprio estudo comparado que haja divergecircncias

A divergecircncia e o erro satildeo de fato disposiccedilotildees naturais dos estudos comparados sem os quais

natildeo seria possiacutevel sequer dar iniacutecio agrave discussatildeo ou desenvolver qualquer linha de raciociacutenio

preparatoacuteria Soacute eacute possiacutevel falar em estudos comparados porque houve de antematildeo a percepccedilatildeo

de uma divergecircncia Mais ainda a necessidade do momento e os acasos eventuais direcionam

os estudiosos para um ou para outro lado Assim como Said saiu em defesa da Palestina durante

um periacuteodo no qual os conflitos haviam se asseverado em decorrecircncia da expulsatildeo das forccedilas

de paz das Naccedilotildees Unidas em 1967 tambeacutem outros pensadores em outros momentos da histoacuteria

foram motivados por acontecimentos histoacutericos sejam eles de guerra ou de paz poliacuteticos

econocircmicos ou religiosos Como por exemplo as diversas manifestaccedilotildees de revolta e

indignaccedilatildeo de Theodor Wiesengrund Adorno e Gershom Scholem apoacutes Auschwitz ou as

anaacutelises polecircmicas de Slavoj Žižek das revoltas do subuacuterbio de Londres e da Primavera Aacuterabe

Contudo algumas deacutecadas antes da publicaccedilatildeo da obra de Said precisamente durante a

deacutecada de 1950 o Departamento de Filosofia da University of Hawairsquoi at Mānoa havia

alavancado uma seacuterie de trabalhos a respeito dos fundamentos e procedimentos dos estudos

comparados Eacute preciso considerar que proacuteprio departamento jaacute havia sido estruturado entre

1930 e 1940 com o objetivo de suprir a lacuna que havia a respeito dos estudos comparados na

filosofia A primeira East-West Philosophers Conferece em 1939 ditou o tom pelo qual se

tornaria possiacutevel falar abertamente alguns anos mais tarde de uma filosofia comparada

intercultural Ali natildeo escapou a ideia de que foi justamente por meio do ldquoerrordquo que se

estabelecia o diaacutelogo entre fronteiras Em outras palavras este diaacutelogo nascia jaacute sempre de um

conflito das fronteiras A hipoacutetese de consenso eacute explorada neste sentido apenas mediante a

assunccedilatildeo de certa ignoracircncia parcial e sopesando ainda as variaccedilotildees de interpretaccedilatildeo

92

O rigor filosoacutefico que direcionou as primeiras tentativas da filosofia comparada em

confrontar as tradiccedilotildees sapienciais ocidentais e orientais permitiu a instauraccedilatildeo de uma postura

cuidadosa e quase mesmo analiacutetica do problema35 Com isto foi possiacutevel comeccedilar a pensar de

que forma elementos do pensamento oriental e da filosofia ocidental poderiam convergir ou

divergir e quais as contribuiccedilotildees que este tipo de comparaccedilatildeo pode trazer aos problemas da

contemporaneidade Todavia como anos mais tarde discutiriam Said Irwin e outros natildeo se

pode desprezar o fato de que nada escapa aos entrelaccedilamentos ldquoirrastreaacuteveisrdquo das relaccedilotildees entre

Ocidente e Oriente Neste sentido embora qualquer comprovaccedilatildeo cientiacutefica empaque frente aos

desafios historiograacuteficos natildeo eacute de todo ingecircnuo especular as influecircncias que por exemplo

Platatildeo teria sofrido da sabedoria primitiva de hinduiacutesta e budistas como sustentam diversos

especialistas36 Ou ainda da indagaccedilatildeo acerca de ateacute que ponto o Aristoacuteteles que conhecemos

natildeo foi orientalizado por Al-Farabi (صر ون ن محمس اب ی محمس ب اراب Abū Naṣr Muḥammad ibn ف

Muḥammad Fārābī) Avicena (ن نا اب ع د ou و لی اب نا ع ع د Pūr Sinɑʼ ou ainda ور نا پ ع د Pur-

e Sina em aacuterabe و لي أب عن ع س ح ن ال بس ب الله ع ن نا ب ع د Abū ʿAlī al-Ḥusayn ibn ʿAbd Allāh

ibn Al-Hasan ibn Ali ibn Sīnā) entre outros filoacutesofos da tradiccedilatildeo aacuterabe Sem contar os

sincretismos que permearam a filosofia do helenismo tardio em Alexandria onde pagatildeos

judeus cristatildeo e mulccedilumanos travavam interminaacuteveis disputas teoacutericas (e natildeo apenas teoacutericas)

a respeitos dos fundamento filosoacuteficos e teoloacutegicos religiosidade momento no qual fica difiacutecil

empreender uma anaacutelise pormenorizada de quem influenciou quem quando o quanto e como37

35 Charles A Moore ponderou no trabalho Some Problems of Comparative Philosophy (1951) a dificuldade em

posicionar as doutrinas orientais em um grupo homogecircneo como podia ser feito com a ocidentais apontando ainda

para o cuidado em evitar as caracterizaccedilotildees e comparaccedilotildees a partir de tendecircncias mais gerais (cf MOORE 1951 67)

Kwee Swan Liat escreveu ainda em Methods of Comparative Philosophy (1951) que ao menos sete esferas de

aplicaccedilatildeo metodoloacutegica devem ser previamente levadas em consideraccedilatildeo (aproximaccedilatildeo filoloacutegica histoacuterica

comparativa formal-valorativa psicoloacutegica fenomenoloacutegica e socioloacutegica-antropoloacutegica) avaliando uma por

uma e propondo por conseguinte uma oitava aproximaccedilatildeo total-integrativa (cf KWEE SWAN LIAT 1951 10ss) 36 Estas hipoacuteteses satildeo levantadas por Graham Parkes na introduccedilatildeo de Heidegger and Asian Thought (1987) (cf

PARKES 1987 1) 37 Este ponto especiacutefico acerca das contendas do periacuteodo heleniacutestico foram sobremaneira bem expostas por Jean

Pepiacuten no escrito intitulado Heacutelleacutenisme et christianisme no volume de Franccedilois Chacirctelet La Philosophie v 1 De

Platon agrave Saint Thomas Paris Marabout 1995

93

Falar efetivamente de uma filosofia comparada intercultural todavia pressupotildee outra

perspectiva aquela na qual ambas as tradiccedilotildees estatildeo culturalmente niacutetidas e bem delineadas

(ainda que por meio de caracterizaccedilotildees vulgares pouco precisas ou mesmo caricatas) e satildeo

entendidas como exponencialmente distintas Entretanto as mesmas dificuldades permanecem

Com isto quero dizer fica difiacutecil afirmar ateacute que ponto um lado compreendeu o outro de modo

suficiente e satisfatoacuterio sendo possiacutevel indagar ainda se as apropriaccedilotildees natildeo se deram mediante

interpretaccedilotildees equivocadas ou leituras transviadas sobretudo quando natildeo haacute domiacutenio pleno dos

idiomas envolvidos

Estas asseveraccedilotildees tomaram conta de muitos pensadores no decorrer da histoacuteria da

humanidade Ateacute onde eacute possiacutevel investigar dois momentos marcam o iniacutecio da relaccedilatildeo

expliacutecita (e natildeo meramente impliacutecita como no caso dos primeiros filoacutesofos gregos de Platatildeo e

de Aristoacuteteles) entre Ocidente e Oriente na filosofia a apropriaccedilatildeo latina durante a Idade Meacutedia

dos escritos aacuterabes do Oriente Meacutedio38 e a interlocuccedilatildeo e introspecccedilatildeo da tradiccedilatildeo do Extremo

Oriente (sobretudo chinesa em um primeiro momento) na filosofia alematilde dos seacuteculos dezessete

e dezoito Aqui interessa especialmente o diaacutelogo com o Extremo Oriente e como ele natildeo se

encerrou no mero intercacircmbio de tradiccedilotildees fomentando um movimento de reversatildeo no qual os

orientais por sua vez tambeacutem abriram interlocuccedilatildeo direta com o pensamento ocidental

introspectando a filosofia e desenvolvendo ao seu modo formas de reflexatildeo nos mesmos

moldes da estrutura categoacuterica ocidental mas partindo dos princiacutepios orientais ainda que em

certa medida (como se veraacute) tais princiacutepios por vezes comunguem em muitos aspectos de

elementos e direcionamentos comuns aos ocidentais e por vezes natildeo Para isto eacute preciso

investigar brevemente a gecircnese desta relaccedilatildeo e como ela tem iniacutecio

38 Sobre este toacutepico que natildeo seraacute abordado aqui confira W Raven e A Akasoy (eds) Islamic Thought in the

Middle Ages Studies in Text Transmissions and Translations in Honour of Hand Daiber Leiden Brill 2008 D

Calma Eacutetudes sur le premier siegravecle de lrsquoaverroisme latin approches et textes ineacutedits Turnhout Brepols 2010

entre outros

94

A despeito da culminaccedilatildeo das luzes no periacuteodo moderno diversos temas obscuros

perpassaram o seacuteculo dezessete sobretudo aqueles motivados pelas missotildees catequeacuteticas

jesuiacutetas na China que inevitavelmente influenciaram o ambiente intelectual da eacutepoca 39

Independente dos transtornos causados pelos europeus em suas incursotildees tambeacutem na Europa

os problemas apareceram Quando os documentos acerca das tradiccedilotildees chinesas de pensamento

desembarcaram no continente europeu despertaram imediato interesse em diversos estudiosos

Contudo tampouco foi ameno o iniacutecio deste diaacutelogo O caso mais draacutestico se deu em

1723 quando Christian Wolff fugiu de Halle an der Saale em Sachsen-Anhalt na Alemanha

em decorrecircncia de uma seacuterie de perseguiccedilotildees despertadas por um discurso por ele pronunciado

dois anos antes sob o tiacutetulo Oratio de Sinarum philosophia practica (1721) O motivo era

polecircmico e suscetiacutevel de distintas interpretaccedilotildees Wolff afirmara que ldquoA mesma autoridade que

possui os ditos e feitos de Cristo possui tambeacutem Confuacutecio para os chineses Moiseacutes para os

judeus e Mohammed para os turcosrdquo (WOLFF 1985 117) Embora Wolff tenha impressionado

grande parte de seus ouvintes com o teor apaixonado de sua preleccedilatildeo tal comparaccedilatildeo redundou

em acirradas criacuteticas por diversos professores e eruditos que acompanhavam a fala e a

interpretaram como uma espeacutecie de ateiacutesmo mais ou menos mitigado Estas acusaccedilotildees todavia

natildeo eram fruto apenas da sinofilia de Wolff mas advinham jaacute de seu confronto com colegas

pietistas da Universidade de Halle devido agrave inclinaccedilatildeo bastante evidente para um pensamento

racionalista e secular40

39 Sobre as missotildees jesuiacutetas confira Wenzhao Li Die christliche China-Mission im 17 Jahrhundert Stuttgart

Franz Steiner 2000 Acerca do caso especiacutefico do diaacutelogo com a filosofia alematilde confira ainda Antonio Florentino

Neto Von der Interpretation zum Gespraumlch Das chinesische Denken in deutschen Philosophie Saarbruumlcken

SVH 2013 Florentino Neto ainda comenta que as missotildees tiveram iniacutecio ainda no seacuteculo dezesseis tendo

comeccedilado no Japatildeo e soacute entatildeo atingido a China no seacuteculo dezessete (cf FLORENTINO NETO 2009 41) 40 Os interesses de Wolff pela China bem como pelo racionalismo paulatinamente aparecem em seus escritos

desde a influecircncia direta de Leibniz ateacute a leitura dos tratados dos jesuiacutetas a respeito da China Menccedilotildees ao

pensamento chinecircs e o peso da admiraccedilatildeo que nutria por Reneacute Descartes satildeo evidentes em seus trabalhos a partir

de 1721 (cf LACH 1953) A despeito dos interesses de Wolff pelo pensamento chinecircs sobretudo acerca dos temas

morais constata-se que ele considerava o cristianismo moralmente superior e mais bem desenvolvido (cf KANAMORI

1997 302-303)

95

A hipoacutetese de que a natureza comum do ser humano possibilita o discurso intercultural

nasce sobretudo da comunhatildeo entre uma radicalizaccedilatildeo quase miacutestica do racionalismo moderno

e o impacto causado por escritos de ordem semelhante embora com princiacutepios e fundamentos

distintos Aleacutem de Wolff tambeacutem Nicolas Malebranche e Gottfried Leibniz se dedicaram agraves

leituras do material trazido pelos jesuiacutetas no mesmo periacuteodo Malebranche compocircs em 1707 o

escrito Entretien drsquoun Philosophe Chreacutetien et drsquoun Philosophe chinois sur lrsquoexistence et la

nature de Dieu por meio do qual mais tarde aproveitou para se livrar das acusaccedilotildees de ser um

ldquospinozistardquo Malebranche ainda encarou uma acirrada disputa acerca da condenaccedilatildeo do Papa

Clemente XI agraves missotildees jesuiacutetas sustentando posiccedilotildees bastante polecircmicas em seu diaacutelogo

Malebranche levanta em sua obra a questatildeo fundamental acerca da entificaccedilatildeo do deus

cristatildeo instigando a pergunta acerca do infinito que eacute respondida pelo filoacutesofo chinecircs da

seguinte maneira ldquoEstou convencido de que quando penso sobre o infinito estou muito longe

de pensar qualquer coisa Mas entatildeo eu penso em um tal ser individual e determinado Agora

o Deus que vocecircs adoram natildeo eacute assim um ser individual e particularrdquo (MALEBRANCHE 1708

17) As preocupaccedilotildees de Malebranche caminham no sentido de articular ser e ente no problema

da ontologia do cristianismo Quando Leibniz escreve seu Discours sur la theacuteologie naturelle

des Chinois (1716) ele o faz justamente tendo em vista repetidos pedidos de esclarecer pontos

levantados por Malebranche apoacutes o escrito ter sido enviado a ele por Nicholas Reacutemond41

Eacute possiacutevel considerar que Leibniz foi o que se devotou com mais afinco agrave tradiccedilatildeo

chinesa Ele teria se envolvido principalmente com o direcionamento praacutetico da sabedoria

chinesa profundamente norteada pelo propoacutesito de melhorar a si mesmo e agrave sociedade por meio

da noccedilatildeo confucionista de cultivo de si (修身 xiushen) no sentido propriamente moral42

41 Leibniz trocou extensa correspondecircncia com os missionaacuterios jesuiacutetas a respeito da filosofia chinesa aleacutem de

apresentar comentaacuterios pontuais em sua Novissima Sinica (1697) Contudo eacute no Discours que suas ponderaccedilotildees

mais seacuterias e cuidadosas satildeo delineadas e manifestas (cf KANG 2009 6-8) 42 Mais especificaccedilotildees sobre este tema podem ser encontrados em Karyn T Lay Introduccedilatildeo agrave filosofia chinesa

Trad Saulo Alencastre Satildeo Paulo Madras 2009

96

Leibniz escreve em seu discurso ldquoMas quem poderia pensar que houvesse na terra um

povo que superasse os nossos aspectos da vida cultural Se formos iguais nos modos de

produccedilatildeo somo superiores nas ciecircncias teoacutericas mas inferiores na filosofia praacuteticardquo (LEIBNIZ

1979 11) concluindo que ldquo() somos inferiores na aacuterea da eacutetica na poliacutetica e na vida dos

haacutebitos cotidianosrdquo (IDEM IBIDEM) A interpretaccedilatildeo de Leibniz exalta a capacidade dos chineses

em se organizarem e valorarem as tensotildees promovidas pelo campo social com base no cultivo

de si e ainda identificando o ldquosirdquo ao povo em geral Importante eacute ressaltar natildeo apenas desta

breve sentenccedila ilustrativa mas a partir de uma visatildeo mais ampla de suas reflexotildees o profundo

interesse em preencher lacunas a respeito da proveniecircncia intelectual de certos problemas

filosoacuteficos

Anos depois tambeacutem Georg W F Hegel Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche

nutririam interesses pelo Oriente43 Contudo a resposta propriamente oriental a respeito do

intercacircmbio filosoacutefico se daria apenas na virada do seacuteculo dezenove para o seacuteculo vinte Este eacute

o momento no qual a filosofia comparada intercultural comeccedila a ganhar corpo precisamente

com a abertura poliacutetica e intelectual do Japatildeo e o desenvolvimento da chamada Escola de

Filosofia de Kyōto44 Embora natildeo haja tempo nem espaccedilo para abordar de maneira mais

cuidadosa os enlaces teoacutericos e praacuteticos da Escola de Kyōto escrutinando as estruturas de

pensamento de cada um de seus primeiros membros (e ainda de seus membros tardios) gostaria

aqui de destacar alguns aspectos fundamentais direcionados por duas questotildees a primeira

sustentando o porquecirc a filosofia tem iniacutecio propriamente acadecircmico no Extremo Oriente e

precisamente no Japatildeo e a segunda indagando como (ou de que modo) isto acontece Uma

hipoacutetese necessariamente leva agrave outra e isto pode ser facilmente observado

43 Um panorama mais especiacutefico das aproximaccedilotildees pode ser visto em Florentino Neto 2009 44 Em minha dissertaccedilatildeo de mestrado jaacute havia explanado os movimentos histoacutericos que levaram agrave abertura do Japatildeo

e ao surgimento da filosofia japonesa moderna ou contemporacircnea Uma bibliografia mais completa acerca do tema

pode ser extraiacuteda das obras de referecircncia William Beasley The Meiji Restoration (Stanford Stanford UP 1972) e

The Rise of Modern Japan (New York St Matinrsquos Press 1995)

97

Em primeira matildeo sustento que os motivos que proporcionaram o surgimento de uma

ldquoescola filosoacuteficardquo no Japatildeo modernizado estatildeo intimamente ligadas com sua introspecccedilatildeo da

tradiccedilatildeo oriental precedente Em palavras mais simples a maneira pela qual os japoneses

compreenderam e sintetizaram as principais linhas de pensamento orientais (hinduiacutesmo

budismo confucionismo e daoiacutesmo) culminando no chamado budismo zen foi sem embargo

a chave para absorver a filosofia ocidental Em segunda matildeo sustento ainda que a filosofia

japonesa nasce cresce e se estabelece mediante duas perspectivas (justamente os ldquoparadigmasrdquo

anteriormente abordados na tese) metafiacutesica e negatividade em decorrecircncia do florescimento

do zen no Japatildeo Por fim argumento que justamente pelo entrelaccedilamento de metafiacutesica

negatividade e o pensamento do Extremo Oriente que nasce a uacutenica filosofia possiacutevel para o

momento histoacuterico pelo qual passava o Japatildeo e com isto abre-se uma pertinente chave de

leitura para o momento que agora mesmo atravessa a filosofia contemporacircnea

Portanto inicialmente eacute essencial destacar a singularidade do budismo zen em relaccedilatildeo

agraves tradiccedilotildees precedentes Existem muacuteltiplas maneiras pelas quais eacute possiacutevel empreender esta

tarefa Acredito ser plausiacutevel direcionar este toacutepico mediante um problema especiacutefico qual seja

da fundamentaccedilatildeo uacuteltima da realidade a partir da meditaccedilatildeo a respeito da questatildeo da vacuidade

entendida como śūnyatā (शनयता)

A ideia de śūnyatā deriva do budismo indiano primitivo Relatos de reflexotildees em torno

ao problema do fundamento da realidade aparecem (como jaacute havia exposto na introduccedilatildeo desta

tese) desde os cacircnones Pāḷi e satildeo expressos de maneira mais clara e niacutetida no budismo mahāyāna

principalmente no Sūtra do Coraccedilatildeo (Prajntildeāpāramitā Hṛdaya परझञापारनमताहरदय) passando pela escola

mādhyamaka de budismo indiano e ainda nos Versos Fundamentais sobre o Caminho do Meio

(Mūlamadhyamaka-kārikā मलमधयमककाररका) de Nāgārjuna (िागारि) onde foi apresentada de maneira

mais profunda e sistemaacutetica

98

Algumas interpretaccedilotildees do escrito de Nāgārjuna destacam o śūnyatā como constituiccedilatildeo

da totalidade da realidade enfatizando que isto significa uma muacutetua dependecircncia (pratītya-

samutpāda परतीतयसमतपाद) de todas as coisas de todas aquelas que possuiriam existecircncia individual

ou substancial e ateacute da proacutepria ideia de nada o que significa propriamente uma anulaccedilatildeo de

qualquer Ente Supremo ou mesmo qualquer verdade absoluta45

Quando os ensinamentos do budismo indiano chegam agrave China e no Japatildeo alguns

princiacutepios fundamentais satildeo radicalizados por ambas as naccedilotildees Existem vaacuterias hipoacuteteses

conforme as quais eacute possiacutevel indagar os motivos desta radicalizaccedilatildeo Alguns consideram que a

doutrina radical do budismo se deve ao gecircnio do monge Boddidharma embora outros

argumentem que o motivo foi o encontro com o daoiacutesmo e o neoconfucionismo A questatildeo pode

permanecer suspensa sem que isto afete a compreensatildeo das bases e dos caminhos do budismo

zen Ao que concerne propriamente agrave introspecccedilatildeo deste conceito fundamental na filosofia

japonesa contemporacircnea (sem embargo o ponto ao qual quero chegar) existem tambeacutem

inuacutemeras controveacutersias embora haja ainda certos pontos solidamente estabelecidos e

mutuamente consentidos que se pode explorar com o intuito de apresentar o problema

O expoente da Escola de Kyōto que pela primeira vez explorou de maneira sistemaacutetica

a questatildeo e a colocou via uma formulaccedilatildeo filosoacutefica foi Kitarō Nishida (西田 幾多郎) Sua

biografia eacute repleta de elementos que o fariam parecer ou bem um rebelde visionaacuterio ou bem

um precoce e intempestivo intelectual permeado por desacordos com o sistema Sem embargo

muitos pesquisadores descreveram com minuacutecia os percalccedilos de sua biografia Por isto natildeo eacute

de todo liacutecito perder muito tempo aqui descrevendo seu percurso pessoal Gostaria apenas de

atentar para alguns pontos sobremaneira importantes no que tange agrave formaccedilatildeo intelectual de

Nishida

45 Este ponto eacute melhor analisado por Michael Barnhart que considera que de acordo com Nāgārjuna ldquo() natildeo se

pode sustentar nenhuma feacute na realidade ou princiacutepio transcendente nem nenhuma razatildeo humana pode pretender

independecircncia de nenhum tipo ()rdquo (BARNHART 1994 649)

99

Em primeiro lugar Nishida viveu em meio agrave restauraccedilatildeo Meiji (1868-1912) um periacuteodo

que divide a histoacuteria do Japatildeo entre preacute-moderna e moderna no qual a sociedade feudal entra

em decliacutenio e a naccedilatildeo eacute ocidentalizada pela forccedila maior da pressatildeo do Departamento de Estado

Norte-Americano A evidecircncia de que o ensino japonecircs estava defasado frente aos desafios do

novo mundo levou seus governantes a implementarem um sistema educacional semelhante ao

ocidental sendo neste periacuteodo fundadas as primeiras universidades japonesas Nishida

frequentou tais universidades embora tivesse seu proacuteprio percurso intelectual independente

tendo a oportunidade de estudar com Raphael von Koumlber professor russo-alematildeo convidado

para ministrar aulas de filosofia no Japatildeo Com Koumlber Nishida estudou a histoacuteria do

cristianismo (com ecircnfase nas influecircncias do paganismo de Plotino) aleacutem da filosofia criacutetica de

Immanuel Kant e da esteacutetica claacutessica Eacute preciso ponderar ainda que Nishida lia com fluecircncia o

francecircs o alematildeo e o inglecircs tendo acesso integral agraves principais obras da filosofia ocidental Por

outro lado o mesmo estudante dedicado era ainda um pensador radical que encontrou na

tradiccedilatildeo do zen budismo um rumo para suas inquietaccedilotildees

Quando Nishida se aproxima do zen budismo e comeccedila a praticar mediaccedilatildeo o impacto

da destruiccedilatildeo dos meacutetodos convencionais de ensino o afeta largamente ponderando sobretudo

que ele jaacute havia abandonado a escola primaacuteria por desentendimentos com o regime educacional

Um artigo de Lothar Knauth intitulado Life is Tragic The Diary of Nishida Kitaro (1965)

destaca uma passagem do diaacuterio de Nishida onde eacute possiacutevel observar sua postura conforme suas

proacutepria palavras

Faccedila sua proacutepria mente e depois disto natildeo dependa dos outros

Natildeo acredite indiscriminadamente nas palavras das pessoas

Natildeo fale de assuntos que ainda natildeo foram amadurecidos

Natildeo desperdice tempo precioso com fofocas ociosas

A lei da mateacuteria de leitura ler pensar escrever

100

Se vocecirc ainda natildeo terminou de pensar sobre um assunto

natildeo mude para outro

Se vocecirc natildeo terminou de ler um livro ateacute o fim

natildeo pegue outro

Non multa sed multum

Diaacuterio Ano Novo 1897 (NISHIDA apud KNAUTH 1965 337)

O trecho do diaacuterio aponta para um jovem estudioso preocupado com o rigor a tensatildeo

proveniente do impacto surtido pelas leituras Knauth expotildee consecutivamente um outro trecho

do diaacuterio este datado de 1 de julho de 1945 jaacute no final da vida de Nishida que diz

simplesmente ldquoEscurecendo nublado vinte grausrdquo (IDEM IBIDEM) A intenccedilatildeo de Knauth com

isto eacute mostrar a profunda introspecccedilatildeo redundante de um amadurecimento especulativo

proveniente de anos de meditaccedilatildeo Contudo ao que interessa ao propoacutesito do toacutepico vale

salientar que mesmo em um conturbado espiacuterito jovem havia jaacute sempre a necessidade de forccedilar

uma ldquoaquietamentordquo da mente uma busca por um lugar silencioso no qual prevalece a maacutexima

non multa sed multum natildeo muito mas bastante

Entre 1891 e 1897 (a ano da primeira citaccedilatildeo) Nishida praticou incessantemente a

meditaccedilatildeo zen havendo tambeacutem contribuiacutedo para uma revista do secto do Budismo da Terra

Pura Sua transformaccedilatildeo efetiva se daria em 1903 onde uma draacutestica revoluccedilatildeo de seu

entendimento abriria caminho para dar iniacutecio ao seu pensamento efetivo

O homens natildeo podem pensar em morrer natildeo podem ter grandes pensamentos ambos

Kawai e Gordon jaacute disseram isto Tentei pensar em mim mesmo morto aos trinta e um

de dezembro de meu trigeacutesimo quinto ano mas entretanto por mais que tentasse natildeo

podia pensar sobre isto seriamente Natildeo importa o quanto eu pense na morte eu natildeo

consigo me fazer esquecer o mundo (ID IBID 341)

101

Para Knauth este trecho evidencia uma iluminaccedilatildeo por meio da ideia de morte miacutestica e

renascimento O resultado imediato da iluminaccedilatildeo ao contraacuterio do que poderia parecer coerente

aos olhos ocidentais daacute-se na publicaccedilatildeo imediata de um artigo onde Nishida afirma ldquoEu

estava errado em usar o Zen em consideraccedilatildeo ao conhecimento Eu deveria tecirc-lo usado para o

espiacuterito e alma Ateacute eu comeccedilar a sentir pela visatildeo eu natildeo pensarei nem em filosofia nem em

religiatildeordquo (ID IBID 342) Este momento representa uma iluminaccedilatildeo justamente pelo fato de que

haacute sem embargo a assunccedilatildeo de uma correta postura mas com um propoacutesito enganoso ndash a busca

pelo conhecimento havia posto em xeque absolutamente todos os anos dedicados agrave meditaccedilatildeo

era necessaacuterio portanto comeccedilar novamente

Conforme Knauth Nishida iraacute se preparar nos proacuteximos anos para exprimir o potencial

introspectado durante sua iluminaccedilatildeo Trecircs pontos satildeo neste momento fundamentais O

primeiro eacute a leitura profundamente marcante para Nishida de Mestre Eckhart46 O segundo eacute

o falecimento de sua filha Yūko viacutetima de um ataque de bronquite O terceiro (diretamente

ligado ao segundo) eacute sua luta contra o cigarro Em 1923 Nishida escreve ldquoDeste dia em diante

eu morri para mundo Eu vivo em minha proacutepria filosofia Tudo sacrificado tudo sacrificado

Profunda impressionante experiecircnciardquo (ID IBID 344) e em 1927 ldquoAgrave tarde eu estava sozinho

na casa Pensamento quietos Quietamente eu passei metade do dia Eu natildeo fumei nem sequer

um cigarro Renascimento despertado de um sonho ruim De uma aacutervore podre de alguma

maneira um novo broto de vida pode florescer Hoje eu estava quase felizrdquo (ID IBID) O motivo

pelo qual Knauth intitula seu artigo com a expressatildeo Life is Tragic adveacutem justamente desta

postura de Nishida conforme a qual a vida humana natildeo passaria de preocupaccedilotildees e problemas

46 Nishida inicia a leitura de Eckhart em 1907 Seria interessante ao propoacutesito da tese que houvesse uma explanaccedilatildeo

maior e mais cuidadosa do pensamento de Eckhart sobretudo no segundo capiacutetulo onde seu posicionamento eacute

fundamental para o desenvolvimento do neoplatonismo e da miacutestica Contudo esta difiacutecil tarefa tornaria o percurso

da tese demasiado longo e cansativo podendo desviar a atenccedilatildeo primordial do trabalho Todavia possuo a intenccedilatildeo

de desdobrar este toacutepico em um trabalho futuro

102

A despeito de um aparente pessimismo o que pode ser destacado do percurso intelectual

e pessoal de Nishida eacute a profundidade com qual ele sentiu o peso da vida A doutrina buacutedica do

sofrimento eacute por ele absorvida de maneira natildeo soacute transcendente mas ainda imanente Os

escritos de Nishida revelaratildeo natildeo apenas um caminho filosoacutefico no qual se imbricam a tradiccedilatildeo

sapiencial oriental e a filosofia ocidental mas a descriccedilatildeo de uma experiecircncia vital na qual pulsa

a forccedila do pensamento especulativo Por esta e outras razotildees Nishida havia sido nomeado com

o nome laico-budista ldquosunshinrdquo uma polegada de mente

A produccedilatildeo propriamente filosoacutefica de Nishida eacute tanto mais densa quando suas reflexotildees

pessoais anotadas em seu diaacuterio contudo relativamente mais faacuteceis de serem abordadas devido

agrave sistematicidade que permeia os escritos A despeito de suas incompatibilidades com o sistema

de ensino sua carreira acadecircmica foi coroada em 1894 quando recebeu o tiacutetulo de licenciado

em filosofia com uma tese acerca da causalidade em David Hume culminando no professorado

junto agrave Universidade Imperial de Kyōto em 1913 Neste iacutenterim dedicou-se ao desdobramento

das bases de sua filosofia que teria sido divulgada de maneira mais consistente na obra que

havia publicado em 1911 sob o tiacutetulo Zen no kenkyū (善の研究 Investigaccedilatildeo sobre o bem) A

obra mais conhecida de Nishida busca o autodespertar o que significa uma visatildeo dos

fenocircmenos que compreendem a experiecircncia pura evidente desde a movimentaccedilatildeo de uma

loacutegica toacutepica O termo ldquoloacutegica toacutepicardquo eacute propositalmente ambivalente Por um lado indica uma

loacutegica do espaccedilo do lugar por outro denuncia como esse lugar (locus) revela uma locuccedilatildeo um

discurso Eacute neste lugar que se desenvolvem os limites do pensamento Relatos de alunos de

Nishida comentam que ele costumava desenhar no quadro negro trecircs esferas uma sobre a outra

na qual a primeira representaria os acidentes circundaacuteveis ao sujeito a segunda os elementos

incapturaacuteveis pela percepccedilatildeo e a terceira (com linhas tracejadas) a impossibilidade final de

limitaccedilatildeo e a esfera do absoluto insuperaacutevel e infinitamente expansiacutevel nomeado com o signo

do nada absoluto (絶対無 Zettaina) sua interpretaccedilatildeo para a noccedilatildeo budista de śūnyatā

103

Com isto Nishida arrancaria da tradiccedilatildeo zen budista uma negatividade total para

fundamentar sua ideia de experiecircncia pura (純粋経験 Junsui keiken) que segundo ele ldquo() se

entende conhecer os fatos como eles simplesmente satildeo (hellip)rdquo (NISHIDA 1990 3) Estaacute presente

nesta formulaccedilatildeo a absorccedilatildeo de Nishida da psicologia funcional de William James onde se

depura a correspondecircncia da percepccedilatildeo com a teoria da verdade Nishida ainda afirma ldquo() o

que usualmente se refere como experiecircncia eacute via de regra adulterado por algum tipo de

pensamento portanto por experiecircncia pura se entende aquele estado no qual se tem experiecircncia

sem qualquer discriminaccedilatildeo deliberativardquo (IDEM IBIDEM) O claacutessico exemplo pelo qual se ilustra

a condiccedilatildeo primaacuteria da pureza da experiecircncia sugere que em uma expressatildeo como ldquoouvi uma

moscardquo haacute um momento no qual o sujeito que ouve a mosca e seu barulho e o ato mesmo de

ouvir ainda natildeo foram distinguidos O fundamento da realidade enquanto nada absoluto para

Nishida encontra-se neste preciso momento neste instante incapturaacutevel na inefabilidade do

indescritiacutevel Entretanto embora a erudiccedilatildeo filosoacutefica de Nishida fosse sobremaneira evidente

bem como sua dedicaccedilatildeo ao zen budismo suas ideias natildeo estavam livres de criacuteticas em ambas

as esferas

Uma das criacuteticas mais ferrenhas a Nishida foi apresentada por Hajime Tanabe (田辺 元)

seu sucessor na caacutetedra de filosofia da Universidade Imperial de Kyōto (em 1928) Ao contraacuterio

de Nishida que nunca havia saiacutedo do Japatildeo Tanabe foi contemplado com um intercacircmbio pelo

governo japonecircs e teve a oportunidade de estudar ao lado de Husserl e Heidegger Sua maior

obra Zangedo to shite no tetsugaku (懺悔道としての哲學 A filosofia como caminho metanoeacutetico

1946) ocupava-se da superaccedilatildeo do inevitaacutevel problema epistemoloacutegico que envolvia a questatildeo

do nada absoluto propondo o termo metanoeacutetica derivado do grego μετανόησις e vertido ao

japonecircs como zangedo (懺悔道) cuja definiccedilatildeo seria nas palavras de Tanabe ldquoum baacutelsamo para

a dor do pesar e ao mesmo tempo o recurso para uma luz absoluta que paradoxalmente torna

vigente a escuridatildeo sem expulsaacute-lardquo (TANABE 1986 2)

104

Em decorrecircncia da necessidade de superaccedilatildeo do proacuteprio pensamento a criacutetica de Tanabe

emerge no sentido de questionar se a filosofia possui condiccedilotildees de enquadrar o autodespertar

religioso conforme exposto por Nishida de maneira sistemaacutetica Conforme Agustiacuten Jacinto

Zavala ldquoResumidamente ao tomar como base o ponto de vista da religiatildeo a filosofia de

Nishida lsquoconverte o trans-histoacuterico absoluto em principium [princiacutepio fundamental] do sistema

e mediante esta determinaccedilatildeo vem [finalmente] ordenar e organizar o histoacuterico relativordquo

(ZAVALA 2013 106) ao passo que ldquoPor isto Tanabe diz lsquoa duacutevida fundamental que albergo

frente a filosofia mestre Nishida se relaciona com este ponto () se a filosofia trata de tomar o

ponto de vista religioso como seu proacuteprio ponto de vista necessariamente deixa de ser si mesmardquo

(IDEM IBIDEM) sintetizando a preocupaccedilatildeo de Tanabe

Os conflitos entre a filosofia a auto-percepccedilatildeo religiosa a partir do estabelecimento do

nada absoluto como fundamento da realidade passaratildeo ainda prelo crivo de diversos

interlocutores sofrendo alteraccedilotildees e recebendo criacuteticas diretas e indiretas Em linhas gerais o

problema de Tanabe estaacute diretamente relacionado com suas compreensotildees estritas da religiatildeo e

da filosofia Em primeiro lugar porque ao contraacuterio de Nishida (que era praticante do zen

budismo) Tanabe partia antes do budismo Jōdo Shinshū (浄土真宗 A Escola da Terra Pura) do

monge Shinran (親鸞)47 Em segundo lugar devido aos interesses de Tanabe pela filosofia da

histoacuteria de Wilhelm Wundt e Heinrich Rickert aleacutem da influecircncia da Lebensphilosophie e o

compromisso histoacuterico que ele alimentou a partir de tais influecircncias Por este motivo era

necessaacuterio tanto para resolver a disputa entre Nishida e Tanabe quanto para superar os estaacutegios

preliminares das discussotildees da Escola de Kyōto reformular as compreensotildees de filosofia e

religiatildeo algo que acontece de maneira somente com Keiji Nishitani (西谷 啓治)

47 Sobre a fundamentaccedilatildeo budista de Tanabe confira Joaquim Antonio Bernardes Carneiro Monteiro ldquoO lsquoNada

Absolutorsquo em Hajime Tanabe uma avaliaccedilatildeo criacuteticardquo In Antonio Florentino Neto e Oswaldo Giacoia Jr (orgs)

O Nada absoluto e a superaccedilatildeo do niilismo Os fundamentos filosoacuteficos da Escola de Kyoto Campinas Phi 2013

155-188

105

Keiji Nishitani eacute talvez o filoacutesofo japonecircs contemporacircneo mais popular entre os

ocidentais O motivo eacute provavelmente o estilo bastante solto e livre de seus ensaios

principalmente os que chegaram traduzidos ao Ocidente ndash precisamente os mais maduros

compostos apoacutes a deacutecada de 1960 como Shūkyo to wa Nanika (宗敎とは何か O que eacute religiatildeo

1961) e Nihirizumu (ニヒリズム Niilismo 1986) Estes mesmos trabalhos sofreram diversas

criacuteticas por parte de colegas japoneses que o acusaram de se afastar dos modos propriamente

orientais de expressatildeo supostamente sugerindo uma indiferenccedila ao idioma vernaacuteculo agraves

tradiccedilotildees e aos projetos de seus antecessores Sobre isto Nishitani teria argumentado que as

lacunas do pensamento japonecircs tradicional sobretudo as idiomaacuteticas impossibilitariam o

alcance do sentido de alguns problemas colocados pela filosofia ocidental motivo pelo qual a

criaccedilatildeo de novas palavras em japonecircs se mostrava absolutamente necessaacuterios48 Sem embargo

os questionamentos impostos pelos novos tempos natildeo se prendiam agraves fronteiras linguiacutesticas e

invadiam o Japatildeo modernizado e ocidentalizado com especial forccedila razatildeo pela qual a

aproximaccedilatildeo com a filosofia sua interiorizaccedilatildeo e reflexatildeo era simplesmente inevitaacutevel

Todavia embora Nishitani tenha realmente pendido para o pensamento filosoacutefico ou para a

maneira pela qual os pensadores ocidentais liam as questotildees conflituosas da contemporaneidade

ao mesmo tempo ele se voltava com ainda maior introspecccedilatildeo para o budismo sobretudo para

o zen Esta ambiguidade intencional do pensamento de Nishitani se revela nas inquiriccedilotildees por

ele levantadas e pelo teor de suas investigaccedilotildees deixando ver claramente sua preocupaccedilatildeo a

respeito do direcionamento reflexivo da filosofia contemporacircnea

48 James Heisig discute esta questatildeo pormenorizadamente quando apresenta o estilo filosoacutefico de Nishitani

Conforme Heisig a influecircncia ocidental absorvida por Nishitani cujas maiores expressotildees foram a esteacutetica de

Immanuel Kant o idealismo alematildeo (especialmente Friedrich W J Schelling) Plotino e o neoplatonismo a

miacutestica de Mestre Eckhart e Francisco de Assis e ainda a hermenecircutica existencial de Wilhelm Dilthey e Martin

Heidegger deixam bastante claro o porquecirc ele subverte e converte os limites e alcances da linguagem Heisig

ainda destaca o momento no qual Nishitani afirma que nos miacutesticos a confluecircncia e a uniatildeo entre religiatildeo e

filosofia alcanccedilaram um ponto elevado despertando seu profundo interesse por tais autores A despeito dos temas

eleitos Heisig considera ainda que por este mesmo motivo o estilo de Nishitani se mostra superior ao de Tanabe

e ao de Nishida (cf HEISIG 2002 233-242)

106

Eacute possiacutevel considerar que o problema com o qual Nishitani se defrontou e que norteou

o andamento geral de seu pensamento mais cuidadosamente desenvolvido possui um ponto de

partido muito bem estabelecido qual seja o problema do niilismo denunciado na virada do

seacuteculo por autores como Friedrich Nietzsche Ernst Juumlnger Fioacutedor Dostoievsky Ivan

Turgeniev entre outros Em Shūkyo to wa Nanika longe de tentar elucidar o sentido da religiatildeo

em termos sistemaacuteticos a despeito do tiacutetulo do escrito Nishitani parece buscar uma imersatildeo na

tensatildeo contraditoacuteria que os seres humanos possuem com a experiecircncia religiosa segundo ele

ldquo() para quem a religiatildeo natildeo eacute uma necessidade precisamente por esta razatildeo ela eacute uma

necessidade Natildeo haacute nenhuma outra coisa sobre a qual se possa dizer o mesmordquo (NISHITANI

1983 1) Sua definiccedilatildeo de religiatildeo se abre a partir da compreensatildeo de uma ldquoauto-despertar da

realidaderdquo cuja explicaccedilatildeo se apoia no termo inglecircs realize segundo ele um termo polissecircmico

que possuem tanto o sentido de actualize (atualizar mas tambeacutem trazer o sentido real como na

expressatildeo actually cujo significado seria na verdade) quanto de understand (compreender)

Nishitani explica ldquo() estou utilizando esta palavra para indicar que nossa habilidade para

perceber a realidade significa realizar (atualizar) a realidade por si mesma em noacutesrdquo (IDEM IBIDEM

5) Esta explicaccedilatildeo apareceria para confrontar o sentido do niilismo que segundo Nishitani

ldquo() se refere agravequilo que torna sem sentido o sentido da vida () sinalizando nada menos do

que fato de que o despertar da nossa existecircncia penetrou em uma profundidade extraordinaacuteriardquo

(ID IBID 4) Em suma Nishitani possui um alvo muito claro lidar com o abismo existencial

que se deixa ver sobremaneira angustiante nos novos tempos aqueles mesmos ldquotempos de

penuacuteriardquo da ldquonoite do mundordquo anunciados por Nietzsche denunciados por Heidegger e que

assombravam os filoacutesofos que se deparavam com a instituiccedilatildeo da morte do pensamento

reflexivo mediante a Era Atocircmica dos desastres ambientais e dos deliacuterios da modernizaccedilatildeo

industrializaccedilatildeo e tecnologizaccedilatildeo do mundo Fatos inegaacuteveis cuja profunda relaccedilatildeo com a

histoacuteria do pensamento torna seu sentido cada vez mais obscuro

107

A forccedila interpretativa que moveraacute o pensamento de Nishitani rumo agraves tentativas de

resoluccedilatildeo dos conflitos passaraacute em primeiro lugar por sua leitura a respeito do problema do

niilismo e sua relaccedilatildeo com a ideia de śūnyatā Quando Nishitani alcanccedila esta abordagem ele

frisa de iniacutecio que ldquo() um dos maiores e mais fundamentais problemas que todas as religiotildees

encaram em nossos tempos eacute sua relaccedilatildeo com a ciecircnciardquo (IDEM IBIDEM 77) O motivo aparenta

ser a incompatibilidade entre o pensamento cientiacutefico e o sentido essencial da vida religiosa

Nishitani entatildeo argumenta de maneira incisiva (e que sintetiza o propoacutesito desta tese no final

das contas)

Uma em cada dez pessoas escuta que a religiatildeo e a ciecircncia tem cada uma seu proacuteprio

domiacutenio e tarefa e que as duas nunca precisaratildeo entrar em conflito caso permaneccedilam

confinadas em suas fronteiras originais Isto eacute inadequado Uma fronteira separa uma

aacuterea da outra e ao mesmo tempo pertence a ambas as aacutereas Os fundamentos do

conflito entre religiatildeo e ciecircncia repousam certamente em tais fronteiras De fato desde

os tempos mais antigos metafiacutesica e filosofia consistiram na exploraccedilatildeo destas

fronteiras entre ciecircncia e religiatildeo (IDEM IBIDEM 77-78)

Nishitani ainda questiona se tais fronteiras podem ser consideradas realmente fronteiras ou natildeo

admitindo que a ciecircncia contemporacircnea natildeo parece se preocupar com a questatildeo A criteacuterio de

verdade objetiva da ciecircncia com o apoio das leis da natureza seria responsaacutevel por de certo

modo menosprezar o conhecimento religioso e mesmo o conhecimento filosoacutefico em

decorrecircncia da verdade cientiacutefica absoluta Mas Nishitani contesta no contrafluxo da tendecircncia

mais geral ldquoMas eacute realmente tatildeo evidente Uma nova maneira de olhar para o absoluto e o

relativo conforme a qual dois absolutos podem se tornar conjuntos impensaacutevel em uacuteltima

instacircnciardquo (ID IBID 78) Para Nishitani o problema vige no fechamento das possibilidades

108

Natildeo haacute aqui uma criacutetica ldquocientofoacutebicardquo mas o levantamento de uma questatildeo qual seja

ldquoNatildeo possuiacutemos uma outra maneira de conceber o relativo senatildeo em termos de estabelecimento

de limites ndash como fazemos por exemplo quando dividimos uma folha de papel em duas ao

traccedilar uma linha nelardquo (ID IBID 79) Nishitani mostraraacute esta possibilidade por meio de sua

interpretaccedilatildeo da ideia de śūnyatā e como ela desvela uma perspectiva que explora os elementos

abandonados pela objetividade cientiacutefica Seja como for eacute possiacutevel considerar jaacute de iniacutecio que

se concentra aiacute toda a potecircncia do diaacutelogo entre metafiacutesica e negatividade apresentado ao longo

desta tese sendo possiacutevel acompanhar Nishitani em uma definiccedilatildeo do conflito das fronteiras

Agora bem quais as saiacutedas ou quais as possiacuteveis chaves de leitura para o problema que

se apresenta a saber a questatildeo do niilismo contemporacircneo Quando emprego aqui o termo

filosofia comparada intercultural tenho em vista a maneira pela Nishitani (entre outros)

exploram as muacuteltiplas significaccedilotildees de distintas tradiccedilotildees culturais em suas convergecircncias e

divergecircncias para se aproximar do problema e propor novos pontos de vista A respeito

especificamente da questatildeo levantada Nishitani utiliza a proacutepria ambivalecircncia do niilismo para

propor uma soluccedilatildeo Seu caminho seraacute resgatar o sentido pelo qual a ciecircncia se apropria das

leis da natureza e desenvolve a tecnologia argumento que eacute precisamente por meio desta

apropriaccedilatildeo que se revelam a medida da liberdade do homem em relaccedilatildeo agraves fronteiras impostas

pelas leis naturais Contudo haacute uma inversatildeo pela qual o controlador se torna o controlado

Conforme Graham Parkes ldquo() a vida humana e o trabalho como um todo se tornam

progressivamente mecanizados e impessoais (nos termos de Heidegger perdemos nossa lsquolivre

relaccedilatildeorsquo com a teacutecnica e estamos lsquoacorrentadosrsquo agrave ela)rdquo explicando ademais que para Nishitani

ldquoA liberdade advinda das leis da natureza que a tecnologia mecanizada nos concede aleacutem do

sentimento concomitante de distacircncia ou separaccedilatildeo do mundo natural levam os seres humanos

a lsquose comportarem como se eles estivessem completamente fora das leis da naturezarsquordquo (PARKES

2013a 103) Sendo assim a uacutenica via possiacutevel eacute restabelecer esta relaccedilatildeo humano-natureza

109

O ponto de apoio de Nishitani para colocar o problema parte da compreensatildeo que

oferece o neoplatonismo e a miacutestica medieval de Deus como nada absoluto (ele cita

especificamente Mestre Eckhart neste ponto) para trazer agrave tona a questatildeo morte-sive-vida

Nishitani evidencia portanto que ldquoEste ponto natildeo pode repousar em um lado mais distante

aleacutem deste mundo e desta vida terrena que possuiacutemos Deve repousar no lado mais proacuteximo

tanto mais proacuteximo quanto nossas vidas ordinariamente devem serrdquo (ID IBID 90) Aproveitando

a perspectiva budista para elucidar este caminho Nishitani esclarece de maneira precisa que

ldquoŚūnyatā eacute o ponto no qual noacutes nos tornamos manifestos de nossa proacutepria talidade (suchness)

como seres humanos concretos como indiviacuteduos com alma e personalidade Ao mesmo tempo

eacute o ponto no qual tudo ao redor se manifesta para noacutes em sua proacutepria talidade (suchness)rdquo (ID

IBID 90)49 Śūnyatā envolve inevitaacutevel e necessariamente este complexo conceito de talidade

(真如 Shinrsquonyo ndash Tathatā तथता) que eacute sem embargo o berccedilo da meditaccedilatildeo oriental

A talidade eacute a via pela qual se extrai a conduccedilatildeo do sistema eacutetico e moral da sociedade

hinduiacutesta primitiva Sua disseminaccedilatildeo no Extremo Oriente eacute carregada por duas tradiccedilotildees quais

sejam o daoiacutesmo e o budismo Os daoiacutestas centram sua noccedilatildeo de ldquoprinciacutepiordquo por meio da noccedilatildeo

de dao (道) e sua relaccedilatildeo com de (德) O famoso Dao De Jing (道德经) bem como a obra do

mestre Zhuangzi (莊子) satildeo os principais responsaacuteveis por colocarem ambos os princiacutepios (dao

e de) e movimento dinacircmico conforme o qual a relaccedilatildeo com natureza natildeo seria entendida nem

como celestial nem como humana mas como ambas sem que uma tenha privileacutegio sobre a

outra ndash e este seria enfim o caminho (dao) da virtude (de) (cf ZHUANGZI 2009 42)

49 Traduzo aqui suchness por talidade com base na ideia de que Nishitani se refere ao conceito budista de Tathatā

(तथता) que em japonecircs se ilustra com o kanji 真如 (Shinnyo) cuja traduccedilatildeo seria ldquorealidade absolutardquo mas natildeo

corresponde ao peso do termo Sobre isto Antonio Morillas escreve que ldquoO termo tathata eacute de difiacutecil traduccedilatildeo

em castelhano Em inglecircs se verte com as expressotildees suchness (a condiccedilatildeo de ser ldquotalrdquo e como se eacute) thatness (o

fato de ser ldquoissordquo que se eacute) e isness (a qualidade de algo que ldquoeacuterdquo sem mais o que eacute e como eacute) () A talidade

[traduccedilatildeo castelhana de tathata] eacute a noccedilatildeo do fato de que a realidade e as coisas e fenocircmenos que a compotildeem satildeo

ldquoassimrdquo ldquotalrdquo e como satildeo que satildeo ldquoissordquo ldquoo que satildeordquo em seu caraacuteter plenamente desnudo na existecircncia luminosardquo

(MORILLAS 2006 167) Pela proximidade com o idioma castelhano opto aqui por adotar a sugestatildeo de Morillas

110

O budismo especialmente o budismo zen absorveria tais ideias com especial forma nos

pensamentos de Kūkai (空海) e Dōgen Zenji (道元禅師) Graham Parkes explica que para Kūkai

duas ideias se configuram essenciais Sokushinjobutsu (即身成仏) a possibilidade de atingir a

iluminaccedilatildeo na vida presente (em contraste ao princiacutepio budista tradicional conforme o qual

seriam necessaacuterias muitas vidas) e Hosshin seppo (発疹 説法 ) o entendimento de que a

personificaccedilatildeo buacutedica eacute desprovida de forma e imagem natildeo permitindo conceitualizaccedilatildeo nem

verbalizaccedilatildeo (cf PARKES 2003 81) A despeito da uniatildeo suscitada pelo daoiacutesmo o budismo

chinecircs do oitavo seacuteculo estava imerso em uma profunda discussatildeo acerca da questatildeo se a

natureza buacutedica podia ser atribuiacuteda somente aos seres sencientes ou tambeacutem agraves miacutenimas

partiacuteculas de poeira Kūkai articula as duas ideias acima mencionadas e interpretas as chamadas

ldquotrecircs intimidadesrdquo (corpo fala mente) do Dainichi Nyorai (木造大日如来坐像) que representa a

revelaccedilatildeo esoteacuterica dos ensinamentos no Budismo para sustentar o muacutetuo pertencimento da

relaccedilatildeo do todo com suas partes assumindo a natureza buacutedica para absolutamente tudo Ele

escreve neste sentido ldquoEssa existecircncia estaacute naquela e aquela estaacute nessa A Existecircncia do Buda

(Mahāvairocana) eacute a existecircncia dos seres sencientes e vice e versa Eles natildeo satildeo idecircnticos mas

satildeo todavia idecircnticos eles natildeo satildeo diferentes mas satildeo todavia diferentesrdquo (KŪKAI 1972 93)

Jaacute para Dōgen a evocaccedilatildeo da conduta zen se daria por meio de uma miacutestica cotidiana

alimentando a noccedilatildeo de que toda atividade eacute expressatildeo da natureza buacutedica Parkes argumenta

que algumas atividades satildeo especialmente ilustrativas como por exemplo preparar a comida

servi-la e come-la Dōgen citaria um trecho do Vimalakīrti Nirdeśa Sūtra (नवमलकीनत निदश सतर) que

diria ldquoQuando somos unos com a comida que comemos somos unos com todo o universordquo

evocando o uso do silecircncio como veiacuteculo para o esclarecimento do śūnyatā como fundamento

absoluto da realidade (cf PARKES OP CIT 84) As praacuteticas rituais natildeo possuiriam todavia

conotaccedilatildeo lituacutergica pontual e direcionada mas antes a totalidade de uma experiecircncia de vida

religiosa

111

Tanto Kūkai quanto Dōgen influenciaram amplamente o pensamento de Nishitani e o

ponto de vista conforme o qual o śūnyatā direciona uma atitude por meio da qual se mostra a

talidade Tanto no daoiacutesmo de Zhuangzi quando no zen budismo de Kūkai e Dōgen estatildeo em

jogo o aspecto formal a aparecircncia (rūpa shiki) da realidade em torno por um lado e a assunccedilatildeo

da dissoluccedilatildeo do fundamento dessa realidade por outro (sua vacuidade śūnyatā kū) Por este

motivo haacute uma muacutetua reciprocidade entre a totalidade e as coisas entre uno e muacuteltiplo Isto eacute

o que permite a participaccedilatildeo e ao mesmo tempo incorporaccedilatildeo da realidade (dharmakāya)

Contudo natildeo seraacute o mero resgate das tradiccedilotildees orientais que forneceraacute a Nishitani a resposta

ao problema no que concerne ao impacto da questatildeo frente aos tempos de niilismo mas sim o

resultado da confrontaccedilatildeo desta tradiccedilatildeo com a filosofia contemporacircnea ocidental ou sem

embargo o confronto entre as fronteiras

Graham Parkes atenta para uma reivindicaccedilatildeo de Nishitani de haver superado em certa

medida o desenvolvimento das filosofias de pensadores como Hegel Nietzsche e Heidegger

(cf PARKES 2013b 189-190) Contudo no cerne desta proposiccedilatildeo estaacute a ideia de que o que foi

superado natildeo foi propriamente o conteuacutedo da meditaccedilatildeo mas a forma da abordagem ou seja

a perspectiva intercultural privilegiada da comparaccedilatildeo filosoacutefica de Nishitani Com o anuacutencio

da morte de Deus e dos tempos de niilismo em Nietzsche ficou evidente um diagnoacutestico da

atividade humana inerente aos valores que a guiam por um lado e a induccedilatildeo ao desespero

suscitado pela projeccedilatildeo cognoscitiva ao ente por outro A saiacuteda de Nietzsche por meio do

ldquogrande antiacutedotordquo da transvaloraccedilatildeo de todos os valores eacute recebida em Nishitani considerando

trecircs ideias chave de sua leitura budista (1) a constituiccedilatildeo do fundamento da existecircncia como

uma experiecircncia aleacutem da relaccedilatildeo entre sujeito objeto por meio do conceito de (referente agrave noccedilatildeo

de dharma धम) (2) a reaccedilatildeo de retorno ao mesmo de toda atividade (a partir do conceito de

karma कम) e a noccedilatildeo de que natildeo haacute nada que exista independente de circunstacircncias e

condicionamento ou a chamada ldquoco-originaccedilatildeo dependenterdquo (o pratītya-samutpāda परतीतयसमतपाद)

112

Portanto o que em Nietzsche seria postulado como destino enquanto o ldquomesmordquo (o ego

fatum nietzscheano) engendrando um ponto de vista criativo em Nishitani seria entendido

desde a ideia do karma Em Nihirizumu Nishitani escreve acerca deste ponto especiacutefico que

ldquoNeste niacutevel fundamental o mundo se move na esfera do mesmo e o mesmo na esfera do

mundo Esta ideia estaacute proacutexima da ideia budista de karma embora em Nietzsche o ponto de

vista do mesmo como destino eacute fundamentalmente criativordquo (NISHITANI 1990 50) Em termos

mais simples de acordo com Parkes ldquo() o que parece um golpe do destino pode ser entendido

antes como uma parte de nossa proacutepria atividaderdquo (PARKES OP CIT 196) O florescimento desta

consideraccedilatildeo se daacute na afirmaccedilatildeo niezscheana do amor fati e da superaccedilatildeo do abismo da grande

suspeita niilista por meio da grande dor pela qual se renasce o que seraacute entendido em Nishitani

a partir do retorno ao abismo onde ldquo() uma vez que algueacutem eacute libertado do abismo a

necessidade se torna um elemento desta vida de liberdade Neste caso necessidade se torna

uma com a criatividaderdquo (NISHITANI OP CIT 52) Entretanto a ressalva de Nishitani consiste que

a afirmaccedilatildeo resultante da superaccedilatildeo do abismo niilista pode ainda ser superar e que a vontade

de poder eacute ainda uma ldquocoisardquo chamada ldquovontaderdquo (cf IDEM OP CIT 234) cuja uacutenica possibilidade

de ser pensada para aleacutem dos fundamentos que redundam no destino como mesmo seria

justamente o ponto de vista do śūnyatā Uma ilustraccedilatildeo possiacutevel de ldquopara onderdquo este ponto de

vista levaria pode ser encontrada quando Nishitani comenta a arte japonesa de arranjo de flores

a chamada Ikebana (生け花) Ali fica niacutetido qual a postura que se assume quando se daacute conda

da vacuidade da realidade uacuteltima e absoluta Nishitani escreve

Desde a perspectiva de sua natureza fundamental todas as coisas no mundo satildeo

lacircminas de grama sem raiacutezes Tal grama entretanto tenho fincado suas raiacutezes no solo

esconde a si mesma em sua fundamental ausecircncia de raiacutezes () sendo cortadas de suas

raiacutezes as flores satildeo feitas pela primeira vez pela manifestaccedilatildeo minuciosa de sua

natureza fundamenta ndash sua falta de raiacutezes (IDEM 2011 1199)

113

Ao fim e ao cabo Nishitani estaacute chamando atenccedilatildeo para uma aprendizagem decorrente da ldquoco-

originaccedilatildeo dependenterdquo a partir da natureza Sobre este ponto e sua relaccedilatildeo com o niilismo

Parkes escreve ldquo() noacutes humanos diferimos de outros entes por meio da possibilidade de nos

tornamos conscientes de nossa proacutepria finitude no estado da niilidade (kyomu) um tipo de

ldquovacuidade ocardquo que eacute uma antecacircmara para a vacuidade criativa (śūnyatā kū)rdquo (PARKES OP

CIT 112) Resumidamente o ponto de vista do śūnyatā se configura para Nishitani a partir da

tradiccedilatildeo do zen budismo oriental e de sua leitura da filosofia ocidental como uma iluminaccedilatildeo

a respeito do fundamento da realidade enquanto vacuidade evidenciado sobremaneira pelo

abismo do niilismo contemporacircneo e que direciona o ser humano para uma vacuidade criativa

na qual sua relaccedilatildeo com as coisas congrega tudo em uma mesma natureza buacutedica ou seja o

lugar onde as flores o arranjo o florista e o ato de fazer o arranjo satildeo a mesma coisa ou o lugar

onde a mosca o anjo Deus e o eu satildeo o mesmo

114

CONCLUSAtildeO

Durante o primeiro semestre de 2011 estava profundamente motivado com a preparaccedilatildeo do

texto final desta tese doutoral Ocupava-me ao mesmo tempo das pesquisas leituras

sistematizaccedilatildeo dos esquemas defesa da versatildeo do final do projeto e dos cursos que iria ministrar

na Universidade Federal do Rio Grande do Norte nos meses seguintes A abordagem agrave histoacuteria

da metafiacutesica agrave tradiccedilatildeo do neoplatonismo e agrave filosofia japonesa contemporacircnea atingiam-me

simultaneamente por meio de muacuteltiplas construccedilotildees conceituais interligadas pela lucidez

provocada mediante a histoacuteria dos efeitos de cada ambiente temaacutetica Contudo ao 11 de marccedilo

daquele ano foi transmitida uma notiacutecia que imediatamente cessou minha produccedilatildeo e

empolgaccedilatildeo com todo e qualquer toacutepico Os jornais incessantemente transmitiam as uacuteltimas

notiacutecias a respeito de um terremoto seguido por um tsunami que havia atingido o Japatildeo e

danificado a estrutura da usina nuclear de Fukushima na cidade de Ōkuma expondo a

comunidade da regiatildeo agrave alarmantes niacuteveis de radioatividade O desastre ambiental seria

considerado algum tempo mais tarde a maior cataacutestrofe nuclear desde Chernobyl em 1986

Evidentemente como havia ocorrido tambeacutem em 2001 durante o ataque terrorista ao

World Trade Center em Nova Iorque as reportagens que chocavam o mundo se tornariam

rapidamente repetitivas e esgotariam o puacuteblico O motivo pelo qual se daria tal neutralizaccedilatildeo e

letargia frente aos fatos foi denunciado por Slavoj Žižek na obra The Year of Dreaming

Dangerously (2012) Ele pondera os eventos destrutivos de 2011 tais quais a Primavera Aacuterabe

e o Occupy Wall Street desde a neutralizaccedilatildeo ideoloacutegica promovida pela miacutedia dando margem

agrave interpretaccedilatildeo conforme a qual os veiacuteculos de comunicaccedilatildeo vigentes aniquilam o potencial

emancipatoacuterio dos eventos por meio da pasteurizaccedilatildeo de sua difusatildeo

115

Žižek destaca o termo da liacutengua persa ldquowar nam nihadanrdquo cujo abstruso significado

seria em linhas gerais ldquomatar algueacutem enterrar seu corpo e plantar flores sobre sua cova para

esconder o cadaacuteverrdquo Para Žižek os meios de comunicaccedilatildeo do capitalismo global destroem a

absorccedilatildeo propriamente humana dos eventos do mundo contemporacircneo exatamente neste

mesmo sentido (cf ŽIŽEK 2012 9) Sem sombra de duacutevidas o mesmo se daria em relaccedilatildeo ao

desastre de Fukushima e hoje trecircs anos depois uma pedra foi posta por sobre o assunto e poucas

pessoas sequer se lembram do ocorrido

Entretanto meu denso envolvimento com a filosofia japonesa natildeo permitiu que os

acontecimentos fossem dissolvidos assim tatildeo facilmente Passei um bom tempo tocado pela

calamidade e mesmo ateacute agora ainda tenho dificuldades em lidar com o assunto As

adversidades emotivas todavia natildeo me impediram de pensar com devoccedilatildeo sobre a questatildeo

pelo contraacuterio estimularam ainda mais o rumo da reflexatildeo filosoacutefica

O ano seguinte seria marcado em meu percurso pessoal pela saiacuteda do paiacutes e realizaccedilatildeo

de estaacutegio sanduiacuteche junto agrave University College Cork (Colaacuteiste na hOllscoile Corcaigh) para

realizar minhas pesquisas sob a supervisatildeo do professor Graham Parkes na Irlanda Parkes

havia publicado no iniacutecio daquele ano um breve artigo intitulado Nuclear Power after

Fukushima 2011 Buddhist and Promethean Perspectives (2012) no qual natildeo apenas analisava

os fatos mas ainda apresentava uma meditaccedilatildeo a respeito de uma filosofia da natureza para

aleacutem das ecologias profundas ou natildeo

Simplificando o assunto o estiacutemulo para o fornecimento de energia nuclear eacute

alimentado pela conclusatildeo de que se trata de uma fonte limpa e autossustentaacutevel em contraste

agrave queima do combustiacutevel e exploraccedilatildeo de recursos foacutesseis ou mesmo aos impactos ambientais

causados pela obstruccedilatildeo de fluxos de aacutegua Aparentemente trata-se de uma soluccedilatildeo emergente

frente ao ainda ineficaz suporte das energias ecologicamente viaacuteveis como a eoacutelica e a solar

116

Parkes pontua sobre isto que ldquoA questatildeo crucial natildeo diz respeito aos meacuteritos relativos

e agraves desvantagens do poder nuclear versus a energia dos combustiacuteveis foacutesseis Antes trata-se

de pensar o que norteia nosso desejo de consumir tanta energia em primeiro lugarrdquo (PARKES

2012 103) O posicionamento diz respeito a um ldquopasso atraacutesrdquo A pergunta eacute o que move no

final das contas o irredutiacutevel e irrefreaacutevel iacutempeto de explorar todos os recursos naturais para

fomentar a manutenccedilatildeo da vida humana na Terra Mesmo com a leitura do escrito eu

particularmente soacute conseguiria compreender o direcionamento proposto por Parkes apoacutes

acompanhar seus seminaacuterios sobre filosofias da natureza entre Ocidente e Oriente no qual

ficariam claras as bases pelas quais ele questionava a conduta contemporacircnea face agrave crise

ambiental

Entretanto quando me deparei com as primeiras leituras oferecidas por Parkes (muitas

das quais constam na bibliografia desta tese) natildeo fui acometido pelo espanto da novidade mas

pela pulsatildeo da comparaccedilatildeo A experiecircncia que jaacute havia acumulado sob a orientaccedilatildeo do

professor Oscar Federico Bauchwitz durante meus anos de pesquisa acadecircmica dedicado agrave

leitura de Nietzsche Heidegger e da tradiccedilatildeo do neoplatonismo e da miacutestica medieval proveu-

me de uma arquitetocircnica meditativa que com a aproximaccedilatildeo com a filosofia oriental apenas

nutriu imediata empatia e introspecccedilatildeo Sendo assim quando congreguei o focirclego e as forccedilas

necessaacuterias para encerrar este trabalho natildeo tinha em mente uma tese levantada de um mero

problema particular mas um longo percurso especulativo que ao longo das paacuteginas aqui

apresentadas tentei descrever da melhor maneira possiacutevel

Sobreveio-me durante os termos finais uma intensa obrigaccedilatildeo de sustentar que a uacutenica

via possiacutevel para enfrentar os problemas filosoacutefico contemporacircneos era a instauraccedilatildeo de um

retorno aos fundamentos por meio da interculturalidade Portanto a conclusatildeo desta tese soacute

pode caminhar rumo agrave elucidaccedilatildeo de quais fundamentos no final das contas satildeo estes que estatildeo

aqui e ali indicados no interior do trabalho

117

Em 1953 Martin Heidegger pronunciou a conferecircncia intitulada Die Frage nach

Technik O escrito eacute talvez uma de suas mais claras expressotildees acerca de sua anaacutelise da

consumaccedilatildeo da histoacuteria da metafiacutesica a instauraccedilatildeo do niilismo europeu e o advento da Era

Teacutecnica Paralelamente durante o mesmo periacuteodo (na verdade em 1954) Nishitani finalizava

a composiccedilatildeo de seu ensaio sobre ldquoNiilismo e Śūnyatārdquo mais tarde incluiacutedo no volume Shūkyo

to wa Nanika abordado aqui ao longo do terceiro capiacutetulo Como foi possiacutevel observar em

Nishitani a saiacuteda do ponto de vista da vacuidade ou nada absoluto demandava a busca por

uma postura interior do ser humano na qual se tornava evidente nada mais senatildeo o elemento

inexplicaacutevel e inexprimiacutevel do fundamento uacuteltimo da realidade que era assumido agora como

oriente para o comportamento humano frente ao colapso do novo mundo A dificuldade inerente

de absorver a proposta de Nishitani todavia eacute ilustrada de maneira praacutetica quando ele aborda

uma questatildeo particular qual seja a relaccedilatildeo entre ser humano e natureza na imagem do jardim

zen Noacutes estamos dentro do jardim e natildeo somos apenas espectadores porque noacutes nos tornamos

parte da real manifestaccedilatildeo da expressatildeo da proacutepria experiecircncia iluminadora do arquiteto do

jardim O jardim eacute meu mestre Zen agora e eacute seu mestre Zen tambeacutem (NISHITANI 1992 55)

Quando Heidegger indica em sua conferecircncia que a essecircncia da teacutecnica natildeo eacute ela mesma nada

teacutecnico ele estaacute em um movimento similar ao de Nishitani chamando atenccedilatildeo para o fato de

que eacute necessaacuterio tambeacutem retornar a algo que natildeo pode ser submetido agrave objetividade cientiacutefica

da relaccedilatildeo sujeito-objeto que sustenta a tecnicizaccedilatildeo do mundo Neste sentido a saiacuteda de

Heidegger eacute ilustrada por meio de um dos conceitos mais enigmaacuteticos de toda sua obra

Gelassenheit Heidegger escreve ldquoTalvez se oculte na Gelassenheit uma accedilatildeo mais elevada do

que em todos os atos do mundo e do que nas maquinaccedilotildees das reliacutequias humanasrdquo (HEIDEGGER

1983a 41) O sentido contudo permanece oculto Resta apenas a ideia de que esta postura

evocada por Heidegger demanda um ldquodeixarrdquo (lassen) que atina para um recolhimento da

paradoxal ambiguidade do que se revela na essecircncia do humano

118

Ressoa tanto em Heidegger quanto em Nishitani uma raiz comum aquela na qual se

ldquoRenuncia aos sentidos agraves operaccedilotildees intelectuais a todo sensiacutevel e ao inteligiacutevelrdquo ainda mais

aquela onde se pede ldquoDespoja-te de todas as coisas que satildeo e ainda das que natildeo satildeo Deixa de

lado teu entender e esforccedila-te por subir o mais que possa ateacute unir-se com aquele que estaacute mais

aleacutem de todo ser e todo saberrdquo Estas palavras aqui propositalmente citadas sem a indicaccedilatildeo

bibliograacutefica satildeo do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita onde neoplatonismo e miacutestica se encontram

no caminho da negatividade Tanto o ldquoprestar atenccedilatildeo aos misteacuterios da naturezardquo em Nishitani

quando a ldquoabstenccedilatildeo da vontade por meio da natildeo-vontaderdquo o ldquoquerer o natildeo-quererrdquo em

Heidegger estatildeo depositados nas sentenccedilas do miacutestico siacuterio

Agora qual eacute este lugar ou natildeo-lugar aleacutem de todo ser e todo saber O que se revela

por meio do despojo e da supressatildeo de todo saber e todo o dizer Esta pergunta natildeo eacute respondida

Natildeo pode ser respondida O que se desvela aiacute eacute justamente o incoacutegnito o misteacuterio Como reagir

portanto frente a tal proposta de em meio a existecircncia contemporacircnea remar no contrafluxo

do sentido do mundo e buscar uma quietude absoluta no silecircncio que adveacutem do misteacuterio da

existecircncia Agrave esta pergunta tampouco se ofereceraacute resposta mas desta vez porque ela jaacute estaacute

respondida A reaccedilatildeo foi nomeada com diversos termos ao longo da histoacuteria recebendo distintas

designaccedilotildees Algumas tradiccedilotildees orientais optam por chama-la ldquoiluminaccedilatildeordquo

Por fim o conflito das fronteiras aqui abordado natildeo eacute um evento especiacutefico um

momento ou instante captaacutevel uma situaccedilatildeo ou circunstacircncia particular O conflito das

fronteiras eacute um caminho ou melhor uma caminhada Uma caminhada rumo ao desconhecido

cujo uacutenico sinal evidente acena para o clamor de um silecircncio ensurdecedor indicando que jaacute eacute

hora de se recolher

119

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ŽIŽEK Slavoj (2012) O ano em que sonhamos perigosamente Trad Rogeacuterio Bettoni Satildeo

Paulo Boitempo

Page 6: O CONFLITO DAS FRONTEIRAS · enquanto delimitaÇÃo das fronteiras do pensamento 2. o caminho da negatividade: henologia e meontologia e a ultrapassagem 61 dos limites da metafÍsica

6

Eacute preciso ainda ter caos dentro de si para dar

luz a uma estrela danccedilante

Friedrich Nietzsche Assim falou Zaratustra

7

RESUMO

O conflito das fronteiras se desdobra como um percurso natural da histoacuteria do pensamento

humano Torna-se manifesto todavia apenas mediante um expliacutecito choque cultural que

evidencia distintas formataccedilotildees conceituais Pensar este conflito pode esclarecer os enlaces

responsaacuteveis pelo desenvolvimento do pensamento contemporacircneo Esta tese pretende analisar

em um primeiro momento a histoacuteria do pensamento enquanto metafiacutesica apresentando um

diagnoacutestico da maneira pela qual o Ocidente impinge sua loacutegica categoacuterica Por conseguinte

apresenta a tradiccedilatildeo da negatividade evidenciando um pensamento para aleacutem da ontologia

claacutessica mediante uma henologia e uma meontologia no neoplatonismo e na miacutestica medieval

Por fim expotildee o pensamento do Extremo Oriente como possiblidade de recepccedilatildeo

contemporacircnea da negatividade e escapatoacuteria para a formataccedilatildeo ocidentalizante da filosofia

vigente

Palavras-chave Fronteiras Metafiacutesica Negatividade Extremo Oriente

8

ABSTRACT

The conflict of borderlines unfolds itself as a natural path in history of human thought It

becomes clear only through an explicit cultural clash which conveys distinct conceptual

formatting Thinking this conflict might enlighten the bindings responsible for development of

contemporary way of thought This thesis intent to analyse in a first moment the history of

thought as Metaphysics presenting a diagnostic towards the way through which the West

impinges its categorical logic Thereafter presents the tradition of Negativity showing a

thinking beyond Classic Ontology through a Henology and a Meontology in Neoplatonism and

Medieval Mysticism At the end exposes the Far Eastern thought as possibility of contemporary

reception of Negativity and escape from the Westernizer formatting of contemporary

philosophy

Key words Frontiers Metaphysics Negativity Far East

9

ZUSAMMENFASSUNG

Der Konflikt der Grenzen entfaltet sich als einen natuumlrlichen Weg in der Geschichte des

menschlichen Denkens Es wird nur klar durch eine explizite Kulturkampf die unterschiedliche

konzeptionelle Formatierung vermittelt Denken dieses Konflikts koumlnnte die Bindungen fuumlr die

Entwicklung der zeitgenoumlssischen Denkweise verantwortlich zu erleuchten Diese These

versuchen zu analysieren in einem ersten Moment die Geschichte des Denkens als Metaphysik

praumlsentiert eine Diagnose auf die Moumlglichkeit durch die der Westen trifft seine kategorische

Logik Danach praumlsentiert die Tradition der Negativitaumlt zeigt ein Denken jenseits Klassische

Ontologie durch eine Henologie und Meontologie im Neuplatonismus und mittelalterliche

Mystik Am Ende macht der Fernost gedacht als Moumlglichkeit der zeitgenoumlssischen Rezeption

von Negativitaumlt und Flucht aus der Westler Formatierung der zeitgenoumlssischen Philosophie

Schuumlsselwoumlrter Frontiers Metaphysik Negativitaumlt Fernost

10

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 11

1 ONTOLOGIA A SUBSTANTIVACcedilAtildeO DO OCIDENTE E O PROBLEMA DA METAFIacuteSICA 28

ENQUANTO DELIMITACcedilAtildeO DAS FRONTEIRAS DO PENSAMENTO

2 O CAMINHO DA NEGATIVIDADE HENOLOGIA E MEONTOLOGIA E A ULTRAPASSAGEM 61

DOS LIMITES DA METAFIacuteSICA

3 O EXTREMO ORIENTE E O CONFLITO DAS FRONTEIRAS A FILOSOFIA COMPARADA 89

INTERCULTURAL COMO CHAVE DE LEITURA PARA ALGUNS PROBLEMAS DO

PENSAMENTO CONTEMPORAcircNEO

CONCLUSAtildeO 113

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 119

11

INTRODUCcedilAtildeO

Aos 16 de abril de 2010 sob a avaliaccedilatildeo de uma banca composta pelos professores Oscar

Federico Bauchwitz Gisele Amaral dos Santos e Acylene Maria Cabral Ferreira defendi a

dissertaccedilatildeo de mestrado intitulada A caminho da fronteira Embora possa ainda dedicar mais

dez anos agrave correta composiccedilatildeo estiliacutestica daquele texto aleacutem da estruturaccedilatildeo dos argumentos

laacute natildeo tatildeo bem encadeados imagino ter alcanccedilado o objetivo de tornar claro natildeo apenas o intuito

do trabalho mas o problema movimentado pela questatildeo do conflito fronteiriccedilo de uma filosofia

comparada intercultural por meio de uma histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica

A questatildeo ldquoentre Heidegger e os japonesesrdquo (subtiacutetulo da dissertaccedilatildeo) abordada ao longo

dos dois anos de mestrado acadecircmico referia-se a uma virada de pontos de vista se em um

primeiro momento os orientais se perguntavam o quecirc a filosofia ocidental podia oferecer ao

pensamento e desenvolvimento do Extremo Oriente em um segundo momento os ocidentais

passaram a se perguntar de que forma os japoneses podiam acrescentar agrave filosofia um elemento

meditativo perdido no periacuteodo da consumaccedilatildeo da teacutecnica moderna e do cientificismo desde

suas perspectivas milenares de pensamento reflexivo

Ao passo em que a pesquisa ia se desenvolvendo o trabalho caminhou paulatinamente

rumo ao impacto violento surtido pelo diaacutelogo entre limites bem delineados de um Ocidente

estruturalmente metafiacutesico e um Oriente especulativo quase inefaacutevel para um leitor ocidental

A conclusatildeo extraiacuteda do caminho percorrido entre os anos de 2008 e 2010 apresentou antes de

qualquer soluccedilatildeo a constataccedilatildeo da instalaccedilatildeo de uma impertinecircncia petrificada no seio da

filosofia contemporacircnea sobre a qual pouco se pode acrescentar na dissoluccedilatildeo de problemas

mas muito se pode desdobrar no que tange ao entrelaccedilamento do alcance de um grau distinto

de movimentaccedilatildeo das arquitetocircnicas conceituais

12

Embora tais palavras pareccedilam abstratas em demasia (e de fato satildeo) o foco atingido se

concentrou em uma inquiriccedilatildeo a respeito do pensamento da linguagem e da verdade a partir

de um inusitado enigma sobre a negatividade do impensaacutevel ou seja sobre o silecircncio que

emerge no preciso momento no qual o pensamento eacute estarrecido e a liacutengua cala

A armadilha construiacuteda a partir das muacuteltiplas tentativas de elaboraccedilatildeo de conceitos afeta

natildeo somente a formataccedilatildeo silogiacutestica do intelecto humano comum mas ainda as

particularidades dos diversos modos de expressatildeo geograficamente distintos Correndo o risco

de se tornar antes uma antropologia filosoacutefica do que propriamente uma histoacuteria e criacutetica da

metafiacutesica o trabalhou refletiu uma anaacutelise agrave proacutepria concepccedilatildeo pela qual se distingue uma

filosofia da outra execrando qualquer nacionalismo filosoacutefico e investigando as questotildees que

envolvem a existecircncia humana dentro de seu modo relacional com o ser e com o ambiente que

a cerca O resultado foi a apresentaccedilatildeo de uma filosofia comparada intercultural que aparece

natildeo simplesmente como um campo disciplina ou subaacuterea da filosofia mas antes como uma

maneira pela qual eacute possiacutevel pensar filosoficamente para aleacutem das fronteiras de uma mera

linguagem de primeira ordem Dentro deste contexto nasce a hipoacutetese do tema o conflito das

fronteiras a partir do pressuposto de uma abordagem aos temas centrais do pensamento

contemporacircneo sustentando a interculturalidade filosoacutefica como aporte central

A proposiccedilatildeo fundamental desta tese adveacutem de alguns questionamentos particulares e

pontuais em um fluxo semelhante ao da dissertaccedilatildeo de 2010 Em abril de 2009 enquanto ainda

trabalhava no texto do mestrado teve lugar no campus da Universidade Federal do Rio Grande

do Norte o III Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica comissionado pelos professores Oscar

Federico Bauchwitz Jaimir Conte Maria da Paz Nunes de Medeiros e Markus Figueira da Silva

O evento marcava a consolidaccedilatildeo da linha de pesquisa em Metafiacutesica do Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Filosofia da universidade trazendo em sua terceira ediccedilatildeo o tema O que eacute

metafiacutesica Em homenagem aos oitenta anos da preleccedilatildeo homocircnima de Martin Heidegger

13

A conferecircncia pronunciada por Heidegger aos 24 de julho de 1929 foi preparada como

aula inaugural para a assunccedilatildeo da caacutetedra de filosofia que antes pertencera a Edmund Husserl

na Albert-Luumldwigs Universitaumlt Freiburg im Breisgau O escrito se tornou um dos mais

emblemaacuteticos conhecidos e discutidos textos de Heidegger Talvez o fator mais impactante da

preleccedilatildeo seja antes mesmo da abordagem temaacutetica o meacutetodo pouco usual conforme o qual o

questionamento eacute elaborado Heidegger inicia a aula dizendo que embora a questatildeo suscite a

expectativa de que se falaraacute sobre a metafiacutesica ele iraacute na verdade discutir uma questatildeo

metafiacutesica particular proporcionando uma movimentaccedilatildeo em seu interior e habilitando a

oportunidade para que a ela apareccedila por si soacute a partir do problema levantado (cf HEIDEGGER

1976 103) Deixar a metafiacutesica se apresentar por si soacute antes do que sobre ela discorrer

evidencia uma feiccedilatildeo um tanto distinta da abordagem de Heidegger ao problema uma de suas

marcas registradas todavia

Raras vezes a tradiccedilatildeo ocidental se deparou com tal niacutevel de heterodoxia no que tange

agrave instruccedilatildeo filosoacutefica (talvez apenas Platatildeo tenha cunhado semelhante meacutetodo ao perseguir o

pescador com o anzol antes de se aproximar da figura do sofista por exemplo ndash natildeo consigo

pensar em outras ilustraccedilotildees agora mesmo embora certamente elas existam) Uma linha de

raciociacutenio como esta aproxima-se muito mais de uma postura oriental

Durante o Coloacutequio aleacutem de retomar pela eneacutesima vez a leitura da preleccedilatildeo de

Heidegger lembro-me de me dedicar agrave leitura da claacutessica obra propedecircutica de Kaiten Nukariya

The Religion of Samurai (1913) a primeira obra sobre zen budismo publicada no Ocidente (em

liacutengua ocidental) Apoacutes uma breve introduccedilatildeo sobre a origem do budismo na Iacutendia e o percurso

de Śākyamuni Siddhārta Gautama (o Buddha Śākyamuni शाकयमनि) Nukariya relata a maneira

pela qual o monge Bodhidharma introduz o budismo na China destacando que seu meacutetodo era

inteiramente diferente dos outros instrutores de ensino ordinaacuterios

14

Sobre Bodhidharma Nukariya relata ldquoEle natildeo explicaria nenhum problema ao

estudante mas simplesmente ajudaacute-lo-ia a ser iluminado colocando-o um abrupto poreacutem eficaz

questionamentordquo (NUKARIYA 2006 10) Com esta metodologia tem iniacutecio a tradiccedilatildeo de

budismo chinecircs nomeada chrsquoan (dʑjen 禪) uma traduccedilatildeo do termo sacircnscrito dhyāna (धयाि) cujo

significado mais geral seria ldquomeditaccedilatildeordquo ou ldquopensamentordquo que futuramente seria lido na

pronuacutencia japonesa (くんよみ kun-yomi) do ideograma como zen (禅 ) Apoacutes expor esta

caracteriacutestica iacutempar do ensino de Bodhidharma Nukariya ainda relata uma breve histoacuteria na

qual um tal Shang Kwang havia requisitado ao mestre que ldquolhe pacificasse a menterdquo

Prontamente Bodhidharma teria respondido ldquoTraga-me aqui sua mente ante mim para que eu

a pacifiquerdquo e Shang Kwang teria replicado ldquomas isto eacute impossiacutevelrdquo recebendo em seguida

a resposta ldquoentatildeo jaacute pacifiquei sua menterdquo Shang Kwang foi instantaneamente iluminado

Certamente Martin Heidegger natildeo exige de seus ouvintes leitores e interlocutores uma

iluminaccedilatildeo tatildeo abrupta e desprovida de raciociacutenio loacutegico mas nem por isto suas reivindicaccedilotildees

satildeo menos ousadas e intensas ou sua meditaccedilatildeo menos profunda Heidegger propocircs diversas

reflexotildees que extraiacutedas de seu contexto especiacutefico configuram-se tatildeo inusitadas quanto as

passagens da tradiccedilatildeo chrsquoan ou zen sendo por vezes consideradas mesmo impertinentes Eacute o

caso de uma de suas mais arrojadas e emblemaacuteticas afirmaccedilotildees ldquoO mais grave eacute que natildeo

pensamosrdquo (HEIDEGGER 2002 6) Desconsiderando o sentido ao qual a sentenccedila pertence

certamente as palavras de Heidegger parecem uma afronta Todavia o leitor atento sabe que

Heidegger se refere agrave distinccedilatildeo entre um pensamento calculador (rechnende Denken) e um

pensamento meditativo (Besinnung) reportando-se ao velamento deste uacuteltimo e da supremacia

exclusiva do primeiro por meio do qual se faz ciecircncia e se daacute o desenvolvimento estrutural da

condiccedilatildeo tecnoloacutegica imperiosa Eacute justamente dentro deste fluxo que Heidegger afirma a

predominacircncia do pensamento cientiacutefico tambeacutem em Was ist Metaphysik

15

Para ingressar no interior da metafiacutesica Heidegger chama atenccedilatildeo ao fato de que a

existecircncia humana eacute hoje sobremaneira norteada pela ciecircncia Embora alguns opositores ainda

resistam agrave tal afirmaccedilatildeo natildeo eacute todavia difiacutecil convencecirc-los do contraacuterio argumentando em

favor da tese de Heidegger Natildeo se trata apenas de afirmar que o ser humano se apoia e confia

uacutenica e exclusivamente (quiccedilaacute mesmo cegamente) na ciecircncia como modo de desenvolvimento

e sustentaccedilatildeo da vida humana na Terra Antes disto e mais grave ainda trata-se de constatar

que a maneira pela qual o ser humano hoje pensa eacute tatildeo somente cientiacutefica mesmo em casos nos

quais o discurso supostamente se volta para um tema espiritual ou de feacute (ou qualquer outro

assunto) ndash a despeito de qualquer pretensa e torta teosofia eacute ainda a teologia a ciecircncia reinante

dos seminaacuterios sem embargo Independente do tema ou assunto da circunstacircncia ou

necessidade a maneira de proceder eacute jaacute sempre cientiacutefica sustentada por uma loacutegica inflexiacutevel

que imputa sua norma de que ldquosendo algo aquilo mesmo isto ou bem eacute ou bem natildeo eacute natildeo

havendo uma terceira opccedilatildeordquo

Em outras palavras parece ter se ocultado na mente humana qualquer outro modo de

pensar que natildeo seja o propriamente cientiacutefico Este modo cientiacutefico de pensar possui algumas

caracteriacutestica pelas quais se pode evidenciaacute-lo estritamente desde um triacuteplice entendimento que

compreende ldquoreferecircncia ao mundordquo ldquoposturardquo e ldquoirrupccedilatildeordquo Heidegger explica estes pontos

ldquoAquilo que na referecircncia ao mundo permanece eacute o ente em si mesmo ndash e mais nada Aquilo

que lidera toda postura eacute o ente em si mesmo ndash e nada mais Aquilo que faz acontecer a

discussatildeo investigativa da irrupccedilatildeo eacute o ente em si mesmo ndash e aleacutem disto nadardquo (IDEM OP CIT

105) A cientificidade da existecircncia humana se expressa mediante uma projeccedilatildeo ao ente e nada

mais Ao afirmar a determinaccedilatildeo da ciecircncia na vida e conduta humanas Heidegger quer deixar

ver sobretudo isto o fato de que hoje soacute eacute validado o discurso de um sujeito cujo objeto

cognosciacutevel eacute um ente este mesmo que subjacente obsta-lhe Dentro da relaccedilatildeo entre sujeito

e objeto toda uma tradiccedilatildeo se fundamenta e doravante prossegue da mesma maneira

16

Fazendo uma revisatildeo dos passos da histoacuteria do pensamento humano seria mais ou menos

faacutecil portanto imaginar como a partir da metafiacutesica claacutessica se desdobra o cientificismo

sobretudo tendo em vista a doutrina das Categorias de Aristoacuteteles aleacutem da tatildeo aclamada

ldquociecircncia do ente enquanto enterdquo Contudo natildeo eacute este o alvo de Heidegger Deixar a metafiacutesica

aparecer por si soacute deve contemplar a totalidade do questionamento proposto e natildeo um

historicismo vulgar Que todo raciociacutenio eacute regulado e direcionado pelo ente facilmente

constata-se Agora bem o que se passa com a outra parte da inquiriccedilatildeo qual seja o ldquonada

maisrdquo Heidegger formula a questatildeo ldquoA ciecircncia natildeo quer saber do nada Mas certamente em

sua permanecircncia ao manifestar sua proacutepria natureza chama o nada para ajudar O que ela

rejeita eacute necessaacuterio para classificaacute-la Que ambiacutegua essecircncia se revela aiacuterdquo (ID IBIDEM 106) Ao

perquirir o ente e aleacutem disto nada o elemento que confere a exatidatildeo de sua pesquisa eacute

auxiliado pelo ldquonadardquo ou seja trata-se disto e nada mais (por mais redundante e ambivalente

que soe ateacute mesmo um pouco non sense) Heidegger pergunta ldquoO que acontece com o nadardquo

(ID IBID) ou ainda para onde vai esse nada em meio agrave existecircncia cientiacutefica

Eacute justamente a inusitada apariccedilatildeo deste nada que revela o incocircmodo de um elemento

impensaacutevel e inexprimiacutevel que natildeo se dobra ante agrave relaccedilatildeo sujeito-objeto Natildeo eacute preciso aqui

destrinchar todo o caminho percorrido por Heidegger em Was ist Metaphysik Trata-se de um

texto bastante lido e amplamente comentado Basta apenas pontuar a sentenccedila central da

conferecircncia (ou a pergunta-condutora a Leitfrage) por meio da qual emerge a resposta agrave

questatildeo ldquoo que eacute metafiacutesicardquo ldquoPor que haacute absolutamente o ente e natildeo antes nadardquo (ID IBID

122) O extraordinaacuterio da questatildeo eacute justamente a capacidade do ser humano em por ela

perguntar A capacidade de questionar ldquopor que natildeo nadardquo define uma disposiccedilatildeo fundamental

da existecircncia quiccedilaacute mesmo aquela ocultada pelo modo cientiacutefico de existir (ou seja

paradoxalmente este mesmo modo eacute responsaacutevel por evidenciar o que nele se perde)

17

A disposiccedilatildeo que regula a eleiccedilatildeo do modo cientiacutefico de pensar tem em vista

salvaguardar o humano do abismo (da falta de fundamento) que se abre quando o nada emerge

silencia o discurso e joga o ser humano em uma situaccedilatildeo incocircmoda uma anguacutestia profunda

Quase como um mestre zen Heidegger deixa a metafiacutesica se abrir natildeo pela pergunta nem

sequer pela acircnsia de prover ao interlocutor (ou a si mesmo) uma resposta mas pela simples

possibilidade e capacidade de perguntar A metafiacutesica neste sentido perdura antes como uma

decisatildeo Ao que parece por este motivo Heidegger cita um trecho de Eacutedipo em Colonos de

Soacutefocles no posfaacutecio agrave preleccedilatildeo (em 1943) destacando os versos (em sua traduccedilatildeo particular

por mim aqui pobremente e quiccedilaacute mesmo irresponsavelmente adaptada) que dizem

ἀλλ᾽ ἀποπαύετε μηδ᾽ ἐπὶ πλείω

θρῆνον ἐγείρετε˙

πάντως γὰρ ἔχει τάδε κῡρος

Mas paremos e nunca mais a partir de agora

despertaremos o lamento

Em todos os lugares se deteacutem o evento

assegurando-lhe uma decisatildeo pela conclusatildeo (ID IBID 312)

A ldquodecisatildeo pela conclusatildeordquo coloniza todos os lugares e se deteacutem a partir de agora em uma

posiccedilatildeo da qual natildeo mais se sairaacute A anguacutestia revelada a partir do pensamento em torno ao

nada manifesta os limites da linguagem e vislumbra o destino do ente no ser em sua plenitude

e predominacircncia Mas para aleacutem da constataccedilatildeo da indigecircncia da linguagem haacute todavia uma

possibilidade de abordar efetivamente esse nada Como eacute possiacutevel pensar para aleacutem da

delimitaccedilatildeo entificante da referecircncia ao mundo da postura e da irrupccedilatildeo Haacute um caminho de

ultrapassagem e superaccedilatildeo possiacutevel ainda nos dias de hoje

18

Ao passo em que avanccedilava nas leituras e Heidegger e em algumas outras esta se tornou

a pergunta-chave pela qual imaginava atingir certo direcionamento temaacutetico A despeito da

disposiccedilatildeo de humor apresentada na conferecircncia bem como das consideraccedilotildees do posfaacutecio de

1943 os trabalhos de Heidegger dos anos de 1930 em diante datildeo a entender um claro

direcionamento pelo qual os elementos abandonados pela entificaccedilatildeo do pensamento podem ser

evidenciados qual seja a partir da poesia Os versos de Soacutefocles segundo o proacuteprio Heidegger

ldquoa uacuteltima poesia do uacuteltimo poeta gregordquo natildeo estatildeo ali dispostos sem motivo Tambeacutem natildeo eacute

sem razatildeo que a partir de aiacute haacute uma incansaacutevel busca pela poesia de Friedrich Houmllderlin (aleacutem

de Georg Trakl Stephan George Rainer Maria Rilke e de outros poetas escolhidos por

Heidegger) Ateacute certo ponto eacute possiacutevel afirmar que Heidegger encontra na poesia a

possibilidade de superar a linguagem por meio da proacutepria linguagem Em alguns outros

momentos uma meditaccedilatildeo de teor semelhante aparece como no encontro entre Heidegger e os

japoneses (como apresentei na dissertaccedilatildeo de 2010) Contudo restava ainda buscar os modos

de reflexatildeo que natildeo simplesmente podiam ir aleacutem da expressatildeo da ciecircncia do ente enquanto

ente mas ainda colocaacute-la em questionamento mediante outros meacutetodos

Foi na abertura do III Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica que minhas inquietaccedilotildees

comeccedilaram a se asseverar e ganhar corpo para o que viria a ser esta tese A conferecircncia

inaugural do evento foi sobremaneira marcante neste processo O professor Gilvan Fogel da

Universidade Federal do Rio Janeiro havia sido convidado para encerrar o primeiro dia de

evento Ele apresentou naquela noite a conferecircncia O que eacute metafiacutesica Como ele mesmo frisou

ldquonatildeo a pergunta mas a respostardquo Havia sem embargo a intenccedilatildeo de responder a pergunta

em um certo direcionamento eacute claro O texto vinha ainda acompanhado de um subtiacutetulo (com

o qual foi publicado como tiacutetulo oficial alguns anos depois diga-se de passagem) Sobre a

metafiacutesica ou a respeito do jejum O mote para o subtiacutetulo o proacuteprio professor o explica na

passagem inicial do texto que gostaria de citar por completo agora mesmo

19

O subtiacutetulo pode soar estranho insoacutelito e natildeo muito seacuterio Mas pelo que ele insinua

pretende anunciar algo seacuterio mesmo muito seacuterio a saber a metafiacutesica E a inspiraccedilatildeo

ou a motivaccedilatildeo que propicia o encaminhamento para a questatildeo anunciada a

metafiacutesica vem de uma obra igualmente seacuteria muito seacuteria ainda que se possa melhor

que se deva dela se ocupar tambeacutem com grandes e gostosas gargalhadas ndash aquelas que

no destampar do riso sacudindo a barriga bem solta e largada deixam escorrer

viacutesceras pela boca afora Estou me referindo ao Dom Quixote o Engenhoso Fidalgo

Dom Quixote lsquode la Mancharsquo ndash o ldquoda Triste Figurardquo

Entre as poesias que preludiam a primeira parte e que homenageiam seus personagens

maiores temos o uacuteltimo que eacute um diaacutelogo em forma de soneto entre Babieca o

cavalo de El Cid e Rocinante o grande rocim o pangareacute erado de Dom Quixote A

certa altura do diaacutelogo-soneto Babieca pergunta ldquoSeraacute tolice amarrdquo e Rocinante

responde ldquoNatildeo eacute muito prudenterdquo Babieca retruca ldquoEstaacutes metafiacutesicordquo E Rocinante

contesta enfaacutetico ldquoEacute que natildeo comordquo (FOGEL 2011 101)

A passagem sugere que a metafiacutesica eacute antes de tudo coisa de fome Por isto ldquoa respeito do jejumrdquo

denuncia a indisposiccedilatildeo que envolve a metafiacutesica A metafiacutesica eacute portanto certo incocircmodo que

eacute tambeacutem necessidade premente decorrente de certa privaccedilatildeo A partir disto Fogel delineia o

tipo de jejum ao qual se refere natildeo se trata de um jejum nutricional alimentiacutecio mas jejum de

vida conforme ele mesmo diz ldquo() natildeo vida no sentido bioloacutegico mas no sentido banal e

corriqueiro como falamos da vida de ldquonossa vidardquo ndash que ela eacute boa ou ruim ou um buracordquo

(IDEM IBIDEM 102) Esta vida a vida imanente a vida do cotidiano do dia-a-dia esta mesma

que ocupa o tempo e o espaccedilo sofre priva-se absteacutem-se Esta abstenccedilatildeo e privaccedilatildeo satildeo a

condiccedilatildeo pela qual reverbera sua constituiccedilatildeo enquanto sujeito ndash e nasce aiacute uma interpretaccedilatildeo

do que eacute enfim metafiacutesica A partir da conferecircncia de Fogel aleacutem de algumas outras

consideraccedilotildees comecei a ponderar a maneira pela qual abordaria o problema

20

Natildeo por meio de uma definiccedilatildeo conceitual acontecimento histoacuterico ou muacutetuo

consentimento temaacutetico mas por meio de uma experiecircncia de pensamento que sem deixar de

lado nenhum dos elementos supracitados configura-se antes como algo intriacutenseco agrave proacutepria

natureza do pensar Ponderando as consideraccedilotildees da conferecircncia de Heidegger a metafiacutesica se

deixa mostrar como uma decisatildeo pela conclusatildeo Um iacutempeto maior do ser humano em

resguardar sua condiccedilatildeo de pacificidade A humanidade teme o caos teme o desalinho receia

o incoacutegnito e inexprimiacutevel Elege por isto seu caminho de seguranccedila com aquilo que lhe eacute

papaacutevel o ente enquanto ente e nada mais Nada quer saber do nada que nada lhe oferece aleacutem

de um indisposto silecircncio um insoacutelito vazio Mediante esta postura embora sob o risco de

ocultar algo em si mesmo que talvez lhe sirva para alcanccedilar siacutetios recocircnditos do misteacuterio de

sua proacutepria existecircncia constitui-se o ser humano um metafiacutesico Sem embargo eacute preciso abster-

se de algo em prol disto ou daquilo que se lhe afigura mais propiacutecio ao momento Fogel enxerga

isto como privaccedilatildeo como jejum como fome Fica muito claro em sua interpretaccedilatildeo o caraacuteter

inflexiacutevel da decisatildeo pela conclusatildeo sobretudo quando traz agrave luz o curioso caso de Vicent van

Gogh

Fogel cita uma carta que van Gogh teria enviado em maio de 1888 a seu irmatildeo Theacuteo

onde descreve sua nova moradia e ao mesmo tempo atelier afirmando que o local eacute pouco

atraente para desenvolver qualquer tipo de flerte ou paquera acrescentando que dificilmente

enxerga como compatiacuteveis o trabalhar e o farrear (faire la noce) A verdade eacute que van Gogh

natildeo possui outra opccedilatildeo senatildeo se privar da diversatildeo do faire la noce natildeo porque eacute asceta ou

abstecircmio nem porque precisa dedicar mais tempo ao seu trabalho ou pagar suas contas (todos

sabem da condiccedilatildeo por vezes paupeacuterrima na qual ele se encontrou ao longo de seu percurso)

mas por ser artista por ser pintor por pintar Urge no artista uma realidade que parece muito

mais real que a vida comum na qual o farrear remete ao contentamento agrave felicidade Natildeo viver

a vida para van Gogh seria natildeo pintar

21

Se viver a vida eacute buscar este contentamento esta felicidade entatildeo van Gogh vive para

natildeo-viver Natildeo-viver se torna paradoxalmente a expressatildeo maacutexima da vida metafisicamente

entendida Fogel completa ldquoE por que natildeo viver este natildeo-viver seria ingratidatildeo Seria isso a

saber a distacircncia o agrave parte um dom um presente uma graccedilardquo (IDEM IBIDEM 105)

acrescentando ainda ldquoA metafiacutesica desde que jejum abstinecircncia de vida de viver seria

igualmente muita vida e natildeo cumpri-la natildeo realizaacute-la isto eacute natildeo pensar uma grande

ingratidatildeordquo (ID IBID) e por fim sugerindo ldquoAqui precisa-se confessar viver natildeo eacute preciso

Pintar pensar fazer quadros fazer metafiacutesica ndash isso eacute precisordquo (ID IBID) Ressalte-se o tom das

inquiriccedilotildees da interrogaccedilatildeo acompanhada pela exclamaccedilatildeo A precisatildeo da qual fala fazendo

menccedilatildeo a Fernando Pessoa eacute a necessidade de justeza de ser preciso e acurado destro

rigorosamente alinhado ao fazer metafiacutesica Assim se configura algo muito iacutentimo e sem

embargo inevitaacutevel na natureza humana

Fogel prossegue sua exposiccedilatildeo chamando ao diaacutelogo o Zaratustra de Friedrich

Nietzsche especificamente a seccedilatildeo intitulada Da Visatildeo e do Enigma na qual reincide o anuacutencio

da famosa doutrina do Eterno Retorno citando o trecho que diz

O homem eacute todavia o mais corajoso animal assim ele supera todo e cada animal Com

o jogo sonoro supera ele tambeacutem a dor Mas a dor humana eacute a dor mais profunda A

coragem tambeacutem indica a tontura morte em abismos e onde estaria o homem senatildeo

em abismos Ele natildeo vecirc a si mesmo ndash vecirc abismos (NIETZSCHE 2005 119)

Para Fogel o ldquoverrdquo natildeo denuncia uma observaccedilatildeo circunvisatildeo ou vislumbre mas antes um

acontecimento uma iluminaccedilatildeo um tornar visiacutevel Torna-se visiacutevel o abismo o sem fundo

sem fundamento Ao que parece quanto mais o ser humano contempla sua proacutepria existecircncia

mais sem chatildeo fica maior eacute a falta de fundamento e com maior radicalidade se abre um abismo

frente aos seus peacutes

22

Eacute possiacutevel todavia prosseguir caminhando ao lado de Nietzsche e Heidegger bem como

por meio das reflexotildees e interpretaccedilotildees oferecidas por Fogel buscando alcanccedilar uma feiccedilatildeo da

vida humana que permita descortinar a proveniecircncia metafiacutesica de seu percurso e ateacute mesmo

suscitando uma ultrapassagem deste fenocircmeno Contudo eacute necessaacuterio ainda precisar com maior

cuidado os termos contidos na questatildeo Faz parte do labor filosoacutefico se afundar mais e mais em

algo que por si soacute jaacute eacute bastante fundo

Natildeo apenas os pensamentos de Nietzsche e Heidegger oferecem uma especulaccedilatildeo de

formidaacutevel profundidade difiacutecil de ser absorvida em primeira matildeo como tambeacutem por vezes

pode se mostrar demasiado complexo empreender um rastreamento do sentido originaacuterio das

palavras e sentenccedilas salvo mediante uma anaacutelise completa (empresa complicadiacutessima

provavelmente impossiacutevel) de suas obras Mesmo assim talvez ainda natildeo se mostre com

suficiente nitidez se natildeo houver de antematildeo uma explanaccedilatildeo das fontes e referecircncias cruzadas

Com estas ideias em mente buscando avanccedilar cada vez mais no tema e sobre ele meditar

com cada vez mais dedicada atenccedilatildeo e profundidade tentando ampliar com ferocidade o

vocabulaacuterio (para fazer minhas as palavras de Marco Lucchesi) outro escrito me sobreveio

durante o processo de composiccedilatildeo das hipoacuteteses contidas neste trabalho Em Nihilismo e

Neoplatonismo (2003) Oscar Federico Bauchwitz traccedila algumas linhas que especificam a

condiccedilatildeo por meio da qual o problema efetivamente se apresenta

Haacute no texto de Bauchwitz tambeacutem um necessaacuterio retorno a Nietzsche e Heidegger Natildeo

apenas dentro do contexto de um estudo da metafiacutesica enquanto histoacuteria intelectual mas ainda

constatando os tempos onde ela se apresenta como formataccedilatildeo do modo de ldquoagir-pensarrdquo torna-

se imprescindiacutevel resgatar a lembranccedila de que ldquo() com Nietzsche se estabelece uma criacutetica da

metafiacutesica que acaba por homologar o seu oacutebitordquo (BAUCHWTIZ 2003b 169) Como explica

Bauchwitz a declaraccedilatildeo da morte da metafiacutesica eacute aquela mesma da morte do platonismo

cristianismo niilismo e outros sinocircnimos para o mesmo fenocircmeno

23

Esta morte natildeo eacute todavia apenas uma declaraccedilatildeo da inexistecircncia corrente do pensamento

metafiacutesico senatildeo sua consumaccedilatildeo total e absoluta A ldquociecircncia do ente enquanto enterdquo entifica

tudo aquilo que outrora foi nomeado vida (φύσις) pelos gregos dos periacuteodos arcaico e claacutessico

ndash das coisas ao redor aos pensamentos e aos deuses A entificaccedilatildeo do mundo em torno eacute sem

sombra de duacutevidas a maneira pela qual a ciecircncia vigente concebe o mundo configurando o que

Heidegger havia chamado de ldquoreferecircncia ao mundordquo A entificaccedilatildeo do pensamento por sua vez

denota a ldquoposturardquo tambeacutem mencionada por Heidegger aquela mesma segundo a qual haacute uma

maneira ldquocorretardquo de pensar Ao passo que a entificaccedilatildeo dos deuses um pouco mais complicada

apresenta-se como ldquoirrupccedilatildeordquo na qual a circunvisatildeo resultante dos dois elementos acima

mencionados denuncia a morte de deus a fuga dos deuses o viver sem o divino sem o

iluminado sem o deslumbre Desatados os laccedilos entre ser humano e divindade Bauchwitz

questiona ldquoO que natildeo pode o homem modernordquo (IDEM IBIDEM 170) questionamento que

poderia ainda ser vertido nos termos (mais ou menos) de Dostoievsky ldquose deus morreu entatildeo

tudo eacute permitidordquo ou ainda nos (mais ou menos novamente) de Heidegger ldquose apagou da

histoacuteria universal o esplendor da divindade Essa eacute a eacutepoca da noite do mundordquo Contudo para

Bauchwitz perdura algo no labor filosoacutefico que torna liacutecito novamente regressar agrave questatildeo Ele

explica que ldquoResgatar a forccedila mais originaacuteria das palavras eacute o ofiacutecio do filoacutesofo Por isso

dizemos que a miacutestica se mostra no fechar de olhos no fechar da bocardquo (ID IBID 173) Recordo-

me acompanhando os seminaacuterios matinais do professor Bauchwitz de ouvir certa vez a

sentenccedila ldquoo miacutestico estaacute sempre em conflito com a linguagemrdquo Conflito ou confronto natildeo me

lembro muito bem Havia de fato escrito a frase literalmente ao peacute da paacutegina de algum livro

(ou alguma fotocoacutepia) que agora mesmo esqueccedilo qual era e natildeo consigo encontrar

Independente das palavras exatas o que se apresenta no texto de Bauchwitz eacute a sugestatildeo de um

caminho para este resgate por meio de um conflito o confronto suscitado pela miacutestica

24

Bauchwitz escreve ldquoO miacutestico eacute em primeiro lugar aquele que acolhe o misteacuterio dentro

de si recolhendo em silecircncio o sentido oculto da realidade soacute depois eacute que o silecircncio rompe a

barreira dos dentes para mostrar-se linguagemrdquo (ID IBID) E ainda prossegue especificando que

ldquoPor isso a miacutestica eacute uma experiecircncia radical da liberdade proacutepria Abrindo matildeo de um mundo

que clama sua atenccedilatildeo o miacutestico encontra-se com o que nele eacute totalmente incoacutegnito e

incognosciacutevel um eu que se mostra como puro nadardquo (ID IBID) A maneira pela qual Bauchwitz

iraacute desdobrar a explicaccedilatildeo destas sentenccedilas sobremaneira enigmaacuteticas percorreraacute trecircs

pensadores que marcam a tradiccedilatildeo do neoplatonismo e da chamada miacutestica medieval quais

sejam Pseudo-Dioniacutesio Areopagita Joatildeo Escoto Eriuacutegena e Mestre Eckhart Contudo o que

havia me saltado aos olhos antes da eleiccedilatildeo temaacutetica autoral ou metodoloacutegica havia sido a

sentenccedila ldquoum eu que se mostra como puro nadardquo Jaacute havia encontrado semelhante formulaccedilatildeo

todavia nunca em autores ocidentais Remeti diretamente a maneira pela qual a tradiccedilatildeo

mahāyāna do budismo do leste asiaacutetico havia compreendido a noccedilatildeo do natildeo-si-mesmo ou natildeo-

ego (anātman अितमि) como dissoluccedilatildeo do eu por meio da tensatildeo entre forma (ou fenocircmeno ou

ainda aparecircncia rūpa रप) e nada (ou vacuidade śūnyatā शनयता) Estas ideias derivam

diretamente do chamado Cacircnone Pāḷi tendo sido transmitidas em sacircnscrito pelo Sūtra do

Coraccedilatildeo (Prajntildeāpāramitā Hṛdaya परझञापारनमताहरदय) ateacute alcanccedilarem formas mais refinadas no

budismo chrsquoan e no zen budismo japonecircs assumindo as configuraccedilotildees de ldquoformardquo ou

ldquoaparecircnciardquo enquanto shiki (色) e ldquonadardquo ou ldquovacuidaderdquo enquanto kū (空) elementos centrais

do pensamento da filosofia japonesa contemporacircnea da Escola de Kyōto (e que tambeacutem havia

abordado brevemente em minha dissertaccedilatildeo de mestrado) Tornou-se imperioso investigar ateacute

que ponto tais ideias se aproximam ou comungam de princiacutepios convergentes aleacutem da maneira

como elas repercutem em suas tradiccedilotildees e particularidades Mais uma vez encontrava-me frente

ao sem-fim nuacutemero de possibilidades comparativas e complementares

25

Contudo temia o risco de cair no engodo certa vez denunciado por Immanuel Kant

quando afirmou em seus Prolegomena zu einer jeden kuumlnftigen Metaphyysik (1783) que ldquo()

dificilmente se espera que natildeo seja possiacutevel descobrir analogias para cada nova ideia entre ditos

de eras passadasrdquo (KANT 1911 7) natildeo havendo grande meacuterito nisto e sendo necessaacuterio admitir

que estes historiadores da filosofia ocupados com tal empreendimento devam antes aguardar

que os ldquoverdadeiros filoacutesofosrdquo esgotem as fontes da razatildeo Sob pena de realizar uma mera

comparaccedilatildeo friacutevola (embora com a consciecircncia de que passo longe de ser um ldquoverdadeiro

filoacutesofordquo ao menos no sentido Kantiano ndash talvez o seja em outro digamos mais Ginsbergiano

de pura pretensatildeo mas certamente natildeo muito talento) ocupei-me em corretamente designar o

problema que me afligia de modo que fosse possiacutevel corretamente endireitar o roteiro da tese

Era preciso encontrar um mote mesmo que ele natildeo deixasse ver claramente os passos a serem

percorridos mas que provessem alguma direccedilatildeo

Tendo isto em vista natildeo podia negar que o interesse pelo que ousei chamar de ldquoconflito

das fronteirasrdquo crescia a partir de um ldquopar de viacutergulasrdquo que aparentemente haviam escapado agrave

anaacutelise da histoacuteria do pensamento Em outras palavras um determinado momento no qual o

transcurso metafiacutesico foi levemente desviado em uma guinada espontacircnea e natural como um

marinheiro que sutilmente move o leme para a esquerda ou para direita ao perceber o advento

de uma portentosa onda logo atraacutes de si soltando o motor e deixando o barco ser levado pelo

mar ndash saacutebia decisatildeo em momentos de tormenta (passei por esta situaccedilatildeo certa vez em mar

aberto transitando entre Paraty e uma praia recocircndita Pouso do Cajaiacuteba se natildeo me falha a

memoacuteria gostaria de poder descrever em pormenores a experiecircncia que seria proveitosa ao

leitor em termos ilustrativos mas estava muito enjoado no barco para congregar detalhes

miacutesticos em minha massa cinzenta) E eram momentos de tormenta Como poderiam natildeo ser

Sendo assim estabeleci um conveniente itineraacuterio (ao menos sob meu ponto de vista) que

compartilho antes de iniciar o trabalho

26

O primeiro passo importante eacute estabelecer dentro de quais termos se apresenta a

metafiacutesica pela qual se nomeia a histoacuteria do pensamento ocidental O primeiro capiacutetulo da tese

intitulado Ontologia a substantivaccedilatildeo do Ocidente e a delimitaccedilatildeo das fronteiras do

pensamento ocupa-se de tal apresentaccedilatildeo e eacute na verdade bastante simples apesar do tiacutetulo

pomposo A despeito da abordagem histoacuterico-conceitual desdobrada em um primeiro momento

o capiacutetulo segue em consonacircncia com a avaliaccedilatildeo de Martin Heidegger assumindo-o como

interlocutor e inteacuterprete da histoacuteria e criacutetica da metafiacutesic Haacute aqui uma ecircnfase nas leituras por

meio das quais Heidegger caracterizou de maneira direta a passagem de uma fisiologia grega

claacutessica (por ele nomeada ldquopensamento originaacuteriordquo) para o acircmbito da ontologia latina e o modo

conforme o qual a proacutepria ideia de ldquoserrdquo eacute compreendida de maneira tatildeo somente substantivada

a partir de seu particiacutepio presente ldquoenterdquo Um necessaacuterio retorno cronoloacutegico-regressivo eacute

estabelecido do fim ao iniacutecio da modernidade pontuando autores como Jacob Lorhard e

Francisco Suaacuterez Todavia o objetivo principal do capiacutetulo eacute compreender este modo de

substantivaccedilatildeo e quais as consequecircncias disto para o pensamento em um sentido geral (a

delimitaccedilatildeo de suas fronteiras no final das contas) sem nunca perder de vista o peso aristoteacutelico

da designaccedilatildeo e realizando algumas especificaccedilotildees sobre isto

O segundo capiacutetulo intitulado O caminho da negatividade henologia e meontologia e

a ultrapassagem dos limites da metafiacutesica pretende caracterizar efetivamente essa nomeada

ldquonegatividaderdquo Negatividade que natildeo eacute simplesmente predominacircncia de um ldquonatildeordquo ou partiacutecula

de privaccedilatildeo mas antes assunccedilatildeo de um oxiacutemoro o auscultar de um inaudito Desenvolve-se

como argumento central por meio do qual se evidencia as estruturas baacutesicas de um pensamento

radical a evidenciaccedilatildeo de uma meditaccedilatildeo que jaacute natildeo eacute mais norteada pelo ldquoenterdquo mas sim pelo

ldquounordquo (henologia) neoplatocircnico ou mesmo por uma profunda meditaccedilatildeo em torno ao ldquonadardquo

(meontologia) presentes no neoplatonismo e sobremaneira evidentes no pensamento miacutestico

27

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo nomeado O Extremo Oriente e o conflito das fronteiras a

filosofia comparada intercultural como chave de leitura para alguns problemas do pensamento

contemporacircneo pretende conectar os pontos e resgatar o sentido da tese O capiacutetulo traz uma

breve apresentaccedilatildeo da chamada Escola de Kyōto e a constituiccedilatildeo da filosofia japonesa

contemporacircnea Este eacute o momento no qual eacute possiacutevel observar a recepccedilatildeo contemporacircnea da

filosofia ocidental (tanto dentro da tradiccedilatildeo metafiacutesica quanto ldquoforardquo dela na dita negatividade)

e o diaacutelogo (e siacutentese) com o mundo do Extremo Oriente O objetivo eacute portanto pensar em

comunhatildeo com os pensadores da Escola de Kyōto com especial atenccedilatildeo para Keiji Nishitani

(西谷 啓治) observando suas propostas para anaacutelise e resoluccedilatildeo dos problemas de filosofia

contemporacircnea e buscando um esclarecimento a respeito dos termos indicados

Ao fim e ao cabo a intenccedilatildeo aqui eacute convidar os leitores ao diaacutelogo intercultural

apresentando em um diaacuterio de minhas leituras diferentes nuances e pontos de vista a respeito

de algumas questotildees especiacuteficas e ousando um diagnoacutestico da filosofia contemporacircnea bem

como uma vaacutelvula de escape para a atual condiccedilatildeo do pensamento filosoacutefico Caso a empreitada

logre ecircxito acredito que uma nova conversa se abra e novas ideias venham agrave mente Sem

embargo trata-se de uma composiccedilatildeo acerca de um conflito o conflito das fronteiras

28

ONTOLOGIA A SUBSTANTIVACcedilAtildeO DO OCIDENTE E O PROBLEMA DA METAFIacuteSICA

ENQUANTO DELIMITACcedilAtildeO DAS FRONTEIRAS DO PENSAMENTO

Embora ontologia tenha um sentido bastante amplo (que seraacute melhor explorado ao longo do

capiacutetulo) aleacutem de uma sem-fim variedade de definiccedilotildees distintas de autor para autor (algumas

das quais seratildeo eleitas e apresentadas aqui) entende-se o conceito (de forma simplificada) como

um discurso capaz de reunir em uma unidade a polissemia do verbo ser O resultado eacute a

centralizaccedilatildeo conceitual de qualquer ulterior doutrina a partir da definiccedilatildeo desenrolada desde

sua compreensatildeo Por substantivaccedilatildeo do Ocidente refiro-me aqui agrave corrente historial

responsaacutevel por compreender o verbo ser de modo substantivado a partir de seu particiacutepio

presente ldquoenterdquo A intenccedilatildeo do capiacutetulo portanto concentra-se na investigaccedilatildeo do processo

decorrido dessa substantivaccedilatildeo e quais as consequecircncias disto para o pensamento ocidental e

contemporacircneo em uma concepccedilatildeo geral no que diz respeito agrave delimitaccedilatildeo das fronteiras do

pensamento

Em primeiro lugar gostaria de abrir uma interlocuccedilatildeo com o professor Charles H Kahn

da University of Pennsylvania dada a relevacircncia e pertinecircncia de sua obra The Verb lsquoBersquo in

Ancient Greek (1973) para o desenvolvimento do capiacutetulo Antes de desdobrar em pormenores

seu estudo bastante extenso e detalhado Kahn sustenta a tese de que haacute uma relatividade

linguiacutestica referente ao verbo ser (cf KAHN 2003 1-3) Em sua introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo de 2003 (cf

IDEM IBIDEM vii) Kahn se reposiciona em relaccedilatildeo ao argumento expresso em sua obra clamando

ser uma posiccedilatildeo bastante defensiva e ldquofora de modardquo para os tempos atuais Ainda assim trata-

se de uma hipoacutetese bastante interessante

29

A posiccedilatildeo de Kahn (cf IBID 1-3) se apoia na afirmaccedilatildeo de Angus C Graham1 acerca

do mesmo verbo dentro do chinecircs claacutessico onde o sinoacutelogo posiciona o ser relativamente agrave

regra gramatical inerente agrave formulaccedilatildeo de uma determinada sentenccedila significando portanto a

impossibilidade de uma doutrina universal acerca do ser compatiacutevel com liacutenguas distintas

(como o grego o aacuterabe ou o chinecircs) Isto concorda em absoluto com a ideia de que no proacuteprio

grego claacutessico e nas liacutenguas indo-europeias em geral conforme a menccedilatildeo feita por Kahn a

Eacutemile Benveniste2 natildeo haacute em hipoacutetese alguma a implementaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo universal ou

condiccedilatildeo necessaacuteria envolta na distribuiccedilatildeo dos significados do verbo ser Haacute sim e Benveniste

endossa a ideia uma predisposiccedilatildeo da linguiacutestica grega agrave ldquovocaccedilatildeo filosoacutefica da noccedilatildeo de serrdquo

Vocaccedilatildeo esta segundo Kahn muito geral e diversificada no desenvolvimento sistemaacutetico de

seu conceito desde Parmecircnides ateacute Aristoacuteteles e de uma maneira mais sistemaacutetica dos Estoicos

ateacute Plotino Em siacutentese Kahn sustenta que a tese de um determinismo linguiacutestico do ser eacute

claramente falsa ou seja mesmo em falantes de uma mesma liacutengua natildeo eacute possiacutevel encontrar

uma mesma doutrina em torno ao ser como eacute possiacutevel ver nos pensamentos distintos de Platatildeo

e Aristoacuteteles Epicuro e Plotino

Todavia natildeo haacute duacutevidas para Kahn a respeito das condiccedilotildees intriacutensecas da liacutengua de um

autor em sua atividade intelectual seus recursos e suas tendecircncias Ele afirma que natildeo haveria

possibilidade de especificar a determinaccedilatildeo ontoloacutegica se o verbo grego εἰμί natildeo fosse provido

do particiacutepio presente τὸ ὄν ou se natildeo houvesse a derivaccedilatildeo nominal ndashία da qual redunda a

noccedilatildeo de οὐσία Ou ainda a classe de morfemas que compreende ἐστί εἶναι e ἐών derivadas

do indo-europeu ndashes Satildeo as formas nominais do verbo que permitem segundo Kahn (cf IBID

451) natildeo soacute uma clara expressatildeo senatildeo tambeacutem a tematizaccedilatildeo do conceito como um toacutepico

distinto para a reflexatildeo filosoacutefica

1 Angus C Graham ldquoBeing in Classical Chineserdquo In The Verb lsquoBersquo and its Synonyms John W M Verhaar (ed)

Dordrecht Holland D Reidel 1967 1-39 2 Eacutemile Benveniste ldquoCateacutegories de penseacutee et cateacutegories de languerdquo Les Eacutetudes philosophiques n 4 (out-dez

1958) PUF Paris 419-429

30

Kahn fala dos primeiros usos do verbo εἰμί (em formas participiais) em sua

possibilidade de representar qualquer construccedilatildeo copulativa (natildeo muito diferente de qualquer

outro particiacutepio em grego) adaptando-se agraves construccedilotildees coordenadas ou subordinadas (em

nuacutemero gecircnero e causa) e expressando diferentes nuances (concessiva causal adversativa)

Contudo frisa haver ainda outras expressotildees para aleacutem do caso copulativo como nos casos

vital veriacutedico ou existencial Quando o verbo aparece dentro da expressatildeo existencial e emerge

a necessidade de indicar uma referecircncia ou seja um caso gramatical locativo surgem as formas

do uso filosoacutefico do ser como τὰ ὄντα o berccedilo para o desenvolvimento da ontologia O sentido

de τὰ ὄντα apareceria em Aristoacuteteles de acordo com Kahn (cf ID IBID 457) em primeira matildeo

como ldquoo que eacuterdquo (o caso os fatos ou eventos) e em segunda matildeo existencialmente como ldquocoisas

que existemrdquo ldquocoisas que estatildeo presentesrdquo ldquocoisas que podem ser encontradas em algum lugarrdquo

Em ambos os casos o verbo ser eacute entificado Como neste sentido haacute uma conotaccedilatildeo ldquodo que

eacuterdquo algo Aristoacuteteles considerou a referecircncia aos atributos de um determinado ente para expressar

a muacuteltipla significaccedilatildeo de τὸ ὄν partindo em seguida para a definiccedilatildeo do ser no sentido primaacuterio

e fazendo uso de seu derivado nominal οὐσία

A manifestaccedilatildeo de οὐσία surge como uma nominalizaccedilatildeo abstrata ou substantivo de

accedilatildeo Kahn enumera trecircs aspectos distintos do uso de οὐσία em uma concepccedilatildeo filosoacutefica o

primeiro uso refere-se agrave nominalizaccedilatildeo do verbo na qual οὐσία representaria ldquoo que algo eacuterdquo

dando abertura para as formas platocircnicas e essecircncias aristoteacutelicas (τὸ τί ἐστι τὸ τί ἦν εἶναι) o

segundo uso eacute todavia menos teacutecnico e predica οὐσία como ldquoserrdquo ldquoexistecircnciardquo ou ldquorealidade

verdadeirardquo o terceiro uso enuncia uma equivalecircncia entre οὐσία e τὸ ὄν referindo ldquoas coisas

que satildeo (neste mundo)rdquo τὰ ὄντα (cf ID IBID 461) Aristoacuteteles pontua precisamente a intenccedilatildeo

socraacutetica primaacuteria de buscar a essecircncia das coisas (τὸ τί ἐστι) por meio do procedimento

silogiacutestico cujo princiacutepio eacute justamente a quididade (ἀρχὴ δὲ τῶν συλλογισμῶν τὸ τί ἐστι)

(ARISTOacuteTELES 2002 604-605 Metafiacutesica 1078b 24-25)

31

O que em Soacutecrates apareceria de fato como τί ἐστι e em Platatildeo como (τὸ) ὅ ἐστι em

Aristoacuteteles seria simplificado como τὸ τί ἐστι e τὸ τί ἦν εἶναι em um uso que expressa a essecircncia

ou natureza das coisas pela definiccedilatildeo ao passo que a definiccedilatildeo propriamente existencial caberia

ao termo οὐσία 3 Kahn ilustra as distinccedilotildees dizendo que

Enquanto o substantivo no primeiro e no segundo usos serve como uma

nominalizaccedilatildeo ldquoabstratardquo para o verbo finito como predicado isto eacute para o ldquoser aquilo

que eacuterdquo (e eacute assim sintaticamente paralelo ao infinitivo articular τὸ εἶναι) οὐσία no

terceiro sentido eacute utilizado ndash como em muitos outros substantivos abstratos ndash para o

sujeito caracterizado (isto eacute o que eu chamo de concreto ou agente de nominalizaccedilatildeo

como tipicamente ilustrado pelo particiacutepio articular τὸ ὄν ou como por exemplo ὁ

τρέχων ldquoo corredorrdquo em contraste agrave accedilatildeo de nominalizaccedilatildeo abstrata τὸ τρέχειν

ldquocorrerrdquo Esta distinccedilatildeo sintaacutetica corresponde em parte ao contraste de Heidegger

entre das Seiende e das Sein der Seienden) (ID IBID)

Embora haja tal distinccedilatildeo Kahn prossegue afirmando que em seu uso tardio (poacutes-platocircnico)

οὐσία e τὸ ὄν satildeo claramente sinocircnimos sendo um utilizado para enfatizar o outro como na

doutrina das Categorias de Aristoacuteteles4 O resultado eacute a inexistecircncia de uma diferenccedila entre o

agente concreto e a accedilatildeo abstrata de nominalizaccedilatildeo do εἰμί onde natildeo haacute distinccedilatildeo conceitual

entre οὐσία e τὸ ὄν ou seja entre a entidade e o que ela eacute Em outras palavras ser e ente se

tornam o mesmo confundem-se em sua aplicaccedilatildeo a despeito das distinccedilotildees conceituais que

definem substacircncia (οὐσία) e essecircncia (τὸ τί ἦν εἶναι)

3 Um comentaacuterio mais preciso foi apresentado em Luiacutes Andreacutes Berdlow ldquoParmenides and the Grammar of Beingrdquo

Classical Philology v 106 (2011) 283-298 4 As Categorias de Aristoacuteteles apresentam a classificaccedilatildeo das coisas que satildeo (τὰ ὄντα) dentre as quais encontra-

se a substacircncia (οὐσία) (cf ARISTOTLE 1952 5-6 Categorias 1a-2b) Na Metafiacutesica Aristoacuteteles deixa isto mais

claro quando diz ldquoMas em primeiro lugar se o ldquoenterdquo (τὸ ὂν) se diz de muitas maneiras ndash dentre as quais algumas

vezes substacircncia (οὐσία) em outras qualidade ou mesmo quantidade aleacutem de todas as outras categorias ndash qual

deles portanto eacute aquele pelo qual as coisas satildeo ()rdquo (ARISTOacuteTELES 2002 669 Metafiacutesica 1089a 5-15) A diferenccedila

conceitual ou mesmo hieraacuterquica eacute paulatinamente abandonada pela necessidade de exprimir um niacutevel de

realidade no qual jaacute natildeo eacute mais possiacutevel discorrer acerca do ente se redundar a palavra definida na proacutepria definiccedilatildeo

32

Essa indistinccedilatildeo entre ser e ente eacute sabido foi o que chamou a atenccedilatildeo de Martin

Heidegger no processo ldquodestrutivordquo de histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica realizado em seu projeto

Sein und Zeit (1927) Conforme Heidegger haacute uma γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας de haacute muito

abandonada O motivo aparente se concentra nas caracteriacutesticas emergentes do proacuteprio ser

quais sejam sua maacutexima universalidade sua vacuidade sua obscuridade sua maacutexima

evidecircncia Neste sentido Heidegger diz

O conceito de ldquoserrdquo eacute indefiniacutevel Isto pode ser concluiacutedo desde sua maacutexima

universalidade E isto com razatildeo ndash se definitio fit per genus proximum et differentiam

specificam De fato ldquoserrdquo natildeo pode ser entendido conceitualmente como ente enti

non additur aliqua natura ldquoserrdquo natildeo pode estar em uma determinaccedilatildeo concebendo

dele um ente O ser por definiccedilatildeo natildeo pode ser derivado de conceitos superiores e

nem dado por nenhuma ilustraccedilatildeo Contudo disto se segue que do ser natildeo se pode

derivar nenhum problema Pode-se concluir em absoluto apenas que o ldquoserrdquo natildeo eacute

algo como um ente Portanto o legiacutetimo dentro de certos limites de determinaccedilatildeo dos

entes ndash a ldquodefiniccedilatildeordquo da loacutegica tradicional que em si tem suas bases na antiga

ontologia ndash natildeo eacute aplicaacutevel ao ser A indefiniccedilatildeo do ser natildeo dispensa a pergunta por

seu significado senatildeo que justamente a intima isto (HEIDEGGER 1967 4)

As observaccedilotildees de Heidegger concordam com a conclusatildeo de Kahn a respeito da tomada de

rumo do verbo ser dentro da filosofia grega claacutessica sobretudo na concepccedilatildeo das bases da antiga

ontologia acerca da indistinccedilatildeo entre ser e ente A γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας agrave qual se refere

Heidegger parece ser a natureza inevitaacutevel da proacutepria metafiacutesica em fechar a porta aberta por

ela mesma para o modo de se relacionar com o ser uma espeacutecie de destinaccedilatildeo forccedilosa da qual

natildeo se poderia de maneira alguma escapar ponderando a projeccedilatildeo que reverbera em cada um

dos sentidos

33

O conflito acerca do entendimento e expressatildeo da φύσις revela em boa parte a maneira

pela qual o conjunto do ser se tornou alvo de disputas A contenda eacute ilustrada na histoacuteria

primaacuteria da filosofia grega enquanto fisiologia e na ldquocontroveacutersiardquo paradigmaacutetica entre

Heraacuteclito e Parmecircnides Uma realidade em constante movimento e mutaccedilatildeo absorvida desde a

observaccedilatildeo teoreacutetica do mundo entorno ou simplesmente o ponto de vista do ldquodevirrdquo parece

compatiacutevel com a natureza infinitiva e inapreensiacutevel do verbo ser como eacute possiacutevel rastrear no

πάντα ῥεῖ heracliacutetico 5 Heraacuteclito expressa o movimento intriacutenseco de abertura do modo

relacional do ser Todavia tal entendimento natildeo eacute compatiacutevel com qualquer tipo de silogismo

loacutegico onde eacute possiacutevel desenhar um conhecimento comum Para assumir a cogniccedilatildeo e percepccedilatildeo

vaacutelidas seria necessaacuterio assumir a permanecircncia de algo como eacute possiacutevel acompanhar na

elaboraccedilatildeo da univocidade do ser em Parmecircnides6

O primeiro ponto de vista paradoxalmente leva agrave evidecircncia da diferenccedila e a posiccedilatildeo do

oxiacutemoro enquanto o segundo permite a identificaccedilatildeo e a possibilidade de conclusatildeo por meio

das loacutegicas da identidade e natildeo-contradiccedilatildeo Aparentemente o primeiro natildeo resulta em nenhum

avanccedilo imediato a respeito de assuntos praacuteticos ou na dissoluccedilatildeo de questotildees teoacutericas enquanto

o segundo iraacute provavelmente resolver problemas de quase todos os tipos no campo pragmaacutetico

e em toda sorte de adversidades naturais e sociais Por meio da loacutegica natural do ser humano

social eacute bastante evidente qual ponto de vista deve ser eleito no intuito de estabelecer a

coexistecircncia mais faacutecil e paciacutefica aquela que afasta o homem da falta de fundamento da

existecircncia ou seja do abismo existencial da afliccedilatildeo que eacute existir

5 Conforme cita Platatildeo no Craacutetilo ldquotodas as coisas estatildeo em processo e nada permanece paradordquo (τά ὄντα ἱέναι

τε πάντα καὶ μένειν οὑδέν) (PLATO 1997 119-120 Craacutetilo 401d-402a) (KIRK E RAVEN 1957 197) Kirk e Raven

ponderam ainda que se trata de um momento ldquoOnde φύσις provavelmente natildeo significa lsquonaturezarsquo mas lsquoas coisas

em sua verdadeira constituiccedilatildeorsquordquo (IDEM IBIDEM 184) 6 ldquoO uacutenico caminho de inquiriccedilatildeo que pode ser pensadordquo (αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι) (KIRK E RAVEN

1957 269) Haacute uma anaacutelise mais detalhada acerca do toacutepico em Ciacutecero Cunha Bezerra ldquoParmeacutenides y la

univocidad del serrdquo Caacutetedra v 1 (2003) 33-48

34

Eacute possiacutevel especular que com a ausecircncia de um princiacutepio solidamente identificado e

natildeo-contraditoacuterio quiccedilaacute nem mesmo uma regra gramatical linguiacutestica poderia ser estabelecida

dando margem mesmo agrave impossibilidade de comunicaccedilatildeo Igualmente tampouco se poderia

delinear uma corrente de haacutebitos pessoais compatiacuteveis aos costumes sociais desabilitando toda

e qualquer eacutetica ou ciecircncia poliacutetica pela qual se pode regulamentar a conduta humana Com a

perspectiva de um devir total e assunccedilatildeo da diferenccedila a presenccedila de certo caos eacute inegaacutevel Com

a fundaccedilatildeo de uma estrutura loacutegica todavia eacute possiacutevel organizar e controlar os pensamentos e

accedilotildees do ser humano e sua convivecircncia social Contudo natildeo necessariamente esta postura iraacute

levar a humanidade para as escolhas mais coerentes ndash e a histoacuteria pode comprovar isto inuacutemeras

vezes O abandono da multiplicidade de perspectivas sobretudo as supracitadas (uma em

detrimento de outra) parece ter dirigido a histoacuteria por vias pouco luacutecidas e por vezes mesmo

autodestrutivas

Mas a anaacutelise da histoacuteria fatual natildeo eacute o que realmente interessa aqui tampouco a

atribuiccedilatildeo de uma culpa ou indicaccedilatildeo de um erro neste ou naquele ponto de vista O que

interessa aqui eacute como identificar a predileccedilatildeo loacutegica do pensamento ocidental com o cerne de

sua postura contemporacircnea e inquirir se eacute possiacutevel (ou se jaacute foi tomado) um caminho de

pensamento distinto e quais os resultados da confrontaccedilatildeo de um ponto de vista com o outro

Para isto eacute preciso retomar uma anaacutelise da histoacuteria da ontologia observando a maneira pela

qual ela se movimenta intriacutenseca e extrinsecamente Dentro das possibilidades de eleiccedilatildeo de um

caminho interpretativo opto aqui em um primeiro momento por absorver a histoacuteria e criacutetica

da metafiacutesica feita por Heidegger durante o seacuteculo vinte com o fito de deixar um pouco mais

evidente o problema fundamental da indistinccedilatildeo entre ser e ente que eacute sem embargo o pontapeacute

inicial de toda a contenda Muito embora seja possiacutevel descortinar a histoacuteria do pensamento

ocidental mediante distintos autores a ecircnfase na nomeada questatildeo do ldquoesquecimento do serrdquo

serve sobremaneira bem ao propoacutesito desta tese

35

Portanto em primeiro lugar eacute preciso considerar que embora ilustrativo Martin

Heidegger passou ao largo de resolver os problemas suscitados pela histoacuteria das ideias Antes

ele desenvolveu problemaacuteticas ainda mais insoluacuteveis e como se natildeo bastasse propocircs novos

enigmas A maior dentre todas as dificuldades talvez ainda precise aguardar muito tempo para

ser descortinada Durante um longo periacuteodo o entretenimento geral dos eruditos se contentou

em traccedilar um denominador comum dentre as vaacuterias questotildees pertinentes aos problemas de sua

filosofia em um movimento enciclopeacutedico quiccedilaacute tatildeo importuno quanto improfiacutecuo de decifrar

seu pensamento Mais conveniente talvez seja simplesmente resguardar o segredo de certas

passagens e aguardar a maturaccedilatildeo necessaacuteria para interpelaacute-las independentemente da espera

suscitada por tal postura

Ainda assim alguns pontos merecem ser postos em relevo e sobre eles decerto vale

despender alguma energia no esforccedilo de meditar acerca de seu sentido Certos trabalhos

compostos por Heidegger guardam de uma soacute vez todo o peso de sua leitura da realidade

notadamente em trechos sutis e aparentemente inofensivos Em momentos nos quais o leitor se

daacute por satisfeito em compreender um posicionamento aparentemente simples e historial como

pueril revisatildeo da histoacuteria da filosofia aiacute mesmo se lhe eacute possiacutevel abrir uma brecha para absorver

a atitude fundamental de seu pensamento Heidegger sempre foi um historiador da filosofia e

natildeo renegou em momento algum o peso de um ofiacutecio como este pelo contraacuterio coube-lhe fazecirc-

lo por diversas vezes e em distintos modos Mesmo quando seus ensaios e conferecircncias se

projetavam a um tema especiacutefico e natildeo a um autor a forte presenccedila de suas interpretaccedilotildees da

histoacuteria da filosofia eacute inegaacutevel Cabe ao propoacutesito desta tese realccedilar um exemplo que torne liacutecito

ilustrar uma fissura por onde seja possiacutevel se esgueirar ateacute a fonte da emanaccedilatildeo especulativa

acerca do sentido da histoacuteria da filosofia e do desenvolvimento do pensamento ocidental

sinocircnimos para o que conveacutem nomear metafiacutesica

36

Aos 13 de novembro de 1935 como sabem os leitores assiacuteduos de Heidegger foi

pronunciada uma conferecircncia preparada para a Kunstwissenschaftlichen Gesellschaft de

Freiburg im Breisgau7 Der Ursprung des Kunstwerkes se tornou de forma veloz e viral um

trabalho amplamente comentado no circuito acadecircmico em geral principalmente no campo da

esteacutetica filosoacutefica e teorias da arte O ponto de vista quase unacircnime dos receptores do trabalho

assentou na interpretaccedilatildeo do texto como uma tese a respeito da arte como ldquoposta em marcha da

verdade enquanto desvelamentordquo uma frase natildeo tatildeo simples de ser decifrada mas repetida

quase como uma foacutermula automaacutetica que se tornou rapidamente um emblemaacutetico clichecirc e uma

resposta imediata agrave pergunta pelo sentido da arte em Heidegger

A popular obra de Michael Inwood A Heidegger Dictionary (1999) destaca

enfaticamente o caraacuteter essencial da proposiccedilatildeo-chave quando pontua no mesmo sentido que

ldquoA obra de arte eacute mais bem um projeto que abre um mundo no qual escolhas podem ser feitas

A verdade a revelaccedilatildeo do lsquoserrsquo eacute o configurar em uma obra e configurar para obra iluminando

o mundo e a terra naquilo que neles perdurardquo (INWOOD 1999 18) Inwood ressalta a

proximidade encontrada por Heidegger entre o termo alematildeo ldquoproteger manterrdquo (bewahren) e

a proacutepria palavra ldquoverdaderdquo (Wahrheit) embora os termos natildeo necessariamente estejam

etimologicamente conectados Ele aponta para a ldquopreservaccedilatildeordquo como elemento pelo qual ldquoA

arte eacute o deixar-acontecer da chegada da verdade do ser enquanto talrdquo (IDEM IBIDEM) com especial

atenccedilatildeo para o proacuteprio fazer (ποίησις) da arte e particularmente da poesia Haacute contudo uma

seacuterie de consideraccedilotildees mais sutis a serem levadas em consideraccedilatildeo nas conferecircncias de

Heidegger proporcionando uma anaacutelise um pouco mais cuidadosa do que estaacute propriamente

em jogo quando Heidegger sobreleva a questatildeo da obra de arte

7 O mesmo trabalho sofreu novas releituras durante todo o ano de 1936 sendo reapresentado respectivamente na

Einladung der Studentenschaft der Universitaumlt em Zuumlrich durante o mecircs de janeiro e na Deutschen Hochstift em

Frankfurt am Main entre novembro e dezembro O ciclo de conferecircncias recebeu ediccedilotildees retrabalhadas em 1956 e

1960 publicadas pela Reclam de Stuttgart e sendo incluiacutedo em 1977 no tomo Holzwege da Gesamtausgabe

37

O editor do volume Holzwege Friedrich-Wilhelm von Hermann dedicou toda uma obra

agrave anaacutelise temaacutetica envolta naquele escrito publicando em 1980 o livro Heideggers Philosophie

der Kunst Em algumas de suas consideraccedilotildees mais amplas sobre as conferecircncias de Heidegger

Hermann atenta para o fato da questatildeo da obra de arte ser levantada a partir de um problema

desdobrado pela ontologia fundamental Hermann observa a problemaacutetica geral do escrito

desde o estabelecimento do ldquoserrdquo como ldquoacontecimentordquo (Ereignis) Conforme ele pondera

trata-se de um trabalho contemporacircneo aos Beitraumlge zur Philosophie (1936-38) Para Hermann

a questatildeo em torno ao ldquoserrdquo como ldquoacontecimentordquo (Ereignis) estende-se em Der Ursprung des

Kunstwerkes por meio de quatro outros problemas (1) o estabelecimento constitutivo da arte

(2) da obra de arte (3) da criaccedilatildeo artiacutestica e (4) da compreensatildeo da arte (cf HERMANN 2001 7)

Contudo circunscrita agrave conferecircncia sobre a arte estaacute a elaboraccedilatildeo da passagem da discussatildeo em

torno agrave verdade do ser para o ldquopensamento da histoacuteria do serrdquo (seinsgeschichtliches Denken)

Trata-se especificamente do momento de transiccedilatildeo do pensamento de Heidegger8 Em

linhas gerais Der Ursprung des Kunstwerkes ressalta uma preocupaccedilatildeo da lida do homem para

com a essecircncia da verdade mediante a obra de arte enquanto coisa Haacute toda uma histoacuteria dos

efeitos pertinentes agraves anaacutelises de Heidegger da obra de Vincent van Gogh9 aleacutem de inuacutemeras

teorizaccedilotildees em torno ao poder salvador da obra de arte Todavia salta aos olhos uma passagem

muito mais peculiar (para qual gostaria de chamar a atenccedilatildeo agora mesmo) qual seja aquela

na qual Heidegger aborda o problema da transposiccedilatildeo da experiecircncia fundamental grega para a

intepretaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo do pensamento romano-latino (cf HEIDEGGER 1977 7)

8 A perspectiva da ontologia fundamental de Sein und Zeit (1927) continuada no curso Grundprobleme der

Phaumlnomenologie ministrado em Marburg durante o semestre de veratildeo de 1927 receberia seu desenvolvimento

desde uma visatildeo historial-reflexiva jaacute na primavera de 1932 ocasiatildeo na qual conforme Hermann satildeo elaboradas

as primeiras linhas de Beitraumlge zur Philosophie redigido entre 1936 e 1938 mas publicado postumamente somente

em 1989 9 Em uma das mais famosas passagens de Der Ursprung des Kunstwerkes Heidegger interpreta os sapatos de um

dos quadros de Vincent van Gogh (natildeo identifica qual todavia) descortinando com isto o cotidiano campesino e

oferecendo uma leitura da realidade a partir de aiacute Uma criacutetica direta foi apresentada por Meyer Shapiro (em The

Still Life as a Personal Object ndash A Note on Heidegger and van Gogh 1968 e ainda em Further Notes on Heidegger

and van Gogh 1994) onde ele sustenta que os sapatos retratados por van Gogh natildeo satildeo de uma pessoa do campo

mas as botas do proacuteprio artista apontando com isto graves mal entendidos na interpretaccedilatildeo de Heidegger

38

Ainda no iniacutecio do escrito Heidegger busca a compreensatildeo mais geral da ldquocoisardquo

abordando como exemplo um bloco de granito A despeito de suas muacuteltiplas caracteriacutesticas ele

enfatiza o ldquoao redorrdquo (das herum sich) pelo qual suas propriedades se agrupam podendo entatildeo

falar de algo como um ldquonuacutecleordquo (Kern) da coisa Esse nuacutecleo de acordo com Heidegger

chamaram-lhe os gregos claacutessicos de ὑποκείμενον Embora ilustrativa a descriccedilatildeo eacute decerto

passiacutevel de baixo niacutevel de representaccedilatildeo posta sua exposiccedilatildeo pouco objetiva O termo eacute mesmo

tatildeo controverso quanto as proacuteprias ideias de ser e ente dentro da perspectiva grega Ela possui

uma carga conceitual talvez natildeo tatildeo difiacutecil de ser desvelada mas que tampouco garante exatidatildeo

e lucidez em sua abordagem variando de eacutepoca para eacutepoca de filoacutesofo para filoacutesofo de

interpretaccedilatildeo para interpretaccedilatildeo Ademais vaacuterias histoacuterias metaforizam o sentido do termo

ὑποκείμενον Uma das mais conhecidas (conto-a sem embasamento ou referecircncias quiccedilaacute

mesmo de maneira inapropriada) relata que certa vez um rei se espantara ao conhecer a obra de

um escultor haacutebil em reproduzir as formas da natureza em blocos de maacutermore Tamanha era a

destreza do artista que se postas lado a lado a escultura e a coisa mesma confundiam-se os

espectadores exceto pelo caraacuteter inanimado da escultura Intrigado o rei mandou chamar o

escultor e perguntou-lhe como fazia para reproduzir com tanta fidelidade o mundo em torno

Natildeo sabendo explicar senatildeo por meio da praacutetica pediu um bloco de maacutermore e agraves vistas do rei

reproduziu perfeitamente um cavalo em tamanho real faltando-lhe apenas galopar O rei lhe

questionou ldquoComo o fizesterdquo e respondeu o escultor ldquofaacutecil apenas retirei do bloco de

maacutermore o que natildeo era cavalordquo O ὑποκείμενον seria portanto aquele elemento sem o qual o

cavalo natildeo seria cavalo ou sem o qual uma coisa natildeo eacute uma coisa Contudo o grande problema

envolto nas tentativas de atingir um entendimento deste sentido por meio de um silogismo uma

loacutegica racional ou uma explicaccedilatildeo conceitual (e natildeo por uma metaacutefora ou estoacuteria) consiste na

dificuldade em elaborar uma equaccedilatildeo que exija menos esforccedilo do ouvinte capacitando uma

lucidez mais ampla e geral que a todos possa atingir

39

Toda definiccedilatildeo a partir de uma predicaccedilatildeo direta pode se configurar ainda mais obscura

e lanccedilar aquele que se propotildee a entender o conceito para um mero encadeamento e conexatildeo de

termos sem contudo realmente promover a experiecircncia do sentido da palavra Sem embargo o

Impeacuterio Romano foi a eacutegide da popularizaccedilatildeo e introspecccedilatildeo do mundo grego competindo-lhes

a tarefa de transpor ao modo latino de pensar os sentidos das meditaccedilotildees gregas Sobre isto

Heidegger ostenta uma posiccedilatildeo bastante firme e vale a pena destacar por completo o trecho no

qual se lhe pode observar sua atitude

Estas denominaccedilotildees natildeo eram meros nomes Em sua fala a experiecircncia fundamental

grega do ser do ente no sentido de sua presenccedila mostrava o que natildeo se podia mostrar

Por meio dessa disposiccedilatildeo instaura-se a interpretaccedilatildeo oficial da coisidade da coisa e

a interpretaccedilatildeo ocidental do ser do ente Comeccedila com a traduccedilatildeo das palavras gregas

para o pensamento romano-latino ὑποκείμενον torna-se subjectum ὑπόστασις torna-

se substantia συνβεβηκός torna-se accidens O processo desta traduccedilatildeo dos nomes

gregos para a liacutengua latina natildeo se daacute sem consequecircncias e nos dias de hoje toma-se

ainda a mesma compreensatildeo Antes pelo contraacuterio por detraacutes da traduccedilatildeo

aparentemente literal haacute um traslado da experiecircncia grega para outro modo de pensar

O pensamento romano assume para si as palavras gregas sem a devida

correspondecircncia com a experiecircncia originaacuteria do que dizem sem a palavra grega A

falta de fundamento do pensamento ocidental comeccedila com essas traduccedilotildees (IDEM

IBIDEM 7-8)

Responsabilizar o pensamento romano-latino pela queda do Ocidente no abismo da falta de

fundamento delega a Heidegger um encargo de peso formidaacutevel cujo maior perigo talvez seja

o de natildeo se ambientar aqui ou ali dentro deste ou daquele territoacuterio neste ou naquele lugar

mas na posiccedilatildeo do meio na esfera do entre no desenho do limite da linha da fronteira

40

A direccedilatildeo do pensamento de Heidegger a partir desta passagem claramente se constitui

desde uma divisatildeo da metafiacutesica ocidental em dois momentos muito distintos embora

interligados A emboscada se encontra na percepccedilatildeo de que todo e qualquer ocidental eacute jaacute

sempre forccedilado a se movimentar na esfera da ontologia latina ao passo que o retorno aos

fundamentos da ontologia grega eacute antes de tudo calcar terreno em solo incerto e regiatildeo

desconhecida Estabelecer uma ponte que permita ao ser humano contemporacircneo entender a

proveniecircncia de sua apreensatildeo da existecircncia eacute um roteiro deveras ousado Resta saber como eacute

possiacutevel ainda pensar os conceitos fundamentais da metafiacutesica dentro de sua propriedade sem

causaacute-los algum tipo de dano que faccedila seu sentido se perder ser obscurecido ou transviado

A partir da colocaccedilatildeo do problema da obra de arte enquanto coisa Heidegger questiona

o que enfim se compreende pelo termo mesmo ldquocoisardquo quando se compromete com a ideia de

tentar envolvecirc-lo conceitualmente (a partir de ὑποκείμενον ὑπόστασις e συνβεβηκός) e desde

aiacute extrair uma explicaccedilatildeo Sobre isto Hermann comenta ldquoComo podemos ver ainda mais e

melhor resolver o problema da obra de arte se torna um problema ontoloacutegico ndash isto eacute em

primeira instacircncia o problema ontoloacutegico do ser-res da resrdquo (HERMANN OP CIT 87) entenda-se

ainda o problema da coisidade da coisa Ele ainda complementa deixando ver a postura exigida

pela tarefa de entender a ontologia grega ldquoPortanto explicar o pensamento grego significa

antes de tudo revelar novamente a experiecircncia de estar no lugar em que se encontra a expressatildeo

de acordo com o fio condutor da palavra filosoacutefica gregardquo (IDEM IBIDEM 93-94) Sem embargo

conforme aponta Hermann (em coerecircncia com Heidegger) o ofiacutecio de introduzir a filosofia

grega (ou se introduzir na filosofia grega sua ontologia e berccedilo da metafiacutesica) constitui-se

desde o caminhar ao lado do fio condutor de sua expressatildeo e manifestaccedilatildeo A caminhada talvez

seja ela mesma o ldquoestar no lugar em que se encontra a expressatildeordquo ou o espaccedilo do ldquoentrerdquo a

ldquolinha de fronteirardquo

41

Algumas dezenas de leituras podem ser desdobradas desde a interpretaccedilatildeo de Heidegger

do lugar de transiccedilatildeo da histoacuteria do ser O itineraacuterio do pensamento de Heidegger legou aos

fieacuteis depositaacuterios de sua vasta caminhada a tarefa ingloacuteria de dar uma passo aleacutem Gostaria de

destacar aqui um direcionamento um pouco menos ousado nem por isto ingecircnuo Considerar

uma histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica em Heidegger eacute procurar pela fenda cuja passagem

encaminha diretamente ao salto no abismo da superaccedilatildeo da metafiacutesica embora natildeo fique ainda

claro o significado destes termos Ademais a intenccedilatildeo aqui eacute justamente esta esclarecer os

enlaces desse percurso histoacuterico nomeado sob o signo da metafiacutesica agrave luz da trajetoacuteria

interpretativa de Heidegger

Justamente sob o tiacutetulo Itineraacuterio do Pensamento de Heidegger (1965) Emmanuel

Carneiro Leatildeo apresenta sua traduccedilatildeo para o portuguecircs da Einfuumlhrung in die Metaphysik (1935)

de Heidegger ndash segundo ele nem de perto uma obra de faacutecil acesso Em primeiro lugar pela

impossibilidade geral de uma introduccedilatildeo em filosofia no sentido amplo Em outras palavras

natildeo haacute caminho de iniciaccedilatildeo agrave filosofia como se houvesse ainda um siacutetio no qual se a conquista

Haacute na verdade o puro levantar de questotildees responsaacuteveis por conduzir o pensamento para dentro

da proacutepria filosofia Carneiro Leatildeo elucida tal dificuldade quando especifica o tiacutetulo da obra

Introduzir agrave metafiacutesica eacute movimentar-lhe a questatildeo fundamental de maneira a

conduzi-la (-ducere) para dentro (-intro) das origens donde a metafiacutesica procede Um

esforccedilo de pensamento que nada tem de horizontal e progressivo Cujo movimento

se processa antes no sentido vertical e regressivo (CARNEIRO LEAtildeO 1999 10)

A filosofia busca o movimento imputado para originaacute-la para com isto retornar agraves suas origens

proacuteprias Em segundo lugar e natildeo menos importante a obra ainda guarda certa inacessibilidade

devido agrave intencional ambiguidade de um periacuteodo conturbado de transiccedilatildeo do pensamento de

Heidegger (tambeacutem evidenciado por Hermann)

42

Eacute preciso movimentar a questatildeo fundamental da metafiacutesica para conduzi-la para dentro

de suas origens Agora bem destacar a questatildeo fundamental eacute o primeiro passo de Heidegger

na obra quando questiona ldquoPorque haacute em geral o ente e natildeo antes nadardquo (HEIDEGGER 1983b

3) Um adendo eacute necessaacuterio ao leitor lusoacutefono Carneiro Leatildeo em sua traduccedilatildeo explica o

emprego do termo ldquoenterdquo para traduzir o alematildeo Seiendes justificando o uso da forma erudita

referida ao latim ens entis para salvaguardar o caraacuteter de tudo que eacute independentemente de

seu modo de ser (cf CARNEIRO LEAtildeO OP CIT 77 nota) Ponderando isto a leitura de Carneiro

Leatildeo segue um rumo bastante simples e esclarecedor ele afirma

O homem natildeo pode existir senatildeo em comeacutercio e comunhatildeo com o mundo dos entes

Ente significa tudo que de algum modo eacute o homem as coisas os acontecimentos ateacute

mesmo o Nada enquanto eacute um Nada ieacute enquanto tem um significado () (IDEM IBIDEM

11)

A forccedila responsaacutevel por manter a decisatildeo a respeito dos entes depende diretamente da

capacidade de enxergar suas distinccedilotildees Em um compecircndio unitaacuterio a base de sustentaccedilatildeo no

comeacutercio com os entes se daacute na e pela linguagem mediante a qual o homem simplesmente

afirma eacute Uma afirmaccedilatildeo aparentemente simples guarda contudo uma relaccedilatildeo complexa e

ambiacutegua talvez mesmo em decorrecircncia de sua extrema simplicidade

A existecircncia humana se agita dentro da tensatildeo entre imanecircncia e transcendecircncia

porque o homem existe enquanto in-siste no domiacutenio da Verdade do Ser ieacute a

vicissitude instaurada pela diferenccedila irredutiacutevel e referecircncia necessaacuteria entre ente e

ser A tarefa do pensamento natildeo eacute procurar sair decircsse ciacuterculo de diferenccedila e referecircncia

e sim necircle ingressar de maneira a poder regressar ateacute a fonte originaacuteria de sua tensatildeo

e unidade (ID IBID 15)

43

O atino para o ingresso ao interior da tarefa do pensamento deixa bastante evidente a intitulaccedilatildeo

da obra Eacute possiacutevel conceber a empreitada em regressar ao fundamento desde o qual a metafiacutesica

eacute ela mesma a proveniecircncia da tensatildeo em torno agrave unidade da existecircncia perante a multiplicidade

Eacute preciso destarte compreender que ldquoSoacute poderemos entender os pensamentos os conceitos

ou as explicaccedilotildees dados na medida em que nos ex-pusermos e dis-pusermos aquilo que se pensa

que se concebe ou que se explicardquo (ID IBID 29) acompanhando assim os passos de Heidegger

e verificando sua coerecircncia teoacuterica de levar colocar e se pocircr no estado da questatildeo

Esta mesma ambivalecircncia eacute tambeacutem destacada por Heidegger quando ele se refere ao

ambiacuteguo das formas essenciais do espiacuterito Natildeo se trata portanto de uma dedicaccedilatildeo integral agraves

possibilidades de captar de maneira exclusivamente formal os procedimentos que envolvem os

estudos mas de perceber (αἴσθησις) e experienciar os fenocircmenos Heidegger adverte ainda

Tomada na totalidade de seu sentido mais cru a filosofia sempre lida com o

fundamento do ente de tal maneira que o proacuteprio ser humano tem enfaticamente a

experiecircncia de seu significado e propoacutesito Por isto agora se vislumbra facilmente a

amplitude da filosofia que poderia e deveria proporcionar o fundamento da existecircncia

da eacutepoca histoacuterica atual e futura pela qual se estabelece a cultura Com tais

espectativas e demandas o estado e a essecircncia da filosofia satildeo sobrecarregadas Na

maior parte das vezes essa demanda excessiva se mostra pela forma de uma censura

da filosofia Diz-se por exemplo porque a metafiacutesica natildeo participou na preparaccedilatildeo

para a revoluccedilatildeo ela deve ser rejeitada Isto eacute tatildeo espirituoso quanto dizer que porque

vocecirc natildeo pode voar com um tocircrno portanto este deve ser abandonado A filosofia

natildeo provecirc diretamente forccedilas nem modos de accedilatildeo e criaccedilatildeo para ajeitar a condiccedilatildeo

histoacuterica simplesmente pelo motivo de dizer respeito apenas a poucos Quais poucos

Aqueles que transformam criativamente convertendo os fins Afetando uma vastidatildeo

apenas indiretamente e nunca fazendo rodeios ateacute certo ponto onde finalmente desde

o longo esquecimento da filosofia degenera-se como autocompreensatildeo da existecircncia

(HEIDEGGER OP CIT 12)

44

Heidegger aponta certa responsabilidade da filosofia na formaccedilatildeo da cultura e direcionamento

da eacutepoca presente e futura A chamada ldquoessencializaccedilatildeo da filosofiardquo eacute em grande parte

responsaacutevel pela tomada de rumo e pela constituiccedilatildeo da histoacuteria ateacute mesmo por seu abandono

Agrave ela estaacute diretamente conectada a ldquoessencializaccedilatildeo do serrdquo e maneira pela qual a filosofia se

apresenta como contemplaccedilatildeo dos fundamentos do ente

Heidegger explica em pormenores a diferenccedila entre ser e ente quando expotildee a gramaacutetica

e etimologia da palavra Certa advertecircncia contudo clama a petrificaccedilatildeo das normas

gramaticais ocas e vazias destituindo a Escola do Mundo do Espiacuterito que circunda a

morfologia dos termos e se restringindo tatildeo somente agrave transmissatildeo de regras do uso da palavra

Neste sentido a maneira pela qual se ostenta a ldquogrande gramaacuteticardquo eacute em si mesma o processo

de substantivaccedilatildeo do Ocidente visto como o cerrar das fronteiras como delimitaccedilatildeo

Tambeacutem em Einfuumlhrung in die Metaphysik Heidegger insiste no argumento exprimido

em Der Ursprung des Kunstwerkes seguindo o fluxo comentado acima quando afirma outra

vez ldquoQue essas formas gramaticais natildeo dissecaram desde toda eternidade uma linguagem

absoluta enquanto controle elas satildeo de fato erigidas de uma particular interpretaccedilatildeo da liacutengua

grega pela liacutengua latinardquo (ID IBID 56) Em outras palavras a linguagem possibilita sendo ela

tambeacutem um ente manipulaccedilatildeo e controle por sobre suas formas Por este motivo eacute possiacutevel

transmitir o conhecimento de uma liacutengua estrangeira somente com o ensino da gramaacutetica

mesmo para pessoas que nunca realmente entraram em contato com essa determinada liacutengua

Ou ainda aprender um idioma antigo natildeo mais utilizado ou cujo vigor ou esplendor se apagou

como o latim o grego claacutessico ou o sacircnscrito antigo sem ter a possibilidade de experenciaacute-los

no cotidiano O domiacutenio teoacuterico de uma liacutengua pode permitir ainda intuiccedilotildees e analogias a

respeito da experiecircncia que esta liacutengua provocava em seus falantes originais sem contudo

garantir exatidatildeo das disposiccedilotildees ou estados de acircnimo referidos pelos termos

45

Dentro da gramaacutetica e morfologia do ser Heidegger evidencia que existe um duplo

sentido para a palavra dentro de seu entendimento como consistecircncia (Staumlndigkeit) qual seja

a) o estar em si mesmo enquanto proveniente de si mesmo e b) o que perdura constantemente

enquanto tal Consistecircncia eacute a palavra-chave de sua leitura do termo ser dentro da circunvisatildeo

grega claacutessica Heidegger aponta que justamente por isso o natildeo-ser denota a desistecircncia ou a

saiacuteda da existecircncia ou ainda o abrir matildeo do ldquosalto para aleacutemrdquo Jaacute a etimologia da palavra ser

revela como os sentidos manifestos pela gramaacutetica e morfologia foram confundidos

historicamente Heidegger expotildee trecircs raiacutezes do termo uma sacircnscrita (es asus) outra indo-

germacircnica (bhuuml) e uma apenas germacircnica (sein) Conforme suas interpretaccedilotildees elas se

desdobram respectivamente em um sentido de ldquoviverrdquo ldquosurgirrdquo e ldquopermanecerrdquo Tratam-se de

verbos distintos todavia Heidegger natildeo citas as fontes das quais ele extrai tais etimologias

Ateacute onde eacute possiacutevel investigar o termo sacircnscrito mais proacuteximo ao que ele considera es

asus seria asti (अनतत) cuja raiz ās (आस) possui incontaacuteveis significados dentre os quais ldquoexistirrdquo

ldquoestar presenterdquo ldquopermanecerrdquo entre vaacuterios outros Aparentemente eacute a origem do indo-europeu

es cujo similar em grego seria o morfema ἐστί e em latim esse (sobremaneira visiacutevel no

portuguecircs estar) Jaacute a palavra bhuuml provavelmente indicada por Heidegger como ldquoindo-

germacircnicardquo em consequecircncia da formataccedilatildeo do verbo ser como ldquobinrdquo ldquobistrdquo (ou ainda ist e em

inglecircs ldquoisrdquo) eacute tambeacutem ela sacircnscrita (bhū भ) e estaacute presente em vaacuterias outras liacutenguas indo-

europeias (como no inglecircs being) Seu significado mais geral seria ldquoserrdquo ou ldquoexistirrdquo embora

aponte tambeacutem para ldquoacontecerrdquo ou ldquoperceberrdquo aleacutem de outros sentidos Sein tambeacutem pode ser

rastreado ateacute certo ponto em sua origem germacircnica no mittelhochdeutsch sīn e no

althochdeutsch wesan derivado da raiz sacircnscrita ves (वस) que daria as formas de Wesen

(essecircncia) ou (war o preteacuterito de Sein ser) em alematildeo De qualquer forma a questatildeo leva

imediatamente ao que Heidegger chama de ldquoessencializaccedilatildeo do serrdquo O motivo eacute simples viver

surgir e permanecer satildeo manifestaccedilotildees que interpelam o ser humano inevitavelmente

46

Contudo o ser ao interpelar o humano natildeo se manifesta antes se oculta esconde sua

proveniecircncia mostra-se ambiacuteguo e pela metade A forma de manifestaccedilatildeo do ser passiacutevel de

ser apreendida como uma realidade existente daacute-se por meio de sua participaccedilatildeo na realidade

presente qual seja ente (seu particiacutepio presente) A predileccedilatildeo pelo ente nasceria justamente

de seu caraacuteter manipulaacutevel embora haja uma conclusatildeo que clama as variaccedilotildees da palavra ser

e seu comportamento com respeito ao ldquoser em si mesmordquo evocado de modo distinto de outros

substantivos e verbos com relaccedilatildeo aos seus respectivos entes A eleiccedilatildeo de uma manifestaccedilatildeo

do ser diz muito sobre o modo relacional do humano com a conduccedilatildeo de sua existecircncia10

Alguns anos antes da composiccedilatildeo da Einfuumlhrung em um compecircndio posteriormente

publicado sob o tiacutetulo Sein und Wahrheit (1933-34) Heidegger se aproximou sistematicamente

da constituiccedilatildeo histoacuterica da metafiacutesica A obra eacute todavia pouco comentada O motivo eacute simples

haacute certo complexo ou trauma envolto na abordagem de um texto do periacuteodo da ascensatildeo do

Partido Nazi e do consentimento ao seu propoacutesito inicial Embora haja certos traccedilos de sintonia

com o discurso do momento pelo qual o povo alematildeo atravessava natildeo haacute nenhum resquiacutecio em

Heidegger dos preconceitos intriacutensecos ao desenrolar do totalitarismo Dentro do ambiente

promissoramente inovador Heidegger escreve ldquoToda gestatildeo essencial se vivifica desde uma

grande determinaccedilatildeo oculta no fundamentordquo (ID 2001 3) As palavras de Heidegger parecem

indicar antes de uma referecircncia ao destino da Alemanha o fato de que a questatildeo fundamental

estaacute contida no proacuteprio fundamento Por este motivo Heidegger ainda sugere um ldquo() caminho

histoacuterico na essecircncia da filosofia ndash e natildeo se poderia ter outro e isto justamente porque a filosofia

eacute ela mesma o acontecimento fundamental da histoacuteria da existecircnciardquo (ID IBIDEM 17) Resta

saber portanto como esse acontecimento fundamental se constitui como metafiacutesica

10 Heidegger justifica este ponto na sua apresentaccedilatildeo do conceito de Cura Sorgen em Sein und Zeit que embora

seja de suma importacircncia uma explanaccedilatildeo mais cuidadosa tomaria aqui e agora demasiado tempo mas que

precisa ao menos ser mencionada Seria esta caracteriacutestica originaacuteria do ser humano Cura Cuidado (Sorgen)

aquilo que o impulsionaria a preservar sua condiccedilatildeo evitando a queda nos abismos existenciais e a confusatildeo

generalizada (cf HEIDEGGER OP CIT 196-200)

47

Quando a tarefa eacute compreender a histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica realizada por Heidegger

insisto nunca eacute demasiada repeticcedilatildeo retomar as primeiras linhas de Sein und Zeit Vale lembrar

uma vez mais a disputa titacircnica a respeito da essecircncia (γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας) que

envolve os questionamentos aparentemente desprestigiados da metafiacutesica Conforme Heidegger

a maneira pela qual o problema perdurou sofreu alteraccedilotildees de Platatildeo e Aristoacuteteles ateacute sua

formulaccedilatildeo mais sofisticada na Wissenschaft der Logik (1812-16) de Georg W F Hegel Em

Sein und Wahrheit eacute tambeacutem a discussatildeo com Hegel que orienta a anaacutelise da metafiacutesica

tradicional Ateacute alcanccedilar Hegel entretanto Heidegger se preocupa em delinear as feiccedilotildees da

perda de sentido da μετὰ τὰ φυσικά aristoteacutelica na recepccedilatildeo tardia de seus escritos onde

ldquoGrandeza e iacutempeto desaparecem tanto na singularidade do questionamento criativo quanto na

designaccedilatildeo conceitual a praccedila desocupada daacute lugar agrave atividade de uma escola ndash somente

sobraram palavras e conceitos mas natildeo o poder estimulante da coisardquo (ID IBID 21)

Para Heidegger a unificaccedilatildeo do termo grego na palavra latina metaphysica natildeo eacute

acompanhada somente de uma correspondecircncia senatildeo ao mesmo tempo de uma mudanccedila em

seu significado Inerente agrave transformaccedilatildeo de seu sentido estaacute a apropriaccedilatildeo cristatilde do conceito

imputando um conhecimento suprassensiacutevel (trans physicam) de maior grau de importacircncia e

relevacircncia e diretamente relacionado ao divino Onde antes havia perplexidade na aspiraccedilatildeo agrave

sapiecircncia e observaccedilatildeo da realidade haacute agora um conhecimento humano elevado e suscetiacutevel agrave

confirmaccedilatildeo pela ciecircncia superior Heidegger visa e cita textualmente a formulaccedilatildeo de

Immanuel Kant da metafiacutesica como a ultrapassagem de todos os objetos empiacutericos a fim de

alcanccedilar um conhecimento viaacutevel e puro ou a superaccedilatildeo do conhecimento sensiacutevel pelo

conhecimento suprassensiacutevel11

11 Embora esta premissa esteja presente jaacute na Kritik der reinen Vernunft e em certa medida em suas especulaccedilotildees

preacute-criacuteticas atingindo ainda todos os escritos intercalados agraves duas outras criacuteticas e ainda os posteriores ele parece

se referir agraves conferecircncias de Kant reunidas por Karl Heinrich Ludwig Poumllitz publicadas em Vorlesungen Kants

uumlber Metaphysik aus drei Semestern Max Heine (org) Leipzig Hirzel 1984 (natildeo tenho certeza disto entretanto)

48

Haacute ainda a absorccedilatildeo do direito agrave verdade metafiacutesica pela ontologia claacutessica e neste

sentido Heidegger cita Alexander Baumgarten onde a verdade metafiacutesica eacute o princiacutepio

universal e fundamental em conveniecircncia agrave determinaccedilatildeo do ente enquanto tal Deste modo

conclui que a metafiacutesica se constitui como uma determinaccedilatildeo cristatilde e ideia matemaacutetico-

metoacutedica de fundamentaccedilatildeo nos sistemas metafiacutesicos da modernidade onde ela se apresenta

como conhecimento do ente em seu todo Hegel ocuparia neste sentido o lugar da consumaccedilatildeo

da plenitude da filosofia ocidental na metafiacutesica destacado o caraacuteter teoloacutegico no qual a medida

do saber eacute o ldquoinfinitordquo (perfectum) manifesto enquanto identidade absoluta (perfectissimus)

ou espiacuterito absoluto Por este motivo ao que parece quando se refere agrave histoacuteria da disputa

titacircnica sobre a essecircncia em Sein und Zeit Heidegger aponta a Wissenschaft der Logik de Hegel

como ponto de chegada Ali a loacutegica eacute entendida como ciecircncia do pensamento todavia natildeo

como ciecircncia responsaacutevel por regular o pensamento mas como fundamento do conceito e em

uacuteltima instacircncia fundamento do ente em si mesmo Heidegger explica dizendo que em Hegel

ldquoA metafiacutesica como ciecircncia do ser do ente eacute lsquoLoacutegicarsquo e esta Loacutegica eacute Loacutegica lsquodorsquo Absoluto isto

eacute de Deus Genitivo deliberadamente ambiacuteguo Natildeo apenas um genitivus objectivus Deus

representado mas sim genitivus subjectivus a essecircncia de deus como presenccedila do Espiacuterito

Absolutordquo (ID IBID 76) Em um momento final da exposiccedilatildeo da questatildeo fundamental da

filosofia Heidegger faz uma divisatildeo entre a filosofia ocidental em seu princiacutepio e em seu fim

escrevendo que

No princiacutepio a mais profunda necessidade era o questionamento na luta com os

poderes incontrolaacuteveis da verdade e da decepccedilatildeo A filosofia causava o mais alto

poder clarificante da naccedilatildeo e de sua existecircncia Riqueza de decisatildeo momento de

decisatildeo No fim alta bem-aventuranccedila na suspensatildeo das contradiccedilotildees fraqueza de

meros conceitos opostos fracasso e morte de todo questionamento Eternidade vazia

cheia de indecisotildees (ID IBID 77)

49

A eternidade vazia cheia de indecisotildees todavia natildeo soa aqui como algo proveniente de um

descontentamento Pelo contraacuterio emerge desde a simples oposiccedilatildeo de conceitos com o fito de

suspender contradiccedilotildees e evidenciar uma maacutexima clareza e nitidez com o intuito de um suposto

pleno contentamento como se a profunda necessidade de questionamento houvesse sido calada

pela extrema emergecircncia de soluccedilatildeo Um abismo entre a filosofia ocidental em seu princiacutepio e

em seu fim eacute diagnosticado de maneira direta e evidente Longe de apontar culpados ou

referendar uma condenaccedilatildeo agrave metafiacutesica claacutessica Heidegger explica o processo intriacutenseco de

explicaccedilatildeo e complicaccedilatildeo da metafiacutesica evidenciando fatualmente a transiccedilatildeo do pensamento

da histoacuteria do ser da ontologia grega agrave latina A distacircncia que provecirc de clareza a anaacutelise eacute todavia

bastante tendenciosa aos propoacutesitos da ontologia fundamental A maneira pela qual a proacutepria

ontologia se protege com uma complexidade de conceitos dificulta a visualizaccedilatildeo do percurso

histoacuterico e da explanaccedilatildeo esclarecedora

Vale portanto retomar alguns aspectos relevantes embora por vezes sutis da pesquisa

acerca da ontologia na metafiacutesica claacutessica Gostaria de propor um breve desvio que agrave primeira

vista pareceraacute desnecessaacuterio contudo configura-se como extremamente pertinente ao

propoacutesito do capiacutetulo Atualmente as pesquisas voltadas ao estudo da ontologia se restringem

ou bem ao estudo histoacuterico ou bem agraves repercussotildees da metafiacutesica na filosofia contemporacircnea

Via de regra servem de embasamento para questotildees projetadas aos assuntos pertinentes da

eacutepoca vigente A ontologia se torna assim uma ldquoaacuterea da filosofiardquo uma ldquodisciplinardquo ou mesmo

um tronco braccedilo ou ramificaccedilatildeo dos estudos filosoacuteficos Os pesquisadores responsaacuteveis por

esta aacuterea da filosofia desdobram prolegocircmenos e comentaacuterios explicativos aos textos claacutessicos

fundamentando muacuteltiplas outras aacutereas Poucas vezes eacute possiacutevel observar um trabalho sobre

ontologia que realmente conecte seu sentido primaacuterio aos problemas apresentados nos dias de

hoje todavia escavando com devoccedilatildeo algumas pesquisas emergem sobremaneira conexas

50

A ontologia parece ser mesmo ldquoutilizadardquo como ponte para abrir novos caminhos como

por exemplo as discussotildees histoacutericas na anaacutelise do desenvolvimento da cultura as

investigaccedilotildees epistemoloacutegicas na confrontaccedilatildeo das possibilidades de conhecimento as

consideraccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas na constituiccedilatildeo dos haacutebitos e costumes da relaccedilatildeo do ser humano

com as virtudes deveres e utilidades os juiacutezos esteacuteticos na relaccedilatildeo com a obra de arte ou

mesmo as bases psicanaliacuteticas do entendimento do proacuteprio humano e sua relaccedilatildeo com as coisas

e o mundo entorno

Um dos exemplos mais niacutetidos de um pensamento comprometido em discutir a

ontologia por si mesma observando a maneira pela qual as categorias ontoloacutegicas dispotildeem

ainda hoje os modos de estruturar a realidade talvez se apresente nas recentes discussotildees em

torno ao ldquodigitalrdquo e ao ldquovirtualrdquo ou as propostas de uma ldquoontologia digitalrdquo Ouvi falar pela

primeira vez sobre ldquoontologia digitalrdquo por meio de Rafael Capurro em 2009 durante o III

Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica realizado em Natal na Universidade Federal do Rio

Grande do Norte12 Ateacute entatildeo possuiacutea minhas proacuteprias teorias acerca do mundo digital e da

esfera virtual da internet todavia natildeo tinha sequer noccedilatildeo da envergadura do problema e da

maneira pela qual o assunto podia ser pensado desde uma perspectiva ontoloacutegica e natildeo

meramente poliacutetico-ativista ou mesmo teoacuterico-juriacutedica Embora este natildeo seja propriamente o

assunto do capiacutetulo gostaria de abordar o tema como forma de justificar o questionamento pela

ontologia claacutessica para aleacutem da mera constataccedilatildeo historiograacutefica Conforme pude acompanhar

a inquietaccedilatildeo que move os trabalhos se concentra na crenccedila segundo a qual todos os fenocircmenos

podem ser analisados construiacutedos e manipulados sob a condiccedilatildeo de poderem ser digitalizados

12 A discussatildeo de Capurro havia comeccedilado com uma troca de e-mails com Michael Eldred A conversa redundou

em primeira matildeo nos trabalhos de Capurro intitulados Entwurf einer digitalen Ontologie (1999) e Beitraumlge zu

einer digitalen Ontologie (1999) sendo estendida em ulteriores escritos como Interpreting the digital human

(2008) e Einfuumlhrung in die digitale Ontologie (2009) aleacutem do livro publicado por Eldred The Digital Cast of

Being (2009) Provavelmente a discussatildeo ainda prossegue e outros trabalhos foram ou estatildeo sendo publicados

51

Talvez como um chiste mas bastante pertinente e veriacutedico Capurro afirma que

atualmente se algueacutem natildeo estaacute na rede eacute como se natildeo existisse Dando impulso para uma

formulaccedilatildeo inusitada esse est computari em analogia agrave famosa foacutermula de George Berkeley

(esse est percipi) A conclusatildeo bastante perspicaz extraiacuteda por Capurro eacute a de que seria correto

dizer que hoje vemos a realidade no horizonte de sua digitabilidade Uma seacuterie de outros termos

e expressotildees natildeo-convencionais emergem do texto de Capurro como ldquoem tudo que eacute puramente

virtual as coisas consistem essencialmente em bitsrdquo ou a denominaccedilatildeo ldquopitagorismo digitalrdquo

Entretanto todas as definiccedilotildees e determinaccedilotildees estatildeo conectadas ao arcano questionamento em

torno ao ente

O que eacute o ente Esta pergunta fundamental da metafiacutesica natildeo pode ter uma resposta

definitiva a partir da perspectiva de um conhecimento finito sem cair na ilusatildeo

essencialista Isto tem consequecircncias para a problemaacutetica de como pensar uma cultura

digital Uma ontologia digital eacute uma interpretaccedilatildeo possiacutevel do ser dos entes vistos

desde sua digitabilidade No entanto tal ontologia corre sempre o perigo de

transformar-se em uma metafiacutesica digital no momento em que acredita ser a

verdadeira ou uacutenica resposta agrave pergunta pelo ser A ontologia digital eacute uma possiacutevel

compreensatildeo do ser por parte do conhecimento humano finito Todas as regiotildees ou

esferas dos entes satildeo concebidas entatildeo como digitais (CAPURRO 2009 322)

A introduccedilatildeo da digitabilidade para aleacutem da anaacutelise do ldquoserrdquo quantificado pela ciecircncia moderna

confere uma perspectiva nova de experimentaccedilatildeo do ente em sua totalidade Chama atenccedilatildeo o

perigo envolto na transformaccedilatildeo em uma ldquometafiacutesica digitalrdquo na qual uma virada ontocecircntrica

concentraria o poder da verdade enquanto julgamento como oriente agrave pergunta pelo ldquoserrdquo

Talvez o mais importante da anaacutelise de Capurro consista justamente na renovaccedilatildeo desta criacutetica

na qual se chama atenccedilatildeo para a imprecisatildeo especulativa por meio da indefiniccedilatildeo do virtual

52

Natildeo eacute difiacutecil perceber que o mundo digital oferece uma vasta gama de temas e

possibilidades de se pensar filosoficamente sob as mais diversas perspectivas Natildeo haacute grande

espanto na busca dos filoacutesofos por reflexotildees em torno aos acontecimentos revolucionaacuterios dos

veiacuteculos de informaccedilatildeo e tecnologias em geral no seacuteculo vinte-e-um Contudo admiraacutevel eacute

encontrar o caminho oposto o momento no qual desenvolvedores da ciecircncia e da teacutecnica

buscam a filosofia para fundamentar seus trabalhos Eacute caso dos estudos realizados por Peter

Oslashhrstroslashm Henrik Schaumlrfe e Sara L Uckelman cujos resultados foram publicados nos anais da

International Conference on Conceptual Structures um evento dedicado agrave ciecircncia da

computaccedilatildeo Os trecircs investigadores fundamentam desde a ontologia moderna claacutessica a

concepccedilatildeo de hipertexto um conceito fundamental da computaccedilatildeo13 Para Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e

Uckelman o nascimento do termo ldquoontologiardquo representa o estabelecimento de um hipertexto

sobre a realidade e a temporalidade em pleno seacuteculo dezessete Os pesquisadores se referem

especificamente a Jacob Lorhard autor dos oito volumes intitulados Ogdoas Scholastica (1606)

responsaacutevel por cunhar o termo ldquoontologiardquo pela primeira vez na histoacuteria

Lorhard compocircs sua Ogdoas como uma gramaacutetica para o ensino escolar por meio de

aacutervores diagramaticais A teacutecnica utilizada por Lorhard foi profundamente influenciada por

Petrus Ramus (Pierre de la Rameacutee) cujo objetivo era transformar a razatildeo dialeacutetica em um

meacutetodo de loacutegica pedagoacutegica Petrus Ramus foi uma figura controversa e polecircmica Aleacutem de

suas interpretaccedilotildees pouco ortodoxas de Aristoacuteteles Ramus defendia uma completa reforma no

sistema educacional Ele fomentava o espiacuterito humanista pelo qual procurava devolver agrave

retoacuterica sua posiccedilatildeo proeminente visando desautorizar o peso da loacutegica escolaacutestica14

13 A ideia de hipertexto eacute bastante antiga todavia o termo no sentido moderno foi cunhado por Ted Nelson em

1965 para descrever o sistema de escrita natildeo-sequencial que envolvia o ligamento entre textos distintos em uma

mesma interface na internet O sistema de hyperlinks em um siacutetio da internet eacute um exemplo bastante simples de

um hipertexto 14 Cf Petrus Ramus Sa Vie Ses Eacutecrits et Ses Opinions Charles Waddington (ed) Paris Librairie de Ch Meyrteis

1855 Acerca das singularidades de Petrus Ramus confira Laura Adriaacuten Lara ldquoPetrus Ramus y el ocaso de la

retoacuterica ciacutevicardquo Utopiacutea y Praxis Latinoamericana v 13 n 43 (out-dez 2008) 11-31 e ainda Frank P Graves

Petrus Ramus and the Educational Reformation of Sixteenth Century New York Macmillan 1912

53

Havia um profundo espiacuterito anti-escolaacutestico que movia os interesses de Ramus

enfatizando uma postura radical na qual a filosofia ramista considerava falsa todas as

afirmaccedilotildees de Aristoacuteteles Para facilitar o processo de aprendizagem pelo qual o domiacutenio das

ciecircncias e artes liberais pode ser alcanccedilado Ramus emprega seus ldquoesquemas visuais abstratosrdquo

Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman se referem aos esquemas de Ramus como base para a aacutervore

diagramatical de Jacob Lorhard ndash para os pesquisadores este tipo de diagrama eacute o berccedilo de

todo futuro hipertexto

Eacute faacutecil observar que a estrutura da Ogdoas Scholastica de Jacob Lorhard permite ao

leitor localizar conceitos especiacuteficos e suas respectivas definiccedilotildees por meio de uma rede de

interconexotildees na forma de diagramas A ldquoaacutervorerdquo facilita natildeo soacute a compreensatildeo dos conceitos

como tambeacutem a maneira pela qual eles se relacionam uns com os outros Sem embargo trata-

se de uma gramaacutetica pela qual o domiacutenio de conceitos fundamentais da metafiacutesica se torna

bastante simples concordando em absoluto com a demanda da eacutepoca em introduzir este tipo de

estudo nos niacuteveis baacutesicos de ensino Com obras como as de Lorhard a exigecircncia do estudo da

ontologia foi difundida durante o seacuteculo dezoito como parte essencial da formaccedilatildeo acadecircmica

baacutesica15 Aleacutem disto a Ogdoas ainda sustentava a eacutegide da clarificaccedilatildeo da ontologia como base

para todo ulterior desenvolvimento intelectual Em outros termos Lorhard (assim como Ramus)

acreditava que natildeo era possiacutevel esclarecer nenhuma ciecircncia se natildeo houvesse de antematildeo uma

lucidez absoluta a respeito dos fundamentos do ente que poderia ser proporcionada apenas pelo

estudo por ele nomeado ldquoontologiardquo um discurso que buscava um pleno esclarecimento dos

termos empregados para definir todo e qualquer ulterior passo tomado tanto nas ciecircncias do

espiacuterito quanto nas ciecircncias da natureza

15 Muito disto deve-se ao filoacutesofo norueguecircs Jens Kraft cuja obra (influenciada em larga escala pela Metaphysica

sive Ontologia de Christian Wolff) reforccedilou o peso dos estudos em ontologia Dentro da compreensatildeo de Kraft

compartilhada tambeacutem por Lorhard e outros a ontologia ganha um lugar privilegiado como unificaccedilatildeo sistemaacutetica

das estruturas do pensamento como um todo

54

O oitavo livro da Ogdoas de Lorhard que encerra o compecircndio e eacute dedicado agrave ontologia

no sentido de unificar todos os escritos anteriores define a metafiacutesica como ldquo() o

conhecimento de um inteligiacutevel enquanto inteligiacutevel ()rdquo (LORHARD sd 3) Este conhecimento

eacute divido entre conhecimento dos particulares e dos universais Para Lorhard a parte da

metafiacutesica responsaacutevel pelo conhecimento dos particulares ou bem se refere acirc substacircncia

pertinente aos seres natildeo-complexos que subsistem em si mesmos (sejam eles criados ou natildeo)

ou bem aos acidentes

Jaacute o conhecimento dos universais se refere a tudo o que eacute inteligiacutevel redundando nos

atributos gerais ou nas distribuiccedilotildees conforme as quais o λόγος eacute entendido como um inteligiacutevel

As distribuiccedilotildees dizem respeito ao nada por um lado ou a algo por outro sendo este uacuteltimo

em seu aspecto positivo o que envolve as ideias de ldquoessecircnciardquo e ldquoenterdquo As noccedilotildees de ldquoessecircnciardquo

e ldquoenterdquo satildeo centrais natildeo apenas para o sistema de Lorhard mas tambeacutem para todas as

subsequentes compreensotildees da ontologia Em uma primeira definiccedilatildeo Lorhard observa a

ldquoessecircnciardquo em sua relaccedilatildeo com o λόγος definindo que ldquoEssecircncia eacute algo produtivo pelo qual o

Ser eacute o que eacute Esta palavra estrangeira eacute chamada pelos Escolaacutesticos de Entidade ou quidditasrdquo

(IDEM IBIDEM 4) Em segundo lugar considera a ldquoessecircnciardquo em relaccedilatildeo a sua distribuiccedilatildeo na

qual ela eacute ou bem ldquorealrdquo (ou seja uma atualizaccedilatildeorealizaccedilatildeo do ser) ou bem ldquoimaginaacuteriardquo (no

caso de um ser puramente racional) Ambas podem ser ldquosimplesrdquo ou ldquocompostasrdquo ldquoabsolutasrdquo

ou ldquorespectivasrdquo ldquouniversaisrdquo ou ldquosingularesrdquo Dentro do uacuteltimo destes casos a ldquoessecircnciardquo

pode ser ainda ldquogeneacutericardquo (ou um gecircnero compartilhado por outras espeacutecies) ou ldquoespeciacuteficardquo

(relativa a uma uacutenica espeacutecie) Natildeo haacute grande espanto nos pontos apresentados ateacute entatildeo por

Lorhard O que haacute na verdade eacute uma constituiccedilatildeo sistemaacutetica de um diaacutelogo que estava sendo

travado jaacute haacute muito tempo e sobremaneira evidente no periacuteodo no qual ele compocircs sua obra

Suas contribuiccedilotildees mais significantes talvez se deem na seccedilatildeo seguinte quando aborda a

questatildeo do ldquoenterdquo

55

Lorhard tambeacutem considera o ldquoenterdquo no discurso unificador bem como na questatildeo da

ldquoessecircnciardquo afirmando dele algo produtivo ldquodotado de certa essecircnciardquo Em seu caraacuteter

distributivo o ldquoenterdquo (assim como a ldquoessecircnciardquo) eacute ou bem ldquorealrdquo ou bem ldquoracionalrdquo Ele define

o ldquoente de razatildeo ou racionalrdquo afirmando que ldquoEacute um ente de razatildeo que eacute tocado pela cogitaccedilatildeo

de uma mente singular de acordo com o modo real do ente agrave parte disto eacute nada Eacute tambeacutem

chamado ente fictiacutecio e imaginaacuteriordquo (ID IBID 5) Jaacute o ldquoente realrdquo pode se dar por meio do

discurso (λόγος) de sua proacutepria essecircncia ou ainda ser distribuiacutedo em entes primaacuterios e

secundaacuterios (estes uacuteltimos decorrentes dos primeiros) sendo ambos ldquosimplesrdquo ou ldquocomplexosrdquo

ldquoabsolutosrdquo ou ldquorespectivosrdquo ldquouniversaisrdquo ou ldquoparticularesrdquo ldquoimateriaisrdquo ou ldquomateriaisrdquo

ldquopermanentesrdquo ou ldquosucessivosrdquo

Toda a divisatildeo da ontologia de Lorhard acompanha em muitos aspectos a ontologia

derivada da filosofia grega claacutessica desde o processo dialeacutetico de questionamento da realidade

conforme a doutrina platocircnica e a divisatildeo das Categorias de Aristoacuteteles A principal distinccedilatildeo

do emprego do termo ontologia como expressatildeo e manifestaccedilatildeo das doutrinas metafiacutesicas em

Lorhard eacute o foco especiacutefico de uma ldquodoutrina dos inteligiacuteveisrdquo Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman

comentam que

Conforme Lorhard haacute uma importante dualidade entre os entes e nossa discussatildeo

racional a respeito deles Parece que ele insistiu na necessidade dessa dualidade no

sentido de que cada vez que noacutes discutimos os entes no mundo tentando classificaacute-

los tambeacutem temos que refletir sobre os conceitos usados para fazecirc-los (OslashHRSTOslashM

SCHAumlRFE E UCKELMAN OP CIT 4)

Em termos mais simples apoacutes um longo periacuteodo de aristotelismo escolaacutestico talvez tenha sido

Lorhard o primeiro a atentar para o fato de certa confusatildeo gerada dentro da metafiacutesica a respeito

da maneira pela qual se predica o ser do ente em sua participaccedilatildeo presente na realidade

56

Seria liacutecito portanto argumentar que a evidecircncia da confusatildeo de termos se deve ao fato

de Lorhard ter deslocado o ontocentrismo metafiacutesico para uma teoria dos intiligiacuteveis Ainda

conforme Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman a postura de Lorhard eacute diretamente influenciada pela

obra de Clemens Timpler que sustentava a mesma posiccedilatildeo a respeito da metafiacutesica desde uma

confrontaccedilatildeo direta com a filosofia de Francisco Suaacuterez Esta seria a contenda principal do

iniacutecio da modernidade responsaacutevel por conformar e enformar a metafiacutesica como ontologia tal

qual hoje ainda se a concebe Joseph S Freedman desenvolve uma anaacutelise bastante precisa da

maneira pela qual Timpler fundamentou sua postura e as consequecircncias de seu trabalho

sobretudo no que tange agrave disputa com Francisco Suaacuterez A respeito da proposiccedilatildeo ldquotudo que eacute

inteligiacutevelrdquo (omne intelligibile) o tema constitutivo da metafiacutesica Freedman (cf 2009 10-11)

comenta que Timpler provecirc uma moldura conceitual dentro da qual alguns conceitos

ontologicamente baacutesicos satildeo englobados quais sejam ldquoalgordquo (aliquid) ldquoprivaccedilatildeordquo (privatio)

ldquoessecircnciardquo (essentia) e ldquoentidaderdquo (ens) Dentro da dissoluccedilatildeo dos conceitos na obra central de

Timpler Metaphysicae systema methodicum (1604) Freedman comenta

Conforme Timpler ldquotudo aquilo que eacute Inteligiacutevelrdquo eacute dividido entre nihil (ie ldquonadardquo

ou ldquonatildeo-serrdquo) e aliquid aut est (ldquoalgordquo ou ldquoenterdquo) esta eacute basicamente a mesma

dicotomia que William Shakespeare aludiu quando ele coloca no Ato 3 Cena 1 de

Hamlet ndash alguns anos antes (c 1600) da publicaccedilatildeo do texto de Timpler sobre

metafiacutesica ndash que ldquoser ou natildeo ser estaacute eacute a questatildeo []rdquo Mas esta foi a questatildeo que

Timpler e todos os seus (conhecidos) contemporacircneos acadecircmicos aparentemente

desejaram evitar de discutir A discussatildeo da questatildeo de Shakespeare ndash e da dicotomia

de Timpler ndash poderia ter provido as bases para o levantamento de toacutepicos altamente

sensiacuteveis por exemplo 1) a relaccedilatildeo entre Deus e Nada (nihil) 2) a relaccedilatildeo entre Deus

entidade e privaccedilatildeo (ie mal) e 3) a relaccedilatildeo entre Deus e o princiacutepio de contradiccedilatildeo

(FREEDMAN op cit 12)

57

Embora estas questotildees estivessem jaacute sempre presentes dentro dos questionamentos de Timpler

e de seus contemporacircneos elas eram todavia caladas de acordo com Freedman (IDEM IBIDEM)

pela imposiccedilatildeo das instituiccedilotildees cristatildes das coisas sobre as quais se era proibido falar ou acreditar

O que perdura das apresentaccedilotildees filosoacuteficas da metafiacutesica como ontologia em Timpler

ponderando seu princiacutepio do inteligiacutevel concentra-se em primeiro lugar como o mateacuteria de

todas as disciplinas e subdisciplinas acadecircmicas e em segundo lugar como foco de disciplinas

separadas como a archeologia gnostologia hexiologia intelligentia pansophia e tecnologia

(cf ID IBID 14)

O motivo da predileccedilatildeo da questatildeo dos intiligiacuteveis como foco principal de todos os

temas concernentes ao pensamento aparece dentro da possibilidade de envolver todos os

aspectos responsaacuteveis pelos modos operativos de pensar 16 Desta forma por exemplo as

disciplinas separadas como a ldquotecnologiardquo seriam desenvolvidas para as consideraccedilotildees gerais

e universais da estrutura das disciplinas liberais (cf ID IBID 16) Embora discrimine em parte

o princiacutepio da cogniccedilatildeo a metafiacutesica tampouco envolve a loacutegica por levar em consideraccedilatildeo

apenas os princiacutepios excluindo entidades complexas que redundem no princiacutepio de contradiccedilatildeo

Em contrapartida ao sistema metoacutedico de Timpler vecirc-se em Francisco Suaacuterez um

caraacuteter muito mais ontocecircntrico As Disputationes Metaphysicae (1597) de Francisco Suaacuterez

satildeo publicadas dentro de um contexto de desarmonia e conflitos entre a teologia e a filosofia

onde os conceitos fundamentais na discussatildeo sobre o divino estavam sendo postos em questatildeo

A despeito das influecircncias de Suaacuterez e dos necessaacuterios posicionamentos poliacuteticos sua obra

parece instaurar um regulamento por meio do qual nada poderia ser legado agrave mera

inteligibilidade

16 Freedman (ID IBID 15) cita o teoacutelogo calvinista Matthias Martinius contemporacircneo de Timpler que evidencia

de maneira mais clara os motivos das proposiccedilotildees fundamentais Ele atesta que conforme esta designaccedilatildeo agrave

metafiacutesica ldquopertence tudo aquilo que eacute cognosciacutevelrdquo (de omni cogitabili) mas com certas restriccedilotildees englobando

a ldquouniversalidade das coisasrdquo (rerum universitatem) mas natildeo envolvendo disciplinas acadecircmicas especializadas

singulares ou particulares

58

As Disputationes de Suaacuterez podem ser entendidas desde uma divisatildeo da obra na qual a

primeira parte (as primeiras vinte-e-sete questotildees) se refere ao ente no sentido geral enquanto

a segunda parte (as vinte-e-sete uacuteltimas questotildees) lida com o ente particular redundando em

uma dupla divisatildeo da proacutepria metafiacutesica entre ldquometafiacutesica geralrdquo e ldquometafiacutesica especialrdquo (cf

SUAacuteREZ 2004 DOYLE 2004) Ao comentar o desenvolvimento deste aspecto da filosofia de

Suaacuterez Ludger Honnefelder ainda acrescenta

Conforme Suaacuterez a metafiacutesica lida com o conceito de ente tanto ldquoformalrdquo quanto

ldquoobjetivordquo Pelo conceito formal Suaacuterez entende o ato de conhecer do qual ldquoex unica

et prima impositionerdquo que rende uma representaccedilatildeo intencional do objeto pelo

conceito objetivo ele designa aquilo que representa intencionalmente o ato Em outras

palavras Suaacuterez natildeo assume a teoria dos conceitos caracterizada pelo paralelismo

noeacutetico-noemaacutetico de res e conceptus antes ele aceita a abordagem criacutetica de Ockham

em direccedilatildeo a interpretaccedilatildeo realiacutestica dos conceitos universais Desde que Scottus ele

mesmo natildeo depende desse paralelismo quando isto vem a dizer respeito sobre o ente

Suaacuterez substancialmente segue Scottus e aplica ldquoenterdquo para um conceito formal

primaacuterio e unificado que em virtude de sua imposiccedilatildeo representa um objetivo

primaacuterio e unificado do conteuacutedo absolutamente simples que envolve todos os entes

distintos de uma maneira indeterminada ie como ente (HONNEFELDER 2003)

Segundo a exposiccedilatildeo de Honnefelder o direcionamento da metafiacutesica de Suaacuterez iraacute redundar

em alguns pontos baacutesicos em primeiro lugar o fato de que a determinaccedilatildeo do ente transcende

a generalidade dos gecircneros em segundo que a determinaccedilatildeo natildeo pode ela mesma ser definida

podendo apenas ser explicada em relaccedilatildeo agrave existecircncia real em terceiro que toda existecircncia estaacute

sujeita agrave fundamentaccedilatildeo de disposiccedilatildeo ontoloacutegica em uacuteltimo lugar que o ente finito perdura

em um modo indeterminaacutevel de quantidade sendo o ente infinito eacute aquilo que eacute perfeito e

totalmente indivisiacutevel em si mesmo e mais real e completo (cf IDEM IBIDEM)

59

Agora bem com o fito de retomar a linha de raciociacutenio desenvolvida no capiacutetulo eacute

preciso retomar a ideia de substantivaccedilatildeo do Ocidente e a maneira pela qual esse processo se

deixar ver ao longo da histoacuteria da ontologia Martin Heidegger indica em primeiro lugar o que

ele considera como o problema fundamental pelo qual a metafiacutesica se desdobra no Ocidente

qual seja o fato de que o ldquoserrdquo natildeo eacute um ldquoenterdquo mas que todavia um foi tomado pelo outro Ele

apresenta ainda o argumento de que a transposiccedilatildeo da experiecircncia fundamental grega (conforme

apresentada tambeacutem por Charles H Kahn) sofre uma violaccedilatildeo na absorccedilatildeo latina e na

transferecircncia de conceitos de um modo de pensar para o outro Eacute dentro deste ambiente latino

que eacute possiacutevel rastrear a maneira pela qual a metafiacutesica se forma e transforma em ontologia ou

bem dentro de uma filosofia do inteligiacutevel (como em Lorhard e Timpler) ou bem como um

ontocentrismo filosoacutefico (como em Suaacuterez) Sem embargo trata-se de uma disputa em torno agraves

formas primaacuterias da discussatildeo em torno ao ldquoserrdquo e ao ldquoenterdquo Eacute possiacutevel concluir desde a

constataccedilatildeo da entificaccedilatildeo do ser ou substantivaccedilatildeo do Ocidente que a demanda pela resposta

ao problema primeiro da filosofia necessariamente a encaminha para um percurso que natildeo

poderia ser outro Mas qual eacute propriamente este problema primeiro e como se constroacutei esse

caminho Natildeo haveria outra indicaccedilatildeo senatildeo a da ciecircncia dos primeiros princiacutepios e causas de

Aristoacuteteles Jaacute na doutrina das Categorias de Aristoacuteteles eacute possiacutevel observar a confusatildeo entre

ldquoserrdquo e ldquoenterdquo A questatildeo pode ser melhor observada na proposiccedilatildeo baacutesica e amplamente

difundida da Metafiacutesica ldquoO ente se diz em muacuteltiplos significados mas sempre em referecircncia a

uma unidade e a uma realidade determinadardquo (ARISTOacuteTELES 2002 131)17 A referecircncia a uma

unidade e uma realidade determinada eacute a chave para compreender a maneira pela qual a

ontologia se torna a ciecircncia responsaacutevel por esse tema (conforme Aristoacuteteles ldquoHaacute uma ciecircncia

que considera o ente enquanto ente e as propriedades que lhe competem enquanto talrdquo ID IBID)18

17 Τὸ δὲ λέγεται μὲν πολλαχῶς ἀλλὰ πρὸς ἓν καὶ μίαν τινὰ φύσις καὶ οὐχ ὁμωνύμως ἀλλrsquo (Metafiacutesica 1003a 30-

35) 18 Ἔστιν ἐπιστήμη τις ἧ τὸ ὄν ᾗ ὄν καὶ τὰ τούτῳ ὑπάρχοντα καθ αὑτό (Metafiacutesica 1003a 20)

60

Dentro desta ciecircncia o conceito central que unifica e determina ldquoenterdquo e ldquoserrdquo eacute

apresentado como οὐσία O conceito de οὐσία (substantia substacircncia) eacute bem desenvolvido nas

Categorias entre as expressotildees que natildeo satildeo compostas quais sejam a substacircncia mesma

quantidade qualidade relaccedilatildeo lugar tempo posiccedilatildeo estado accedilatildeo ou afecccedilatildeo Ela eacute

apresentada desde duas perspectivas uma primaacuteria outra secundaacuteria A substacircncia primeira

natildeo se afirma de um sujeito nem em um sujeito mas comporta as substacircncias segundas nas

quais a forma afirma a espeacutecie e o gecircnero (ldquoserrdquo do sujeito) comportando tambeacutem os acidentes

(ldquoserrdquo no sujeito) que a eles se atribui Embora o conceito em sua primeira formulaccedilatildeo

contemple o aspecto formal bem como o elemento inteligiacutevel envolve ainda o aspecto material

em seu segundo modo natildeo podendo ser um sem o outro

As consequecircncias do desenvolvimento de uma ciecircncia responsaacutevel pelo ente enquanto

ente centralizando o conceito de substacircncia e substantivando a ideia de ldquoserrdquo por meio de seu

particiacutepio presente ldquoenterdquo satildeo o que se pode considerar como o desenvolvimento da histoacuteria do

ldquoserrdquo ou a histoacuteria da maneira pela qual o Ocidente compreende o ldquoserrdquo e a si mesmo Por meio

desta postulaccedilatildeo o ldquoτὰ ὄνταrdquo eacute posicionado no centro do pensamento ocidental Mais ainda do

que uma simples constataccedilatildeo da maneira pelo qual coube ao Ocidente pensar curioso eacute

especular o fato de que se natildeo fosse possiacutevel pensar fora da delimitaccedilatildeo do ente natildeo haveria

sequer indagaccedilatildeo alguma sobre as limitaccedilotildees ou prejuiacutezos imbuiacutedos nesta formulaccedilatildeo Sem

embargo eacute possiacutevel constatar desde os recursos apresentados (e ainda por muitos outros

caminhos que natildeo este) a necessidade incontida do ser humano ocidental eacute desenhar de maneira

niacutetida as fronteiras do pensamento e da maneira pela qual esse pensamento deve e pode ser

aplicado Resta saber apoacutes esta delimitaccedilatildeo o que haacute para aleacutem da fronteira

61

2 O CAMINHO DA NEGATIVIDADE HENEOLOGIA E MEONTOLOGIA E A

ULTRAPASSAGEM DOS LIMITES DA METAFIacuteSICA

O discurso ontoloacutegico tanto grego quanto latino personificou a atividade filosoacutefica ocidental

em larga escala A maneira pela qual a ontologia habilitava ao raciociacutenio uma seacuterie de

procedimentos facilmente verificaacuteveis nutriu seguranccedila metodoloacutegica aos assuntos

concernentes aos problemas intelectuais com os quais o ser humano fatalmente se deparava ao

longo de suas especulaccedilotildees e que reverberavam ainda na conjuntura soacutecio-pragmaacutetica Eacute neste

sentido que teria afirmado Immanuel Kant de maneira perspicaz que a razatildeo humana se

defronta com inevitaacuteveis questotildees impostas por sua proacutepria natureza19 Tanto para Aristoacuteteles

quanto para Francisco Suaacuterez aleacutem de tantos outros entrementes a importacircncia de assegurar

uma linha de raciociacutenio vaacutelida natildeo somente atribuiacutea autoridade ao argumento como tambeacutem

provia de suficiente clareza a linguagem que advogava suas doutrinas Em outras palavras

tornava-se faacutecil convencer outrem de seus pressupostos dada a indefectiacutevel loacutegica empregada

para encadear as sentenccedilas e alcanccedilar uma conclusatildeo A ontologia por meio de suas loacutegicas de

identidade e natildeo-contradiccedilatildeo (e ateacute certo ponto tambeacutem via argumento do terceiro excluiacutedo)

visava alcanccedilar tanto para afirmaccedilatildeo quanto para negaccedilatildeo a dissoluccedilatildeo de todo e qualquer

paradoxo que colocasse a mente em estado de confusatildeo e discoacuterdia Independente daquilo que

estava sendo afirmado ou negado da linha de raciociacutenio ou doutrina em jogo os procedimentos

discursivos e intelectuais eram basicamente os mesmos com variaccedilotildees conceituais maiores ou

menores dependendo da vertente Todavia prosseguia-se sempre da mesma maneira

19 Kant afirma ldquoA razatildeo humana no seu gecircnio de seu conhecimento possui o peculiar destino de ser incomodada

por questotildees que natildeo pode evitar porque elas satildeo dadas pela natureza da razatildeo mesma mas tambeacutem natildeo possuem

respostas porque elas excedem a capacidade da razatildeo humanardquo (KANT 1956 5 Criacutetica da razatildeo pura AVII-

AVIII)

62

Contudo a despeito da supremacia ontoloacutegica outras formas de pensamento foram

desenvolvidas no decorrer da histoacuteria da filosofia fossem elas similares ou totalmente opostas

Alguns pensadores especialmente radicais se dedicaram a um modo reflexivo que se distanciava

consideravelmente da estrutura ontoloacutegica Suas bases seus pressupostos e seus meacutetodos pelos

quais prosseguiam no caminho especulativo dos temas propostos (muitas vezes os mesmos dos

formuladores da ontologia claacutessica) projetavam-se de maneira consideravelmente diversa Para

eles havia uma necessidade imperativa de incluir todos os elementos presentes na estrutura da

realidade pensada em sua maacutexima possibilidade de concepccedilatildeo tanto os que satildeo quanto os que

natildeo satildeo Ao que parece por este motivo Werner Beierwaltes considera que as caracteriacutesticas

pelas quais se configuram a ontologia claacutessica satildeo sobretudo frutos da interrogaccedilatildeo pelo nexo

da identidade e da diferenccedila quer seja na afirmaccedilatildeo parmeniacutedica da natildeo legitimaccedilatildeo filosoacutefica

da alteridade quer seja na resposta platocircnica do necessaacuterio estabelecimento da diferenccedila na

constituiccedilatildeo do ldquoserrdquo em seu inteiro (cf BEIERWALTES 1989 25) Para Beierwaltes o rigoroso

conceito de unidade demandado por Platatildeo em reposta agrave univocidade do ser de Parmecircnides

resultou na possibilidade de inclusatildeo do ldquonatildeo-serrdquo relativo ao ldquoserrdquo para afirmar sua totalidade

Disto derivaria a altercaccedilatildeo originaacuteria entre identidade e diferenccedila e nisto consiste a

possibilidade de desvio do pensamento ontoloacutegico20 Sem embargo precisamente neste ponto

que acredito poder encontrar o que chamo aqui de caminho da negatividade ou a possibilidade

de inclusatildeo do oxiacutemoro no caminho de pensamento delineado pela ontologia considerando que

ele se desdobra na tradiccedilatildeo do chamado neoplatonismo e ainda na miacutestica medieval

20 Trata-se da definiccedilatildeo do natildeo-ser como alteridade apresentada no Sofista Apoacutes a discussatildeo acerca da comunidade

de gecircneros e a questatildeo do ldquomesmordquo e do ldquooutrordquo que configuram o problema da identidade e da diferenccedila Platatildeo

apresenta a hipoacutetese de compreender o ldquomovimentordquo como ldquooutrordquo do ldquoserrdquo questionando a tese parmeniacutedica a

respeito da ldquoestaticidade do serrdquo Assim Platatildeo coloca a questatildeo ldquoDevemos trabalhar nossa coragem agora para

dizer que aquilo que lsquonatildeo eacutersquo definitivamente eacute algo que possui natureza proacutepria Devemos dizer que assim como

o grande era grande o belo era belo o natildeo grande eacute natildeo grande e o natildeo belo eacute natildeo belo da mesma maneira pela

qual natildeo eacute tambeacutem foi e eacute natildeo-ser e eacute uma das formas dentre as quais satildeordquo (PLATO 1997 282 Sofista 258 c-d)

A sequecircncia do diaacutelogo questionaraacute a realidade deste natildeo-ser relativo culminando na identidade entre pensamento

e discurso abrindo a possibilidade para o discurso falso (o do sofista) e introduzindo a assunccedilatildeo do paradoxo no

seio do pensamento representando o chamado parriciacutedio aos eleatas

63

Ateacute onde eacute possiacutevel investigar o termo neoplatonismo teria sido cunhado pela primeira

vez pelo helenista e medievalista Thomas Gale nos idos de 1670 Gale foi responsaacutevel por uma

seacuterie de estudos sobre o neoplatonismo pagatildeo e cristatildeo escrevendo sobre Plotino Jacircmblico

Joatildeo Escoto Eriuacutegena Maacuteximo Confessor entre outros21 Definiccedilotildees agrave parte os primeiros

elementos responsaacuteveis por delinearem um ldquoneoplatonismo originaacuteriordquo apenas tardiamente

nomeado satildeo atribuiacutedos a Amocircnio Sacas Contudo como a figura histoacuterica de Amocircnio Sacas

eacute tatildeo envolta em controveacutersias e misteacuterios quanto a vida de Pitaacutegoras ou Soacutecrates atribui-se

diretamente a fundaccedilatildeo de uma ldquoescola neoplatocircnicardquo a Plotino disciacutepulo de Amocircnio

Muacuteltiplos debates mais ou menos coerentes envolvem os relatos sobre a relaccedilatildeo entre Plotino e

Amocircnio aleacutem de polecircmicas acerca do proacuteprio Amocircnio22 Destaca-se apenas a autoridade dos

relatos de Porfiacuterio (em sua Vida de Plotino) nos quais se considera que o meacutetodo de pesquisa

aplicado por Plotino estava profundamente ligado ao de seu mestre O conteuacutedo dos discursos

de Plotino tambeacutem teria uma iacutentima relaccedilatildeo com as tentativas de Amocircnio de unificar os diversos

planos do ser e estabelecer a derivaccedilatildeo de todas as coisas a partir do uno23 Sem embargo

Plotino teria absorvido e desenvolvido a doutrina de Amocircnio e necessariamente de Platatildeo em

suas Eneacuteadas em um movimento de exegese ao discurso platocircnico Exegese esta suscetiacutevel de

diversas interpretaccedilotildees dos caminhos por Plotino tomados e mesmo natildeo muito consensual entre

os estudiosos da obra24

21 Extraiacute estes dados de Aaron W Huges em um trabalho intitulado ldquoMedievalrdquo and the Politics of Nostalgia

Ideology Scholarship and the Creation of the Rational Jew (2012) Huges natildeo apenas investiga as origens das

designaccedilotildees do neoplatonismo mas ainda constata que a alcunha de ldquoneoplatocircnicosrdquo continuou sendo utilizada

por eruditos alematildees no seacuteculo dezenove como uma menccedilatildeo pejorativa aos ldquofalsificadoresrdquo das doutrinas de Platatildeo

e Aristoacuteteles (cf HUGES 2012) 22 Conforme Giovanni Reale em sua Storia della filosofia antica (1975-1980) Sobre este ponto especificamente

acerca das incertezas em torno agrave figura de Amocircnio confira REALE 2008 5-13 23 Esta consideraccedilatildeo eacute apresentada por Giovanni Reale com base nos relatos de Nemeacutesio em De natura hominis

(cf REALE 2008 11) Conforme Francisco B Harriet a questatildeo fundamental se encontraria na foacutermula ldquoestaacute mais

aleacutem do intelecto e da essecircnciardquo (ἐπέκεινα νοῦϛ καὶ οὐσίας) conforme a formulaccedilatildeo de Oriacutegenes de Alexandria

em Contra Celsum (fons ex quo initium totius intellectualis naturae uel mentir est) presente em Plotino (Eneacuteadas

V 1 8 e VI 8 16) e derivada do ciacuterculo de Amocircnio (cf HARRIET 2012 153) 24 Sobre a questatildeo da exegese Marcus Reis Pinheiro (em Plotino exegeta de Platatildeo e Parmecircnides 2007)

argumenta que natildeo se pode reduzir a exegeacutetica agrave mera interpretaccedilatildeo dos diaacutelogos de Platatildeo e outros escritos Trata-

se antes do desdobramento de um discurso muito antigo onde ldquo() fazer exegese () natildeo eacute interpretar

objetivamente os textos mas caminhar rumo aos niacuteveis superiores junto com os antigosrdquo (P INHEIRO 2007 80)

64

Neste fluxo talvez o mais cabiacutevel usual e conhecido de todos os estabelecimentos de

um ldquoponto de partidardquo seja o do claacutessico artigo Jean Trouillard Le Parmeacutenide de Platon et son

interpretation neacuteoplatonicienne (1973) onde o neoplatonismo eacute pensado desde a busca da

doutrina originaacuteria de Platatildeo principalmente a partir de uma releitura de seu diaacutelogo

Parmecircnides Todavia a maneira pela qual eacute possiacutevel explanar esta releitura levanta suspeitas

sendo necessaacuterio ponderar em quais formas a exegese plotiniana converge ou diverge das

tentativas de uma interpretaccedilatildeo das doutrinas originaacuterias de Platatildeo Mais ainda estaacute tambeacutem

em jogo a autoridade de apontar que existam de fato doutrinas originaacuterias havendo ainda

abertura para questionar a fiabilidade e o suposto peso das chamadas ldquodoutrinas natildeo-escritasrdquo25

Seja como for interessa sobretudo destacar como com as Eneacuteadas de Plotino o pensamento

filosoacutefico experimenta um movimento iacutempar em relaccedilatildeo agravequilo que vinha sendo apresentado

Para Ciacutecero Cunha Bezerra eacute possiacutevel elencar alguns pontos que evidenciam de maneira

clara a renovaccedilatildeo do neoplatonismo Destaca-se em primeiro lugar a junccedilatildeo entre os elementos

aristoteacutelicos e pitagoacutericos em siacutentese com uma perfeita sintonia entre o platonismo acadecircmico

e as ldquodoutrinas natildeo-escritasrdquo Ademais a ldquohierarquizaccedilatildeordquo do real a partir da qual todos os

graus satildeo derivados desde o uno permite uma sistematizaccedilatildeo do platonismo anterior Por este

motivo tende-se agrave leitura conforme a qual o neoplatonismo possuiria um sistema ldquomonopolarrdquo

frente a um suposto ldquobipolarismordquo platocircnico Por fim haacute ldquo() o fim uacuteltimo do processo de

conhecimento que para o neoplatocircnico eacute a uniatildeo plena com Deus (fugir soacute ao soacute) uma uniatildeo

que tem como marca a supressatildeo (aphaiacuteresis) de todo saber e dizerrdquo (BEZERRA 2006 57)

Dentre os pontos apresentados interessa-me particularmente o uacuteltimo (evidente consequecircncia

dos trecircs primeiros) no qual o neoplatonismo aparece como uma ldquosupressatildeo de todo saber e

dizerrdquo

25 Haacute uma interessante e profunda discussatildeo acerca do tema na tradiccedilatildeo de leitores e inteacuterpretes do platonismo e

do neoplatonismo a respeito deste toacutepico Ciacutecero Cunha Bezerra (em Compreender Plotino e Proclo 2006) aborda

o tema abrindo uma interlocuccedilatildeo com a obra Platone alla ricerca della spienza segreta de Giovanni Reale e ainda

com as investigaccedilotildees de W K C Guthrie e a chamada Escola de Tuumlbingen (cf BEZERRA 200617-24)

65

O senso comum ocidental regula a atividade filosoacutefica como um progresso ininterrupto

rumo ao acuacutemulo de conhecimento e dissoluccedilatildeo dos problemas Curioso agora eacute pensar a

maneira pela qual uma doutrina filosoacutefica pode suprimir o saber e o dizer ao inveacutes de

acrescentar Mas eacute apenas possiacutevel atingir a compreensatildeo necessaacuteria desta supressatildeo uma vez

esclarecido o que eacute propriamente o princiacutepio negativo do pensamento de Plotino Para isto natildeo

se pode perder de vista as duas questotildees que levariam agrave construccedilatildeo do pensamento de Plotino

quais sejam ldquo() o problema religioso (que corresponde agrave busca de compreensatildeo do destino

da alma assim como sua restauraccedilatildeo) e o problema filosoacutefico relativo agrave explicaccedilatildeo racional da

realidade ()rdquo (IDEM IBIDEM 66)26 ponderando ainda que em Plotino ambas estatildeo perfeitamente

inter-relacionadas Para atingir este entendimento todavia eacute necessaacuterio analisar as chamadas

trecircs hipoacutestases de Plotino presentes em suas Eneacuteadas

O conjunto de circunstacircncia que acompanham a formulaccedilatildeo do pensamento de Plotino

eacute todavia aquele anteriormente citado apresentado por Werner Beierwaltes que remete agrave

contenda entre Parmecircnides e Platatildeo Contextualizar a disputa Parmecircnides-Platatildeo da qual

derivam centralmente as hipoacutestases de Plotino natildeo eacute necessariamente complicado embora

interpretaacute-la e desde aiacute desdobrar um novo caminho reflexivo seja uma tarefa bastante

trabalhosa A demanda especulativa eacute altiacutessima e envolve uma bibliografia excessivamente

extensa e complexa Contudo como o interesse aqui eacute a apresentaccedilatildeo dos aspectos centrais do

pensamento de Plotino e como deles redunda uma nova postura e atitude filosoacuteficas o trabalho

fica menos penoso Portanto para colocar em relevo as hipoacutestases de Plotino eacute importante ao

menos demonstrar de forma simples os pontos originais dos quais elas derivam seja em

Parmecircnides seja em Platatildeo (e ateacute certo ponto tambeacutem no neopitagorismo e em Aristoacuteteles

embora esta tarefa exija um pouco mais e seja um pouco mais complicada de rastrear) Para

alcanccedilar este objetivo torna-se imperioso retornar brevemente a Parmecircnides

26 Esta hipoacutetese eacute destacada por Bezerra diretamente da obra de Eacutemile Breacutehier La Philosophie de Plotin (1928)

66

O segundo fragmento do poema Sobre a Natureza de Parmecircnides catalisa os principais

argumentos do conflito permitindo compreender quais satildeo os pontos mais problemaacuteticos do

estabelecimento de sua doutrina na tradiccedilatildeo Aleacutem da Fiacutesica de Simpliacutecio as fontes pelas quais

se estruturou esse fragmento adveacutem dos Comentaacuterios ao Timeu e Comentaacuterios ao Parmecircnides

de Proclo Os oito versos contidos no fragmento centralizam a doutrina de Parmecircnides como

foi herdada pela tradiccedilatildeo a partir da manifestaccedilatildeo das duas uacutenicas vias possiacuteveis para o

pensamento quais sejam a via da verdade e a via da aparecircncia O fragmento diz

εἰ δ᾽ ἄγ᾽ ἐρὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας

αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι

ἡ μέν ὄπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι

πειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ)

ἡ δ᾽ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι

τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν

οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐόν (οὐ γὰρ ἀνυστόν)

οὔτε φράσαις

(KIRK E RAVEN 1957 269)

Pois bem agora vou eu falar e tu presta atenccedilatildeo ouvindo a palavra

acerca das uacutenicas vias de questionamento que satildeo a pensar

uma para o que eacute e como tal natildeo eacute para natildeo ser

eacute o caminho de persuasatildeo ndash pois Verdade o segue ndash

outra para o que natildeo eacute e como tal eacute preciso natildeo ser

esta via indico-te que eacute uma trilha inteiramente inviaacutevel

pois nem ao menos se reconheceria o natildeo ente pois natildeo eacute realizaacutevel

nem tampouco se mostraria

(Traduccedilatildeo de Fernando Santoro cf PARMEcircNIDES 200612)

67

O caminho da verdade que eacute e natildeo eacute para natildeo ser (ἡ μέν ὄπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ

εἶναι) e o caminho da aparecircncia que natildeo eacute e natildeo pode ser (ἡ δ᾽ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών

ἐστι μὴ εἶναι) satildeo via de regra estabelecidos como a manifestaccedilatildeo maacutexima da loacutegica ocidental

e berccedilo dos princiacutepios de identidade e natildeo-contradiccedilatildeo A partir deles eacute possiacutevel natildeo soacute

estabelecer uma identidade (o ser eacute representada pela claacutessica foacutermula A=A) como ainda

verificar a veracidade dessa mesma identidade ndash natildeo eacute possiacutevel que o ser sendo natildeo seja

ilustrado pela foacutermula not (A ˄ notA) um tanto esdruacutexula sem duacutevidas27

O legado de Parmecircnides eacute marcado em sua difusatildeo pelos chamados ldquofiloacutesofos eleatasrdquo

sobretudo por Zenatildeo de Eleacuteia Seus argumentos contra a pluralidade (cf KIRK E RAVEN OP CIT

288-291) e contra o movimento (cf IDEM IBIDEM 291-297) se tornaram assaz populares

sobretudo no que concerne aos paradoxos da flecha no estaacutedio e de Aquiles e a tartaruga Aleacutem

da constataccedilatildeo da univocidade do ser presente em toda linha de pensamento parmeniacutedica28 O

resultado imediato dos exerciacutecios de raciociacutenio de Zenatildeo demonstraram a formataccedilatildeo de uma

estaticidade do ser e da realidade em torno alertando para a ilusatildeo do movimento e alteraccedilotildees

na substacircncia do real O momento no qual Platatildeo compotildee seu diaacutelogo Parmecircnides retrata

justamente o evento no qual tanto Parmecircnides quanto Zenatildeo estatildeo no aacutepice da divulgaccedilatildeo de

sua doutrina dialogando com um ainda jovem Soacutecrates Trata-se de um dos momentos mais

emblemaacuteticos da histoacuteria da filosofia ocidental

27 Haacute uma discussatildeo em torno a uma suposta terceira via aquela na qual o que ldquoeacuterdquo eacute e natildeo eacute ao mesmo tempo

baseada no sexto fragmento onde se lecirc ldquoοἶς τὸ πέλειν τε καὶ οὐκ ταῦτὸν νενόμισταιrdquo (KIRK E RAVEN OP CIT 271)

Embora ainda em um sentido pejorativo de uma via do engano emerge a possibilidade de que algo seja e natildeo seja

Mesmo que natildeo seja profiacutecuo para o andamento da tese se fixar na discussatildeo vale ao menos citaacute-la sobretudo

ponderando os apontamentos feitos por Jean Beaufret acerca da interpretaccedilatildeo de Martin Heidegger da terceira via

como a via dos entes Ao que cabe no propoacutesito do trabalho basta apenas atentar para como a tensatildeo entre as duas

primeiras vias jaacute foram suficientes para levantar controveacutersias Eacute possiacutevel especular ainda que jaacute na primeira via

aparece tambeacutem uma possibilidade de que o ser seja e natildeo seja quando se afirma que ele ldquoeacute e natildeo eacute para natildeo serrdquo

Seria possiacutevel conectar o ldquonatildeo eacuterdquo da sentenccedila como o natildeo-ser relativo necessaacuterio agrave constituiccedilatildeo da inteireza do

ser como argumentado no Sofista de Platatildeo 28 O que significa afirmar que natildeo existem ldquograusrdquo do ser uma coisa ou eacute real (ser) ou irreal (nada) (cf BEZERRA

2003 47)

68

As chamadas ldquotrecircs hipoacutetesesrdquo do Parmecircnides de Platatildeo satildeo apresentadas

respectivamente nas passagens 137c-142a 142b-157a e 157b-159a Elas constituem a mateacuteria

bruta para a elaboraccedilatildeo das trecircs hipoacutestases de Plotino Todas as trecircs hipoacuteteses de Platatildeo satildeo

apresentadas pela personagem do entatildeo velho Parmecircnides arguindo Soacutecrates a respeito da

viabilidade de cada argumento Elas se apresentam ainda a partir do problema constituiacutedo pela

questatildeo da unidade e da multiplicidade A pulsatildeo do jovem Soacutecrates ao inquirir Parmecircnides a

respeito de sua teoria fazendo-o apresentar as trecircs hipoacuteteses parte da colocaccedilatildeo de Parmecircnides

a respeito da assunccedilatildeo da multiplicidade por um lado e da impossibilidade do muacuteltiplo por

outro Parmecircnides eacute levado pelo jovem Soacutecrates a confirmar natildeo apenas sua teoria mas sua

metodologia e plano doutrinaacuterio

Para confrontar a teoria parmeniacutedica Platatildeo desenvolve a primeira hipoacutetese Ela

consiste basicamente na afirmaccedilatildeo de o que o ldquouno eacute unordquo ou seja se haacute uno natildeo eacute possiacutevel

que o uno seja muacuteltiplo Por este motivo ele natildeo pode conter partes nem tampouco ser um

inteiro (composto por partes) Tambeacutem natildeo pode ter um comeccedilo nem um meio nem um fim

natildeo possuindo nada que o limite ou delimite Tampouco pode possuir um formato nem se

encontrar em lugar algum nem estar se movimentando de um lugar para outro (porque entatildeo

assumir-se-ia algo outro que natildeo o uno pelo qual ele se movimenta) e nem em si mesmo

(porque com isto se movimentaria entre suas partes que por definiccedilatildeo natildeo pode conter) Natildeo

pode ainda ser diferente de si mesmo nem o mesmo que si mesmo porque assumindo sua

diferenccedila se assumiria algo outro que natildeo o uno ndash e assumindo sua identidade se assumiria que

haacute algo a saber a proacutepria identidade predicada do uno e que natildeo eacute o uno Natildeo pode tambeacutem

estar no tempo nem ter surgido em momento algum Por fim o uno natildeo pode possuir um nome

ou seja eacute inominaacutevel natildeo podendo ser objeto de opiniatildeo nem conhecimento nem percepccedilatildeo

caso contraacuterio assumir-se-ia um ser ou essecircncia distintos do uno pelo qual se alcanccedila seu

entendimento

69

Necessariamente a primeira hipoacutetese leva a uma outra questatildeo ou ao levantamento de

uma segunda hipoacutetese qual seja o uno eacute e quais satildeo as consequecircncias disto para ele mesmo

Essa hipoacutetese eacute consideravelmente mais complicada e envolve algumas nuances bastante

delicadas O argumento geral se concentra na ideia de que a proposiccedilatildeo uno eacute envolve

necessariamente a ideia de essecircncia do uno O grande problema em afirmar que o uno participa

da essecircncia de uno eacute justamente estabelecer a diferenccedila entre uma coisa e outra ou seja torna-

se inevitaacutevel afirmar que existem duas coisas a saber o uno e a essecircncia do uno O embargo

consiste na simples afirmaccedilatildeo uno eacute em contraposiccedilatildeo agrave afirmaccedilatildeo uno uno Logo desdobram-

se dois unos um uno que eacute e um uno e o ser O primeiro como afirmaccedilatildeo do proacuteprio uno o

segundo como assunccedilatildeo da participaccedilatildeo dele mesmo em sua essecircncia A reaccedilatildeo imediata agrave

afirmaccedilatildeo de que o uno eacute caminha em sentido contraacuterio das negaccedilotildees da primeira hipoacutetese

Sem embargo jaacute neste momento mesmo antes da apresentaccedilatildeo da terceira hipoacutetese

torna-se possiacutevel fazer algumas consideraccedilotildees Em primeiro lugar a hipoacutetese de que o ldquouno eacute

unordquo a despeito da aplicaccedilatildeo da categoria do ser para a predicaccedilatildeo da sentenccedila direciona o

pensamento para um caminho no qual natildeo haacute outra possibilidade senatildeo a completa negaccedilatildeo de

tudo que possivelmente competiria ao uno levando mesmo agrave dissoluccedilatildeo do eacute presente na frase

Em segundo lugar a hipoacutetese de que o ldquouno eacuterdquo desta vez com ecircnfase no eacute gera o movimento

oposto de afirmaccedilatildeo de tudo o que porventura poderia ser predicado de qualquer elemento

Estas duas hipoacuteteses (como se veraacute na apresentaccedilatildeo das hipoacutestases de Plotino)

discriminam perfeitamente as duas vias aqui cogitadas quais sejam uma via afirmativa da

ontologia claacutessica na afirmaccedilatildeo das coisas por meio da qual percebe-se compreende-se e se

faz ciecircncia e uma via negativa do que seraacute ulteriormente nomeada henologia na qual a maacutexima

especulaccedilatildeo acerca da natureza do uno natildeo leva senatildeo agrave negaccedilatildeo absoluta ndash as caracteriacutesticas

desta negaccedilatildeo ou negatividade ver-se-aacute mais claramente nas Eneacuteadas

70

A terceira hipoacutetese do Parmecircnides de Platatildeo eacute apresentada no diaacutelogo muito brevemente

Ela abarca ambos os aspectos centrais das duas primeiras hipoacuteteses sugerindo que o uno eacute e

natildeo eacute imputando a categoria de mudanccedila em sua natureza Trata-se de diagnosticar o fato de

que sendo o uno uno por um lado e muacuteltiplo por outro participa e natildeo participa de sua

essecircncia vem a ser e deixa de ser ponderando ainda que esta mudanccedila se daacute no instante Sendo

assim tanto o movimento de retorno ao uno quanto o movimento de procedecircncia a partir do

uno daacute-se ao mesmo tempo em uma reciprocidade na qual tanto a geraccedilatildeo da multiplicidade

configura o uno nem como uno nem como muacuteltiplo quanto a reuniatildeo da multiplicidade ao

uno tampouco configura o uno nem como uno nem como muacuteltiplo ndash como se a proacutepria ideia

de uno flutuasse em um ldquoinstante incapturaacutevelrdquo

Natildeo haacute duacutevida que o raciociacutenio apresentado por Platatildeo constitui um dos maiores

desafios especulativos da histoacuteria do pensamento ocidental seja nos esforccedilos empreendidos

pela loacutegica de compreensatildeo seja pelo desafio meditativo aflorado da temaacutetica proposta Neste

contexto Marcus Reis Pinheiro indica a interpretaccedilatildeo de Jean-Luc Brisson (Annexe I Les

interpretation du Parmeacutenide dans lrsquoAntiquiteacute presente na ediccedilatildeo Parmenide Paris Flamarion

1999) conforme a qual ldquo() Plotino estaacute no grupo dos inteacuterpretes do diaacutelogo que natildeo o vecirc

apenas como um exerciacutecio loacutegico mas que procura determinar a que tipo de objeto se refere o

diaacutelogordquo (PINHEIRO 2006 3) Seguindo esta linha de raciociacutenio o importante seria portanto

compreender como Plotino absorve a temaacutetica Considerar uma interpretaccedilatildeo para aleacutem da mera

concatenaccedilatildeo loacutegica de conceitos eacute basicamente absorver o sentido de cada termo Isto significa

natildeo apenas expor as formataccedilotildees daquilo que foi introduzido no discurso como ldquounordquo mas

ainda entender de que forma a simples possibilidade de concebecirc-lo no raciociacutenio implica em

uma reduccedilatildeo draacutestica das estruturas hieraacuterquicas do real ou seja constitui uma compreensatildeo

da realidade que possui como primeiro princiacutepio algo que coloca o pensamento em um niacutevel de

paradoxo que necessariamente denota a assunccedilatildeo de uma impossibilidade loacutegica

71

As trecircs hipoacutestases de Plotino seratildeo teoricamente encadeadas de maneira semelhante agraves

hipoacuteteses de Platatildeo embora natildeo sequencialmente Contudo a primeira (e talvez a mais

complexa) jaacute iniciaraacute o movimento de negatividade em direccedilatildeo agraves seguintes estabelecendo os

conflitos presentes na ideia de uno (τὸ ἑν) Plotino considera que ldquoO Uno eacute todas as coisas e

nenhuma delas a fonte para todas as coisas eacute nenhuma das coisas e ainda eacute todas as coisas em

um sentido transcendental ndash todas as coisas para assim dizer tendo seu retorno agrave isto ()rdquo

(PLOTINUS 1969 380 Eneacuteadas V 2 1) Ele ainda assevera a inefabilidade inerente ao uno

conforme a qual todo discurso eacute jaacute sempre indireto e impreciso Apenas mediante referecircncias

como ldquotodas as coisas e nenhuma delasrdquo torna-se possiacutevel acenar para o uno ndash e apenas isto

acenar Entretanto esta eacute para Plotino a uacutenica maneira de compreender a estrutura da realidade

como tal pelo simples motivo de que ldquoEacute precisamente porque haacute nada no Uno que todas as

coisas derivam dele para que o Ser possa ser trazido a fonte natildeo pode ser o Ser mesmo mas o

gerador do Ser ()rdquo (IDEM IBIDEM) que natildeo pode possuir a natureza do ser mas deve se constituir

como outro dele qual seja natildeo-ser ou mesmo nada Plotino prossegue ainda dizendo

ldquoBuscando nada possuindo nada faltando nada o Uno eacute perfeito e em nossa metaacutefora

transborda e sua exuberacircncia produz o novo este produto torna-se novamente seu progenitor

e eacute preenchido e se torna seu contemplador e Princiacutepio-Intelectualrdquo (ID IBID) A passagem

altamente especulativa denota que tudo eacute contemplaccedilatildeo dotada de uma atividade suprema que

comeccedila pelo uno e retorna a ele no simples olhar que natildeo implica nem em complexidade nem

em necessidade29 Mediante uma reflexatildeo propriamente loacutegica a contemplaccedilatildeo por meio da

qual o uno se desdobra e gera todas as coisas se daacute devido a sua proacutepria perfeiccedilatildeo ou seja o

uno natildeo eacute coisa nenhuma e necessariamente engendra todas as coisas porque eacute completo

porque eacute a totalidade de tudo e para isto eacute necessaacuterio que seja ele mesmo e ainda outro de si

29 Estes apontamentos satildeo de John Bussanich que ainda explica que ldquo() a doutrina plotiniana da derivaccedilatildeo do

Uno eacute lsquoprocessatildeorsquo o adjetivo que melhor qualifica isto eacute lsquocontemplativorsquo o movimento no qual a hipoacutestase eacute

gerada coincide com a contemplaccedilatildeo De fato o ponto cardial a chave para a estrutura da processatildeo da metafiacutesica

plotiniana era contemplaccedilatildeo ou theocircriardquo (BUSSANICH 1999 32)

72

Ciacutecero Cunha Bezerra apresenta a organizaccedilatildeo feita por Pierre Aubenque30 conforme a

qual haveriam trecircs esferas argumentativas no desenvolvimento da primeira hipoacutestase uma

loacutegica outra epistemoloacutegica e uma metafiacutesica Bezerra cita uma das passagens mais conhecidas

de Plotino que diz ldquoPrivado de unidade uma coisa cessa de ser aquilo pelo qual eacute chamada

um exeacutercito natildeo eacute um exeacutercito se natildeo eacute uno um coro um rebanho devem ser uma coisa soacuterdquo

(ID IBID 612 VI 9 1) sobretudo para enfatizar o aspecto loacutegico pelo qual Plotino ldquosubverterdquo

a resposta aristoteacutelica da entidade da coisa pela definiccedilatildeo substancial Bezerra argumenta

dizendo que ldquo() Plotino por uma exigecircncia loacutegica jaacute que o princiacutepio originaacuterio natildeo pode

possuir qualquer caraacuteter dos seres relativiza a ontologia e estabelece a henologia como

fundamento de todo serrdquo (BEZERRA OP CIT 67) O problema epistemoloacutegico sobressalta a

ultrapassagem necessaacuteria de todo conhecimento para alcanccedilar tal niacutevel de especulaccedilatildeo ao passo

que a questatildeo metafiacutesica retorna aos trechos anteriormente citados no qual a geraccedilatildeo de todas

as coisas soacute pode derivar de coisa nenhuma

O emprego do termo henologia define aqui o primeiro passo para o caminho da

negatividade Institui-se como negativo o princiacutepio que jaacute natildeo mais decorre de um rendimento

ldquopositivordquo por meio do qual se pode construir um conhecimento soacutelido e confiaacutevel mas uma

base que possui caracteriacutesticas muito diversas e que desafiam a capacidade loacutegica Por este

motivo a primeira demanda eacute jaacute a superaccedilatildeo intelectual (ἐπέκεινα νοῦϛ καὶ οὐσίας) que deve

assumir que o comeccedilo de todas as coisas eacute incoacutegnito O discurso eacute indireto e metafoacuterico porque

somente assim eacute possiacutevel indicar sua possibilidade de ser pensado ndash entendendo principalmente

que o ldquoser pensadordquo natildeo indica nem conota existecircncia porque o ser e a existecircncia mesmo satildeo

ainda posteriores agrave ideia de uno As segunda e terceira hipoacutestases portanto natildeo podem ser

concebidas se de antematildeo natildeo for assumida a negatividade do primeiro princiacutepio

30 Pierre Aubenque ldquoPlotin et le deacutepassement de lrsquoontologie grecque classiquerdquo Colloque des Royaumont Le

Neacuteoplatonisme Paris Centre National de Recherche Scientifique 1971 101-110

73

Somente por meio da completude da pensamento henoloacutegico de Plotino fica possiacutevel

deixar claro os termos pelos quais se destaca a negatividade como ldquosupressatildeo de todo saber e

dizerrdquo Os motivos contudo jaacute satildeo bastante evidentes se levado em consideraccedilatildeo que a

inefabilidade do uno indica que sobre ele natildeo se pode falar e ele natildeo se pode conhecer Portanto

o neoplatonismo necessariamente parte do pressuposto de que o ponto de partida e o ponto de

chegada do pensamento satildeo ambos uma caminhada rumo agrave supressatildeo Ao explicar a processatildeo

por meio da qual o uno engendra todas as coisas destaca-se uma consideraccedilatildeo importante se

os seres engendram o eternamente perfeito engendra eternamente algo inferior a si mesmo por

isto mesmo ldquoEacute preciso observar que a processatildeo plotiniana implica necessariamente uma

negaccedilatildeo A negaccedilatildeo eacute uma condiccedilatildeo a priori no sentido de que o engendrado deve assimilar-se

ao seu gerador mas mantendo uma resistecircncia que diferencia um do outrordquo (IDEM IBIDEM 74)

Em outras palavras a geraccedilatildeo do uno e a abertura da segunda hipoacutestase soacute eacute possiacutevel por meio

da introduccedilatildeo da diferenccedila A diferenccedila eacute o que aqui constitui o passo fundamental da sequecircncia

do pensamento neoplatocircnico O ser eacute na medida em que eacute diferente do uno e por ele eacute

engendrado justamente porque apenas a diferenccedila pode advir do eternamente perfeito

Assim sendo resta saber como o uno engendra e o quecirc ele engendra O que significa

ainda resgatar a pergunta anteriormente colocada por Parmecircnides e Platatildeo como do uno

provem o muacuteltiplo Esta questatildeo eacute sem sombra de duacutevidas uma das mais complexas do sistema

neoplatocircnico em geral A ideia de processatildeo (πρόοδος) pressupotildee uma emanaccedilatildeo a partir do

uno na qual todas as outras coisas satildeo engendradas o que significa dizer que se trata de um

movimento que abarca a realidade em toda sua estrutura na qual ldquo() difere completamente de

um mecanicismo dado que estaacute mais aleacutem de toda contingecircncia e necessidade Nesse sentido

natildeo se pode dizer que se trata de algo que implique um livre-arbiacutetrio ou uma produccedilatildeo artesanalrdquo

(ID IBID 76) Ou seja o uno natildeo necessita de nada e por isto mesmo daacute origem a tudo A

espontaneidade (se eacute que se pode utilizar tal termo) eacute natural e natildeo possui um motor

74

Ao mesmo tempo tudo aquilo que eacute gerado pelo uno possui um poder de conversatildeo

(επιστροφή) um voltar-se sobre si mesmo e voltar-se em direccedilatildeo ao uno (cf ID IBID 76)

movimentada pelo autoconhecimento daquilo que eacute Este autoconhecimento soacute eacute possiacutevel

todavia pelo proacuteprio movimento de emanaccedilatildeo conforme o qual se identifica ldquoserrdquo e

ldquopensamentordquo como havia postulado Parmecircnides e eacute justamente este o momento no qual

emerge a segunda hipoacutestase qual seja a inteligecircncia (νοῦϛ)

As caracteriacutesticas pelas quais a inteligecircncia se mostra desde a compreensatildeo da processatildeo

satildeo a chave para o sentido da filosofia de Plotino Sobre isto Thomas Alexander Szlezaacutek

escreve ldquoNatildeo persegue o Uno com esforccedilo deliberado mas espera tranquilamente ateacute que ele

apreccedila Assim a alma soacute recebe unicamente o Uno eacute uma volta do lsquosolitaacuterio para o solitaacuteriorsquordquo

(SZLEZAacuteK 2010 11) acrescentando ainda que ldquoO caminho que conduz ao Uno natildeo passa poreacutem

pela praacutetica asceacutetica de um anacoreta mas pela apropriaccedilatildeo conceitual do mundo inteligiacutevel

()rdquo (IDEM IBIDEM) Os termos inteligecircncia e inteligiacutevel referem-se aqui a uma definiccedilatildeo

particular que compreende o nuacutecleo da segunda hipoacutestase Bezerra escreve acerca deste ponto

ldquoPlotino no tratado oitavo da terceira Eneacuteada define a Inteligecircncia natildeo como uma coisa

particular mas como algo universal e muacuteltiplordquo (BEZERRA OP CIT 78) explicando que eacute

ldquoUniversal porque abarca todos os seres e muacuteltiplo porque coexistem em sua natureza

simultaneamente o inteligente (Inteligecircncia) e o inteligiacutevel (ser) ()rdquo (IDEM IBIDEM) Plotino

encadeia seu raciociacutenio elucidando como o Princiacutepio-Intelectual eacute universal e iniacutecio de todas as

coisas de maneira que ldquo() assim todas as coisas e o Princiacutepio de tudo deve ser tal que cada

parte dele seja universal eacute todas coisas do contraacuterio conteria partes que natildeo satildeo o Princiacutepio-

Intelectualrdquo (PLOTINUS OP CIT 246 Eneadas III 8 8) Conclui a partir de entatildeo que ldquo() este

Ser eacute ilimitado e que em tudo que flui dele natildeo haacute reduccedilatildeo nem em sua emanaccedilatildeo desde que eacute

o universo inteiro nem em si mesmo o ponto de partida desde que natildeo haacute reuniatildeo de partes

()rdquo (IDEM IBIDEM 246-247) Fica claro o caraacuteter ascendente e natildeo descendente da processatildeo

75

Plotino explica que ldquo() um ser desta natureza natildeo eacute existecircncia primaacuteria deve existir a

partir daquilo do qual transcende o Ser (o Absoluto) ()rdquo (ID IBID 247) e prossegue dizendo

que ldquo() Pluralidade eacute mais tardia que Unidade O Princiacutepio-Intelectual eacute um nuacutemero (=a

expressatildeo de uma pluralidade) e o nuacutemero deriva da unidade a fonte de um nuacutemero como este

deve ser o autecircntico Unordquo (ID IBID) A transcendecircncia que evidencia o caraacuteter progressivo

pode ainda ser entendida desde a ideia de que ldquo() ao contemplar-se a si mesmo a Inteligecircncia

se une ao objeto contemplando uma unidade entre o eu e o ser universal que supera toda

alteridade ()rdquo (BEZERRA OP CIT 79) Com isto eacute possiacutevel resgatar ainda o sentido pelo qual

Beierwaltes destaca a diferenccedila como princiacutepio pelo qual haacute um desvio de Plotino em relaccedilatildeo

agrave ontologia claacutessica (cf BEIERWALTES OP CIT 58) Contudo como se compreende esta

contemplaccedilatildeo eacute o que levaraacute agrave terceira hipoacutestase a alma (ψυχή) Bezerra explica recapitulando

os passos anteriores ldquoVimos anteriormente que o Uno e o Muacuteltiplo apresentam-se sob duas

maneiras distintas a) Uno e natildeo muacuteltiplo (I hipoacutetese) b) Uno-Muacuteltiplo (II hipoacutetese) A alma eacute

portanto ao mesmo tempo uno e muacuteltiplordquo (BEZERRA OP CIT 82) o que significa evidenciar

que ela representa uma distinccedilatildeo radical e afastamento do primeiro princiacutepio o uno

Ainda no oitavo tratado da terceira Eneacuteada Plotino aborda a natureza enquanto ato

criador compreendendo o fenocircmeno a partir de uma tensatildeo entre um Princiacutepio-Racional inerte

e um Princiacutepio-Natural em movimento (cf PLOTINUS OP CIT 239-240 Eneadas III 8 2) que

responderia ainda ao conflito entre unidade e multiplicidade e ainda agrave questatildeo entre tempo e

eternidade Plotino indaga como a natureza responderia ao questionamento colocando

literalmente o argumento na fala da natureza que diria que ldquoOs matemaacuteticos desde suas visotildees

desenham suas figuras mas eu desenho nada eu contemplo as figuras do material do mundo

tomando os seres como eu os sinto desde minha contemplaccedilatildeordquo (IDEM IBDEM 241) chegando a

conclusatildeo de que ldquo() o que noacutes conhecemos por Natureza eacute uma Alma cria de uma Alma

ainda anterior () uma visatildeo interna de si mesmardquo (ID IBID)

76

A visatildeo interna de si mesma mencionada por Plotino prove o entendimento de que ldquoA

alma portanto autodetermina-se e ao mesmo tempo autofragmenta-se pois ao separar-se do

todo volta-se maravilhada para o particularrdquo (BEZERRA OP CIT 84) Disto adveacutem a geraccedilatildeo do

tempo como desordem introduzida no equiliacutebrio primordial e ao mesmo tempo a introduccedilatildeo

de uma ordenaccedilatildeo mediada pela conversatildeo (επιστροφή) ndash pelo retorno maravilhado ao uno ou

uniatildeo ao fundamento por meio da contemplaccedilatildeo

Agora bem toda esta inevitaacutevel breve introduccedilatildeo ao pensamento de Plotino deve

direcionar para uma postura distinta daquela antes observada com a ontologia claacutessica e o

pensamento metafiacutesico Que postura eacute esta Ou melhor qual o caminho que se abre a partir das

trecircs hipoacutestases plotinianas Este eacute o momento no qual o caminho da negatividade comeccedila a se

encorpar e mostrar seu caraacuteter decisivo na constituiccedilatildeo do desvio intelectual do neoplatonismo

Gostaria de fazer um recorte especiacutefico do nono tratado da sexta Eneacuteada para alcanccedilar este

esclarecimento

Plotino reconstitui seu caminho a partir da afirmaccedilatildeo ldquoEacute em virtude da unidade que os

seres satildeo seresrdquo (PLOTINUS OP CIT 614 Eneadas VI 9 1) O que significa afirmar que sem a

unidade natildeo se pode considera que algo seja o que seja Em termos mais simples se nomeio

braccedilo pernas cabeccedila razatildeo sensibilidade entre outras muacuteltiplas singularidades presentes em

um ser humano mas natildeo as congrego em uma unidade pela qual afirmo ldquoser humanordquo que

compreende todas as particulares em questatildeo inexoravelmente perco de vista seu sentido Por

isto ldquoQualquer coisa que possa ser descrita como uma unidade o eacute no preciso grau pelo qual

sustenta um ser caracteriacutestico quanto menor ou maior o niacutevel do ser menor ou maior seraacute a

unidaderdquo (IDEM IBIDEM) Portanto alma seria (em razatildeo de sua distinccedilatildeo da unidade mesma)

uma grande unidade em proporccedilatildeo e na autenticidade do ser e assim ldquoUnidade absoluta natildeo eacute

eacute a alma e a primeira alma a unidade em algum sentido concomitante ()rdquo (ID IBID) deixando

ver como a unidade natildeo eacute e eacute

77

Desta forma pode-se compreender que o uno natildeo pode ser a totalidade dos seres que

anularia sua unidade nem tampouco o ldquoPrinciacutepio-Intelectualrdquo pelo qual as coisas satildeo nem o

ldquoser mesmordquo no sentido da totalidade das coisas Plotino prossegue dizendo ldquoA alma ou mente

movimentando-se rumo ao que eacute sem forma encontra-se em estado de incompetecircncia para

apreender ali onde nada se limita ou onde a se impinge a realidade difusardquo (ID IBID 615 VI

9 3) Assim ldquo(hellip) ante o puro pavor de se sustentar no nada esvai-se O estado eacute doloroso

geralmente busca aliacutevio ao se retratar de sua vagueza na regiatildeo do sentido para ali repousar em

um fundamento soacutelido bem como a visatildeo aflige-se com o minuto no qual repousa na escuridatildeordquo

(ID IBID) Mas para onde olhar frente ao desconforto de natildeo se ter onde repousar Quando se

percebe o quatildeo vago eacute todo e qualquer presumido fundamento ou sentido quando a escuridatildeo

natildeo reflete senatildeo a angustia de uma contemplaccedilatildeo exausta pelo esvair de todo sustento o que

resta para aleacutem discoacuterdia que atinge o intelecto Plotino sintetiza a afliccedilatildeo

A alma deve ver em sua proacutepria maneira isto se daacute por coalescecircncia a unificaccedilatildeo

mas buscando assim conhecer a unidade eacute impedida por esta mesma unificaccedilatildeo de

reconhecer o que foi encontrado natildeo se pode distinguir a si mesmo do objeto de sua

intuiccedilatildeo No entanto este eacute nosso uacutenico recurso caso nossa filosofia busque o

conhecimento da Unidade (ID IBID)

O uacutenico caminho rumo ao conhecimento da unidade eacute um caminho impossiacutevel em si mesmo

uma via cerrada pela proacutepria natureza do questionamento proposto Intuir as trecircs hipoacutestases ou

encadeaacute-las conforme uma loacutegica sistemaacutetica portanto elucida o caminho mas natildeo

necessariamente introspecta e absorve a pureza da experiecircncia Para isto eacute necessaacuterio mais ou

melhor menos ndash muito menos O uacutenico ponto de apoio aqui seraacute a identificaccedilatildeo entre o uno e

bem ou a compreensatildeo da primeira hipoacutestase como uno-bem (τὸ ἑν καὶ αγαθον) cujo sentido

eacute por um lado extrema e pura simplicidade e por outro inefabilidade total devido agrave perfeiccedilatildeo

78

Reivindicar este caminho soacute pode portanto levar a uma supressatildeo absoluta onde

ldquoAinda esta abstenccedilatildeo de autoconhecimento natildeo comporta ignoracircncia ignoracircncia eacute algo de fora

ndash um conhecedor ignorante de um cognosciacutevel ndash mas no solitaacuterio natildeo haacute nem conhecimento

nem nada desconhecidordquo (ID IBID 620 VI 9 6) Plotino entatildeo apresenta uma formulaccedilatildeo

nada usual conforme a qual certo direcionamento de suas intenccedilotildees pode ser entendido em

uma passagem tatildeo emblemaacutetica quanto enigmaacutetica ele escreve

Neste coro a alma olha para a nascente da Vida tambeacutem nascente do Intelecto iniacutecio

do Ser fonte do Bem raiz da Alma Natildeo que eles tenham sido despejados do Supremo

menosprezando-os como se fosse uma massa Nisto aquilo que emana seria pereciacutevel

mas eles satildeo eternos eles nasce de um princiacutepio eterno que produz deles sua

fragmentaccedilatildeo mas em virtude de sua identidade inata portanto eles se manteacutem muito

firmes conto o sol brilhe contanto haveraacute luz

()

Aqueles para os quais toda esta experiecircncia eacute estranha podem entende-la como nossos

anseios terrenos e a alegria que temos ao ganhar o que mais desejamos ndash lembrando

sempre que aqui o que noacutes amamos eacute pereciacutevel doloroso que nosso amor eacute mimeacutetico

e se afasta porque foi tudo um engano nosso bem natildeo estava laacute isto natildeo era o que

procuraacutevamos Haacute apenas o verdadeiro amor onde haacute uniatildeo natildeo segurando isto com

algum tipo de abraccedilo carnal mas possuindo na totalidade sua veracidade Todos

aqueles que viram sabem o que tenho em mente a alma toma outra vida quando se

aproxima de Deus assim restaurada sente que o distribuidor da verdadeira vida estaacute

laacute para ver que agora natildeo temos nada para procurar senatildeo aquilo que precisamos

deixar de lado e deixar assim sozinho assim vindouro assim soacute tudo o que o ambiente

terreno aniquilou na pressa de ser livre impaciente em relaccedilatildeo a qualquer laccedilo que

nos sustenta na base para que com todo nosso ser possamos agarrar-nos sobre isto

quando natildeo sobra nada em noacutes senatildeo aquilo pelo qual tocamos em Deus (ID IBID

623 VI 9 9)

79

As palavras de Plotino ressoam como uma conduta que eacute antes como postura que doutrina O

uso termo ldquoamorrdquo denota claramente uma experiecircncia irregulaacutevel uma tensatildeo entre ausecircncia e

presenccedila preenchimento e falta ndash sem embargo um misteacuterio

O misteacuterio que indicado por Plotino se configura como o guia para a visatildeo que permite

descortinar o sentido pensamento filosoacutefico Um misteacuterio que segue a mesma regra de Platatildeo e

do platonismo onde ldquoNada eacute divulgado para os natildeo-iniciadosrdquo (ID IBID 624 VI 9 11) e do

qual natildeo se pode simplesmente exibir uma estoacuteria ordinaacuteria ldquoCoisas aqui satildeo sinaisrdquo (ID IBID)

adverte Plotino Sinais para aqueles que entram em solo sagrado e tornam real a visatildeo do

inacessiacutevel Ele esclarece ainda ldquoQuando a alma comeccedila novamente a se colocar natildeo se torna

outra mas si mesma assim desprendida natildeo eacute nada senatildeo si mesma auto-reunida natildeo eacute mais

da ordem do ser estaacute no Supremordquo (ID IBID) O desprendimento e a supressatildeo a visatildeo do uno

e o movimento de uniatildeo encaminham para o ldquotodo-transcendenterdquo que jaacute natildeo mais estaacute no niacutevel

daquilo que eacute do ente mesmo do ser mas em uma esfera para aleacutem de todas as coisas que satildeo

e que natildeo satildeo A culminaccedilatildeo do pensamento henoloacutegico de Plotino como uma ldquomiacutestica da

unidaderdquo eacute o berccedilo do neoplatonismo e necessariamente o iniacutecio de sua radicalizaccedilatildeo

Neste fluxo considera-se que existam dois momentos fundamentais do desdobramento

do neoplatonismo a partir da henologia plotiniana quais sejam a teologizaccedilatildeo da henologia

desenvolvida por Proclo e a teologia negativa do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita Em ambos eacute

possiacutevel observar como o caminho da negatividade se configura partir de uma profunda

introspecccedilatildeo de temas que tendem agrave dissoluccedilatildeo do conhecimento ateacute entatildeo concebido

estruturado e instaurado ndash e ainda agrave subversatildeo completa de seus meios de expressatildeo e

significaccedilatildeo isto eacute agrave supressatildeo do saber e do dizer Eles natildeo representam meramente o ldquopasso

adianterdquo como se houvessem ainda superado o discurso antecessor mas antes o ldquopasso atraacutesrdquo

enquanto retorno agraves bases e aos princiacutepios por meio da reivindicaccedilatildeo da atitude desvelada pela

miacutestica onde o misteacuterio natildeo eacute o problema a ser desvendado mas o elemento a ser incorporado

80

O obra de Proclo eacute composta por diversos comentaacuterios aos diaacutelogos de Platatildeo dentre os

quais ao Timeu ao Parmecircnides ao Alcebiacuteades agrave Repuacuteblica entre outros aleacutem de escritos

sistemaacuteticos como os Elementos de Teologia e a Teologia Platocircnica Existem ainda obras que

abordam temas de matemaacutetica astronomia arte magia e tratados propedecircuticos sobre doutrinas

filosoacuteficas Especialmente em relaccedilatildeo agraves contribuiccedilatildeo em torno agrave henologia duas obras satildeo de

suma importacircncia o Comentaacuterio ao Parmecircnides de Platatildeo e os Elementos de Teologia

A leitura de Proclo do Parmecircnides de Platatildeo eacute considerada uma das mais sistemaacuteticas e

originais que teria sobrevivido agraves vicissitudes dos tempos Ademais guardaria ainda um apelo

ao resguardo da filosofia de Platatildeo bem como uma preparaccedilatildeo para um projeto de resgate da

vitalidade do paganismo por meio de um platonismo revigorado 31 Decorreria disto uma

profunda incursatildeo na filosofia como teologia que culminaria em seus Elementos Ainda no

Comentaacuterio Proclo descreve o percurso de Platatildeo em relaccedilatildeo agrave Parmecircnides e manifesta uma

linha argumentativa similar a Plotino

Mas caso se queira chegar o mais proacuteximo da verdade deve-se seguir a linha de nosso

Mestre que Parmecircnides inicia desde o Uno (Ser) (para a proposiccedilatildeo ldquose haacute um unordquo

jaacute que conteacutem aleacutem do ldquoUnordquo o conceito de existecircncia pertence a este tipo de coisas)

ascendendo do Uno Ser para o Uno assim demonstrando que o Uno em sentido estrito

deseja apenas isto ser One e ldquoarrebatar-se para longerdquo do Ser e o Uno Ser eacute

secundaacuterio a este pela razatildeo de sua descendecircncia em direccedilatildeo ao Ser ao passo que o

Uno mesmo eacute superior mesmo agrave designaccedilatildeo ldquoeacuterdquo e a hipoacutetese ldquose haacuterdquo assim que

adicionamos eacute o Uno no sentido estrito natildeo mais permanece (PROCLUS 1987 379-380

In Parm 1033)

31 Estas consideraccedilotildees satildeo de Ciacutecero Cunha Bezerra em Algumas consideraccedilotildees sobre leitura procleana do

Parmecircnides de Platatildeo (2004) Neste artigo ele ainda sustenta em consonacircncia com H D Saffrey (Proclus

diadoque de Platon 1990) que Proclo entra na linha de inteacuterpretes de Platatildeo que entendem sua filosofia como

revelaccedilatildeo de uma verdade divina estruturada a partir do uno filiando Platatildeo aos teoacutelogos gregos (cf BEZERRA 2004

99-100)

81

Proclo apresentaraacute na sequecircncia a impossibilidade de ldquohipotetizarrdquo o uno cindindo de um lado

hipoacutetese-condicionada e de outro anti-hipoacutetese-incondicionada O problema que estaacute sendo

colocado parte da ideia de que natildeo se pode pensar a multiplicidade isolada senatildeo somente por

meio da concepccedilatildeo de uma unificaccedilatildeo Para aleacutem da estrutura binaacuteria uno-muacuteltiplo deve-se

considerar a unificaccedilatildeo como consequecircncia necessaacuteria dando origem agrave formulaccedilatildeo ldquouno-

unificado-muacuteltiplordquo para explicar como eacute simplesmente possiacutevel que hajam elementos pelos

quais outros se unificam32

O resultado da formulaccedilatildeo de Proclo parece ser a absolutizaccedilatildeo do uno e sua

identificaccedilatildeo com Deus algo sobremaneira evidente na proposiccedilatildeo de seus Elementos que diz

ldquoTodo intelecto divino eacute uniforme ou possui a forma do Uno e eacute perfeito E o primeiro intelecto

subsiste por si mesmo e produz outros intelectosrdquo (IDEM 1998 86 Elem Theo Prop CLX)

Proclo argumenta ainda que se haacute um Deus ele eacute preenchido de unidades divinas e eacute uniforme

sendo ainda perfeito e cheio da bondade divina havendo um Deus primeiro que provecirc as

hipoacutestases para outros intelectos

Este eacute precisamente o ponto que seraacute aprofundado pelo Pseudo-Dioniacutesio Areopagita em

sua teologia negativa Tanto em Proclo quanto no Pseudo-Dioniacutesio o divino habita a

compreensatildeo filosoacutefica da realidade como incorporaccedilatildeo do misteacuterio seguindo ainda a esteira

da muacutetua reciprocidade entre filosofia e religiatildeo demanda por Plotino desde o iniacutecio Pseudo-

Dioniacutesio coroa a radicalizaccedilatildeo do uno e sua identidade com o Deus primeiro apresentado como

supraessencial (ὑπερούσιε) suprabondoso (ὑπεράγαθε) e mesmo supradivino (ὑπερθεε) razatildeo

pela qual ele demanda que ldquo() em absoluta renuacutencia de si mesmo e de todas as coisas deveraacutes

na pureza deixar todas as coisas de lado liberando-se de tudo e sendo assim levado para cima

para o Raio da Divina Treva que excede toda existecircnciardquo (DIONYSIUS THE AREOPAGITE 1920 192)

32 Esta passagem eacute cuidadosamente explicada por Giuseppe Girgenti que esclarece que ldquoO ponto culminante do

primeiro grupo de teoremas eacute o alargamento da hierarquia de quatro termos uma vez que o raciociacutenio de Proclo

levou a distinguir o intermediaacuterio entre o proacuteprio Uno e o unificado ou seja elementos que compotildeem o unificada

as primeiras unidades do natildeo-unificado ou a henadirdquo (GIRGENTI 2009 113-114)

82

Discursar acerca da inefabilidade impotildee no Pseudo-Dioniacutesio uma superaccedilatildeo da proacutepria

linguagem que se revela agora como uma construccedilatildeo liberta de qualquer fronteira e acima de

qualquer paradoxo onde negaccedilatildeo (ἀπόφασις) e afirmaccedilatildeo (κατσφάσις) comungam de igual

valor e sentido em uma mesma e uacutenica esfera A primazia propriamente apofaacutetica que toma

conta da fala do Pseudo-Dioniacutesio ganha forccedila quando supera toda definiccedilatildeo conceitual e

identifica Deus como nada daquilo que eacute

Uma vez mais indo ainda mais alto mantemos que Ele natildeo eacute alma ou mente ou

concebido pela faculdade da imaginaccedilatildeo conjuntura razatildeo ou entendimento nem eacute

nenhum ato de razatildeo ou compreensatildeo nem pode ser descrito pela razatildeo ou percebido

pelo entendimento jaacute que natildeo eacute nuacutemero ou ordem ou magnificecircncia ou pequenez

ou igualdade ou desigualdade e jaacute que natildeo estaacute inerte nem em movimento ou em

descanso e natildeo possui poder e natildeo eacute poder nem luz e natildeo vive e natildeo eacute vida nem eacute

essecircncia pessoal ou eternidade ou tempo nem pode ser apreendido pelo

entendimento jaacute que natildeo eacute nem conhecimento nem verdade nem eacute reinado ou

sabedoria nem eacute uno nem unidade nem deidade ou bondade natildeo eacute um espiacuterito como

se entende o termo jaacute que natildeo eacute Filho nem Pai nem eacute nenhuma outra coisa tal como

noacutes ou qualquer outro ente do qual se possa ter conhecimento nem pertence a

categoria de natildeo-existecircncia ou de existecircncia nem os entes existentes o conhecem

como realmente eacute nem Ele os conhece como realmente satildeo nem a razatildeo pode o

atingir nomear ou conhecer nem eacute escuridatildeo nem eacute luz ou erro ou verdade nem

nenhuma afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo pode ser aplicada porquanto aplicar afirmaccedilotildees e

negaccedilotildees natildeo se aproximam Dele noacutes natildeo aplicamos nem negaccedilatildeo nem afirmaccedilatildeo

enquanto transcende toda afirmaccedilatildeo por ser perfeita e uacutenica Causa dos seres e

transcende toda negaccedilatildeo pela preeminecircncia de sua livre natureza simples e absoluta

de qualquer limitaccedilatildeo e para aleacutem de tudo (DIONYSIUS THE AREOPAGITE 1920 200-201)

83

Seria justo afirmar que esta densa passagem da Teologia Miacutestica eacute muito mais proacutexima de uma

declaraccedilatildeo de amor do que uma articulaccedilatildeo filosoacutefica (e caberia aiacute perguntar se haacute enfim

alguma diferenccedila entre uma coisa e outra) Pseudo-Dioniacutesio natildeo apenas promove um

movimento de negaccedilatildeo em direccedilatildeo agrave toda afirmaccedilatildeo mas ainda rumo agrave proacutepria negaccedilatildeo Neste

sentido a definiccedilatildeo mais justa conforme a qual se utiliza aqui o termo negatividade seguiria

com precisatildeo os termos do Pseudo-Dioniacutesio entendendo que o caminho negativo estaacute mais

aleacutem de toda afirmaccedilatildeo e mesmo de toda negaccedilatildeo Esta eacute ainda a via para entender o que pode

ser nomeado como meontologia um percurso intelectual que apoiado pela henologia

neoplatocircnica natildeo se fundamenta mais no ente mas antes no natildeo-ente (μή ὄν) ou mesmo no

nada

As consequecircncias da henologia neoplatocircnica de Plotino e Proclo e da meontologia

miacutestica do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita natildeo passaratildeo incoacutelumes pelos seacuteculos que se seguiriam

agrave composiccedilatildeo dos escritos aqui conjurados Contudo algumas recepccedilotildees bastante acuradas e

inspiradas criativas e bem desenvolvidas ocupar-se-iam de resgatar o sentido do pensamento

negativo e desdobrar a profundidade do problema Eacute possiacutevel citar algumas dezenas de filoacutesofos

que se dedicaram ao diaacutelogo com o neoplatonismo e a teologia negativa Aqui gostaria de

encerrar este capiacutetulo direcionando-o para uma interlocuccedilatildeo especial e ao meu ver central para

a difusatildeo da negatividade na filosofia medieval moderna e contemporacircnea Tenho em mente

Joatildeo o Escoto chamado Eriuacutegena

Eriuacutegena ocupou um lugar de destaque nas altercaccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas durante

o chamado Renascimento Caroliacutengio sendo-lhe atribuiacutedas tarefas como a traduccedilatildeo do grego

para o latim das obras do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita bem como explanaccedilotildees em torno agrave

contenda da divina predestinaccedilatildeo e agraves interpretaccedilotildees e exegeses suscitadas pela disputa erguida

pela cultura biacuteblica do periacuteodo33

33 Para especificaccedilotildees em torno a Eriuacutegena e seu tempo confira CONTRENI 1996 e MCNAMARA 1996

84

A presenccedila do neoplatonismo em Eriuacutegena parece se posicionar de maneira estrateacutegica

ao longo dos movimentos por ele realizados em sua magna obra o Periphyseon Natildeo se pode

perder de vista as possiacuteveis definiccedilotildees do neoplatonismo natildeo apenas dentro de suas esferas

relacionais e a partir das tendecircncias de leitura mas ainda por meio da questatildeo fundamental que

problematiza todo conteuacutedo qual seja como o uno se relaciona com o muacuteltiplo ou ainda como

o que eacute primeiro se relaciona com o que eacute posterior Oscar Federico Bauchwitz sustenta que

ldquo() a questatildeo pela antonomaacutesia do neoplatonismo enquanto uma reflexatildeo acerca da relaccedilatildeo

entre o Criador e a criatura entre o Uno e a multiplicidade pode ser enfocada na obra de

Eriuacutegena no que diz respeito a creatio ex nihilo e ao sentido original que eacute determinado ao

termo nihilrdquo (BAUCHWITZ 2001 11) Assumindo esta hipoacutetese como vaacutelida torna-se

imprescindiacutevel compreender o lugar que tal questatildeo ocupa na obra eriugeneana e como ela se

desenvolve

Conforme os apontamentos de Bauchwitz o ldquonadardquo se apresenta pela primeira vez jaacute

no iniacutecio do Periphyseon ao serem articulados os modos da diferenccedila fundamental da divisatildeo

da natureza (φύσις natura) definida como tudo aquilo que eacute e que natildeo eacute (quae sunt et quae non

sunt) sendo dividida em quatro espeacutecies ldquo() primeiro naquilo que cria e natildeo eacute criado segundo

naquilo que eacute criado e tambeacutem cria terceiro naquilo que eacute criado e natildeo cria enquanto o quarto

nem cria nem eacute criadordquo (ERIVGENAE 1999 37 441ordf) O que eacute pode ser percebido apreendido e

conhecido O que natildeo eacute todavia natildeo se pode perceber apreender ou conhecer (cognoscitur non

quid est sed quia est) De acordo com Bauchwitz o termo quid est (ldquoo que eacuterdquo) diz respeito agrave

essecircncia de tudo que permanece incompreensiacutevel e infinito ao passo que quia est (ldquoque eacuterdquo)

indica a existecircncia da essecircncia divina ou seja seus efeitos como algo determinado e que eacute O

incompreensiacutevel da natureza divina Eriuacutegena deixa ver quando escreve ldquoPortanto se eacute por

causa de sua excelecircncia inefaacutevel e incompreensiacutevel infinitude que a Natureza Divina eacute dita natildeo

ser disto se segue que ela eacute nada ()rdquo (IDEM 2005 61 634C)

85

A impossibilidade de compreender a natureza divina eacute o que permite a Eriuacutegena

descortinar seu entendimento acerca da creatio ex nihilo Bauchwitz escreve sobre este ponto

ldquoA questatildeo se origina eacute que se a diferenccedila fundamental abarca a totalidade da natureza o que

se poderia predicar de Deus Isto eacute o que haacute para mais aleacutem do ser e do natildeo ser senatildeo o Nada

desde o qual Deus cria todas as coisasrdquo (BAUCHWITZ OP CIT 12) O problema eacute apresentado por

Eriuacutegena a partir da busca pelo sentido conforme o qual se questiona de que maneira eacute possiacutevel

compreender como todas as coisas que satildeo se originam do nada (ou nos termos do

neoplatonismo pagatildeo a mesma questatildeo de ldquocomo do uno se origina a multiplicidade) Eacute

possiacutevel interpretar esta passagem alegando que Eriuacutegena se refere ao nihilo em perfeita

sintonia com toda doutrina Cristatilde da criaccedilatildeo como de fato faz sentido afirmar Contudo

Eriuacutegena vislumbra o que considera ldquoa verdadeira essecircncia da natureza divinardquo O Criador que

cria todas as coisas que satildeo criadas insere-se naquela parte da divisatildeo da natureza na qual ldquocria

mas natildeo eacute criadordquo enquanto sua ldquoessecircnciardquo reflete aquilo que ldquonatildeo eacute nem criado nem criardquo

Em outros temos indica-se que nada eacute a natureza divina de Deus ou ainda que natildeo-ser

corresponde agrave divindade

Resta ainda resolver o mesmo problema ante ao qual se encontraram Plotino Proclo o

Pseudo-Dioniacutesio entre outros a saber como eacute possiacutevel para Deus desarraigar-se de seu nada

ou desdobrar-se desde si mesmo Bauchwitz oferece uma explicaccedilatildeo quando potildee em relevo o

problema da expressatildeo do paradoxo

() por meio da criatura eacute Deus quem se manifesta e portanto todas as criaturas

podem ser entendidas como certas apariccedilotildees divinas isto eacute teofania Neste sentido a

teofania nomeia o paradoxo da ineffabilis difusio que diz que o infinito devem finito

que o incompreensiacutevel devem compreensiacutevel que o silecircncio clama (BAUCHWITZ 2003ordf

57)

86

Em Eriuacutegena eacute possiacutevel acompanhar o sentido da explicaccedilatildeo de Bauchwitz na passagem que

diz

Tudo o que eacute entendido e sentido nada mais eacute senatildeo apariccedilatildeo do que natildeo eacute aparente

a manifestaccedilatildeo do oculto afirmaccedilatildeo da negaccedilatildeo compreensatildeo do incompreensiacutevel [a

expressatildeo do inexpressiacutevel o acesso ao inacessiacutevel] o intelecccedilatildeo do ininteligiacutevel o

corpo do incorpoacutereo a essecircncia do supraessencial a forma do informado a medida

do incomensuraacutevel o nuacutemero do inumeraacutevel o peso do impensaacutevel a materializaccedilatildeo

do espiritual a visibilidade do invisiacutevel o lugar do natildeo-lugar o tempo do natildeo-tempo

a definiccedilatildeo do infinito a circunscriccedilatildeo do incircunscrito e as outras coisas que satildeo

ambas consideradas e percebidas pelo intelecto sozinho e natildeo podem se restringir

dentro de recessos da memoacuteria e nas quais escapa agrave destreza da mente (ERIVGENAE OP

CIT 59 633BC)

A despeito da possibilidade de sintonia com a doutrina Cristatilde da criaccedilatildeo (especificamente o

sentido moralizante da gecircnese) natildeo haacute forccedila catequeacutetica senatildeo puramente especulativa na

maneira pela qual Eriuacutegena aborda a questatildeo O acesso ao sagrado aparece antes como uma

atitude fundamental na qual se insiste no misteacuterio da nadidade do divino

O resultado do caminho meditativo de Eriuacutegena eacute uma postura na qual o pensamento

natildeo responde apenas agraves demandas imediatas agraves preocupaccedilotildees que sanem os conflitos

existenciais e sociais mas uma intelecccedilatildeo cujo grau de alcance atinge toda mensurabilidade e

incomensurabilidade da estruturaccedilatildeo do real como internalizaccedilatildeo do segredo oculto e dos

misteacuterios da natureza Parece ser neste sentido que Bauchwitz sugere uma eacutetica do silecircncio

onde ldquo() natildeo basta enunciar o princiacutepio que deve reger as accedilotildees do ser humano () O silecircncio

como destino a ser alcanccedilado soacute tem sentido na medida em que nomeia a incessante e natural

disposiccedilatildeo do proacuteprio homem em dirigir-se a elerdquo (BAUCHWTZ OP CIT 12) Antes de resolver

qualquer problema assume-se o respeito para com a profundeza do incocircndito

87

Durante a introduccedilatildeo desta tese referi-me a um outro escrito de Bauchwitz Nihilismo

e Neoplatonismo assumindo que aquele artigo havia sido responsaacutevel por traccedilar uma direccedilatildeo

ou mesmo proporcionar um estiacutemulo ao desenvolvimento deste trabalho Gostaria de retornar

agravequele artigo uma vez mais para encerrar esta seccedilatildeo com definiccedilotildees mais precisas a respeito da

henologia e da meontologia como ultrapassagem dos limites da metafiacutesica

O capiacutetulo anterior evidenciou que com a ontologia ou a substantivaccedilatildeo do pensamento

ocidental por meio da confusatildeo entre ser e ente perdeu-se natildeo a capacidade intelectual do ser

humano mas o atino para o seu fundamento Em razatildeo da urgecircncia de respostas abandonou-se

tudo aquilo que era por princiacutepio incoacutegnito inefaacutevel inexprimiacutevel Como havia dito na

introduccedilatildeo com o apoio do trabalho de Bauchwitz a consumaccedilatildeo deste movimento eacute anunciado

por meio de um diagnoacutestico do niilismo Neste sentido Bauchwitz escreve

A relaccedilatildeo entre Nihilismo e Neoplatonismo que aponta para uma eacutetica aleacutem dos

limites da temporalidade e de crenccedilas religiosas ainda estaacute para ser esclarecida Uma

tal eacutetica somente poderaacute ser realmente quando cumpridas umas exigecircncias que neste

trabalho foram apenas assinaladas a superaccedilatildeo da vontade e em consequecircncia da

proacutepria liberdade soacute pode ser interpretada em uma perspectiva que jaacute natildeo se encontra

nos limites da ontologia tradicional ou no dizer de Heidegger no acircmbito da metafiacutesica

O sem-propoacutesito de uma tal eacutetica que abnega qualquer visatildeo utilitarista e

simplesmente dada do mundo exige pensar a partir de novas fundamentaccedilotildees e

valores o retorno do divino eacute uma metaacutefora que atende a tais exigecircncias na medida

em que ao tempo que nos abre uma concepccedilatildeo totalmente outra daquele que ancora

os principais valores vigentes questiona pelos conceitos fundamentais que

homologaram esses valores como superiores porque quantificaacuteveis A ausecircncia de

referecircncias fixadas pelos padrotildees contemporacircneos que mensuram o bem-estar de cada

indiviacuteduo e o resgate de uma vivecircncia que se justifica nela mesma e natildeo pelas suas

finalidades devem servir de origem para superar a ldquonoite do mundordquo (BAUCHWITZ OP

CIT 179-180)

88

Em primeiro lugar eacute importante destacar que a falta de esclarecimento da ldquoeacutetica aleacutem dos

limitesrdquo ou como prefiro colocar aqui ldquopara aleacutem das fronteirasrdquo natildeo soacute natildeo estaacute clara como

assim deve permanecer caso queira responder agrave exigecircncia de absorver a negatividade que

tambeacutem faz parte da humanidade do humano mas que foi todavia afasta de sua visatildeo da

realidade Por este motivo utiliza-se aqui o termo conflito das fronteiras para indicar natildeo uma

resoluccedilatildeo de problemas mas a assunccedilatildeo de um confronto Sendo assim a ultrapassagem de

limites deve se dar apenas no que tange agrave possibilidade de abrir o pensamento para aleacutem da

metafiacutesica tradicional Explorar o que haacute de propriamente fraco o que natildeo se sustenta o que

natildeo pode ser

A temaacutetica poderia ser encerrada aqui Seria possiacutevel retornar ao neoplatonismo com

ainda mais cautela e extrair de laacute mesmo os elementos para subverter toda sorte de ordenamento

que lanccedila o ser humano na ldquonoite do mundordquo Contudo meu interesse aqui eacute explorar mais um

momento da histoacuteria da filosofia e se possiacutevel encontrar um ponto de apoio para reunir a

tradiccedilatildeo metafiacutesica e o neoplatonismo em um uacutenico problema Minhas hipoacutetese conforme seraacute

desenvolvida no terceiro e uacuteltimo capiacutetulo eacute encontrar uma orientaccedilatildeo Orientaccedilatildeo extrema

Ali no Extremo Oriente

89

3 O EXTREMO ORIENTE E O CONFLITO DAS FRONTEIRAS A FILOSOFIA COMPARADA INTERCULTURAL

COMO CHAVE DE LEITURA PARA ALGUNS PROBLEMAS DO PENSAMENTO CONTEMPORAcircNEO

O ambiente acadecircmico britacircnico do final da deacutecada de 1970 foi palco de uma fervorosa disputa

acerca das interpretaccedilotildees e definiccedilotildees culturais entre Ocidente e Oriente A publicaccedilatildeo do livro

Orientalism (1978) de Edward Wadie Said (ع إدوارد Idwārd Wadīʿ Saʿīd) fomentou ديعس ودي

uma inesgotaacutevel discussatildeo acerca de qualquer suposta correspondecircncia deste ou daquele

elemento nos princiacutepios da tradiccedilatildeo oriental sustentando em termos bem simples que o

Oriente era antes uma invenccedilatildeo convencional Said sofreu diversas criacuteticas algumas mais

significativas outras menos Uma de suas consideraccedilotildees mais discutidas afirma que ldquo() o

Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente) como sua imagem ideacuteia personalidade e

experiecircncia de contraste Contudo nada desse Oriente eacute meramente imaginativordquo (SAID 1990

13-14) acrescentando ainda de forma incisiva que ldquoO Oriente expressa e representa esse

papel cultural e ateacute mesmo ideologicamente como um modo de discurso com o apoio de

instituiccedilotildees vocabulaacuterio erudiccedilatildeo imagiacutestica doutrina e ateacute burocracias e estilos coloniaisrdquo

(IDEM IBIDEM 14) Said defendeu que o Oriente tal qual eacute conhecido pelo mundo ocidental natildeo

corresponde agrave proveniecircncia originaacuteria de suas tradiccedilotildees mas eacute antes uma estrateacutegia (poliacutetica e

econocircmica) de manutenccedilatildeo geograacutefica Toda designaccedilatildeo acadecircmica de qualquer orientalismo

ateacute entatildeo desenvolvido estaria entatildeo equivocada apoiada em pressupostos que natildeo condizem

com a tradiccedilatildeo oriental Sem embargo o mesmo poderia ser dito a respeito da introspecccedilatildeo do

mundo grego pelo mundo romano-latino e no decorrer da histoacuteria da humanidade eacute possiacutevel

ainda identificar outras centenas de casos semelhantes ateacute o ponto no qual se afirma a

globalizaccedilatildeo por meio da modernizaccedilatildeo de todos os recantos do planeta dentro do iacutempeto de

igualar todas as culturas em um niacutevel comum

90

Entretanto apesar de ser possiacutevel interpretar as assertivas de Said de forma mais

ponderada aproveitando com isto certo direcionamento fatalista embora natildeo necessariamente

inveriacutedico de sua investigaccedilatildeo algumas gafes de sua compreensatildeo da histoacuteria se revelam

bastante perturbadoras Um dos principais criacuteticos de Said Robert Irwin publicou uma obra

onde ampla parte eacute dedicada agrave refutaccedilatildeo direta dos principais argumentos de Said Em For the

Lust of Knowning (2006) Irwin destaca algumas inverdades de Said e contrargumenta de

maneira precisa certas falaacutecias Contudo Irwin eacute tambeacutem bastante emotivo em sua abordagem

ele escreve ldquoPara pocircr minhas cartas na mesa jaacute de iniacutecio a meu ver aquele livro [Orientalism]

eacute uma obra de uma impostura maleacutevola na qual eacute difiacutecil distinguir erros verdadeiros de

falsidades propositadasrdquo (IRWIN 2006 11) Irwin ataca principalmente os erros fatuais de Said

apontando para lacunas na fundamentaccedilatildeo da obra Orientalism34 destacando vaacuterios enganos e

afirmando em siacutentese ldquoPois se eacute possiacutevel apresentar uma imagem falsa do orientalismo do

cristianismo e do imperialismo britacircnico natildeo seria tatildeo obviamente errado apresentar de modo

semelhante uma falsa imagem do islatilde da histoacuteria aacuterabe ou da difiacutecil situaccedilatildeo dos palestinosrdquo

(IDEM IBIDEM 330-331) fazendo referecircncia agraves posiccedilotildees por Said defendidas Em suma Irwin daacute

a entender nas entrelinhas que a politizaccedilatildeo de um criacutetico literaacuterio no caso Said tornou a obra

Orientalism um intento mal construiacutedo como ferramenta para sustentaccedilatildeo de posiccedilotildees poliacuteticas

condenando todo seacuterio estudo que envolve o orientalismo Ateacute entatildeo muitos outros

pesquisadores e eruditos atacaram Said bem como tantos outros o admiravam e o defenderam

Todavia com a apresentaccedilatildeo desta disputa quero aqui destacar um fator iacutempar que natildeo

necessariamente se prende agrave contenda mas que encobre o toacutepico de modo geral

34 Irwin destaca alguns erros ldquoOrientalismo daacute a impressatildeo de um livro escrito agraves pressas Eacute repetitivo e conteacutem

muitos erros factuais Said menciona lsquoPedro o Veneraacutevel e outros orientalistas cluniacensesrsquo Que outros

orientalistas cluniacenses Seria interessante conhecer seus nomes (Mas naturalmente a ideia de que houvesse toda

uma escola de orientalistas cluniacenses eacute absurda Pedro o Veneraacutevel trabalhou sozinho) Como Bernard Lewis

ressaltou Said faz com que exeacutercitos muccedilulmanos conquistem a Turquia antes de conquistarem o norte da Aacutefrica

Isso realmente sugere uma ignoracircncia espantosa da histoacuteria do Oriente Meacutedio da mesma forma que sua crenccedila

quanto a terem a Gratilde-Bretanha e a Franccedila dominado a regiatildeo oriental do Mediterracircneo a partir do final do seacuteculo

XVIIrdquo (IRWIN 2006 329)

91

Com a discussatildeo entre os orientalistas e seus inimigos o importante eacute destacar natildeo

apenas as dificuldades que envolvem todo e qualquer estudo comparado entre Ocidente e

Oriente mas o fato de que eacute da natureza do proacuteprio estudo comparado que haja divergecircncias

A divergecircncia e o erro satildeo de fato disposiccedilotildees naturais dos estudos comparados sem os quais

natildeo seria possiacutevel sequer dar iniacutecio agrave discussatildeo ou desenvolver qualquer linha de raciociacutenio

preparatoacuteria Soacute eacute possiacutevel falar em estudos comparados porque houve de antematildeo a percepccedilatildeo

de uma divergecircncia Mais ainda a necessidade do momento e os acasos eventuais direcionam

os estudiosos para um ou para outro lado Assim como Said saiu em defesa da Palestina durante

um periacuteodo no qual os conflitos haviam se asseverado em decorrecircncia da expulsatildeo das forccedilas

de paz das Naccedilotildees Unidas em 1967 tambeacutem outros pensadores em outros momentos da histoacuteria

foram motivados por acontecimentos histoacutericos sejam eles de guerra ou de paz poliacuteticos

econocircmicos ou religiosos Como por exemplo as diversas manifestaccedilotildees de revolta e

indignaccedilatildeo de Theodor Wiesengrund Adorno e Gershom Scholem apoacutes Auschwitz ou as

anaacutelises polecircmicas de Slavoj Žižek das revoltas do subuacuterbio de Londres e da Primavera Aacuterabe

Contudo algumas deacutecadas antes da publicaccedilatildeo da obra de Said precisamente durante a

deacutecada de 1950 o Departamento de Filosofia da University of Hawairsquoi at Mānoa havia

alavancado uma seacuterie de trabalhos a respeito dos fundamentos e procedimentos dos estudos

comparados Eacute preciso considerar que proacuteprio departamento jaacute havia sido estruturado entre

1930 e 1940 com o objetivo de suprir a lacuna que havia a respeito dos estudos comparados na

filosofia A primeira East-West Philosophers Conferece em 1939 ditou o tom pelo qual se

tornaria possiacutevel falar abertamente alguns anos mais tarde de uma filosofia comparada

intercultural Ali natildeo escapou a ideia de que foi justamente por meio do ldquoerrordquo que se

estabelecia o diaacutelogo entre fronteiras Em outras palavras este diaacutelogo nascia jaacute sempre de um

conflito das fronteiras A hipoacutetese de consenso eacute explorada neste sentido apenas mediante a

assunccedilatildeo de certa ignoracircncia parcial e sopesando ainda as variaccedilotildees de interpretaccedilatildeo

92

O rigor filosoacutefico que direcionou as primeiras tentativas da filosofia comparada em

confrontar as tradiccedilotildees sapienciais ocidentais e orientais permitiu a instauraccedilatildeo de uma postura

cuidadosa e quase mesmo analiacutetica do problema35 Com isto foi possiacutevel comeccedilar a pensar de

que forma elementos do pensamento oriental e da filosofia ocidental poderiam convergir ou

divergir e quais as contribuiccedilotildees que este tipo de comparaccedilatildeo pode trazer aos problemas da

contemporaneidade Todavia como anos mais tarde discutiriam Said Irwin e outros natildeo se

pode desprezar o fato de que nada escapa aos entrelaccedilamentos ldquoirrastreaacuteveisrdquo das relaccedilotildees entre

Ocidente e Oriente Neste sentido embora qualquer comprovaccedilatildeo cientiacutefica empaque frente aos

desafios historiograacuteficos natildeo eacute de todo ingecircnuo especular as influecircncias que por exemplo

Platatildeo teria sofrido da sabedoria primitiva de hinduiacutesta e budistas como sustentam diversos

especialistas36 Ou ainda da indagaccedilatildeo acerca de ateacute que ponto o Aristoacuteteles que conhecemos

natildeo foi orientalizado por Al-Farabi (صر ون ن محمس اب ی محمس ب اراب Abū Naṣr Muḥammad ibn ف

Muḥammad Fārābī) Avicena (ن نا اب ع د ou و لی اب نا ع ع د Pūr Sinɑʼ ou ainda ور نا پ ع د Pur-

e Sina em aacuterabe و لي أب عن ع س ح ن ال بس ب الله ع ن نا ب ع د Abū ʿAlī al-Ḥusayn ibn ʿAbd Allāh

ibn Al-Hasan ibn Ali ibn Sīnā) entre outros filoacutesofos da tradiccedilatildeo aacuterabe Sem contar os

sincretismos que permearam a filosofia do helenismo tardio em Alexandria onde pagatildeos

judeus cristatildeo e mulccedilumanos travavam interminaacuteveis disputas teoacutericas (e natildeo apenas teoacutericas)

a respeitos dos fundamento filosoacuteficos e teoloacutegicos religiosidade momento no qual fica difiacutecil

empreender uma anaacutelise pormenorizada de quem influenciou quem quando o quanto e como37

35 Charles A Moore ponderou no trabalho Some Problems of Comparative Philosophy (1951) a dificuldade em

posicionar as doutrinas orientais em um grupo homogecircneo como podia ser feito com a ocidentais apontando ainda

para o cuidado em evitar as caracterizaccedilotildees e comparaccedilotildees a partir de tendecircncias mais gerais (cf MOORE 1951 67)

Kwee Swan Liat escreveu ainda em Methods of Comparative Philosophy (1951) que ao menos sete esferas de

aplicaccedilatildeo metodoloacutegica devem ser previamente levadas em consideraccedilatildeo (aproximaccedilatildeo filoloacutegica histoacuterica

comparativa formal-valorativa psicoloacutegica fenomenoloacutegica e socioloacutegica-antropoloacutegica) avaliando uma por

uma e propondo por conseguinte uma oitava aproximaccedilatildeo total-integrativa (cf KWEE SWAN LIAT 1951 10ss) 36 Estas hipoacuteteses satildeo levantadas por Graham Parkes na introduccedilatildeo de Heidegger and Asian Thought (1987) (cf

PARKES 1987 1) 37 Este ponto especiacutefico acerca das contendas do periacuteodo heleniacutestico foram sobremaneira bem expostas por Jean

Pepiacuten no escrito intitulado Heacutelleacutenisme et christianisme no volume de Franccedilois Chacirctelet La Philosophie v 1 De

Platon agrave Saint Thomas Paris Marabout 1995

93

Falar efetivamente de uma filosofia comparada intercultural todavia pressupotildee outra

perspectiva aquela na qual ambas as tradiccedilotildees estatildeo culturalmente niacutetidas e bem delineadas

(ainda que por meio de caracterizaccedilotildees vulgares pouco precisas ou mesmo caricatas) e satildeo

entendidas como exponencialmente distintas Entretanto as mesmas dificuldades permanecem

Com isto quero dizer fica difiacutecil afirmar ateacute que ponto um lado compreendeu o outro de modo

suficiente e satisfatoacuterio sendo possiacutevel indagar ainda se as apropriaccedilotildees natildeo se deram mediante

interpretaccedilotildees equivocadas ou leituras transviadas sobretudo quando natildeo haacute domiacutenio pleno dos

idiomas envolvidos

Estas asseveraccedilotildees tomaram conta de muitos pensadores no decorrer da histoacuteria da

humanidade Ateacute onde eacute possiacutevel investigar dois momentos marcam o iniacutecio da relaccedilatildeo

expliacutecita (e natildeo meramente impliacutecita como no caso dos primeiros filoacutesofos gregos de Platatildeo e

de Aristoacuteteles) entre Ocidente e Oriente na filosofia a apropriaccedilatildeo latina durante a Idade Meacutedia

dos escritos aacuterabes do Oriente Meacutedio38 e a interlocuccedilatildeo e introspecccedilatildeo da tradiccedilatildeo do Extremo

Oriente (sobretudo chinesa em um primeiro momento) na filosofia alematilde dos seacuteculos dezessete

e dezoito Aqui interessa especialmente o diaacutelogo com o Extremo Oriente e como ele natildeo se

encerrou no mero intercacircmbio de tradiccedilotildees fomentando um movimento de reversatildeo no qual os

orientais por sua vez tambeacutem abriram interlocuccedilatildeo direta com o pensamento ocidental

introspectando a filosofia e desenvolvendo ao seu modo formas de reflexatildeo nos mesmos

moldes da estrutura categoacuterica ocidental mas partindo dos princiacutepios orientais ainda que em

certa medida (como se veraacute) tais princiacutepios por vezes comunguem em muitos aspectos de

elementos e direcionamentos comuns aos ocidentais e por vezes natildeo Para isto eacute preciso

investigar brevemente a gecircnese desta relaccedilatildeo e como ela tem iniacutecio

38 Sobre este toacutepico que natildeo seraacute abordado aqui confira W Raven e A Akasoy (eds) Islamic Thought in the

Middle Ages Studies in Text Transmissions and Translations in Honour of Hand Daiber Leiden Brill 2008 D

Calma Eacutetudes sur le premier siegravecle de lrsquoaverroisme latin approches et textes ineacutedits Turnhout Brepols 2010

entre outros

94

A despeito da culminaccedilatildeo das luzes no periacuteodo moderno diversos temas obscuros

perpassaram o seacuteculo dezessete sobretudo aqueles motivados pelas missotildees catequeacuteticas

jesuiacutetas na China que inevitavelmente influenciaram o ambiente intelectual da eacutepoca 39

Independente dos transtornos causados pelos europeus em suas incursotildees tambeacutem na Europa

os problemas apareceram Quando os documentos acerca das tradiccedilotildees chinesas de pensamento

desembarcaram no continente europeu despertaram imediato interesse em diversos estudiosos

Contudo tampouco foi ameno o iniacutecio deste diaacutelogo O caso mais draacutestico se deu em

1723 quando Christian Wolff fugiu de Halle an der Saale em Sachsen-Anhalt na Alemanha

em decorrecircncia de uma seacuterie de perseguiccedilotildees despertadas por um discurso por ele pronunciado

dois anos antes sob o tiacutetulo Oratio de Sinarum philosophia practica (1721) O motivo era

polecircmico e suscetiacutevel de distintas interpretaccedilotildees Wolff afirmara que ldquoA mesma autoridade que

possui os ditos e feitos de Cristo possui tambeacutem Confuacutecio para os chineses Moiseacutes para os

judeus e Mohammed para os turcosrdquo (WOLFF 1985 117) Embora Wolff tenha impressionado

grande parte de seus ouvintes com o teor apaixonado de sua preleccedilatildeo tal comparaccedilatildeo redundou

em acirradas criacuteticas por diversos professores e eruditos que acompanhavam a fala e a

interpretaram como uma espeacutecie de ateiacutesmo mais ou menos mitigado Estas acusaccedilotildees todavia

natildeo eram fruto apenas da sinofilia de Wolff mas advinham jaacute de seu confronto com colegas

pietistas da Universidade de Halle devido agrave inclinaccedilatildeo bastante evidente para um pensamento

racionalista e secular40

39 Sobre as missotildees jesuiacutetas confira Wenzhao Li Die christliche China-Mission im 17 Jahrhundert Stuttgart

Franz Steiner 2000 Acerca do caso especiacutefico do diaacutelogo com a filosofia alematilde confira ainda Antonio Florentino

Neto Von der Interpretation zum Gespraumlch Das chinesische Denken in deutschen Philosophie Saarbruumlcken

SVH 2013 Florentino Neto ainda comenta que as missotildees tiveram iniacutecio ainda no seacuteculo dezesseis tendo

comeccedilado no Japatildeo e soacute entatildeo atingido a China no seacuteculo dezessete (cf FLORENTINO NETO 2009 41) 40 Os interesses de Wolff pela China bem como pelo racionalismo paulatinamente aparecem em seus escritos

desde a influecircncia direta de Leibniz ateacute a leitura dos tratados dos jesuiacutetas a respeito da China Menccedilotildees ao

pensamento chinecircs e o peso da admiraccedilatildeo que nutria por Reneacute Descartes satildeo evidentes em seus trabalhos a partir

de 1721 (cf LACH 1953) A despeito dos interesses de Wolff pelo pensamento chinecircs sobretudo acerca dos temas

morais constata-se que ele considerava o cristianismo moralmente superior e mais bem desenvolvido (cf KANAMORI

1997 302-303)

95

A hipoacutetese de que a natureza comum do ser humano possibilita o discurso intercultural

nasce sobretudo da comunhatildeo entre uma radicalizaccedilatildeo quase miacutestica do racionalismo moderno

e o impacto causado por escritos de ordem semelhante embora com princiacutepios e fundamentos

distintos Aleacutem de Wolff tambeacutem Nicolas Malebranche e Gottfried Leibniz se dedicaram agraves

leituras do material trazido pelos jesuiacutetas no mesmo periacuteodo Malebranche compocircs em 1707 o

escrito Entretien drsquoun Philosophe Chreacutetien et drsquoun Philosophe chinois sur lrsquoexistence et la

nature de Dieu por meio do qual mais tarde aproveitou para se livrar das acusaccedilotildees de ser um

ldquospinozistardquo Malebranche ainda encarou uma acirrada disputa acerca da condenaccedilatildeo do Papa

Clemente XI agraves missotildees jesuiacutetas sustentando posiccedilotildees bastante polecircmicas em seu diaacutelogo

Malebranche levanta em sua obra a questatildeo fundamental acerca da entificaccedilatildeo do deus

cristatildeo instigando a pergunta acerca do infinito que eacute respondida pelo filoacutesofo chinecircs da

seguinte maneira ldquoEstou convencido de que quando penso sobre o infinito estou muito longe

de pensar qualquer coisa Mas entatildeo eu penso em um tal ser individual e determinado Agora

o Deus que vocecircs adoram natildeo eacute assim um ser individual e particularrdquo (MALEBRANCHE 1708

17) As preocupaccedilotildees de Malebranche caminham no sentido de articular ser e ente no problema

da ontologia do cristianismo Quando Leibniz escreve seu Discours sur la theacuteologie naturelle

des Chinois (1716) ele o faz justamente tendo em vista repetidos pedidos de esclarecer pontos

levantados por Malebranche apoacutes o escrito ter sido enviado a ele por Nicholas Reacutemond41

Eacute possiacutevel considerar que Leibniz foi o que se devotou com mais afinco agrave tradiccedilatildeo

chinesa Ele teria se envolvido principalmente com o direcionamento praacutetico da sabedoria

chinesa profundamente norteada pelo propoacutesito de melhorar a si mesmo e agrave sociedade por meio

da noccedilatildeo confucionista de cultivo de si (修身 xiushen) no sentido propriamente moral42

41 Leibniz trocou extensa correspondecircncia com os missionaacuterios jesuiacutetas a respeito da filosofia chinesa aleacutem de

apresentar comentaacuterios pontuais em sua Novissima Sinica (1697) Contudo eacute no Discours que suas ponderaccedilotildees

mais seacuterias e cuidadosas satildeo delineadas e manifestas (cf KANG 2009 6-8) 42 Mais especificaccedilotildees sobre este tema podem ser encontrados em Karyn T Lay Introduccedilatildeo agrave filosofia chinesa

Trad Saulo Alencastre Satildeo Paulo Madras 2009

96

Leibniz escreve em seu discurso ldquoMas quem poderia pensar que houvesse na terra um

povo que superasse os nossos aspectos da vida cultural Se formos iguais nos modos de

produccedilatildeo somo superiores nas ciecircncias teoacutericas mas inferiores na filosofia praacuteticardquo (LEIBNIZ

1979 11) concluindo que ldquo() somos inferiores na aacuterea da eacutetica na poliacutetica e na vida dos

haacutebitos cotidianosrdquo (IDEM IBIDEM) A interpretaccedilatildeo de Leibniz exalta a capacidade dos chineses

em se organizarem e valorarem as tensotildees promovidas pelo campo social com base no cultivo

de si e ainda identificando o ldquosirdquo ao povo em geral Importante eacute ressaltar natildeo apenas desta

breve sentenccedila ilustrativa mas a partir de uma visatildeo mais ampla de suas reflexotildees o profundo

interesse em preencher lacunas a respeito da proveniecircncia intelectual de certos problemas

filosoacuteficos

Anos depois tambeacutem Georg W F Hegel Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche

nutririam interesses pelo Oriente43 Contudo a resposta propriamente oriental a respeito do

intercacircmbio filosoacutefico se daria apenas na virada do seacuteculo dezenove para o seacuteculo vinte Este eacute

o momento no qual a filosofia comparada intercultural comeccedila a ganhar corpo precisamente

com a abertura poliacutetica e intelectual do Japatildeo e o desenvolvimento da chamada Escola de

Filosofia de Kyōto44 Embora natildeo haja tempo nem espaccedilo para abordar de maneira mais

cuidadosa os enlaces teoacutericos e praacuteticos da Escola de Kyōto escrutinando as estruturas de

pensamento de cada um de seus primeiros membros (e ainda de seus membros tardios) gostaria

aqui de destacar alguns aspectos fundamentais direcionados por duas questotildees a primeira

sustentando o porquecirc a filosofia tem iniacutecio propriamente acadecircmico no Extremo Oriente e

precisamente no Japatildeo e a segunda indagando como (ou de que modo) isto acontece Uma

hipoacutetese necessariamente leva agrave outra e isto pode ser facilmente observado

43 Um panorama mais especiacutefico das aproximaccedilotildees pode ser visto em Florentino Neto 2009 44 Em minha dissertaccedilatildeo de mestrado jaacute havia explanado os movimentos histoacutericos que levaram agrave abertura do Japatildeo

e ao surgimento da filosofia japonesa moderna ou contemporacircnea Uma bibliografia mais completa acerca do tema

pode ser extraiacuteda das obras de referecircncia William Beasley The Meiji Restoration (Stanford Stanford UP 1972) e

The Rise of Modern Japan (New York St Matinrsquos Press 1995)

97

Em primeira matildeo sustento que os motivos que proporcionaram o surgimento de uma

ldquoescola filosoacuteficardquo no Japatildeo modernizado estatildeo intimamente ligadas com sua introspecccedilatildeo da

tradiccedilatildeo oriental precedente Em palavras mais simples a maneira pela qual os japoneses

compreenderam e sintetizaram as principais linhas de pensamento orientais (hinduiacutesmo

budismo confucionismo e daoiacutesmo) culminando no chamado budismo zen foi sem embargo

a chave para absorver a filosofia ocidental Em segunda matildeo sustento ainda que a filosofia

japonesa nasce cresce e se estabelece mediante duas perspectivas (justamente os ldquoparadigmasrdquo

anteriormente abordados na tese) metafiacutesica e negatividade em decorrecircncia do florescimento

do zen no Japatildeo Por fim argumento que justamente pelo entrelaccedilamento de metafiacutesica

negatividade e o pensamento do Extremo Oriente que nasce a uacutenica filosofia possiacutevel para o

momento histoacuterico pelo qual passava o Japatildeo e com isto abre-se uma pertinente chave de

leitura para o momento que agora mesmo atravessa a filosofia contemporacircnea

Portanto inicialmente eacute essencial destacar a singularidade do budismo zen em relaccedilatildeo

agraves tradiccedilotildees precedentes Existem muacuteltiplas maneiras pelas quais eacute possiacutevel empreender esta

tarefa Acredito ser plausiacutevel direcionar este toacutepico mediante um problema especiacutefico qual seja

da fundamentaccedilatildeo uacuteltima da realidade a partir da meditaccedilatildeo a respeito da questatildeo da vacuidade

entendida como śūnyatā (शनयता)

A ideia de śūnyatā deriva do budismo indiano primitivo Relatos de reflexotildees em torno

ao problema do fundamento da realidade aparecem (como jaacute havia exposto na introduccedilatildeo desta

tese) desde os cacircnones Pāḷi e satildeo expressos de maneira mais clara e niacutetida no budismo mahāyāna

principalmente no Sūtra do Coraccedilatildeo (Prajntildeāpāramitā Hṛdaya परझञापारनमताहरदय) passando pela escola

mādhyamaka de budismo indiano e ainda nos Versos Fundamentais sobre o Caminho do Meio

(Mūlamadhyamaka-kārikā मलमधयमककाररका) de Nāgārjuna (िागारि) onde foi apresentada de maneira

mais profunda e sistemaacutetica

98

Algumas interpretaccedilotildees do escrito de Nāgārjuna destacam o śūnyatā como constituiccedilatildeo

da totalidade da realidade enfatizando que isto significa uma muacutetua dependecircncia (pratītya-

samutpāda परतीतयसमतपाद) de todas as coisas de todas aquelas que possuiriam existecircncia individual

ou substancial e ateacute da proacutepria ideia de nada o que significa propriamente uma anulaccedilatildeo de

qualquer Ente Supremo ou mesmo qualquer verdade absoluta45

Quando os ensinamentos do budismo indiano chegam agrave China e no Japatildeo alguns

princiacutepios fundamentais satildeo radicalizados por ambas as naccedilotildees Existem vaacuterias hipoacuteteses

conforme as quais eacute possiacutevel indagar os motivos desta radicalizaccedilatildeo Alguns consideram que a

doutrina radical do budismo se deve ao gecircnio do monge Boddidharma embora outros

argumentem que o motivo foi o encontro com o daoiacutesmo e o neoconfucionismo A questatildeo pode

permanecer suspensa sem que isto afete a compreensatildeo das bases e dos caminhos do budismo

zen Ao que concerne propriamente agrave introspecccedilatildeo deste conceito fundamental na filosofia

japonesa contemporacircnea (sem embargo o ponto ao qual quero chegar) existem tambeacutem

inuacutemeras controveacutersias embora haja ainda certos pontos solidamente estabelecidos e

mutuamente consentidos que se pode explorar com o intuito de apresentar o problema

O expoente da Escola de Kyōto que pela primeira vez explorou de maneira sistemaacutetica

a questatildeo e a colocou via uma formulaccedilatildeo filosoacutefica foi Kitarō Nishida (西田 幾多郎) Sua

biografia eacute repleta de elementos que o fariam parecer ou bem um rebelde visionaacuterio ou bem

um precoce e intempestivo intelectual permeado por desacordos com o sistema Sem embargo

muitos pesquisadores descreveram com minuacutecia os percalccedilos de sua biografia Por isto natildeo eacute

de todo liacutecito perder muito tempo aqui descrevendo seu percurso pessoal Gostaria apenas de

atentar para alguns pontos sobremaneira importantes no que tange agrave formaccedilatildeo intelectual de

Nishida

45 Este ponto eacute melhor analisado por Michael Barnhart que considera que de acordo com Nāgārjuna ldquo() natildeo se

pode sustentar nenhuma feacute na realidade ou princiacutepio transcendente nem nenhuma razatildeo humana pode pretender

independecircncia de nenhum tipo ()rdquo (BARNHART 1994 649)

99

Em primeiro lugar Nishida viveu em meio agrave restauraccedilatildeo Meiji (1868-1912) um periacuteodo

que divide a histoacuteria do Japatildeo entre preacute-moderna e moderna no qual a sociedade feudal entra

em decliacutenio e a naccedilatildeo eacute ocidentalizada pela forccedila maior da pressatildeo do Departamento de Estado

Norte-Americano A evidecircncia de que o ensino japonecircs estava defasado frente aos desafios do

novo mundo levou seus governantes a implementarem um sistema educacional semelhante ao

ocidental sendo neste periacuteodo fundadas as primeiras universidades japonesas Nishida

frequentou tais universidades embora tivesse seu proacuteprio percurso intelectual independente

tendo a oportunidade de estudar com Raphael von Koumlber professor russo-alematildeo convidado

para ministrar aulas de filosofia no Japatildeo Com Koumlber Nishida estudou a histoacuteria do

cristianismo (com ecircnfase nas influecircncias do paganismo de Plotino) aleacutem da filosofia criacutetica de

Immanuel Kant e da esteacutetica claacutessica Eacute preciso ponderar ainda que Nishida lia com fluecircncia o

francecircs o alematildeo e o inglecircs tendo acesso integral agraves principais obras da filosofia ocidental Por

outro lado o mesmo estudante dedicado era ainda um pensador radical que encontrou na

tradiccedilatildeo do zen budismo um rumo para suas inquietaccedilotildees

Quando Nishida se aproxima do zen budismo e comeccedila a praticar mediaccedilatildeo o impacto

da destruiccedilatildeo dos meacutetodos convencionais de ensino o afeta largamente ponderando sobretudo

que ele jaacute havia abandonado a escola primaacuteria por desentendimentos com o regime educacional

Um artigo de Lothar Knauth intitulado Life is Tragic The Diary of Nishida Kitaro (1965)

destaca uma passagem do diaacuterio de Nishida onde eacute possiacutevel observar sua postura conforme suas

proacutepria palavras

Faccedila sua proacutepria mente e depois disto natildeo dependa dos outros

Natildeo acredite indiscriminadamente nas palavras das pessoas

Natildeo fale de assuntos que ainda natildeo foram amadurecidos

Natildeo desperdice tempo precioso com fofocas ociosas

A lei da mateacuteria de leitura ler pensar escrever

100

Se vocecirc ainda natildeo terminou de pensar sobre um assunto

natildeo mude para outro

Se vocecirc natildeo terminou de ler um livro ateacute o fim

natildeo pegue outro

Non multa sed multum

Diaacuterio Ano Novo 1897 (NISHIDA apud KNAUTH 1965 337)

O trecho do diaacuterio aponta para um jovem estudioso preocupado com o rigor a tensatildeo

proveniente do impacto surtido pelas leituras Knauth expotildee consecutivamente um outro trecho

do diaacuterio este datado de 1 de julho de 1945 jaacute no final da vida de Nishida que diz

simplesmente ldquoEscurecendo nublado vinte grausrdquo (IDEM IBIDEM) A intenccedilatildeo de Knauth com

isto eacute mostrar a profunda introspecccedilatildeo redundante de um amadurecimento especulativo

proveniente de anos de meditaccedilatildeo Contudo ao que interessa ao propoacutesito do toacutepico vale

salientar que mesmo em um conturbado espiacuterito jovem havia jaacute sempre a necessidade de forccedilar

uma ldquoaquietamentordquo da mente uma busca por um lugar silencioso no qual prevalece a maacutexima

non multa sed multum natildeo muito mas bastante

Entre 1891 e 1897 (a ano da primeira citaccedilatildeo) Nishida praticou incessantemente a

meditaccedilatildeo zen havendo tambeacutem contribuiacutedo para uma revista do secto do Budismo da Terra

Pura Sua transformaccedilatildeo efetiva se daria em 1903 onde uma draacutestica revoluccedilatildeo de seu

entendimento abriria caminho para dar iniacutecio ao seu pensamento efetivo

O homens natildeo podem pensar em morrer natildeo podem ter grandes pensamentos ambos

Kawai e Gordon jaacute disseram isto Tentei pensar em mim mesmo morto aos trinta e um

de dezembro de meu trigeacutesimo quinto ano mas entretanto por mais que tentasse natildeo

podia pensar sobre isto seriamente Natildeo importa o quanto eu pense na morte eu natildeo

consigo me fazer esquecer o mundo (ID IBID 341)

101

Para Knauth este trecho evidencia uma iluminaccedilatildeo por meio da ideia de morte miacutestica e

renascimento O resultado imediato da iluminaccedilatildeo ao contraacuterio do que poderia parecer coerente

aos olhos ocidentais daacute-se na publicaccedilatildeo imediata de um artigo onde Nishida afirma ldquoEu

estava errado em usar o Zen em consideraccedilatildeo ao conhecimento Eu deveria tecirc-lo usado para o

espiacuterito e alma Ateacute eu comeccedilar a sentir pela visatildeo eu natildeo pensarei nem em filosofia nem em

religiatildeordquo (ID IBID 342) Este momento representa uma iluminaccedilatildeo justamente pelo fato de que

haacute sem embargo a assunccedilatildeo de uma correta postura mas com um propoacutesito enganoso ndash a busca

pelo conhecimento havia posto em xeque absolutamente todos os anos dedicados agrave meditaccedilatildeo

era necessaacuterio portanto comeccedilar novamente

Conforme Knauth Nishida iraacute se preparar nos proacuteximos anos para exprimir o potencial

introspectado durante sua iluminaccedilatildeo Trecircs pontos satildeo neste momento fundamentais O

primeiro eacute a leitura profundamente marcante para Nishida de Mestre Eckhart46 O segundo eacute

o falecimento de sua filha Yūko viacutetima de um ataque de bronquite O terceiro (diretamente

ligado ao segundo) eacute sua luta contra o cigarro Em 1923 Nishida escreve ldquoDeste dia em diante

eu morri para mundo Eu vivo em minha proacutepria filosofia Tudo sacrificado tudo sacrificado

Profunda impressionante experiecircnciardquo (ID IBID 344) e em 1927 ldquoAgrave tarde eu estava sozinho

na casa Pensamento quietos Quietamente eu passei metade do dia Eu natildeo fumei nem sequer

um cigarro Renascimento despertado de um sonho ruim De uma aacutervore podre de alguma

maneira um novo broto de vida pode florescer Hoje eu estava quase felizrdquo (ID IBID) O motivo

pelo qual Knauth intitula seu artigo com a expressatildeo Life is Tragic adveacutem justamente desta

postura de Nishida conforme a qual a vida humana natildeo passaria de preocupaccedilotildees e problemas

46 Nishida inicia a leitura de Eckhart em 1907 Seria interessante ao propoacutesito da tese que houvesse uma explanaccedilatildeo

maior e mais cuidadosa do pensamento de Eckhart sobretudo no segundo capiacutetulo onde seu posicionamento eacute

fundamental para o desenvolvimento do neoplatonismo e da miacutestica Contudo esta difiacutecil tarefa tornaria o percurso

da tese demasiado longo e cansativo podendo desviar a atenccedilatildeo primordial do trabalho Todavia possuo a intenccedilatildeo

de desdobrar este toacutepico em um trabalho futuro

102

A despeito de um aparente pessimismo o que pode ser destacado do percurso intelectual

e pessoal de Nishida eacute a profundidade com qual ele sentiu o peso da vida A doutrina buacutedica do

sofrimento eacute por ele absorvida de maneira natildeo soacute transcendente mas ainda imanente Os

escritos de Nishida revelaratildeo natildeo apenas um caminho filosoacutefico no qual se imbricam a tradiccedilatildeo

sapiencial oriental e a filosofia ocidental mas a descriccedilatildeo de uma experiecircncia vital na qual pulsa

a forccedila do pensamento especulativo Por esta e outras razotildees Nishida havia sido nomeado com

o nome laico-budista ldquosunshinrdquo uma polegada de mente

A produccedilatildeo propriamente filosoacutefica de Nishida eacute tanto mais densa quando suas reflexotildees

pessoais anotadas em seu diaacuterio contudo relativamente mais faacuteceis de serem abordadas devido

agrave sistematicidade que permeia os escritos A despeito de suas incompatibilidades com o sistema

de ensino sua carreira acadecircmica foi coroada em 1894 quando recebeu o tiacutetulo de licenciado

em filosofia com uma tese acerca da causalidade em David Hume culminando no professorado

junto agrave Universidade Imperial de Kyōto em 1913 Neste iacutenterim dedicou-se ao desdobramento

das bases de sua filosofia que teria sido divulgada de maneira mais consistente na obra que

havia publicado em 1911 sob o tiacutetulo Zen no kenkyū (善の研究 Investigaccedilatildeo sobre o bem) A

obra mais conhecida de Nishida busca o autodespertar o que significa uma visatildeo dos

fenocircmenos que compreendem a experiecircncia pura evidente desde a movimentaccedilatildeo de uma

loacutegica toacutepica O termo ldquoloacutegica toacutepicardquo eacute propositalmente ambivalente Por um lado indica uma

loacutegica do espaccedilo do lugar por outro denuncia como esse lugar (locus) revela uma locuccedilatildeo um

discurso Eacute neste lugar que se desenvolvem os limites do pensamento Relatos de alunos de

Nishida comentam que ele costumava desenhar no quadro negro trecircs esferas uma sobre a outra

na qual a primeira representaria os acidentes circundaacuteveis ao sujeito a segunda os elementos

incapturaacuteveis pela percepccedilatildeo e a terceira (com linhas tracejadas) a impossibilidade final de

limitaccedilatildeo e a esfera do absoluto insuperaacutevel e infinitamente expansiacutevel nomeado com o signo

do nada absoluto (絶対無 Zettaina) sua interpretaccedilatildeo para a noccedilatildeo budista de śūnyatā

103

Com isto Nishida arrancaria da tradiccedilatildeo zen budista uma negatividade total para

fundamentar sua ideia de experiecircncia pura (純粋経験 Junsui keiken) que segundo ele ldquo() se

entende conhecer os fatos como eles simplesmente satildeo (hellip)rdquo (NISHIDA 1990 3) Estaacute presente

nesta formulaccedilatildeo a absorccedilatildeo de Nishida da psicologia funcional de William James onde se

depura a correspondecircncia da percepccedilatildeo com a teoria da verdade Nishida ainda afirma ldquo() o

que usualmente se refere como experiecircncia eacute via de regra adulterado por algum tipo de

pensamento portanto por experiecircncia pura se entende aquele estado no qual se tem experiecircncia

sem qualquer discriminaccedilatildeo deliberativardquo (IDEM IBIDEM) O claacutessico exemplo pelo qual se ilustra

a condiccedilatildeo primaacuteria da pureza da experiecircncia sugere que em uma expressatildeo como ldquoouvi uma

moscardquo haacute um momento no qual o sujeito que ouve a mosca e seu barulho e o ato mesmo de

ouvir ainda natildeo foram distinguidos O fundamento da realidade enquanto nada absoluto para

Nishida encontra-se neste preciso momento neste instante incapturaacutevel na inefabilidade do

indescritiacutevel Entretanto embora a erudiccedilatildeo filosoacutefica de Nishida fosse sobremaneira evidente

bem como sua dedicaccedilatildeo ao zen budismo suas ideias natildeo estavam livres de criacuteticas em ambas

as esferas

Uma das criacuteticas mais ferrenhas a Nishida foi apresentada por Hajime Tanabe (田辺 元)

seu sucessor na caacutetedra de filosofia da Universidade Imperial de Kyōto (em 1928) Ao contraacuterio

de Nishida que nunca havia saiacutedo do Japatildeo Tanabe foi contemplado com um intercacircmbio pelo

governo japonecircs e teve a oportunidade de estudar ao lado de Husserl e Heidegger Sua maior

obra Zangedo to shite no tetsugaku (懺悔道としての哲學 A filosofia como caminho metanoeacutetico

1946) ocupava-se da superaccedilatildeo do inevitaacutevel problema epistemoloacutegico que envolvia a questatildeo

do nada absoluto propondo o termo metanoeacutetica derivado do grego μετανόησις e vertido ao

japonecircs como zangedo (懺悔道) cuja definiccedilatildeo seria nas palavras de Tanabe ldquoum baacutelsamo para

a dor do pesar e ao mesmo tempo o recurso para uma luz absoluta que paradoxalmente torna

vigente a escuridatildeo sem expulsaacute-lardquo (TANABE 1986 2)

104

Em decorrecircncia da necessidade de superaccedilatildeo do proacuteprio pensamento a criacutetica de Tanabe

emerge no sentido de questionar se a filosofia possui condiccedilotildees de enquadrar o autodespertar

religioso conforme exposto por Nishida de maneira sistemaacutetica Conforme Agustiacuten Jacinto

Zavala ldquoResumidamente ao tomar como base o ponto de vista da religiatildeo a filosofia de

Nishida lsquoconverte o trans-histoacuterico absoluto em principium [princiacutepio fundamental] do sistema

e mediante esta determinaccedilatildeo vem [finalmente] ordenar e organizar o histoacuterico relativordquo

(ZAVALA 2013 106) ao passo que ldquoPor isto Tanabe diz lsquoa duacutevida fundamental que albergo

frente a filosofia mestre Nishida se relaciona com este ponto () se a filosofia trata de tomar o

ponto de vista religioso como seu proacuteprio ponto de vista necessariamente deixa de ser si mesmardquo

(IDEM IBIDEM) sintetizando a preocupaccedilatildeo de Tanabe

Os conflitos entre a filosofia a auto-percepccedilatildeo religiosa a partir do estabelecimento do

nada absoluto como fundamento da realidade passaratildeo ainda prelo crivo de diversos

interlocutores sofrendo alteraccedilotildees e recebendo criacuteticas diretas e indiretas Em linhas gerais o

problema de Tanabe estaacute diretamente relacionado com suas compreensotildees estritas da religiatildeo e

da filosofia Em primeiro lugar porque ao contraacuterio de Nishida (que era praticante do zen

budismo) Tanabe partia antes do budismo Jōdo Shinshū (浄土真宗 A Escola da Terra Pura) do

monge Shinran (親鸞)47 Em segundo lugar devido aos interesses de Tanabe pela filosofia da

histoacuteria de Wilhelm Wundt e Heinrich Rickert aleacutem da influecircncia da Lebensphilosophie e o

compromisso histoacuterico que ele alimentou a partir de tais influecircncias Por este motivo era

necessaacuterio tanto para resolver a disputa entre Nishida e Tanabe quanto para superar os estaacutegios

preliminares das discussotildees da Escola de Kyōto reformular as compreensotildees de filosofia e

religiatildeo algo que acontece de maneira somente com Keiji Nishitani (西谷 啓治)

47 Sobre a fundamentaccedilatildeo budista de Tanabe confira Joaquim Antonio Bernardes Carneiro Monteiro ldquoO lsquoNada

Absolutorsquo em Hajime Tanabe uma avaliaccedilatildeo criacuteticardquo In Antonio Florentino Neto e Oswaldo Giacoia Jr (orgs)

O Nada absoluto e a superaccedilatildeo do niilismo Os fundamentos filosoacuteficos da Escola de Kyoto Campinas Phi 2013

155-188

105

Keiji Nishitani eacute talvez o filoacutesofo japonecircs contemporacircneo mais popular entre os

ocidentais O motivo eacute provavelmente o estilo bastante solto e livre de seus ensaios

principalmente os que chegaram traduzidos ao Ocidente ndash precisamente os mais maduros

compostos apoacutes a deacutecada de 1960 como Shūkyo to wa Nanika (宗敎とは何か O que eacute religiatildeo

1961) e Nihirizumu (ニヒリズム Niilismo 1986) Estes mesmos trabalhos sofreram diversas

criacuteticas por parte de colegas japoneses que o acusaram de se afastar dos modos propriamente

orientais de expressatildeo supostamente sugerindo uma indiferenccedila ao idioma vernaacuteculo agraves

tradiccedilotildees e aos projetos de seus antecessores Sobre isto Nishitani teria argumentado que as

lacunas do pensamento japonecircs tradicional sobretudo as idiomaacuteticas impossibilitariam o

alcance do sentido de alguns problemas colocados pela filosofia ocidental motivo pelo qual a

criaccedilatildeo de novas palavras em japonecircs se mostrava absolutamente necessaacuterios48 Sem embargo

os questionamentos impostos pelos novos tempos natildeo se prendiam agraves fronteiras linguiacutesticas e

invadiam o Japatildeo modernizado e ocidentalizado com especial forccedila razatildeo pela qual a

aproximaccedilatildeo com a filosofia sua interiorizaccedilatildeo e reflexatildeo era simplesmente inevitaacutevel

Todavia embora Nishitani tenha realmente pendido para o pensamento filosoacutefico ou para a

maneira pela qual os pensadores ocidentais liam as questotildees conflituosas da contemporaneidade

ao mesmo tempo ele se voltava com ainda maior introspecccedilatildeo para o budismo sobretudo para

o zen Esta ambiguidade intencional do pensamento de Nishitani se revela nas inquiriccedilotildees por

ele levantadas e pelo teor de suas investigaccedilotildees deixando ver claramente sua preocupaccedilatildeo a

respeito do direcionamento reflexivo da filosofia contemporacircnea

48 James Heisig discute esta questatildeo pormenorizadamente quando apresenta o estilo filosoacutefico de Nishitani

Conforme Heisig a influecircncia ocidental absorvida por Nishitani cujas maiores expressotildees foram a esteacutetica de

Immanuel Kant o idealismo alematildeo (especialmente Friedrich W J Schelling) Plotino e o neoplatonismo a

miacutestica de Mestre Eckhart e Francisco de Assis e ainda a hermenecircutica existencial de Wilhelm Dilthey e Martin

Heidegger deixam bastante claro o porquecirc ele subverte e converte os limites e alcances da linguagem Heisig

ainda destaca o momento no qual Nishitani afirma que nos miacutesticos a confluecircncia e a uniatildeo entre religiatildeo e

filosofia alcanccedilaram um ponto elevado despertando seu profundo interesse por tais autores A despeito dos temas

eleitos Heisig considera ainda que por este mesmo motivo o estilo de Nishitani se mostra superior ao de Tanabe

e ao de Nishida (cf HEISIG 2002 233-242)

106

Eacute possiacutevel considerar que o problema com o qual Nishitani se defrontou e que norteou

o andamento geral de seu pensamento mais cuidadosamente desenvolvido possui um ponto de

partido muito bem estabelecido qual seja o problema do niilismo denunciado na virada do

seacuteculo por autores como Friedrich Nietzsche Ernst Juumlnger Fioacutedor Dostoievsky Ivan

Turgeniev entre outros Em Shūkyo to wa Nanika longe de tentar elucidar o sentido da religiatildeo

em termos sistemaacuteticos a despeito do tiacutetulo do escrito Nishitani parece buscar uma imersatildeo na

tensatildeo contraditoacuteria que os seres humanos possuem com a experiecircncia religiosa segundo ele

ldquo() para quem a religiatildeo natildeo eacute uma necessidade precisamente por esta razatildeo ela eacute uma

necessidade Natildeo haacute nenhuma outra coisa sobre a qual se possa dizer o mesmordquo (NISHITANI

1983 1) Sua definiccedilatildeo de religiatildeo se abre a partir da compreensatildeo de uma ldquoauto-despertar da

realidaderdquo cuja explicaccedilatildeo se apoia no termo inglecircs realize segundo ele um termo polissecircmico

que possuem tanto o sentido de actualize (atualizar mas tambeacutem trazer o sentido real como na

expressatildeo actually cujo significado seria na verdade) quanto de understand (compreender)

Nishitani explica ldquo() estou utilizando esta palavra para indicar que nossa habilidade para

perceber a realidade significa realizar (atualizar) a realidade por si mesma em noacutesrdquo (IDEM IBIDEM

5) Esta explicaccedilatildeo apareceria para confrontar o sentido do niilismo que segundo Nishitani

ldquo() se refere agravequilo que torna sem sentido o sentido da vida () sinalizando nada menos do

que fato de que o despertar da nossa existecircncia penetrou em uma profundidade extraordinaacuteriardquo

(ID IBID 4) Em suma Nishitani possui um alvo muito claro lidar com o abismo existencial

que se deixa ver sobremaneira angustiante nos novos tempos aqueles mesmos ldquotempos de

penuacuteriardquo da ldquonoite do mundordquo anunciados por Nietzsche denunciados por Heidegger e que

assombravam os filoacutesofos que se deparavam com a instituiccedilatildeo da morte do pensamento

reflexivo mediante a Era Atocircmica dos desastres ambientais e dos deliacuterios da modernizaccedilatildeo

industrializaccedilatildeo e tecnologizaccedilatildeo do mundo Fatos inegaacuteveis cuja profunda relaccedilatildeo com a

histoacuteria do pensamento torna seu sentido cada vez mais obscuro

107

A forccedila interpretativa que moveraacute o pensamento de Nishitani rumo agraves tentativas de

resoluccedilatildeo dos conflitos passaraacute em primeiro lugar por sua leitura a respeito do problema do

niilismo e sua relaccedilatildeo com a ideia de śūnyatā Quando Nishitani alcanccedila esta abordagem ele

frisa de iniacutecio que ldquo() um dos maiores e mais fundamentais problemas que todas as religiotildees

encaram em nossos tempos eacute sua relaccedilatildeo com a ciecircnciardquo (IDEM IBIDEM 77) O motivo aparenta

ser a incompatibilidade entre o pensamento cientiacutefico e o sentido essencial da vida religiosa

Nishitani entatildeo argumenta de maneira incisiva (e que sintetiza o propoacutesito desta tese no final

das contas)

Uma em cada dez pessoas escuta que a religiatildeo e a ciecircncia tem cada uma seu proacuteprio

domiacutenio e tarefa e que as duas nunca precisaratildeo entrar em conflito caso permaneccedilam

confinadas em suas fronteiras originais Isto eacute inadequado Uma fronteira separa uma

aacuterea da outra e ao mesmo tempo pertence a ambas as aacutereas Os fundamentos do

conflito entre religiatildeo e ciecircncia repousam certamente em tais fronteiras De fato desde

os tempos mais antigos metafiacutesica e filosofia consistiram na exploraccedilatildeo destas

fronteiras entre ciecircncia e religiatildeo (IDEM IBIDEM 77-78)

Nishitani ainda questiona se tais fronteiras podem ser consideradas realmente fronteiras ou natildeo

admitindo que a ciecircncia contemporacircnea natildeo parece se preocupar com a questatildeo A criteacuterio de

verdade objetiva da ciecircncia com o apoio das leis da natureza seria responsaacutevel por de certo

modo menosprezar o conhecimento religioso e mesmo o conhecimento filosoacutefico em

decorrecircncia da verdade cientiacutefica absoluta Mas Nishitani contesta no contrafluxo da tendecircncia

mais geral ldquoMas eacute realmente tatildeo evidente Uma nova maneira de olhar para o absoluto e o

relativo conforme a qual dois absolutos podem se tornar conjuntos impensaacutevel em uacuteltima

instacircnciardquo (ID IBID 78) Para Nishitani o problema vige no fechamento das possibilidades

108

Natildeo haacute aqui uma criacutetica ldquocientofoacutebicardquo mas o levantamento de uma questatildeo qual seja

ldquoNatildeo possuiacutemos uma outra maneira de conceber o relativo senatildeo em termos de estabelecimento

de limites ndash como fazemos por exemplo quando dividimos uma folha de papel em duas ao

traccedilar uma linha nelardquo (ID IBID 79) Nishitani mostraraacute esta possibilidade por meio de sua

interpretaccedilatildeo da ideia de śūnyatā e como ela desvela uma perspectiva que explora os elementos

abandonados pela objetividade cientiacutefica Seja como for eacute possiacutevel considerar jaacute de iniacutecio que

se concentra aiacute toda a potecircncia do diaacutelogo entre metafiacutesica e negatividade apresentado ao longo

desta tese sendo possiacutevel acompanhar Nishitani em uma definiccedilatildeo do conflito das fronteiras

Agora bem quais as saiacutedas ou quais as possiacuteveis chaves de leitura para o problema que

se apresenta a saber a questatildeo do niilismo contemporacircneo Quando emprego aqui o termo

filosofia comparada intercultural tenho em vista a maneira pela Nishitani (entre outros)

exploram as muacuteltiplas significaccedilotildees de distintas tradiccedilotildees culturais em suas convergecircncias e

divergecircncias para se aproximar do problema e propor novos pontos de vista A respeito

especificamente da questatildeo levantada Nishitani utiliza a proacutepria ambivalecircncia do niilismo para

propor uma soluccedilatildeo Seu caminho seraacute resgatar o sentido pelo qual a ciecircncia se apropria das

leis da natureza e desenvolve a tecnologia argumento que eacute precisamente por meio desta

apropriaccedilatildeo que se revelam a medida da liberdade do homem em relaccedilatildeo agraves fronteiras impostas

pelas leis naturais Contudo haacute uma inversatildeo pela qual o controlador se torna o controlado

Conforme Graham Parkes ldquo() a vida humana e o trabalho como um todo se tornam

progressivamente mecanizados e impessoais (nos termos de Heidegger perdemos nossa lsquolivre

relaccedilatildeorsquo com a teacutecnica e estamos lsquoacorrentadosrsquo agrave ela)rdquo explicando ademais que para Nishitani

ldquoA liberdade advinda das leis da natureza que a tecnologia mecanizada nos concede aleacutem do

sentimento concomitante de distacircncia ou separaccedilatildeo do mundo natural levam os seres humanos

a lsquose comportarem como se eles estivessem completamente fora das leis da naturezarsquordquo (PARKES

2013a 103) Sendo assim a uacutenica via possiacutevel eacute restabelecer esta relaccedilatildeo humano-natureza

109

O ponto de apoio de Nishitani para colocar o problema parte da compreensatildeo que

oferece o neoplatonismo e a miacutestica medieval de Deus como nada absoluto (ele cita

especificamente Mestre Eckhart neste ponto) para trazer agrave tona a questatildeo morte-sive-vida

Nishitani evidencia portanto que ldquoEste ponto natildeo pode repousar em um lado mais distante

aleacutem deste mundo e desta vida terrena que possuiacutemos Deve repousar no lado mais proacuteximo

tanto mais proacuteximo quanto nossas vidas ordinariamente devem serrdquo (ID IBID 90) Aproveitando

a perspectiva budista para elucidar este caminho Nishitani esclarece de maneira precisa que

ldquoŚūnyatā eacute o ponto no qual noacutes nos tornamos manifestos de nossa proacutepria talidade (suchness)

como seres humanos concretos como indiviacuteduos com alma e personalidade Ao mesmo tempo

eacute o ponto no qual tudo ao redor se manifesta para noacutes em sua proacutepria talidade (suchness)rdquo (ID

IBID 90)49 Śūnyatā envolve inevitaacutevel e necessariamente este complexo conceito de talidade

(真如 Shinrsquonyo ndash Tathatā तथता) que eacute sem embargo o berccedilo da meditaccedilatildeo oriental

A talidade eacute a via pela qual se extrai a conduccedilatildeo do sistema eacutetico e moral da sociedade

hinduiacutesta primitiva Sua disseminaccedilatildeo no Extremo Oriente eacute carregada por duas tradiccedilotildees quais

sejam o daoiacutesmo e o budismo Os daoiacutestas centram sua noccedilatildeo de ldquoprinciacutepiordquo por meio da noccedilatildeo

de dao (道) e sua relaccedilatildeo com de (德) O famoso Dao De Jing (道德经) bem como a obra do

mestre Zhuangzi (莊子) satildeo os principais responsaacuteveis por colocarem ambos os princiacutepios (dao

e de) e movimento dinacircmico conforme o qual a relaccedilatildeo com natureza natildeo seria entendida nem

como celestial nem como humana mas como ambas sem que uma tenha privileacutegio sobre a

outra ndash e este seria enfim o caminho (dao) da virtude (de) (cf ZHUANGZI 2009 42)

49 Traduzo aqui suchness por talidade com base na ideia de que Nishitani se refere ao conceito budista de Tathatā

(तथता) que em japonecircs se ilustra com o kanji 真如 (Shinnyo) cuja traduccedilatildeo seria ldquorealidade absolutardquo mas natildeo

corresponde ao peso do termo Sobre isto Antonio Morillas escreve que ldquoO termo tathata eacute de difiacutecil traduccedilatildeo

em castelhano Em inglecircs se verte com as expressotildees suchness (a condiccedilatildeo de ser ldquotalrdquo e como se eacute) thatness (o

fato de ser ldquoissordquo que se eacute) e isness (a qualidade de algo que ldquoeacuterdquo sem mais o que eacute e como eacute) () A talidade

[traduccedilatildeo castelhana de tathata] eacute a noccedilatildeo do fato de que a realidade e as coisas e fenocircmenos que a compotildeem satildeo

ldquoassimrdquo ldquotalrdquo e como satildeo que satildeo ldquoissordquo ldquoo que satildeordquo em seu caraacuteter plenamente desnudo na existecircncia luminosardquo

(MORILLAS 2006 167) Pela proximidade com o idioma castelhano opto aqui por adotar a sugestatildeo de Morillas

110

O budismo especialmente o budismo zen absorveria tais ideias com especial forma nos

pensamentos de Kūkai (空海) e Dōgen Zenji (道元禅師) Graham Parkes explica que para Kūkai

duas ideias se configuram essenciais Sokushinjobutsu (即身成仏) a possibilidade de atingir a

iluminaccedilatildeo na vida presente (em contraste ao princiacutepio budista tradicional conforme o qual

seriam necessaacuterias muitas vidas) e Hosshin seppo (発疹 説法 ) o entendimento de que a

personificaccedilatildeo buacutedica eacute desprovida de forma e imagem natildeo permitindo conceitualizaccedilatildeo nem

verbalizaccedilatildeo (cf PARKES 2003 81) A despeito da uniatildeo suscitada pelo daoiacutesmo o budismo

chinecircs do oitavo seacuteculo estava imerso em uma profunda discussatildeo acerca da questatildeo se a

natureza buacutedica podia ser atribuiacuteda somente aos seres sencientes ou tambeacutem agraves miacutenimas

partiacuteculas de poeira Kūkai articula as duas ideias acima mencionadas e interpretas as chamadas

ldquotrecircs intimidadesrdquo (corpo fala mente) do Dainichi Nyorai (木造大日如来坐像) que representa a

revelaccedilatildeo esoteacuterica dos ensinamentos no Budismo para sustentar o muacutetuo pertencimento da

relaccedilatildeo do todo com suas partes assumindo a natureza buacutedica para absolutamente tudo Ele

escreve neste sentido ldquoEssa existecircncia estaacute naquela e aquela estaacute nessa A Existecircncia do Buda

(Mahāvairocana) eacute a existecircncia dos seres sencientes e vice e versa Eles natildeo satildeo idecircnticos mas

satildeo todavia idecircnticos eles natildeo satildeo diferentes mas satildeo todavia diferentesrdquo (KŪKAI 1972 93)

Jaacute para Dōgen a evocaccedilatildeo da conduta zen se daria por meio de uma miacutestica cotidiana

alimentando a noccedilatildeo de que toda atividade eacute expressatildeo da natureza buacutedica Parkes argumenta

que algumas atividades satildeo especialmente ilustrativas como por exemplo preparar a comida

servi-la e come-la Dōgen citaria um trecho do Vimalakīrti Nirdeśa Sūtra (नवमलकीनत निदश सतर) que

diria ldquoQuando somos unos com a comida que comemos somos unos com todo o universordquo

evocando o uso do silecircncio como veiacuteculo para o esclarecimento do śūnyatā como fundamento

absoluto da realidade (cf PARKES OP CIT 84) As praacuteticas rituais natildeo possuiriam todavia

conotaccedilatildeo lituacutergica pontual e direcionada mas antes a totalidade de uma experiecircncia de vida

religiosa

111

Tanto Kūkai quanto Dōgen influenciaram amplamente o pensamento de Nishitani e o

ponto de vista conforme o qual o śūnyatā direciona uma atitude por meio da qual se mostra a

talidade Tanto no daoiacutesmo de Zhuangzi quando no zen budismo de Kūkai e Dōgen estatildeo em

jogo o aspecto formal a aparecircncia (rūpa shiki) da realidade em torno por um lado e a assunccedilatildeo

da dissoluccedilatildeo do fundamento dessa realidade por outro (sua vacuidade śūnyatā kū) Por este

motivo haacute uma muacutetua reciprocidade entre a totalidade e as coisas entre uno e muacuteltiplo Isto eacute

o que permite a participaccedilatildeo e ao mesmo tempo incorporaccedilatildeo da realidade (dharmakāya)

Contudo natildeo seraacute o mero resgate das tradiccedilotildees orientais que forneceraacute a Nishitani a resposta

ao problema no que concerne ao impacto da questatildeo frente aos tempos de niilismo mas sim o

resultado da confrontaccedilatildeo desta tradiccedilatildeo com a filosofia contemporacircnea ocidental ou sem

embargo o confronto entre as fronteiras

Graham Parkes atenta para uma reivindicaccedilatildeo de Nishitani de haver superado em certa

medida o desenvolvimento das filosofias de pensadores como Hegel Nietzsche e Heidegger

(cf PARKES 2013b 189-190) Contudo no cerne desta proposiccedilatildeo estaacute a ideia de que o que foi

superado natildeo foi propriamente o conteuacutedo da meditaccedilatildeo mas a forma da abordagem ou seja

a perspectiva intercultural privilegiada da comparaccedilatildeo filosoacutefica de Nishitani Com o anuacutencio

da morte de Deus e dos tempos de niilismo em Nietzsche ficou evidente um diagnoacutestico da

atividade humana inerente aos valores que a guiam por um lado e a induccedilatildeo ao desespero

suscitado pela projeccedilatildeo cognoscitiva ao ente por outro A saiacuteda de Nietzsche por meio do

ldquogrande antiacutedotordquo da transvaloraccedilatildeo de todos os valores eacute recebida em Nishitani considerando

trecircs ideias chave de sua leitura budista (1) a constituiccedilatildeo do fundamento da existecircncia como

uma experiecircncia aleacutem da relaccedilatildeo entre sujeito objeto por meio do conceito de (referente agrave noccedilatildeo

de dharma धम) (2) a reaccedilatildeo de retorno ao mesmo de toda atividade (a partir do conceito de

karma कम) e a noccedilatildeo de que natildeo haacute nada que exista independente de circunstacircncias e

condicionamento ou a chamada ldquoco-originaccedilatildeo dependenterdquo (o pratītya-samutpāda परतीतयसमतपाद)

112

Portanto o que em Nietzsche seria postulado como destino enquanto o ldquomesmordquo (o ego

fatum nietzscheano) engendrando um ponto de vista criativo em Nishitani seria entendido

desde a ideia do karma Em Nihirizumu Nishitani escreve acerca deste ponto especiacutefico que

ldquoNeste niacutevel fundamental o mundo se move na esfera do mesmo e o mesmo na esfera do

mundo Esta ideia estaacute proacutexima da ideia budista de karma embora em Nietzsche o ponto de

vista do mesmo como destino eacute fundamentalmente criativordquo (NISHITANI 1990 50) Em termos

mais simples de acordo com Parkes ldquo() o que parece um golpe do destino pode ser entendido

antes como uma parte de nossa proacutepria atividaderdquo (PARKES OP CIT 196) O florescimento desta

consideraccedilatildeo se daacute na afirmaccedilatildeo niezscheana do amor fati e da superaccedilatildeo do abismo da grande

suspeita niilista por meio da grande dor pela qual se renasce o que seraacute entendido em Nishitani

a partir do retorno ao abismo onde ldquo() uma vez que algueacutem eacute libertado do abismo a

necessidade se torna um elemento desta vida de liberdade Neste caso necessidade se torna

uma com a criatividaderdquo (NISHITANI OP CIT 52) Entretanto a ressalva de Nishitani consiste que

a afirmaccedilatildeo resultante da superaccedilatildeo do abismo niilista pode ainda ser superar e que a vontade

de poder eacute ainda uma ldquocoisardquo chamada ldquovontaderdquo (cf IDEM OP CIT 234) cuja uacutenica possibilidade

de ser pensada para aleacutem dos fundamentos que redundam no destino como mesmo seria

justamente o ponto de vista do śūnyatā Uma ilustraccedilatildeo possiacutevel de ldquopara onderdquo este ponto de

vista levaria pode ser encontrada quando Nishitani comenta a arte japonesa de arranjo de flores

a chamada Ikebana (生け花) Ali fica niacutetido qual a postura que se assume quando se daacute conda

da vacuidade da realidade uacuteltima e absoluta Nishitani escreve

Desde a perspectiva de sua natureza fundamental todas as coisas no mundo satildeo

lacircminas de grama sem raiacutezes Tal grama entretanto tenho fincado suas raiacutezes no solo

esconde a si mesma em sua fundamental ausecircncia de raiacutezes () sendo cortadas de suas

raiacutezes as flores satildeo feitas pela primeira vez pela manifestaccedilatildeo minuciosa de sua

natureza fundamenta ndash sua falta de raiacutezes (IDEM 2011 1199)

113

Ao fim e ao cabo Nishitani estaacute chamando atenccedilatildeo para uma aprendizagem decorrente da ldquoco-

originaccedilatildeo dependenterdquo a partir da natureza Sobre este ponto e sua relaccedilatildeo com o niilismo

Parkes escreve ldquo() noacutes humanos diferimos de outros entes por meio da possibilidade de nos

tornamos conscientes de nossa proacutepria finitude no estado da niilidade (kyomu) um tipo de

ldquovacuidade ocardquo que eacute uma antecacircmara para a vacuidade criativa (śūnyatā kū)rdquo (PARKES OP

CIT 112) Resumidamente o ponto de vista do śūnyatā se configura para Nishitani a partir da

tradiccedilatildeo do zen budismo oriental e de sua leitura da filosofia ocidental como uma iluminaccedilatildeo

a respeito do fundamento da realidade enquanto vacuidade evidenciado sobremaneira pelo

abismo do niilismo contemporacircneo e que direciona o ser humano para uma vacuidade criativa

na qual sua relaccedilatildeo com as coisas congrega tudo em uma mesma natureza buacutedica ou seja o

lugar onde as flores o arranjo o florista e o ato de fazer o arranjo satildeo a mesma coisa ou o lugar

onde a mosca o anjo Deus e o eu satildeo o mesmo

114

CONCLUSAtildeO

Durante o primeiro semestre de 2011 estava profundamente motivado com a preparaccedilatildeo do

texto final desta tese doutoral Ocupava-me ao mesmo tempo das pesquisas leituras

sistematizaccedilatildeo dos esquemas defesa da versatildeo do final do projeto e dos cursos que iria ministrar

na Universidade Federal do Rio Grande do Norte nos meses seguintes A abordagem agrave histoacuteria

da metafiacutesica agrave tradiccedilatildeo do neoplatonismo e agrave filosofia japonesa contemporacircnea atingiam-me

simultaneamente por meio de muacuteltiplas construccedilotildees conceituais interligadas pela lucidez

provocada mediante a histoacuteria dos efeitos de cada ambiente temaacutetica Contudo ao 11 de marccedilo

daquele ano foi transmitida uma notiacutecia que imediatamente cessou minha produccedilatildeo e

empolgaccedilatildeo com todo e qualquer toacutepico Os jornais incessantemente transmitiam as uacuteltimas

notiacutecias a respeito de um terremoto seguido por um tsunami que havia atingido o Japatildeo e

danificado a estrutura da usina nuclear de Fukushima na cidade de Ōkuma expondo a

comunidade da regiatildeo agrave alarmantes niacuteveis de radioatividade O desastre ambiental seria

considerado algum tempo mais tarde a maior cataacutestrofe nuclear desde Chernobyl em 1986

Evidentemente como havia ocorrido tambeacutem em 2001 durante o ataque terrorista ao

World Trade Center em Nova Iorque as reportagens que chocavam o mundo se tornariam

rapidamente repetitivas e esgotariam o puacuteblico O motivo pelo qual se daria tal neutralizaccedilatildeo e

letargia frente aos fatos foi denunciado por Slavoj Žižek na obra The Year of Dreaming

Dangerously (2012) Ele pondera os eventos destrutivos de 2011 tais quais a Primavera Aacuterabe

e o Occupy Wall Street desde a neutralizaccedilatildeo ideoloacutegica promovida pela miacutedia dando margem

agrave interpretaccedilatildeo conforme a qual os veiacuteculos de comunicaccedilatildeo vigentes aniquilam o potencial

emancipatoacuterio dos eventos por meio da pasteurizaccedilatildeo de sua difusatildeo

115

Žižek destaca o termo da liacutengua persa ldquowar nam nihadanrdquo cujo abstruso significado

seria em linhas gerais ldquomatar algueacutem enterrar seu corpo e plantar flores sobre sua cova para

esconder o cadaacuteverrdquo Para Žižek os meios de comunicaccedilatildeo do capitalismo global destroem a

absorccedilatildeo propriamente humana dos eventos do mundo contemporacircneo exatamente neste

mesmo sentido (cf ŽIŽEK 2012 9) Sem sombra de duacutevidas o mesmo se daria em relaccedilatildeo ao

desastre de Fukushima e hoje trecircs anos depois uma pedra foi posta por sobre o assunto e poucas

pessoas sequer se lembram do ocorrido

Entretanto meu denso envolvimento com a filosofia japonesa natildeo permitiu que os

acontecimentos fossem dissolvidos assim tatildeo facilmente Passei um bom tempo tocado pela

calamidade e mesmo ateacute agora ainda tenho dificuldades em lidar com o assunto As

adversidades emotivas todavia natildeo me impediram de pensar com devoccedilatildeo sobre a questatildeo

pelo contraacuterio estimularam ainda mais o rumo da reflexatildeo filosoacutefica

O ano seguinte seria marcado em meu percurso pessoal pela saiacuteda do paiacutes e realizaccedilatildeo

de estaacutegio sanduiacuteche junto agrave University College Cork (Colaacuteiste na hOllscoile Corcaigh) para

realizar minhas pesquisas sob a supervisatildeo do professor Graham Parkes na Irlanda Parkes

havia publicado no iniacutecio daquele ano um breve artigo intitulado Nuclear Power after

Fukushima 2011 Buddhist and Promethean Perspectives (2012) no qual natildeo apenas analisava

os fatos mas ainda apresentava uma meditaccedilatildeo a respeito de uma filosofia da natureza para

aleacutem das ecologias profundas ou natildeo

Simplificando o assunto o estiacutemulo para o fornecimento de energia nuclear eacute

alimentado pela conclusatildeo de que se trata de uma fonte limpa e autossustentaacutevel em contraste

agrave queima do combustiacutevel e exploraccedilatildeo de recursos foacutesseis ou mesmo aos impactos ambientais

causados pela obstruccedilatildeo de fluxos de aacutegua Aparentemente trata-se de uma soluccedilatildeo emergente

frente ao ainda ineficaz suporte das energias ecologicamente viaacuteveis como a eoacutelica e a solar

116

Parkes pontua sobre isto que ldquoA questatildeo crucial natildeo diz respeito aos meacuteritos relativos

e agraves desvantagens do poder nuclear versus a energia dos combustiacuteveis foacutesseis Antes trata-se

de pensar o que norteia nosso desejo de consumir tanta energia em primeiro lugarrdquo (PARKES

2012 103) O posicionamento diz respeito a um ldquopasso atraacutesrdquo A pergunta eacute o que move no

final das contas o irredutiacutevel e irrefreaacutevel iacutempeto de explorar todos os recursos naturais para

fomentar a manutenccedilatildeo da vida humana na Terra Mesmo com a leitura do escrito eu

particularmente soacute conseguiria compreender o direcionamento proposto por Parkes apoacutes

acompanhar seus seminaacuterios sobre filosofias da natureza entre Ocidente e Oriente no qual

ficariam claras as bases pelas quais ele questionava a conduta contemporacircnea face agrave crise

ambiental

Entretanto quando me deparei com as primeiras leituras oferecidas por Parkes (muitas

das quais constam na bibliografia desta tese) natildeo fui acometido pelo espanto da novidade mas

pela pulsatildeo da comparaccedilatildeo A experiecircncia que jaacute havia acumulado sob a orientaccedilatildeo do

professor Oscar Federico Bauchwitz durante meus anos de pesquisa acadecircmica dedicado agrave

leitura de Nietzsche Heidegger e da tradiccedilatildeo do neoplatonismo e da miacutestica medieval proveu-

me de uma arquitetocircnica meditativa que com a aproximaccedilatildeo com a filosofia oriental apenas

nutriu imediata empatia e introspecccedilatildeo Sendo assim quando congreguei o focirclego e as forccedilas

necessaacuterias para encerrar este trabalho natildeo tinha em mente uma tese levantada de um mero

problema particular mas um longo percurso especulativo que ao longo das paacuteginas aqui

apresentadas tentei descrever da melhor maneira possiacutevel

Sobreveio-me durante os termos finais uma intensa obrigaccedilatildeo de sustentar que a uacutenica

via possiacutevel para enfrentar os problemas filosoacutefico contemporacircneos era a instauraccedilatildeo de um

retorno aos fundamentos por meio da interculturalidade Portanto a conclusatildeo desta tese soacute

pode caminhar rumo agrave elucidaccedilatildeo de quais fundamentos no final das contas satildeo estes que estatildeo

aqui e ali indicados no interior do trabalho

117

Em 1953 Martin Heidegger pronunciou a conferecircncia intitulada Die Frage nach

Technik O escrito eacute talvez uma de suas mais claras expressotildees acerca de sua anaacutelise da

consumaccedilatildeo da histoacuteria da metafiacutesica a instauraccedilatildeo do niilismo europeu e o advento da Era

Teacutecnica Paralelamente durante o mesmo periacuteodo (na verdade em 1954) Nishitani finalizava

a composiccedilatildeo de seu ensaio sobre ldquoNiilismo e Śūnyatārdquo mais tarde incluiacutedo no volume Shūkyo

to wa Nanika abordado aqui ao longo do terceiro capiacutetulo Como foi possiacutevel observar em

Nishitani a saiacuteda do ponto de vista da vacuidade ou nada absoluto demandava a busca por

uma postura interior do ser humano na qual se tornava evidente nada mais senatildeo o elemento

inexplicaacutevel e inexprimiacutevel do fundamento uacuteltimo da realidade que era assumido agora como

oriente para o comportamento humano frente ao colapso do novo mundo A dificuldade inerente

de absorver a proposta de Nishitani todavia eacute ilustrada de maneira praacutetica quando ele aborda

uma questatildeo particular qual seja a relaccedilatildeo entre ser humano e natureza na imagem do jardim

zen Noacutes estamos dentro do jardim e natildeo somos apenas espectadores porque noacutes nos tornamos

parte da real manifestaccedilatildeo da expressatildeo da proacutepria experiecircncia iluminadora do arquiteto do

jardim O jardim eacute meu mestre Zen agora e eacute seu mestre Zen tambeacutem (NISHITANI 1992 55)

Quando Heidegger indica em sua conferecircncia que a essecircncia da teacutecnica natildeo eacute ela mesma nada

teacutecnico ele estaacute em um movimento similar ao de Nishitani chamando atenccedilatildeo para o fato de

que eacute necessaacuterio tambeacutem retornar a algo que natildeo pode ser submetido agrave objetividade cientiacutefica

da relaccedilatildeo sujeito-objeto que sustenta a tecnicizaccedilatildeo do mundo Neste sentido a saiacuteda de

Heidegger eacute ilustrada por meio de um dos conceitos mais enigmaacuteticos de toda sua obra

Gelassenheit Heidegger escreve ldquoTalvez se oculte na Gelassenheit uma accedilatildeo mais elevada do

que em todos os atos do mundo e do que nas maquinaccedilotildees das reliacutequias humanasrdquo (HEIDEGGER

1983a 41) O sentido contudo permanece oculto Resta apenas a ideia de que esta postura

evocada por Heidegger demanda um ldquodeixarrdquo (lassen) que atina para um recolhimento da

paradoxal ambiguidade do que se revela na essecircncia do humano

118

Ressoa tanto em Heidegger quanto em Nishitani uma raiz comum aquela na qual se

ldquoRenuncia aos sentidos agraves operaccedilotildees intelectuais a todo sensiacutevel e ao inteligiacutevelrdquo ainda mais

aquela onde se pede ldquoDespoja-te de todas as coisas que satildeo e ainda das que natildeo satildeo Deixa de

lado teu entender e esforccedila-te por subir o mais que possa ateacute unir-se com aquele que estaacute mais

aleacutem de todo ser e todo saberrdquo Estas palavras aqui propositalmente citadas sem a indicaccedilatildeo

bibliograacutefica satildeo do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita onde neoplatonismo e miacutestica se encontram

no caminho da negatividade Tanto o ldquoprestar atenccedilatildeo aos misteacuterios da naturezardquo em Nishitani

quando a ldquoabstenccedilatildeo da vontade por meio da natildeo-vontaderdquo o ldquoquerer o natildeo-quererrdquo em

Heidegger estatildeo depositados nas sentenccedilas do miacutestico siacuterio

Agora qual eacute este lugar ou natildeo-lugar aleacutem de todo ser e todo saber O que se revela

por meio do despojo e da supressatildeo de todo saber e todo o dizer Esta pergunta natildeo eacute respondida

Natildeo pode ser respondida O que se desvela aiacute eacute justamente o incoacutegnito o misteacuterio Como reagir

portanto frente a tal proposta de em meio a existecircncia contemporacircnea remar no contrafluxo

do sentido do mundo e buscar uma quietude absoluta no silecircncio que adveacutem do misteacuterio da

existecircncia Agrave esta pergunta tampouco se ofereceraacute resposta mas desta vez porque ela jaacute estaacute

respondida A reaccedilatildeo foi nomeada com diversos termos ao longo da histoacuteria recebendo distintas

designaccedilotildees Algumas tradiccedilotildees orientais optam por chama-la ldquoiluminaccedilatildeordquo

Por fim o conflito das fronteiras aqui abordado natildeo eacute um evento especiacutefico um

momento ou instante captaacutevel uma situaccedilatildeo ou circunstacircncia particular O conflito das

fronteiras eacute um caminho ou melhor uma caminhada Uma caminhada rumo ao desconhecido

cujo uacutenico sinal evidente acena para o clamor de um silecircncio ensurdecedor indicando que jaacute eacute

hora de se recolher

119

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7

RESUMO

O conflito das fronteiras se desdobra como um percurso natural da histoacuteria do pensamento

humano Torna-se manifesto todavia apenas mediante um expliacutecito choque cultural que

evidencia distintas formataccedilotildees conceituais Pensar este conflito pode esclarecer os enlaces

responsaacuteveis pelo desenvolvimento do pensamento contemporacircneo Esta tese pretende analisar

em um primeiro momento a histoacuteria do pensamento enquanto metafiacutesica apresentando um

diagnoacutestico da maneira pela qual o Ocidente impinge sua loacutegica categoacuterica Por conseguinte

apresenta a tradiccedilatildeo da negatividade evidenciando um pensamento para aleacutem da ontologia

claacutessica mediante uma henologia e uma meontologia no neoplatonismo e na miacutestica medieval

Por fim expotildee o pensamento do Extremo Oriente como possiblidade de recepccedilatildeo

contemporacircnea da negatividade e escapatoacuteria para a formataccedilatildeo ocidentalizante da filosofia

vigente

Palavras-chave Fronteiras Metafiacutesica Negatividade Extremo Oriente

8

ABSTRACT

The conflict of borderlines unfolds itself as a natural path in history of human thought It

becomes clear only through an explicit cultural clash which conveys distinct conceptual

formatting Thinking this conflict might enlighten the bindings responsible for development of

contemporary way of thought This thesis intent to analyse in a first moment the history of

thought as Metaphysics presenting a diagnostic towards the way through which the West

impinges its categorical logic Thereafter presents the tradition of Negativity showing a

thinking beyond Classic Ontology through a Henology and a Meontology in Neoplatonism and

Medieval Mysticism At the end exposes the Far Eastern thought as possibility of contemporary

reception of Negativity and escape from the Westernizer formatting of contemporary

philosophy

Key words Frontiers Metaphysics Negativity Far East

9

ZUSAMMENFASSUNG

Der Konflikt der Grenzen entfaltet sich als einen natuumlrlichen Weg in der Geschichte des

menschlichen Denkens Es wird nur klar durch eine explizite Kulturkampf die unterschiedliche

konzeptionelle Formatierung vermittelt Denken dieses Konflikts koumlnnte die Bindungen fuumlr die

Entwicklung der zeitgenoumlssischen Denkweise verantwortlich zu erleuchten Diese These

versuchen zu analysieren in einem ersten Moment die Geschichte des Denkens als Metaphysik

praumlsentiert eine Diagnose auf die Moumlglichkeit durch die der Westen trifft seine kategorische

Logik Danach praumlsentiert die Tradition der Negativitaumlt zeigt ein Denken jenseits Klassische

Ontologie durch eine Henologie und Meontologie im Neuplatonismus und mittelalterliche

Mystik Am Ende macht der Fernost gedacht als Moumlglichkeit der zeitgenoumlssischen Rezeption

von Negativitaumlt und Flucht aus der Westler Formatierung der zeitgenoumlssischen Philosophie

Schuumlsselwoumlrter Frontiers Metaphysik Negativitaumlt Fernost

10

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 11

1 ONTOLOGIA A SUBSTANTIVACcedilAtildeO DO OCIDENTE E O PROBLEMA DA METAFIacuteSICA 28

ENQUANTO DELIMITACcedilAtildeO DAS FRONTEIRAS DO PENSAMENTO

2 O CAMINHO DA NEGATIVIDADE HENOLOGIA E MEONTOLOGIA E A ULTRAPASSAGEM 61

DOS LIMITES DA METAFIacuteSICA

3 O EXTREMO ORIENTE E O CONFLITO DAS FRONTEIRAS A FILOSOFIA COMPARADA 89

INTERCULTURAL COMO CHAVE DE LEITURA PARA ALGUNS PROBLEMAS DO

PENSAMENTO CONTEMPORAcircNEO

CONCLUSAtildeO 113

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 119

11

INTRODUCcedilAtildeO

Aos 16 de abril de 2010 sob a avaliaccedilatildeo de uma banca composta pelos professores Oscar

Federico Bauchwitz Gisele Amaral dos Santos e Acylene Maria Cabral Ferreira defendi a

dissertaccedilatildeo de mestrado intitulada A caminho da fronteira Embora possa ainda dedicar mais

dez anos agrave correta composiccedilatildeo estiliacutestica daquele texto aleacutem da estruturaccedilatildeo dos argumentos

laacute natildeo tatildeo bem encadeados imagino ter alcanccedilado o objetivo de tornar claro natildeo apenas o intuito

do trabalho mas o problema movimentado pela questatildeo do conflito fronteiriccedilo de uma filosofia

comparada intercultural por meio de uma histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica

A questatildeo ldquoentre Heidegger e os japonesesrdquo (subtiacutetulo da dissertaccedilatildeo) abordada ao longo

dos dois anos de mestrado acadecircmico referia-se a uma virada de pontos de vista se em um

primeiro momento os orientais se perguntavam o quecirc a filosofia ocidental podia oferecer ao

pensamento e desenvolvimento do Extremo Oriente em um segundo momento os ocidentais

passaram a se perguntar de que forma os japoneses podiam acrescentar agrave filosofia um elemento

meditativo perdido no periacuteodo da consumaccedilatildeo da teacutecnica moderna e do cientificismo desde

suas perspectivas milenares de pensamento reflexivo

Ao passo em que a pesquisa ia se desenvolvendo o trabalho caminhou paulatinamente

rumo ao impacto violento surtido pelo diaacutelogo entre limites bem delineados de um Ocidente

estruturalmente metafiacutesico e um Oriente especulativo quase inefaacutevel para um leitor ocidental

A conclusatildeo extraiacuteda do caminho percorrido entre os anos de 2008 e 2010 apresentou antes de

qualquer soluccedilatildeo a constataccedilatildeo da instalaccedilatildeo de uma impertinecircncia petrificada no seio da

filosofia contemporacircnea sobre a qual pouco se pode acrescentar na dissoluccedilatildeo de problemas

mas muito se pode desdobrar no que tange ao entrelaccedilamento do alcance de um grau distinto

de movimentaccedilatildeo das arquitetocircnicas conceituais

12

Embora tais palavras pareccedilam abstratas em demasia (e de fato satildeo) o foco atingido se

concentrou em uma inquiriccedilatildeo a respeito do pensamento da linguagem e da verdade a partir

de um inusitado enigma sobre a negatividade do impensaacutevel ou seja sobre o silecircncio que

emerge no preciso momento no qual o pensamento eacute estarrecido e a liacutengua cala

A armadilha construiacuteda a partir das muacuteltiplas tentativas de elaboraccedilatildeo de conceitos afeta

natildeo somente a formataccedilatildeo silogiacutestica do intelecto humano comum mas ainda as

particularidades dos diversos modos de expressatildeo geograficamente distintos Correndo o risco

de se tornar antes uma antropologia filosoacutefica do que propriamente uma histoacuteria e criacutetica da

metafiacutesica o trabalhou refletiu uma anaacutelise agrave proacutepria concepccedilatildeo pela qual se distingue uma

filosofia da outra execrando qualquer nacionalismo filosoacutefico e investigando as questotildees que

envolvem a existecircncia humana dentro de seu modo relacional com o ser e com o ambiente que

a cerca O resultado foi a apresentaccedilatildeo de uma filosofia comparada intercultural que aparece

natildeo simplesmente como um campo disciplina ou subaacuterea da filosofia mas antes como uma

maneira pela qual eacute possiacutevel pensar filosoficamente para aleacutem das fronteiras de uma mera

linguagem de primeira ordem Dentro deste contexto nasce a hipoacutetese do tema o conflito das

fronteiras a partir do pressuposto de uma abordagem aos temas centrais do pensamento

contemporacircneo sustentando a interculturalidade filosoacutefica como aporte central

A proposiccedilatildeo fundamental desta tese adveacutem de alguns questionamentos particulares e

pontuais em um fluxo semelhante ao da dissertaccedilatildeo de 2010 Em abril de 2009 enquanto ainda

trabalhava no texto do mestrado teve lugar no campus da Universidade Federal do Rio Grande

do Norte o III Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica comissionado pelos professores Oscar

Federico Bauchwitz Jaimir Conte Maria da Paz Nunes de Medeiros e Markus Figueira da Silva

O evento marcava a consolidaccedilatildeo da linha de pesquisa em Metafiacutesica do Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Filosofia da universidade trazendo em sua terceira ediccedilatildeo o tema O que eacute

metafiacutesica Em homenagem aos oitenta anos da preleccedilatildeo homocircnima de Martin Heidegger

13

A conferecircncia pronunciada por Heidegger aos 24 de julho de 1929 foi preparada como

aula inaugural para a assunccedilatildeo da caacutetedra de filosofia que antes pertencera a Edmund Husserl

na Albert-Luumldwigs Universitaumlt Freiburg im Breisgau O escrito se tornou um dos mais

emblemaacuteticos conhecidos e discutidos textos de Heidegger Talvez o fator mais impactante da

preleccedilatildeo seja antes mesmo da abordagem temaacutetica o meacutetodo pouco usual conforme o qual o

questionamento eacute elaborado Heidegger inicia a aula dizendo que embora a questatildeo suscite a

expectativa de que se falaraacute sobre a metafiacutesica ele iraacute na verdade discutir uma questatildeo

metafiacutesica particular proporcionando uma movimentaccedilatildeo em seu interior e habilitando a

oportunidade para que a ela apareccedila por si soacute a partir do problema levantado (cf HEIDEGGER

1976 103) Deixar a metafiacutesica se apresentar por si soacute antes do que sobre ela discorrer

evidencia uma feiccedilatildeo um tanto distinta da abordagem de Heidegger ao problema uma de suas

marcas registradas todavia

Raras vezes a tradiccedilatildeo ocidental se deparou com tal niacutevel de heterodoxia no que tange

agrave instruccedilatildeo filosoacutefica (talvez apenas Platatildeo tenha cunhado semelhante meacutetodo ao perseguir o

pescador com o anzol antes de se aproximar da figura do sofista por exemplo ndash natildeo consigo

pensar em outras ilustraccedilotildees agora mesmo embora certamente elas existam) Uma linha de

raciociacutenio como esta aproxima-se muito mais de uma postura oriental

Durante o Coloacutequio aleacutem de retomar pela eneacutesima vez a leitura da preleccedilatildeo de

Heidegger lembro-me de me dedicar agrave leitura da claacutessica obra propedecircutica de Kaiten Nukariya

The Religion of Samurai (1913) a primeira obra sobre zen budismo publicada no Ocidente (em

liacutengua ocidental) Apoacutes uma breve introduccedilatildeo sobre a origem do budismo na Iacutendia e o percurso

de Śākyamuni Siddhārta Gautama (o Buddha Śākyamuni शाकयमनि) Nukariya relata a maneira

pela qual o monge Bodhidharma introduz o budismo na China destacando que seu meacutetodo era

inteiramente diferente dos outros instrutores de ensino ordinaacuterios

14

Sobre Bodhidharma Nukariya relata ldquoEle natildeo explicaria nenhum problema ao

estudante mas simplesmente ajudaacute-lo-ia a ser iluminado colocando-o um abrupto poreacutem eficaz

questionamentordquo (NUKARIYA 2006 10) Com esta metodologia tem iniacutecio a tradiccedilatildeo de

budismo chinecircs nomeada chrsquoan (dʑjen 禪) uma traduccedilatildeo do termo sacircnscrito dhyāna (धयाि) cujo

significado mais geral seria ldquomeditaccedilatildeordquo ou ldquopensamentordquo que futuramente seria lido na

pronuacutencia japonesa (くんよみ kun-yomi) do ideograma como zen (禅 ) Apoacutes expor esta

caracteriacutestica iacutempar do ensino de Bodhidharma Nukariya ainda relata uma breve histoacuteria na

qual um tal Shang Kwang havia requisitado ao mestre que ldquolhe pacificasse a menterdquo

Prontamente Bodhidharma teria respondido ldquoTraga-me aqui sua mente ante mim para que eu

a pacifiquerdquo e Shang Kwang teria replicado ldquomas isto eacute impossiacutevelrdquo recebendo em seguida

a resposta ldquoentatildeo jaacute pacifiquei sua menterdquo Shang Kwang foi instantaneamente iluminado

Certamente Martin Heidegger natildeo exige de seus ouvintes leitores e interlocutores uma

iluminaccedilatildeo tatildeo abrupta e desprovida de raciociacutenio loacutegico mas nem por isto suas reivindicaccedilotildees

satildeo menos ousadas e intensas ou sua meditaccedilatildeo menos profunda Heidegger propocircs diversas

reflexotildees que extraiacutedas de seu contexto especiacutefico configuram-se tatildeo inusitadas quanto as

passagens da tradiccedilatildeo chrsquoan ou zen sendo por vezes consideradas mesmo impertinentes Eacute o

caso de uma de suas mais arrojadas e emblemaacuteticas afirmaccedilotildees ldquoO mais grave eacute que natildeo

pensamosrdquo (HEIDEGGER 2002 6) Desconsiderando o sentido ao qual a sentenccedila pertence

certamente as palavras de Heidegger parecem uma afronta Todavia o leitor atento sabe que

Heidegger se refere agrave distinccedilatildeo entre um pensamento calculador (rechnende Denken) e um

pensamento meditativo (Besinnung) reportando-se ao velamento deste uacuteltimo e da supremacia

exclusiva do primeiro por meio do qual se faz ciecircncia e se daacute o desenvolvimento estrutural da

condiccedilatildeo tecnoloacutegica imperiosa Eacute justamente dentro deste fluxo que Heidegger afirma a

predominacircncia do pensamento cientiacutefico tambeacutem em Was ist Metaphysik

15

Para ingressar no interior da metafiacutesica Heidegger chama atenccedilatildeo ao fato de que a

existecircncia humana eacute hoje sobremaneira norteada pela ciecircncia Embora alguns opositores ainda

resistam agrave tal afirmaccedilatildeo natildeo eacute todavia difiacutecil convencecirc-los do contraacuterio argumentando em

favor da tese de Heidegger Natildeo se trata apenas de afirmar que o ser humano se apoia e confia

uacutenica e exclusivamente (quiccedilaacute mesmo cegamente) na ciecircncia como modo de desenvolvimento

e sustentaccedilatildeo da vida humana na Terra Antes disto e mais grave ainda trata-se de constatar

que a maneira pela qual o ser humano hoje pensa eacute tatildeo somente cientiacutefica mesmo em casos nos

quais o discurso supostamente se volta para um tema espiritual ou de feacute (ou qualquer outro

assunto) ndash a despeito de qualquer pretensa e torta teosofia eacute ainda a teologia a ciecircncia reinante

dos seminaacuterios sem embargo Independente do tema ou assunto da circunstacircncia ou

necessidade a maneira de proceder eacute jaacute sempre cientiacutefica sustentada por uma loacutegica inflexiacutevel

que imputa sua norma de que ldquosendo algo aquilo mesmo isto ou bem eacute ou bem natildeo eacute natildeo

havendo uma terceira opccedilatildeordquo

Em outras palavras parece ter se ocultado na mente humana qualquer outro modo de

pensar que natildeo seja o propriamente cientiacutefico Este modo cientiacutefico de pensar possui algumas

caracteriacutestica pelas quais se pode evidenciaacute-lo estritamente desde um triacuteplice entendimento que

compreende ldquoreferecircncia ao mundordquo ldquoposturardquo e ldquoirrupccedilatildeordquo Heidegger explica estes pontos

ldquoAquilo que na referecircncia ao mundo permanece eacute o ente em si mesmo ndash e mais nada Aquilo

que lidera toda postura eacute o ente em si mesmo ndash e nada mais Aquilo que faz acontecer a

discussatildeo investigativa da irrupccedilatildeo eacute o ente em si mesmo ndash e aleacutem disto nadardquo (IDEM OP CIT

105) A cientificidade da existecircncia humana se expressa mediante uma projeccedilatildeo ao ente e nada

mais Ao afirmar a determinaccedilatildeo da ciecircncia na vida e conduta humanas Heidegger quer deixar

ver sobretudo isto o fato de que hoje soacute eacute validado o discurso de um sujeito cujo objeto

cognosciacutevel eacute um ente este mesmo que subjacente obsta-lhe Dentro da relaccedilatildeo entre sujeito

e objeto toda uma tradiccedilatildeo se fundamenta e doravante prossegue da mesma maneira

16

Fazendo uma revisatildeo dos passos da histoacuteria do pensamento humano seria mais ou menos

faacutecil portanto imaginar como a partir da metafiacutesica claacutessica se desdobra o cientificismo

sobretudo tendo em vista a doutrina das Categorias de Aristoacuteteles aleacutem da tatildeo aclamada

ldquociecircncia do ente enquanto enterdquo Contudo natildeo eacute este o alvo de Heidegger Deixar a metafiacutesica

aparecer por si soacute deve contemplar a totalidade do questionamento proposto e natildeo um

historicismo vulgar Que todo raciociacutenio eacute regulado e direcionado pelo ente facilmente

constata-se Agora bem o que se passa com a outra parte da inquiriccedilatildeo qual seja o ldquonada

maisrdquo Heidegger formula a questatildeo ldquoA ciecircncia natildeo quer saber do nada Mas certamente em

sua permanecircncia ao manifestar sua proacutepria natureza chama o nada para ajudar O que ela

rejeita eacute necessaacuterio para classificaacute-la Que ambiacutegua essecircncia se revela aiacuterdquo (ID IBIDEM 106) Ao

perquirir o ente e aleacutem disto nada o elemento que confere a exatidatildeo de sua pesquisa eacute

auxiliado pelo ldquonadardquo ou seja trata-se disto e nada mais (por mais redundante e ambivalente

que soe ateacute mesmo um pouco non sense) Heidegger pergunta ldquoO que acontece com o nadardquo

(ID IBID) ou ainda para onde vai esse nada em meio agrave existecircncia cientiacutefica

Eacute justamente a inusitada apariccedilatildeo deste nada que revela o incocircmodo de um elemento

impensaacutevel e inexprimiacutevel que natildeo se dobra ante agrave relaccedilatildeo sujeito-objeto Natildeo eacute preciso aqui

destrinchar todo o caminho percorrido por Heidegger em Was ist Metaphysik Trata-se de um

texto bastante lido e amplamente comentado Basta apenas pontuar a sentenccedila central da

conferecircncia (ou a pergunta-condutora a Leitfrage) por meio da qual emerge a resposta agrave

questatildeo ldquoo que eacute metafiacutesicardquo ldquoPor que haacute absolutamente o ente e natildeo antes nadardquo (ID IBID

122) O extraordinaacuterio da questatildeo eacute justamente a capacidade do ser humano em por ela

perguntar A capacidade de questionar ldquopor que natildeo nadardquo define uma disposiccedilatildeo fundamental

da existecircncia quiccedilaacute mesmo aquela ocultada pelo modo cientiacutefico de existir (ou seja

paradoxalmente este mesmo modo eacute responsaacutevel por evidenciar o que nele se perde)

17

A disposiccedilatildeo que regula a eleiccedilatildeo do modo cientiacutefico de pensar tem em vista

salvaguardar o humano do abismo (da falta de fundamento) que se abre quando o nada emerge

silencia o discurso e joga o ser humano em uma situaccedilatildeo incocircmoda uma anguacutestia profunda

Quase como um mestre zen Heidegger deixa a metafiacutesica se abrir natildeo pela pergunta nem

sequer pela acircnsia de prover ao interlocutor (ou a si mesmo) uma resposta mas pela simples

possibilidade e capacidade de perguntar A metafiacutesica neste sentido perdura antes como uma

decisatildeo Ao que parece por este motivo Heidegger cita um trecho de Eacutedipo em Colonos de

Soacutefocles no posfaacutecio agrave preleccedilatildeo (em 1943) destacando os versos (em sua traduccedilatildeo particular

por mim aqui pobremente e quiccedilaacute mesmo irresponsavelmente adaptada) que dizem

ἀλλ᾽ ἀποπαύετε μηδ᾽ ἐπὶ πλείω

θρῆνον ἐγείρετε˙

πάντως γὰρ ἔχει τάδε κῡρος

Mas paremos e nunca mais a partir de agora

despertaremos o lamento

Em todos os lugares se deteacutem o evento

assegurando-lhe uma decisatildeo pela conclusatildeo (ID IBID 312)

A ldquodecisatildeo pela conclusatildeordquo coloniza todos os lugares e se deteacutem a partir de agora em uma

posiccedilatildeo da qual natildeo mais se sairaacute A anguacutestia revelada a partir do pensamento em torno ao

nada manifesta os limites da linguagem e vislumbra o destino do ente no ser em sua plenitude

e predominacircncia Mas para aleacutem da constataccedilatildeo da indigecircncia da linguagem haacute todavia uma

possibilidade de abordar efetivamente esse nada Como eacute possiacutevel pensar para aleacutem da

delimitaccedilatildeo entificante da referecircncia ao mundo da postura e da irrupccedilatildeo Haacute um caminho de

ultrapassagem e superaccedilatildeo possiacutevel ainda nos dias de hoje

18

Ao passo em que avanccedilava nas leituras e Heidegger e em algumas outras esta se tornou

a pergunta-chave pela qual imaginava atingir certo direcionamento temaacutetico A despeito da

disposiccedilatildeo de humor apresentada na conferecircncia bem como das consideraccedilotildees do posfaacutecio de

1943 os trabalhos de Heidegger dos anos de 1930 em diante datildeo a entender um claro

direcionamento pelo qual os elementos abandonados pela entificaccedilatildeo do pensamento podem ser

evidenciados qual seja a partir da poesia Os versos de Soacutefocles segundo o proacuteprio Heidegger

ldquoa uacuteltima poesia do uacuteltimo poeta gregordquo natildeo estatildeo ali dispostos sem motivo Tambeacutem natildeo eacute

sem razatildeo que a partir de aiacute haacute uma incansaacutevel busca pela poesia de Friedrich Houmllderlin (aleacutem

de Georg Trakl Stephan George Rainer Maria Rilke e de outros poetas escolhidos por

Heidegger) Ateacute certo ponto eacute possiacutevel afirmar que Heidegger encontra na poesia a

possibilidade de superar a linguagem por meio da proacutepria linguagem Em alguns outros

momentos uma meditaccedilatildeo de teor semelhante aparece como no encontro entre Heidegger e os

japoneses (como apresentei na dissertaccedilatildeo de 2010) Contudo restava ainda buscar os modos

de reflexatildeo que natildeo simplesmente podiam ir aleacutem da expressatildeo da ciecircncia do ente enquanto

ente mas ainda colocaacute-la em questionamento mediante outros meacutetodos

Foi na abertura do III Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica que minhas inquietaccedilotildees

comeccedilaram a se asseverar e ganhar corpo para o que viria a ser esta tese A conferecircncia

inaugural do evento foi sobremaneira marcante neste processo O professor Gilvan Fogel da

Universidade Federal do Rio Janeiro havia sido convidado para encerrar o primeiro dia de

evento Ele apresentou naquela noite a conferecircncia O que eacute metafiacutesica Como ele mesmo frisou

ldquonatildeo a pergunta mas a respostardquo Havia sem embargo a intenccedilatildeo de responder a pergunta

em um certo direcionamento eacute claro O texto vinha ainda acompanhado de um subtiacutetulo (com

o qual foi publicado como tiacutetulo oficial alguns anos depois diga-se de passagem) Sobre a

metafiacutesica ou a respeito do jejum O mote para o subtiacutetulo o proacuteprio professor o explica na

passagem inicial do texto que gostaria de citar por completo agora mesmo

19

O subtiacutetulo pode soar estranho insoacutelito e natildeo muito seacuterio Mas pelo que ele insinua

pretende anunciar algo seacuterio mesmo muito seacuterio a saber a metafiacutesica E a inspiraccedilatildeo

ou a motivaccedilatildeo que propicia o encaminhamento para a questatildeo anunciada a

metafiacutesica vem de uma obra igualmente seacuteria muito seacuteria ainda que se possa melhor

que se deva dela se ocupar tambeacutem com grandes e gostosas gargalhadas ndash aquelas que

no destampar do riso sacudindo a barriga bem solta e largada deixam escorrer

viacutesceras pela boca afora Estou me referindo ao Dom Quixote o Engenhoso Fidalgo

Dom Quixote lsquode la Mancharsquo ndash o ldquoda Triste Figurardquo

Entre as poesias que preludiam a primeira parte e que homenageiam seus personagens

maiores temos o uacuteltimo que eacute um diaacutelogo em forma de soneto entre Babieca o

cavalo de El Cid e Rocinante o grande rocim o pangareacute erado de Dom Quixote A

certa altura do diaacutelogo-soneto Babieca pergunta ldquoSeraacute tolice amarrdquo e Rocinante

responde ldquoNatildeo eacute muito prudenterdquo Babieca retruca ldquoEstaacutes metafiacutesicordquo E Rocinante

contesta enfaacutetico ldquoEacute que natildeo comordquo (FOGEL 2011 101)

A passagem sugere que a metafiacutesica eacute antes de tudo coisa de fome Por isto ldquoa respeito do jejumrdquo

denuncia a indisposiccedilatildeo que envolve a metafiacutesica A metafiacutesica eacute portanto certo incocircmodo que

eacute tambeacutem necessidade premente decorrente de certa privaccedilatildeo A partir disto Fogel delineia o

tipo de jejum ao qual se refere natildeo se trata de um jejum nutricional alimentiacutecio mas jejum de

vida conforme ele mesmo diz ldquo() natildeo vida no sentido bioloacutegico mas no sentido banal e

corriqueiro como falamos da vida de ldquonossa vidardquo ndash que ela eacute boa ou ruim ou um buracordquo

(IDEM IBIDEM 102) Esta vida a vida imanente a vida do cotidiano do dia-a-dia esta mesma

que ocupa o tempo e o espaccedilo sofre priva-se absteacutem-se Esta abstenccedilatildeo e privaccedilatildeo satildeo a

condiccedilatildeo pela qual reverbera sua constituiccedilatildeo enquanto sujeito ndash e nasce aiacute uma interpretaccedilatildeo

do que eacute enfim metafiacutesica A partir da conferecircncia de Fogel aleacutem de algumas outras

consideraccedilotildees comecei a ponderar a maneira pela qual abordaria o problema

20

Natildeo por meio de uma definiccedilatildeo conceitual acontecimento histoacuterico ou muacutetuo

consentimento temaacutetico mas por meio de uma experiecircncia de pensamento que sem deixar de

lado nenhum dos elementos supracitados configura-se antes como algo intriacutenseco agrave proacutepria

natureza do pensar Ponderando as consideraccedilotildees da conferecircncia de Heidegger a metafiacutesica se

deixa mostrar como uma decisatildeo pela conclusatildeo Um iacutempeto maior do ser humano em

resguardar sua condiccedilatildeo de pacificidade A humanidade teme o caos teme o desalinho receia

o incoacutegnito e inexprimiacutevel Elege por isto seu caminho de seguranccedila com aquilo que lhe eacute

papaacutevel o ente enquanto ente e nada mais Nada quer saber do nada que nada lhe oferece aleacutem

de um indisposto silecircncio um insoacutelito vazio Mediante esta postura embora sob o risco de

ocultar algo em si mesmo que talvez lhe sirva para alcanccedilar siacutetios recocircnditos do misteacuterio de

sua proacutepria existecircncia constitui-se o ser humano um metafiacutesico Sem embargo eacute preciso abster-

se de algo em prol disto ou daquilo que se lhe afigura mais propiacutecio ao momento Fogel enxerga

isto como privaccedilatildeo como jejum como fome Fica muito claro em sua interpretaccedilatildeo o caraacuteter

inflexiacutevel da decisatildeo pela conclusatildeo sobretudo quando traz agrave luz o curioso caso de Vicent van

Gogh

Fogel cita uma carta que van Gogh teria enviado em maio de 1888 a seu irmatildeo Theacuteo

onde descreve sua nova moradia e ao mesmo tempo atelier afirmando que o local eacute pouco

atraente para desenvolver qualquer tipo de flerte ou paquera acrescentando que dificilmente

enxerga como compatiacuteveis o trabalhar e o farrear (faire la noce) A verdade eacute que van Gogh

natildeo possui outra opccedilatildeo senatildeo se privar da diversatildeo do faire la noce natildeo porque eacute asceta ou

abstecircmio nem porque precisa dedicar mais tempo ao seu trabalho ou pagar suas contas (todos

sabem da condiccedilatildeo por vezes paupeacuterrima na qual ele se encontrou ao longo de seu percurso)

mas por ser artista por ser pintor por pintar Urge no artista uma realidade que parece muito

mais real que a vida comum na qual o farrear remete ao contentamento agrave felicidade Natildeo viver

a vida para van Gogh seria natildeo pintar

21

Se viver a vida eacute buscar este contentamento esta felicidade entatildeo van Gogh vive para

natildeo-viver Natildeo-viver se torna paradoxalmente a expressatildeo maacutexima da vida metafisicamente

entendida Fogel completa ldquoE por que natildeo viver este natildeo-viver seria ingratidatildeo Seria isso a

saber a distacircncia o agrave parte um dom um presente uma graccedilardquo (IDEM IBIDEM 105)

acrescentando ainda ldquoA metafiacutesica desde que jejum abstinecircncia de vida de viver seria

igualmente muita vida e natildeo cumpri-la natildeo realizaacute-la isto eacute natildeo pensar uma grande

ingratidatildeordquo (ID IBID) e por fim sugerindo ldquoAqui precisa-se confessar viver natildeo eacute preciso

Pintar pensar fazer quadros fazer metafiacutesica ndash isso eacute precisordquo (ID IBID) Ressalte-se o tom das

inquiriccedilotildees da interrogaccedilatildeo acompanhada pela exclamaccedilatildeo A precisatildeo da qual fala fazendo

menccedilatildeo a Fernando Pessoa eacute a necessidade de justeza de ser preciso e acurado destro

rigorosamente alinhado ao fazer metafiacutesica Assim se configura algo muito iacutentimo e sem

embargo inevitaacutevel na natureza humana

Fogel prossegue sua exposiccedilatildeo chamando ao diaacutelogo o Zaratustra de Friedrich

Nietzsche especificamente a seccedilatildeo intitulada Da Visatildeo e do Enigma na qual reincide o anuacutencio

da famosa doutrina do Eterno Retorno citando o trecho que diz

O homem eacute todavia o mais corajoso animal assim ele supera todo e cada animal Com

o jogo sonoro supera ele tambeacutem a dor Mas a dor humana eacute a dor mais profunda A

coragem tambeacutem indica a tontura morte em abismos e onde estaria o homem senatildeo

em abismos Ele natildeo vecirc a si mesmo ndash vecirc abismos (NIETZSCHE 2005 119)

Para Fogel o ldquoverrdquo natildeo denuncia uma observaccedilatildeo circunvisatildeo ou vislumbre mas antes um

acontecimento uma iluminaccedilatildeo um tornar visiacutevel Torna-se visiacutevel o abismo o sem fundo

sem fundamento Ao que parece quanto mais o ser humano contempla sua proacutepria existecircncia

mais sem chatildeo fica maior eacute a falta de fundamento e com maior radicalidade se abre um abismo

frente aos seus peacutes

22

Eacute possiacutevel todavia prosseguir caminhando ao lado de Nietzsche e Heidegger bem como

por meio das reflexotildees e interpretaccedilotildees oferecidas por Fogel buscando alcanccedilar uma feiccedilatildeo da

vida humana que permita descortinar a proveniecircncia metafiacutesica de seu percurso e ateacute mesmo

suscitando uma ultrapassagem deste fenocircmeno Contudo eacute necessaacuterio ainda precisar com maior

cuidado os termos contidos na questatildeo Faz parte do labor filosoacutefico se afundar mais e mais em

algo que por si soacute jaacute eacute bastante fundo

Natildeo apenas os pensamentos de Nietzsche e Heidegger oferecem uma especulaccedilatildeo de

formidaacutevel profundidade difiacutecil de ser absorvida em primeira matildeo como tambeacutem por vezes

pode se mostrar demasiado complexo empreender um rastreamento do sentido originaacuterio das

palavras e sentenccedilas salvo mediante uma anaacutelise completa (empresa complicadiacutessima

provavelmente impossiacutevel) de suas obras Mesmo assim talvez ainda natildeo se mostre com

suficiente nitidez se natildeo houver de antematildeo uma explanaccedilatildeo das fontes e referecircncias cruzadas

Com estas ideias em mente buscando avanccedilar cada vez mais no tema e sobre ele meditar

com cada vez mais dedicada atenccedilatildeo e profundidade tentando ampliar com ferocidade o

vocabulaacuterio (para fazer minhas as palavras de Marco Lucchesi) outro escrito me sobreveio

durante o processo de composiccedilatildeo das hipoacuteteses contidas neste trabalho Em Nihilismo e

Neoplatonismo (2003) Oscar Federico Bauchwitz traccedila algumas linhas que especificam a

condiccedilatildeo por meio da qual o problema efetivamente se apresenta

Haacute no texto de Bauchwitz tambeacutem um necessaacuterio retorno a Nietzsche e Heidegger Natildeo

apenas dentro do contexto de um estudo da metafiacutesica enquanto histoacuteria intelectual mas ainda

constatando os tempos onde ela se apresenta como formataccedilatildeo do modo de ldquoagir-pensarrdquo torna-

se imprescindiacutevel resgatar a lembranccedila de que ldquo() com Nietzsche se estabelece uma criacutetica da

metafiacutesica que acaba por homologar o seu oacutebitordquo (BAUCHWTIZ 2003b 169) Como explica

Bauchwitz a declaraccedilatildeo da morte da metafiacutesica eacute aquela mesma da morte do platonismo

cristianismo niilismo e outros sinocircnimos para o mesmo fenocircmeno

23

Esta morte natildeo eacute todavia apenas uma declaraccedilatildeo da inexistecircncia corrente do pensamento

metafiacutesico senatildeo sua consumaccedilatildeo total e absoluta A ldquociecircncia do ente enquanto enterdquo entifica

tudo aquilo que outrora foi nomeado vida (φύσις) pelos gregos dos periacuteodos arcaico e claacutessico

ndash das coisas ao redor aos pensamentos e aos deuses A entificaccedilatildeo do mundo em torno eacute sem

sombra de duacutevidas a maneira pela qual a ciecircncia vigente concebe o mundo configurando o que

Heidegger havia chamado de ldquoreferecircncia ao mundordquo A entificaccedilatildeo do pensamento por sua vez

denota a ldquoposturardquo tambeacutem mencionada por Heidegger aquela mesma segundo a qual haacute uma

maneira ldquocorretardquo de pensar Ao passo que a entificaccedilatildeo dos deuses um pouco mais complicada

apresenta-se como ldquoirrupccedilatildeordquo na qual a circunvisatildeo resultante dos dois elementos acima

mencionados denuncia a morte de deus a fuga dos deuses o viver sem o divino sem o

iluminado sem o deslumbre Desatados os laccedilos entre ser humano e divindade Bauchwitz

questiona ldquoO que natildeo pode o homem modernordquo (IDEM IBIDEM 170) questionamento que

poderia ainda ser vertido nos termos (mais ou menos) de Dostoievsky ldquose deus morreu entatildeo

tudo eacute permitidordquo ou ainda nos (mais ou menos novamente) de Heidegger ldquose apagou da

histoacuteria universal o esplendor da divindade Essa eacute a eacutepoca da noite do mundordquo Contudo para

Bauchwitz perdura algo no labor filosoacutefico que torna liacutecito novamente regressar agrave questatildeo Ele

explica que ldquoResgatar a forccedila mais originaacuteria das palavras eacute o ofiacutecio do filoacutesofo Por isso

dizemos que a miacutestica se mostra no fechar de olhos no fechar da bocardquo (ID IBID 173) Recordo-

me acompanhando os seminaacuterios matinais do professor Bauchwitz de ouvir certa vez a

sentenccedila ldquoo miacutestico estaacute sempre em conflito com a linguagemrdquo Conflito ou confronto natildeo me

lembro muito bem Havia de fato escrito a frase literalmente ao peacute da paacutegina de algum livro

(ou alguma fotocoacutepia) que agora mesmo esqueccedilo qual era e natildeo consigo encontrar

Independente das palavras exatas o que se apresenta no texto de Bauchwitz eacute a sugestatildeo de um

caminho para este resgate por meio de um conflito o confronto suscitado pela miacutestica

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Bauchwitz escreve ldquoO miacutestico eacute em primeiro lugar aquele que acolhe o misteacuterio dentro

de si recolhendo em silecircncio o sentido oculto da realidade soacute depois eacute que o silecircncio rompe a

barreira dos dentes para mostrar-se linguagemrdquo (ID IBID) E ainda prossegue especificando que

ldquoPor isso a miacutestica eacute uma experiecircncia radical da liberdade proacutepria Abrindo matildeo de um mundo

que clama sua atenccedilatildeo o miacutestico encontra-se com o que nele eacute totalmente incoacutegnito e

incognosciacutevel um eu que se mostra como puro nadardquo (ID IBID) A maneira pela qual Bauchwitz

iraacute desdobrar a explicaccedilatildeo destas sentenccedilas sobremaneira enigmaacuteticas percorreraacute trecircs

pensadores que marcam a tradiccedilatildeo do neoplatonismo e da chamada miacutestica medieval quais

sejam Pseudo-Dioniacutesio Areopagita Joatildeo Escoto Eriuacutegena e Mestre Eckhart Contudo o que

havia me saltado aos olhos antes da eleiccedilatildeo temaacutetica autoral ou metodoloacutegica havia sido a

sentenccedila ldquoum eu que se mostra como puro nadardquo Jaacute havia encontrado semelhante formulaccedilatildeo

todavia nunca em autores ocidentais Remeti diretamente a maneira pela qual a tradiccedilatildeo

mahāyāna do budismo do leste asiaacutetico havia compreendido a noccedilatildeo do natildeo-si-mesmo ou natildeo-

ego (anātman अितमि) como dissoluccedilatildeo do eu por meio da tensatildeo entre forma (ou fenocircmeno ou

ainda aparecircncia rūpa रप) e nada (ou vacuidade śūnyatā शनयता) Estas ideias derivam

diretamente do chamado Cacircnone Pāḷi tendo sido transmitidas em sacircnscrito pelo Sūtra do

Coraccedilatildeo (Prajntildeāpāramitā Hṛdaya परझञापारनमताहरदय) ateacute alcanccedilarem formas mais refinadas no

budismo chrsquoan e no zen budismo japonecircs assumindo as configuraccedilotildees de ldquoformardquo ou

ldquoaparecircnciardquo enquanto shiki (色) e ldquonadardquo ou ldquovacuidaderdquo enquanto kū (空) elementos centrais

do pensamento da filosofia japonesa contemporacircnea da Escola de Kyōto (e que tambeacutem havia

abordado brevemente em minha dissertaccedilatildeo de mestrado) Tornou-se imperioso investigar ateacute

que ponto tais ideias se aproximam ou comungam de princiacutepios convergentes aleacutem da maneira

como elas repercutem em suas tradiccedilotildees e particularidades Mais uma vez encontrava-me frente

ao sem-fim nuacutemero de possibilidades comparativas e complementares

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Contudo temia o risco de cair no engodo certa vez denunciado por Immanuel Kant

quando afirmou em seus Prolegomena zu einer jeden kuumlnftigen Metaphyysik (1783) que ldquo()

dificilmente se espera que natildeo seja possiacutevel descobrir analogias para cada nova ideia entre ditos

de eras passadasrdquo (KANT 1911 7) natildeo havendo grande meacuterito nisto e sendo necessaacuterio admitir

que estes historiadores da filosofia ocupados com tal empreendimento devam antes aguardar

que os ldquoverdadeiros filoacutesofosrdquo esgotem as fontes da razatildeo Sob pena de realizar uma mera

comparaccedilatildeo friacutevola (embora com a consciecircncia de que passo longe de ser um ldquoverdadeiro

filoacutesofordquo ao menos no sentido Kantiano ndash talvez o seja em outro digamos mais Ginsbergiano

de pura pretensatildeo mas certamente natildeo muito talento) ocupei-me em corretamente designar o

problema que me afligia de modo que fosse possiacutevel corretamente endireitar o roteiro da tese

Era preciso encontrar um mote mesmo que ele natildeo deixasse ver claramente os passos a serem

percorridos mas que provessem alguma direccedilatildeo

Tendo isto em vista natildeo podia negar que o interesse pelo que ousei chamar de ldquoconflito

das fronteirasrdquo crescia a partir de um ldquopar de viacutergulasrdquo que aparentemente haviam escapado agrave

anaacutelise da histoacuteria do pensamento Em outras palavras um determinado momento no qual o

transcurso metafiacutesico foi levemente desviado em uma guinada espontacircnea e natural como um

marinheiro que sutilmente move o leme para a esquerda ou para direita ao perceber o advento

de uma portentosa onda logo atraacutes de si soltando o motor e deixando o barco ser levado pelo

mar ndash saacutebia decisatildeo em momentos de tormenta (passei por esta situaccedilatildeo certa vez em mar

aberto transitando entre Paraty e uma praia recocircndita Pouso do Cajaiacuteba se natildeo me falha a

memoacuteria gostaria de poder descrever em pormenores a experiecircncia que seria proveitosa ao

leitor em termos ilustrativos mas estava muito enjoado no barco para congregar detalhes

miacutesticos em minha massa cinzenta) E eram momentos de tormenta Como poderiam natildeo ser

Sendo assim estabeleci um conveniente itineraacuterio (ao menos sob meu ponto de vista) que

compartilho antes de iniciar o trabalho

26

O primeiro passo importante eacute estabelecer dentro de quais termos se apresenta a

metafiacutesica pela qual se nomeia a histoacuteria do pensamento ocidental O primeiro capiacutetulo da tese

intitulado Ontologia a substantivaccedilatildeo do Ocidente e a delimitaccedilatildeo das fronteiras do

pensamento ocupa-se de tal apresentaccedilatildeo e eacute na verdade bastante simples apesar do tiacutetulo

pomposo A despeito da abordagem histoacuterico-conceitual desdobrada em um primeiro momento

o capiacutetulo segue em consonacircncia com a avaliaccedilatildeo de Martin Heidegger assumindo-o como

interlocutor e inteacuterprete da histoacuteria e criacutetica da metafiacutesic Haacute aqui uma ecircnfase nas leituras por

meio das quais Heidegger caracterizou de maneira direta a passagem de uma fisiologia grega

claacutessica (por ele nomeada ldquopensamento originaacuteriordquo) para o acircmbito da ontologia latina e o modo

conforme o qual a proacutepria ideia de ldquoserrdquo eacute compreendida de maneira tatildeo somente substantivada

a partir de seu particiacutepio presente ldquoenterdquo Um necessaacuterio retorno cronoloacutegico-regressivo eacute

estabelecido do fim ao iniacutecio da modernidade pontuando autores como Jacob Lorhard e

Francisco Suaacuterez Todavia o objetivo principal do capiacutetulo eacute compreender este modo de

substantivaccedilatildeo e quais as consequecircncias disto para o pensamento em um sentido geral (a

delimitaccedilatildeo de suas fronteiras no final das contas) sem nunca perder de vista o peso aristoteacutelico

da designaccedilatildeo e realizando algumas especificaccedilotildees sobre isto

O segundo capiacutetulo intitulado O caminho da negatividade henologia e meontologia e

a ultrapassagem dos limites da metafiacutesica pretende caracterizar efetivamente essa nomeada

ldquonegatividaderdquo Negatividade que natildeo eacute simplesmente predominacircncia de um ldquonatildeordquo ou partiacutecula

de privaccedilatildeo mas antes assunccedilatildeo de um oxiacutemoro o auscultar de um inaudito Desenvolve-se

como argumento central por meio do qual se evidencia as estruturas baacutesicas de um pensamento

radical a evidenciaccedilatildeo de uma meditaccedilatildeo que jaacute natildeo eacute mais norteada pelo ldquoenterdquo mas sim pelo

ldquounordquo (henologia) neoplatocircnico ou mesmo por uma profunda meditaccedilatildeo em torno ao ldquonadardquo

(meontologia) presentes no neoplatonismo e sobremaneira evidentes no pensamento miacutestico

27

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo nomeado O Extremo Oriente e o conflito das fronteiras a

filosofia comparada intercultural como chave de leitura para alguns problemas do pensamento

contemporacircneo pretende conectar os pontos e resgatar o sentido da tese O capiacutetulo traz uma

breve apresentaccedilatildeo da chamada Escola de Kyōto e a constituiccedilatildeo da filosofia japonesa

contemporacircnea Este eacute o momento no qual eacute possiacutevel observar a recepccedilatildeo contemporacircnea da

filosofia ocidental (tanto dentro da tradiccedilatildeo metafiacutesica quanto ldquoforardquo dela na dita negatividade)

e o diaacutelogo (e siacutentese) com o mundo do Extremo Oriente O objetivo eacute portanto pensar em

comunhatildeo com os pensadores da Escola de Kyōto com especial atenccedilatildeo para Keiji Nishitani

(西谷 啓治) observando suas propostas para anaacutelise e resoluccedilatildeo dos problemas de filosofia

contemporacircnea e buscando um esclarecimento a respeito dos termos indicados

Ao fim e ao cabo a intenccedilatildeo aqui eacute convidar os leitores ao diaacutelogo intercultural

apresentando em um diaacuterio de minhas leituras diferentes nuances e pontos de vista a respeito

de algumas questotildees especiacuteficas e ousando um diagnoacutestico da filosofia contemporacircnea bem

como uma vaacutelvula de escape para a atual condiccedilatildeo do pensamento filosoacutefico Caso a empreitada

logre ecircxito acredito que uma nova conversa se abra e novas ideias venham agrave mente Sem

embargo trata-se de uma composiccedilatildeo acerca de um conflito o conflito das fronteiras

28

ONTOLOGIA A SUBSTANTIVACcedilAtildeO DO OCIDENTE E O PROBLEMA DA METAFIacuteSICA

ENQUANTO DELIMITACcedilAtildeO DAS FRONTEIRAS DO PENSAMENTO

Embora ontologia tenha um sentido bastante amplo (que seraacute melhor explorado ao longo do

capiacutetulo) aleacutem de uma sem-fim variedade de definiccedilotildees distintas de autor para autor (algumas

das quais seratildeo eleitas e apresentadas aqui) entende-se o conceito (de forma simplificada) como

um discurso capaz de reunir em uma unidade a polissemia do verbo ser O resultado eacute a

centralizaccedilatildeo conceitual de qualquer ulterior doutrina a partir da definiccedilatildeo desenrolada desde

sua compreensatildeo Por substantivaccedilatildeo do Ocidente refiro-me aqui agrave corrente historial

responsaacutevel por compreender o verbo ser de modo substantivado a partir de seu particiacutepio

presente ldquoenterdquo A intenccedilatildeo do capiacutetulo portanto concentra-se na investigaccedilatildeo do processo

decorrido dessa substantivaccedilatildeo e quais as consequecircncias disto para o pensamento ocidental e

contemporacircneo em uma concepccedilatildeo geral no que diz respeito agrave delimitaccedilatildeo das fronteiras do

pensamento

Em primeiro lugar gostaria de abrir uma interlocuccedilatildeo com o professor Charles H Kahn

da University of Pennsylvania dada a relevacircncia e pertinecircncia de sua obra The Verb lsquoBersquo in

Ancient Greek (1973) para o desenvolvimento do capiacutetulo Antes de desdobrar em pormenores

seu estudo bastante extenso e detalhado Kahn sustenta a tese de que haacute uma relatividade

linguiacutestica referente ao verbo ser (cf KAHN 2003 1-3) Em sua introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo de 2003 (cf

IDEM IBIDEM vii) Kahn se reposiciona em relaccedilatildeo ao argumento expresso em sua obra clamando

ser uma posiccedilatildeo bastante defensiva e ldquofora de modardquo para os tempos atuais Ainda assim trata-

se de uma hipoacutetese bastante interessante

29

A posiccedilatildeo de Kahn (cf IBID 1-3) se apoia na afirmaccedilatildeo de Angus C Graham1 acerca

do mesmo verbo dentro do chinecircs claacutessico onde o sinoacutelogo posiciona o ser relativamente agrave

regra gramatical inerente agrave formulaccedilatildeo de uma determinada sentenccedila significando portanto a

impossibilidade de uma doutrina universal acerca do ser compatiacutevel com liacutenguas distintas

(como o grego o aacuterabe ou o chinecircs) Isto concorda em absoluto com a ideia de que no proacuteprio

grego claacutessico e nas liacutenguas indo-europeias em geral conforme a menccedilatildeo feita por Kahn a

Eacutemile Benveniste2 natildeo haacute em hipoacutetese alguma a implementaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo universal ou

condiccedilatildeo necessaacuteria envolta na distribuiccedilatildeo dos significados do verbo ser Haacute sim e Benveniste

endossa a ideia uma predisposiccedilatildeo da linguiacutestica grega agrave ldquovocaccedilatildeo filosoacutefica da noccedilatildeo de serrdquo

Vocaccedilatildeo esta segundo Kahn muito geral e diversificada no desenvolvimento sistemaacutetico de

seu conceito desde Parmecircnides ateacute Aristoacuteteles e de uma maneira mais sistemaacutetica dos Estoicos

ateacute Plotino Em siacutentese Kahn sustenta que a tese de um determinismo linguiacutestico do ser eacute

claramente falsa ou seja mesmo em falantes de uma mesma liacutengua natildeo eacute possiacutevel encontrar

uma mesma doutrina em torno ao ser como eacute possiacutevel ver nos pensamentos distintos de Platatildeo

e Aristoacuteteles Epicuro e Plotino

Todavia natildeo haacute duacutevidas para Kahn a respeito das condiccedilotildees intriacutensecas da liacutengua de um

autor em sua atividade intelectual seus recursos e suas tendecircncias Ele afirma que natildeo haveria

possibilidade de especificar a determinaccedilatildeo ontoloacutegica se o verbo grego εἰμί natildeo fosse provido

do particiacutepio presente τὸ ὄν ou se natildeo houvesse a derivaccedilatildeo nominal ndashία da qual redunda a

noccedilatildeo de οὐσία Ou ainda a classe de morfemas que compreende ἐστί εἶναι e ἐών derivadas

do indo-europeu ndashes Satildeo as formas nominais do verbo que permitem segundo Kahn (cf IBID

451) natildeo soacute uma clara expressatildeo senatildeo tambeacutem a tematizaccedilatildeo do conceito como um toacutepico

distinto para a reflexatildeo filosoacutefica

1 Angus C Graham ldquoBeing in Classical Chineserdquo In The Verb lsquoBersquo and its Synonyms John W M Verhaar (ed)

Dordrecht Holland D Reidel 1967 1-39 2 Eacutemile Benveniste ldquoCateacutegories de penseacutee et cateacutegories de languerdquo Les Eacutetudes philosophiques n 4 (out-dez

1958) PUF Paris 419-429

30

Kahn fala dos primeiros usos do verbo εἰμί (em formas participiais) em sua

possibilidade de representar qualquer construccedilatildeo copulativa (natildeo muito diferente de qualquer

outro particiacutepio em grego) adaptando-se agraves construccedilotildees coordenadas ou subordinadas (em

nuacutemero gecircnero e causa) e expressando diferentes nuances (concessiva causal adversativa)

Contudo frisa haver ainda outras expressotildees para aleacutem do caso copulativo como nos casos

vital veriacutedico ou existencial Quando o verbo aparece dentro da expressatildeo existencial e emerge

a necessidade de indicar uma referecircncia ou seja um caso gramatical locativo surgem as formas

do uso filosoacutefico do ser como τὰ ὄντα o berccedilo para o desenvolvimento da ontologia O sentido

de τὰ ὄντα apareceria em Aristoacuteteles de acordo com Kahn (cf ID IBID 457) em primeira matildeo

como ldquoo que eacuterdquo (o caso os fatos ou eventos) e em segunda matildeo existencialmente como ldquocoisas

que existemrdquo ldquocoisas que estatildeo presentesrdquo ldquocoisas que podem ser encontradas em algum lugarrdquo

Em ambos os casos o verbo ser eacute entificado Como neste sentido haacute uma conotaccedilatildeo ldquodo que

eacuterdquo algo Aristoacuteteles considerou a referecircncia aos atributos de um determinado ente para expressar

a muacuteltipla significaccedilatildeo de τὸ ὄν partindo em seguida para a definiccedilatildeo do ser no sentido primaacuterio

e fazendo uso de seu derivado nominal οὐσία

A manifestaccedilatildeo de οὐσία surge como uma nominalizaccedilatildeo abstrata ou substantivo de

accedilatildeo Kahn enumera trecircs aspectos distintos do uso de οὐσία em uma concepccedilatildeo filosoacutefica o

primeiro uso refere-se agrave nominalizaccedilatildeo do verbo na qual οὐσία representaria ldquoo que algo eacuterdquo

dando abertura para as formas platocircnicas e essecircncias aristoteacutelicas (τὸ τί ἐστι τὸ τί ἦν εἶναι) o

segundo uso eacute todavia menos teacutecnico e predica οὐσία como ldquoserrdquo ldquoexistecircnciardquo ou ldquorealidade

verdadeirardquo o terceiro uso enuncia uma equivalecircncia entre οὐσία e τὸ ὄν referindo ldquoas coisas

que satildeo (neste mundo)rdquo τὰ ὄντα (cf ID IBID 461) Aristoacuteteles pontua precisamente a intenccedilatildeo

socraacutetica primaacuteria de buscar a essecircncia das coisas (τὸ τί ἐστι) por meio do procedimento

silogiacutestico cujo princiacutepio eacute justamente a quididade (ἀρχὴ δὲ τῶν συλλογισμῶν τὸ τί ἐστι)

(ARISTOacuteTELES 2002 604-605 Metafiacutesica 1078b 24-25)

31

O que em Soacutecrates apareceria de fato como τί ἐστι e em Platatildeo como (τὸ) ὅ ἐστι em

Aristoacuteteles seria simplificado como τὸ τί ἐστι e τὸ τί ἦν εἶναι em um uso que expressa a essecircncia

ou natureza das coisas pela definiccedilatildeo ao passo que a definiccedilatildeo propriamente existencial caberia

ao termo οὐσία 3 Kahn ilustra as distinccedilotildees dizendo que

Enquanto o substantivo no primeiro e no segundo usos serve como uma

nominalizaccedilatildeo ldquoabstratardquo para o verbo finito como predicado isto eacute para o ldquoser aquilo

que eacuterdquo (e eacute assim sintaticamente paralelo ao infinitivo articular τὸ εἶναι) οὐσία no

terceiro sentido eacute utilizado ndash como em muitos outros substantivos abstratos ndash para o

sujeito caracterizado (isto eacute o que eu chamo de concreto ou agente de nominalizaccedilatildeo

como tipicamente ilustrado pelo particiacutepio articular τὸ ὄν ou como por exemplo ὁ

τρέχων ldquoo corredorrdquo em contraste agrave accedilatildeo de nominalizaccedilatildeo abstrata τὸ τρέχειν

ldquocorrerrdquo Esta distinccedilatildeo sintaacutetica corresponde em parte ao contraste de Heidegger

entre das Seiende e das Sein der Seienden) (ID IBID)

Embora haja tal distinccedilatildeo Kahn prossegue afirmando que em seu uso tardio (poacutes-platocircnico)

οὐσία e τὸ ὄν satildeo claramente sinocircnimos sendo um utilizado para enfatizar o outro como na

doutrina das Categorias de Aristoacuteteles4 O resultado eacute a inexistecircncia de uma diferenccedila entre o

agente concreto e a accedilatildeo abstrata de nominalizaccedilatildeo do εἰμί onde natildeo haacute distinccedilatildeo conceitual

entre οὐσία e τὸ ὄν ou seja entre a entidade e o que ela eacute Em outras palavras ser e ente se

tornam o mesmo confundem-se em sua aplicaccedilatildeo a despeito das distinccedilotildees conceituais que

definem substacircncia (οὐσία) e essecircncia (τὸ τί ἦν εἶναι)

3 Um comentaacuterio mais preciso foi apresentado em Luiacutes Andreacutes Berdlow ldquoParmenides and the Grammar of Beingrdquo

Classical Philology v 106 (2011) 283-298 4 As Categorias de Aristoacuteteles apresentam a classificaccedilatildeo das coisas que satildeo (τὰ ὄντα) dentre as quais encontra-

se a substacircncia (οὐσία) (cf ARISTOTLE 1952 5-6 Categorias 1a-2b) Na Metafiacutesica Aristoacuteteles deixa isto mais

claro quando diz ldquoMas em primeiro lugar se o ldquoenterdquo (τὸ ὂν) se diz de muitas maneiras ndash dentre as quais algumas

vezes substacircncia (οὐσία) em outras qualidade ou mesmo quantidade aleacutem de todas as outras categorias ndash qual

deles portanto eacute aquele pelo qual as coisas satildeo ()rdquo (ARISTOacuteTELES 2002 669 Metafiacutesica 1089a 5-15) A diferenccedila

conceitual ou mesmo hieraacuterquica eacute paulatinamente abandonada pela necessidade de exprimir um niacutevel de

realidade no qual jaacute natildeo eacute mais possiacutevel discorrer acerca do ente se redundar a palavra definida na proacutepria definiccedilatildeo

32

Essa indistinccedilatildeo entre ser e ente eacute sabido foi o que chamou a atenccedilatildeo de Martin

Heidegger no processo ldquodestrutivordquo de histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica realizado em seu projeto

Sein und Zeit (1927) Conforme Heidegger haacute uma γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας de haacute muito

abandonada O motivo aparente se concentra nas caracteriacutesticas emergentes do proacuteprio ser

quais sejam sua maacutexima universalidade sua vacuidade sua obscuridade sua maacutexima

evidecircncia Neste sentido Heidegger diz

O conceito de ldquoserrdquo eacute indefiniacutevel Isto pode ser concluiacutedo desde sua maacutexima

universalidade E isto com razatildeo ndash se definitio fit per genus proximum et differentiam

specificam De fato ldquoserrdquo natildeo pode ser entendido conceitualmente como ente enti

non additur aliqua natura ldquoserrdquo natildeo pode estar em uma determinaccedilatildeo concebendo

dele um ente O ser por definiccedilatildeo natildeo pode ser derivado de conceitos superiores e

nem dado por nenhuma ilustraccedilatildeo Contudo disto se segue que do ser natildeo se pode

derivar nenhum problema Pode-se concluir em absoluto apenas que o ldquoserrdquo natildeo eacute

algo como um ente Portanto o legiacutetimo dentro de certos limites de determinaccedilatildeo dos

entes ndash a ldquodefiniccedilatildeordquo da loacutegica tradicional que em si tem suas bases na antiga

ontologia ndash natildeo eacute aplicaacutevel ao ser A indefiniccedilatildeo do ser natildeo dispensa a pergunta por

seu significado senatildeo que justamente a intima isto (HEIDEGGER 1967 4)

As observaccedilotildees de Heidegger concordam com a conclusatildeo de Kahn a respeito da tomada de

rumo do verbo ser dentro da filosofia grega claacutessica sobretudo na concepccedilatildeo das bases da antiga

ontologia acerca da indistinccedilatildeo entre ser e ente A γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας agrave qual se refere

Heidegger parece ser a natureza inevitaacutevel da proacutepria metafiacutesica em fechar a porta aberta por

ela mesma para o modo de se relacionar com o ser uma espeacutecie de destinaccedilatildeo forccedilosa da qual

natildeo se poderia de maneira alguma escapar ponderando a projeccedilatildeo que reverbera em cada um

dos sentidos

33

O conflito acerca do entendimento e expressatildeo da φύσις revela em boa parte a maneira

pela qual o conjunto do ser se tornou alvo de disputas A contenda eacute ilustrada na histoacuteria

primaacuteria da filosofia grega enquanto fisiologia e na ldquocontroveacutersiardquo paradigmaacutetica entre

Heraacuteclito e Parmecircnides Uma realidade em constante movimento e mutaccedilatildeo absorvida desde a

observaccedilatildeo teoreacutetica do mundo entorno ou simplesmente o ponto de vista do ldquodevirrdquo parece

compatiacutevel com a natureza infinitiva e inapreensiacutevel do verbo ser como eacute possiacutevel rastrear no

πάντα ῥεῖ heracliacutetico 5 Heraacuteclito expressa o movimento intriacutenseco de abertura do modo

relacional do ser Todavia tal entendimento natildeo eacute compatiacutevel com qualquer tipo de silogismo

loacutegico onde eacute possiacutevel desenhar um conhecimento comum Para assumir a cogniccedilatildeo e percepccedilatildeo

vaacutelidas seria necessaacuterio assumir a permanecircncia de algo como eacute possiacutevel acompanhar na

elaboraccedilatildeo da univocidade do ser em Parmecircnides6

O primeiro ponto de vista paradoxalmente leva agrave evidecircncia da diferenccedila e a posiccedilatildeo do

oxiacutemoro enquanto o segundo permite a identificaccedilatildeo e a possibilidade de conclusatildeo por meio

das loacutegicas da identidade e natildeo-contradiccedilatildeo Aparentemente o primeiro natildeo resulta em nenhum

avanccedilo imediato a respeito de assuntos praacuteticos ou na dissoluccedilatildeo de questotildees teoacutericas enquanto

o segundo iraacute provavelmente resolver problemas de quase todos os tipos no campo pragmaacutetico

e em toda sorte de adversidades naturais e sociais Por meio da loacutegica natural do ser humano

social eacute bastante evidente qual ponto de vista deve ser eleito no intuito de estabelecer a

coexistecircncia mais faacutecil e paciacutefica aquela que afasta o homem da falta de fundamento da

existecircncia ou seja do abismo existencial da afliccedilatildeo que eacute existir

5 Conforme cita Platatildeo no Craacutetilo ldquotodas as coisas estatildeo em processo e nada permanece paradordquo (τά ὄντα ἱέναι

τε πάντα καὶ μένειν οὑδέν) (PLATO 1997 119-120 Craacutetilo 401d-402a) (KIRK E RAVEN 1957 197) Kirk e Raven

ponderam ainda que se trata de um momento ldquoOnde φύσις provavelmente natildeo significa lsquonaturezarsquo mas lsquoas coisas

em sua verdadeira constituiccedilatildeorsquordquo (IDEM IBIDEM 184) 6 ldquoO uacutenico caminho de inquiriccedilatildeo que pode ser pensadordquo (αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι) (KIRK E RAVEN

1957 269) Haacute uma anaacutelise mais detalhada acerca do toacutepico em Ciacutecero Cunha Bezerra ldquoParmeacutenides y la

univocidad del serrdquo Caacutetedra v 1 (2003) 33-48

34

Eacute possiacutevel especular que com a ausecircncia de um princiacutepio solidamente identificado e

natildeo-contraditoacuterio quiccedilaacute nem mesmo uma regra gramatical linguiacutestica poderia ser estabelecida

dando margem mesmo agrave impossibilidade de comunicaccedilatildeo Igualmente tampouco se poderia

delinear uma corrente de haacutebitos pessoais compatiacuteveis aos costumes sociais desabilitando toda

e qualquer eacutetica ou ciecircncia poliacutetica pela qual se pode regulamentar a conduta humana Com a

perspectiva de um devir total e assunccedilatildeo da diferenccedila a presenccedila de certo caos eacute inegaacutevel Com

a fundaccedilatildeo de uma estrutura loacutegica todavia eacute possiacutevel organizar e controlar os pensamentos e

accedilotildees do ser humano e sua convivecircncia social Contudo natildeo necessariamente esta postura iraacute

levar a humanidade para as escolhas mais coerentes ndash e a histoacuteria pode comprovar isto inuacutemeras

vezes O abandono da multiplicidade de perspectivas sobretudo as supracitadas (uma em

detrimento de outra) parece ter dirigido a histoacuteria por vias pouco luacutecidas e por vezes mesmo

autodestrutivas

Mas a anaacutelise da histoacuteria fatual natildeo eacute o que realmente interessa aqui tampouco a

atribuiccedilatildeo de uma culpa ou indicaccedilatildeo de um erro neste ou naquele ponto de vista O que

interessa aqui eacute como identificar a predileccedilatildeo loacutegica do pensamento ocidental com o cerne de

sua postura contemporacircnea e inquirir se eacute possiacutevel (ou se jaacute foi tomado) um caminho de

pensamento distinto e quais os resultados da confrontaccedilatildeo de um ponto de vista com o outro

Para isto eacute preciso retomar uma anaacutelise da histoacuteria da ontologia observando a maneira pela

qual ela se movimenta intriacutenseca e extrinsecamente Dentro das possibilidades de eleiccedilatildeo de um

caminho interpretativo opto aqui em um primeiro momento por absorver a histoacuteria e criacutetica

da metafiacutesica feita por Heidegger durante o seacuteculo vinte com o fito de deixar um pouco mais

evidente o problema fundamental da indistinccedilatildeo entre ser e ente que eacute sem embargo o pontapeacute

inicial de toda a contenda Muito embora seja possiacutevel descortinar a histoacuteria do pensamento

ocidental mediante distintos autores a ecircnfase na nomeada questatildeo do ldquoesquecimento do serrdquo

serve sobremaneira bem ao propoacutesito desta tese

35

Portanto em primeiro lugar eacute preciso considerar que embora ilustrativo Martin

Heidegger passou ao largo de resolver os problemas suscitados pela histoacuteria das ideias Antes

ele desenvolveu problemaacuteticas ainda mais insoluacuteveis e como se natildeo bastasse propocircs novos

enigmas A maior dentre todas as dificuldades talvez ainda precise aguardar muito tempo para

ser descortinada Durante um longo periacuteodo o entretenimento geral dos eruditos se contentou

em traccedilar um denominador comum dentre as vaacuterias questotildees pertinentes aos problemas de sua

filosofia em um movimento enciclopeacutedico quiccedilaacute tatildeo importuno quanto improfiacutecuo de decifrar

seu pensamento Mais conveniente talvez seja simplesmente resguardar o segredo de certas

passagens e aguardar a maturaccedilatildeo necessaacuteria para interpelaacute-las independentemente da espera

suscitada por tal postura

Ainda assim alguns pontos merecem ser postos em relevo e sobre eles decerto vale

despender alguma energia no esforccedilo de meditar acerca de seu sentido Certos trabalhos

compostos por Heidegger guardam de uma soacute vez todo o peso de sua leitura da realidade

notadamente em trechos sutis e aparentemente inofensivos Em momentos nos quais o leitor se

daacute por satisfeito em compreender um posicionamento aparentemente simples e historial como

pueril revisatildeo da histoacuteria da filosofia aiacute mesmo se lhe eacute possiacutevel abrir uma brecha para absorver

a atitude fundamental de seu pensamento Heidegger sempre foi um historiador da filosofia e

natildeo renegou em momento algum o peso de um ofiacutecio como este pelo contraacuterio coube-lhe fazecirc-

lo por diversas vezes e em distintos modos Mesmo quando seus ensaios e conferecircncias se

projetavam a um tema especiacutefico e natildeo a um autor a forte presenccedila de suas interpretaccedilotildees da

histoacuteria da filosofia eacute inegaacutevel Cabe ao propoacutesito desta tese realccedilar um exemplo que torne liacutecito

ilustrar uma fissura por onde seja possiacutevel se esgueirar ateacute a fonte da emanaccedilatildeo especulativa

acerca do sentido da histoacuteria da filosofia e do desenvolvimento do pensamento ocidental

sinocircnimos para o que conveacutem nomear metafiacutesica

36

Aos 13 de novembro de 1935 como sabem os leitores assiacuteduos de Heidegger foi

pronunciada uma conferecircncia preparada para a Kunstwissenschaftlichen Gesellschaft de

Freiburg im Breisgau7 Der Ursprung des Kunstwerkes se tornou de forma veloz e viral um

trabalho amplamente comentado no circuito acadecircmico em geral principalmente no campo da

esteacutetica filosoacutefica e teorias da arte O ponto de vista quase unacircnime dos receptores do trabalho

assentou na interpretaccedilatildeo do texto como uma tese a respeito da arte como ldquoposta em marcha da

verdade enquanto desvelamentordquo uma frase natildeo tatildeo simples de ser decifrada mas repetida

quase como uma foacutermula automaacutetica que se tornou rapidamente um emblemaacutetico clichecirc e uma

resposta imediata agrave pergunta pelo sentido da arte em Heidegger

A popular obra de Michael Inwood A Heidegger Dictionary (1999) destaca

enfaticamente o caraacuteter essencial da proposiccedilatildeo-chave quando pontua no mesmo sentido que

ldquoA obra de arte eacute mais bem um projeto que abre um mundo no qual escolhas podem ser feitas

A verdade a revelaccedilatildeo do lsquoserrsquo eacute o configurar em uma obra e configurar para obra iluminando

o mundo e a terra naquilo que neles perdurardquo (INWOOD 1999 18) Inwood ressalta a

proximidade encontrada por Heidegger entre o termo alematildeo ldquoproteger manterrdquo (bewahren) e

a proacutepria palavra ldquoverdaderdquo (Wahrheit) embora os termos natildeo necessariamente estejam

etimologicamente conectados Ele aponta para a ldquopreservaccedilatildeordquo como elemento pelo qual ldquoA

arte eacute o deixar-acontecer da chegada da verdade do ser enquanto talrdquo (IDEM IBIDEM) com especial

atenccedilatildeo para o proacuteprio fazer (ποίησις) da arte e particularmente da poesia Haacute contudo uma

seacuterie de consideraccedilotildees mais sutis a serem levadas em consideraccedilatildeo nas conferecircncias de

Heidegger proporcionando uma anaacutelise um pouco mais cuidadosa do que estaacute propriamente

em jogo quando Heidegger sobreleva a questatildeo da obra de arte

7 O mesmo trabalho sofreu novas releituras durante todo o ano de 1936 sendo reapresentado respectivamente na

Einladung der Studentenschaft der Universitaumlt em Zuumlrich durante o mecircs de janeiro e na Deutschen Hochstift em

Frankfurt am Main entre novembro e dezembro O ciclo de conferecircncias recebeu ediccedilotildees retrabalhadas em 1956 e

1960 publicadas pela Reclam de Stuttgart e sendo incluiacutedo em 1977 no tomo Holzwege da Gesamtausgabe

37

O editor do volume Holzwege Friedrich-Wilhelm von Hermann dedicou toda uma obra

agrave anaacutelise temaacutetica envolta naquele escrito publicando em 1980 o livro Heideggers Philosophie

der Kunst Em algumas de suas consideraccedilotildees mais amplas sobre as conferecircncias de Heidegger

Hermann atenta para o fato da questatildeo da obra de arte ser levantada a partir de um problema

desdobrado pela ontologia fundamental Hermann observa a problemaacutetica geral do escrito

desde o estabelecimento do ldquoserrdquo como ldquoacontecimentordquo (Ereignis) Conforme ele pondera

trata-se de um trabalho contemporacircneo aos Beitraumlge zur Philosophie (1936-38) Para Hermann

a questatildeo em torno ao ldquoserrdquo como ldquoacontecimentordquo (Ereignis) estende-se em Der Ursprung des

Kunstwerkes por meio de quatro outros problemas (1) o estabelecimento constitutivo da arte

(2) da obra de arte (3) da criaccedilatildeo artiacutestica e (4) da compreensatildeo da arte (cf HERMANN 2001 7)

Contudo circunscrita agrave conferecircncia sobre a arte estaacute a elaboraccedilatildeo da passagem da discussatildeo em

torno agrave verdade do ser para o ldquopensamento da histoacuteria do serrdquo (seinsgeschichtliches Denken)

Trata-se especificamente do momento de transiccedilatildeo do pensamento de Heidegger8 Em

linhas gerais Der Ursprung des Kunstwerkes ressalta uma preocupaccedilatildeo da lida do homem para

com a essecircncia da verdade mediante a obra de arte enquanto coisa Haacute toda uma histoacuteria dos

efeitos pertinentes agraves anaacutelises de Heidegger da obra de Vincent van Gogh9 aleacutem de inuacutemeras

teorizaccedilotildees em torno ao poder salvador da obra de arte Todavia salta aos olhos uma passagem

muito mais peculiar (para qual gostaria de chamar a atenccedilatildeo agora mesmo) qual seja aquela

na qual Heidegger aborda o problema da transposiccedilatildeo da experiecircncia fundamental grega para a

intepretaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo do pensamento romano-latino (cf HEIDEGGER 1977 7)

8 A perspectiva da ontologia fundamental de Sein und Zeit (1927) continuada no curso Grundprobleme der

Phaumlnomenologie ministrado em Marburg durante o semestre de veratildeo de 1927 receberia seu desenvolvimento

desde uma visatildeo historial-reflexiva jaacute na primavera de 1932 ocasiatildeo na qual conforme Hermann satildeo elaboradas

as primeiras linhas de Beitraumlge zur Philosophie redigido entre 1936 e 1938 mas publicado postumamente somente

em 1989 9 Em uma das mais famosas passagens de Der Ursprung des Kunstwerkes Heidegger interpreta os sapatos de um

dos quadros de Vincent van Gogh (natildeo identifica qual todavia) descortinando com isto o cotidiano campesino e

oferecendo uma leitura da realidade a partir de aiacute Uma criacutetica direta foi apresentada por Meyer Shapiro (em The

Still Life as a Personal Object ndash A Note on Heidegger and van Gogh 1968 e ainda em Further Notes on Heidegger

and van Gogh 1994) onde ele sustenta que os sapatos retratados por van Gogh natildeo satildeo de uma pessoa do campo

mas as botas do proacuteprio artista apontando com isto graves mal entendidos na interpretaccedilatildeo de Heidegger

38

Ainda no iniacutecio do escrito Heidegger busca a compreensatildeo mais geral da ldquocoisardquo

abordando como exemplo um bloco de granito A despeito de suas muacuteltiplas caracteriacutesticas ele

enfatiza o ldquoao redorrdquo (das herum sich) pelo qual suas propriedades se agrupam podendo entatildeo

falar de algo como um ldquonuacutecleordquo (Kern) da coisa Esse nuacutecleo de acordo com Heidegger

chamaram-lhe os gregos claacutessicos de ὑποκείμενον Embora ilustrativa a descriccedilatildeo eacute decerto

passiacutevel de baixo niacutevel de representaccedilatildeo posta sua exposiccedilatildeo pouco objetiva O termo eacute mesmo

tatildeo controverso quanto as proacuteprias ideias de ser e ente dentro da perspectiva grega Ela possui

uma carga conceitual talvez natildeo tatildeo difiacutecil de ser desvelada mas que tampouco garante exatidatildeo

e lucidez em sua abordagem variando de eacutepoca para eacutepoca de filoacutesofo para filoacutesofo de

interpretaccedilatildeo para interpretaccedilatildeo Ademais vaacuterias histoacuterias metaforizam o sentido do termo

ὑποκείμενον Uma das mais conhecidas (conto-a sem embasamento ou referecircncias quiccedilaacute

mesmo de maneira inapropriada) relata que certa vez um rei se espantara ao conhecer a obra de

um escultor haacutebil em reproduzir as formas da natureza em blocos de maacutermore Tamanha era a

destreza do artista que se postas lado a lado a escultura e a coisa mesma confundiam-se os

espectadores exceto pelo caraacuteter inanimado da escultura Intrigado o rei mandou chamar o

escultor e perguntou-lhe como fazia para reproduzir com tanta fidelidade o mundo em torno

Natildeo sabendo explicar senatildeo por meio da praacutetica pediu um bloco de maacutermore e agraves vistas do rei

reproduziu perfeitamente um cavalo em tamanho real faltando-lhe apenas galopar O rei lhe

questionou ldquoComo o fizesterdquo e respondeu o escultor ldquofaacutecil apenas retirei do bloco de

maacutermore o que natildeo era cavalordquo O ὑποκείμενον seria portanto aquele elemento sem o qual o

cavalo natildeo seria cavalo ou sem o qual uma coisa natildeo eacute uma coisa Contudo o grande problema

envolto nas tentativas de atingir um entendimento deste sentido por meio de um silogismo uma

loacutegica racional ou uma explicaccedilatildeo conceitual (e natildeo por uma metaacutefora ou estoacuteria) consiste na

dificuldade em elaborar uma equaccedilatildeo que exija menos esforccedilo do ouvinte capacitando uma

lucidez mais ampla e geral que a todos possa atingir

39

Toda definiccedilatildeo a partir de uma predicaccedilatildeo direta pode se configurar ainda mais obscura

e lanccedilar aquele que se propotildee a entender o conceito para um mero encadeamento e conexatildeo de

termos sem contudo realmente promover a experiecircncia do sentido da palavra Sem embargo o

Impeacuterio Romano foi a eacutegide da popularizaccedilatildeo e introspecccedilatildeo do mundo grego competindo-lhes

a tarefa de transpor ao modo latino de pensar os sentidos das meditaccedilotildees gregas Sobre isto

Heidegger ostenta uma posiccedilatildeo bastante firme e vale a pena destacar por completo o trecho no

qual se lhe pode observar sua atitude

Estas denominaccedilotildees natildeo eram meros nomes Em sua fala a experiecircncia fundamental

grega do ser do ente no sentido de sua presenccedila mostrava o que natildeo se podia mostrar

Por meio dessa disposiccedilatildeo instaura-se a interpretaccedilatildeo oficial da coisidade da coisa e

a interpretaccedilatildeo ocidental do ser do ente Comeccedila com a traduccedilatildeo das palavras gregas

para o pensamento romano-latino ὑποκείμενον torna-se subjectum ὑπόστασις torna-

se substantia συνβεβηκός torna-se accidens O processo desta traduccedilatildeo dos nomes

gregos para a liacutengua latina natildeo se daacute sem consequecircncias e nos dias de hoje toma-se

ainda a mesma compreensatildeo Antes pelo contraacuterio por detraacutes da traduccedilatildeo

aparentemente literal haacute um traslado da experiecircncia grega para outro modo de pensar

O pensamento romano assume para si as palavras gregas sem a devida

correspondecircncia com a experiecircncia originaacuteria do que dizem sem a palavra grega A

falta de fundamento do pensamento ocidental comeccedila com essas traduccedilotildees (IDEM

IBIDEM 7-8)

Responsabilizar o pensamento romano-latino pela queda do Ocidente no abismo da falta de

fundamento delega a Heidegger um encargo de peso formidaacutevel cujo maior perigo talvez seja

o de natildeo se ambientar aqui ou ali dentro deste ou daquele territoacuterio neste ou naquele lugar

mas na posiccedilatildeo do meio na esfera do entre no desenho do limite da linha da fronteira

40

A direccedilatildeo do pensamento de Heidegger a partir desta passagem claramente se constitui

desde uma divisatildeo da metafiacutesica ocidental em dois momentos muito distintos embora

interligados A emboscada se encontra na percepccedilatildeo de que todo e qualquer ocidental eacute jaacute

sempre forccedilado a se movimentar na esfera da ontologia latina ao passo que o retorno aos

fundamentos da ontologia grega eacute antes de tudo calcar terreno em solo incerto e regiatildeo

desconhecida Estabelecer uma ponte que permita ao ser humano contemporacircneo entender a

proveniecircncia de sua apreensatildeo da existecircncia eacute um roteiro deveras ousado Resta saber como eacute

possiacutevel ainda pensar os conceitos fundamentais da metafiacutesica dentro de sua propriedade sem

causaacute-los algum tipo de dano que faccedila seu sentido se perder ser obscurecido ou transviado

A partir da colocaccedilatildeo do problema da obra de arte enquanto coisa Heidegger questiona

o que enfim se compreende pelo termo mesmo ldquocoisardquo quando se compromete com a ideia de

tentar envolvecirc-lo conceitualmente (a partir de ὑποκείμενον ὑπόστασις e συνβεβηκός) e desde

aiacute extrair uma explicaccedilatildeo Sobre isto Hermann comenta ldquoComo podemos ver ainda mais e

melhor resolver o problema da obra de arte se torna um problema ontoloacutegico ndash isto eacute em

primeira instacircncia o problema ontoloacutegico do ser-res da resrdquo (HERMANN OP CIT 87) entenda-se

ainda o problema da coisidade da coisa Ele ainda complementa deixando ver a postura exigida

pela tarefa de entender a ontologia grega ldquoPortanto explicar o pensamento grego significa

antes de tudo revelar novamente a experiecircncia de estar no lugar em que se encontra a expressatildeo

de acordo com o fio condutor da palavra filosoacutefica gregardquo (IDEM IBIDEM 93-94) Sem embargo

conforme aponta Hermann (em coerecircncia com Heidegger) o ofiacutecio de introduzir a filosofia

grega (ou se introduzir na filosofia grega sua ontologia e berccedilo da metafiacutesica) constitui-se

desde o caminhar ao lado do fio condutor de sua expressatildeo e manifestaccedilatildeo A caminhada talvez

seja ela mesma o ldquoestar no lugar em que se encontra a expressatildeordquo ou o espaccedilo do ldquoentrerdquo a

ldquolinha de fronteirardquo

41

Algumas dezenas de leituras podem ser desdobradas desde a interpretaccedilatildeo de Heidegger

do lugar de transiccedilatildeo da histoacuteria do ser O itineraacuterio do pensamento de Heidegger legou aos

fieacuteis depositaacuterios de sua vasta caminhada a tarefa ingloacuteria de dar uma passo aleacutem Gostaria de

destacar aqui um direcionamento um pouco menos ousado nem por isto ingecircnuo Considerar

uma histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica em Heidegger eacute procurar pela fenda cuja passagem

encaminha diretamente ao salto no abismo da superaccedilatildeo da metafiacutesica embora natildeo fique ainda

claro o significado destes termos Ademais a intenccedilatildeo aqui eacute justamente esta esclarecer os

enlaces desse percurso histoacuterico nomeado sob o signo da metafiacutesica agrave luz da trajetoacuteria

interpretativa de Heidegger

Justamente sob o tiacutetulo Itineraacuterio do Pensamento de Heidegger (1965) Emmanuel

Carneiro Leatildeo apresenta sua traduccedilatildeo para o portuguecircs da Einfuumlhrung in die Metaphysik (1935)

de Heidegger ndash segundo ele nem de perto uma obra de faacutecil acesso Em primeiro lugar pela

impossibilidade geral de uma introduccedilatildeo em filosofia no sentido amplo Em outras palavras

natildeo haacute caminho de iniciaccedilatildeo agrave filosofia como se houvesse ainda um siacutetio no qual se a conquista

Haacute na verdade o puro levantar de questotildees responsaacuteveis por conduzir o pensamento para dentro

da proacutepria filosofia Carneiro Leatildeo elucida tal dificuldade quando especifica o tiacutetulo da obra

Introduzir agrave metafiacutesica eacute movimentar-lhe a questatildeo fundamental de maneira a

conduzi-la (-ducere) para dentro (-intro) das origens donde a metafiacutesica procede Um

esforccedilo de pensamento que nada tem de horizontal e progressivo Cujo movimento

se processa antes no sentido vertical e regressivo (CARNEIRO LEAtildeO 1999 10)

A filosofia busca o movimento imputado para originaacute-la para com isto retornar agraves suas origens

proacuteprias Em segundo lugar e natildeo menos importante a obra ainda guarda certa inacessibilidade

devido agrave intencional ambiguidade de um periacuteodo conturbado de transiccedilatildeo do pensamento de

Heidegger (tambeacutem evidenciado por Hermann)

42

Eacute preciso movimentar a questatildeo fundamental da metafiacutesica para conduzi-la para dentro

de suas origens Agora bem destacar a questatildeo fundamental eacute o primeiro passo de Heidegger

na obra quando questiona ldquoPorque haacute em geral o ente e natildeo antes nadardquo (HEIDEGGER 1983b

3) Um adendo eacute necessaacuterio ao leitor lusoacutefono Carneiro Leatildeo em sua traduccedilatildeo explica o

emprego do termo ldquoenterdquo para traduzir o alematildeo Seiendes justificando o uso da forma erudita

referida ao latim ens entis para salvaguardar o caraacuteter de tudo que eacute independentemente de

seu modo de ser (cf CARNEIRO LEAtildeO OP CIT 77 nota) Ponderando isto a leitura de Carneiro

Leatildeo segue um rumo bastante simples e esclarecedor ele afirma

O homem natildeo pode existir senatildeo em comeacutercio e comunhatildeo com o mundo dos entes

Ente significa tudo que de algum modo eacute o homem as coisas os acontecimentos ateacute

mesmo o Nada enquanto eacute um Nada ieacute enquanto tem um significado () (IDEM IBIDEM

11)

A forccedila responsaacutevel por manter a decisatildeo a respeito dos entes depende diretamente da

capacidade de enxergar suas distinccedilotildees Em um compecircndio unitaacuterio a base de sustentaccedilatildeo no

comeacutercio com os entes se daacute na e pela linguagem mediante a qual o homem simplesmente

afirma eacute Uma afirmaccedilatildeo aparentemente simples guarda contudo uma relaccedilatildeo complexa e

ambiacutegua talvez mesmo em decorrecircncia de sua extrema simplicidade

A existecircncia humana se agita dentro da tensatildeo entre imanecircncia e transcendecircncia

porque o homem existe enquanto in-siste no domiacutenio da Verdade do Ser ieacute a

vicissitude instaurada pela diferenccedila irredutiacutevel e referecircncia necessaacuteria entre ente e

ser A tarefa do pensamento natildeo eacute procurar sair decircsse ciacuterculo de diferenccedila e referecircncia

e sim necircle ingressar de maneira a poder regressar ateacute a fonte originaacuteria de sua tensatildeo

e unidade (ID IBID 15)

43

O atino para o ingresso ao interior da tarefa do pensamento deixa bastante evidente a intitulaccedilatildeo

da obra Eacute possiacutevel conceber a empreitada em regressar ao fundamento desde o qual a metafiacutesica

eacute ela mesma a proveniecircncia da tensatildeo em torno agrave unidade da existecircncia perante a multiplicidade

Eacute preciso destarte compreender que ldquoSoacute poderemos entender os pensamentos os conceitos

ou as explicaccedilotildees dados na medida em que nos ex-pusermos e dis-pusermos aquilo que se pensa

que se concebe ou que se explicardquo (ID IBID 29) acompanhando assim os passos de Heidegger

e verificando sua coerecircncia teoacuterica de levar colocar e se pocircr no estado da questatildeo

Esta mesma ambivalecircncia eacute tambeacutem destacada por Heidegger quando ele se refere ao

ambiacuteguo das formas essenciais do espiacuterito Natildeo se trata portanto de uma dedicaccedilatildeo integral agraves

possibilidades de captar de maneira exclusivamente formal os procedimentos que envolvem os

estudos mas de perceber (αἴσθησις) e experienciar os fenocircmenos Heidegger adverte ainda

Tomada na totalidade de seu sentido mais cru a filosofia sempre lida com o

fundamento do ente de tal maneira que o proacuteprio ser humano tem enfaticamente a

experiecircncia de seu significado e propoacutesito Por isto agora se vislumbra facilmente a

amplitude da filosofia que poderia e deveria proporcionar o fundamento da existecircncia

da eacutepoca histoacuterica atual e futura pela qual se estabelece a cultura Com tais

espectativas e demandas o estado e a essecircncia da filosofia satildeo sobrecarregadas Na

maior parte das vezes essa demanda excessiva se mostra pela forma de uma censura

da filosofia Diz-se por exemplo porque a metafiacutesica natildeo participou na preparaccedilatildeo

para a revoluccedilatildeo ela deve ser rejeitada Isto eacute tatildeo espirituoso quanto dizer que porque

vocecirc natildeo pode voar com um tocircrno portanto este deve ser abandonado A filosofia

natildeo provecirc diretamente forccedilas nem modos de accedilatildeo e criaccedilatildeo para ajeitar a condiccedilatildeo

histoacuterica simplesmente pelo motivo de dizer respeito apenas a poucos Quais poucos

Aqueles que transformam criativamente convertendo os fins Afetando uma vastidatildeo

apenas indiretamente e nunca fazendo rodeios ateacute certo ponto onde finalmente desde

o longo esquecimento da filosofia degenera-se como autocompreensatildeo da existecircncia

(HEIDEGGER OP CIT 12)

44

Heidegger aponta certa responsabilidade da filosofia na formaccedilatildeo da cultura e direcionamento

da eacutepoca presente e futura A chamada ldquoessencializaccedilatildeo da filosofiardquo eacute em grande parte

responsaacutevel pela tomada de rumo e pela constituiccedilatildeo da histoacuteria ateacute mesmo por seu abandono

Agrave ela estaacute diretamente conectada a ldquoessencializaccedilatildeo do serrdquo e maneira pela qual a filosofia se

apresenta como contemplaccedilatildeo dos fundamentos do ente

Heidegger explica em pormenores a diferenccedila entre ser e ente quando expotildee a gramaacutetica

e etimologia da palavra Certa advertecircncia contudo clama a petrificaccedilatildeo das normas

gramaticais ocas e vazias destituindo a Escola do Mundo do Espiacuterito que circunda a

morfologia dos termos e se restringindo tatildeo somente agrave transmissatildeo de regras do uso da palavra

Neste sentido a maneira pela qual se ostenta a ldquogrande gramaacuteticardquo eacute em si mesma o processo

de substantivaccedilatildeo do Ocidente visto como o cerrar das fronteiras como delimitaccedilatildeo

Tambeacutem em Einfuumlhrung in die Metaphysik Heidegger insiste no argumento exprimido

em Der Ursprung des Kunstwerkes seguindo o fluxo comentado acima quando afirma outra

vez ldquoQue essas formas gramaticais natildeo dissecaram desde toda eternidade uma linguagem

absoluta enquanto controle elas satildeo de fato erigidas de uma particular interpretaccedilatildeo da liacutengua

grega pela liacutengua latinardquo (ID IBID 56) Em outras palavras a linguagem possibilita sendo ela

tambeacutem um ente manipulaccedilatildeo e controle por sobre suas formas Por este motivo eacute possiacutevel

transmitir o conhecimento de uma liacutengua estrangeira somente com o ensino da gramaacutetica

mesmo para pessoas que nunca realmente entraram em contato com essa determinada liacutengua

Ou ainda aprender um idioma antigo natildeo mais utilizado ou cujo vigor ou esplendor se apagou

como o latim o grego claacutessico ou o sacircnscrito antigo sem ter a possibilidade de experenciaacute-los

no cotidiano O domiacutenio teoacuterico de uma liacutengua pode permitir ainda intuiccedilotildees e analogias a

respeito da experiecircncia que esta liacutengua provocava em seus falantes originais sem contudo

garantir exatidatildeo das disposiccedilotildees ou estados de acircnimo referidos pelos termos

45

Dentro da gramaacutetica e morfologia do ser Heidegger evidencia que existe um duplo

sentido para a palavra dentro de seu entendimento como consistecircncia (Staumlndigkeit) qual seja

a) o estar em si mesmo enquanto proveniente de si mesmo e b) o que perdura constantemente

enquanto tal Consistecircncia eacute a palavra-chave de sua leitura do termo ser dentro da circunvisatildeo

grega claacutessica Heidegger aponta que justamente por isso o natildeo-ser denota a desistecircncia ou a

saiacuteda da existecircncia ou ainda o abrir matildeo do ldquosalto para aleacutemrdquo Jaacute a etimologia da palavra ser

revela como os sentidos manifestos pela gramaacutetica e morfologia foram confundidos

historicamente Heidegger expotildee trecircs raiacutezes do termo uma sacircnscrita (es asus) outra indo-

germacircnica (bhuuml) e uma apenas germacircnica (sein) Conforme suas interpretaccedilotildees elas se

desdobram respectivamente em um sentido de ldquoviverrdquo ldquosurgirrdquo e ldquopermanecerrdquo Tratam-se de

verbos distintos todavia Heidegger natildeo citas as fontes das quais ele extrai tais etimologias

Ateacute onde eacute possiacutevel investigar o termo sacircnscrito mais proacuteximo ao que ele considera es

asus seria asti (अनतत) cuja raiz ās (आस) possui incontaacuteveis significados dentre os quais ldquoexistirrdquo

ldquoestar presenterdquo ldquopermanecerrdquo entre vaacuterios outros Aparentemente eacute a origem do indo-europeu

es cujo similar em grego seria o morfema ἐστί e em latim esse (sobremaneira visiacutevel no

portuguecircs estar) Jaacute a palavra bhuuml provavelmente indicada por Heidegger como ldquoindo-

germacircnicardquo em consequecircncia da formataccedilatildeo do verbo ser como ldquobinrdquo ldquobistrdquo (ou ainda ist e em

inglecircs ldquoisrdquo) eacute tambeacutem ela sacircnscrita (bhū भ) e estaacute presente em vaacuterias outras liacutenguas indo-

europeias (como no inglecircs being) Seu significado mais geral seria ldquoserrdquo ou ldquoexistirrdquo embora

aponte tambeacutem para ldquoacontecerrdquo ou ldquoperceberrdquo aleacutem de outros sentidos Sein tambeacutem pode ser

rastreado ateacute certo ponto em sua origem germacircnica no mittelhochdeutsch sīn e no

althochdeutsch wesan derivado da raiz sacircnscrita ves (वस) que daria as formas de Wesen

(essecircncia) ou (war o preteacuterito de Sein ser) em alematildeo De qualquer forma a questatildeo leva

imediatamente ao que Heidegger chama de ldquoessencializaccedilatildeo do serrdquo O motivo eacute simples viver

surgir e permanecer satildeo manifestaccedilotildees que interpelam o ser humano inevitavelmente

46

Contudo o ser ao interpelar o humano natildeo se manifesta antes se oculta esconde sua

proveniecircncia mostra-se ambiacuteguo e pela metade A forma de manifestaccedilatildeo do ser passiacutevel de

ser apreendida como uma realidade existente daacute-se por meio de sua participaccedilatildeo na realidade

presente qual seja ente (seu particiacutepio presente) A predileccedilatildeo pelo ente nasceria justamente

de seu caraacuteter manipulaacutevel embora haja uma conclusatildeo que clama as variaccedilotildees da palavra ser

e seu comportamento com respeito ao ldquoser em si mesmordquo evocado de modo distinto de outros

substantivos e verbos com relaccedilatildeo aos seus respectivos entes A eleiccedilatildeo de uma manifestaccedilatildeo

do ser diz muito sobre o modo relacional do humano com a conduccedilatildeo de sua existecircncia10

Alguns anos antes da composiccedilatildeo da Einfuumlhrung em um compecircndio posteriormente

publicado sob o tiacutetulo Sein und Wahrheit (1933-34) Heidegger se aproximou sistematicamente

da constituiccedilatildeo histoacuterica da metafiacutesica A obra eacute todavia pouco comentada O motivo eacute simples

haacute certo complexo ou trauma envolto na abordagem de um texto do periacuteodo da ascensatildeo do

Partido Nazi e do consentimento ao seu propoacutesito inicial Embora haja certos traccedilos de sintonia

com o discurso do momento pelo qual o povo alematildeo atravessava natildeo haacute nenhum resquiacutecio em

Heidegger dos preconceitos intriacutensecos ao desenrolar do totalitarismo Dentro do ambiente

promissoramente inovador Heidegger escreve ldquoToda gestatildeo essencial se vivifica desde uma

grande determinaccedilatildeo oculta no fundamentordquo (ID 2001 3) As palavras de Heidegger parecem

indicar antes de uma referecircncia ao destino da Alemanha o fato de que a questatildeo fundamental

estaacute contida no proacuteprio fundamento Por este motivo Heidegger ainda sugere um ldquo() caminho

histoacuterico na essecircncia da filosofia ndash e natildeo se poderia ter outro e isto justamente porque a filosofia

eacute ela mesma o acontecimento fundamental da histoacuteria da existecircnciardquo (ID IBIDEM 17) Resta

saber portanto como esse acontecimento fundamental se constitui como metafiacutesica

10 Heidegger justifica este ponto na sua apresentaccedilatildeo do conceito de Cura Sorgen em Sein und Zeit que embora

seja de suma importacircncia uma explanaccedilatildeo mais cuidadosa tomaria aqui e agora demasiado tempo mas que

precisa ao menos ser mencionada Seria esta caracteriacutestica originaacuteria do ser humano Cura Cuidado (Sorgen)

aquilo que o impulsionaria a preservar sua condiccedilatildeo evitando a queda nos abismos existenciais e a confusatildeo

generalizada (cf HEIDEGGER OP CIT 196-200)

47

Quando a tarefa eacute compreender a histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica realizada por Heidegger

insisto nunca eacute demasiada repeticcedilatildeo retomar as primeiras linhas de Sein und Zeit Vale lembrar

uma vez mais a disputa titacircnica a respeito da essecircncia (γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας) que

envolve os questionamentos aparentemente desprestigiados da metafiacutesica Conforme Heidegger

a maneira pela qual o problema perdurou sofreu alteraccedilotildees de Platatildeo e Aristoacuteteles ateacute sua

formulaccedilatildeo mais sofisticada na Wissenschaft der Logik (1812-16) de Georg W F Hegel Em

Sein und Wahrheit eacute tambeacutem a discussatildeo com Hegel que orienta a anaacutelise da metafiacutesica

tradicional Ateacute alcanccedilar Hegel entretanto Heidegger se preocupa em delinear as feiccedilotildees da

perda de sentido da μετὰ τὰ φυσικά aristoteacutelica na recepccedilatildeo tardia de seus escritos onde

ldquoGrandeza e iacutempeto desaparecem tanto na singularidade do questionamento criativo quanto na

designaccedilatildeo conceitual a praccedila desocupada daacute lugar agrave atividade de uma escola ndash somente

sobraram palavras e conceitos mas natildeo o poder estimulante da coisardquo (ID IBID 21)

Para Heidegger a unificaccedilatildeo do termo grego na palavra latina metaphysica natildeo eacute

acompanhada somente de uma correspondecircncia senatildeo ao mesmo tempo de uma mudanccedila em

seu significado Inerente agrave transformaccedilatildeo de seu sentido estaacute a apropriaccedilatildeo cristatilde do conceito

imputando um conhecimento suprassensiacutevel (trans physicam) de maior grau de importacircncia e

relevacircncia e diretamente relacionado ao divino Onde antes havia perplexidade na aspiraccedilatildeo agrave

sapiecircncia e observaccedilatildeo da realidade haacute agora um conhecimento humano elevado e suscetiacutevel agrave

confirmaccedilatildeo pela ciecircncia superior Heidegger visa e cita textualmente a formulaccedilatildeo de

Immanuel Kant da metafiacutesica como a ultrapassagem de todos os objetos empiacutericos a fim de

alcanccedilar um conhecimento viaacutevel e puro ou a superaccedilatildeo do conhecimento sensiacutevel pelo

conhecimento suprassensiacutevel11

11 Embora esta premissa esteja presente jaacute na Kritik der reinen Vernunft e em certa medida em suas especulaccedilotildees

preacute-criacuteticas atingindo ainda todos os escritos intercalados agraves duas outras criacuteticas e ainda os posteriores ele parece

se referir agraves conferecircncias de Kant reunidas por Karl Heinrich Ludwig Poumllitz publicadas em Vorlesungen Kants

uumlber Metaphysik aus drei Semestern Max Heine (org) Leipzig Hirzel 1984 (natildeo tenho certeza disto entretanto)

48

Haacute ainda a absorccedilatildeo do direito agrave verdade metafiacutesica pela ontologia claacutessica e neste

sentido Heidegger cita Alexander Baumgarten onde a verdade metafiacutesica eacute o princiacutepio

universal e fundamental em conveniecircncia agrave determinaccedilatildeo do ente enquanto tal Deste modo

conclui que a metafiacutesica se constitui como uma determinaccedilatildeo cristatilde e ideia matemaacutetico-

metoacutedica de fundamentaccedilatildeo nos sistemas metafiacutesicos da modernidade onde ela se apresenta

como conhecimento do ente em seu todo Hegel ocuparia neste sentido o lugar da consumaccedilatildeo

da plenitude da filosofia ocidental na metafiacutesica destacado o caraacuteter teoloacutegico no qual a medida

do saber eacute o ldquoinfinitordquo (perfectum) manifesto enquanto identidade absoluta (perfectissimus)

ou espiacuterito absoluto Por este motivo ao que parece quando se refere agrave histoacuteria da disputa

titacircnica sobre a essecircncia em Sein und Zeit Heidegger aponta a Wissenschaft der Logik de Hegel

como ponto de chegada Ali a loacutegica eacute entendida como ciecircncia do pensamento todavia natildeo

como ciecircncia responsaacutevel por regular o pensamento mas como fundamento do conceito e em

uacuteltima instacircncia fundamento do ente em si mesmo Heidegger explica dizendo que em Hegel

ldquoA metafiacutesica como ciecircncia do ser do ente eacute lsquoLoacutegicarsquo e esta Loacutegica eacute Loacutegica lsquodorsquo Absoluto isto

eacute de Deus Genitivo deliberadamente ambiacuteguo Natildeo apenas um genitivus objectivus Deus

representado mas sim genitivus subjectivus a essecircncia de deus como presenccedila do Espiacuterito

Absolutordquo (ID IBID 76) Em um momento final da exposiccedilatildeo da questatildeo fundamental da

filosofia Heidegger faz uma divisatildeo entre a filosofia ocidental em seu princiacutepio e em seu fim

escrevendo que

No princiacutepio a mais profunda necessidade era o questionamento na luta com os

poderes incontrolaacuteveis da verdade e da decepccedilatildeo A filosofia causava o mais alto

poder clarificante da naccedilatildeo e de sua existecircncia Riqueza de decisatildeo momento de

decisatildeo No fim alta bem-aventuranccedila na suspensatildeo das contradiccedilotildees fraqueza de

meros conceitos opostos fracasso e morte de todo questionamento Eternidade vazia

cheia de indecisotildees (ID IBID 77)

49

A eternidade vazia cheia de indecisotildees todavia natildeo soa aqui como algo proveniente de um

descontentamento Pelo contraacuterio emerge desde a simples oposiccedilatildeo de conceitos com o fito de

suspender contradiccedilotildees e evidenciar uma maacutexima clareza e nitidez com o intuito de um suposto

pleno contentamento como se a profunda necessidade de questionamento houvesse sido calada

pela extrema emergecircncia de soluccedilatildeo Um abismo entre a filosofia ocidental em seu princiacutepio e

em seu fim eacute diagnosticado de maneira direta e evidente Longe de apontar culpados ou

referendar uma condenaccedilatildeo agrave metafiacutesica claacutessica Heidegger explica o processo intriacutenseco de

explicaccedilatildeo e complicaccedilatildeo da metafiacutesica evidenciando fatualmente a transiccedilatildeo do pensamento

da histoacuteria do ser da ontologia grega agrave latina A distacircncia que provecirc de clareza a anaacutelise eacute todavia

bastante tendenciosa aos propoacutesitos da ontologia fundamental A maneira pela qual a proacutepria

ontologia se protege com uma complexidade de conceitos dificulta a visualizaccedilatildeo do percurso

histoacuterico e da explanaccedilatildeo esclarecedora

Vale portanto retomar alguns aspectos relevantes embora por vezes sutis da pesquisa

acerca da ontologia na metafiacutesica claacutessica Gostaria de propor um breve desvio que agrave primeira

vista pareceraacute desnecessaacuterio contudo configura-se como extremamente pertinente ao

propoacutesito do capiacutetulo Atualmente as pesquisas voltadas ao estudo da ontologia se restringem

ou bem ao estudo histoacuterico ou bem agraves repercussotildees da metafiacutesica na filosofia contemporacircnea

Via de regra servem de embasamento para questotildees projetadas aos assuntos pertinentes da

eacutepoca vigente A ontologia se torna assim uma ldquoaacuterea da filosofiardquo uma ldquodisciplinardquo ou mesmo

um tronco braccedilo ou ramificaccedilatildeo dos estudos filosoacuteficos Os pesquisadores responsaacuteveis por

esta aacuterea da filosofia desdobram prolegocircmenos e comentaacuterios explicativos aos textos claacutessicos

fundamentando muacuteltiplas outras aacutereas Poucas vezes eacute possiacutevel observar um trabalho sobre

ontologia que realmente conecte seu sentido primaacuterio aos problemas apresentados nos dias de

hoje todavia escavando com devoccedilatildeo algumas pesquisas emergem sobremaneira conexas

50

A ontologia parece ser mesmo ldquoutilizadardquo como ponte para abrir novos caminhos como

por exemplo as discussotildees histoacutericas na anaacutelise do desenvolvimento da cultura as

investigaccedilotildees epistemoloacutegicas na confrontaccedilatildeo das possibilidades de conhecimento as

consideraccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas na constituiccedilatildeo dos haacutebitos e costumes da relaccedilatildeo do ser humano

com as virtudes deveres e utilidades os juiacutezos esteacuteticos na relaccedilatildeo com a obra de arte ou

mesmo as bases psicanaliacuteticas do entendimento do proacuteprio humano e sua relaccedilatildeo com as coisas

e o mundo entorno

Um dos exemplos mais niacutetidos de um pensamento comprometido em discutir a

ontologia por si mesma observando a maneira pela qual as categorias ontoloacutegicas dispotildeem

ainda hoje os modos de estruturar a realidade talvez se apresente nas recentes discussotildees em

torno ao ldquodigitalrdquo e ao ldquovirtualrdquo ou as propostas de uma ldquoontologia digitalrdquo Ouvi falar pela

primeira vez sobre ldquoontologia digitalrdquo por meio de Rafael Capurro em 2009 durante o III

Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica realizado em Natal na Universidade Federal do Rio

Grande do Norte12 Ateacute entatildeo possuiacutea minhas proacuteprias teorias acerca do mundo digital e da

esfera virtual da internet todavia natildeo tinha sequer noccedilatildeo da envergadura do problema e da

maneira pela qual o assunto podia ser pensado desde uma perspectiva ontoloacutegica e natildeo

meramente poliacutetico-ativista ou mesmo teoacuterico-juriacutedica Embora este natildeo seja propriamente o

assunto do capiacutetulo gostaria de abordar o tema como forma de justificar o questionamento pela

ontologia claacutessica para aleacutem da mera constataccedilatildeo historiograacutefica Conforme pude acompanhar

a inquietaccedilatildeo que move os trabalhos se concentra na crenccedila segundo a qual todos os fenocircmenos

podem ser analisados construiacutedos e manipulados sob a condiccedilatildeo de poderem ser digitalizados

12 A discussatildeo de Capurro havia comeccedilado com uma troca de e-mails com Michael Eldred A conversa redundou

em primeira matildeo nos trabalhos de Capurro intitulados Entwurf einer digitalen Ontologie (1999) e Beitraumlge zu

einer digitalen Ontologie (1999) sendo estendida em ulteriores escritos como Interpreting the digital human

(2008) e Einfuumlhrung in die digitale Ontologie (2009) aleacutem do livro publicado por Eldred The Digital Cast of

Being (2009) Provavelmente a discussatildeo ainda prossegue e outros trabalhos foram ou estatildeo sendo publicados

51

Talvez como um chiste mas bastante pertinente e veriacutedico Capurro afirma que

atualmente se algueacutem natildeo estaacute na rede eacute como se natildeo existisse Dando impulso para uma

formulaccedilatildeo inusitada esse est computari em analogia agrave famosa foacutermula de George Berkeley

(esse est percipi) A conclusatildeo bastante perspicaz extraiacuteda por Capurro eacute a de que seria correto

dizer que hoje vemos a realidade no horizonte de sua digitabilidade Uma seacuterie de outros termos

e expressotildees natildeo-convencionais emergem do texto de Capurro como ldquoem tudo que eacute puramente

virtual as coisas consistem essencialmente em bitsrdquo ou a denominaccedilatildeo ldquopitagorismo digitalrdquo

Entretanto todas as definiccedilotildees e determinaccedilotildees estatildeo conectadas ao arcano questionamento em

torno ao ente

O que eacute o ente Esta pergunta fundamental da metafiacutesica natildeo pode ter uma resposta

definitiva a partir da perspectiva de um conhecimento finito sem cair na ilusatildeo

essencialista Isto tem consequecircncias para a problemaacutetica de como pensar uma cultura

digital Uma ontologia digital eacute uma interpretaccedilatildeo possiacutevel do ser dos entes vistos

desde sua digitabilidade No entanto tal ontologia corre sempre o perigo de

transformar-se em uma metafiacutesica digital no momento em que acredita ser a

verdadeira ou uacutenica resposta agrave pergunta pelo ser A ontologia digital eacute uma possiacutevel

compreensatildeo do ser por parte do conhecimento humano finito Todas as regiotildees ou

esferas dos entes satildeo concebidas entatildeo como digitais (CAPURRO 2009 322)

A introduccedilatildeo da digitabilidade para aleacutem da anaacutelise do ldquoserrdquo quantificado pela ciecircncia moderna

confere uma perspectiva nova de experimentaccedilatildeo do ente em sua totalidade Chama atenccedilatildeo o

perigo envolto na transformaccedilatildeo em uma ldquometafiacutesica digitalrdquo na qual uma virada ontocecircntrica

concentraria o poder da verdade enquanto julgamento como oriente agrave pergunta pelo ldquoserrdquo

Talvez o mais importante da anaacutelise de Capurro consista justamente na renovaccedilatildeo desta criacutetica

na qual se chama atenccedilatildeo para a imprecisatildeo especulativa por meio da indefiniccedilatildeo do virtual

52

Natildeo eacute difiacutecil perceber que o mundo digital oferece uma vasta gama de temas e

possibilidades de se pensar filosoficamente sob as mais diversas perspectivas Natildeo haacute grande

espanto na busca dos filoacutesofos por reflexotildees em torno aos acontecimentos revolucionaacuterios dos

veiacuteculos de informaccedilatildeo e tecnologias em geral no seacuteculo vinte-e-um Contudo admiraacutevel eacute

encontrar o caminho oposto o momento no qual desenvolvedores da ciecircncia e da teacutecnica

buscam a filosofia para fundamentar seus trabalhos Eacute caso dos estudos realizados por Peter

Oslashhrstroslashm Henrik Schaumlrfe e Sara L Uckelman cujos resultados foram publicados nos anais da

International Conference on Conceptual Structures um evento dedicado agrave ciecircncia da

computaccedilatildeo Os trecircs investigadores fundamentam desde a ontologia moderna claacutessica a

concepccedilatildeo de hipertexto um conceito fundamental da computaccedilatildeo13 Para Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e

Uckelman o nascimento do termo ldquoontologiardquo representa o estabelecimento de um hipertexto

sobre a realidade e a temporalidade em pleno seacuteculo dezessete Os pesquisadores se referem

especificamente a Jacob Lorhard autor dos oito volumes intitulados Ogdoas Scholastica (1606)

responsaacutevel por cunhar o termo ldquoontologiardquo pela primeira vez na histoacuteria

Lorhard compocircs sua Ogdoas como uma gramaacutetica para o ensino escolar por meio de

aacutervores diagramaticais A teacutecnica utilizada por Lorhard foi profundamente influenciada por

Petrus Ramus (Pierre de la Rameacutee) cujo objetivo era transformar a razatildeo dialeacutetica em um

meacutetodo de loacutegica pedagoacutegica Petrus Ramus foi uma figura controversa e polecircmica Aleacutem de

suas interpretaccedilotildees pouco ortodoxas de Aristoacuteteles Ramus defendia uma completa reforma no

sistema educacional Ele fomentava o espiacuterito humanista pelo qual procurava devolver agrave

retoacuterica sua posiccedilatildeo proeminente visando desautorizar o peso da loacutegica escolaacutestica14

13 A ideia de hipertexto eacute bastante antiga todavia o termo no sentido moderno foi cunhado por Ted Nelson em

1965 para descrever o sistema de escrita natildeo-sequencial que envolvia o ligamento entre textos distintos em uma

mesma interface na internet O sistema de hyperlinks em um siacutetio da internet eacute um exemplo bastante simples de

um hipertexto 14 Cf Petrus Ramus Sa Vie Ses Eacutecrits et Ses Opinions Charles Waddington (ed) Paris Librairie de Ch Meyrteis

1855 Acerca das singularidades de Petrus Ramus confira Laura Adriaacuten Lara ldquoPetrus Ramus y el ocaso de la

retoacuterica ciacutevicardquo Utopiacutea y Praxis Latinoamericana v 13 n 43 (out-dez 2008) 11-31 e ainda Frank P Graves

Petrus Ramus and the Educational Reformation of Sixteenth Century New York Macmillan 1912

53

Havia um profundo espiacuterito anti-escolaacutestico que movia os interesses de Ramus

enfatizando uma postura radical na qual a filosofia ramista considerava falsa todas as

afirmaccedilotildees de Aristoacuteteles Para facilitar o processo de aprendizagem pelo qual o domiacutenio das

ciecircncias e artes liberais pode ser alcanccedilado Ramus emprega seus ldquoesquemas visuais abstratosrdquo

Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman se referem aos esquemas de Ramus como base para a aacutervore

diagramatical de Jacob Lorhard ndash para os pesquisadores este tipo de diagrama eacute o berccedilo de

todo futuro hipertexto

Eacute faacutecil observar que a estrutura da Ogdoas Scholastica de Jacob Lorhard permite ao

leitor localizar conceitos especiacuteficos e suas respectivas definiccedilotildees por meio de uma rede de

interconexotildees na forma de diagramas A ldquoaacutervorerdquo facilita natildeo soacute a compreensatildeo dos conceitos

como tambeacutem a maneira pela qual eles se relacionam uns com os outros Sem embargo trata-

se de uma gramaacutetica pela qual o domiacutenio de conceitos fundamentais da metafiacutesica se torna

bastante simples concordando em absoluto com a demanda da eacutepoca em introduzir este tipo de

estudo nos niacuteveis baacutesicos de ensino Com obras como as de Lorhard a exigecircncia do estudo da

ontologia foi difundida durante o seacuteculo dezoito como parte essencial da formaccedilatildeo acadecircmica

baacutesica15 Aleacutem disto a Ogdoas ainda sustentava a eacutegide da clarificaccedilatildeo da ontologia como base

para todo ulterior desenvolvimento intelectual Em outros termos Lorhard (assim como Ramus)

acreditava que natildeo era possiacutevel esclarecer nenhuma ciecircncia se natildeo houvesse de antematildeo uma

lucidez absoluta a respeito dos fundamentos do ente que poderia ser proporcionada apenas pelo

estudo por ele nomeado ldquoontologiardquo um discurso que buscava um pleno esclarecimento dos

termos empregados para definir todo e qualquer ulterior passo tomado tanto nas ciecircncias do

espiacuterito quanto nas ciecircncias da natureza

15 Muito disto deve-se ao filoacutesofo norueguecircs Jens Kraft cuja obra (influenciada em larga escala pela Metaphysica

sive Ontologia de Christian Wolff) reforccedilou o peso dos estudos em ontologia Dentro da compreensatildeo de Kraft

compartilhada tambeacutem por Lorhard e outros a ontologia ganha um lugar privilegiado como unificaccedilatildeo sistemaacutetica

das estruturas do pensamento como um todo

54

O oitavo livro da Ogdoas de Lorhard que encerra o compecircndio e eacute dedicado agrave ontologia

no sentido de unificar todos os escritos anteriores define a metafiacutesica como ldquo() o

conhecimento de um inteligiacutevel enquanto inteligiacutevel ()rdquo (LORHARD sd 3) Este conhecimento

eacute divido entre conhecimento dos particulares e dos universais Para Lorhard a parte da

metafiacutesica responsaacutevel pelo conhecimento dos particulares ou bem se refere acirc substacircncia

pertinente aos seres natildeo-complexos que subsistem em si mesmos (sejam eles criados ou natildeo)

ou bem aos acidentes

Jaacute o conhecimento dos universais se refere a tudo o que eacute inteligiacutevel redundando nos

atributos gerais ou nas distribuiccedilotildees conforme as quais o λόγος eacute entendido como um inteligiacutevel

As distribuiccedilotildees dizem respeito ao nada por um lado ou a algo por outro sendo este uacuteltimo

em seu aspecto positivo o que envolve as ideias de ldquoessecircnciardquo e ldquoenterdquo As noccedilotildees de ldquoessecircnciardquo

e ldquoenterdquo satildeo centrais natildeo apenas para o sistema de Lorhard mas tambeacutem para todas as

subsequentes compreensotildees da ontologia Em uma primeira definiccedilatildeo Lorhard observa a

ldquoessecircnciardquo em sua relaccedilatildeo com o λόγος definindo que ldquoEssecircncia eacute algo produtivo pelo qual o

Ser eacute o que eacute Esta palavra estrangeira eacute chamada pelos Escolaacutesticos de Entidade ou quidditasrdquo

(IDEM IBIDEM 4) Em segundo lugar considera a ldquoessecircnciardquo em relaccedilatildeo a sua distribuiccedilatildeo na

qual ela eacute ou bem ldquorealrdquo (ou seja uma atualizaccedilatildeorealizaccedilatildeo do ser) ou bem ldquoimaginaacuteriardquo (no

caso de um ser puramente racional) Ambas podem ser ldquosimplesrdquo ou ldquocompostasrdquo ldquoabsolutasrdquo

ou ldquorespectivasrdquo ldquouniversaisrdquo ou ldquosingularesrdquo Dentro do uacuteltimo destes casos a ldquoessecircnciardquo

pode ser ainda ldquogeneacutericardquo (ou um gecircnero compartilhado por outras espeacutecies) ou ldquoespeciacuteficardquo

(relativa a uma uacutenica espeacutecie) Natildeo haacute grande espanto nos pontos apresentados ateacute entatildeo por

Lorhard O que haacute na verdade eacute uma constituiccedilatildeo sistemaacutetica de um diaacutelogo que estava sendo

travado jaacute haacute muito tempo e sobremaneira evidente no periacuteodo no qual ele compocircs sua obra

Suas contribuiccedilotildees mais significantes talvez se deem na seccedilatildeo seguinte quando aborda a

questatildeo do ldquoenterdquo

55

Lorhard tambeacutem considera o ldquoenterdquo no discurso unificador bem como na questatildeo da

ldquoessecircnciardquo afirmando dele algo produtivo ldquodotado de certa essecircnciardquo Em seu caraacuteter

distributivo o ldquoenterdquo (assim como a ldquoessecircnciardquo) eacute ou bem ldquorealrdquo ou bem ldquoracionalrdquo Ele define

o ldquoente de razatildeo ou racionalrdquo afirmando que ldquoEacute um ente de razatildeo que eacute tocado pela cogitaccedilatildeo

de uma mente singular de acordo com o modo real do ente agrave parte disto eacute nada Eacute tambeacutem

chamado ente fictiacutecio e imaginaacuteriordquo (ID IBID 5) Jaacute o ldquoente realrdquo pode se dar por meio do

discurso (λόγος) de sua proacutepria essecircncia ou ainda ser distribuiacutedo em entes primaacuterios e

secundaacuterios (estes uacuteltimos decorrentes dos primeiros) sendo ambos ldquosimplesrdquo ou ldquocomplexosrdquo

ldquoabsolutosrdquo ou ldquorespectivosrdquo ldquouniversaisrdquo ou ldquoparticularesrdquo ldquoimateriaisrdquo ou ldquomateriaisrdquo

ldquopermanentesrdquo ou ldquosucessivosrdquo

Toda a divisatildeo da ontologia de Lorhard acompanha em muitos aspectos a ontologia

derivada da filosofia grega claacutessica desde o processo dialeacutetico de questionamento da realidade

conforme a doutrina platocircnica e a divisatildeo das Categorias de Aristoacuteteles A principal distinccedilatildeo

do emprego do termo ontologia como expressatildeo e manifestaccedilatildeo das doutrinas metafiacutesicas em

Lorhard eacute o foco especiacutefico de uma ldquodoutrina dos inteligiacuteveisrdquo Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman

comentam que

Conforme Lorhard haacute uma importante dualidade entre os entes e nossa discussatildeo

racional a respeito deles Parece que ele insistiu na necessidade dessa dualidade no

sentido de que cada vez que noacutes discutimos os entes no mundo tentando classificaacute-

los tambeacutem temos que refletir sobre os conceitos usados para fazecirc-los (OslashHRSTOslashM

SCHAumlRFE E UCKELMAN OP CIT 4)

Em termos mais simples apoacutes um longo periacuteodo de aristotelismo escolaacutestico talvez tenha sido

Lorhard o primeiro a atentar para o fato de certa confusatildeo gerada dentro da metafiacutesica a respeito

da maneira pela qual se predica o ser do ente em sua participaccedilatildeo presente na realidade

56

Seria liacutecito portanto argumentar que a evidecircncia da confusatildeo de termos se deve ao fato

de Lorhard ter deslocado o ontocentrismo metafiacutesico para uma teoria dos intiligiacuteveis Ainda

conforme Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman a postura de Lorhard eacute diretamente influenciada pela

obra de Clemens Timpler que sustentava a mesma posiccedilatildeo a respeito da metafiacutesica desde uma

confrontaccedilatildeo direta com a filosofia de Francisco Suaacuterez Esta seria a contenda principal do

iniacutecio da modernidade responsaacutevel por conformar e enformar a metafiacutesica como ontologia tal

qual hoje ainda se a concebe Joseph S Freedman desenvolve uma anaacutelise bastante precisa da

maneira pela qual Timpler fundamentou sua postura e as consequecircncias de seu trabalho

sobretudo no que tange agrave disputa com Francisco Suaacuterez A respeito da proposiccedilatildeo ldquotudo que eacute

inteligiacutevelrdquo (omne intelligibile) o tema constitutivo da metafiacutesica Freedman (cf 2009 10-11)

comenta que Timpler provecirc uma moldura conceitual dentro da qual alguns conceitos

ontologicamente baacutesicos satildeo englobados quais sejam ldquoalgordquo (aliquid) ldquoprivaccedilatildeordquo (privatio)

ldquoessecircnciardquo (essentia) e ldquoentidaderdquo (ens) Dentro da dissoluccedilatildeo dos conceitos na obra central de

Timpler Metaphysicae systema methodicum (1604) Freedman comenta

Conforme Timpler ldquotudo aquilo que eacute Inteligiacutevelrdquo eacute dividido entre nihil (ie ldquonadardquo

ou ldquonatildeo-serrdquo) e aliquid aut est (ldquoalgordquo ou ldquoenterdquo) esta eacute basicamente a mesma

dicotomia que William Shakespeare aludiu quando ele coloca no Ato 3 Cena 1 de

Hamlet ndash alguns anos antes (c 1600) da publicaccedilatildeo do texto de Timpler sobre

metafiacutesica ndash que ldquoser ou natildeo ser estaacute eacute a questatildeo []rdquo Mas esta foi a questatildeo que

Timpler e todos os seus (conhecidos) contemporacircneos acadecircmicos aparentemente

desejaram evitar de discutir A discussatildeo da questatildeo de Shakespeare ndash e da dicotomia

de Timpler ndash poderia ter provido as bases para o levantamento de toacutepicos altamente

sensiacuteveis por exemplo 1) a relaccedilatildeo entre Deus e Nada (nihil) 2) a relaccedilatildeo entre Deus

entidade e privaccedilatildeo (ie mal) e 3) a relaccedilatildeo entre Deus e o princiacutepio de contradiccedilatildeo

(FREEDMAN op cit 12)

57

Embora estas questotildees estivessem jaacute sempre presentes dentro dos questionamentos de Timpler

e de seus contemporacircneos elas eram todavia caladas de acordo com Freedman (IDEM IBIDEM)

pela imposiccedilatildeo das instituiccedilotildees cristatildes das coisas sobre as quais se era proibido falar ou acreditar

O que perdura das apresentaccedilotildees filosoacuteficas da metafiacutesica como ontologia em Timpler

ponderando seu princiacutepio do inteligiacutevel concentra-se em primeiro lugar como o mateacuteria de

todas as disciplinas e subdisciplinas acadecircmicas e em segundo lugar como foco de disciplinas

separadas como a archeologia gnostologia hexiologia intelligentia pansophia e tecnologia

(cf ID IBID 14)

O motivo da predileccedilatildeo da questatildeo dos intiligiacuteveis como foco principal de todos os

temas concernentes ao pensamento aparece dentro da possibilidade de envolver todos os

aspectos responsaacuteveis pelos modos operativos de pensar 16 Desta forma por exemplo as

disciplinas separadas como a ldquotecnologiardquo seriam desenvolvidas para as consideraccedilotildees gerais

e universais da estrutura das disciplinas liberais (cf ID IBID 16) Embora discrimine em parte

o princiacutepio da cogniccedilatildeo a metafiacutesica tampouco envolve a loacutegica por levar em consideraccedilatildeo

apenas os princiacutepios excluindo entidades complexas que redundem no princiacutepio de contradiccedilatildeo

Em contrapartida ao sistema metoacutedico de Timpler vecirc-se em Francisco Suaacuterez um

caraacuteter muito mais ontocecircntrico As Disputationes Metaphysicae (1597) de Francisco Suaacuterez

satildeo publicadas dentro de um contexto de desarmonia e conflitos entre a teologia e a filosofia

onde os conceitos fundamentais na discussatildeo sobre o divino estavam sendo postos em questatildeo

A despeito das influecircncias de Suaacuterez e dos necessaacuterios posicionamentos poliacuteticos sua obra

parece instaurar um regulamento por meio do qual nada poderia ser legado agrave mera

inteligibilidade

16 Freedman (ID IBID 15) cita o teoacutelogo calvinista Matthias Martinius contemporacircneo de Timpler que evidencia

de maneira mais clara os motivos das proposiccedilotildees fundamentais Ele atesta que conforme esta designaccedilatildeo agrave

metafiacutesica ldquopertence tudo aquilo que eacute cognosciacutevelrdquo (de omni cogitabili) mas com certas restriccedilotildees englobando

a ldquouniversalidade das coisasrdquo (rerum universitatem) mas natildeo envolvendo disciplinas acadecircmicas especializadas

singulares ou particulares

58

As Disputationes de Suaacuterez podem ser entendidas desde uma divisatildeo da obra na qual a

primeira parte (as primeiras vinte-e-sete questotildees) se refere ao ente no sentido geral enquanto

a segunda parte (as vinte-e-sete uacuteltimas questotildees) lida com o ente particular redundando em

uma dupla divisatildeo da proacutepria metafiacutesica entre ldquometafiacutesica geralrdquo e ldquometafiacutesica especialrdquo (cf

SUAacuteREZ 2004 DOYLE 2004) Ao comentar o desenvolvimento deste aspecto da filosofia de

Suaacuterez Ludger Honnefelder ainda acrescenta

Conforme Suaacuterez a metafiacutesica lida com o conceito de ente tanto ldquoformalrdquo quanto

ldquoobjetivordquo Pelo conceito formal Suaacuterez entende o ato de conhecer do qual ldquoex unica

et prima impositionerdquo que rende uma representaccedilatildeo intencional do objeto pelo

conceito objetivo ele designa aquilo que representa intencionalmente o ato Em outras

palavras Suaacuterez natildeo assume a teoria dos conceitos caracterizada pelo paralelismo

noeacutetico-noemaacutetico de res e conceptus antes ele aceita a abordagem criacutetica de Ockham

em direccedilatildeo a interpretaccedilatildeo realiacutestica dos conceitos universais Desde que Scottus ele

mesmo natildeo depende desse paralelismo quando isto vem a dizer respeito sobre o ente

Suaacuterez substancialmente segue Scottus e aplica ldquoenterdquo para um conceito formal

primaacuterio e unificado que em virtude de sua imposiccedilatildeo representa um objetivo

primaacuterio e unificado do conteuacutedo absolutamente simples que envolve todos os entes

distintos de uma maneira indeterminada ie como ente (HONNEFELDER 2003)

Segundo a exposiccedilatildeo de Honnefelder o direcionamento da metafiacutesica de Suaacuterez iraacute redundar

em alguns pontos baacutesicos em primeiro lugar o fato de que a determinaccedilatildeo do ente transcende

a generalidade dos gecircneros em segundo que a determinaccedilatildeo natildeo pode ela mesma ser definida

podendo apenas ser explicada em relaccedilatildeo agrave existecircncia real em terceiro que toda existecircncia estaacute

sujeita agrave fundamentaccedilatildeo de disposiccedilatildeo ontoloacutegica em uacuteltimo lugar que o ente finito perdura

em um modo indeterminaacutevel de quantidade sendo o ente infinito eacute aquilo que eacute perfeito e

totalmente indivisiacutevel em si mesmo e mais real e completo (cf IDEM IBIDEM)

59

Agora bem com o fito de retomar a linha de raciociacutenio desenvolvida no capiacutetulo eacute

preciso retomar a ideia de substantivaccedilatildeo do Ocidente e a maneira pela qual esse processo se

deixar ver ao longo da histoacuteria da ontologia Martin Heidegger indica em primeiro lugar o que

ele considera como o problema fundamental pelo qual a metafiacutesica se desdobra no Ocidente

qual seja o fato de que o ldquoserrdquo natildeo eacute um ldquoenterdquo mas que todavia um foi tomado pelo outro Ele

apresenta ainda o argumento de que a transposiccedilatildeo da experiecircncia fundamental grega (conforme

apresentada tambeacutem por Charles H Kahn) sofre uma violaccedilatildeo na absorccedilatildeo latina e na

transferecircncia de conceitos de um modo de pensar para o outro Eacute dentro deste ambiente latino

que eacute possiacutevel rastrear a maneira pela qual a metafiacutesica se forma e transforma em ontologia ou

bem dentro de uma filosofia do inteligiacutevel (como em Lorhard e Timpler) ou bem como um

ontocentrismo filosoacutefico (como em Suaacuterez) Sem embargo trata-se de uma disputa em torno agraves

formas primaacuterias da discussatildeo em torno ao ldquoserrdquo e ao ldquoenterdquo Eacute possiacutevel concluir desde a

constataccedilatildeo da entificaccedilatildeo do ser ou substantivaccedilatildeo do Ocidente que a demanda pela resposta

ao problema primeiro da filosofia necessariamente a encaminha para um percurso que natildeo

poderia ser outro Mas qual eacute propriamente este problema primeiro e como se constroacutei esse

caminho Natildeo haveria outra indicaccedilatildeo senatildeo a da ciecircncia dos primeiros princiacutepios e causas de

Aristoacuteteles Jaacute na doutrina das Categorias de Aristoacuteteles eacute possiacutevel observar a confusatildeo entre

ldquoserrdquo e ldquoenterdquo A questatildeo pode ser melhor observada na proposiccedilatildeo baacutesica e amplamente

difundida da Metafiacutesica ldquoO ente se diz em muacuteltiplos significados mas sempre em referecircncia a

uma unidade e a uma realidade determinadardquo (ARISTOacuteTELES 2002 131)17 A referecircncia a uma

unidade e uma realidade determinada eacute a chave para compreender a maneira pela qual a

ontologia se torna a ciecircncia responsaacutevel por esse tema (conforme Aristoacuteteles ldquoHaacute uma ciecircncia

que considera o ente enquanto ente e as propriedades que lhe competem enquanto talrdquo ID IBID)18

17 Τὸ δὲ λέγεται μὲν πολλαχῶς ἀλλὰ πρὸς ἓν καὶ μίαν τινὰ φύσις καὶ οὐχ ὁμωνύμως ἀλλrsquo (Metafiacutesica 1003a 30-

35) 18 Ἔστιν ἐπιστήμη τις ἧ τὸ ὄν ᾗ ὄν καὶ τὰ τούτῳ ὑπάρχοντα καθ αὑτό (Metafiacutesica 1003a 20)

60

Dentro desta ciecircncia o conceito central que unifica e determina ldquoenterdquo e ldquoserrdquo eacute

apresentado como οὐσία O conceito de οὐσία (substantia substacircncia) eacute bem desenvolvido nas

Categorias entre as expressotildees que natildeo satildeo compostas quais sejam a substacircncia mesma

quantidade qualidade relaccedilatildeo lugar tempo posiccedilatildeo estado accedilatildeo ou afecccedilatildeo Ela eacute

apresentada desde duas perspectivas uma primaacuteria outra secundaacuteria A substacircncia primeira

natildeo se afirma de um sujeito nem em um sujeito mas comporta as substacircncias segundas nas

quais a forma afirma a espeacutecie e o gecircnero (ldquoserrdquo do sujeito) comportando tambeacutem os acidentes

(ldquoserrdquo no sujeito) que a eles se atribui Embora o conceito em sua primeira formulaccedilatildeo

contemple o aspecto formal bem como o elemento inteligiacutevel envolve ainda o aspecto material

em seu segundo modo natildeo podendo ser um sem o outro

As consequecircncias do desenvolvimento de uma ciecircncia responsaacutevel pelo ente enquanto

ente centralizando o conceito de substacircncia e substantivando a ideia de ldquoserrdquo por meio de seu

particiacutepio presente ldquoenterdquo satildeo o que se pode considerar como o desenvolvimento da histoacuteria do

ldquoserrdquo ou a histoacuteria da maneira pela qual o Ocidente compreende o ldquoserrdquo e a si mesmo Por meio

desta postulaccedilatildeo o ldquoτὰ ὄνταrdquo eacute posicionado no centro do pensamento ocidental Mais ainda do

que uma simples constataccedilatildeo da maneira pelo qual coube ao Ocidente pensar curioso eacute

especular o fato de que se natildeo fosse possiacutevel pensar fora da delimitaccedilatildeo do ente natildeo haveria

sequer indagaccedilatildeo alguma sobre as limitaccedilotildees ou prejuiacutezos imbuiacutedos nesta formulaccedilatildeo Sem

embargo eacute possiacutevel constatar desde os recursos apresentados (e ainda por muitos outros

caminhos que natildeo este) a necessidade incontida do ser humano ocidental eacute desenhar de maneira

niacutetida as fronteiras do pensamento e da maneira pela qual esse pensamento deve e pode ser

aplicado Resta saber apoacutes esta delimitaccedilatildeo o que haacute para aleacutem da fronteira

61

2 O CAMINHO DA NEGATIVIDADE HENEOLOGIA E MEONTOLOGIA E A

ULTRAPASSAGEM DOS LIMITES DA METAFIacuteSICA

O discurso ontoloacutegico tanto grego quanto latino personificou a atividade filosoacutefica ocidental

em larga escala A maneira pela qual a ontologia habilitava ao raciociacutenio uma seacuterie de

procedimentos facilmente verificaacuteveis nutriu seguranccedila metodoloacutegica aos assuntos

concernentes aos problemas intelectuais com os quais o ser humano fatalmente se deparava ao

longo de suas especulaccedilotildees e que reverberavam ainda na conjuntura soacutecio-pragmaacutetica Eacute neste

sentido que teria afirmado Immanuel Kant de maneira perspicaz que a razatildeo humana se

defronta com inevitaacuteveis questotildees impostas por sua proacutepria natureza19 Tanto para Aristoacuteteles

quanto para Francisco Suaacuterez aleacutem de tantos outros entrementes a importacircncia de assegurar

uma linha de raciociacutenio vaacutelida natildeo somente atribuiacutea autoridade ao argumento como tambeacutem

provia de suficiente clareza a linguagem que advogava suas doutrinas Em outras palavras

tornava-se faacutecil convencer outrem de seus pressupostos dada a indefectiacutevel loacutegica empregada

para encadear as sentenccedilas e alcanccedilar uma conclusatildeo A ontologia por meio de suas loacutegicas de

identidade e natildeo-contradiccedilatildeo (e ateacute certo ponto tambeacutem via argumento do terceiro excluiacutedo)

visava alcanccedilar tanto para afirmaccedilatildeo quanto para negaccedilatildeo a dissoluccedilatildeo de todo e qualquer

paradoxo que colocasse a mente em estado de confusatildeo e discoacuterdia Independente daquilo que

estava sendo afirmado ou negado da linha de raciociacutenio ou doutrina em jogo os procedimentos

discursivos e intelectuais eram basicamente os mesmos com variaccedilotildees conceituais maiores ou

menores dependendo da vertente Todavia prosseguia-se sempre da mesma maneira

19 Kant afirma ldquoA razatildeo humana no seu gecircnio de seu conhecimento possui o peculiar destino de ser incomodada

por questotildees que natildeo pode evitar porque elas satildeo dadas pela natureza da razatildeo mesma mas tambeacutem natildeo possuem

respostas porque elas excedem a capacidade da razatildeo humanardquo (KANT 1956 5 Criacutetica da razatildeo pura AVII-

AVIII)

62

Contudo a despeito da supremacia ontoloacutegica outras formas de pensamento foram

desenvolvidas no decorrer da histoacuteria da filosofia fossem elas similares ou totalmente opostas

Alguns pensadores especialmente radicais se dedicaram a um modo reflexivo que se distanciava

consideravelmente da estrutura ontoloacutegica Suas bases seus pressupostos e seus meacutetodos pelos

quais prosseguiam no caminho especulativo dos temas propostos (muitas vezes os mesmos dos

formuladores da ontologia claacutessica) projetavam-se de maneira consideravelmente diversa Para

eles havia uma necessidade imperativa de incluir todos os elementos presentes na estrutura da

realidade pensada em sua maacutexima possibilidade de concepccedilatildeo tanto os que satildeo quanto os que

natildeo satildeo Ao que parece por este motivo Werner Beierwaltes considera que as caracteriacutesticas

pelas quais se configuram a ontologia claacutessica satildeo sobretudo frutos da interrogaccedilatildeo pelo nexo

da identidade e da diferenccedila quer seja na afirmaccedilatildeo parmeniacutedica da natildeo legitimaccedilatildeo filosoacutefica

da alteridade quer seja na resposta platocircnica do necessaacuterio estabelecimento da diferenccedila na

constituiccedilatildeo do ldquoserrdquo em seu inteiro (cf BEIERWALTES 1989 25) Para Beierwaltes o rigoroso

conceito de unidade demandado por Platatildeo em reposta agrave univocidade do ser de Parmecircnides

resultou na possibilidade de inclusatildeo do ldquonatildeo-serrdquo relativo ao ldquoserrdquo para afirmar sua totalidade

Disto derivaria a altercaccedilatildeo originaacuteria entre identidade e diferenccedila e nisto consiste a

possibilidade de desvio do pensamento ontoloacutegico20 Sem embargo precisamente neste ponto

que acredito poder encontrar o que chamo aqui de caminho da negatividade ou a possibilidade

de inclusatildeo do oxiacutemoro no caminho de pensamento delineado pela ontologia considerando que

ele se desdobra na tradiccedilatildeo do chamado neoplatonismo e ainda na miacutestica medieval

20 Trata-se da definiccedilatildeo do natildeo-ser como alteridade apresentada no Sofista Apoacutes a discussatildeo acerca da comunidade

de gecircneros e a questatildeo do ldquomesmordquo e do ldquooutrordquo que configuram o problema da identidade e da diferenccedila Platatildeo

apresenta a hipoacutetese de compreender o ldquomovimentordquo como ldquooutrordquo do ldquoserrdquo questionando a tese parmeniacutedica a

respeito da ldquoestaticidade do serrdquo Assim Platatildeo coloca a questatildeo ldquoDevemos trabalhar nossa coragem agora para

dizer que aquilo que lsquonatildeo eacutersquo definitivamente eacute algo que possui natureza proacutepria Devemos dizer que assim como

o grande era grande o belo era belo o natildeo grande eacute natildeo grande e o natildeo belo eacute natildeo belo da mesma maneira pela

qual natildeo eacute tambeacutem foi e eacute natildeo-ser e eacute uma das formas dentre as quais satildeordquo (PLATO 1997 282 Sofista 258 c-d)

A sequecircncia do diaacutelogo questionaraacute a realidade deste natildeo-ser relativo culminando na identidade entre pensamento

e discurso abrindo a possibilidade para o discurso falso (o do sofista) e introduzindo a assunccedilatildeo do paradoxo no

seio do pensamento representando o chamado parriciacutedio aos eleatas

63

Ateacute onde eacute possiacutevel investigar o termo neoplatonismo teria sido cunhado pela primeira

vez pelo helenista e medievalista Thomas Gale nos idos de 1670 Gale foi responsaacutevel por uma

seacuterie de estudos sobre o neoplatonismo pagatildeo e cristatildeo escrevendo sobre Plotino Jacircmblico

Joatildeo Escoto Eriuacutegena Maacuteximo Confessor entre outros21 Definiccedilotildees agrave parte os primeiros

elementos responsaacuteveis por delinearem um ldquoneoplatonismo originaacuteriordquo apenas tardiamente

nomeado satildeo atribuiacutedos a Amocircnio Sacas Contudo como a figura histoacuterica de Amocircnio Sacas

eacute tatildeo envolta em controveacutersias e misteacuterios quanto a vida de Pitaacutegoras ou Soacutecrates atribui-se

diretamente a fundaccedilatildeo de uma ldquoescola neoplatocircnicardquo a Plotino disciacutepulo de Amocircnio

Muacuteltiplos debates mais ou menos coerentes envolvem os relatos sobre a relaccedilatildeo entre Plotino e

Amocircnio aleacutem de polecircmicas acerca do proacuteprio Amocircnio22 Destaca-se apenas a autoridade dos

relatos de Porfiacuterio (em sua Vida de Plotino) nos quais se considera que o meacutetodo de pesquisa

aplicado por Plotino estava profundamente ligado ao de seu mestre O conteuacutedo dos discursos

de Plotino tambeacutem teria uma iacutentima relaccedilatildeo com as tentativas de Amocircnio de unificar os diversos

planos do ser e estabelecer a derivaccedilatildeo de todas as coisas a partir do uno23 Sem embargo

Plotino teria absorvido e desenvolvido a doutrina de Amocircnio e necessariamente de Platatildeo em

suas Eneacuteadas em um movimento de exegese ao discurso platocircnico Exegese esta suscetiacutevel de

diversas interpretaccedilotildees dos caminhos por Plotino tomados e mesmo natildeo muito consensual entre

os estudiosos da obra24

21 Extraiacute estes dados de Aaron W Huges em um trabalho intitulado ldquoMedievalrdquo and the Politics of Nostalgia

Ideology Scholarship and the Creation of the Rational Jew (2012) Huges natildeo apenas investiga as origens das

designaccedilotildees do neoplatonismo mas ainda constata que a alcunha de ldquoneoplatocircnicosrdquo continuou sendo utilizada

por eruditos alematildees no seacuteculo dezenove como uma menccedilatildeo pejorativa aos ldquofalsificadoresrdquo das doutrinas de Platatildeo

e Aristoacuteteles (cf HUGES 2012) 22 Conforme Giovanni Reale em sua Storia della filosofia antica (1975-1980) Sobre este ponto especificamente

acerca das incertezas em torno agrave figura de Amocircnio confira REALE 2008 5-13 23 Esta consideraccedilatildeo eacute apresentada por Giovanni Reale com base nos relatos de Nemeacutesio em De natura hominis

(cf REALE 2008 11) Conforme Francisco B Harriet a questatildeo fundamental se encontraria na foacutermula ldquoestaacute mais

aleacutem do intelecto e da essecircnciardquo (ἐπέκεινα νοῦϛ καὶ οὐσίας) conforme a formulaccedilatildeo de Oriacutegenes de Alexandria

em Contra Celsum (fons ex quo initium totius intellectualis naturae uel mentir est) presente em Plotino (Eneacuteadas

V 1 8 e VI 8 16) e derivada do ciacuterculo de Amocircnio (cf HARRIET 2012 153) 24 Sobre a questatildeo da exegese Marcus Reis Pinheiro (em Plotino exegeta de Platatildeo e Parmecircnides 2007)

argumenta que natildeo se pode reduzir a exegeacutetica agrave mera interpretaccedilatildeo dos diaacutelogos de Platatildeo e outros escritos Trata-

se antes do desdobramento de um discurso muito antigo onde ldquo() fazer exegese () natildeo eacute interpretar

objetivamente os textos mas caminhar rumo aos niacuteveis superiores junto com os antigosrdquo (P INHEIRO 2007 80)

64

Neste fluxo talvez o mais cabiacutevel usual e conhecido de todos os estabelecimentos de

um ldquoponto de partidardquo seja o do claacutessico artigo Jean Trouillard Le Parmeacutenide de Platon et son

interpretation neacuteoplatonicienne (1973) onde o neoplatonismo eacute pensado desde a busca da

doutrina originaacuteria de Platatildeo principalmente a partir de uma releitura de seu diaacutelogo

Parmecircnides Todavia a maneira pela qual eacute possiacutevel explanar esta releitura levanta suspeitas

sendo necessaacuterio ponderar em quais formas a exegese plotiniana converge ou diverge das

tentativas de uma interpretaccedilatildeo das doutrinas originaacuterias de Platatildeo Mais ainda estaacute tambeacutem

em jogo a autoridade de apontar que existam de fato doutrinas originaacuterias havendo ainda

abertura para questionar a fiabilidade e o suposto peso das chamadas ldquodoutrinas natildeo-escritasrdquo25

Seja como for interessa sobretudo destacar como com as Eneacuteadas de Plotino o pensamento

filosoacutefico experimenta um movimento iacutempar em relaccedilatildeo agravequilo que vinha sendo apresentado

Para Ciacutecero Cunha Bezerra eacute possiacutevel elencar alguns pontos que evidenciam de maneira

clara a renovaccedilatildeo do neoplatonismo Destaca-se em primeiro lugar a junccedilatildeo entre os elementos

aristoteacutelicos e pitagoacutericos em siacutentese com uma perfeita sintonia entre o platonismo acadecircmico

e as ldquodoutrinas natildeo-escritasrdquo Ademais a ldquohierarquizaccedilatildeordquo do real a partir da qual todos os

graus satildeo derivados desde o uno permite uma sistematizaccedilatildeo do platonismo anterior Por este

motivo tende-se agrave leitura conforme a qual o neoplatonismo possuiria um sistema ldquomonopolarrdquo

frente a um suposto ldquobipolarismordquo platocircnico Por fim haacute ldquo() o fim uacuteltimo do processo de

conhecimento que para o neoplatocircnico eacute a uniatildeo plena com Deus (fugir soacute ao soacute) uma uniatildeo

que tem como marca a supressatildeo (aphaiacuteresis) de todo saber e dizerrdquo (BEZERRA 2006 57)

Dentre os pontos apresentados interessa-me particularmente o uacuteltimo (evidente consequecircncia

dos trecircs primeiros) no qual o neoplatonismo aparece como uma ldquosupressatildeo de todo saber e

dizerrdquo

25 Haacute uma interessante e profunda discussatildeo acerca do tema na tradiccedilatildeo de leitores e inteacuterpretes do platonismo e

do neoplatonismo a respeito deste toacutepico Ciacutecero Cunha Bezerra (em Compreender Plotino e Proclo 2006) aborda

o tema abrindo uma interlocuccedilatildeo com a obra Platone alla ricerca della spienza segreta de Giovanni Reale e ainda

com as investigaccedilotildees de W K C Guthrie e a chamada Escola de Tuumlbingen (cf BEZERRA 200617-24)

65

O senso comum ocidental regula a atividade filosoacutefica como um progresso ininterrupto

rumo ao acuacutemulo de conhecimento e dissoluccedilatildeo dos problemas Curioso agora eacute pensar a

maneira pela qual uma doutrina filosoacutefica pode suprimir o saber e o dizer ao inveacutes de

acrescentar Mas eacute apenas possiacutevel atingir a compreensatildeo necessaacuteria desta supressatildeo uma vez

esclarecido o que eacute propriamente o princiacutepio negativo do pensamento de Plotino Para isto natildeo

se pode perder de vista as duas questotildees que levariam agrave construccedilatildeo do pensamento de Plotino

quais sejam ldquo() o problema religioso (que corresponde agrave busca de compreensatildeo do destino

da alma assim como sua restauraccedilatildeo) e o problema filosoacutefico relativo agrave explicaccedilatildeo racional da

realidade ()rdquo (IDEM IBIDEM 66)26 ponderando ainda que em Plotino ambas estatildeo perfeitamente

inter-relacionadas Para atingir este entendimento todavia eacute necessaacuterio analisar as chamadas

trecircs hipoacutestases de Plotino presentes em suas Eneacuteadas

O conjunto de circunstacircncia que acompanham a formulaccedilatildeo do pensamento de Plotino

eacute todavia aquele anteriormente citado apresentado por Werner Beierwaltes que remete agrave

contenda entre Parmecircnides e Platatildeo Contextualizar a disputa Parmecircnides-Platatildeo da qual

derivam centralmente as hipoacutestases de Plotino natildeo eacute necessariamente complicado embora

interpretaacute-la e desde aiacute desdobrar um novo caminho reflexivo seja uma tarefa bastante

trabalhosa A demanda especulativa eacute altiacutessima e envolve uma bibliografia excessivamente

extensa e complexa Contudo como o interesse aqui eacute a apresentaccedilatildeo dos aspectos centrais do

pensamento de Plotino e como deles redunda uma nova postura e atitude filosoacuteficas o trabalho

fica menos penoso Portanto para colocar em relevo as hipoacutestases de Plotino eacute importante ao

menos demonstrar de forma simples os pontos originais dos quais elas derivam seja em

Parmecircnides seja em Platatildeo (e ateacute certo ponto tambeacutem no neopitagorismo e em Aristoacuteteles

embora esta tarefa exija um pouco mais e seja um pouco mais complicada de rastrear) Para

alcanccedilar este objetivo torna-se imperioso retornar brevemente a Parmecircnides

26 Esta hipoacutetese eacute destacada por Bezerra diretamente da obra de Eacutemile Breacutehier La Philosophie de Plotin (1928)

66

O segundo fragmento do poema Sobre a Natureza de Parmecircnides catalisa os principais

argumentos do conflito permitindo compreender quais satildeo os pontos mais problemaacuteticos do

estabelecimento de sua doutrina na tradiccedilatildeo Aleacutem da Fiacutesica de Simpliacutecio as fontes pelas quais

se estruturou esse fragmento adveacutem dos Comentaacuterios ao Timeu e Comentaacuterios ao Parmecircnides

de Proclo Os oito versos contidos no fragmento centralizam a doutrina de Parmecircnides como

foi herdada pela tradiccedilatildeo a partir da manifestaccedilatildeo das duas uacutenicas vias possiacuteveis para o

pensamento quais sejam a via da verdade e a via da aparecircncia O fragmento diz

εἰ δ᾽ ἄγ᾽ ἐρὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας

αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι

ἡ μέν ὄπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι

πειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ)

ἡ δ᾽ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι

τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν

οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐόν (οὐ γὰρ ἀνυστόν)

οὔτε φράσαις

(KIRK E RAVEN 1957 269)

Pois bem agora vou eu falar e tu presta atenccedilatildeo ouvindo a palavra

acerca das uacutenicas vias de questionamento que satildeo a pensar

uma para o que eacute e como tal natildeo eacute para natildeo ser

eacute o caminho de persuasatildeo ndash pois Verdade o segue ndash

outra para o que natildeo eacute e como tal eacute preciso natildeo ser

esta via indico-te que eacute uma trilha inteiramente inviaacutevel

pois nem ao menos se reconheceria o natildeo ente pois natildeo eacute realizaacutevel

nem tampouco se mostraria

(Traduccedilatildeo de Fernando Santoro cf PARMEcircNIDES 200612)

67

O caminho da verdade que eacute e natildeo eacute para natildeo ser (ἡ μέν ὄπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ

εἶναι) e o caminho da aparecircncia que natildeo eacute e natildeo pode ser (ἡ δ᾽ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών

ἐστι μὴ εἶναι) satildeo via de regra estabelecidos como a manifestaccedilatildeo maacutexima da loacutegica ocidental

e berccedilo dos princiacutepios de identidade e natildeo-contradiccedilatildeo A partir deles eacute possiacutevel natildeo soacute

estabelecer uma identidade (o ser eacute representada pela claacutessica foacutermula A=A) como ainda

verificar a veracidade dessa mesma identidade ndash natildeo eacute possiacutevel que o ser sendo natildeo seja

ilustrado pela foacutermula not (A ˄ notA) um tanto esdruacutexula sem duacutevidas27

O legado de Parmecircnides eacute marcado em sua difusatildeo pelos chamados ldquofiloacutesofos eleatasrdquo

sobretudo por Zenatildeo de Eleacuteia Seus argumentos contra a pluralidade (cf KIRK E RAVEN OP CIT

288-291) e contra o movimento (cf IDEM IBIDEM 291-297) se tornaram assaz populares

sobretudo no que concerne aos paradoxos da flecha no estaacutedio e de Aquiles e a tartaruga Aleacutem

da constataccedilatildeo da univocidade do ser presente em toda linha de pensamento parmeniacutedica28 O

resultado imediato dos exerciacutecios de raciociacutenio de Zenatildeo demonstraram a formataccedilatildeo de uma

estaticidade do ser e da realidade em torno alertando para a ilusatildeo do movimento e alteraccedilotildees

na substacircncia do real O momento no qual Platatildeo compotildee seu diaacutelogo Parmecircnides retrata

justamente o evento no qual tanto Parmecircnides quanto Zenatildeo estatildeo no aacutepice da divulgaccedilatildeo de

sua doutrina dialogando com um ainda jovem Soacutecrates Trata-se de um dos momentos mais

emblemaacuteticos da histoacuteria da filosofia ocidental

27 Haacute uma discussatildeo em torno a uma suposta terceira via aquela na qual o que ldquoeacuterdquo eacute e natildeo eacute ao mesmo tempo

baseada no sexto fragmento onde se lecirc ldquoοἶς τὸ πέλειν τε καὶ οὐκ ταῦτὸν νενόμισταιrdquo (KIRK E RAVEN OP CIT 271)

Embora ainda em um sentido pejorativo de uma via do engano emerge a possibilidade de que algo seja e natildeo seja

Mesmo que natildeo seja profiacutecuo para o andamento da tese se fixar na discussatildeo vale ao menos citaacute-la sobretudo

ponderando os apontamentos feitos por Jean Beaufret acerca da interpretaccedilatildeo de Martin Heidegger da terceira via

como a via dos entes Ao que cabe no propoacutesito do trabalho basta apenas atentar para como a tensatildeo entre as duas

primeiras vias jaacute foram suficientes para levantar controveacutersias Eacute possiacutevel especular ainda que jaacute na primeira via

aparece tambeacutem uma possibilidade de que o ser seja e natildeo seja quando se afirma que ele ldquoeacute e natildeo eacute para natildeo serrdquo

Seria possiacutevel conectar o ldquonatildeo eacuterdquo da sentenccedila como o natildeo-ser relativo necessaacuterio agrave constituiccedilatildeo da inteireza do

ser como argumentado no Sofista de Platatildeo 28 O que significa afirmar que natildeo existem ldquograusrdquo do ser uma coisa ou eacute real (ser) ou irreal (nada) (cf BEZERRA

2003 47)

68

As chamadas ldquotrecircs hipoacutetesesrdquo do Parmecircnides de Platatildeo satildeo apresentadas

respectivamente nas passagens 137c-142a 142b-157a e 157b-159a Elas constituem a mateacuteria

bruta para a elaboraccedilatildeo das trecircs hipoacutestases de Plotino Todas as trecircs hipoacuteteses de Platatildeo satildeo

apresentadas pela personagem do entatildeo velho Parmecircnides arguindo Soacutecrates a respeito da

viabilidade de cada argumento Elas se apresentam ainda a partir do problema constituiacutedo pela

questatildeo da unidade e da multiplicidade A pulsatildeo do jovem Soacutecrates ao inquirir Parmecircnides a

respeito de sua teoria fazendo-o apresentar as trecircs hipoacuteteses parte da colocaccedilatildeo de Parmecircnides

a respeito da assunccedilatildeo da multiplicidade por um lado e da impossibilidade do muacuteltiplo por

outro Parmecircnides eacute levado pelo jovem Soacutecrates a confirmar natildeo apenas sua teoria mas sua

metodologia e plano doutrinaacuterio

Para confrontar a teoria parmeniacutedica Platatildeo desenvolve a primeira hipoacutetese Ela

consiste basicamente na afirmaccedilatildeo de o que o ldquouno eacute unordquo ou seja se haacute uno natildeo eacute possiacutevel

que o uno seja muacuteltiplo Por este motivo ele natildeo pode conter partes nem tampouco ser um

inteiro (composto por partes) Tambeacutem natildeo pode ter um comeccedilo nem um meio nem um fim

natildeo possuindo nada que o limite ou delimite Tampouco pode possuir um formato nem se

encontrar em lugar algum nem estar se movimentando de um lugar para outro (porque entatildeo

assumir-se-ia algo outro que natildeo o uno pelo qual ele se movimenta) e nem em si mesmo

(porque com isto se movimentaria entre suas partes que por definiccedilatildeo natildeo pode conter) Natildeo

pode ainda ser diferente de si mesmo nem o mesmo que si mesmo porque assumindo sua

diferenccedila se assumiria algo outro que natildeo o uno ndash e assumindo sua identidade se assumiria que

haacute algo a saber a proacutepria identidade predicada do uno e que natildeo eacute o uno Natildeo pode tambeacutem

estar no tempo nem ter surgido em momento algum Por fim o uno natildeo pode possuir um nome

ou seja eacute inominaacutevel natildeo podendo ser objeto de opiniatildeo nem conhecimento nem percepccedilatildeo

caso contraacuterio assumir-se-ia um ser ou essecircncia distintos do uno pelo qual se alcanccedila seu

entendimento

69

Necessariamente a primeira hipoacutetese leva a uma outra questatildeo ou ao levantamento de

uma segunda hipoacutetese qual seja o uno eacute e quais satildeo as consequecircncias disto para ele mesmo

Essa hipoacutetese eacute consideravelmente mais complicada e envolve algumas nuances bastante

delicadas O argumento geral se concentra na ideia de que a proposiccedilatildeo uno eacute envolve

necessariamente a ideia de essecircncia do uno O grande problema em afirmar que o uno participa

da essecircncia de uno eacute justamente estabelecer a diferenccedila entre uma coisa e outra ou seja torna-

se inevitaacutevel afirmar que existem duas coisas a saber o uno e a essecircncia do uno O embargo

consiste na simples afirmaccedilatildeo uno eacute em contraposiccedilatildeo agrave afirmaccedilatildeo uno uno Logo desdobram-

se dois unos um uno que eacute e um uno e o ser O primeiro como afirmaccedilatildeo do proacuteprio uno o

segundo como assunccedilatildeo da participaccedilatildeo dele mesmo em sua essecircncia A reaccedilatildeo imediata agrave

afirmaccedilatildeo de que o uno eacute caminha em sentido contraacuterio das negaccedilotildees da primeira hipoacutetese

Sem embargo jaacute neste momento mesmo antes da apresentaccedilatildeo da terceira hipoacutetese

torna-se possiacutevel fazer algumas consideraccedilotildees Em primeiro lugar a hipoacutetese de que o ldquouno eacute

unordquo a despeito da aplicaccedilatildeo da categoria do ser para a predicaccedilatildeo da sentenccedila direciona o

pensamento para um caminho no qual natildeo haacute outra possibilidade senatildeo a completa negaccedilatildeo de

tudo que possivelmente competiria ao uno levando mesmo agrave dissoluccedilatildeo do eacute presente na frase

Em segundo lugar a hipoacutetese de que o ldquouno eacuterdquo desta vez com ecircnfase no eacute gera o movimento

oposto de afirmaccedilatildeo de tudo o que porventura poderia ser predicado de qualquer elemento

Estas duas hipoacuteteses (como se veraacute na apresentaccedilatildeo das hipoacutestases de Plotino)

discriminam perfeitamente as duas vias aqui cogitadas quais sejam uma via afirmativa da

ontologia claacutessica na afirmaccedilatildeo das coisas por meio da qual percebe-se compreende-se e se

faz ciecircncia e uma via negativa do que seraacute ulteriormente nomeada henologia na qual a maacutexima

especulaccedilatildeo acerca da natureza do uno natildeo leva senatildeo agrave negaccedilatildeo absoluta ndash as caracteriacutesticas

desta negaccedilatildeo ou negatividade ver-se-aacute mais claramente nas Eneacuteadas

70

A terceira hipoacutetese do Parmecircnides de Platatildeo eacute apresentada no diaacutelogo muito brevemente

Ela abarca ambos os aspectos centrais das duas primeiras hipoacuteteses sugerindo que o uno eacute e

natildeo eacute imputando a categoria de mudanccedila em sua natureza Trata-se de diagnosticar o fato de

que sendo o uno uno por um lado e muacuteltiplo por outro participa e natildeo participa de sua

essecircncia vem a ser e deixa de ser ponderando ainda que esta mudanccedila se daacute no instante Sendo

assim tanto o movimento de retorno ao uno quanto o movimento de procedecircncia a partir do

uno daacute-se ao mesmo tempo em uma reciprocidade na qual tanto a geraccedilatildeo da multiplicidade

configura o uno nem como uno nem como muacuteltiplo quanto a reuniatildeo da multiplicidade ao

uno tampouco configura o uno nem como uno nem como muacuteltiplo ndash como se a proacutepria ideia

de uno flutuasse em um ldquoinstante incapturaacutevelrdquo

Natildeo haacute duacutevida que o raciociacutenio apresentado por Platatildeo constitui um dos maiores

desafios especulativos da histoacuteria do pensamento ocidental seja nos esforccedilos empreendidos

pela loacutegica de compreensatildeo seja pelo desafio meditativo aflorado da temaacutetica proposta Neste

contexto Marcus Reis Pinheiro indica a interpretaccedilatildeo de Jean-Luc Brisson (Annexe I Les

interpretation du Parmeacutenide dans lrsquoAntiquiteacute presente na ediccedilatildeo Parmenide Paris Flamarion

1999) conforme a qual ldquo() Plotino estaacute no grupo dos inteacuterpretes do diaacutelogo que natildeo o vecirc

apenas como um exerciacutecio loacutegico mas que procura determinar a que tipo de objeto se refere o

diaacutelogordquo (PINHEIRO 2006 3) Seguindo esta linha de raciociacutenio o importante seria portanto

compreender como Plotino absorve a temaacutetica Considerar uma interpretaccedilatildeo para aleacutem da mera

concatenaccedilatildeo loacutegica de conceitos eacute basicamente absorver o sentido de cada termo Isto significa

natildeo apenas expor as formataccedilotildees daquilo que foi introduzido no discurso como ldquounordquo mas

ainda entender de que forma a simples possibilidade de concebecirc-lo no raciociacutenio implica em

uma reduccedilatildeo draacutestica das estruturas hieraacuterquicas do real ou seja constitui uma compreensatildeo

da realidade que possui como primeiro princiacutepio algo que coloca o pensamento em um niacutevel de

paradoxo que necessariamente denota a assunccedilatildeo de uma impossibilidade loacutegica

71

As trecircs hipoacutestases de Plotino seratildeo teoricamente encadeadas de maneira semelhante agraves

hipoacuteteses de Platatildeo embora natildeo sequencialmente Contudo a primeira (e talvez a mais

complexa) jaacute iniciaraacute o movimento de negatividade em direccedilatildeo agraves seguintes estabelecendo os

conflitos presentes na ideia de uno (τὸ ἑν) Plotino considera que ldquoO Uno eacute todas as coisas e

nenhuma delas a fonte para todas as coisas eacute nenhuma das coisas e ainda eacute todas as coisas em

um sentido transcendental ndash todas as coisas para assim dizer tendo seu retorno agrave isto ()rdquo

(PLOTINUS 1969 380 Eneacuteadas V 2 1) Ele ainda assevera a inefabilidade inerente ao uno

conforme a qual todo discurso eacute jaacute sempre indireto e impreciso Apenas mediante referecircncias

como ldquotodas as coisas e nenhuma delasrdquo torna-se possiacutevel acenar para o uno ndash e apenas isto

acenar Entretanto esta eacute para Plotino a uacutenica maneira de compreender a estrutura da realidade

como tal pelo simples motivo de que ldquoEacute precisamente porque haacute nada no Uno que todas as

coisas derivam dele para que o Ser possa ser trazido a fonte natildeo pode ser o Ser mesmo mas o

gerador do Ser ()rdquo (IDEM IBIDEM) que natildeo pode possuir a natureza do ser mas deve se constituir

como outro dele qual seja natildeo-ser ou mesmo nada Plotino prossegue ainda dizendo

ldquoBuscando nada possuindo nada faltando nada o Uno eacute perfeito e em nossa metaacutefora

transborda e sua exuberacircncia produz o novo este produto torna-se novamente seu progenitor

e eacute preenchido e se torna seu contemplador e Princiacutepio-Intelectualrdquo (ID IBID) A passagem

altamente especulativa denota que tudo eacute contemplaccedilatildeo dotada de uma atividade suprema que

comeccedila pelo uno e retorna a ele no simples olhar que natildeo implica nem em complexidade nem

em necessidade29 Mediante uma reflexatildeo propriamente loacutegica a contemplaccedilatildeo por meio da

qual o uno se desdobra e gera todas as coisas se daacute devido a sua proacutepria perfeiccedilatildeo ou seja o

uno natildeo eacute coisa nenhuma e necessariamente engendra todas as coisas porque eacute completo

porque eacute a totalidade de tudo e para isto eacute necessaacuterio que seja ele mesmo e ainda outro de si

29 Estes apontamentos satildeo de John Bussanich que ainda explica que ldquo() a doutrina plotiniana da derivaccedilatildeo do

Uno eacute lsquoprocessatildeorsquo o adjetivo que melhor qualifica isto eacute lsquocontemplativorsquo o movimento no qual a hipoacutestase eacute

gerada coincide com a contemplaccedilatildeo De fato o ponto cardial a chave para a estrutura da processatildeo da metafiacutesica

plotiniana era contemplaccedilatildeo ou theocircriardquo (BUSSANICH 1999 32)

72

Ciacutecero Cunha Bezerra apresenta a organizaccedilatildeo feita por Pierre Aubenque30 conforme a

qual haveriam trecircs esferas argumentativas no desenvolvimento da primeira hipoacutestase uma

loacutegica outra epistemoloacutegica e uma metafiacutesica Bezerra cita uma das passagens mais conhecidas

de Plotino que diz ldquoPrivado de unidade uma coisa cessa de ser aquilo pelo qual eacute chamada

um exeacutercito natildeo eacute um exeacutercito se natildeo eacute uno um coro um rebanho devem ser uma coisa soacuterdquo

(ID IBID 612 VI 9 1) sobretudo para enfatizar o aspecto loacutegico pelo qual Plotino ldquosubverterdquo

a resposta aristoteacutelica da entidade da coisa pela definiccedilatildeo substancial Bezerra argumenta

dizendo que ldquo() Plotino por uma exigecircncia loacutegica jaacute que o princiacutepio originaacuterio natildeo pode

possuir qualquer caraacuteter dos seres relativiza a ontologia e estabelece a henologia como

fundamento de todo serrdquo (BEZERRA OP CIT 67) O problema epistemoloacutegico sobressalta a

ultrapassagem necessaacuteria de todo conhecimento para alcanccedilar tal niacutevel de especulaccedilatildeo ao passo

que a questatildeo metafiacutesica retorna aos trechos anteriormente citados no qual a geraccedilatildeo de todas

as coisas soacute pode derivar de coisa nenhuma

O emprego do termo henologia define aqui o primeiro passo para o caminho da

negatividade Institui-se como negativo o princiacutepio que jaacute natildeo mais decorre de um rendimento

ldquopositivordquo por meio do qual se pode construir um conhecimento soacutelido e confiaacutevel mas uma

base que possui caracteriacutesticas muito diversas e que desafiam a capacidade loacutegica Por este

motivo a primeira demanda eacute jaacute a superaccedilatildeo intelectual (ἐπέκεινα νοῦϛ καὶ οὐσίας) que deve

assumir que o comeccedilo de todas as coisas eacute incoacutegnito O discurso eacute indireto e metafoacuterico porque

somente assim eacute possiacutevel indicar sua possibilidade de ser pensado ndash entendendo principalmente

que o ldquoser pensadordquo natildeo indica nem conota existecircncia porque o ser e a existecircncia mesmo satildeo

ainda posteriores agrave ideia de uno As segunda e terceira hipoacutestases portanto natildeo podem ser

concebidas se de antematildeo natildeo for assumida a negatividade do primeiro princiacutepio

30 Pierre Aubenque ldquoPlotin et le deacutepassement de lrsquoontologie grecque classiquerdquo Colloque des Royaumont Le

Neacuteoplatonisme Paris Centre National de Recherche Scientifique 1971 101-110

73

Somente por meio da completude da pensamento henoloacutegico de Plotino fica possiacutevel

deixar claro os termos pelos quais se destaca a negatividade como ldquosupressatildeo de todo saber e

dizerrdquo Os motivos contudo jaacute satildeo bastante evidentes se levado em consideraccedilatildeo que a

inefabilidade do uno indica que sobre ele natildeo se pode falar e ele natildeo se pode conhecer Portanto

o neoplatonismo necessariamente parte do pressuposto de que o ponto de partida e o ponto de

chegada do pensamento satildeo ambos uma caminhada rumo agrave supressatildeo Ao explicar a processatildeo

por meio da qual o uno engendra todas as coisas destaca-se uma consideraccedilatildeo importante se

os seres engendram o eternamente perfeito engendra eternamente algo inferior a si mesmo por

isto mesmo ldquoEacute preciso observar que a processatildeo plotiniana implica necessariamente uma

negaccedilatildeo A negaccedilatildeo eacute uma condiccedilatildeo a priori no sentido de que o engendrado deve assimilar-se

ao seu gerador mas mantendo uma resistecircncia que diferencia um do outrordquo (IDEM IBIDEM 74)

Em outras palavras a geraccedilatildeo do uno e a abertura da segunda hipoacutestase soacute eacute possiacutevel por meio

da introduccedilatildeo da diferenccedila A diferenccedila eacute o que aqui constitui o passo fundamental da sequecircncia

do pensamento neoplatocircnico O ser eacute na medida em que eacute diferente do uno e por ele eacute

engendrado justamente porque apenas a diferenccedila pode advir do eternamente perfeito

Assim sendo resta saber como o uno engendra e o quecirc ele engendra O que significa

ainda resgatar a pergunta anteriormente colocada por Parmecircnides e Platatildeo como do uno

provem o muacuteltiplo Esta questatildeo eacute sem sombra de duacutevidas uma das mais complexas do sistema

neoplatocircnico em geral A ideia de processatildeo (πρόοδος) pressupotildee uma emanaccedilatildeo a partir do

uno na qual todas as outras coisas satildeo engendradas o que significa dizer que se trata de um

movimento que abarca a realidade em toda sua estrutura na qual ldquo() difere completamente de

um mecanicismo dado que estaacute mais aleacutem de toda contingecircncia e necessidade Nesse sentido

natildeo se pode dizer que se trata de algo que implique um livre-arbiacutetrio ou uma produccedilatildeo artesanalrdquo

(ID IBID 76) Ou seja o uno natildeo necessita de nada e por isto mesmo daacute origem a tudo A

espontaneidade (se eacute que se pode utilizar tal termo) eacute natural e natildeo possui um motor

74

Ao mesmo tempo tudo aquilo que eacute gerado pelo uno possui um poder de conversatildeo

(επιστροφή) um voltar-se sobre si mesmo e voltar-se em direccedilatildeo ao uno (cf ID IBID 76)

movimentada pelo autoconhecimento daquilo que eacute Este autoconhecimento soacute eacute possiacutevel

todavia pelo proacuteprio movimento de emanaccedilatildeo conforme o qual se identifica ldquoserrdquo e

ldquopensamentordquo como havia postulado Parmecircnides e eacute justamente este o momento no qual

emerge a segunda hipoacutestase qual seja a inteligecircncia (νοῦϛ)

As caracteriacutesticas pelas quais a inteligecircncia se mostra desde a compreensatildeo da processatildeo

satildeo a chave para o sentido da filosofia de Plotino Sobre isto Thomas Alexander Szlezaacutek

escreve ldquoNatildeo persegue o Uno com esforccedilo deliberado mas espera tranquilamente ateacute que ele

apreccedila Assim a alma soacute recebe unicamente o Uno eacute uma volta do lsquosolitaacuterio para o solitaacuteriorsquordquo

(SZLEZAacuteK 2010 11) acrescentando ainda que ldquoO caminho que conduz ao Uno natildeo passa poreacutem

pela praacutetica asceacutetica de um anacoreta mas pela apropriaccedilatildeo conceitual do mundo inteligiacutevel

()rdquo (IDEM IBIDEM) Os termos inteligecircncia e inteligiacutevel referem-se aqui a uma definiccedilatildeo

particular que compreende o nuacutecleo da segunda hipoacutestase Bezerra escreve acerca deste ponto

ldquoPlotino no tratado oitavo da terceira Eneacuteada define a Inteligecircncia natildeo como uma coisa

particular mas como algo universal e muacuteltiplordquo (BEZERRA OP CIT 78) explicando que eacute

ldquoUniversal porque abarca todos os seres e muacuteltiplo porque coexistem em sua natureza

simultaneamente o inteligente (Inteligecircncia) e o inteligiacutevel (ser) ()rdquo (IDEM IBIDEM) Plotino

encadeia seu raciociacutenio elucidando como o Princiacutepio-Intelectual eacute universal e iniacutecio de todas as

coisas de maneira que ldquo() assim todas as coisas e o Princiacutepio de tudo deve ser tal que cada

parte dele seja universal eacute todas coisas do contraacuterio conteria partes que natildeo satildeo o Princiacutepio-

Intelectualrdquo (PLOTINUS OP CIT 246 Eneadas III 8 8) Conclui a partir de entatildeo que ldquo() este

Ser eacute ilimitado e que em tudo que flui dele natildeo haacute reduccedilatildeo nem em sua emanaccedilatildeo desde que eacute

o universo inteiro nem em si mesmo o ponto de partida desde que natildeo haacute reuniatildeo de partes

()rdquo (IDEM IBIDEM 246-247) Fica claro o caraacuteter ascendente e natildeo descendente da processatildeo

75

Plotino explica que ldquo() um ser desta natureza natildeo eacute existecircncia primaacuteria deve existir a

partir daquilo do qual transcende o Ser (o Absoluto) ()rdquo (ID IBID 247) e prossegue dizendo

que ldquo() Pluralidade eacute mais tardia que Unidade O Princiacutepio-Intelectual eacute um nuacutemero (=a

expressatildeo de uma pluralidade) e o nuacutemero deriva da unidade a fonte de um nuacutemero como este

deve ser o autecircntico Unordquo (ID IBID) A transcendecircncia que evidencia o caraacuteter progressivo

pode ainda ser entendida desde a ideia de que ldquo() ao contemplar-se a si mesmo a Inteligecircncia

se une ao objeto contemplando uma unidade entre o eu e o ser universal que supera toda

alteridade ()rdquo (BEZERRA OP CIT 79) Com isto eacute possiacutevel resgatar ainda o sentido pelo qual

Beierwaltes destaca a diferenccedila como princiacutepio pelo qual haacute um desvio de Plotino em relaccedilatildeo

agrave ontologia claacutessica (cf BEIERWALTES OP CIT 58) Contudo como se compreende esta

contemplaccedilatildeo eacute o que levaraacute agrave terceira hipoacutestase a alma (ψυχή) Bezerra explica recapitulando

os passos anteriores ldquoVimos anteriormente que o Uno e o Muacuteltiplo apresentam-se sob duas

maneiras distintas a) Uno e natildeo muacuteltiplo (I hipoacutetese) b) Uno-Muacuteltiplo (II hipoacutetese) A alma eacute

portanto ao mesmo tempo uno e muacuteltiplordquo (BEZERRA OP CIT 82) o que significa evidenciar

que ela representa uma distinccedilatildeo radical e afastamento do primeiro princiacutepio o uno

Ainda no oitavo tratado da terceira Eneacuteada Plotino aborda a natureza enquanto ato

criador compreendendo o fenocircmeno a partir de uma tensatildeo entre um Princiacutepio-Racional inerte

e um Princiacutepio-Natural em movimento (cf PLOTINUS OP CIT 239-240 Eneadas III 8 2) que

responderia ainda ao conflito entre unidade e multiplicidade e ainda agrave questatildeo entre tempo e

eternidade Plotino indaga como a natureza responderia ao questionamento colocando

literalmente o argumento na fala da natureza que diria que ldquoOs matemaacuteticos desde suas visotildees

desenham suas figuras mas eu desenho nada eu contemplo as figuras do material do mundo

tomando os seres como eu os sinto desde minha contemplaccedilatildeordquo (IDEM IBDEM 241) chegando a

conclusatildeo de que ldquo() o que noacutes conhecemos por Natureza eacute uma Alma cria de uma Alma

ainda anterior () uma visatildeo interna de si mesmardquo (ID IBID)

76

A visatildeo interna de si mesma mencionada por Plotino prove o entendimento de que ldquoA

alma portanto autodetermina-se e ao mesmo tempo autofragmenta-se pois ao separar-se do

todo volta-se maravilhada para o particularrdquo (BEZERRA OP CIT 84) Disto adveacutem a geraccedilatildeo do

tempo como desordem introduzida no equiliacutebrio primordial e ao mesmo tempo a introduccedilatildeo

de uma ordenaccedilatildeo mediada pela conversatildeo (επιστροφή) ndash pelo retorno maravilhado ao uno ou

uniatildeo ao fundamento por meio da contemplaccedilatildeo

Agora bem toda esta inevitaacutevel breve introduccedilatildeo ao pensamento de Plotino deve

direcionar para uma postura distinta daquela antes observada com a ontologia claacutessica e o

pensamento metafiacutesico Que postura eacute esta Ou melhor qual o caminho que se abre a partir das

trecircs hipoacutestases plotinianas Este eacute o momento no qual o caminho da negatividade comeccedila a se

encorpar e mostrar seu caraacuteter decisivo na constituiccedilatildeo do desvio intelectual do neoplatonismo

Gostaria de fazer um recorte especiacutefico do nono tratado da sexta Eneacuteada para alcanccedilar este

esclarecimento

Plotino reconstitui seu caminho a partir da afirmaccedilatildeo ldquoEacute em virtude da unidade que os

seres satildeo seresrdquo (PLOTINUS OP CIT 614 Eneadas VI 9 1) O que significa afirmar que sem a

unidade natildeo se pode considera que algo seja o que seja Em termos mais simples se nomeio

braccedilo pernas cabeccedila razatildeo sensibilidade entre outras muacuteltiplas singularidades presentes em

um ser humano mas natildeo as congrego em uma unidade pela qual afirmo ldquoser humanordquo que

compreende todas as particulares em questatildeo inexoravelmente perco de vista seu sentido Por

isto ldquoQualquer coisa que possa ser descrita como uma unidade o eacute no preciso grau pelo qual

sustenta um ser caracteriacutestico quanto menor ou maior o niacutevel do ser menor ou maior seraacute a

unidaderdquo (IDEM IBIDEM) Portanto alma seria (em razatildeo de sua distinccedilatildeo da unidade mesma)

uma grande unidade em proporccedilatildeo e na autenticidade do ser e assim ldquoUnidade absoluta natildeo eacute

eacute a alma e a primeira alma a unidade em algum sentido concomitante ()rdquo (ID IBID) deixando

ver como a unidade natildeo eacute e eacute

77

Desta forma pode-se compreender que o uno natildeo pode ser a totalidade dos seres que

anularia sua unidade nem tampouco o ldquoPrinciacutepio-Intelectualrdquo pelo qual as coisas satildeo nem o

ldquoser mesmordquo no sentido da totalidade das coisas Plotino prossegue dizendo ldquoA alma ou mente

movimentando-se rumo ao que eacute sem forma encontra-se em estado de incompetecircncia para

apreender ali onde nada se limita ou onde a se impinge a realidade difusardquo (ID IBID 615 VI

9 3) Assim ldquo(hellip) ante o puro pavor de se sustentar no nada esvai-se O estado eacute doloroso

geralmente busca aliacutevio ao se retratar de sua vagueza na regiatildeo do sentido para ali repousar em

um fundamento soacutelido bem como a visatildeo aflige-se com o minuto no qual repousa na escuridatildeordquo

(ID IBID) Mas para onde olhar frente ao desconforto de natildeo se ter onde repousar Quando se

percebe o quatildeo vago eacute todo e qualquer presumido fundamento ou sentido quando a escuridatildeo

natildeo reflete senatildeo a angustia de uma contemplaccedilatildeo exausta pelo esvair de todo sustento o que

resta para aleacutem discoacuterdia que atinge o intelecto Plotino sintetiza a afliccedilatildeo

A alma deve ver em sua proacutepria maneira isto se daacute por coalescecircncia a unificaccedilatildeo

mas buscando assim conhecer a unidade eacute impedida por esta mesma unificaccedilatildeo de

reconhecer o que foi encontrado natildeo se pode distinguir a si mesmo do objeto de sua

intuiccedilatildeo No entanto este eacute nosso uacutenico recurso caso nossa filosofia busque o

conhecimento da Unidade (ID IBID)

O uacutenico caminho rumo ao conhecimento da unidade eacute um caminho impossiacutevel em si mesmo

uma via cerrada pela proacutepria natureza do questionamento proposto Intuir as trecircs hipoacutestases ou

encadeaacute-las conforme uma loacutegica sistemaacutetica portanto elucida o caminho mas natildeo

necessariamente introspecta e absorve a pureza da experiecircncia Para isto eacute necessaacuterio mais ou

melhor menos ndash muito menos O uacutenico ponto de apoio aqui seraacute a identificaccedilatildeo entre o uno e

bem ou a compreensatildeo da primeira hipoacutestase como uno-bem (τὸ ἑν καὶ αγαθον) cujo sentido

eacute por um lado extrema e pura simplicidade e por outro inefabilidade total devido agrave perfeiccedilatildeo

78

Reivindicar este caminho soacute pode portanto levar a uma supressatildeo absoluta onde

ldquoAinda esta abstenccedilatildeo de autoconhecimento natildeo comporta ignoracircncia ignoracircncia eacute algo de fora

ndash um conhecedor ignorante de um cognosciacutevel ndash mas no solitaacuterio natildeo haacute nem conhecimento

nem nada desconhecidordquo (ID IBID 620 VI 9 6) Plotino entatildeo apresenta uma formulaccedilatildeo

nada usual conforme a qual certo direcionamento de suas intenccedilotildees pode ser entendido em

uma passagem tatildeo emblemaacutetica quanto enigmaacutetica ele escreve

Neste coro a alma olha para a nascente da Vida tambeacutem nascente do Intelecto iniacutecio

do Ser fonte do Bem raiz da Alma Natildeo que eles tenham sido despejados do Supremo

menosprezando-os como se fosse uma massa Nisto aquilo que emana seria pereciacutevel

mas eles satildeo eternos eles nasce de um princiacutepio eterno que produz deles sua

fragmentaccedilatildeo mas em virtude de sua identidade inata portanto eles se manteacutem muito

firmes conto o sol brilhe contanto haveraacute luz

()

Aqueles para os quais toda esta experiecircncia eacute estranha podem entende-la como nossos

anseios terrenos e a alegria que temos ao ganhar o que mais desejamos ndash lembrando

sempre que aqui o que noacutes amamos eacute pereciacutevel doloroso que nosso amor eacute mimeacutetico

e se afasta porque foi tudo um engano nosso bem natildeo estava laacute isto natildeo era o que

procuraacutevamos Haacute apenas o verdadeiro amor onde haacute uniatildeo natildeo segurando isto com

algum tipo de abraccedilo carnal mas possuindo na totalidade sua veracidade Todos

aqueles que viram sabem o que tenho em mente a alma toma outra vida quando se

aproxima de Deus assim restaurada sente que o distribuidor da verdadeira vida estaacute

laacute para ver que agora natildeo temos nada para procurar senatildeo aquilo que precisamos

deixar de lado e deixar assim sozinho assim vindouro assim soacute tudo o que o ambiente

terreno aniquilou na pressa de ser livre impaciente em relaccedilatildeo a qualquer laccedilo que

nos sustenta na base para que com todo nosso ser possamos agarrar-nos sobre isto

quando natildeo sobra nada em noacutes senatildeo aquilo pelo qual tocamos em Deus (ID IBID

623 VI 9 9)

79

As palavras de Plotino ressoam como uma conduta que eacute antes como postura que doutrina O

uso termo ldquoamorrdquo denota claramente uma experiecircncia irregulaacutevel uma tensatildeo entre ausecircncia e

presenccedila preenchimento e falta ndash sem embargo um misteacuterio

O misteacuterio que indicado por Plotino se configura como o guia para a visatildeo que permite

descortinar o sentido pensamento filosoacutefico Um misteacuterio que segue a mesma regra de Platatildeo e

do platonismo onde ldquoNada eacute divulgado para os natildeo-iniciadosrdquo (ID IBID 624 VI 9 11) e do

qual natildeo se pode simplesmente exibir uma estoacuteria ordinaacuteria ldquoCoisas aqui satildeo sinaisrdquo (ID IBID)

adverte Plotino Sinais para aqueles que entram em solo sagrado e tornam real a visatildeo do

inacessiacutevel Ele esclarece ainda ldquoQuando a alma comeccedila novamente a se colocar natildeo se torna

outra mas si mesma assim desprendida natildeo eacute nada senatildeo si mesma auto-reunida natildeo eacute mais

da ordem do ser estaacute no Supremordquo (ID IBID) O desprendimento e a supressatildeo a visatildeo do uno

e o movimento de uniatildeo encaminham para o ldquotodo-transcendenterdquo que jaacute natildeo mais estaacute no niacutevel

daquilo que eacute do ente mesmo do ser mas em uma esfera para aleacutem de todas as coisas que satildeo

e que natildeo satildeo A culminaccedilatildeo do pensamento henoloacutegico de Plotino como uma ldquomiacutestica da

unidaderdquo eacute o berccedilo do neoplatonismo e necessariamente o iniacutecio de sua radicalizaccedilatildeo

Neste fluxo considera-se que existam dois momentos fundamentais do desdobramento

do neoplatonismo a partir da henologia plotiniana quais sejam a teologizaccedilatildeo da henologia

desenvolvida por Proclo e a teologia negativa do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita Em ambos eacute

possiacutevel observar como o caminho da negatividade se configura partir de uma profunda

introspecccedilatildeo de temas que tendem agrave dissoluccedilatildeo do conhecimento ateacute entatildeo concebido

estruturado e instaurado ndash e ainda agrave subversatildeo completa de seus meios de expressatildeo e

significaccedilatildeo isto eacute agrave supressatildeo do saber e do dizer Eles natildeo representam meramente o ldquopasso

adianterdquo como se houvessem ainda superado o discurso antecessor mas antes o ldquopasso atraacutesrdquo

enquanto retorno agraves bases e aos princiacutepios por meio da reivindicaccedilatildeo da atitude desvelada pela

miacutestica onde o misteacuterio natildeo eacute o problema a ser desvendado mas o elemento a ser incorporado

80

O obra de Proclo eacute composta por diversos comentaacuterios aos diaacutelogos de Platatildeo dentre os

quais ao Timeu ao Parmecircnides ao Alcebiacuteades agrave Repuacuteblica entre outros aleacutem de escritos

sistemaacuteticos como os Elementos de Teologia e a Teologia Platocircnica Existem ainda obras que

abordam temas de matemaacutetica astronomia arte magia e tratados propedecircuticos sobre doutrinas

filosoacuteficas Especialmente em relaccedilatildeo agraves contribuiccedilatildeo em torno agrave henologia duas obras satildeo de

suma importacircncia o Comentaacuterio ao Parmecircnides de Platatildeo e os Elementos de Teologia

A leitura de Proclo do Parmecircnides de Platatildeo eacute considerada uma das mais sistemaacuteticas e

originais que teria sobrevivido agraves vicissitudes dos tempos Ademais guardaria ainda um apelo

ao resguardo da filosofia de Platatildeo bem como uma preparaccedilatildeo para um projeto de resgate da

vitalidade do paganismo por meio de um platonismo revigorado 31 Decorreria disto uma

profunda incursatildeo na filosofia como teologia que culminaria em seus Elementos Ainda no

Comentaacuterio Proclo descreve o percurso de Platatildeo em relaccedilatildeo agrave Parmecircnides e manifesta uma

linha argumentativa similar a Plotino

Mas caso se queira chegar o mais proacuteximo da verdade deve-se seguir a linha de nosso

Mestre que Parmecircnides inicia desde o Uno (Ser) (para a proposiccedilatildeo ldquose haacute um unordquo

jaacute que conteacutem aleacutem do ldquoUnordquo o conceito de existecircncia pertence a este tipo de coisas)

ascendendo do Uno Ser para o Uno assim demonstrando que o Uno em sentido estrito

deseja apenas isto ser One e ldquoarrebatar-se para longerdquo do Ser e o Uno Ser eacute

secundaacuterio a este pela razatildeo de sua descendecircncia em direccedilatildeo ao Ser ao passo que o

Uno mesmo eacute superior mesmo agrave designaccedilatildeo ldquoeacuterdquo e a hipoacutetese ldquose haacuterdquo assim que

adicionamos eacute o Uno no sentido estrito natildeo mais permanece (PROCLUS 1987 379-380

In Parm 1033)

31 Estas consideraccedilotildees satildeo de Ciacutecero Cunha Bezerra em Algumas consideraccedilotildees sobre leitura procleana do

Parmecircnides de Platatildeo (2004) Neste artigo ele ainda sustenta em consonacircncia com H D Saffrey (Proclus

diadoque de Platon 1990) que Proclo entra na linha de inteacuterpretes de Platatildeo que entendem sua filosofia como

revelaccedilatildeo de uma verdade divina estruturada a partir do uno filiando Platatildeo aos teoacutelogos gregos (cf BEZERRA 2004

99-100)

81

Proclo apresentaraacute na sequecircncia a impossibilidade de ldquohipotetizarrdquo o uno cindindo de um lado

hipoacutetese-condicionada e de outro anti-hipoacutetese-incondicionada O problema que estaacute sendo

colocado parte da ideia de que natildeo se pode pensar a multiplicidade isolada senatildeo somente por

meio da concepccedilatildeo de uma unificaccedilatildeo Para aleacutem da estrutura binaacuteria uno-muacuteltiplo deve-se

considerar a unificaccedilatildeo como consequecircncia necessaacuteria dando origem agrave formulaccedilatildeo ldquouno-

unificado-muacuteltiplordquo para explicar como eacute simplesmente possiacutevel que hajam elementos pelos

quais outros se unificam32

O resultado da formulaccedilatildeo de Proclo parece ser a absolutizaccedilatildeo do uno e sua

identificaccedilatildeo com Deus algo sobremaneira evidente na proposiccedilatildeo de seus Elementos que diz

ldquoTodo intelecto divino eacute uniforme ou possui a forma do Uno e eacute perfeito E o primeiro intelecto

subsiste por si mesmo e produz outros intelectosrdquo (IDEM 1998 86 Elem Theo Prop CLX)

Proclo argumenta ainda que se haacute um Deus ele eacute preenchido de unidades divinas e eacute uniforme

sendo ainda perfeito e cheio da bondade divina havendo um Deus primeiro que provecirc as

hipoacutestases para outros intelectos

Este eacute precisamente o ponto que seraacute aprofundado pelo Pseudo-Dioniacutesio Areopagita em

sua teologia negativa Tanto em Proclo quanto no Pseudo-Dioniacutesio o divino habita a

compreensatildeo filosoacutefica da realidade como incorporaccedilatildeo do misteacuterio seguindo ainda a esteira

da muacutetua reciprocidade entre filosofia e religiatildeo demanda por Plotino desde o iniacutecio Pseudo-

Dioniacutesio coroa a radicalizaccedilatildeo do uno e sua identidade com o Deus primeiro apresentado como

supraessencial (ὑπερούσιε) suprabondoso (ὑπεράγαθε) e mesmo supradivino (ὑπερθεε) razatildeo

pela qual ele demanda que ldquo() em absoluta renuacutencia de si mesmo e de todas as coisas deveraacutes

na pureza deixar todas as coisas de lado liberando-se de tudo e sendo assim levado para cima

para o Raio da Divina Treva que excede toda existecircnciardquo (DIONYSIUS THE AREOPAGITE 1920 192)

32 Esta passagem eacute cuidadosamente explicada por Giuseppe Girgenti que esclarece que ldquoO ponto culminante do

primeiro grupo de teoremas eacute o alargamento da hierarquia de quatro termos uma vez que o raciociacutenio de Proclo

levou a distinguir o intermediaacuterio entre o proacuteprio Uno e o unificado ou seja elementos que compotildeem o unificada

as primeiras unidades do natildeo-unificado ou a henadirdquo (GIRGENTI 2009 113-114)

82

Discursar acerca da inefabilidade impotildee no Pseudo-Dioniacutesio uma superaccedilatildeo da proacutepria

linguagem que se revela agora como uma construccedilatildeo liberta de qualquer fronteira e acima de

qualquer paradoxo onde negaccedilatildeo (ἀπόφασις) e afirmaccedilatildeo (κατσφάσις) comungam de igual

valor e sentido em uma mesma e uacutenica esfera A primazia propriamente apofaacutetica que toma

conta da fala do Pseudo-Dioniacutesio ganha forccedila quando supera toda definiccedilatildeo conceitual e

identifica Deus como nada daquilo que eacute

Uma vez mais indo ainda mais alto mantemos que Ele natildeo eacute alma ou mente ou

concebido pela faculdade da imaginaccedilatildeo conjuntura razatildeo ou entendimento nem eacute

nenhum ato de razatildeo ou compreensatildeo nem pode ser descrito pela razatildeo ou percebido

pelo entendimento jaacute que natildeo eacute nuacutemero ou ordem ou magnificecircncia ou pequenez

ou igualdade ou desigualdade e jaacute que natildeo estaacute inerte nem em movimento ou em

descanso e natildeo possui poder e natildeo eacute poder nem luz e natildeo vive e natildeo eacute vida nem eacute

essecircncia pessoal ou eternidade ou tempo nem pode ser apreendido pelo

entendimento jaacute que natildeo eacute nem conhecimento nem verdade nem eacute reinado ou

sabedoria nem eacute uno nem unidade nem deidade ou bondade natildeo eacute um espiacuterito como

se entende o termo jaacute que natildeo eacute Filho nem Pai nem eacute nenhuma outra coisa tal como

noacutes ou qualquer outro ente do qual se possa ter conhecimento nem pertence a

categoria de natildeo-existecircncia ou de existecircncia nem os entes existentes o conhecem

como realmente eacute nem Ele os conhece como realmente satildeo nem a razatildeo pode o

atingir nomear ou conhecer nem eacute escuridatildeo nem eacute luz ou erro ou verdade nem

nenhuma afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo pode ser aplicada porquanto aplicar afirmaccedilotildees e

negaccedilotildees natildeo se aproximam Dele noacutes natildeo aplicamos nem negaccedilatildeo nem afirmaccedilatildeo

enquanto transcende toda afirmaccedilatildeo por ser perfeita e uacutenica Causa dos seres e

transcende toda negaccedilatildeo pela preeminecircncia de sua livre natureza simples e absoluta

de qualquer limitaccedilatildeo e para aleacutem de tudo (DIONYSIUS THE AREOPAGITE 1920 200-201)

83

Seria justo afirmar que esta densa passagem da Teologia Miacutestica eacute muito mais proacutexima de uma

declaraccedilatildeo de amor do que uma articulaccedilatildeo filosoacutefica (e caberia aiacute perguntar se haacute enfim

alguma diferenccedila entre uma coisa e outra) Pseudo-Dioniacutesio natildeo apenas promove um

movimento de negaccedilatildeo em direccedilatildeo agrave toda afirmaccedilatildeo mas ainda rumo agrave proacutepria negaccedilatildeo Neste

sentido a definiccedilatildeo mais justa conforme a qual se utiliza aqui o termo negatividade seguiria

com precisatildeo os termos do Pseudo-Dioniacutesio entendendo que o caminho negativo estaacute mais

aleacutem de toda afirmaccedilatildeo e mesmo de toda negaccedilatildeo Esta eacute ainda a via para entender o que pode

ser nomeado como meontologia um percurso intelectual que apoiado pela henologia

neoplatocircnica natildeo se fundamenta mais no ente mas antes no natildeo-ente (μή ὄν) ou mesmo no

nada

As consequecircncias da henologia neoplatocircnica de Plotino e Proclo e da meontologia

miacutestica do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita natildeo passaratildeo incoacutelumes pelos seacuteculos que se seguiriam

agrave composiccedilatildeo dos escritos aqui conjurados Contudo algumas recepccedilotildees bastante acuradas e

inspiradas criativas e bem desenvolvidas ocupar-se-iam de resgatar o sentido do pensamento

negativo e desdobrar a profundidade do problema Eacute possiacutevel citar algumas dezenas de filoacutesofos

que se dedicaram ao diaacutelogo com o neoplatonismo e a teologia negativa Aqui gostaria de

encerrar este capiacutetulo direcionando-o para uma interlocuccedilatildeo especial e ao meu ver central para

a difusatildeo da negatividade na filosofia medieval moderna e contemporacircnea Tenho em mente

Joatildeo o Escoto chamado Eriuacutegena

Eriuacutegena ocupou um lugar de destaque nas altercaccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas durante

o chamado Renascimento Caroliacutengio sendo-lhe atribuiacutedas tarefas como a traduccedilatildeo do grego

para o latim das obras do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita bem como explanaccedilotildees em torno agrave

contenda da divina predestinaccedilatildeo e agraves interpretaccedilotildees e exegeses suscitadas pela disputa erguida

pela cultura biacuteblica do periacuteodo33

33 Para especificaccedilotildees em torno a Eriuacutegena e seu tempo confira CONTRENI 1996 e MCNAMARA 1996

84

A presenccedila do neoplatonismo em Eriuacutegena parece se posicionar de maneira estrateacutegica

ao longo dos movimentos por ele realizados em sua magna obra o Periphyseon Natildeo se pode

perder de vista as possiacuteveis definiccedilotildees do neoplatonismo natildeo apenas dentro de suas esferas

relacionais e a partir das tendecircncias de leitura mas ainda por meio da questatildeo fundamental que

problematiza todo conteuacutedo qual seja como o uno se relaciona com o muacuteltiplo ou ainda como

o que eacute primeiro se relaciona com o que eacute posterior Oscar Federico Bauchwitz sustenta que

ldquo() a questatildeo pela antonomaacutesia do neoplatonismo enquanto uma reflexatildeo acerca da relaccedilatildeo

entre o Criador e a criatura entre o Uno e a multiplicidade pode ser enfocada na obra de

Eriuacutegena no que diz respeito a creatio ex nihilo e ao sentido original que eacute determinado ao

termo nihilrdquo (BAUCHWITZ 2001 11) Assumindo esta hipoacutetese como vaacutelida torna-se

imprescindiacutevel compreender o lugar que tal questatildeo ocupa na obra eriugeneana e como ela se

desenvolve

Conforme os apontamentos de Bauchwitz o ldquonadardquo se apresenta pela primeira vez jaacute

no iniacutecio do Periphyseon ao serem articulados os modos da diferenccedila fundamental da divisatildeo

da natureza (φύσις natura) definida como tudo aquilo que eacute e que natildeo eacute (quae sunt et quae non

sunt) sendo dividida em quatro espeacutecies ldquo() primeiro naquilo que cria e natildeo eacute criado segundo

naquilo que eacute criado e tambeacutem cria terceiro naquilo que eacute criado e natildeo cria enquanto o quarto

nem cria nem eacute criadordquo (ERIVGENAE 1999 37 441ordf) O que eacute pode ser percebido apreendido e

conhecido O que natildeo eacute todavia natildeo se pode perceber apreender ou conhecer (cognoscitur non

quid est sed quia est) De acordo com Bauchwitz o termo quid est (ldquoo que eacuterdquo) diz respeito agrave

essecircncia de tudo que permanece incompreensiacutevel e infinito ao passo que quia est (ldquoque eacuterdquo)

indica a existecircncia da essecircncia divina ou seja seus efeitos como algo determinado e que eacute O

incompreensiacutevel da natureza divina Eriuacutegena deixa ver quando escreve ldquoPortanto se eacute por

causa de sua excelecircncia inefaacutevel e incompreensiacutevel infinitude que a Natureza Divina eacute dita natildeo

ser disto se segue que ela eacute nada ()rdquo (IDEM 2005 61 634C)

85

A impossibilidade de compreender a natureza divina eacute o que permite a Eriuacutegena

descortinar seu entendimento acerca da creatio ex nihilo Bauchwitz escreve sobre este ponto

ldquoA questatildeo se origina eacute que se a diferenccedila fundamental abarca a totalidade da natureza o que

se poderia predicar de Deus Isto eacute o que haacute para mais aleacutem do ser e do natildeo ser senatildeo o Nada

desde o qual Deus cria todas as coisasrdquo (BAUCHWITZ OP CIT 12) O problema eacute apresentado por

Eriuacutegena a partir da busca pelo sentido conforme o qual se questiona de que maneira eacute possiacutevel

compreender como todas as coisas que satildeo se originam do nada (ou nos termos do

neoplatonismo pagatildeo a mesma questatildeo de ldquocomo do uno se origina a multiplicidade) Eacute

possiacutevel interpretar esta passagem alegando que Eriuacutegena se refere ao nihilo em perfeita

sintonia com toda doutrina Cristatilde da criaccedilatildeo como de fato faz sentido afirmar Contudo

Eriuacutegena vislumbra o que considera ldquoa verdadeira essecircncia da natureza divinardquo O Criador que

cria todas as coisas que satildeo criadas insere-se naquela parte da divisatildeo da natureza na qual ldquocria

mas natildeo eacute criadordquo enquanto sua ldquoessecircnciardquo reflete aquilo que ldquonatildeo eacute nem criado nem criardquo

Em outros temos indica-se que nada eacute a natureza divina de Deus ou ainda que natildeo-ser

corresponde agrave divindade

Resta ainda resolver o mesmo problema ante ao qual se encontraram Plotino Proclo o

Pseudo-Dioniacutesio entre outros a saber como eacute possiacutevel para Deus desarraigar-se de seu nada

ou desdobrar-se desde si mesmo Bauchwitz oferece uma explicaccedilatildeo quando potildee em relevo o

problema da expressatildeo do paradoxo

() por meio da criatura eacute Deus quem se manifesta e portanto todas as criaturas

podem ser entendidas como certas apariccedilotildees divinas isto eacute teofania Neste sentido a

teofania nomeia o paradoxo da ineffabilis difusio que diz que o infinito devem finito

que o incompreensiacutevel devem compreensiacutevel que o silecircncio clama (BAUCHWITZ 2003ordf

57)

86

Em Eriuacutegena eacute possiacutevel acompanhar o sentido da explicaccedilatildeo de Bauchwitz na passagem que

diz

Tudo o que eacute entendido e sentido nada mais eacute senatildeo apariccedilatildeo do que natildeo eacute aparente

a manifestaccedilatildeo do oculto afirmaccedilatildeo da negaccedilatildeo compreensatildeo do incompreensiacutevel [a

expressatildeo do inexpressiacutevel o acesso ao inacessiacutevel] o intelecccedilatildeo do ininteligiacutevel o

corpo do incorpoacutereo a essecircncia do supraessencial a forma do informado a medida

do incomensuraacutevel o nuacutemero do inumeraacutevel o peso do impensaacutevel a materializaccedilatildeo

do espiritual a visibilidade do invisiacutevel o lugar do natildeo-lugar o tempo do natildeo-tempo

a definiccedilatildeo do infinito a circunscriccedilatildeo do incircunscrito e as outras coisas que satildeo

ambas consideradas e percebidas pelo intelecto sozinho e natildeo podem se restringir

dentro de recessos da memoacuteria e nas quais escapa agrave destreza da mente (ERIVGENAE OP

CIT 59 633BC)

A despeito da possibilidade de sintonia com a doutrina Cristatilde da criaccedilatildeo (especificamente o

sentido moralizante da gecircnese) natildeo haacute forccedila catequeacutetica senatildeo puramente especulativa na

maneira pela qual Eriuacutegena aborda a questatildeo O acesso ao sagrado aparece antes como uma

atitude fundamental na qual se insiste no misteacuterio da nadidade do divino

O resultado do caminho meditativo de Eriuacutegena eacute uma postura na qual o pensamento

natildeo responde apenas agraves demandas imediatas agraves preocupaccedilotildees que sanem os conflitos

existenciais e sociais mas uma intelecccedilatildeo cujo grau de alcance atinge toda mensurabilidade e

incomensurabilidade da estruturaccedilatildeo do real como internalizaccedilatildeo do segredo oculto e dos

misteacuterios da natureza Parece ser neste sentido que Bauchwitz sugere uma eacutetica do silecircncio

onde ldquo() natildeo basta enunciar o princiacutepio que deve reger as accedilotildees do ser humano () O silecircncio

como destino a ser alcanccedilado soacute tem sentido na medida em que nomeia a incessante e natural

disposiccedilatildeo do proacuteprio homem em dirigir-se a elerdquo (BAUCHWTZ OP CIT 12) Antes de resolver

qualquer problema assume-se o respeito para com a profundeza do incocircndito

87

Durante a introduccedilatildeo desta tese referi-me a um outro escrito de Bauchwitz Nihilismo

e Neoplatonismo assumindo que aquele artigo havia sido responsaacutevel por traccedilar uma direccedilatildeo

ou mesmo proporcionar um estiacutemulo ao desenvolvimento deste trabalho Gostaria de retornar

agravequele artigo uma vez mais para encerrar esta seccedilatildeo com definiccedilotildees mais precisas a respeito da

henologia e da meontologia como ultrapassagem dos limites da metafiacutesica

O capiacutetulo anterior evidenciou que com a ontologia ou a substantivaccedilatildeo do pensamento

ocidental por meio da confusatildeo entre ser e ente perdeu-se natildeo a capacidade intelectual do ser

humano mas o atino para o seu fundamento Em razatildeo da urgecircncia de respostas abandonou-se

tudo aquilo que era por princiacutepio incoacutegnito inefaacutevel inexprimiacutevel Como havia dito na

introduccedilatildeo com o apoio do trabalho de Bauchwitz a consumaccedilatildeo deste movimento eacute anunciado

por meio de um diagnoacutestico do niilismo Neste sentido Bauchwitz escreve

A relaccedilatildeo entre Nihilismo e Neoplatonismo que aponta para uma eacutetica aleacutem dos

limites da temporalidade e de crenccedilas religiosas ainda estaacute para ser esclarecida Uma

tal eacutetica somente poderaacute ser realmente quando cumpridas umas exigecircncias que neste

trabalho foram apenas assinaladas a superaccedilatildeo da vontade e em consequecircncia da

proacutepria liberdade soacute pode ser interpretada em uma perspectiva que jaacute natildeo se encontra

nos limites da ontologia tradicional ou no dizer de Heidegger no acircmbito da metafiacutesica

O sem-propoacutesito de uma tal eacutetica que abnega qualquer visatildeo utilitarista e

simplesmente dada do mundo exige pensar a partir de novas fundamentaccedilotildees e

valores o retorno do divino eacute uma metaacutefora que atende a tais exigecircncias na medida

em que ao tempo que nos abre uma concepccedilatildeo totalmente outra daquele que ancora

os principais valores vigentes questiona pelos conceitos fundamentais que

homologaram esses valores como superiores porque quantificaacuteveis A ausecircncia de

referecircncias fixadas pelos padrotildees contemporacircneos que mensuram o bem-estar de cada

indiviacuteduo e o resgate de uma vivecircncia que se justifica nela mesma e natildeo pelas suas

finalidades devem servir de origem para superar a ldquonoite do mundordquo (BAUCHWITZ OP

CIT 179-180)

88

Em primeiro lugar eacute importante destacar que a falta de esclarecimento da ldquoeacutetica aleacutem dos

limitesrdquo ou como prefiro colocar aqui ldquopara aleacutem das fronteirasrdquo natildeo soacute natildeo estaacute clara como

assim deve permanecer caso queira responder agrave exigecircncia de absorver a negatividade que

tambeacutem faz parte da humanidade do humano mas que foi todavia afasta de sua visatildeo da

realidade Por este motivo utiliza-se aqui o termo conflito das fronteiras para indicar natildeo uma

resoluccedilatildeo de problemas mas a assunccedilatildeo de um confronto Sendo assim a ultrapassagem de

limites deve se dar apenas no que tange agrave possibilidade de abrir o pensamento para aleacutem da

metafiacutesica tradicional Explorar o que haacute de propriamente fraco o que natildeo se sustenta o que

natildeo pode ser

A temaacutetica poderia ser encerrada aqui Seria possiacutevel retornar ao neoplatonismo com

ainda mais cautela e extrair de laacute mesmo os elementos para subverter toda sorte de ordenamento

que lanccedila o ser humano na ldquonoite do mundordquo Contudo meu interesse aqui eacute explorar mais um

momento da histoacuteria da filosofia e se possiacutevel encontrar um ponto de apoio para reunir a

tradiccedilatildeo metafiacutesica e o neoplatonismo em um uacutenico problema Minhas hipoacutetese conforme seraacute

desenvolvida no terceiro e uacuteltimo capiacutetulo eacute encontrar uma orientaccedilatildeo Orientaccedilatildeo extrema

Ali no Extremo Oriente

89

3 O EXTREMO ORIENTE E O CONFLITO DAS FRONTEIRAS A FILOSOFIA COMPARADA INTERCULTURAL

COMO CHAVE DE LEITURA PARA ALGUNS PROBLEMAS DO PENSAMENTO CONTEMPORAcircNEO

O ambiente acadecircmico britacircnico do final da deacutecada de 1970 foi palco de uma fervorosa disputa

acerca das interpretaccedilotildees e definiccedilotildees culturais entre Ocidente e Oriente A publicaccedilatildeo do livro

Orientalism (1978) de Edward Wadie Said (ع إدوارد Idwārd Wadīʿ Saʿīd) fomentou ديعس ودي

uma inesgotaacutevel discussatildeo acerca de qualquer suposta correspondecircncia deste ou daquele

elemento nos princiacutepios da tradiccedilatildeo oriental sustentando em termos bem simples que o

Oriente era antes uma invenccedilatildeo convencional Said sofreu diversas criacuteticas algumas mais

significativas outras menos Uma de suas consideraccedilotildees mais discutidas afirma que ldquo() o

Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente) como sua imagem ideacuteia personalidade e

experiecircncia de contraste Contudo nada desse Oriente eacute meramente imaginativordquo (SAID 1990

13-14) acrescentando ainda de forma incisiva que ldquoO Oriente expressa e representa esse

papel cultural e ateacute mesmo ideologicamente como um modo de discurso com o apoio de

instituiccedilotildees vocabulaacuterio erudiccedilatildeo imagiacutestica doutrina e ateacute burocracias e estilos coloniaisrdquo

(IDEM IBIDEM 14) Said defendeu que o Oriente tal qual eacute conhecido pelo mundo ocidental natildeo

corresponde agrave proveniecircncia originaacuteria de suas tradiccedilotildees mas eacute antes uma estrateacutegia (poliacutetica e

econocircmica) de manutenccedilatildeo geograacutefica Toda designaccedilatildeo acadecircmica de qualquer orientalismo

ateacute entatildeo desenvolvido estaria entatildeo equivocada apoiada em pressupostos que natildeo condizem

com a tradiccedilatildeo oriental Sem embargo o mesmo poderia ser dito a respeito da introspecccedilatildeo do

mundo grego pelo mundo romano-latino e no decorrer da histoacuteria da humanidade eacute possiacutevel

ainda identificar outras centenas de casos semelhantes ateacute o ponto no qual se afirma a

globalizaccedilatildeo por meio da modernizaccedilatildeo de todos os recantos do planeta dentro do iacutempeto de

igualar todas as culturas em um niacutevel comum

90

Entretanto apesar de ser possiacutevel interpretar as assertivas de Said de forma mais

ponderada aproveitando com isto certo direcionamento fatalista embora natildeo necessariamente

inveriacutedico de sua investigaccedilatildeo algumas gafes de sua compreensatildeo da histoacuteria se revelam

bastante perturbadoras Um dos principais criacuteticos de Said Robert Irwin publicou uma obra

onde ampla parte eacute dedicada agrave refutaccedilatildeo direta dos principais argumentos de Said Em For the

Lust of Knowning (2006) Irwin destaca algumas inverdades de Said e contrargumenta de

maneira precisa certas falaacutecias Contudo Irwin eacute tambeacutem bastante emotivo em sua abordagem

ele escreve ldquoPara pocircr minhas cartas na mesa jaacute de iniacutecio a meu ver aquele livro [Orientalism]

eacute uma obra de uma impostura maleacutevola na qual eacute difiacutecil distinguir erros verdadeiros de

falsidades propositadasrdquo (IRWIN 2006 11) Irwin ataca principalmente os erros fatuais de Said

apontando para lacunas na fundamentaccedilatildeo da obra Orientalism34 destacando vaacuterios enganos e

afirmando em siacutentese ldquoPois se eacute possiacutevel apresentar uma imagem falsa do orientalismo do

cristianismo e do imperialismo britacircnico natildeo seria tatildeo obviamente errado apresentar de modo

semelhante uma falsa imagem do islatilde da histoacuteria aacuterabe ou da difiacutecil situaccedilatildeo dos palestinosrdquo

(IDEM IBIDEM 330-331) fazendo referecircncia agraves posiccedilotildees por Said defendidas Em suma Irwin daacute

a entender nas entrelinhas que a politizaccedilatildeo de um criacutetico literaacuterio no caso Said tornou a obra

Orientalism um intento mal construiacutedo como ferramenta para sustentaccedilatildeo de posiccedilotildees poliacuteticas

condenando todo seacuterio estudo que envolve o orientalismo Ateacute entatildeo muitos outros

pesquisadores e eruditos atacaram Said bem como tantos outros o admiravam e o defenderam

Todavia com a apresentaccedilatildeo desta disputa quero aqui destacar um fator iacutempar que natildeo

necessariamente se prende agrave contenda mas que encobre o toacutepico de modo geral

34 Irwin destaca alguns erros ldquoOrientalismo daacute a impressatildeo de um livro escrito agraves pressas Eacute repetitivo e conteacutem

muitos erros factuais Said menciona lsquoPedro o Veneraacutevel e outros orientalistas cluniacensesrsquo Que outros

orientalistas cluniacenses Seria interessante conhecer seus nomes (Mas naturalmente a ideia de que houvesse toda

uma escola de orientalistas cluniacenses eacute absurda Pedro o Veneraacutevel trabalhou sozinho) Como Bernard Lewis

ressaltou Said faz com que exeacutercitos muccedilulmanos conquistem a Turquia antes de conquistarem o norte da Aacutefrica

Isso realmente sugere uma ignoracircncia espantosa da histoacuteria do Oriente Meacutedio da mesma forma que sua crenccedila

quanto a terem a Gratilde-Bretanha e a Franccedila dominado a regiatildeo oriental do Mediterracircneo a partir do final do seacuteculo

XVIIrdquo (IRWIN 2006 329)

91

Com a discussatildeo entre os orientalistas e seus inimigos o importante eacute destacar natildeo

apenas as dificuldades que envolvem todo e qualquer estudo comparado entre Ocidente e

Oriente mas o fato de que eacute da natureza do proacuteprio estudo comparado que haja divergecircncias

A divergecircncia e o erro satildeo de fato disposiccedilotildees naturais dos estudos comparados sem os quais

natildeo seria possiacutevel sequer dar iniacutecio agrave discussatildeo ou desenvolver qualquer linha de raciociacutenio

preparatoacuteria Soacute eacute possiacutevel falar em estudos comparados porque houve de antematildeo a percepccedilatildeo

de uma divergecircncia Mais ainda a necessidade do momento e os acasos eventuais direcionam

os estudiosos para um ou para outro lado Assim como Said saiu em defesa da Palestina durante

um periacuteodo no qual os conflitos haviam se asseverado em decorrecircncia da expulsatildeo das forccedilas

de paz das Naccedilotildees Unidas em 1967 tambeacutem outros pensadores em outros momentos da histoacuteria

foram motivados por acontecimentos histoacutericos sejam eles de guerra ou de paz poliacuteticos

econocircmicos ou religiosos Como por exemplo as diversas manifestaccedilotildees de revolta e

indignaccedilatildeo de Theodor Wiesengrund Adorno e Gershom Scholem apoacutes Auschwitz ou as

anaacutelises polecircmicas de Slavoj Žižek das revoltas do subuacuterbio de Londres e da Primavera Aacuterabe

Contudo algumas deacutecadas antes da publicaccedilatildeo da obra de Said precisamente durante a

deacutecada de 1950 o Departamento de Filosofia da University of Hawairsquoi at Mānoa havia

alavancado uma seacuterie de trabalhos a respeito dos fundamentos e procedimentos dos estudos

comparados Eacute preciso considerar que proacuteprio departamento jaacute havia sido estruturado entre

1930 e 1940 com o objetivo de suprir a lacuna que havia a respeito dos estudos comparados na

filosofia A primeira East-West Philosophers Conferece em 1939 ditou o tom pelo qual se

tornaria possiacutevel falar abertamente alguns anos mais tarde de uma filosofia comparada

intercultural Ali natildeo escapou a ideia de que foi justamente por meio do ldquoerrordquo que se

estabelecia o diaacutelogo entre fronteiras Em outras palavras este diaacutelogo nascia jaacute sempre de um

conflito das fronteiras A hipoacutetese de consenso eacute explorada neste sentido apenas mediante a

assunccedilatildeo de certa ignoracircncia parcial e sopesando ainda as variaccedilotildees de interpretaccedilatildeo

92

O rigor filosoacutefico que direcionou as primeiras tentativas da filosofia comparada em

confrontar as tradiccedilotildees sapienciais ocidentais e orientais permitiu a instauraccedilatildeo de uma postura

cuidadosa e quase mesmo analiacutetica do problema35 Com isto foi possiacutevel comeccedilar a pensar de

que forma elementos do pensamento oriental e da filosofia ocidental poderiam convergir ou

divergir e quais as contribuiccedilotildees que este tipo de comparaccedilatildeo pode trazer aos problemas da

contemporaneidade Todavia como anos mais tarde discutiriam Said Irwin e outros natildeo se

pode desprezar o fato de que nada escapa aos entrelaccedilamentos ldquoirrastreaacuteveisrdquo das relaccedilotildees entre

Ocidente e Oriente Neste sentido embora qualquer comprovaccedilatildeo cientiacutefica empaque frente aos

desafios historiograacuteficos natildeo eacute de todo ingecircnuo especular as influecircncias que por exemplo

Platatildeo teria sofrido da sabedoria primitiva de hinduiacutesta e budistas como sustentam diversos

especialistas36 Ou ainda da indagaccedilatildeo acerca de ateacute que ponto o Aristoacuteteles que conhecemos

natildeo foi orientalizado por Al-Farabi (صر ون ن محمس اب ی محمس ب اراب Abū Naṣr Muḥammad ibn ف

Muḥammad Fārābī) Avicena (ن نا اب ع د ou و لی اب نا ع ع د Pūr Sinɑʼ ou ainda ور نا پ ع د Pur-

e Sina em aacuterabe و لي أب عن ع س ح ن ال بس ب الله ع ن نا ب ع د Abū ʿAlī al-Ḥusayn ibn ʿAbd Allāh

ibn Al-Hasan ibn Ali ibn Sīnā) entre outros filoacutesofos da tradiccedilatildeo aacuterabe Sem contar os

sincretismos que permearam a filosofia do helenismo tardio em Alexandria onde pagatildeos

judeus cristatildeo e mulccedilumanos travavam interminaacuteveis disputas teoacutericas (e natildeo apenas teoacutericas)

a respeitos dos fundamento filosoacuteficos e teoloacutegicos religiosidade momento no qual fica difiacutecil

empreender uma anaacutelise pormenorizada de quem influenciou quem quando o quanto e como37

35 Charles A Moore ponderou no trabalho Some Problems of Comparative Philosophy (1951) a dificuldade em

posicionar as doutrinas orientais em um grupo homogecircneo como podia ser feito com a ocidentais apontando ainda

para o cuidado em evitar as caracterizaccedilotildees e comparaccedilotildees a partir de tendecircncias mais gerais (cf MOORE 1951 67)

Kwee Swan Liat escreveu ainda em Methods of Comparative Philosophy (1951) que ao menos sete esferas de

aplicaccedilatildeo metodoloacutegica devem ser previamente levadas em consideraccedilatildeo (aproximaccedilatildeo filoloacutegica histoacuterica

comparativa formal-valorativa psicoloacutegica fenomenoloacutegica e socioloacutegica-antropoloacutegica) avaliando uma por

uma e propondo por conseguinte uma oitava aproximaccedilatildeo total-integrativa (cf KWEE SWAN LIAT 1951 10ss) 36 Estas hipoacuteteses satildeo levantadas por Graham Parkes na introduccedilatildeo de Heidegger and Asian Thought (1987) (cf

PARKES 1987 1) 37 Este ponto especiacutefico acerca das contendas do periacuteodo heleniacutestico foram sobremaneira bem expostas por Jean

Pepiacuten no escrito intitulado Heacutelleacutenisme et christianisme no volume de Franccedilois Chacirctelet La Philosophie v 1 De

Platon agrave Saint Thomas Paris Marabout 1995

93

Falar efetivamente de uma filosofia comparada intercultural todavia pressupotildee outra

perspectiva aquela na qual ambas as tradiccedilotildees estatildeo culturalmente niacutetidas e bem delineadas

(ainda que por meio de caracterizaccedilotildees vulgares pouco precisas ou mesmo caricatas) e satildeo

entendidas como exponencialmente distintas Entretanto as mesmas dificuldades permanecem

Com isto quero dizer fica difiacutecil afirmar ateacute que ponto um lado compreendeu o outro de modo

suficiente e satisfatoacuterio sendo possiacutevel indagar ainda se as apropriaccedilotildees natildeo se deram mediante

interpretaccedilotildees equivocadas ou leituras transviadas sobretudo quando natildeo haacute domiacutenio pleno dos

idiomas envolvidos

Estas asseveraccedilotildees tomaram conta de muitos pensadores no decorrer da histoacuteria da

humanidade Ateacute onde eacute possiacutevel investigar dois momentos marcam o iniacutecio da relaccedilatildeo

expliacutecita (e natildeo meramente impliacutecita como no caso dos primeiros filoacutesofos gregos de Platatildeo e

de Aristoacuteteles) entre Ocidente e Oriente na filosofia a apropriaccedilatildeo latina durante a Idade Meacutedia

dos escritos aacuterabes do Oriente Meacutedio38 e a interlocuccedilatildeo e introspecccedilatildeo da tradiccedilatildeo do Extremo

Oriente (sobretudo chinesa em um primeiro momento) na filosofia alematilde dos seacuteculos dezessete

e dezoito Aqui interessa especialmente o diaacutelogo com o Extremo Oriente e como ele natildeo se

encerrou no mero intercacircmbio de tradiccedilotildees fomentando um movimento de reversatildeo no qual os

orientais por sua vez tambeacutem abriram interlocuccedilatildeo direta com o pensamento ocidental

introspectando a filosofia e desenvolvendo ao seu modo formas de reflexatildeo nos mesmos

moldes da estrutura categoacuterica ocidental mas partindo dos princiacutepios orientais ainda que em

certa medida (como se veraacute) tais princiacutepios por vezes comunguem em muitos aspectos de

elementos e direcionamentos comuns aos ocidentais e por vezes natildeo Para isto eacute preciso

investigar brevemente a gecircnese desta relaccedilatildeo e como ela tem iniacutecio

38 Sobre este toacutepico que natildeo seraacute abordado aqui confira W Raven e A Akasoy (eds) Islamic Thought in the

Middle Ages Studies in Text Transmissions and Translations in Honour of Hand Daiber Leiden Brill 2008 D

Calma Eacutetudes sur le premier siegravecle de lrsquoaverroisme latin approches et textes ineacutedits Turnhout Brepols 2010

entre outros

94

A despeito da culminaccedilatildeo das luzes no periacuteodo moderno diversos temas obscuros

perpassaram o seacuteculo dezessete sobretudo aqueles motivados pelas missotildees catequeacuteticas

jesuiacutetas na China que inevitavelmente influenciaram o ambiente intelectual da eacutepoca 39

Independente dos transtornos causados pelos europeus em suas incursotildees tambeacutem na Europa

os problemas apareceram Quando os documentos acerca das tradiccedilotildees chinesas de pensamento

desembarcaram no continente europeu despertaram imediato interesse em diversos estudiosos

Contudo tampouco foi ameno o iniacutecio deste diaacutelogo O caso mais draacutestico se deu em

1723 quando Christian Wolff fugiu de Halle an der Saale em Sachsen-Anhalt na Alemanha

em decorrecircncia de uma seacuterie de perseguiccedilotildees despertadas por um discurso por ele pronunciado

dois anos antes sob o tiacutetulo Oratio de Sinarum philosophia practica (1721) O motivo era

polecircmico e suscetiacutevel de distintas interpretaccedilotildees Wolff afirmara que ldquoA mesma autoridade que

possui os ditos e feitos de Cristo possui tambeacutem Confuacutecio para os chineses Moiseacutes para os

judeus e Mohammed para os turcosrdquo (WOLFF 1985 117) Embora Wolff tenha impressionado

grande parte de seus ouvintes com o teor apaixonado de sua preleccedilatildeo tal comparaccedilatildeo redundou

em acirradas criacuteticas por diversos professores e eruditos que acompanhavam a fala e a

interpretaram como uma espeacutecie de ateiacutesmo mais ou menos mitigado Estas acusaccedilotildees todavia

natildeo eram fruto apenas da sinofilia de Wolff mas advinham jaacute de seu confronto com colegas

pietistas da Universidade de Halle devido agrave inclinaccedilatildeo bastante evidente para um pensamento

racionalista e secular40

39 Sobre as missotildees jesuiacutetas confira Wenzhao Li Die christliche China-Mission im 17 Jahrhundert Stuttgart

Franz Steiner 2000 Acerca do caso especiacutefico do diaacutelogo com a filosofia alematilde confira ainda Antonio Florentino

Neto Von der Interpretation zum Gespraumlch Das chinesische Denken in deutschen Philosophie Saarbruumlcken

SVH 2013 Florentino Neto ainda comenta que as missotildees tiveram iniacutecio ainda no seacuteculo dezesseis tendo

comeccedilado no Japatildeo e soacute entatildeo atingido a China no seacuteculo dezessete (cf FLORENTINO NETO 2009 41) 40 Os interesses de Wolff pela China bem como pelo racionalismo paulatinamente aparecem em seus escritos

desde a influecircncia direta de Leibniz ateacute a leitura dos tratados dos jesuiacutetas a respeito da China Menccedilotildees ao

pensamento chinecircs e o peso da admiraccedilatildeo que nutria por Reneacute Descartes satildeo evidentes em seus trabalhos a partir

de 1721 (cf LACH 1953) A despeito dos interesses de Wolff pelo pensamento chinecircs sobretudo acerca dos temas

morais constata-se que ele considerava o cristianismo moralmente superior e mais bem desenvolvido (cf KANAMORI

1997 302-303)

95

A hipoacutetese de que a natureza comum do ser humano possibilita o discurso intercultural

nasce sobretudo da comunhatildeo entre uma radicalizaccedilatildeo quase miacutestica do racionalismo moderno

e o impacto causado por escritos de ordem semelhante embora com princiacutepios e fundamentos

distintos Aleacutem de Wolff tambeacutem Nicolas Malebranche e Gottfried Leibniz se dedicaram agraves

leituras do material trazido pelos jesuiacutetas no mesmo periacuteodo Malebranche compocircs em 1707 o

escrito Entretien drsquoun Philosophe Chreacutetien et drsquoun Philosophe chinois sur lrsquoexistence et la

nature de Dieu por meio do qual mais tarde aproveitou para se livrar das acusaccedilotildees de ser um

ldquospinozistardquo Malebranche ainda encarou uma acirrada disputa acerca da condenaccedilatildeo do Papa

Clemente XI agraves missotildees jesuiacutetas sustentando posiccedilotildees bastante polecircmicas em seu diaacutelogo

Malebranche levanta em sua obra a questatildeo fundamental acerca da entificaccedilatildeo do deus

cristatildeo instigando a pergunta acerca do infinito que eacute respondida pelo filoacutesofo chinecircs da

seguinte maneira ldquoEstou convencido de que quando penso sobre o infinito estou muito longe

de pensar qualquer coisa Mas entatildeo eu penso em um tal ser individual e determinado Agora

o Deus que vocecircs adoram natildeo eacute assim um ser individual e particularrdquo (MALEBRANCHE 1708

17) As preocupaccedilotildees de Malebranche caminham no sentido de articular ser e ente no problema

da ontologia do cristianismo Quando Leibniz escreve seu Discours sur la theacuteologie naturelle

des Chinois (1716) ele o faz justamente tendo em vista repetidos pedidos de esclarecer pontos

levantados por Malebranche apoacutes o escrito ter sido enviado a ele por Nicholas Reacutemond41

Eacute possiacutevel considerar que Leibniz foi o que se devotou com mais afinco agrave tradiccedilatildeo

chinesa Ele teria se envolvido principalmente com o direcionamento praacutetico da sabedoria

chinesa profundamente norteada pelo propoacutesito de melhorar a si mesmo e agrave sociedade por meio

da noccedilatildeo confucionista de cultivo de si (修身 xiushen) no sentido propriamente moral42

41 Leibniz trocou extensa correspondecircncia com os missionaacuterios jesuiacutetas a respeito da filosofia chinesa aleacutem de

apresentar comentaacuterios pontuais em sua Novissima Sinica (1697) Contudo eacute no Discours que suas ponderaccedilotildees

mais seacuterias e cuidadosas satildeo delineadas e manifestas (cf KANG 2009 6-8) 42 Mais especificaccedilotildees sobre este tema podem ser encontrados em Karyn T Lay Introduccedilatildeo agrave filosofia chinesa

Trad Saulo Alencastre Satildeo Paulo Madras 2009

96

Leibniz escreve em seu discurso ldquoMas quem poderia pensar que houvesse na terra um

povo que superasse os nossos aspectos da vida cultural Se formos iguais nos modos de

produccedilatildeo somo superiores nas ciecircncias teoacutericas mas inferiores na filosofia praacuteticardquo (LEIBNIZ

1979 11) concluindo que ldquo() somos inferiores na aacuterea da eacutetica na poliacutetica e na vida dos

haacutebitos cotidianosrdquo (IDEM IBIDEM) A interpretaccedilatildeo de Leibniz exalta a capacidade dos chineses

em se organizarem e valorarem as tensotildees promovidas pelo campo social com base no cultivo

de si e ainda identificando o ldquosirdquo ao povo em geral Importante eacute ressaltar natildeo apenas desta

breve sentenccedila ilustrativa mas a partir de uma visatildeo mais ampla de suas reflexotildees o profundo

interesse em preencher lacunas a respeito da proveniecircncia intelectual de certos problemas

filosoacuteficos

Anos depois tambeacutem Georg W F Hegel Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche

nutririam interesses pelo Oriente43 Contudo a resposta propriamente oriental a respeito do

intercacircmbio filosoacutefico se daria apenas na virada do seacuteculo dezenove para o seacuteculo vinte Este eacute

o momento no qual a filosofia comparada intercultural comeccedila a ganhar corpo precisamente

com a abertura poliacutetica e intelectual do Japatildeo e o desenvolvimento da chamada Escola de

Filosofia de Kyōto44 Embora natildeo haja tempo nem espaccedilo para abordar de maneira mais

cuidadosa os enlaces teoacutericos e praacuteticos da Escola de Kyōto escrutinando as estruturas de

pensamento de cada um de seus primeiros membros (e ainda de seus membros tardios) gostaria

aqui de destacar alguns aspectos fundamentais direcionados por duas questotildees a primeira

sustentando o porquecirc a filosofia tem iniacutecio propriamente acadecircmico no Extremo Oriente e

precisamente no Japatildeo e a segunda indagando como (ou de que modo) isto acontece Uma

hipoacutetese necessariamente leva agrave outra e isto pode ser facilmente observado

43 Um panorama mais especiacutefico das aproximaccedilotildees pode ser visto em Florentino Neto 2009 44 Em minha dissertaccedilatildeo de mestrado jaacute havia explanado os movimentos histoacutericos que levaram agrave abertura do Japatildeo

e ao surgimento da filosofia japonesa moderna ou contemporacircnea Uma bibliografia mais completa acerca do tema

pode ser extraiacuteda das obras de referecircncia William Beasley The Meiji Restoration (Stanford Stanford UP 1972) e

The Rise of Modern Japan (New York St Matinrsquos Press 1995)

97

Em primeira matildeo sustento que os motivos que proporcionaram o surgimento de uma

ldquoescola filosoacuteficardquo no Japatildeo modernizado estatildeo intimamente ligadas com sua introspecccedilatildeo da

tradiccedilatildeo oriental precedente Em palavras mais simples a maneira pela qual os japoneses

compreenderam e sintetizaram as principais linhas de pensamento orientais (hinduiacutesmo

budismo confucionismo e daoiacutesmo) culminando no chamado budismo zen foi sem embargo

a chave para absorver a filosofia ocidental Em segunda matildeo sustento ainda que a filosofia

japonesa nasce cresce e se estabelece mediante duas perspectivas (justamente os ldquoparadigmasrdquo

anteriormente abordados na tese) metafiacutesica e negatividade em decorrecircncia do florescimento

do zen no Japatildeo Por fim argumento que justamente pelo entrelaccedilamento de metafiacutesica

negatividade e o pensamento do Extremo Oriente que nasce a uacutenica filosofia possiacutevel para o

momento histoacuterico pelo qual passava o Japatildeo e com isto abre-se uma pertinente chave de

leitura para o momento que agora mesmo atravessa a filosofia contemporacircnea

Portanto inicialmente eacute essencial destacar a singularidade do budismo zen em relaccedilatildeo

agraves tradiccedilotildees precedentes Existem muacuteltiplas maneiras pelas quais eacute possiacutevel empreender esta

tarefa Acredito ser plausiacutevel direcionar este toacutepico mediante um problema especiacutefico qual seja

da fundamentaccedilatildeo uacuteltima da realidade a partir da meditaccedilatildeo a respeito da questatildeo da vacuidade

entendida como śūnyatā (शनयता)

A ideia de śūnyatā deriva do budismo indiano primitivo Relatos de reflexotildees em torno

ao problema do fundamento da realidade aparecem (como jaacute havia exposto na introduccedilatildeo desta

tese) desde os cacircnones Pāḷi e satildeo expressos de maneira mais clara e niacutetida no budismo mahāyāna

principalmente no Sūtra do Coraccedilatildeo (Prajntildeāpāramitā Hṛdaya परझञापारनमताहरदय) passando pela escola

mādhyamaka de budismo indiano e ainda nos Versos Fundamentais sobre o Caminho do Meio

(Mūlamadhyamaka-kārikā मलमधयमककाररका) de Nāgārjuna (िागारि) onde foi apresentada de maneira

mais profunda e sistemaacutetica

98

Algumas interpretaccedilotildees do escrito de Nāgārjuna destacam o śūnyatā como constituiccedilatildeo

da totalidade da realidade enfatizando que isto significa uma muacutetua dependecircncia (pratītya-

samutpāda परतीतयसमतपाद) de todas as coisas de todas aquelas que possuiriam existecircncia individual

ou substancial e ateacute da proacutepria ideia de nada o que significa propriamente uma anulaccedilatildeo de

qualquer Ente Supremo ou mesmo qualquer verdade absoluta45

Quando os ensinamentos do budismo indiano chegam agrave China e no Japatildeo alguns

princiacutepios fundamentais satildeo radicalizados por ambas as naccedilotildees Existem vaacuterias hipoacuteteses

conforme as quais eacute possiacutevel indagar os motivos desta radicalizaccedilatildeo Alguns consideram que a

doutrina radical do budismo se deve ao gecircnio do monge Boddidharma embora outros

argumentem que o motivo foi o encontro com o daoiacutesmo e o neoconfucionismo A questatildeo pode

permanecer suspensa sem que isto afete a compreensatildeo das bases e dos caminhos do budismo

zen Ao que concerne propriamente agrave introspecccedilatildeo deste conceito fundamental na filosofia

japonesa contemporacircnea (sem embargo o ponto ao qual quero chegar) existem tambeacutem

inuacutemeras controveacutersias embora haja ainda certos pontos solidamente estabelecidos e

mutuamente consentidos que se pode explorar com o intuito de apresentar o problema

O expoente da Escola de Kyōto que pela primeira vez explorou de maneira sistemaacutetica

a questatildeo e a colocou via uma formulaccedilatildeo filosoacutefica foi Kitarō Nishida (西田 幾多郎) Sua

biografia eacute repleta de elementos que o fariam parecer ou bem um rebelde visionaacuterio ou bem

um precoce e intempestivo intelectual permeado por desacordos com o sistema Sem embargo

muitos pesquisadores descreveram com minuacutecia os percalccedilos de sua biografia Por isto natildeo eacute

de todo liacutecito perder muito tempo aqui descrevendo seu percurso pessoal Gostaria apenas de

atentar para alguns pontos sobremaneira importantes no que tange agrave formaccedilatildeo intelectual de

Nishida

45 Este ponto eacute melhor analisado por Michael Barnhart que considera que de acordo com Nāgārjuna ldquo() natildeo se

pode sustentar nenhuma feacute na realidade ou princiacutepio transcendente nem nenhuma razatildeo humana pode pretender

independecircncia de nenhum tipo ()rdquo (BARNHART 1994 649)

99

Em primeiro lugar Nishida viveu em meio agrave restauraccedilatildeo Meiji (1868-1912) um periacuteodo

que divide a histoacuteria do Japatildeo entre preacute-moderna e moderna no qual a sociedade feudal entra

em decliacutenio e a naccedilatildeo eacute ocidentalizada pela forccedila maior da pressatildeo do Departamento de Estado

Norte-Americano A evidecircncia de que o ensino japonecircs estava defasado frente aos desafios do

novo mundo levou seus governantes a implementarem um sistema educacional semelhante ao

ocidental sendo neste periacuteodo fundadas as primeiras universidades japonesas Nishida

frequentou tais universidades embora tivesse seu proacuteprio percurso intelectual independente

tendo a oportunidade de estudar com Raphael von Koumlber professor russo-alematildeo convidado

para ministrar aulas de filosofia no Japatildeo Com Koumlber Nishida estudou a histoacuteria do

cristianismo (com ecircnfase nas influecircncias do paganismo de Plotino) aleacutem da filosofia criacutetica de

Immanuel Kant e da esteacutetica claacutessica Eacute preciso ponderar ainda que Nishida lia com fluecircncia o

francecircs o alematildeo e o inglecircs tendo acesso integral agraves principais obras da filosofia ocidental Por

outro lado o mesmo estudante dedicado era ainda um pensador radical que encontrou na

tradiccedilatildeo do zen budismo um rumo para suas inquietaccedilotildees

Quando Nishida se aproxima do zen budismo e comeccedila a praticar mediaccedilatildeo o impacto

da destruiccedilatildeo dos meacutetodos convencionais de ensino o afeta largamente ponderando sobretudo

que ele jaacute havia abandonado a escola primaacuteria por desentendimentos com o regime educacional

Um artigo de Lothar Knauth intitulado Life is Tragic The Diary of Nishida Kitaro (1965)

destaca uma passagem do diaacuterio de Nishida onde eacute possiacutevel observar sua postura conforme suas

proacutepria palavras

Faccedila sua proacutepria mente e depois disto natildeo dependa dos outros

Natildeo acredite indiscriminadamente nas palavras das pessoas

Natildeo fale de assuntos que ainda natildeo foram amadurecidos

Natildeo desperdice tempo precioso com fofocas ociosas

A lei da mateacuteria de leitura ler pensar escrever

100

Se vocecirc ainda natildeo terminou de pensar sobre um assunto

natildeo mude para outro

Se vocecirc natildeo terminou de ler um livro ateacute o fim

natildeo pegue outro

Non multa sed multum

Diaacuterio Ano Novo 1897 (NISHIDA apud KNAUTH 1965 337)

O trecho do diaacuterio aponta para um jovem estudioso preocupado com o rigor a tensatildeo

proveniente do impacto surtido pelas leituras Knauth expotildee consecutivamente um outro trecho

do diaacuterio este datado de 1 de julho de 1945 jaacute no final da vida de Nishida que diz

simplesmente ldquoEscurecendo nublado vinte grausrdquo (IDEM IBIDEM) A intenccedilatildeo de Knauth com

isto eacute mostrar a profunda introspecccedilatildeo redundante de um amadurecimento especulativo

proveniente de anos de meditaccedilatildeo Contudo ao que interessa ao propoacutesito do toacutepico vale

salientar que mesmo em um conturbado espiacuterito jovem havia jaacute sempre a necessidade de forccedilar

uma ldquoaquietamentordquo da mente uma busca por um lugar silencioso no qual prevalece a maacutexima

non multa sed multum natildeo muito mas bastante

Entre 1891 e 1897 (a ano da primeira citaccedilatildeo) Nishida praticou incessantemente a

meditaccedilatildeo zen havendo tambeacutem contribuiacutedo para uma revista do secto do Budismo da Terra

Pura Sua transformaccedilatildeo efetiva se daria em 1903 onde uma draacutestica revoluccedilatildeo de seu

entendimento abriria caminho para dar iniacutecio ao seu pensamento efetivo

O homens natildeo podem pensar em morrer natildeo podem ter grandes pensamentos ambos

Kawai e Gordon jaacute disseram isto Tentei pensar em mim mesmo morto aos trinta e um

de dezembro de meu trigeacutesimo quinto ano mas entretanto por mais que tentasse natildeo

podia pensar sobre isto seriamente Natildeo importa o quanto eu pense na morte eu natildeo

consigo me fazer esquecer o mundo (ID IBID 341)

101

Para Knauth este trecho evidencia uma iluminaccedilatildeo por meio da ideia de morte miacutestica e

renascimento O resultado imediato da iluminaccedilatildeo ao contraacuterio do que poderia parecer coerente

aos olhos ocidentais daacute-se na publicaccedilatildeo imediata de um artigo onde Nishida afirma ldquoEu

estava errado em usar o Zen em consideraccedilatildeo ao conhecimento Eu deveria tecirc-lo usado para o

espiacuterito e alma Ateacute eu comeccedilar a sentir pela visatildeo eu natildeo pensarei nem em filosofia nem em

religiatildeordquo (ID IBID 342) Este momento representa uma iluminaccedilatildeo justamente pelo fato de que

haacute sem embargo a assunccedilatildeo de uma correta postura mas com um propoacutesito enganoso ndash a busca

pelo conhecimento havia posto em xeque absolutamente todos os anos dedicados agrave meditaccedilatildeo

era necessaacuterio portanto comeccedilar novamente

Conforme Knauth Nishida iraacute se preparar nos proacuteximos anos para exprimir o potencial

introspectado durante sua iluminaccedilatildeo Trecircs pontos satildeo neste momento fundamentais O

primeiro eacute a leitura profundamente marcante para Nishida de Mestre Eckhart46 O segundo eacute

o falecimento de sua filha Yūko viacutetima de um ataque de bronquite O terceiro (diretamente

ligado ao segundo) eacute sua luta contra o cigarro Em 1923 Nishida escreve ldquoDeste dia em diante

eu morri para mundo Eu vivo em minha proacutepria filosofia Tudo sacrificado tudo sacrificado

Profunda impressionante experiecircnciardquo (ID IBID 344) e em 1927 ldquoAgrave tarde eu estava sozinho

na casa Pensamento quietos Quietamente eu passei metade do dia Eu natildeo fumei nem sequer

um cigarro Renascimento despertado de um sonho ruim De uma aacutervore podre de alguma

maneira um novo broto de vida pode florescer Hoje eu estava quase felizrdquo (ID IBID) O motivo

pelo qual Knauth intitula seu artigo com a expressatildeo Life is Tragic adveacutem justamente desta

postura de Nishida conforme a qual a vida humana natildeo passaria de preocupaccedilotildees e problemas

46 Nishida inicia a leitura de Eckhart em 1907 Seria interessante ao propoacutesito da tese que houvesse uma explanaccedilatildeo

maior e mais cuidadosa do pensamento de Eckhart sobretudo no segundo capiacutetulo onde seu posicionamento eacute

fundamental para o desenvolvimento do neoplatonismo e da miacutestica Contudo esta difiacutecil tarefa tornaria o percurso

da tese demasiado longo e cansativo podendo desviar a atenccedilatildeo primordial do trabalho Todavia possuo a intenccedilatildeo

de desdobrar este toacutepico em um trabalho futuro

102

A despeito de um aparente pessimismo o que pode ser destacado do percurso intelectual

e pessoal de Nishida eacute a profundidade com qual ele sentiu o peso da vida A doutrina buacutedica do

sofrimento eacute por ele absorvida de maneira natildeo soacute transcendente mas ainda imanente Os

escritos de Nishida revelaratildeo natildeo apenas um caminho filosoacutefico no qual se imbricam a tradiccedilatildeo

sapiencial oriental e a filosofia ocidental mas a descriccedilatildeo de uma experiecircncia vital na qual pulsa

a forccedila do pensamento especulativo Por esta e outras razotildees Nishida havia sido nomeado com

o nome laico-budista ldquosunshinrdquo uma polegada de mente

A produccedilatildeo propriamente filosoacutefica de Nishida eacute tanto mais densa quando suas reflexotildees

pessoais anotadas em seu diaacuterio contudo relativamente mais faacuteceis de serem abordadas devido

agrave sistematicidade que permeia os escritos A despeito de suas incompatibilidades com o sistema

de ensino sua carreira acadecircmica foi coroada em 1894 quando recebeu o tiacutetulo de licenciado

em filosofia com uma tese acerca da causalidade em David Hume culminando no professorado

junto agrave Universidade Imperial de Kyōto em 1913 Neste iacutenterim dedicou-se ao desdobramento

das bases de sua filosofia que teria sido divulgada de maneira mais consistente na obra que

havia publicado em 1911 sob o tiacutetulo Zen no kenkyū (善の研究 Investigaccedilatildeo sobre o bem) A

obra mais conhecida de Nishida busca o autodespertar o que significa uma visatildeo dos

fenocircmenos que compreendem a experiecircncia pura evidente desde a movimentaccedilatildeo de uma

loacutegica toacutepica O termo ldquoloacutegica toacutepicardquo eacute propositalmente ambivalente Por um lado indica uma

loacutegica do espaccedilo do lugar por outro denuncia como esse lugar (locus) revela uma locuccedilatildeo um

discurso Eacute neste lugar que se desenvolvem os limites do pensamento Relatos de alunos de

Nishida comentam que ele costumava desenhar no quadro negro trecircs esferas uma sobre a outra

na qual a primeira representaria os acidentes circundaacuteveis ao sujeito a segunda os elementos

incapturaacuteveis pela percepccedilatildeo e a terceira (com linhas tracejadas) a impossibilidade final de

limitaccedilatildeo e a esfera do absoluto insuperaacutevel e infinitamente expansiacutevel nomeado com o signo

do nada absoluto (絶対無 Zettaina) sua interpretaccedilatildeo para a noccedilatildeo budista de śūnyatā

103

Com isto Nishida arrancaria da tradiccedilatildeo zen budista uma negatividade total para

fundamentar sua ideia de experiecircncia pura (純粋経験 Junsui keiken) que segundo ele ldquo() se

entende conhecer os fatos como eles simplesmente satildeo (hellip)rdquo (NISHIDA 1990 3) Estaacute presente

nesta formulaccedilatildeo a absorccedilatildeo de Nishida da psicologia funcional de William James onde se

depura a correspondecircncia da percepccedilatildeo com a teoria da verdade Nishida ainda afirma ldquo() o

que usualmente se refere como experiecircncia eacute via de regra adulterado por algum tipo de

pensamento portanto por experiecircncia pura se entende aquele estado no qual se tem experiecircncia

sem qualquer discriminaccedilatildeo deliberativardquo (IDEM IBIDEM) O claacutessico exemplo pelo qual se ilustra

a condiccedilatildeo primaacuteria da pureza da experiecircncia sugere que em uma expressatildeo como ldquoouvi uma

moscardquo haacute um momento no qual o sujeito que ouve a mosca e seu barulho e o ato mesmo de

ouvir ainda natildeo foram distinguidos O fundamento da realidade enquanto nada absoluto para

Nishida encontra-se neste preciso momento neste instante incapturaacutevel na inefabilidade do

indescritiacutevel Entretanto embora a erudiccedilatildeo filosoacutefica de Nishida fosse sobremaneira evidente

bem como sua dedicaccedilatildeo ao zen budismo suas ideias natildeo estavam livres de criacuteticas em ambas

as esferas

Uma das criacuteticas mais ferrenhas a Nishida foi apresentada por Hajime Tanabe (田辺 元)

seu sucessor na caacutetedra de filosofia da Universidade Imperial de Kyōto (em 1928) Ao contraacuterio

de Nishida que nunca havia saiacutedo do Japatildeo Tanabe foi contemplado com um intercacircmbio pelo

governo japonecircs e teve a oportunidade de estudar ao lado de Husserl e Heidegger Sua maior

obra Zangedo to shite no tetsugaku (懺悔道としての哲學 A filosofia como caminho metanoeacutetico

1946) ocupava-se da superaccedilatildeo do inevitaacutevel problema epistemoloacutegico que envolvia a questatildeo

do nada absoluto propondo o termo metanoeacutetica derivado do grego μετανόησις e vertido ao

japonecircs como zangedo (懺悔道) cuja definiccedilatildeo seria nas palavras de Tanabe ldquoum baacutelsamo para

a dor do pesar e ao mesmo tempo o recurso para uma luz absoluta que paradoxalmente torna

vigente a escuridatildeo sem expulsaacute-lardquo (TANABE 1986 2)

104

Em decorrecircncia da necessidade de superaccedilatildeo do proacuteprio pensamento a criacutetica de Tanabe

emerge no sentido de questionar se a filosofia possui condiccedilotildees de enquadrar o autodespertar

religioso conforme exposto por Nishida de maneira sistemaacutetica Conforme Agustiacuten Jacinto

Zavala ldquoResumidamente ao tomar como base o ponto de vista da religiatildeo a filosofia de

Nishida lsquoconverte o trans-histoacuterico absoluto em principium [princiacutepio fundamental] do sistema

e mediante esta determinaccedilatildeo vem [finalmente] ordenar e organizar o histoacuterico relativordquo

(ZAVALA 2013 106) ao passo que ldquoPor isto Tanabe diz lsquoa duacutevida fundamental que albergo

frente a filosofia mestre Nishida se relaciona com este ponto () se a filosofia trata de tomar o

ponto de vista religioso como seu proacuteprio ponto de vista necessariamente deixa de ser si mesmardquo

(IDEM IBIDEM) sintetizando a preocupaccedilatildeo de Tanabe

Os conflitos entre a filosofia a auto-percepccedilatildeo religiosa a partir do estabelecimento do

nada absoluto como fundamento da realidade passaratildeo ainda prelo crivo de diversos

interlocutores sofrendo alteraccedilotildees e recebendo criacuteticas diretas e indiretas Em linhas gerais o

problema de Tanabe estaacute diretamente relacionado com suas compreensotildees estritas da religiatildeo e

da filosofia Em primeiro lugar porque ao contraacuterio de Nishida (que era praticante do zen

budismo) Tanabe partia antes do budismo Jōdo Shinshū (浄土真宗 A Escola da Terra Pura) do

monge Shinran (親鸞)47 Em segundo lugar devido aos interesses de Tanabe pela filosofia da

histoacuteria de Wilhelm Wundt e Heinrich Rickert aleacutem da influecircncia da Lebensphilosophie e o

compromisso histoacuterico que ele alimentou a partir de tais influecircncias Por este motivo era

necessaacuterio tanto para resolver a disputa entre Nishida e Tanabe quanto para superar os estaacutegios

preliminares das discussotildees da Escola de Kyōto reformular as compreensotildees de filosofia e

religiatildeo algo que acontece de maneira somente com Keiji Nishitani (西谷 啓治)

47 Sobre a fundamentaccedilatildeo budista de Tanabe confira Joaquim Antonio Bernardes Carneiro Monteiro ldquoO lsquoNada

Absolutorsquo em Hajime Tanabe uma avaliaccedilatildeo criacuteticardquo In Antonio Florentino Neto e Oswaldo Giacoia Jr (orgs)

O Nada absoluto e a superaccedilatildeo do niilismo Os fundamentos filosoacuteficos da Escola de Kyoto Campinas Phi 2013

155-188

105

Keiji Nishitani eacute talvez o filoacutesofo japonecircs contemporacircneo mais popular entre os

ocidentais O motivo eacute provavelmente o estilo bastante solto e livre de seus ensaios

principalmente os que chegaram traduzidos ao Ocidente ndash precisamente os mais maduros

compostos apoacutes a deacutecada de 1960 como Shūkyo to wa Nanika (宗敎とは何か O que eacute religiatildeo

1961) e Nihirizumu (ニヒリズム Niilismo 1986) Estes mesmos trabalhos sofreram diversas

criacuteticas por parte de colegas japoneses que o acusaram de se afastar dos modos propriamente

orientais de expressatildeo supostamente sugerindo uma indiferenccedila ao idioma vernaacuteculo agraves

tradiccedilotildees e aos projetos de seus antecessores Sobre isto Nishitani teria argumentado que as

lacunas do pensamento japonecircs tradicional sobretudo as idiomaacuteticas impossibilitariam o

alcance do sentido de alguns problemas colocados pela filosofia ocidental motivo pelo qual a

criaccedilatildeo de novas palavras em japonecircs se mostrava absolutamente necessaacuterios48 Sem embargo

os questionamentos impostos pelos novos tempos natildeo se prendiam agraves fronteiras linguiacutesticas e

invadiam o Japatildeo modernizado e ocidentalizado com especial forccedila razatildeo pela qual a

aproximaccedilatildeo com a filosofia sua interiorizaccedilatildeo e reflexatildeo era simplesmente inevitaacutevel

Todavia embora Nishitani tenha realmente pendido para o pensamento filosoacutefico ou para a

maneira pela qual os pensadores ocidentais liam as questotildees conflituosas da contemporaneidade

ao mesmo tempo ele se voltava com ainda maior introspecccedilatildeo para o budismo sobretudo para

o zen Esta ambiguidade intencional do pensamento de Nishitani se revela nas inquiriccedilotildees por

ele levantadas e pelo teor de suas investigaccedilotildees deixando ver claramente sua preocupaccedilatildeo a

respeito do direcionamento reflexivo da filosofia contemporacircnea

48 James Heisig discute esta questatildeo pormenorizadamente quando apresenta o estilo filosoacutefico de Nishitani

Conforme Heisig a influecircncia ocidental absorvida por Nishitani cujas maiores expressotildees foram a esteacutetica de

Immanuel Kant o idealismo alematildeo (especialmente Friedrich W J Schelling) Plotino e o neoplatonismo a

miacutestica de Mestre Eckhart e Francisco de Assis e ainda a hermenecircutica existencial de Wilhelm Dilthey e Martin

Heidegger deixam bastante claro o porquecirc ele subverte e converte os limites e alcances da linguagem Heisig

ainda destaca o momento no qual Nishitani afirma que nos miacutesticos a confluecircncia e a uniatildeo entre religiatildeo e

filosofia alcanccedilaram um ponto elevado despertando seu profundo interesse por tais autores A despeito dos temas

eleitos Heisig considera ainda que por este mesmo motivo o estilo de Nishitani se mostra superior ao de Tanabe

e ao de Nishida (cf HEISIG 2002 233-242)

106

Eacute possiacutevel considerar que o problema com o qual Nishitani se defrontou e que norteou

o andamento geral de seu pensamento mais cuidadosamente desenvolvido possui um ponto de

partido muito bem estabelecido qual seja o problema do niilismo denunciado na virada do

seacuteculo por autores como Friedrich Nietzsche Ernst Juumlnger Fioacutedor Dostoievsky Ivan

Turgeniev entre outros Em Shūkyo to wa Nanika longe de tentar elucidar o sentido da religiatildeo

em termos sistemaacuteticos a despeito do tiacutetulo do escrito Nishitani parece buscar uma imersatildeo na

tensatildeo contraditoacuteria que os seres humanos possuem com a experiecircncia religiosa segundo ele

ldquo() para quem a religiatildeo natildeo eacute uma necessidade precisamente por esta razatildeo ela eacute uma

necessidade Natildeo haacute nenhuma outra coisa sobre a qual se possa dizer o mesmordquo (NISHITANI

1983 1) Sua definiccedilatildeo de religiatildeo se abre a partir da compreensatildeo de uma ldquoauto-despertar da

realidaderdquo cuja explicaccedilatildeo se apoia no termo inglecircs realize segundo ele um termo polissecircmico

que possuem tanto o sentido de actualize (atualizar mas tambeacutem trazer o sentido real como na

expressatildeo actually cujo significado seria na verdade) quanto de understand (compreender)

Nishitani explica ldquo() estou utilizando esta palavra para indicar que nossa habilidade para

perceber a realidade significa realizar (atualizar) a realidade por si mesma em noacutesrdquo (IDEM IBIDEM

5) Esta explicaccedilatildeo apareceria para confrontar o sentido do niilismo que segundo Nishitani

ldquo() se refere agravequilo que torna sem sentido o sentido da vida () sinalizando nada menos do

que fato de que o despertar da nossa existecircncia penetrou em uma profundidade extraordinaacuteriardquo

(ID IBID 4) Em suma Nishitani possui um alvo muito claro lidar com o abismo existencial

que se deixa ver sobremaneira angustiante nos novos tempos aqueles mesmos ldquotempos de

penuacuteriardquo da ldquonoite do mundordquo anunciados por Nietzsche denunciados por Heidegger e que

assombravam os filoacutesofos que se deparavam com a instituiccedilatildeo da morte do pensamento

reflexivo mediante a Era Atocircmica dos desastres ambientais e dos deliacuterios da modernizaccedilatildeo

industrializaccedilatildeo e tecnologizaccedilatildeo do mundo Fatos inegaacuteveis cuja profunda relaccedilatildeo com a

histoacuteria do pensamento torna seu sentido cada vez mais obscuro

107

A forccedila interpretativa que moveraacute o pensamento de Nishitani rumo agraves tentativas de

resoluccedilatildeo dos conflitos passaraacute em primeiro lugar por sua leitura a respeito do problema do

niilismo e sua relaccedilatildeo com a ideia de śūnyatā Quando Nishitani alcanccedila esta abordagem ele

frisa de iniacutecio que ldquo() um dos maiores e mais fundamentais problemas que todas as religiotildees

encaram em nossos tempos eacute sua relaccedilatildeo com a ciecircnciardquo (IDEM IBIDEM 77) O motivo aparenta

ser a incompatibilidade entre o pensamento cientiacutefico e o sentido essencial da vida religiosa

Nishitani entatildeo argumenta de maneira incisiva (e que sintetiza o propoacutesito desta tese no final

das contas)

Uma em cada dez pessoas escuta que a religiatildeo e a ciecircncia tem cada uma seu proacuteprio

domiacutenio e tarefa e que as duas nunca precisaratildeo entrar em conflito caso permaneccedilam

confinadas em suas fronteiras originais Isto eacute inadequado Uma fronteira separa uma

aacuterea da outra e ao mesmo tempo pertence a ambas as aacutereas Os fundamentos do

conflito entre religiatildeo e ciecircncia repousam certamente em tais fronteiras De fato desde

os tempos mais antigos metafiacutesica e filosofia consistiram na exploraccedilatildeo destas

fronteiras entre ciecircncia e religiatildeo (IDEM IBIDEM 77-78)

Nishitani ainda questiona se tais fronteiras podem ser consideradas realmente fronteiras ou natildeo

admitindo que a ciecircncia contemporacircnea natildeo parece se preocupar com a questatildeo A criteacuterio de

verdade objetiva da ciecircncia com o apoio das leis da natureza seria responsaacutevel por de certo

modo menosprezar o conhecimento religioso e mesmo o conhecimento filosoacutefico em

decorrecircncia da verdade cientiacutefica absoluta Mas Nishitani contesta no contrafluxo da tendecircncia

mais geral ldquoMas eacute realmente tatildeo evidente Uma nova maneira de olhar para o absoluto e o

relativo conforme a qual dois absolutos podem se tornar conjuntos impensaacutevel em uacuteltima

instacircnciardquo (ID IBID 78) Para Nishitani o problema vige no fechamento das possibilidades

108

Natildeo haacute aqui uma criacutetica ldquocientofoacutebicardquo mas o levantamento de uma questatildeo qual seja

ldquoNatildeo possuiacutemos uma outra maneira de conceber o relativo senatildeo em termos de estabelecimento

de limites ndash como fazemos por exemplo quando dividimos uma folha de papel em duas ao

traccedilar uma linha nelardquo (ID IBID 79) Nishitani mostraraacute esta possibilidade por meio de sua

interpretaccedilatildeo da ideia de śūnyatā e como ela desvela uma perspectiva que explora os elementos

abandonados pela objetividade cientiacutefica Seja como for eacute possiacutevel considerar jaacute de iniacutecio que

se concentra aiacute toda a potecircncia do diaacutelogo entre metafiacutesica e negatividade apresentado ao longo

desta tese sendo possiacutevel acompanhar Nishitani em uma definiccedilatildeo do conflito das fronteiras

Agora bem quais as saiacutedas ou quais as possiacuteveis chaves de leitura para o problema que

se apresenta a saber a questatildeo do niilismo contemporacircneo Quando emprego aqui o termo

filosofia comparada intercultural tenho em vista a maneira pela Nishitani (entre outros)

exploram as muacuteltiplas significaccedilotildees de distintas tradiccedilotildees culturais em suas convergecircncias e

divergecircncias para se aproximar do problema e propor novos pontos de vista A respeito

especificamente da questatildeo levantada Nishitani utiliza a proacutepria ambivalecircncia do niilismo para

propor uma soluccedilatildeo Seu caminho seraacute resgatar o sentido pelo qual a ciecircncia se apropria das

leis da natureza e desenvolve a tecnologia argumento que eacute precisamente por meio desta

apropriaccedilatildeo que se revelam a medida da liberdade do homem em relaccedilatildeo agraves fronteiras impostas

pelas leis naturais Contudo haacute uma inversatildeo pela qual o controlador se torna o controlado

Conforme Graham Parkes ldquo() a vida humana e o trabalho como um todo se tornam

progressivamente mecanizados e impessoais (nos termos de Heidegger perdemos nossa lsquolivre

relaccedilatildeorsquo com a teacutecnica e estamos lsquoacorrentadosrsquo agrave ela)rdquo explicando ademais que para Nishitani

ldquoA liberdade advinda das leis da natureza que a tecnologia mecanizada nos concede aleacutem do

sentimento concomitante de distacircncia ou separaccedilatildeo do mundo natural levam os seres humanos

a lsquose comportarem como se eles estivessem completamente fora das leis da naturezarsquordquo (PARKES

2013a 103) Sendo assim a uacutenica via possiacutevel eacute restabelecer esta relaccedilatildeo humano-natureza

109

O ponto de apoio de Nishitani para colocar o problema parte da compreensatildeo que

oferece o neoplatonismo e a miacutestica medieval de Deus como nada absoluto (ele cita

especificamente Mestre Eckhart neste ponto) para trazer agrave tona a questatildeo morte-sive-vida

Nishitani evidencia portanto que ldquoEste ponto natildeo pode repousar em um lado mais distante

aleacutem deste mundo e desta vida terrena que possuiacutemos Deve repousar no lado mais proacuteximo

tanto mais proacuteximo quanto nossas vidas ordinariamente devem serrdquo (ID IBID 90) Aproveitando

a perspectiva budista para elucidar este caminho Nishitani esclarece de maneira precisa que

ldquoŚūnyatā eacute o ponto no qual noacutes nos tornamos manifestos de nossa proacutepria talidade (suchness)

como seres humanos concretos como indiviacuteduos com alma e personalidade Ao mesmo tempo

eacute o ponto no qual tudo ao redor se manifesta para noacutes em sua proacutepria talidade (suchness)rdquo (ID

IBID 90)49 Śūnyatā envolve inevitaacutevel e necessariamente este complexo conceito de talidade

(真如 Shinrsquonyo ndash Tathatā तथता) que eacute sem embargo o berccedilo da meditaccedilatildeo oriental

A talidade eacute a via pela qual se extrai a conduccedilatildeo do sistema eacutetico e moral da sociedade

hinduiacutesta primitiva Sua disseminaccedilatildeo no Extremo Oriente eacute carregada por duas tradiccedilotildees quais

sejam o daoiacutesmo e o budismo Os daoiacutestas centram sua noccedilatildeo de ldquoprinciacutepiordquo por meio da noccedilatildeo

de dao (道) e sua relaccedilatildeo com de (德) O famoso Dao De Jing (道德经) bem como a obra do

mestre Zhuangzi (莊子) satildeo os principais responsaacuteveis por colocarem ambos os princiacutepios (dao

e de) e movimento dinacircmico conforme o qual a relaccedilatildeo com natureza natildeo seria entendida nem

como celestial nem como humana mas como ambas sem que uma tenha privileacutegio sobre a

outra ndash e este seria enfim o caminho (dao) da virtude (de) (cf ZHUANGZI 2009 42)

49 Traduzo aqui suchness por talidade com base na ideia de que Nishitani se refere ao conceito budista de Tathatā

(तथता) que em japonecircs se ilustra com o kanji 真如 (Shinnyo) cuja traduccedilatildeo seria ldquorealidade absolutardquo mas natildeo

corresponde ao peso do termo Sobre isto Antonio Morillas escreve que ldquoO termo tathata eacute de difiacutecil traduccedilatildeo

em castelhano Em inglecircs se verte com as expressotildees suchness (a condiccedilatildeo de ser ldquotalrdquo e como se eacute) thatness (o

fato de ser ldquoissordquo que se eacute) e isness (a qualidade de algo que ldquoeacuterdquo sem mais o que eacute e como eacute) () A talidade

[traduccedilatildeo castelhana de tathata] eacute a noccedilatildeo do fato de que a realidade e as coisas e fenocircmenos que a compotildeem satildeo

ldquoassimrdquo ldquotalrdquo e como satildeo que satildeo ldquoissordquo ldquoo que satildeordquo em seu caraacuteter plenamente desnudo na existecircncia luminosardquo

(MORILLAS 2006 167) Pela proximidade com o idioma castelhano opto aqui por adotar a sugestatildeo de Morillas

110

O budismo especialmente o budismo zen absorveria tais ideias com especial forma nos

pensamentos de Kūkai (空海) e Dōgen Zenji (道元禅師) Graham Parkes explica que para Kūkai

duas ideias se configuram essenciais Sokushinjobutsu (即身成仏) a possibilidade de atingir a

iluminaccedilatildeo na vida presente (em contraste ao princiacutepio budista tradicional conforme o qual

seriam necessaacuterias muitas vidas) e Hosshin seppo (発疹 説法 ) o entendimento de que a

personificaccedilatildeo buacutedica eacute desprovida de forma e imagem natildeo permitindo conceitualizaccedilatildeo nem

verbalizaccedilatildeo (cf PARKES 2003 81) A despeito da uniatildeo suscitada pelo daoiacutesmo o budismo

chinecircs do oitavo seacuteculo estava imerso em uma profunda discussatildeo acerca da questatildeo se a

natureza buacutedica podia ser atribuiacuteda somente aos seres sencientes ou tambeacutem agraves miacutenimas

partiacuteculas de poeira Kūkai articula as duas ideias acima mencionadas e interpretas as chamadas

ldquotrecircs intimidadesrdquo (corpo fala mente) do Dainichi Nyorai (木造大日如来坐像) que representa a

revelaccedilatildeo esoteacuterica dos ensinamentos no Budismo para sustentar o muacutetuo pertencimento da

relaccedilatildeo do todo com suas partes assumindo a natureza buacutedica para absolutamente tudo Ele

escreve neste sentido ldquoEssa existecircncia estaacute naquela e aquela estaacute nessa A Existecircncia do Buda

(Mahāvairocana) eacute a existecircncia dos seres sencientes e vice e versa Eles natildeo satildeo idecircnticos mas

satildeo todavia idecircnticos eles natildeo satildeo diferentes mas satildeo todavia diferentesrdquo (KŪKAI 1972 93)

Jaacute para Dōgen a evocaccedilatildeo da conduta zen se daria por meio de uma miacutestica cotidiana

alimentando a noccedilatildeo de que toda atividade eacute expressatildeo da natureza buacutedica Parkes argumenta

que algumas atividades satildeo especialmente ilustrativas como por exemplo preparar a comida

servi-la e come-la Dōgen citaria um trecho do Vimalakīrti Nirdeśa Sūtra (नवमलकीनत निदश सतर) que

diria ldquoQuando somos unos com a comida que comemos somos unos com todo o universordquo

evocando o uso do silecircncio como veiacuteculo para o esclarecimento do śūnyatā como fundamento

absoluto da realidade (cf PARKES OP CIT 84) As praacuteticas rituais natildeo possuiriam todavia

conotaccedilatildeo lituacutergica pontual e direcionada mas antes a totalidade de uma experiecircncia de vida

religiosa

111

Tanto Kūkai quanto Dōgen influenciaram amplamente o pensamento de Nishitani e o

ponto de vista conforme o qual o śūnyatā direciona uma atitude por meio da qual se mostra a

talidade Tanto no daoiacutesmo de Zhuangzi quando no zen budismo de Kūkai e Dōgen estatildeo em

jogo o aspecto formal a aparecircncia (rūpa shiki) da realidade em torno por um lado e a assunccedilatildeo

da dissoluccedilatildeo do fundamento dessa realidade por outro (sua vacuidade śūnyatā kū) Por este

motivo haacute uma muacutetua reciprocidade entre a totalidade e as coisas entre uno e muacuteltiplo Isto eacute

o que permite a participaccedilatildeo e ao mesmo tempo incorporaccedilatildeo da realidade (dharmakāya)

Contudo natildeo seraacute o mero resgate das tradiccedilotildees orientais que forneceraacute a Nishitani a resposta

ao problema no que concerne ao impacto da questatildeo frente aos tempos de niilismo mas sim o

resultado da confrontaccedilatildeo desta tradiccedilatildeo com a filosofia contemporacircnea ocidental ou sem

embargo o confronto entre as fronteiras

Graham Parkes atenta para uma reivindicaccedilatildeo de Nishitani de haver superado em certa

medida o desenvolvimento das filosofias de pensadores como Hegel Nietzsche e Heidegger

(cf PARKES 2013b 189-190) Contudo no cerne desta proposiccedilatildeo estaacute a ideia de que o que foi

superado natildeo foi propriamente o conteuacutedo da meditaccedilatildeo mas a forma da abordagem ou seja

a perspectiva intercultural privilegiada da comparaccedilatildeo filosoacutefica de Nishitani Com o anuacutencio

da morte de Deus e dos tempos de niilismo em Nietzsche ficou evidente um diagnoacutestico da

atividade humana inerente aos valores que a guiam por um lado e a induccedilatildeo ao desespero

suscitado pela projeccedilatildeo cognoscitiva ao ente por outro A saiacuteda de Nietzsche por meio do

ldquogrande antiacutedotordquo da transvaloraccedilatildeo de todos os valores eacute recebida em Nishitani considerando

trecircs ideias chave de sua leitura budista (1) a constituiccedilatildeo do fundamento da existecircncia como

uma experiecircncia aleacutem da relaccedilatildeo entre sujeito objeto por meio do conceito de (referente agrave noccedilatildeo

de dharma धम) (2) a reaccedilatildeo de retorno ao mesmo de toda atividade (a partir do conceito de

karma कम) e a noccedilatildeo de que natildeo haacute nada que exista independente de circunstacircncias e

condicionamento ou a chamada ldquoco-originaccedilatildeo dependenterdquo (o pratītya-samutpāda परतीतयसमतपाद)

112

Portanto o que em Nietzsche seria postulado como destino enquanto o ldquomesmordquo (o ego

fatum nietzscheano) engendrando um ponto de vista criativo em Nishitani seria entendido

desde a ideia do karma Em Nihirizumu Nishitani escreve acerca deste ponto especiacutefico que

ldquoNeste niacutevel fundamental o mundo se move na esfera do mesmo e o mesmo na esfera do

mundo Esta ideia estaacute proacutexima da ideia budista de karma embora em Nietzsche o ponto de

vista do mesmo como destino eacute fundamentalmente criativordquo (NISHITANI 1990 50) Em termos

mais simples de acordo com Parkes ldquo() o que parece um golpe do destino pode ser entendido

antes como uma parte de nossa proacutepria atividaderdquo (PARKES OP CIT 196) O florescimento desta

consideraccedilatildeo se daacute na afirmaccedilatildeo niezscheana do amor fati e da superaccedilatildeo do abismo da grande

suspeita niilista por meio da grande dor pela qual se renasce o que seraacute entendido em Nishitani

a partir do retorno ao abismo onde ldquo() uma vez que algueacutem eacute libertado do abismo a

necessidade se torna um elemento desta vida de liberdade Neste caso necessidade se torna

uma com a criatividaderdquo (NISHITANI OP CIT 52) Entretanto a ressalva de Nishitani consiste que

a afirmaccedilatildeo resultante da superaccedilatildeo do abismo niilista pode ainda ser superar e que a vontade

de poder eacute ainda uma ldquocoisardquo chamada ldquovontaderdquo (cf IDEM OP CIT 234) cuja uacutenica possibilidade

de ser pensada para aleacutem dos fundamentos que redundam no destino como mesmo seria

justamente o ponto de vista do śūnyatā Uma ilustraccedilatildeo possiacutevel de ldquopara onderdquo este ponto de

vista levaria pode ser encontrada quando Nishitani comenta a arte japonesa de arranjo de flores

a chamada Ikebana (生け花) Ali fica niacutetido qual a postura que se assume quando se daacute conda

da vacuidade da realidade uacuteltima e absoluta Nishitani escreve

Desde a perspectiva de sua natureza fundamental todas as coisas no mundo satildeo

lacircminas de grama sem raiacutezes Tal grama entretanto tenho fincado suas raiacutezes no solo

esconde a si mesma em sua fundamental ausecircncia de raiacutezes () sendo cortadas de suas

raiacutezes as flores satildeo feitas pela primeira vez pela manifestaccedilatildeo minuciosa de sua

natureza fundamenta ndash sua falta de raiacutezes (IDEM 2011 1199)

113

Ao fim e ao cabo Nishitani estaacute chamando atenccedilatildeo para uma aprendizagem decorrente da ldquoco-

originaccedilatildeo dependenterdquo a partir da natureza Sobre este ponto e sua relaccedilatildeo com o niilismo

Parkes escreve ldquo() noacutes humanos diferimos de outros entes por meio da possibilidade de nos

tornamos conscientes de nossa proacutepria finitude no estado da niilidade (kyomu) um tipo de

ldquovacuidade ocardquo que eacute uma antecacircmara para a vacuidade criativa (śūnyatā kū)rdquo (PARKES OP

CIT 112) Resumidamente o ponto de vista do śūnyatā se configura para Nishitani a partir da

tradiccedilatildeo do zen budismo oriental e de sua leitura da filosofia ocidental como uma iluminaccedilatildeo

a respeito do fundamento da realidade enquanto vacuidade evidenciado sobremaneira pelo

abismo do niilismo contemporacircneo e que direciona o ser humano para uma vacuidade criativa

na qual sua relaccedilatildeo com as coisas congrega tudo em uma mesma natureza buacutedica ou seja o

lugar onde as flores o arranjo o florista e o ato de fazer o arranjo satildeo a mesma coisa ou o lugar

onde a mosca o anjo Deus e o eu satildeo o mesmo

114

CONCLUSAtildeO

Durante o primeiro semestre de 2011 estava profundamente motivado com a preparaccedilatildeo do

texto final desta tese doutoral Ocupava-me ao mesmo tempo das pesquisas leituras

sistematizaccedilatildeo dos esquemas defesa da versatildeo do final do projeto e dos cursos que iria ministrar

na Universidade Federal do Rio Grande do Norte nos meses seguintes A abordagem agrave histoacuteria

da metafiacutesica agrave tradiccedilatildeo do neoplatonismo e agrave filosofia japonesa contemporacircnea atingiam-me

simultaneamente por meio de muacuteltiplas construccedilotildees conceituais interligadas pela lucidez

provocada mediante a histoacuteria dos efeitos de cada ambiente temaacutetica Contudo ao 11 de marccedilo

daquele ano foi transmitida uma notiacutecia que imediatamente cessou minha produccedilatildeo e

empolgaccedilatildeo com todo e qualquer toacutepico Os jornais incessantemente transmitiam as uacuteltimas

notiacutecias a respeito de um terremoto seguido por um tsunami que havia atingido o Japatildeo e

danificado a estrutura da usina nuclear de Fukushima na cidade de Ōkuma expondo a

comunidade da regiatildeo agrave alarmantes niacuteveis de radioatividade O desastre ambiental seria

considerado algum tempo mais tarde a maior cataacutestrofe nuclear desde Chernobyl em 1986

Evidentemente como havia ocorrido tambeacutem em 2001 durante o ataque terrorista ao

World Trade Center em Nova Iorque as reportagens que chocavam o mundo se tornariam

rapidamente repetitivas e esgotariam o puacuteblico O motivo pelo qual se daria tal neutralizaccedilatildeo e

letargia frente aos fatos foi denunciado por Slavoj Žižek na obra The Year of Dreaming

Dangerously (2012) Ele pondera os eventos destrutivos de 2011 tais quais a Primavera Aacuterabe

e o Occupy Wall Street desde a neutralizaccedilatildeo ideoloacutegica promovida pela miacutedia dando margem

agrave interpretaccedilatildeo conforme a qual os veiacuteculos de comunicaccedilatildeo vigentes aniquilam o potencial

emancipatoacuterio dos eventos por meio da pasteurizaccedilatildeo de sua difusatildeo

115

Žižek destaca o termo da liacutengua persa ldquowar nam nihadanrdquo cujo abstruso significado

seria em linhas gerais ldquomatar algueacutem enterrar seu corpo e plantar flores sobre sua cova para

esconder o cadaacuteverrdquo Para Žižek os meios de comunicaccedilatildeo do capitalismo global destroem a

absorccedilatildeo propriamente humana dos eventos do mundo contemporacircneo exatamente neste

mesmo sentido (cf ŽIŽEK 2012 9) Sem sombra de duacutevidas o mesmo se daria em relaccedilatildeo ao

desastre de Fukushima e hoje trecircs anos depois uma pedra foi posta por sobre o assunto e poucas

pessoas sequer se lembram do ocorrido

Entretanto meu denso envolvimento com a filosofia japonesa natildeo permitiu que os

acontecimentos fossem dissolvidos assim tatildeo facilmente Passei um bom tempo tocado pela

calamidade e mesmo ateacute agora ainda tenho dificuldades em lidar com o assunto As

adversidades emotivas todavia natildeo me impediram de pensar com devoccedilatildeo sobre a questatildeo

pelo contraacuterio estimularam ainda mais o rumo da reflexatildeo filosoacutefica

O ano seguinte seria marcado em meu percurso pessoal pela saiacuteda do paiacutes e realizaccedilatildeo

de estaacutegio sanduiacuteche junto agrave University College Cork (Colaacuteiste na hOllscoile Corcaigh) para

realizar minhas pesquisas sob a supervisatildeo do professor Graham Parkes na Irlanda Parkes

havia publicado no iniacutecio daquele ano um breve artigo intitulado Nuclear Power after

Fukushima 2011 Buddhist and Promethean Perspectives (2012) no qual natildeo apenas analisava

os fatos mas ainda apresentava uma meditaccedilatildeo a respeito de uma filosofia da natureza para

aleacutem das ecologias profundas ou natildeo

Simplificando o assunto o estiacutemulo para o fornecimento de energia nuclear eacute

alimentado pela conclusatildeo de que se trata de uma fonte limpa e autossustentaacutevel em contraste

agrave queima do combustiacutevel e exploraccedilatildeo de recursos foacutesseis ou mesmo aos impactos ambientais

causados pela obstruccedilatildeo de fluxos de aacutegua Aparentemente trata-se de uma soluccedilatildeo emergente

frente ao ainda ineficaz suporte das energias ecologicamente viaacuteveis como a eoacutelica e a solar

116

Parkes pontua sobre isto que ldquoA questatildeo crucial natildeo diz respeito aos meacuteritos relativos

e agraves desvantagens do poder nuclear versus a energia dos combustiacuteveis foacutesseis Antes trata-se

de pensar o que norteia nosso desejo de consumir tanta energia em primeiro lugarrdquo (PARKES

2012 103) O posicionamento diz respeito a um ldquopasso atraacutesrdquo A pergunta eacute o que move no

final das contas o irredutiacutevel e irrefreaacutevel iacutempeto de explorar todos os recursos naturais para

fomentar a manutenccedilatildeo da vida humana na Terra Mesmo com a leitura do escrito eu

particularmente soacute conseguiria compreender o direcionamento proposto por Parkes apoacutes

acompanhar seus seminaacuterios sobre filosofias da natureza entre Ocidente e Oriente no qual

ficariam claras as bases pelas quais ele questionava a conduta contemporacircnea face agrave crise

ambiental

Entretanto quando me deparei com as primeiras leituras oferecidas por Parkes (muitas

das quais constam na bibliografia desta tese) natildeo fui acometido pelo espanto da novidade mas

pela pulsatildeo da comparaccedilatildeo A experiecircncia que jaacute havia acumulado sob a orientaccedilatildeo do

professor Oscar Federico Bauchwitz durante meus anos de pesquisa acadecircmica dedicado agrave

leitura de Nietzsche Heidegger e da tradiccedilatildeo do neoplatonismo e da miacutestica medieval proveu-

me de uma arquitetocircnica meditativa que com a aproximaccedilatildeo com a filosofia oriental apenas

nutriu imediata empatia e introspecccedilatildeo Sendo assim quando congreguei o focirclego e as forccedilas

necessaacuterias para encerrar este trabalho natildeo tinha em mente uma tese levantada de um mero

problema particular mas um longo percurso especulativo que ao longo das paacuteginas aqui

apresentadas tentei descrever da melhor maneira possiacutevel

Sobreveio-me durante os termos finais uma intensa obrigaccedilatildeo de sustentar que a uacutenica

via possiacutevel para enfrentar os problemas filosoacutefico contemporacircneos era a instauraccedilatildeo de um

retorno aos fundamentos por meio da interculturalidade Portanto a conclusatildeo desta tese soacute

pode caminhar rumo agrave elucidaccedilatildeo de quais fundamentos no final das contas satildeo estes que estatildeo

aqui e ali indicados no interior do trabalho

117

Em 1953 Martin Heidegger pronunciou a conferecircncia intitulada Die Frage nach

Technik O escrito eacute talvez uma de suas mais claras expressotildees acerca de sua anaacutelise da

consumaccedilatildeo da histoacuteria da metafiacutesica a instauraccedilatildeo do niilismo europeu e o advento da Era

Teacutecnica Paralelamente durante o mesmo periacuteodo (na verdade em 1954) Nishitani finalizava

a composiccedilatildeo de seu ensaio sobre ldquoNiilismo e Śūnyatārdquo mais tarde incluiacutedo no volume Shūkyo

to wa Nanika abordado aqui ao longo do terceiro capiacutetulo Como foi possiacutevel observar em

Nishitani a saiacuteda do ponto de vista da vacuidade ou nada absoluto demandava a busca por

uma postura interior do ser humano na qual se tornava evidente nada mais senatildeo o elemento

inexplicaacutevel e inexprimiacutevel do fundamento uacuteltimo da realidade que era assumido agora como

oriente para o comportamento humano frente ao colapso do novo mundo A dificuldade inerente

de absorver a proposta de Nishitani todavia eacute ilustrada de maneira praacutetica quando ele aborda

uma questatildeo particular qual seja a relaccedilatildeo entre ser humano e natureza na imagem do jardim

zen Noacutes estamos dentro do jardim e natildeo somos apenas espectadores porque noacutes nos tornamos

parte da real manifestaccedilatildeo da expressatildeo da proacutepria experiecircncia iluminadora do arquiteto do

jardim O jardim eacute meu mestre Zen agora e eacute seu mestre Zen tambeacutem (NISHITANI 1992 55)

Quando Heidegger indica em sua conferecircncia que a essecircncia da teacutecnica natildeo eacute ela mesma nada

teacutecnico ele estaacute em um movimento similar ao de Nishitani chamando atenccedilatildeo para o fato de

que eacute necessaacuterio tambeacutem retornar a algo que natildeo pode ser submetido agrave objetividade cientiacutefica

da relaccedilatildeo sujeito-objeto que sustenta a tecnicizaccedilatildeo do mundo Neste sentido a saiacuteda de

Heidegger eacute ilustrada por meio de um dos conceitos mais enigmaacuteticos de toda sua obra

Gelassenheit Heidegger escreve ldquoTalvez se oculte na Gelassenheit uma accedilatildeo mais elevada do

que em todos os atos do mundo e do que nas maquinaccedilotildees das reliacutequias humanasrdquo (HEIDEGGER

1983a 41) O sentido contudo permanece oculto Resta apenas a ideia de que esta postura

evocada por Heidegger demanda um ldquodeixarrdquo (lassen) que atina para um recolhimento da

paradoxal ambiguidade do que se revela na essecircncia do humano

118

Ressoa tanto em Heidegger quanto em Nishitani uma raiz comum aquela na qual se

ldquoRenuncia aos sentidos agraves operaccedilotildees intelectuais a todo sensiacutevel e ao inteligiacutevelrdquo ainda mais

aquela onde se pede ldquoDespoja-te de todas as coisas que satildeo e ainda das que natildeo satildeo Deixa de

lado teu entender e esforccedila-te por subir o mais que possa ateacute unir-se com aquele que estaacute mais

aleacutem de todo ser e todo saberrdquo Estas palavras aqui propositalmente citadas sem a indicaccedilatildeo

bibliograacutefica satildeo do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita onde neoplatonismo e miacutestica se encontram

no caminho da negatividade Tanto o ldquoprestar atenccedilatildeo aos misteacuterios da naturezardquo em Nishitani

quando a ldquoabstenccedilatildeo da vontade por meio da natildeo-vontaderdquo o ldquoquerer o natildeo-quererrdquo em

Heidegger estatildeo depositados nas sentenccedilas do miacutestico siacuterio

Agora qual eacute este lugar ou natildeo-lugar aleacutem de todo ser e todo saber O que se revela

por meio do despojo e da supressatildeo de todo saber e todo o dizer Esta pergunta natildeo eacute respondida

Natildeo pode ser respondida O que se desvela aiacute eacute justamente o incoacutegnito o misteacuterio Como reagir

portanto frente a tal proposta de em meio a existecircncia contemporacircnea remar no contrafluxo

do sentido do mundo e buscar uma quietude absoluta no silecircncio que adveacutem do misteacuterio da

existecircncia Agrave esta pergunta tampouco se ofereceraacute resposta mas desta vez porque ela jaacute estaacute

respondida A reaccedilatildeo foi nomeada com diversos termos ao longo da histoacuteria recebendo distintas

designaccedilotildees Algumas tradiccedilotildees orientais optam por chama-la ldquoiluminaccedilatildeordquo

Por fim o conflito das fronteiras aqui abordado natildeo eacute um evento especiacutefico um

momento ou instante captaacutevel uma situaccedilatildeo ou circunstacircncia particular O conflito das

fronteiras eacute um caminho ou melhor uma caminhada Uma caminhada rumo ao desconhecido

cujo uacutenico sinal evidente acena para o clamor de um silecircncio ensurdecedor indicando que jaacute eacute

hora de se recolher

119

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