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1
LUIZ FERNANDO FONTES TEIXEIRA
O CONFLITO DAS FRONTEIRAS
NATAL
2014
2
PROGRAMA INTEGRADO DE DOUTORADO EM FILOSOFIA
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAIacuteBA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
LUIZ FERNANDO FONTES TEIXEIRA
O CONFLITO DAS FRONTEIRAS
Metafiacutesica Negatividade e o Extremo Oriente
Tese de doutorado apresentada ao Programa
Integrado de Doutorado em Filosofia da
Universidade Federal da Paraiacuteba Universidade
Federal de Pernambuco e Universidade Federal
do Rio Grande do Norte como requisito para a
obtenccedilatildeo do grau de Doutor em Filosofia
ORIENTADOR OSCAR FEDERICO BAUCHWITZ
NATAL
2014
3
FICHA CATALOGRAacuteFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA DO CCHLA ndash UFRN
Catalogaccedilatildeo da Publicaccedilatildeo na Fonte
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Biblioteca Setorial do Centro de Ciecircncias Humanas Letras e Artes (CCHLA)
Fontes Teixeira Luiz Fernando
O conflito das fronteiras Metafiacutesica Negatividade e o Extremo Oriente
Luiz Fernando Fontes Teixeira ndash 2014
125 f -
Tese (doutorado) ndash Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro
de Ciecircncias Humanas Letras e Artes Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em
Filosofia
Orientador Prof Dr Oscar Federico Bauchwitz
1 Metafiacutesica 2 Negatividade (Filosofia) I Bauchwitz Oscar Federico
II Universidade Federal do Rio Grande do Norte III Tiacutetulo
RNBSE-CCHLA CDU 111
4
FOLHA DE APROVACcedilAtildeO
LUIZ FERNANDO FONTES TEIXEIRA
O CONFLITO DAS FRONTEIRAS
Metafiacutesica Negatividade e o Extremo Oriente
Tese aprovada como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do grau de Doutor em Filosofia no
Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da Universidade Federal da Paraiacuteba
Universidade Federal de Pernambuco e Universidade Federal do Rio Grande do Norte pela
seguinte banca examinadora
Orientador Prof Dr Oscar Federico Bauchwitz (presidente)
Departamento de Filosofia UFRN
Profa Dra Gisele Amaral dos Santos
Departamento de Filosofia UFRN
Dr Edrisi de Arauacutejo Fernandes
Departamento de Filosofia UFRNUnB
Prof Dr Leonel Ribeiro dos Santos
Faculdade de Letras Universidade de Lisboa
Profa Dra Claudia DrsquoAmico
Departamento de Filosofia Universidad de Buenos Aires
Prof Dr Ciacutecero Cunha Bezerra (suplente)
Departamento de Filosofia UFS
Profa Dra Claudia Pellegrini Drucker (suplente)
Departamento de Filosofia UFSC
Natal 30 de maio de 2014
5
AGRADECIMENTOS
Pelos anos de orientaccedilatildeo e suporte pela incansaacutevel e paciente instruccedilatildeo pelo sempre presente
companheirismo e por tornar possiacutevel o caminho percorrido agradeccedilo ao Prof Dr Oscar
Federico Bauchwitz Pela hospitalidade e cortesia pelos conselhos e indicaccedilotildees pelos diaacutelogos
e por abrir um novo horizonte especulativo para muito aleacutem do trabalho acadecircmico agradeccedilo
ao Prof Dr Graham Parkes
Pela oportunidade de discussatildeo e criacuteticas pela atenccedilatildeo na leitura do trabalho e pelos
inestimaacuteveis acreacutescimos agradeccedilo aos membros das bancas de qualificaccedilatildeo e defesa Profa
Dra Claudia DrsquoAmico Prof Dr Leonel Ribeiro dos Santos Dr Edrisi de Arauacutejo Fernandes e
Profa Dra Gisele Amaral dos Santos
Agradeccedilo ao Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da Universidade Federal
da Paraiacuteba Universidade Federal de Pernambuco e Universidade Federal do Rio Grande do
Norte pela aceitaccedilatildeo do projeto de tese doutoral Agradeccedilo agrave University College Cork (Colaacuteiste
na hOllscoile Corcaigh) pela recepccedilatildeo do estaacutegio sanduiacuteche Agradeccedilo ao Trinity College
Dublin (Colaacuteiste na Triacuteonoacuteide Baile Aacutetha Cliath) pela oportunidade de frequentar os
seminaacuterios e bibliotecas Agradeccedilo agrave Alianccedila Cultural Brasil-Japatildeo e agrave Biblioteca Joatildeo Hideo
Matsumoto e ao Instituto Goethe de Satildeo Paulo e sua biblioteca Agradeccedilo ao Instituto Paulista
de Sacircnscrito e ao Prof Dr Adriano Aprigliano Agradeccedilo ainda agrave Coordenaccedilatildeo de
Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior pelo fomento da tese doutoral e do estaacutegio no
exterior
Agradeccedilo agraves pessoas que direta ou indiretamente contribuiacuteram no processo de
composiccedilatildeo da tese Alan Marinho Lopes Dax Moraes Marcus Vinicius Cavalcante Dantas
Tulio Madson de Oliveira Galvatildeo Sara Barrera Rubio Bastien Duval Javier Coloacuten Joseph
Sexton Agnieszka Klęczar Rodrigo Ferreira Braga Abrahatildeo Marcelo Ferreira Braga e Carla
Almeida
Agradeccedilo especialmente agrave Thaiacutes Ricci Conesa pelo apoio e pela motivaccedilatildeo sem os
quais natildeo concluiria este trabalho Finally yet importantly agradeccedilo ao absoluto integral e
irrestrito apoio de meus pais Luiz Pinto Teixeira e Tereza Cristina Fontes
6
Eacute preciso ainda ter caos dentro de si para dar
luz a uma estrela danccedilante
Friedrich Nietzsche Assim falou Zaratustra
7
RESUMO
O conflito das fronteiras se desdobra como um percurso natural da histoacuteria do pensamento
humano Torna-se manifesto todavia apenas mediante um expliacutecito choque cultural que
evidencia distintas formataccedilotildees conceituais Pensar este conflito pode esclarecer os enlaces
responsaacuteveis pelo desenvolvimento do pensamento contemporacircneo Esta tese pretende analisar
em um primeiro momento a histoacuteria do pensamento enquanto metafiacutesica apresentando um
diagnoacutestico da maneira pela qual o Ocidente impinge sua loacutegica categoacuterica Por conseguinte
apresenta a tradiccedilatildeo da negatividade evidenciando um pensamento para aleacutem da ontologia
claacutessica mediante uma henologia e uma meontologia no neoplatonismo e na miacutestica medieval
Por fim expotildee o pensamento do Extremo Oriente como possiblidade de recepccedilatildeo
contemporacircnea da negatividade e escapatoacuteria para a formataccedilatildeo ocidentalizante da filosofia
vigente
Palavras-chave Fronteiras Metafiacutesica Negatividade Extremo Oriente
8
ABSTRACT
The conflict of borderlines unfolds itself as a natural path in history of human thought It
becomes clear only through an explicit cultural clash which conveys distinct conceptual
formatting Thinking this conflict might enlighten the bindings responsible for development of
contemporary way of thought This thesis intent to analyse in a first moment the history of
thought as Metaphysics presenting a diagnostic towards the way through which the West
impinges its categorical logic Thereafter presents the tradition of Negativity showing a
thinking beyond Classic Ontology through a Henology and a Meontology in Neoplatonism and
Medieval Mysticism At the end exposes the Far Eastern thought as possibility of contemporary
reception of Negativity and escape from the Westernizer formatting of contemporary
philosophy
Key words Frontiers Metaphysics Negativity Far East
9
ZUSAMMENFASSUNG
Der Konflikt der Grenzen entfaltet sich als einen natuumlrlichen Weg in der Geschichte des
menschlichen Denkens Es wird nur klar durch eine explizite Kulturkampf die unterschiedliche
konzeptionelle Formatierung vermittelt Denken dieses Konflikts koumlnnte die Bindungen fuumlr die
Entwicklung der zeitgenoumlssischen Denkweise verantwortlich zu erleuchten Diese These
versuchen zu analysieren in einem ersten Moment die Geschichte des Denkens als Metaphysik
praumlsentiert eine Diagnose auf die Moumlglichkeit durch die der Westen trifft seine kategorische
Logik Danach praumlsentiert die Tradition der Negativitaumlt zeigt ein Denken jenseits Klassische
Ontologie durch eine Henologie und Meontologie im Neuplatonismus und mittelalterliche
Mystik Am Ende macht der Fernost gedacht als Moumlglichkeit der zeitgenoumlssischen Rezeption
von Negativitaumlt und Flucht aus der Westler Formatierung der zeitgenoumlssischen Philosophie
Schuumlsselwoumlrter Frontiers Metaphysik Negativitaumlt Fernost
10
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 11
1 ONTOLOGIA A SUBSTANTIVACcedilAtildeO DO OCIDENTE E O PROBLEMA DA METAFIacuteSICA 28
ENQUANTO DELIMITACcedilAtildeO DAS FRONTEIRAS DO PENSAMENTO
2 O CAMINHO DA NEGATIVIDADE HENOLOGIA E MEONTOLOGIA E A ULTRAPASSAGEM 61
DOS LIMITES DA METAFIacuteSICA
3 O EXTREMO ORIENTE E O CONFLITO DAS FRONTEIRAS A FILOSOFIA COMPARADA 89
INTERCULTURAL COMO CHAVE DE LEITURA PARA ALGUNS PROBLEMAS DO
PENSAMENTO CONTEMPORAcircNEO
CONCLUSAtildeO 113
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 119
11
INTRODUCcedilAtildeO
Aos 16 de abril de 2010 sob a avaliaccedilatildeo de uma banca composta pelos professores Oscar
Federico Bauchwitz Gisele Amaral dos Santos e Acylene Maria Cabral Ferreira defendi a
dissertaccedilatildeo de mestrado intitulada A caminho da fronteira Embora possa ainda dedicar mais
dez anos agrave correta composiccedilatildeo estiliacutestica daquele texto aleacutem da estruturaccedilatildeo dos argumentos
laacute natildeo tatildeo bem encadeados imagino ter alcanccedilado o objetivo de tornar claro natildeo apenas o intuito
do trabalho mas o problema movimentado pela questatildeo do conflito fronteiriccedilo de uma filosofia
comparada intercultural por meio de uma histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica
A questatildeo ldquoentre Heidegger e os japonesesrdquo (subtiacutetulo da dissertaccedilatildeo) abordada ao longo
dos dois anos de mestrado acadecircmico referia-se a uma virada de pontos de vista se em um
primeiro momento os orientais se perguntavam o quecirc a filosofia ocidental podia oferecer ao
pensamento e desenvolvimento do Extremo Oriente em um segundo momento os ocidentais
passaram a se perguntar de que forma os japoneses podiam acrescentar agrave filosofia um elemento
meditativo perdido no periacuteodo da consumaccedilatildeo da teacutecnica moderna e do cientificismo desde
suas perspectivas milenares de pensamento reflexivo
Ao passo em que a pesquisa ia se desenvolvendo o trabalho caminhou paulatinamente
rumo ao impacto violento surtido pelo diaacutelogo entre limites bem delineados de um Ocidente
estruturalmente metafiacutesico e um Oriente especulativo quase inefaacutevel para um leitor ocidental
A conclusatildeo extraiacuteda do caminho percorrido entre os anos de 2008 e 2010 apresentou antes de
qualquer soluccedilatildeo a constataccedilatildeo da instalaccedilatildeo de uma impertinecircncia petrificada no seio da
filosofia contemporacircnea sobre a qual pouco se pode acrescentar na dissoluccedilatildeo de problemas
mas muito se pode desdobrar no que tange ao entrelaccedilamento do alcance de um grau distinto
de movimentaccedilatildeo das arquitetocircnicas conceituais
12
Embora tais palavras pareccedilam abstratas em demasia (e de fato satildeo) o foco atingido se
concentrou em uma inquiriccedilatildeo a respeito do pensamento da linguagem e da verdade a partir
de um inusitado enigma sobre a negatividade do impensaacutevel ou seja sobre o silecircncio que
emerge no preciso momento no qual o pensamento eacute estarrecido e a liacutengua cala
A armadilha construiacuteda a partir das muacuteltiplas tentativas de elaboraccedilatildeo de conceitos afeta
natildeo somente a formataccedilatildeo silogiacutestica do intelecto humano comum mas ainda as
particularidades dos diversos modos de expressatildeo geograficamente distintos Correndo o risco
de se tornar antes uma antropologia filosoacutefica do que propriamente uma histoacuteria e criacutetica da
metafiacutesica o trabalhou refletiu uma anaacutelise agrave proacutepria concepccedilatildeo pela qual se distingue uma
filosofia da outra execrando qualquer nacionalismo filosoacutefico e investigando as questotildees que
envolvem a existecircncia humana dentro de seu modo relacional com o ser e com o ambiente que
a cerca O resultado foi a apresentaccedilatildeo de uma filosofia comparada intercultural que aparece
natildeo simplesmente como um campo disciplina ou subaacuterea da filosofia mas antes como uma
maneira pela qual eacute possiacutevel pensar filosoficamente para aleacutem das fronteiras de uma mera
linguagem de primeira ordem Dentro deste contexto nasce a hipoacutetese do tema o conflito das
fronteiras a partir do pressuposto de uma abordagem aos temas centrais do pensamento
contemporacircneo sustentando a interculturalidade filosoacutefica como aporte central
A proposiccedilatildeo fundamental desta tese adveacutem de alguns questionamentos particulares e
pontuais em um fluxo semelhante ao da dissertaccedilatildeo de 2010 Em abril de 2009 enquanto ainda
trabalhava no texto do mestrado teve lugar no campus da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte o III Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica comissionado pelos professores Oscar
Federico Bauchwitz Jaimir Conte Maria da Paz Nunes de Medeiros e Markus Figueira da Silva
O evento marcava a consolidaccedilatildeo da linha de pesquisa em Metafiacutesica do Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Filosofia da universidade trazendo em sua terceira ediccedilatildeo o tema O que eacute
metafiacutesica Em homenagem aos oitenta anos da preleccedilatildeo homocircnima de Martin Heidegger
13
A conferecircncia pronunciada por Heidegger aos 24 de julho de 1929 foi preparada como
aula inaugural para a assunccedilatildeo da caacutetedra de filosofia que antes pertencera a Edmund Husserl
na Albert-Luumldwigs Universitaumlt Freiburg im Breisgau O escrito se tornou um dos mais
emblemaacuteticos conhecidos e discutidos textos de Heidegger Talvez o fator mais impactante da
preleccedilatildeo seja antes mesmo da abordagem temaacutetica o meacutetodo pouco usual conforme o qual o
questionamento eacute elaborado Heidegger inicia a aula dizendo que embora a questatildeo suscite a
expectativa de que se falaraacute sobre a metafiacutesica ele iraacute na verdade discutir uma questatildeo
metafiacutesica particular proporcionando uma movimentaccedilatildeo em seu interior e habilitando a
oportunidade para que a ela apareccedila por si soacute a partir do problema levantado (cf HEIDEGGER
1976 103) Deixar a metafiacutesica se apresentar por si soacute antes do que sobre ela discorrer
evidencia uma feiccedilatildeo um tanto distinta da abordagem de Heidegger ao problema uma de suas
marcas registradas todavia
Raras vezes a tradiccedilatildeo ocidental se deparou com tal niacutevel de heterodoxia no que tange
agrave instruccedilatildeo filosoacutefica (talvez apenas Platatildeo tenha cunhado semelhante meacutetodo ao perseguir o
pescador com o anzol antes de se aproximar da figura do sofista por exemplo ndash natildeo consigo
pensar em outras ilustraccedilotildees agora mesmo embora certamente elas existam) Uma linha de
raciociacutenio como esta aproxima-se muito mais de uma postura oriental
Durante o Coloacutequio aleacutem de retomar pela eneacutesima vez a leitura da preleccedilatildeo de
Heidegger lembro-me de me dedicar agrave leitura da claacutessica obra propedecircutica de Kaiten Nukariya
The Religion of Samurai (1913) a primeira obra sobre zen budismo publicada no Ocidente (em
liacutengua ocidental) Apoacutes uma breve introduccedilatildeo sobre a origem do budismo na Iacutendia e o percurso
de Śākyamuni Siddhārta Gautama (o Buddha Śākyamuni शाकयमनि) Nukariya relata a maneira
pela qual o monge Bodhidharma introduz o budismo na China destacando que seu meacutetodo era
inteiramente diferente dos outros instrutores de ensino ordinaacuterios
14
Sobre Bodhidharma Nukariya relata ldquoEle natildeo explicaria nenhum problema ao
estudante mas simplesmente ajudaacute-lo-ia a ser iluminado colocando-o um abrupto poreacutem eficaz
questionamentordquo (NUKARIYA 2006 10) Com esta metodologia tem iniacutecio a tradiccedilatildeo de
budismo chinecircs nomeada chrsquoan (dʑjen 禪) uma traduccedilatildeo do termo sacircnscrito dhyāna (धयाि) cujo
significado mais geral seria ldquomeditaccedilatildeordquo ou ldquopensamentordquo que futuramente seria lido na
pronuacutencia japonesa (くんよみ kun-yomi) do ideograma como zen (禅 ) Apoacutes expor esta
caracteriacutestica iacutempar do ensino de Bodhidharma Nukariya ainda relata uma breve histoacuteria na
qual um tal Shang Kwang havia requisitado ao mestre que ldquolhe pacificasse a menterdquo
Prontamente Bodhidharma teria respondido ldquoTraga-me aqui sua mente ante mim para que eu
a pacifiquerdquo e Shang Kwang teria replicado ldquomas isto eacute impossiacutevelrdquo recebendo em seguida
a resposta ldquoentatildeo jaacute pacifiquei sua menterdquo Shang Kwang foi instantaneamente iluminado
Certamente Martin Heidegger natildeo exige de seus ouvintes leitores e interlocutores uma
iluminaccedilatildeo tatildeo abrupta e desprovida de raciociacutenio loacutegico mas nem por isto suas reivindicaccedilotildees
satildeo menos ousadas e intensas ou sua meditaccedilatildeo menos profunda Heidegger propocircs diversas
reflexotildees que extraiacutedas de seu contexto especiacutefico configuram-se tatildeo inusitadas quanto as
passagens da tradiccedilatildeo chrsquoan ou zen sendo por vezes consideradas mesmo impertinentes Eacute o
caso de uma de suas mais arrojadas e emblemaacuteticas afirmaccedilotildees ldquoO mais grave eacute que natildeo
pensamosrdquo (HEIDEGGER 2002 6) Desconsiderando o sentido ao qual a sentenccedila pertence
certamente as palavras de Heidegger parecem uma afronta Todavia o leitor atento sabe que
Heidegger se refere agrave distinccedilatildeo entre um pensamento calculador (rechnende Denken) e um
pensamento meditativo (Besinnung) reportando-se ao velamento deste uacuteltimo e da supremacia
exclusiva do primeiro por meio do qual se faz ciecircncia e se daacute o desenvolvimento estrutural da
condiccedilatildeo tecnoloacutegica imperiosa Eacute justamente dentro deste fluxo que Heidegger afirma a
predominacircncia do pensamento cientiacutefico tambeacutem em Was ist Metaphysik
15
Para ingressar no interior da metafiacutesica Heidegger chama atenccedilatildeo ao fato de que a
existecircncia humana eacute hoje sobremaneira norteada pela ciecircncia Embora alguns opositores ainda
resistam agrave tal afirmaccedilatildeo natildeo eacute todavia difiacutecil convencecirc-los do contraacuterio argumentando em
favor da tese de Heidegger Natildeo se trata apenas de afirmar que o ser humano se apoia e confia
uacutenica e exclusivamente (quiccedilaacute mesmo cegamente) na ciecircncia como modo de desenvolvimento
e sustentaccedilatildeo da vida humana na Terra Antes disto e mais grave ainda trata-se de constatar
que a maneira pela qual o ser humano hoje pensa eacute tatildeo somente cientiacutefica mesmo em casos nos
quais o discurso supostamente se volta para um tema espiritual ou de feacute (ou qualquer outro
assunto) ndash a despeito de qualquer pretensa e torta teosofia eacute ainda a teologia a ciecircncia reinante
dos seminaacuterios sem embargo Independente do tema ou assunto da circunstacircncia ou
necessidade a maneira de proceder eacute jaacute sempre cientiacutefica sustentada por uma loacutegica inflexiacutevel
que imputa sua norma de que ldquosendo algo aquilo mesmo isto ou bem eacute ou bem natildeo eacute natildeo
havendo uma terceira opccedilatildeordquo
Em outras palavras parece ter se ocultado na mente humana qualquer outro modo de
pensar que natildeo seja o propriamente cientiacutefico Este modo cientiacutefico de pensar possui algumas
caracteriacutestica pelas quais se pode evidenciaacute-lo estritamente desde um triacuteplice entendimento que
compreende ldquoreferecircncia ao mundordquo ldquoposturardquo e ldquoirrupccedilatildeordquo Heidegger explica estes pontos
ldquoAquilo que na referecircncia ao mundo permanece eacute o ente em si mesmo ndash e mais nada Aquilo
que lidera toda postura eacute o ente em si mesmo ndash e nada mais Aquilo que faz acontecer a
discussatildeo investigativa da irrupccedilatildeo eacute o ente em si mesmo ndash e aleacutem disto nadardquo (IDEM OP CIT
105) A cientificidade da existecircncia humana se expressa mediante uma projeccedilatildeo ao ente e nada
mais Ao afirmar a determinaccedilatildeo da ciecircncia na vida e conduta humanas Heidegger quer deixar
ver sobretudo isto o fato de que hoje soacute eacute validado o discurso de um sujeito cujo objeto
cognosciacutevel eacute um ente este mesmo que subjacente obsta-lhe Dentro da relaccedilatildeo entre sujeito
e objeto toda uma tradiccedilatildeo se fundamenta e doravante prossegue da mesma maneira
16
Fazendo uma revisatildeo dos passos da histoacuteria do pensamento humano seria mais ou menos
faacutecil portanto imaginar como a partir da metafiacutesica claacutessica se desdobra o cientificismo
sobretudo tendo em vista a doutrina das Categorias de Aristoacuteteles aleacutem da tatildeo aclamada
ldquociecircncia do ente enquanto enterdquo Contudo natildeo eacute este o alvo de Heidegger Deixar a metafiacutesica
aparecer por si soacute deve contemplar a totalidade do questionamento proposto e natildeo um
historicismo vulgar Que todo raciociacutenio eacute regulado e direcionado pelo ente facilmente
constata-se Agora bem o que se passa com a outra parte da inquiriccedilatildeo qual seja o ldquonada
maisrdquo Heidegger formula a questatildeo ldquoA ciecircncia natildeo quer saber do nada Mas certamente em
sua permanecircncia ao manifestar sua proacutepria natureza chama o nada para ajudar O que ela
rejeita eacute necessaacuterio para classificaacute-la Que ambiacutegua essecircncia se revela aiacuterdquo (ID IBIDEM 106) Ao
perquirir o ente e aleacutem disto nada o elemento que confere a exatidatildeo de sua pesquisa eacute
auxiliado pelo ldquonadardquo ou seja trata-se disto e nada mais (por mais redundante e ambivalente
que soe ateacute mesmo um pouco non sense) Heidegger pergunta ldquoO que acontece com o nadardquo
(ID IBID) ou ainda para onde vai esse nada em meio agrave existecircncia cientiacutefica
Eacute justamente a inusitada apariccedilatildeo deste nada que revela o incocircmodo de um elemento
impensaacutevel e inexprimiacutevel que natildeo se dobra ante agrave relaccedilatildeo sujeito-objeto Natildeo eacute preciso aqui
destrinchar todo o caminho percorrido por Heidegger em Was ist Metaphysik Trata-se de um
texto bastante lido e amplamente comentado Basta apenas pontuar a sentenccedila central da
conferecircncia (ou a pergunta-condutora a Leitfrage) por meio da qual emerge a resposta agrave
questatildeo ldquoo que eacute metafiacutesicardquo ldquoPor que haacute absolutamente o ente e natildeo antes nadardquo (ID IBID
122) O extraordinaacuterio da questatildeo eacute justamente a capacidade do ser humano em por ela
perguntar A capacidade de questionar ldquopor que natildeo nadardquo define uma disposiccedilatildeo fundamental
da existecircncia quiccedilaacute mesmo aquela ocultada pelo modo cientiacutefico de existir (ou seja
paradoxalmente este mesmo modo eacute responsaacutevel por evidenciar o que nele se perde)
17
A disposiccedilatildeo que regula a eleiccedilatildeo do modo cientiacutefico de pensar tem em vista
salvaguardar o humano do abismo (da falta de fundamento) que se abre quando o nada emerge
silencia o discurso e joga o ser humano em uma situaccedilatildeo incocircmoda uma anguacutestia profunda
Quase como um mestre zen Heidegger deixa a metafiacutesica se abrir natildeo pela pergunta nem
sequer pela acircnsia de prover ao interlocutor (ou a si mesmo) uma resposta mas pela simples
possibilidade e capacidade de perguntar A metafiacutesica neste sentido perdura antes como uma
decisatildeo Ao que parece por este motivo Heidegger cita um trecho de Eacutedipo em Colonos de
Soacutefocles no posfaacutecio agrave preleccedilatildeo (em 1943) destacando os versos (em sua traduccedilatildeo particular
por mim aqui pobremente e quiccedilaacute mesmo irresponsavelmente adaptada) que dizem
ἀλλ᾽ ἀποπαύετε μηδ᾽ ἐπὶ πλείω
θρῆνον ἐγείρετε˙
πάντως γὰρ ἔχει τάδε κῡρος
Mas paremos e nunca mais a partir de agora
despertaremos o lamento
Em todos os lugares se deteacutem o evento
assegurando-lhe uma decisatildeo pela conclusatildeo (ID IBID 312)
A ldquodecisatildeo pela conclusatildeordquo coloniza todos os lugares e se deteacutem a partir de agora em uma
posiccedilatildeo da qual natildeo mais se sairaacute A anguacutestia revelada a partir do pensamento em torno ao
nada manifesta os limites da linguagem e vislumbra o destino do ente no ser em sua plenitude
e predominacircncia Mas para aleacutem da constataccedilatildeo da indigecircncia da linguagem haacute todavia uma
possibilidade de abordar efetivamente esse nada Como eacute possiacutevel pensar para aleacutem da
delimitaccedilatildeo entificante da referecircncia ao mundo da postura e da irrupccedilatildeo Haacute um caminho de
ultrapassagem e superaccedilatildeo possiacutevel ainda nos dias de hoje
18
Ao passo em que avanccedilava nas leituras e Heidegger e em algumas outras esta se tornou
a pergunta-chave pela qual imaginava atingir certo direcionamento temaacutetico A despeito da
disposiccedilatildeo de humor apresentada na conferecircncia bem como das consideraccedilotildees do posfaacutecio de
1943 os trabalhos de Heidegger dos anos de 1930 em diante datildeo a entender um claro
direcionamento pelo qual os elementos abandonados pela entificaccedilatildeo do pensamento podem ser
evidenciados qual seja a partir da poesia Os versos de Soacutefocles segundo o proacuteprio Heidegger
ldquoa uacuteltima poesia do uacuteltimo poeta gregordquo natildeo estatildeo ali dispostos sem motivo Tambeacutem natildeo eacute
sem razatildeo que a partir de aiacute haacute uma incansaacutevel busca pela poesia de Friedrich Houmllderlin (aleacutem
de Georg Trakl Stephan George Rainer Maria Rilke e de outros poetas escolhidos por
Heidegger) Ateacute certo ponto eacute possiacutevel afirmar que Heidegger encontra na poesia a
possibilidade de superar a linguagem por meio da proacutepria linguagem Em alguns outros
momentos uma meditaccedilatildeo de teor semelhante aparece como no encontro entre Heidegger e os
japoneses (como apresentei na dissertaccedilatildeo de 2010) Contudo restava ainda buscar os modos
de reflexatildeo que natildeo simplesmente podiam ir aleacutem da expressatildeo da ciecircncia do ente enquanto
ente mas ainda colocaacute-la em questionamento mediante outros meacutetodos
Foi na abertura do III Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica que minhas inquietaccedilotildees
comeccedilaram a se asseverar e ganhar corpo para o que viria a ser esta tese A conferecircncia
inaugural do evento foi sobremaneira marcante neste processo O professor Gilvan Fogel da
Universidade Federal do Rio Janeiro havia sido convidado para encerrar o primeiro dia de
evento Ele apresentou naquela noite a conferecircncia O que eacute metafiacutesica Como ele mesmo frisou
ldquonatildeo a pergunta mas a respostardquo Havia sem embargo a intenccedilatildeo de responder a pergunta
em um certo direcionamento eacute claro O texto vinha ainda acompanhado de um subtiacutetulo (com
o qual foi publicado como tiacutetulo oficial alguns anos depois diga-se de passagem) Sobre a
metafiacutesica ou a respeito do jejum O mote para o subtiacutetulo o proacuteprio professor o explica na
passagem inicial do texto que gostaria de citar por completo agora mesmo
19
O subtiacutetulo pode soar estranho insoacutelito e natildeo muito seacuterio Mas pelo que ele insinua
pretende anunciar algo seacuterio mesmo muito seacuterio a saber a metafiacutesica E a inspiraccedilatildeo
ou a motivaccedilatildeo que propicia o encaminhamento para a questatildeo anunciada a
metafiacutesica vem de uma obra igualmente seacuteria muito seacuteria ainda que se possa melhor
que se deva dela se ocupar tambeacutem com grandes e gostosas gargalhadas ndash aquelas que
no destampar do riso sacudindo a barriga bem solta e largada deixam escorrer
viacutesceras pela boca afora Estou me referindo ao Dom Quixote o Engenhoso Fidalgo
Dom Quixote lsquode la Mancharsquo ndash o ldquoda Triste Figurardquo
Entre as poesias que preludiam a primeira parte e que homenageiam seus personagens
maiores temos o uacuteltimo que eacute um diaacutelogo em forma de soneto entre Babieca o
cavalo de El Cid e Rocinante o grande rocim o pangareacute erado de Dom Quixote A
certa altura do diaacutelogo-soneto Babieca pergunta ldquoSeraacute tolice amarrdquo e Rocinante
responde ldquoNatildeo eacute muito prudenterdquo Babieca retruca ldquoEstaacutes metafiacutesicordquo E Rocinante
contesta enfaacutetico ldquoEacute que natildeo comordquo (FOGEL 2011 101)
A passagem sugere que a metafiacutesica eacute antes de tudo coisa de fome Por isto ldquoa respeito do jejumrdquo
denuncia a indisposiccedilatildeo que envolve a metafiacutesica A metafiacutesica eacute portanto certo incocircmodo que
eacute tambeacutem necessidade premente decorrente de certa privaccedilatildeo A partir disto Fogel delineia o
tipo de jejum ao qual se refere natildeo se trata de um jejum nutricional alimentiacutecio mas jejum de
vida conforme ele mesmo diz ldquo() natildeo vida no sentido bioloacutegico mas no sentido banal e
corriqueiro como falamos da vida de ldquonossa vidardquo ndash que ela eacute boa ou ruim ou um buracordquo
(IDEM IBIDEM 102) Esta vida a vida imanente a vida do cotidiano do dia-a-dia esta mesma
que ocupa o tempo e o espaccedilo sofre priva-se absteacutem-se Esta abstenccedilatildeo e privaccedilatildeo satildeo a
condiccedilatildeo pela qual reverbera sua constituiccedilatildeo enquanto sujeito ndash e nasce aiacute uma interpretaccedilatildeo
do que eacute enfim metafiacutesica A partir da conferecircncia de Fogel aleacutem de algumas outras
consideraccedilotildees comecei a ponderar a maneira pela qual abordaria o problema
20
Natildeo por meio de uma definiccedilatildeo conceitual acontecimento histoacuterico ou muacutetuo
consentimento temaacutetico mas por meio de uma experiecircncia de pensamento que sem deixar de
lado nenhum dos elementos supracitados configura-se antes como algo intriacutenseco agrave proacutepria
natureza do pensar Ponderando as consideraccedilotildees da conferecircncia de Heidegger a metafiacutesica se
deixa mostrar como uma decisatildeo pela conclusatildeo Um iacutempeto maior do ser humano em
resguardar sua condiccedilatildeo de pacificidade A humanidade teme o caos teme o desalinho receia
o incoacutegnito e inexprimiacutevel Elege por isto seu caminho de seguranccedila com aquilo que lhe eacute
papaacutevel o ente enquanto ente e nada mais Nada quer saber do nada que nada lhe oferece aleacutem
de um indisposto silecircncio um insoacutelito vazio Mediante esta postura embora sob o risco de
ocultar algo em si mesmo que talvez lhe sirva para alcanccedilar siacutetios recocircnditos do misteacuterio de
sua proacutepria existecircncia constitui-se o ser humano um metafiacutesico Sem embargo eacute preciso abster-
se de algo em prol disto ou daquilo que se lhe afigura mais propiacutecio ao momento Fogel enxerga
isto como privaccedilatildeo como jejum como fome Fica muito claro em sua interpretaccedilatildeo o caraacuteter
inflexiacutevel da decisatildeo pela conclusatildeo sobretudo quando traz agrave luz o curioso caso de Vicent van
Gogh
Fogel cita uma carta que van Gogh teria enviado em maio de 1888 a seu irmatildeo Theacuteo
onde descreve sua nova moradia e ao mesmo tempo atelier afirmando que o local eacute pouco
atraente para desenvolver qualquer tipo de flerte ou paquera acrescentando que dificilmente
enxerga como compatiacuteveis o trabalhar e o farrear (faire la noce) A verdade eacute que van Gogh
natildeo possui outra opccedilatildeo senatildeo se privar da diversatildeo do faire la noce natildeo porque eacute asceta ou
abstecircmio nem porque precisa dedicar mais tempo ao seu trabalho ou pagar suas contas (todos
sabem da condiccedilatildeo por vezes paupeacuterrima na qual ele se encontrou ao longo de seu percurso)
mas por ser artista por ser pintor por pintar Urge no artista uma realidade que parece muito
mais real que a vida comum na qual o farrear remete ao contentamento agrave felicidade Natildeo viver
a vida para van Gogh seria natildeo pintar
21
Se viver a vida eacute buscar este contentamento esta felicidade entatildeo van Gogh vive para
natildeo-viver Natildeo-viver se torna paradoxalmente a expressatildeo maacutexima da vida metafisicamente
entendida Fogel completa ldquoE por que natildeo viver este natildeo-viver seria ingratidatildeo Seria isso a
saber a distacircncia o agrave parte um dom um presente uma graccedilardquo (IDEM IBIDEM 105)
acrescentando ainda ldquoA metafiacutesica desde que jejum abstinecircncia de vida de viver seria
igualmente muita vida e natildeo cumpri-la natildeo realizaacute-la isto eacute natildeo pensar uma grande
ingratidatildeordquo (ID IBID) e por fim sugerindo ldquoAqui precisa-se confessar viver natildeo eacute preciso
Pintar pensar fazer quadros fazer metafiacutesica ndash isso eacute precisordquo (ID IBID) Ressalte-se o tom das
inquiriccedilotildees da interrogaccedilatildeo acompanhada pela exclamaccedilatildeo A precisatildeo da qual fala fazendo
menccedilatildeo a Fernando Pessoa eacute a necessidade de justeza de ser preciso e acurado destro
rigorosamente alinhado ao fazer metafiacutesica Assim se configura algo muito iacutentimo e sem
embargo inevitaacutevel na natureza humana
Fogel prossegue sua exposiccedilatildeo chamando ao diaacutelogo o Zaratustra de Friedrich
Nietzsche especificamente a seccedilatildeo intitulada Da Visatildeo e do Enigma na qual reincide o anuacutencio
da famosa doutrina do Eterno Retorno citando o trecho que diz
O homem eacute todavia o mais corajoso animal assim ele supera todo e cada animal Com
o jogo sonoro supera ele tambeacutem a dor Mas a dor humana eacute a dor mais profunda A
coragem tambeacutem indica a tontura morte em abismos e onde estaria o homem senatildeo
em abismos Ele natildeo vecirc a si mesmo ndash vecirc abismos (NIETZSCHE 2005 119)
Para Fogel o ldquoverrdquo natildeo denuncia uma observaccedilatildeo circunvisatildeo ou vislumbre mas antes um
acontecimento uma iluminaccedilatildeo um tornar visiacutevel Torna-se visiacutevel o abismo o sem fundo
sem fundamento Ao que parece quanto mais o ser humano contempla sua proacutepria existecircncia
mais sem chatildeo fica maior eacute a falta de fundamento e com maior radicalidade se abre um abismo
frente aos seus peacutes
22
Eacute possiacutevel todavia prosseguir caminhando ao lado de Nietzsche e Heidegger bem como
por meio das reflexotildees e interpretaccedilotildees oferecidas por Fogel buscando alcanccedilar uma feiccedilatildeo da
vida humana que permita descortinar a proveniecircncia metafiacutesica de seu percurso e ateacute mesmo
suscitando uma ultrapassagem deste fenocircmeno Contudo eacute necessaacuterio ainda precisar com maior
cuidado os termos contidos na questatildeo Faz parte do labor filosoacutefico se afundar mais e mais em
algo que por si soacute jaacute eacute bastante fundo
Natildeo apenas os pensamentos de Nietzsche e Heidegger oferecem uma especulaccedilatildeo de
formidaacutevel profundidade difiacutecil de ser absorvida em primeira matildeo como tambeacutem por vezes
pode se mostrar demasiado complexo empreender um rastreamento do sentido originaacuterio das
palavras e sentenccedilas salvo mediante uma anaacutelise completa (empresa complicadiacutessima
provavelmente impossiacutevel) de suas obras Mesmo assim talvez ainda natildeo se mostre com
suficiente nitidez se natildeo houver de antematildeo uma explanaccedilatildeo das fontes e referecircncias cruzadas
Com estas ideias em mente buscando avanccedilar cada vez mais no tema e sobre ele meditar
com cada vez mais dedicada atenccedilatildeo e profundidade tentando ampliar com ferocidade o
vocabulaacuterio (para fazer minhas as palavras de Marco Lucchesi) outro escrito me sobreveio
durante o processo de composiccedilatildeo das hipoacuteteses contidas neste trabalho Em Nihilismo e
Neoplatonismo (2003) Oscar Federico Bauchwitz traccedila algumas linhas que especificam a
condiccedilatildeo por meio da qual o problema efetivamente se apresenta
Haacute no texto de Bauchwitz tambeacutem um necessaacuterio retorno a Nietzsche e Heidegger Natildeo
apenas dentro do contexto de um estudo da metafiacutesica enquanto histoacuteria intelectual mas ainda
constatando os tempos onde ela se apresenta como formataccedilatildeo do modo de ldquoagir-pensarrdquo torna-
se imprescindiacutevel resgatar a lembranccedila de que ldquo() com Nietzsche se estabelece uma criacutetica da
metafiacutesica que acaba por homologar o seu oacutebitordquo (BAUCHWTIZ 2003b 169) Como explica
Bauchwitz a declaraccedilatildeo da morte da metafiacutesica eacute aquela mesma da morte do platonismo
cristianismo niilismo e outros sinocircnimos para o mesmo fenocircmeno
23
Esta morte natildeo eacute todavia apenas uma declaraccedilatildeo da inexistecircncia corrente do pensamento
metafiacutesico senatildeo sua consumaccedilatildeo total e absoluta A ldquociecircncia do ente enquanto enterdquo entifica
tudo aquilo que outrora foi nomeado vida (φύσις) pelos gregos dos periacuteodos arcaico e claacutessico
ndash das coisas ao redor aos pensamentos e aos deuses A entificaccedilatildeo do mundo em torno eacute sem
sombra de duacutevidas a maneira pela qual a ciecircncia vigente concebe o mundo configurando o que
Heidegger havia chamado de ldquoreferecircncia ao mundordquo A entificaccedilatildeo do pensamento por sua vez
denota a ldquoposturardquo tambeacutem mencionada por Heidegger aquela mesma segundo a qual haacute uma
maneira ldquocorretardquo de pensar Ao passo que a entificaccedilatildeo dos deuses um pouco mais complicada
apresenta-se como ldquoirrupccedilatildeordquo na qual a circunvisatildeo resultante dos dois elementos acima
mencionados denuncia a morte de deus a fuga dos deuses o viver sem o divino sem o
iluminado sem o deslumbre Desatados os laccedilos entre ser humano e divindade Bauchwitz
questiona ldquoO que natildeo pode o homem modernordquo (IDEM IBIDEM 170) questionamento que
poderia ainda ser vertido nos termos (mais ou menos) de Dostoievsky ldquose deus morreu entatildeo
tudo eacute permitidordquo ou ainda nos (mais ou menos novamente) de Heidegger ldquose apagou da
histoacuteria universal o esplendor da divindade Essa eacute a eacutepoca da noite do mundordquo Contudo para
Bauchwitz perdura algo no labor filosoacutefico que torna liacutecito novamente regressar agrave questatildeo Ele
explica que ldquoResgatar a forccedila mais originaacuteria das palavras eacute o ofiacutecio do filoacutesofo Por isso
dizemos que a miacutestica se mostra no fechar de olhos no fechar da bocardquo (ID IBID 173) Recordo-
me acompanhando os seminaacuterios matinais do professor Bauchwitz de ouvir certa vez a
sentenccedila ldquoo miacutestico estaacute sempre em conflito com a linguagemrdquo Conflito ou confronto natildeo me
lembro muito bem Havia de fato escrito a frase literalmente ao peacute da paacutegina de algum livro
(ou alguma fotocoacutepia) que agora mesmo esqueccedilo qual era e natildeo consigo encontrar
Independente das palavras exatas o que se apresenta no texto de Bauchwitz eacute a sugestatildeo de um
caminho para este resgate por meio de um conflito o confronto suscitado pela miacutestica
24
Bauchwitz escreve ldquoO miacutestico eacute em primeiro lugar aquele que acolhe o misteacuterio dentro
de si recolhendo em silecircncio o sentido oculto da realidade soacute depois eacute que o silecircncio rompe a
barreira dos dentes para mostrar-se linguagemrdquo (ID IBID) E ainda prossegue especificando que
ldquoPor isso a miacutestica eacute uma experiecircncia radical da liberdade proacutepria Abrindo matildeo de um mundo
que clama sua atenccedilatildeo o miacutestico encontra-se com o que nele eacute totalmente incoacutegnito e
incognosciacutevel um eu que se mostra como puro nadardquo (ID IBID) A maneira pela qual Bauchwitz
iraacute desdobrar a explicaccedilatildeo destas sentenccedilas sobremaneira enigmaacuteticas percorreraacute trecircs
pensadores que marcam a tradiccedilatildeo do neoplatonismo e da chamada miacutestica medieval quais
sejam Pseudo-Dioniacutesio Areopagita Joatildeo Escoto Eriuacutegena e Mestre Eckhart Contudo o que
havia me saltado aos olhos antes da eleiccedilatildeo temaacutetica autoral ou metodoloacutegica havia sido a
sentenccedila ldquoum eu que se mostra como puro nadardquo Jaacute havia encontrado semelhante formulaccedilatildeo
todavia nunca em autores ocidentais Remeti diretamente a maneira pela qual a tradiccedilatildeo
mahāyāna do budismo do leste asiaacutetico havia compreendido a noccedilatildeo do natildeo-si-mesmo ou natildeo-
ego (anātman अितमि) como dissoluccedilatildeo do eu por meio da tensatildeo entre forma (ou fenocircmeno ou
ainda aparecircncia rūpa रप) e nada (ou vacuidade śūnyatā शनयता) Estas ideias derivam
diretamente do chamado Cacircnone Pāḷi tendo sido transmitidas em sacircnscrito pelo Sūtra do
Coraccedilatildeo (Prajntildeāpāramitā Hṛdaya परझञापारनमताहरदय) ateacute alcanccedilarem formas mais refinadas no
budismo chrsquoan e no zen budismo japonecircs assumindo as configuraccedilotildees de ldquoformardquo ou
ldquoaparecircnciardquo enquanto shiki (色) e ldquonadardquo ou ldquovacuidaderdquo enquanto kū (空) elementos centrais
do pensamento da filosofia japonesa contemporacircnea da Escola de Kyōto (e que tambeacutem havia
abordado brevemente em minha dissertaccedilatildeo de mestrado) Tornou-se imperioso investigar ateacute
que ponto tais ideias se aproximam ou comungam de princiacutepios convergentes aleacutem da maneira
como elas repercutem em suas tradiccedilotildees e particularidades Mais uma vez encontrava-me frente
ao sem-fim nuacutemero de possibilidades comparativas e complementares
25
Contudo temia o risco de cair no engodo certa vez denunciado por Immanuel Kant
quando afirmou em seus Prolegomena zu einer jeden kuumlnftigen Metaphyysik (1783) que ldquo()
dificilmente se espera que natildeo seja possiacutevel descobrir analogias para cada nova ideia entre ditos
de eras passadasrdquo (KANT 1911 7) natildeo havendo grande meacuterito nisto e sendo necessaacuterio admitir
que estes historiadores da filosofia ocupados com tal empreendimento devam antes aguardar
que os ldquoverdadeiros filoacutesofosrdquo esgotem as fontes da razatildeo Sob pena de realizar uma mera
comparaccedilatildeo friacutevola (embora com a consciecircncia de que passo longe de ser um ldquoverdadeiro
filoacutesofordquo ao menos no sentido Kantiano ndash talvez o seja em outro digamos mais Ginsbergiano
de pura pretensatildeo mas certamente natildeo muito talento) ocupei-me em corretamente designar o
problema que me afligia de modo que fosse possiacutevel corretamente endireitar o roteiro da tese
Era preciso encontrar um mote mesmo que ele natildeo deixasse ver claramente os passos a serem
percorridos mas que provessem alguma direccedilatildeo
Tendo isto em vista natildeo podia negar que o interesse pelo que ousei chamar de ldquoconflito
das fronteirasrdquo crescia a partir de um ldquopar de viacutergulasrdquo que aparentemente haviam escapado agrave
anaacutelise da histoacuteria do pensamento Em outras palavras um determinado momento no qual o
transcurso metafiacutesico foi levemente desviado em uma guinada espontacircnea e natural como um
marinheiro que sutilmente move o leme para a esquerda ou para direita ao perceber o advento
de uma portentosa onda logo atraacutes de si soltando o motor e deixando o barco ser levado pelo
mar ndash saacutebia decisatildeo em momentos de tormenta (passei por esta situaccedilatildeo certa vez em mar
aberto transitando entre Paraty e uma praia recocircndita Pouso do Cajaiacuteba se natildeo me falha a
memoacuteria gostaria de poder descrever em pormenores a experiecircncia que seria proveitosa ao
leitor em termos ilustrativos mas estava muito enjoado no barco para congregar detalhes
miacutesticos em minha massa cinzenta) E eram momentos de tormenta Como poderiam natildeo ser
Sendo assim estabeleci um conveniente itineraacuterio (ao menos sob meu ponto de vista) que
compartilho antes de iniciar o trabalho
26
O primeiro passo importante eacute estabelecer dentro de quais termos se apresenta a
metafiacutesica pela qual se nomeia a histoacuteria do pensamento ocidental O primeiro capiacutetulo da tese
intitulado Ontologia a substantivaccedilatildeo do Ocidente e a delimitaccedilatildeo das fronteiras do
pensamento ocupa-se de tal apresentaccedilatildeo e eacute na verdade bastante simples apesar do tiacutetulo
pomposo A despeito da abordagem histoacuterico-conceitual desdobrada em um primeiro momento
o capiacutetulo segue em consonacircncia com a avaliaccedilatildeo de Martin Heidegger assumindo-o como
interlocutor e inteacuterprete da histoacuteria e criacutetica da metafiacutesic Haacute aqui uma ecircnfase nas leituras por
meio das quais Heidegger caracterizou de maneira direta a passagem de uma fisiologia grega
claacutessica (por ele nomeada ldquopensamento originaacuteriordquo) para o acircmbito da ontologia latina e o modo
conforme o qual a proacutepria ideia de ldquoserrdquo eacute compreendida de maneira tatildeo somente substantivada
a partir de seu particiacutepio presente ldquoenterdquo Um necessaacuterio retorno cronoloacutegico-regressivo eacute
estabelecido do fim ao iniacutecio da modernidade pontuando autores como Jacob Lorhard e
Francisco Suaacuterez Todavia o objetivo principal do capiacutetulo eacute compreender este modo de
substantivaccedilatildeo e quais as consequecircncias disto para o pensamento em um sentido geral (a
delimitaccedilatildeo de suas fronteiras no final das contas) sem nunca perder de vista o peso aristoteacutelico
da designaccedilatildeo e realizando algumas especificaccedilotildees sobre isto
O segundo capiacutetulo intitulado O caminho da negatividade henologia e meontologia e
a ultrapassagem dos limites da metafiacutesica pretende caracterizar efetivamente essa nomeada
ldquonegatividaderdquo Negatividade que natildeo eacute simplesmente predominacircncia de um ldquonatildeordquo ou partiacutecula
de privaccedilatildeo mas antes assunccedilatildeo de um oxiacutemoro o auscultar de um inaudito Desenvolve-se
como argumento central por meio do qual se evidencia as estruturas baacutesicas de um pensamento
radical a evidenciaccedilatildeo de uma meditaccedilatildeo que jaacute natildeo eacute mais norteada pelo ldquoenterdquo mas sim pelo
ldquounordquo (henologia) neoplatocircnico ou mesmo por uma profunda meditaccedilatildeo em torno ao ldquonadardquo
(meontologia) presentes no neoplatonismo e sobremaneira evidentes no pensamento miacutestico
27
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo nomeado O Extremo Oriente e o conflito das fronteiras a
filosofia comparada intercultural como chave de leitura para alguns problemas do pensamento
contemporacircneo pretende conectar os pontos e resgatar o sentido da tese O capiacutetulo traz uma
breve apresentaccedilatildeo da chamada Escola de Kyōto e a constituiccedilatildeo da filosofia japonesa
contemporacircnea Este eacute o momento no qual eacute possiacutevel observar a recepccedilatildeo contemporacircnea da
filosofia ocidental (tanto dentro da tradiccedilatildeo metafiacutesica quanto ldquoforardquo dela na dita negatividade)
e o diaacutelogo (e siacutentese) com o mundo do Extremo Oriente O objetivo eacute portanto pensar em
comunhatildeo com os pensadores da Escola de Kyōto com especial atenccedilatildeo para Keiji Nishitani
(西谷 啓治) observando suas propostas para anaacutelise e resoluccedilatildeo dos problemas de filosofia
contemporacircnea e buscando um esclarecimento a respeito dos termos indicados
Ao fim e ao cabo a intenccedilatildeo aqui eacute convidar os leitores ao diaacutelogo intercultural
apresentando em um diaacuterio de minhas leituras diferentes nuances e pontos de vista a respeito
de algumas questotildees especiacuteficas e ousando um diagnoacutestico da filosofia contemporacircnea bem
como uma vaacutelvula de escape para a atual condiccedilatildeo do pensamento filosoacutefico Caso a empreitada
logre ecircxito acredito que uma nova conversa se abra e novas ideias venham agrave mente Sem
embargo trata-se de uma composiccedilatildeo acerca de um conflito o conflito das fronteiras
28
ONTOLOGIA A SUBSTANTIVACcedilAtildeO DO OCIDENTE E O PROBLEMA DA METAFIacuteSICA
ENQUANTO DELIMITACcedilAtildeO DAS FRONTEIRAS DO PENSAMENTO
Embora ontologia tenha um sentido bastante amplo (que seraacute melhor explorado ao longo do
capiacutetulo) aleacutem de uma sem-fim variedade de definiccedilotildees distintas de autor para autor (algumas
das quais seratildeo eleitas e apresentadas aqui) entende-se o conceito (de forma simplificada) como
um discurso capaz de reunir em uma unidade a polissemia do verbo ser O resultado eacute a
centralizaccedilatildeo conceitual de qualquer ulterior doutrina a partir da definiccedilatildeo desenrolada desde
sua compreensatildeo Por substantivaccedilatildeo do Ocidente refiro-me aqui agrave corrente historial
responsaacutevel por compreender o verbo ser de modo substantivado a partir de seu particiacutepio
presente ldquoenterdquo A intenccedilatildeo do capiacutetulo portanto concentra-se na investigaccedilatildeo do processo
decorrido dessa substantivaccedilatildeo e quais as consequecircncias disto para o pensamento ocidental e
contemporacircneo em uma concepccedilatildeo geral no que diz respeito agrave delimitaccedilatildeo das fronteiras do
pensamento
Em primeiro lugar gostaria de abrir uma interlocuccedilatildeo com o professor Charles H Kahn
da University of Pennsylvania dada a relevacircncia e pertinecircncia de sua obra The Verb lsquoBersquo in
Ancient Greek (1973) para o desenvolvimento do capiacutetulo Antes de desdobrar em pormenores
seu estudo bastante extenso e detalhado Kahn sustenta a tese de que haacute uma relatividade
linguiacutestica referente ao verbo ser (cf KAHN 2003 1-3) Em sua introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo de 2003 (cf
IDEM IBIDEM vii) Kahn se reposiciona em relaccedilatildeo ao argumento expresso em sua obra clamando
ser uma posiccedilatildeo bastante defensiva e ldquofora de modardquo para os tempos atuais Ainda assim trata-
se de uma hipoacutetese bastante interessante
29
A posiccedilatildeo de Kahn (cf IBID 1-3) se apoia na afirmaccedilatildeo de Angus C Graham1 acerca
do mesmo verbo dentro do chinecircs claacutessico onde o sinoacutelogo posiciona o ser relativamente agrave
regra gramatical inerente agrave formulaccedilatildeo de uma determinada sentenccedila significando portanto a
impossibilidade de uma doutrina universal acerca do ser compatiacutevel com liacutenguas distintas
(como o grego o aacuterabe ou o chinecircs) Isto concorda em absoluto com a ideia de que no proacuteprio
grego claacutessico e nas liacutenguas indo-europeias em geral conforme a menccedilatildeo feita por Kahn a
Eacutemile Benveniste2 natildeo haacute em hipoacutetese alguma a implementaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo universal ou
condiccedilatildeo necessaacuteria envolta na distribuiccedilatildeo dos significados do verbo ser Haacute sim e Benveniste
endossa a ideia uma predisposiccedilatildeo da linguiacutestica grega agrave ldquovocaccedilatildeo filosoacutefica da noccedilatildeo de serrdquo
Vocaccedilatildeo esta segundo Kahn muito geral e diversificada no desenvolvimento sistemaacutetico de
seu conceito desde Parmecircnides ateacute Aristoacuteteles e de uma maneira mais sistemaacutetica dos Estoicos
ateacute Plotino Em siacutentese Kahn sustenta que a tese de um determinismo linguiacutestico do ser eacute
claramente falsa ou seja mesmo em falantes de uma mesma liacutengua natildeo eacute possiacutevel encontrar
uma mesma doutrina em torno ao ser como eacute possiacutevel ver nos pensamentos distintos de Platatildeo
e Aristoacuteteles Epicuro e Plotino
Todavia natildeo haacute duacutevidas para Kahn a respeito das condiccedilotildees intriacutensecas da liacutengua de um
autor em sua atividade intelectual seus recursos e suas tendecircncias Ele afirma que natildeo haveria
possibilidade de especificar a determinaccedilatildeo ontoloacutegica se o verbo grego εἰμί natildeo fosse provido
do particiacutepio presente τὸ ὄν ou se natildeo houvesse a derivaccedilatildeo nominal ndashία da qual redunda a
noccedilatildeo de οὐσία Ou ainda a classe de morfemas que compreende ἐστί εἶναι e ἐών derivadas
do indo-europeu ndashes Satildeo as formas nominais do verbo que permitem segundo Kahn (cf IBID
451) natildeo soacute uma clara expressatildeo senatildeo tambeacutem a tematizaccedilatildeo do conceito como um toacutepico
distinto para a reflexatildeo filosoacutefica
1 Angus C Graham ldquoBeing in Classical Chineserdquo In The Verb lsquoBersquo and its Synonyms John W M Verhaar (ed)
Dordrecht Holland D Reidel 1967 1-39 2 Eacutemile Benveniste ldquoCateacutegories de penseacutee et cateacutegories de languerdquo Les Eacutetudes philosophiques n 4 (out-dez
1958) PUF Paris 419-429
30
Kahn fala dos primeiros usos do verbo εἰμί (em formas participiais) em sua
possibilidade de representar qualquer construccedilatildeo copulativa (natildeo muito diferente de qualquer
outro particiacutepio em grego) adaptando-se agraves construccedilotildees coordenadas ou subordinadas (em
nuacutemero gecircnero e causa) e expressando diferentes nuances (concessiva causal adversativa)
Contudo frisa haver ainda outras expressotildees para aleacutem do caso copulativo como nos casos
vital veriacutedico ou existencial Quando o verbo aparece dentro da expressatildeo existencial e emerge
a necessidade de indicar uma referecircncia ou seja um caso gramatical locativo surgem as formas
do uso filosoacutefico do ser como τὰ ὄντα o berccedilo para o desenvolvimento da ontologia O sentido
de τὰ ὄντα apareceria em Aristoacuteteles de acordo com Kahn (cf ID IBID 457) em primeira matildeo
como ldquoo que eacuterdquo (o caso os fatos ou eventos) e em segunda matildeo existencialmente como ldquocoisas
que existemrdquo ldquocoisas que estatildeo presentesrdquo ldquocoisas que podem ser encontradas em algum lugarrdquo
Em ambos os casos o verbo ser eacute entificado Como neste sentido haacute uma conotaccedilatildeo ldquodo que
eacuterdquo algo Aristoacuteteles considerou a referecircncia aos atributos de um determinado ente para expressar
a muacuteltipla significaccedilatildeo de τὸ ὄν partindo em seguida para a definiccedilatildeo do ser no sentido primaacuterio
e fazendo uso de seu derivado nominal οὐσία
A manifestaccedilatildeo de οὐσία surge como uma nominalizaccedilatildeo abstrata ou substantivo de
accedilatildeo Kahn enumera trecircs aspectos distintos do uso de οὐσία em uma concepccedilatildeo filosoacutefica o
primeiro uso refere-se agrave nominalizaccedilatildeo do verbo na qual οὐσία representaria ldquoo que algo eacuterdquo
dando abertura para as formas platocircnicas e essecircncias aristoteacutelicas (τὸ τί ἐστι τὸ τί ἦν εἶναι) o
segundo uso eacute todavia menos teacutecnico e predica οὐσία como ldquoserrdquo ldquoexistecircnciardquo ou ldquorealidade
verdadeirardquo o terceiro uso enuncia uma equivalecircncia entre οὐσία e τὸ ὄν referindo ldquoas coisas
que satildeo (neste mundo)rdquo τὰ ὄντα (cf ID IBID 461) Aristoacuteteles pontua precisamente a intenccedilatildeo
socraacutetica primaacuteria de buscar a essecircncia das coisas (τὸ τί ἐστι) por meio do procedimento
silogiacutestico cujo princiacutepio eacute justamente a quididade (ἀρχὴ δὲ τῶν συλλογισμῶν τὸ τί ἐστι)
(ARISTOacuteTELES 2002 604-605 Metafiacutesica 1078b 24-25)
31
O que em Soacutecrates apareceria de fato como τί ἐστι e em Platatildeo como (τὸ) ὅ ἐστι em
Aristoacuteteles seria simplificado como τὸ τί ἐστι e τὸ τί ἦν εἶναι em um uso que expressa a essecircncia
ou natureza das coisas pela definiccedilatildeo ao passo que a definiccedilatildeo propriamente existencial caberia
ao termo οὐσία 3 Kahn ilustra as distinccedilotildees dizendo que
Enquanto o substantivo no primeiro e no segundo usos serve como uma
nominalizaccedilatildeo ldquoabstratardquo para o verbo finito como predicado isto eacute para o ldquoser aquilo
que eacuterdquo (e eacute assim sintaticamente paralelo ao infinitivo articular τὸ εἶναι) οὐσία no
terceiro sentido eacute utilizado ndash como em muitos outros substantivos abstratos ndash para o
sujeito caracterizado (isto eacute o que eu chamo de concreto ou agente de nominalizaccedilatildeo
como tipicamente ilustrado pelo particiacutepio articular τὸ ὄν ou como por exemplo ὁ
τρέχων ldquoo corredorrdquo em contraste agrave accedilatildeo de nominalizaccedilatildeo abstrata τὸ τρέχειν
ldquocorrerrdquo Esta distinccedilatildeo sintaacutetica corresponde em parte ao contraste de Heidegger
entre das Seiende e das Sein der Seienden) (ID IBID)
Embora haja tal distinccedilatildeo Kahn prossegue afirmando que em seu uso tardio (poacutes-platocircnico)
οὐσία e τὸ ὄν satildeo claramente sinocircnimos sendo um utilizado para enfatizar o outro como na
doutrina das Categorias de Aristoacuteteles4 O resultado eacute a inexistecircncia de uma diferenccedila entre o
agente concreto e a accedilatildeo abstrata de nominalizaccedilatildeo do εἰμί onde natildeo haacute distinccedilatildeo conceitual
entre οὐσία e τὸ ὄν ou seja entre a entidade e o que ela eacute Em outras palavras ser e ente se
tornam o mesmo confundem-se em sua aplicaccedilatildeo a despeito das distinccedilotildees conceituais que
definem substacircncia (οὐσία) e essecircncia (τὸ τί ἦν εἶναι)
3 Um comentaacuterio mais preciso foi apresentado em Luiacutes Andreacutes Berdlow ldquoParmenides and the Grammar of Beingrdquo
Classical Philology v 106 (2011) 283-298 4 As Categorias de Aristoacuteteles apresentam a classificaccedilatildeo das coisas que satildeo (τὰ ὄντα) dentre as quais encontra-
se a substacircncia (οὐσία) (cf ARISTOTLE 1952 5-6 Categorias 1a-2b) Na Metafiacutesica Aristoacuteteles deixa isto mais
claro quando diz ldquoMas em primeiro lugar se o ldquoenterdquo (τὸ ὂν) se diz de muitas maneiras ndash dentre as quais algumas
vezes substacircncia (οὐσία) em outras qualidade ou mesmo quantidade aleacutem de todas as outras categorias ndash qual
deles portanto eacute aquele pelo qual as coisas satildeo ()rdquo (ARISTOacuteTELES 2002 669 Metafiacutesica 1089a 5-15) A diferenccedila
conceitual ou mesmo hieraacuterquica eacute paulatinamente abandonada pela necessidade de exprimir um niacutevel de
realidade no qual jaacute natildeo eacute mais possiacutevel discorrer acerca do ente se redundar a palavra definida na proacutepria definiccedilatildeo
32
Essa indistinccedilatildeo entre ser e ente eacute sabido foi o que chamou a atenccedilatildeo de Martin
Heidegger no processo ldquodestrutivordquo de histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica realizado em seu projeto
Sein und Zeit (1927) Conforme Heidegger haacute uma γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας de haacute muito
abandonada O motivo aparente se concentra nas caracteriacutesticas emergentes do proacuteprio ser
quais sejam sua maacutexima universalidade sua vacuidade sua obscuridade sua maacutexima
evidecircncia Neste sentido Heidegger diz
O conceito de ldquoserrdquo eacute indefiniacutevel Isto pode ser concluiacutedo desde sua maacutexima
universalidade E isto com razatildeo ndash se definitio fit per genus proximum et differentiam
specificam De fato ldquoserrdquo natildeo pode ser entendido conceitualmente como ente enti
non additur aliqua natura ldquoserrdquo natildeo pode estar em uma determinaccedilatildeo concebendo
dele um ente O ser por definiccedilatildeo natildeo pode ser derivado de conceitos superiores e
nem dado por nenhuma ilustraccedilatildeo Contudo disto se segue que do ser natildeo se pode
derivar nenhum problema Pode-se concluir em absoluto apenas que o ldquoserrdquo natildeo eacute
algo como um ente Portanto o legiacutetimo dentro de certos limites de determinaccedilatildeo dos
entes ndash a ldquodefiniccedilatildeordquo da loacutegica tradicional que em si tem suas bases na antiga
ontologia ndash natildeo eacute aplicaacutevel ao ser A indefiniccedilatildeo do ser natildeo dispensa a pergunta por
seu significado senatildeo que justamente a intima isto (HEIDEGGER 1967 4)
As observaccedilotildees de Heidegger concordam com a conclusatildeo de Kahn a respeito da tomada de
rumo do verbo ser dentro da filosofia grega claacutessica sobretudo na concepccedilatildeo das bases da antiga
ontologia acerca da indistinccedilatildeo entre ser e ente A γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας agrave qual se refere
Heidegger parece ser a natureza inevitaacutevel da proacutepria metafiacutesica em fechar a porta aberta por
ela mesma para o modo de se relacionar com o ser uma espeacutecie de destinaccedilatildeo forccedilosa da qual
natildeo se poderia de maneira alguma escapar ponderando a projeccedilatildeo que reverbera em cada um
dos sentidos
33
O conflito acerca do entendimento e expressatildeo da φύσις revela em boa parte a maneira
pela qual o conjunto do ser se tornou alvo de disputas A contenda eacute ilustrada na histoacuteria
primaacuteria da filosofia grega enquanto fisiologia e na ldquocontroveacutersiardquo paradigmaacutetica entre
Heraacuteclito e Parmecircnides Uma realidade em constante movimento e mutaccedilatildeo absorvida desde a
observaccedilatildeo teoreacutetica do mundo entorno ou simplesmente o ponto de vista do ldquodevirrdquo parece
compatiacutevel com a natureza infinitiva e inapreensiacutevel do verbo ser como eacute possiacutevel rastrear no
πάντα ῥεῖ heracliacutetico 5 Heraacuteclito expressa o movimento intriacutenseco de abertura do modo
relacional do ser Todavia tal entendimento natildeo eacute compatiacutevel com qualquer tipo de silogismo
loacutegico onde eacute possiacutevel desenhar um conhecimento comum Para assumir a cogniccedilatildeo e percepccedilatildeo
vaacutelidas seria necessaacuterio assumir a permanecircncia de algo como eacute possiacutevel acompanhar na
elaboraccedilatildeo da univocidade do ser em Parmecircnides6
O primeiro ponto de vista paradoxalmente leva agrave evidecircncia da diferenccedila e a posiccedilatildeo do
oxiacutemoro enquanto o segundo permite a identificaccedilatildeo e a possibilidade de conclusatildeo por meio
das loacutegicas da identidade e natildeo-contradiccedilatildeo Aparentemente o primeiro natildeo resulta em nenhum
avanccedilo imediato a respeito de assuntos praacuteticos ou na dissoluccedilatildeo de questotildees teoacutericas enquanto
o segundo iraacute provavelmente resolver problemas de quase todos os tipos no campo pragmaacutetico
e em toda sorte de adversidades naturais e sociais Por meio da loacutegica natural do ser humano
social eacute bastante evidente qual ponto de vista deve ser eleito no intuito de estabelecer a
coexistecircncia mais faacutecil e paciacutefica aquela que afasta o homem da falta de fundamento da
existecircncia ou seja do abismo existencial da afliccedilatildeo que eacute existir
5 Conforme cita Platatildeo no Craacutetilo ldquotodas as coisas estatildeo em processo e nada permanece paradordquo (τά ὄντα ἱέναι
τε πάντα καὶ μένειν οὑδέν) (PLATO 1997 119-120 Craacutetilo 401d-402a) (KIRK E RAVEN 1957 197) Kirk e Raven
ponderam ainda que se trata de um momento ldquoOnde φύσις provavelmente natildeo significa lsquonaturezarsquo mas lsquoas coisas
em sua verdadeira constituiccedilatildeorsquordquo (IDEM IBIDEM 184) 6 ldquoO uacutenico caminho de inquiriccedilatildeo que pode ser pensadordquo (αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι) (KIRK E RAVEN
1957 269) Haacute uma anaacutelise mais detalhada acerca do toacutepico em Ciacutecero Cunha Bezerra ldquoParmeacutenides y la
univocidad del serrdquo Caacutetedra v 1 (2003) 33-48
34
Eacute possiacutevel especular que com a ausecircncia de um princiacutepio solidamente identificado e
natildeo-contraditoacuterio quiccedilaacute nem mesmo uma regra gramatical linguiacutestica poderia ser estabelecida
dando margem mesmo agrave impossibilidade de comunicaccedilatildeo Igualmente tampouco se poderia
delinear uma corrente de haacutebitos pessoais compatiacuteveis aos costumes sociais desabilitando toda
e qualquer eacutetica ou ciecircncia poliacutetica pela qual se pode regulamentar a conduta humana Com a
perspectiva de um devir total e assunccedilatildeo da diferenccedila a presenccedila de certo caos eacute inegaacutevel Com
a fundaccedilatildeo de uma estrutura loacutegica todavia eacute possiacutevel organizar e controlar os pensamentos e
accedilotildees do ser humano e sua convivecircncia social Contudo natildeo necessariamente esta postura iraacute
levar a humanidade para as escolhas mais coerentes ndash e a histoacuteria pode comprovar isto inuacutemeras
vezes O abandono da multiplicidade de perspectivas sobretudo as supracitadas (uma em
detrimento de outra) parece ter dirigido a histoacuteria por vias pouco luacutecidas e por vezes mesmo
autodestrutivas
Mas a anaacutelise da histoacuteria fatual natildeo eacute o que realmente interessa aqui tampouco a
atribuiccedilatildeo de uma culpa ou indicaccedilatildeo de um erro neste ou naquele ponto de vista O que
interessa aqui eacute como identificar a predileccedilatildeo loacutegica do pensamento ocidental com o cerne de
sua postura contemporacircnea e inquirir se eacute possiacutevel (ou se jaacute foi tomado) um caminho de
pensamento distinto e quais os resultados da confrontaccedilatildeo de um ponto de vista com o outro
Para isto eacute preciso retomar uma anaacutelise da histoacuteria da ontologia observando a maneira pela
qual ela se movimenta intriacutenseca e extrinsecamente Dentro das possibilidades de eleiccedilatildeo de um
caminho interpretativo opto aqui em um primeiro momento por absorver a histoacuteria e criacutetica
da metafiacutesica feita por Heidegger durante o seacuteculo vinte com o fito de deixar um pouco mais
evidente o problema fundamental da indistinccedilatildeo entre ser e ente que eacute sem embargo o pontapeacute
inicial de toda a contenda Muito embora seja possiacutevel descortinar a histoacuteria do pensamento
ocidental mediante distintos autores a ecircnfase na nomeada questatildeo do ldquoesquecimento do serrdquo
serve sobremaneira bem ao propoacutesito desta tese
35
Portanto em primeiro lugar eacute preciso considerar que embora ilustrativo Martin
Heidegger passou ao largo de resolver os problemas suscitados pela histoacuteria das ideias Antes
ele desenvolveu problemaacuteticas ainda mais insoluacuteveis e como se natildeo bastasse propocircs novos
enigmas A maior dentre todas as dificuldades talvez ainda precise aguardar muito tempo para
ser descortinada Durante um longo periacuteodo o entretenimento geral dos eruditos se contentou
em traccedilar um denominador comum dentre as vaacuterias questotildees pertinentes aos problemas de sua
filosofia em um movimento enciclopeacutedico quiccedilaacute tatildeo importuno quanto improfiacutecuo de decifrar
seu pensamento Mais conveniente talvez seja simplesmente resguardar o segredo de certas
passagens e aguardar a maturaccedilatildeo necessaacuteria para interpelaacute-las independentemente da espera
suscitada por tal postura
Ainda assim alguns pontos merecem ser postos em relevo e sobre eles decerto vale
despender alguma energia no esforccedilo de meditar acerca de seu sentido Certos trabalhos
compostos por Heidegger guardam de uma soacute vez todo o peso de sua leitura da realidade
notadamente em trechos sutis e aparentemente inofensivos Em momentos nos quais o leitor se
daacute por satisfeito em compreender um posicionamento aparentemente simples e historial como
pueril revisatildeo da histoacuteria da filosofia aiacute mesmo se lhe eacute possiacutevel abrir uma brecha para absorver
a atitude fundamental de seu pensamento Heidegger sempre foi um historiador da filosofia e
natildeo renegou em momento algum o peso de um ofiacutecio como este pelo contraacuterio coube-lhe fazecirc-
lo por diversas vezes e em distintos modos Mesmo quando seus ensaios e conferecircncias se
projetavam a um tema especiacutefico e natildeo a um autor a forte presenccedila de suas interpretaccedilotildees da
histoacuteria da filosofia eacute inegaacutevel Cabe ao propoacutesito desta tese realccedilar um exemplo que torne liacutecito
ilustrar uma fissura por onde seja possiacutevel se esgueirar ateacute a fonte da emanaccedilatildeo especulativa
acerca do sentido da histoacuteria da filosofia e do desenvolvimento do pensamento ocidental
sinocircnimos para o que conveacutem nomear metafiacutesica
36
Aos 13 de novembro de 1935 como sabem os leitores assiacuteduos de Heidegger foi
pronunciada uma conferecircncia preparada para a Kunstwissenschaftlichen Gesellschaft de
Freiburg im Breisgau7 Der Ursprung des Kunstwerkes se tornou de forma veloz e viral um
trabalho amplamente comentado no circuito acadecircmico em geral principalmente no campo da
esteacutetica filosoacutefica e teorias da arte O ponto de vista quase unacircnime dos receptores do trabalho
assentou na interpretaccedilatildeo do texto como uma tese a respeito da arte como ldquoposta em marcha da
verdade enquanto desvelamentordquo uma frase natildeo tatildeo simples de ser decifrada mas repetida
quase como uma foacutermula automaacutetica que se tornou rapidamente um emblemaacutetico clichecirc e uma
resposta imediata agrave pergunta pelo sentido da arte em Heidegger
A popular obra de Michael Inwood A Heidegger Dictionary (1999) destaca
enfaticamente o caraacuteter essencial da proposiccedilatildeo-chave quando pontua no mesmo sentido que
ldquoA obra de arte eacute mais bem um projeto que abre um mundo no qual escolhas podem ser feitas
A verdade a revelaccedilatildeo do lsquoserrsquo eacute o configurar em uma obra e configurar para obra iluminando
o mundo e a terra naquilo que neles perdurardquo (INWOOD 1999 18) Inwood ressalta a
proximidade encontrada por Heidegger entre o termo alematildeo ldquoproteger manterrdquo (bewahren) e
a proacutepria palavra ldquoverdaderdquo (Wahrheit) embora os termos natildeo necessariamente estejam
etimologicamente conectados Ele aponta para a ldquopreservaccedilatildeordquo como elemento pelo qual ldquoA
arte eacute o deixar-acontecer da chegada da verdade do ser enquanto talrdquo (IDEM IBIDEM) com especial
atenccedilatildeo para o proacuteprio fazer (ποίησις) da arte e particularmente da poesia Haacute contudo uma
seacuterie de consideraccedilotildees mais sutis a serem levadas em consideraccedilatildeo nas conferecircncias de
Heidegger proporcionando uma anaacutelise um pouco mais cuidadosa do que estaacute propriamente
em jogo quando Heidegger sobreleva a questatildeo da obra de arte
7 O mesmo trabalho sofreu novas releituras durante todo o ano de 1936 sendo reapresentado respectivamente na
Einladung der Studentenschaft der Universitaumlt em Zuumlrich durante o mecircs de janeiro e na Deutschen Hochstift em
Frankfurt am Main entre novembro e dezembro O ciclo de conferecircncias recebeu ediccedilotildees retrabalhadas em 1956 e
1960 publicadas pela Reclam de Stuttgart e sendo incluiacutedo em 1977 no tomo Holzwege da Gesamtausgabe
37
O editor do volume Holzwege Friedrich-Wilhelm von Hermann dedicou toda uma obra
agrave anaacutelise temaacutetica envolta naquele escrito publicando em 1980 o livro Heideggers Philosophie
der Kunst Em algumas de suas consideraccedilotildees mais amplas sobre as conferecircncias de Heidegger
Hermann atenta para o fato da questatildeo da obra de arte ser levantada a partir de um problema
desdobrado pela ontologia fundamental Hermann observa a problemaacutetica geral do escrito
desde o estabelecimento do ldquoserrdquo como ldquoacontecimentordquo (Ereignis) Conforme ele pondera
trata-se de um trabalho contemporacircneo aos Beitraumlge zur Philosophie (1936-38) Para Hermann
a questatildeo em torno ao ldquoserrdquo como ldquoacontecimentordquo (Ereignis) estende-se em Der Ursprung des
Kunstwerkes por meio de quatro outros problemas (1) o estabelecimento constitutivo da arte
(2) da obra de arte (3) da criaccedilatildeo artiacutestica e (4) da compreensatildeo da arte (cf HERMANN 2001 7)
Contudo circunscrita agrave conferecircncia sobre a arte estaacute a elaboraccedilatildeo da passagem da discussatildeo em
torno agrave verdade do ser para o ldquopensamento da histoacuteria do serrdquo (seinsgeschichtliches Denken)
Trata-se especificamente do momento de transiccedilatildeo do pensamento de Heidegger8 Em
linhas gerais Der Ursprung des Kunstwerkes ressalta uma preocupaccedilatildeo da lida do homem para
com a essecircncia da verdade mediante a obra de arte enquanto coisa Haacute toda uma histoacuteria dos
efeitos pertinentes agraves anaacutelises de Heidegger da obra de Vincent van Gogh9 aleacutem de inuacutemeras
teorizaccedilotildees em torno ao poder salvador da obra de arte Todavia salta aos olhos uma passagem
muito mais peculiar (para qual gostaria de chamar a atenccedilatildeo agora mesmo) qual seja aquela
na qual Heidegger aborda o problema da transposiccedilatildeo da experiecircncia fundamental grega para a
intepretaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo do pensamento romano-latino (cf HEIDEGGER 1977 7)
8 A perspectiva da ontologia fundamental de Sein und Zeit (1927) continuada no curso Grundprobleme der
Phaumlnomenologie ministrado em Marburg durante o semestre de veratildeo de 1927 receberia seu desenvolvimento
desde uma visatildeo historial-reflexiva jaacute na primavera de 1932 ocasiatildeo na qual conforme Hermann satildeo elaboradas
as primeiras linhas de Beitraumlge zur Philosophie redigido entre 1936 e 1938 mas publicado postumamente somente
em 1989 9 Em uma das mais famosas passagens de Der Ursprung des Kunstwerkes Heidegger interpreta os sapatos de um
dos quadros de Vincent van Gogh (natildeo identifica qual todavia) descortinando com isto o cotidiano campesino e
oferecendo uma leitura da realidade a partir de aiacute Uma criacutetica direta foi apresentada por Meyer Shapiro (em The
Still Life as a Personal Object ndash A Note on Heidegger and van Gogh 1968 e ainda em Further Notes on Heidegger
and van Gogh 1994) onde ele sustenta que os sapatos retratados por van Gogh natildeo satildeo de uma pessoa do campo
mas as botas do proacuteprio artista apontando com isto graves mal entendidos na interpretaccedilatildeo de Heidegger
38
Ainda no iniacutecio do escrito Heidegger busca a compreensatildeo mais geral da ldquocoisardquo
abordando como exemplo um bloco de granito A despeito de suas muacuteltiplas caracteriacutesticas ele
enfatiza o ldquoao redorrdquo (das herum sich) pelo qual suas propriedades se agrupam podendo entatildeo
falar de algo como um ldquonuacutecleordquo (Kern) da coisa Esse nuacutecleo de acordo com Heidegger
chamaram-lhe os gregos claacutessicos de ὑποκείμενον Embora ilustrativa a descriccedilatildeo eacute decerto
passiacutevel de baixo niacutevel de representaccedilatildeo posta sua exposiccedilatildeo pouco objetiva O termo eacute mesmo
tatildeo controverso quanto as proacuteprias ideias de ser e ente dentro da perspectiva grega Ela possui
uma carga conceitual talvez natildeo tatildeo difiacutecil de ser desvelada mas que tampouco garante exatidatildeo
e lucidez em sua abordagem variando de eacutepoca para eacutepoca de filoacutesofo para filoacutesofo de
interpretaccedilatildeo para interpretaccedilatildeo Ademais vaacuterias histoacuterias metaforizam o sentido do termo
ὑποκείμενον Uma das mais conhecidas (conto-a sem embasamento ou referecircncias quiccedilaacute
mesmo de maneira inapropriada) relata que certa vez um rei se espantara ao conhecer a obra de
um escultor haacutebil em reproduzir as formas da natureza em blocos de maacutermore Tamanha era a
destreza do artista que se postas lado a lado a escultura e a coisa mesma confundiam-se os
espectadores exceto pelo caraacuteter inanimado da escultura Intrigado o rei mandou chamar o
escultor e perguntou-lhe como fazia para reproduzir com tanta fidelidade o mundo em torno
Natildeo sabendo explicar senatildeo por meio da praacutetica pediu um bloco de maacutermore e agraves vistas do rei
reproduziu perfeitamente um cavalo em tamanho real faltando-lhe apenas galopar O rei lhe
questionou ldquoComo o fizesterdquo e respondeu o escultor ldquofaacutecil apenas retirei do bloco de
maacutermore o que natildeo era cavalordquo O ὑποκείμενον seria portanto aquele elemento sem o qual o
cavalo natildeo seria cavalo ou sem o qual uma coisa natildeo eacute uma coisa Contudo o grande problema
envolto nas tentativas de atingir um entendimento deste sentido por meio de um silogismo uma
loacutegica racional ou uma explicaccedilatildeo conceitual (e natildeo por uma metaacutefora ou estoacuteria) consiste na
dificuldade em elaborar uma equaccedilatildeo que exija menos esforccedilo do ouvinte capacitando uma
lucidez mais ampla e geral que a todos possa atingir
39
Toda definiccedilatildeo a partir de uma predicaccedilatildeo direta pode se configurar ainda mais obscura
e lanccedilar aquele que se propotildee a entender o conceito para um mero encadeamento e conexatildeo de
termos sem contudo realmente promover a experiecircncia do sentido da palavra Sem embargo o
Impeacuterio Romano foi a eacutegide da popularizaccedilatildeo e introspecccedilatildeo do mundo grego competindo-lhes
a tarefa de transpor ao modo latino de pensar os sentidos das meditaccedilotildees gregas Sobre isto
Heidegger ostenta uma posiccedilatildeo bastante firme e vale a pena destacar por completo o trecho no
qual se lhe pode observar sua atitude
Estas denominaccedilotildees natildeo eram meros nomes Em sua fala a experiecircncia fundamental
grega do ser do ente no sentido de sua presenccedila mostrava o que natildeo se podia mostrar
Por meio dessa disposiccedilatildeo instaura-se a interpretaccedilatildeo oficial da coisidade da coisa e
a interpretaccedilatildeo ocidental do ser do ente Comeccedila com a traduccedilatildeo das palavras gregas
para o pensamento romano-latino ὑποκείμενον torna-se subjectum ὑπόστασις torna-
se substantia συνβεβηκός torna-se accidens O processo desta traduccedilatildeo dos nomes
gregos para a liacutengua latina natildeo se daacute sem consequecircncias e nos dias de hoje toma-se
ainda a mesma compreensatildeo Antes pelo contraacuterio por detraacutes da traduccedilatildeo
aparentemente literal haacute um traslado da experiecircncia grega para outro modo de pensar
O pensamento romano assume para si as palavras gregas sem a devida
correspondecircncia com a experiecircncia originaacuteria do que dizem sem a palavra grega A
falta de fundamento do pensamento ocidental comeccedila com essas traduccedilotildees (IDEM
IBIDEM 7-8)
Responsabilizar o pensamento romano-latino pela queda do Ocidente no abismo da falta de
fundamento delega a Heidegger um encargo de peso formidaacutevel cujo maior perigo talvez seja
o de natildeo se ambientar aqui ou ali dentro deste ou daquele territoacuterio neste ou naquele lugar
mas na posiccedilatildeo do meio na esfera do entre no desenho do limite da linha da fronteira
40
A direccedilatildeo do pensamento de Heidegger a partir desta passagem claramente se constitui
desde uma divisatildeo da metafiacutesica ocidental em dois momentos muito distintos embora
interligados A emboscada se encontra na percepccedilatildeo de que todo e qualquer ocidental eacute jaacute
sempre forccedilado a se movimentar na esfera da ontologia latina ao passo que o retorno aos
fundamentos da ontologia grega eacute antes de tudo calcar terreno em solo incerto e regiatildeo
desconhecida Estabelecer uma ponte que permita ao ser humano contemporacircneo entender a
proveniecircncia de sua apreensatildeo da existecircncia eacute um roteiro deveras ousado Resta saber como eacute
possiacutevel ainda pensar os conceitos fundamentais da metafiacutesica dentro de sua propriedade sem
causaacute-los algum tipo de dano que faccedila seu sentido se perder ser obscurecido ou transviado
A partir da colocaccedilatildeo do problema da obra de arte enquanto coisa Heidegger questiona
o que enfim se compreende pelo termo mesmo ldquocoisardquo quando se compromete com a ideia de
tentar envolvecirc-lo conceitualmente (a partir de ὑποκείμενον ὑπόστασις e συνβεβηκός) e desde
aiacute extrair uma explicaccedilatildeo Sobre isto Hermann comenta ldquoComo podemos ver ainda mais e
melhor resolver o problema da obra de arte se torna um problema ontoloacutegico ndash isto eacute em
primeira instacircncia o problema ontoloacutegico do ser-res da resrdquo (HERMANN OP CIT 87) entenda-se
ainda o problema da coisidade da coisa Ele ainda complementa deixando ver a postura exigida
pela tarefa de entender a ontologia grega ldquoPortanto explicar o pensamento grego significa
antes de tudo revelar novamente a experiecircncia de estar no lugar em que se encontra a expressatildeo
de acordo com o fio condutor da palavra filosoacutefica gregardquo (IDEM IBIDEM 93-94) Sem embargo
conforme aponta Hermann (em coerecircncia com Heidegger) o ofiacutecio de introduzir a filosofia
grega (ou se introduzir na filosofia grega sua ontologia e berccedilo da metafiacutesica) constitui-se
desde o caminhar ao lado do fio condutor de sua expressatildeo e manifestaccedilatildeo A caminhada talvez
seja ela mesma o ldquoestar no lugar em que se encontra a expressatildeordquo ou o espaccedilo do ldquoentrerdquo a
ldquolinha de fronteirardquo
41
Algumas dezenas de leituras podem ser desdobradas desde a interpretaccedilatildeo de Heidegger
do lugar de transiccedilatildeo da histoacuteria do ser O itineraacuterio do pensamento de Heidegger legou aos
fieacuteis depositaacuterios de sua vasta caminhada a tarefa ingloacuteria de dar uma passo aleacutem Gostaria de
destacar aqui um direcionamento um pouco menos ousado nem por isto ingecircnuo Considerar
uma histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica em Heidegger eacute procurar pela fenda cuja passagem
encaminha diretamente ao salto no abismo da superaccedilatildeo da metafiacutesica embora natildeo fique ainda
claro o significado destes termos Ademais a intenccedilatildeo aqui eacute justamente esta esclarecer os
enlaces desse percurso histoacuterico nomeado sob o signo da metafiacutesica agrave luz da trajetoacuteria
interpretativa de Heidegger
Justamente sob o tiacutetulo Itineraacuterio do Pensamento de Heidegger (1965) Emmanuel
Carneiro Leatildeo apresenta sua traduccedilatildeo para o portuguecircs da Einfuumlhrung in die Metaphysik (1935)
de Heidegger ndash segundo ele nem de perto uma obra de faacutecil acesso Em primeiro lugar pela
impossibilidade geral de uma introduccedilatildeo em filosofia no sentido amplo Em outras palavras
natildeo haacute caminho de iniciaccedilatildeo agrave filosofia como se houvesse ainda um siacutetio no qual se a conquista
Haacute na verdade o puro levantar de questotildees responsaacuteveis por conduzir o pensamento para dentro
da proacutepria filosofia Carneiro Leatildeo elucida tal dificuldade quando especifica o tiacutetulo da obra
Introduzir agrave metafiacutesica eacute movimentar-lhe a questatildeo fundamental de maneira a
conduzi-la (-ducere) para dentro (-intro) das origens donde a metafiacutesica procede Um
esforccedilo de pensamento que nada tem de horizontal e progressivo Cujo movimento
se processa antes no sentido vertical e regressivo (CARNEIRO LEAtildeO 1999 10)
A filosofia busca o movimento imputado para originaacute-la para com isto retornar agraves suas origens
proacuteprias Em segundo lugar e natildeo menos importante a obra ainda guarda certa inacessibilidade
devido agrave intencional ambiguidade de um periacuteodo conturbado de transiccedilatildeo do pensamento de
Heidegger (tambeacutem evidenciado por Hermann)
42
Eacute preciso movimentar a questatildeo fundamental da metafiacutesica para conduzi-la para dentro
de suas origens Agora bem destacar a questatildeo fundamental eacute o primeiro passo de Heidegger
na obra quando questiona ldquoPorque haacute em geral o ente e natildeo antes nadardquo (HEIDEGGER 1983b
3) Um adendo eacute necessaacuterio ao leitor lusoacutefono Carneiro Leatildeo em sua traduccedilatildeo explica o
emprego do termo ldquoenterdquo para traduzir o alematildeo Seiendes justificando o uso da forma erudita
referida ao latim ens entis para salvaguardar o caraacuteter de tudo que eacute independentemente de
seu modo de ser (cf CARNEIRO LEAtildeO OP CIT 77 nota) Ponderando isto a leitura de Carneiro
Leatildeo segue um rumo bastante simples e esclarecedor ele afirma
O homem natildeo pode existir senatildeo em comeacutercio e comunhatildeo com o mundo dos entes
Ente significa tudo que de algum modo eacute o homem as coisas os acontecimentos ateacute
mesmo o Nada enquanto eacute um Nada ieacute enquanto tem um significado () (IDEM IBIDEM
11)
A forccedila responsaacutevel por manter a decisatildeo a respeito dos entes depende diretamente da
capacidade de enxergar suas distinccedilotildees Em um compecircndio unitaacuterio a base de sustentaccedilatildeo no
comeacutercio com os entes se daacute na e pela linguagem mediante a qual o homem simplesmente
afirma eacute Uma afirmaccedilatildeo aparentemente simples guarda contudo uma relaccedilatildeo complexa e
ambiacutegua talvez mesmo em decorrecircncia de sua extrema simplicidade
A existecircncia humana se agita dentro da tensatildeo entre imanecircncia e transcendecircncia
porque o homem existe enquanto in-siste no domiacutenio da Verdade do Ser ieacute a
vicissitude instaurada pela diferenccedila irredutiacutevel e referecircncia necessaacuteria entre ente e
ser A tarefa do pensamento natildeo eacute procurar sair decircsse ciacuterculo de diferenccedila e referecircncia
e sim necircle ingressar de maneira a poder regressar ateacute a fonte originaacuteria de sua tensatildeo
e unidade (ID IBID 15)
43
O atino para o ingresso ao interior da tarefa do pensamento deixa bastante evidente a intitulaccedilatildeo
da obra Eacute possiacutevel conceber a empreitada em regressar ao fundamento desde o qual a metafiacutesica
eacute ela mesma a proveniecircncia da tensatildeo em torno agrave unidade da existecircncia perante a multiplicidade
Eacute preciso destarte compreender que ldquoSoacute poderemos entender os pensamentos os conceitos
ou as explicaccedilotildees dados na medida em que nos ex-pusermos e dis-pusermos aquilo que se pensa
que se concebe ou que se explicardquo (ID IBID 29) acompanhando assim os passos de Heidegger
e verificando sua coerecircncia teoacuterica de levar colocar e se pocircr no estado da questatildeo
Esta mesma ambivalecircncia eacute tambeacutem destacada por Heidegger quando ele se refere ao
ambiacuteguo das formas essenciais do espiacuterito Natildeo se trata portanto de uma dedicaccedilatildeo integral agraves
possibilidades de captar de maneira exclusivamente formal os procedimentos que envolvem os
estudos mas de perceber (αἴσθησις) e experienciar os fenocircmenos Heidegger adverte ainda
Tomada na totalidade de seu sentido mais cru a filosofia sempre lida com o
fundamento do ente de tal maneira que o proacuteprio ser humano tem enfaticamente a
experiecircncia de seu significado e propoacutesito Por isto agora se vislumbra facilmente a
amplitude da filosofia que poderia e deveria proporcionar o fundamento da existecircncia
da eacutepoca histoacuterica atual e futura pela qual se estabelece a cultura Com tais
espectativas e demandas o estado e a essecircncia da filosofia satildeo sobrecarregadas Na
maior parte das vezes essa demanda excessiva se mostra pela forma de uma censura
da filosofia Diz-se por exemplo porque a metafiacutesica natildeo participou na preparaccedilatildeo
para a revoluccedilatildeo ela deve ser rejeitada Isto eacute tatildeo espirituoso quanto dizer que porque
vocecirc natildeo pode voar com um tocircrno portanto este deve ser abandonado A filosofia
natildeo provecirc diretamente forccedilas nem modos de accedilatildeo e criaccedilatildeo para ajeitar a condiccedilatildeo
histoacuterica simplesmente pelo motivo de dizer respeito apenas a poucos Quais poucos
Aqueles que transformam criativamente convertendo os fins Afetando uma vastidatildeo
apenas indiretamente e nunca fazendo rodeios ateacute certo ponto onde finalmente desde
o longo esquecimento da filosofia degenera-se como autocompreensatildeo da existecircncia
(HEIDEGGER OP CIT 12)
44
Heidegger aponta certa responsabilidade da filosofia na formaccedilatildeo da cultura e direcionamento
da eacutepoca presente e futura A chamada ldquoessencializaccedilatildeo da filosofiardquo eacute em grande parte
responsaacutevel pela tomada de rumo e pela constituiccedilatildeo da histoacuteria ateacute mesmo por seu abandono
Agrave ela estaacute diretamente conectada a ldquoessencializaccedilatildeo do serrdquo e maneira pela qual a filosofia se
apresenta como contemplaccedilatildeo dos fundamentos do ente
Heidegger explica em pormenores a diferenccedila entre ser e ente quando expotildee a gramaacutetica
e etimologia da palavra Certa advertecircncia contudo clama a petrificaccedilatildeo das normas
gramaticais ocas e vazias destituindo a Escola do Mundo do Espiacuterito que circunda a
morfologia dos termos e se restringindo tatildeo somente agrave transmissatildeo de regras do uso da palavra
Neste sentido a maneira pela qual se ostenta a ldquogrande gramaacuteticardquo eacute em si mesma o processo
de substantivaccedilatildeo do Ocidente visto como o cerrar das fronteiras como delimitaccedilatildeo
Tambeacutem em Einfuumlhrung in die Metaphysik Heidegger insiste no argumento exprimido
em Der Ursprung des Kunstwerkes seguindo o fluxo comentado acima quando afirma outra
vez ldquoQue essas formas gramaticais natildeo dissecaram desde toda eternidade uma linguagem
absoluta enquanto controle elas satildeo de fato erigidas de uma particular interpretaccedilatildeo da liacutengua
grega pela liacutengua latinardquo (ID IBID 56) Em outras palavras a linguagem possibilita sendo ela
tambeacutem um ente manipulaccedilatildeo e controle por sobre suas formas Por este motivo eacute possiacutevel
transmitir o conhecimento de uma liacutengua estrangeira somente com o ensino da gramaacutetica
mesmo para pessoas que nunca realmente entraram em contato com essa determinada liacutengua
Ou ainda aprender um idioma antigo natildeo mais utilizado ou cujo vigor ou esplendor se apagou
como o latim o grego claacutessico ou o sacircnscrito antigo sem ter a possibilidade de experenciaacute-los
no cotidiano O domiacutenio teoacuterico de uma liacutengua pode permitir ainda intuiccedilotildees e analogias a
respeito da experiecircncia que esta liacutengua provocava em seus falantes originais sem contudo
garantir exatidatildeo das disposiccedilotildees ou estados de acircnimo referidos pelos termos
45
Dentro da gramaacutetica e morfologia do ser Heidegger evidencia que existe um duplo
sentido para a palavra dentro de seu entendimento como consistecircncia (Staumlndigkeit) qual seja
a) o estar em si mesmo enquanto proveniente de si mesmo e b) o que perdura constantemente
enquanto tal Consistecircncia eacute a palavra-chave de sua leitura do termo ser dentro da circunvisatildeo
grega claacutessica Heidegger aponta que justamente por isso o natildeo-ser denota a desistecircncia ou a
saiacuteda da existecircncia ou ainda o abrir matildeo do ldquosalto para aleacutemrdquo Jaacute a etimologia da palavra ser
revela como os sentidos manifestos pela gramaacutetica e morfologia foram confundidos
historicamente Heidegger expotildee trecircs raiacutezes do termo uma sacircnscrita (es asus) outra indo-
germacircnica (bhuuml) e uma apenas germacircnica (sein) Conforme suas interpretaccedilotildees elas se
desdobram respectivamente em um sentido de ldquoviverrdquo ldquosurgirrdquo e ldquopermanecerrdquo Tratam-se de
verbos distintos todavia Heidegger natildeo citas as fontes das quais ele extrai tais etimologias
Ateacute onde eacute possiacutevel investigar o termo sacircnscrito mais proacuteximo ao que ele considera es
asus seria asti (अनतत) cuja raiz ās (आस) possui incontaacuteveis significados dentre os quais ldquoexistirrdquo
ldquoestar presenterdquo ldquopermanecerrdquo entre vaacuterios outros Aparentemente eacute a origem do indo-europeu
es cujo similar em grego seria o morfema ἐστί e em latim esse (sobremaneira visiacutevel no
portuguecircs estar) Jaacute a palavra bhuuml provavelmente indicada por Heidegger como ldquoindo-
germacircnicardquo em consequecircncia da formataccedilatildeo do verbo ser como ldquobinrdquo ldquobistrdquo (ou ainda ist e em
inglecircs ldquoisrdquo) eacute tambeacutem ela sacircnscrita (bhū भ) e estaacute presente em vaacuterias outras liacutenguas indo-
europeias (como no inglecircs being) Seu significado mais geral seria ldquoserrdquo ou ldquoexistirrdquo embora
aponte tambeacutem para ldquoacontecerrdquo ou ldquoperceberrdquo aleacutem de outros sentidos Sein tambeacutem pode ser
rastreado ateacute certo ponto em sua origem germacircnica no mittelhochdeutsch sīn e no
althochdeutsch wesan derivado da raiz sacircnscrita ves (वस) que daria as formas de Wesen
(essecircncia) ou (war o preteacuterito de Sein ser) em alematildeo De qualquer forma a questatildeo leva
imediatamente ao que Heidegger chama de ldquoessencializaccedilatildeo do serrdquo O motivo eacute simples viver
surgir e permanecer satildeo manifestaccedilotildees que interpelam o ser humano inevitavelmente
46
Contudo o ser ao interpelar o humano natildeo se manifesta antes se oculta esconde sua
proveniecircncia mostra-se ambiacuteguo e pela metade A forma de manifestaccedilatildeo do ser passiacutevel de
ser apreendida como uma realidade existente daacute-se por meio de sua participaccedilatildeo na realidade
presente qual seja ente (seu particiacutepio presente) A predileccedilatildeo pelo ente nasceria justamente
de seu caraacuteter manipulaacutevel embora haja uma conclusatildeo que clama as variaccedilotildees da palavra ser
e seu comportamento com respeito ao ldquoser em si mesmordquo evocado de modo distinto de outros
substantivos e verbos com relaccedilatildeo aos seus respectivos entes A eleiccedilatildeo de uma manifestaccedilatildeo
do ser diz muito sobre o modo relacional do humano com a conduccedilatildeo de sua existecircncia10
Alguns anos antes da composiccedilatildeo da Einfuumlhrung em um compecircndio posteriormente
publicado sob o tiacutetulo Sein und Wahrheit (1933-34) Heidegger se aproximou sistematicamente
da constituiccedilatildeo histoacuterica da metafiacutesica A obra eacute todavia pouco comentada O motivo eacute simples
haacute certo complexo ou trauma envolto na abordagem de um texto do periacuteodo da ascensatildeo do
Partido Nazi e do consentimento ao seu propoacutesito inicial Embora haja certos traccedilos de sintonia
com o discurso do momento pelo qual o povo alematildeo atravessava natildeo haacute nenhum resquiacutecio em
Heidegger dos preconceitos intriacutensecos ao desenrolar do totalitarismo Dentro do ambiente
promissoramente inovador Heidegger escreve ldquoToda gestatildeo essencial se vivifica desde uma
grande determinaccedilatildeo oculta no fundamentordquo (ID 2001 3) As palavras de Heidegger parecem
indicar antes de uma referecircncia ao destino da Alemanha o fato de que a questatildeo fundamental
estaacute contida no proacuteprio fundamento Por este motivo Heidegger ainda sugere um ldquo() caminho
histoacuterico na essecircncia da filosofia ndash e natildeo se poderia ter outro e isto justamente porque a filosofia
eacute ela mesma o acontecimento fundamental da histoacuteria da existecircnciardquo (ID IBIDEM 17) Resta
saber portanto como esse acontecimento fundamental se constitui como metafiacutesica
10 Heidegger justifica este ponto na sua apresentaccedilatildeo do conceito de Cura Sorgen em Sein und Zeit que embora
seja de suma importacircncia uma explanaccedilatildeo mais cuidadosa tomaria aqui e agora demasiado tempo mas que
precisa ao menos ser mencionada Seria esta caracteriacutestica originaacuteria do ser humano Cura Cuidado (Sorgen)
aquilo que o impulsionaria a preservar sua condiccedilatildeo evitando a queda nos abismos existenciais e a confusatildeo
generalizada (cf HEIDEGGER OP CIT 196-200)
47
Quando a tarefa eacute compreender a histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica realizada por Heidegger
insisto nunca eacute demasiada repeticcedilatildeo retomar as primeiras linhas de Sein und Zeit Vale lembrar
uma vez mais a disputa titacircnica a respeito da essecircncia (γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας) que
envolve os questionamentos aparentemente desprestigiados da metafiacutesica Conforme Heidegger
a maneira pela qual o problema perdurou sofreu alteraccedilotildees de Platatildeo e Aristoacuteteles ateacute sua
formulaccedilatildeo mais sofisticada na Wissenschaft der Logik (1812-16) de Georg W F Hegel Em
Sein und Wahrheit eacute tambeacutem a discussatildeo com Hegel que orienta a anaacutelise da metafiacutesica
tradicional Ateacute alcanccedilar Hegel entretanto Heidegger se preocupa em delinear as feiccedilotildees da
perda de sentido da μετὰ τὰ φυσικά aristoteacutelica na recepccedilatildeo tardia de seus escritos onde
ldquoGrandeza e iacutempeto desaparecem tanto na singularidade do questionamento criativo quanto na
designaccedilatildeo conceitual a praccedila desocupada daacute lugar agrave atividade de uma escola ndash somente
sobraram palavras e conceitos mas natildeo o poder estimulante da coisardquo (ID IBID 21)
Para Heidegger a unificaccedilatildeo do termo grego na palavra latina metaphysica natildeo eacute
acompanhada somente de uma correspondecircncia senatildeo ao mesmo tempo de uma mudanccedila em
seu significado Inerente agrave transformaccedilatildeo de seu sentido estaacute a apropriaccedilatildeo cristatilde do conceito
imputando um conhecimento suprassensiacutevel (trans physicam) de maior grau de importacircncia e
relevacircncia e diretamente relacionado ao divino Onde antes havia perplexidade na aspiraccedilatildeo agrave
sapiecircncia e observaccedilatildeo da realidade haacute agora um conhecimento humano elevado e suscetiacutevel agrave
confirmaccedilatildeo pela ciecircncia superior Heidegger visa e cita textualmente a formulaccedilatildeo de
Immanuel Kant da metafiacutesica como a ultrapassagem de todos os objetos empiacutericos a fim de
alcanccedilar um conhecimento viaacutevel e puro ou a superaccedilatildeo do conhecimento sensiacutevel pelo
conhecimento suprassensiacutevel11
11 Embora esta premissa esteja presente jaacute na Kritik der reinen Vernunft e em certa medida em suas especulaccedilotildees
preacute-criacuteticas atingindo ainda todos os escritos intercalados agraves duas outras criacuteticas e ainda os posteriores ele parece
se referir agraves conferecircncias de Kant reunidas por Karl Heinrich Ludwig Poumllitz publicadas em Vorlesungen Kants
uumlber Metaphysik aus drei Semestern Max Heine (org) Leipzig Hirzel 1984 (natildeo tenho certeza disto entretanto)
48
Haacute ainda a absorccedilatildeo do direito agrave verdade metafiacutesica pela ontologia claacutessica e neste
sentido Heidegger cita Alexander Baumgarten onde a verdade metafiacutesica eacute o princiacutepio
universal e fundamental em conveniecircncia agrave determinaccedilatildeo do ente enquanto tal Deste modo
conclui que a metafiacutesica se constitui como uma determinaccedilatildeo cristatilde e ideia matemaacutetico-
metoacutedica de fundamentaccedilatildeo nos sistemas metafiacutesicos da modernidade onde ela se apresenta
como conhecimento do ente em seu todo Hegel ocuparia neste sentido o lugar da consumaccedilatildeo
da plenitude da filosofia ocidental na metafiacutesica destacado o caraacuteter teoloacutegico no qual a medida
do saber eacute o ldquoinfinitordquo (perfectum) manifesto enquanto identidade absoluta (perfectissimus)
ou espiacuterito absoluto Por este motivo ao que parece quando se refere agrave histoacuteria da disputa
titacircnica sobre a essecircncia em Sein und Zeit Heidegger aponta a Wissenschaft der Logik de Hegel
como ponto de chegada Ali a loacutegica eacute entendida como ciecircncia do pensamento todavia natildeo
como ciecircncia responsaacutevel por regular o pensamento mas como fundamento do conceito e em
uacuteltima instacircncia fundamento do ente em si mesmo Heidegger explica dizendo que em Hegel
ldquoA metafiacutesica como ciecircncia do ser do ente eacute lsquoLoacutegicarsquo e esta Loacutegica eacute Loacutegica lsquodorsquo Absoluto isto
eacute de Deus Genitivo deliberadamente ambiacuteguo Natildeo apenas um genitivus objectivus Deus
representado mas sim genitivus subjectivus a essecircncia de deus como presenccedila do Espiacuterito
Absolutordquo (ID IBID 76) Em um momento final da exposiccedilatildeo da questatildeo fundamental da
filosofia Heidegger faz uma divisatildeo entre a filosofia ocidental em seu princiacutepio e em seu fim
escrevendo que
No princiacutepio a mais profunda necessidade era o questionamento na luta com os
poderes incontrolaacuteveis da verdade e da decepccedilatildeo A filosofia causava o mais alto
poder clarificante da naccedilatildeo e de sua existecircncia Riqueza de decisatildeo momento de
decisatildeo No fim alta bem-aventuranccedila na suspensatildeo das contradiccedilotildees fraqueza de
meros conceitos opostos fracasso e morte de todo questionamento Eternidade vazia
cheia de indecisotildees (ID IBID 77)
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A eternidade vazia cheia de indecisotildees todavia natildeo soa aqui como algo proveniente de um
descontentamento Pelo contraacuterio emerge desde a simples oposiccedilatildeo de conceitos com o fito de
suspender contradiccedilotildees e evidenciar uma maacutexima clareza e nitidez com o intuito de um suposto
pleno contentamento como se a profunda necessidade de questionamento houvesse sido calada
pela extrema emergecircncia de soluccedilatildeo Um abismo entre a filosofia ocidental em seu princiacutepio e
em seu fim eacute diagnosticado de maneira direta e evidente Longe de apontar culpados ou
referendar uma condenaccedilatildeo agrave metafiacutesica claacutessica Heidegger explica o processo intriacutenseco de
explicaccedilatildeo e complicaccedilatildeo da metafiacutesica evidenciando fatualmente a transiccedilatildeo do pensamento
da histoacuteria do ser da ontologia grega agrave latina A distacircncia que provecirc de clareza a anaacutelise eacute todavia
bastante tendenciosa aos propoacutesitos da ontologia fundamental A maneira pela qual a proacutepria
ontologia se protege com uma complexidade de conceitos dificulta a visualizaccedilatildeo do percurso
histoacuterico e da explanaccedilatildeo esclarecedora
Vale portanto retomar alguns aspectos relevantes embora por vezes sutis da pesquisa
acerca da ontologia na metafiacutesica claacutessica Gostaria de propor um breve desvio que agrave primeira
vista pareceraacute desnecessaacuterio contudo configura-se como extremamente pertinente ao
propoacutesito do capiacutetulo Atualmente as pesquisas voltadas ao estudo da ontologia se restringem
ou bem ao estudo histoacuterico ou bem agraves repercussotildees da metafiacutesica na filosofia contemporacircnea
Via de regra servem de embasamento para questotildees projetadas aos assuntos pertinentes da
eacutepoca vigente A ontologia se torna assim uma ldquoaacuterea da filosofiardquo uma ldquodisciplinardquo ou mesmo
um tronco braccedilo ou ramificaccedilatildeo dos estudos filosoacuteficos Os pesquisadores responsaacuteveis por
esta aacuterea da filosofia desdobram prolegocircmenos e comentaacuterios explicativos aos textos claacutessicos
fundamentando muacuteltiplas outras aacutereas Poucas vezes eacute possiacutevel observar um trabalho sobre
ontologia que realmente conecte seu sentido primaacuterio aos problemas apresentados nos dias de
hoje todavia escavando com devoccedilatildeo algumas pesquisas emergem sobremaneira conexas
50
A ontologia parece ser mesmo ldquoutilizadardquo como ponte para abrir novos caminhos como
por exemplo as discussotildees histoacutericas na anaacutelise do desenvolvimento da cultura as
investigaccedilotildees epistemoloacutegicas na confrontaccedilatildeo das possibilidades de conhecimento as
consideraccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas na constituiccedilatildeo dos haacutebitos e costumes da relaccedilatildeo do ser humano
com as virtudes deveres e utilidades os juiacutezos esteacuteticos na relaccedilatildeo com a obra de arte ou
mesmo as bases psicanaliacuteticas do entendimento do proacuteprio humano e sua relaccedilatildeo com as coisas
e o mundo entorno
Um dos exemplos mais niacutetidos de um pensamento comprometido em discutir a
ontologia por si mesma observando a maneira pela qual as categorias ontoloacutegicas dispotildeem
ainda hoje os modos de estruturar a realidade talvez se apresente nas recentes discussotildees em
torno ao ldquodigitalrdquo e ao ldquovirtualrdquo ou as propostas de uma ldquoontologia digitalrdquo Ouvi falar pela
primeira vez sobre ldquoontologia digitalrdquo por meio de Rafael Capurro em 2009 durante o III
Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica realizado em Natal na Universidade Federal do Rio
Grande do Norte12 Ateacute entatildeo possuiacutea minhas proacuteprias teorias acerca do mundo digital e da
esfera virtual da internet todavia natildeo tinha sequer noccedilatildeo da envergadura do problema e da
maneira pela qual o assunto podia ser pensado desde uma perspectiva ontoloacutegica e natildeo
meramente poliacutetico-ativista ou mesmo teoacuterico-juriacutedica Embora este natildeo seja propriamente o
assunto do capiacutetulo gostaria de abordar o tema como forma de justificar o questionamento pela
ontologia claacutessica para aleacutem da mera constataccedilatildeo historiograacutefica Conforme pude acompanhar
a inquietaccedilatildeo que move os trabalhos se concentra na crenccedila segundo a qual todos os fenocircmenos
podem ser analisados construiacutedos e manipulados sob a condiccedilatildeo de poderem ser digitalizados
12 A discussatildeo de Capurro havia comeccedilado com uma troca de e-mails com Michael Eldred A conversa redundou
em primeira matildeo nos trabalhos de Capurro intitulados Entwurf einer digitalen Ontologie (1999) e Beitraumlge zu
einer digitalen Ontologie (1999) sendo estendida em ulteriores escritos como Interpreting the digital human
(2008) e Einfuumlhrung in die digitale Ontologie (2009) aleacutem do livro publicado por Eldred The Digital Cast of
Being (2009) Provavelmente a discussatildeo ainda prossegue e outros trabalhos foram ou estatildeo sendo publicados
51
Talvez como um chiste mas bastante pertinente e veriacutedico Capurro afirma que
atualmente se algueacutem natildeo estaacute na rede eacute como se natildeo existisse Dando impulso para uma
formulaccedilatildeo inusitada esse est computari em analogia agrave famosa foacutermula de George Berkeley
(esse est percipi) A conclusatildeo bastante perspicaz extraiacuteda por Capurro eacute a de que seria correto
dizer que hoje vemos a realidade no horizonte de sua digitabilidade Uma seacuterie de outros termos
e expressotildees natildeo-convencionais emergem do texto de Capurro como ldquoem tudo que eacute puramente
virtual as coisas consistem essencialmente em bitsrdquo ou a denominaccedilatildeo ldquopitagorismo digitalrdquo
Entretanto todas as definiccedilotildees e determinaccedilotildees estatildeo conectadas ao arcano questionamento em
torno ao ente
O que eacute o ente Esta pergunta fundamental da metafiacutesica natildeo pode ter uma resposta
definitiva a partir da perspectiva de um conhecimento finito sem cair na ilusatildeo
essencialista Isto tem consequecircncias para a problemaacutetica de como pensar uma cultura
digital Uma ontologia digital eacute uma interpretaccedilatildeo possiacutevel do ser dos entes vistos
desde sua digitabilidade No entanto tal ontologia corre sempre o perigo de
transformar-se em uma metafiacutesica digital no momento em que acredita ser a
verdadeira ou uacutenica resposta agrave pergunta pelo ser A ontologia digital eacute uma possiacutevel
compreensatildeo do ser por parte do conhecimento humano finito Todas as regiotildees ou
esferas dos entes satildeo concebidas entatildeo como digitais (CAPURRO 2009 322)
A introduccedilatildeo da digitabilidade para aleacutem da anaacutelise do ldquoserrdquo quantificado pela ciecircncia moderna
confere uma perspectiva nova de experimentaccedilatildeo do ente em sua totalidade Chama atenccedilatildeo o
perigo envolto na transformaccedilatildeo em uma ldquometafiacutesica digitalrdquo na qual uma virada ontocecircntrica
concentraria o poder da verdade enquanto julgamento como oriente agrave pergunta pelo ldquoserrdquo
Talvez o mais importante da anaacutelise de Capurro consista justamente na renovaccedilatildeo desta criacutetica
na qual se chama atenccedilatildeo para a imprecisatildeo especulativa por meio da indefiniccedilatildeo do virtual
52
Natildeo eacute difiacutecil perceber que o mundo digital oferece uma vasta gama de temas e
possibilidades de se pensar filosoficamente sob as mais diversas perspectivas Natildeo haacute grande
espanto na busca dos filoacutesofos por reflexotildees em torno aos acontecimentos revolucionaacuterios dos
veiacuteculos de informaccedilatildeo e tecnologias em geral no seacuteculo vinte-e-um Contudo admiraacutevel eacute
encontrar o caminho oposto o momento no qual desenvolvedores da ciecircncia e da teacutecnica
buscam a filosofia para fundamentar seus trabalhos Eacute caso dos estudos realizados por Peter
Oslashhrstroslashm Henrik Schaumlrfe e Sara L Uckelman cujos resultados foram publicados nos anais da
International Conference on Conceptual Structures um evento dedicado agrave ciecircncia da
computaccedilatildeo Os trecircs investigadores fundamentam desde a ontologia moderna claacutessica a
concepccedilatildeo de hipertexto um conceito fundamental da computaccedilatildeo13 Para Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e
Uckelman o nascimento do termo ldquoontologiardquo representa o estabelecimento de um hipertexto
sobre a realidade e a temporalidade em pleno seacuteculo dezessete Os pesquisadores se referem
especificamente a Jacob Lorhard autor dos oito volumes intitulados Ogdoas Scholastica (1606)
responsaacutevel por cunhar o termo ldquoontologiardquo pela primeira vez na histoacuteria
Lorhard compocircs sua Ogdoas como uma gramaacutetica para o ensino escolar por meio de
aacutervores diagramaticais A teacutecnica utilizada por Lorhard foi profundamente influenciada por
Petrus Ramus (Pierre de la Rameacutee) cujo objetivo era transformar a razatildeo dialeacutetica em um
meacutetodo de loacutegica pedagoacutegica Petrus Ramus foi uma figura controversa e polecircmica Aleacutem de
suas interpretaccedilotildees pouco ortodoxas de Aristoacuteteles Ramus defendia uma completa reforma no
sistema educacional Ele fomentava o espiacuterito humanista pelo qual procurava devolver agrave
retoacuterica sua posiccedilatildeo proeminente visando desautorizar o peso da loacutegica escolaacutestica14
13 A ideia de hipertexto eacute bastante antiga todavia o termo no sentido moderno foi cunhado por Ted Nelson em
1965 para descrever o sistema de escrita natildeo-sequencial que envolvia o ligamento entre textos distintos em uma
mesma interface na internet O sistema de hyperlinks em um siacutetio da internet eacute um exemplo bastante simples de
um hipertexto 14 Cf Petrus Ramus Sa Vie Ses Eacutecrits et Ses Opinions Charles Waddington (ed) Paris Librairie de Ch Meyrteis
1855 Acerca das singularidades de Petrus Ramus confira Laura Adriaacuten Lara ldquoPetrus Ramus y el ocaso de la
retoacuterica ciacutevicardquo Utopiacutea y Praxis Latinoamericana v 13 n 43 (out-dez 2008) 11-31 e ainda Frank P Graves
Petrus Ramus and the Educational Reformation of Sixteenth Century New York Macmillan 1912
53
Havia um profundo espiacuterito anti-escolaacutestico que movia os interesses de Ramus
enfatizando uma postura radical na qual a filosofia ramista considerava falsa todas as
afirmaccedilotildees de Aristoacuteteles Para facilitar o processo de aprendizagem pelo qual o domiacutenio das
ciecircncias e artes liberais pode ser alcanccedilado Ramus emprega seus ldquoesquemas visuais abstratosrdquo
Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman se referem aos esquemas de Ramus como base para a aacutervore
diagramatical de Jacob Lorhard ndash para os pesquisadores este tipo de diagrama eacute o berccedilo de
todo futuro hipertexto
Eacute faacutecil observar que a estrutura da Ogdoas Scholastica de Jacob Lorhard permite ao
leitor localizar conceitos especiacuteficos e suas respectivas definiccedilotildees por meio de uma rede de
interconexotildees na forma de diagramas A ldquoaacutervorerdquo facilita natildeo soacute a compreensatildeo dos conceitos
como tambeacutem a maneira pela qual eles se relacionam uns com os outros Sem embargo trata-
se de uma gramaacutetica pela qual o domiacutenio de conceitos fundamentais da metafiacutesica se torna
bastante simples concordando em absoluto com a demanda da eacutepoca em introduzir este tipo de
estudo nos niacuteveis baacutesicos de ensino Com obras como as de Lorhard a exigecircncia do estudo da
ontologia foi difundida durante o seacuteculo dezoito como parte essencial da formaccedilatildeo acadecircmica
baacutesica15 Aleacutem disto a Ogdoas ainda sustentava a eacutegide da clarificaccedilatildeo da ontologia como base
para todo ulterior desenvolvimento intelectual Em outros termos Lorhard (assim como Ramus)
acreditava que natildeo era possiacutevel esclarecer nenhuma ciecircncia se natildeo houvesse de antematildeo uma
lucidez absoluta a respeito dos fundamentos do ente que poderia ser proporcionada apenas pelo
estudo por ele nomeado ldquoontologiardquo um discurso que buscava um pleno esclarecimento dos
termos empregados para definir todo e qualquer ulterior passo tomado tanto nas ciecircncias do
espiacuterito quanto nas ciecircncias da natureza
15 Muito disto deve-se ao filoacutesofo norueguecircs Jens Kraft cuja obra (influenciada em larga escala pela Metaphysica
sive Ontologia de Christian Wolff) reforccedilou o peso dos estudos em ontologia Dentro da compreensatildeo de Kraft
compartilhada tambeacutem por Lorhard e outros a ontologia ganha um lugar privilegiado como unificaccedilatildeo sistemaacutetica
das estruturas do pensamento como um todo
54
O oitavo livro da Ogdoas de Lorhard que encerra o compecircndio e eacute dedicado agrave ontologia
no sentido de unificar todos os escritos anteriores define a metafiacutesica como ldquo() o
conhecimento de um inteligiacutevel enquanto inteligiacutevel ()rdquo (LORHARD sd 3) Este conhecimento
eacute divido entre conhecimento dos particulares e dos universais Para Lorhard a parte da
metafiacutesica responsaacutevel pelo conhecimento dos particulares ou bem se refere acirc substacircncia
pertinente aos seres natildeo-complexos que subsistem em si mesmos (sejam eles criados ou natildeo)
ou bem aos acidentes
Jaacute o conhecimento dos universais se refere a tudo o que eacute inteligiacutevel redundando nos
atributos gerais ou nas distribuiccedilotildees conforme as quais o λόγος eacute entendido como um inteligiacutevel
As distribuiccedilotildees dizem respeito ao nada por um lado ou a algo por outro sendo este uacuteltimo
em seu aspecto positivo o que envolve as ideias de ldquoessecircnciardquo e ldquoenterdquo As noccedilotildees de ldquoessecircnciardquo
e ldquoenterdquo satildeo centrais natildeo apenas para o sistema de Lorhard mas tambeacutem para todas as
subsequentes compreensotildees da ontologia Em uma primeira definiccedilatildeo Lorhard observa a
ldquoessecircnciardquo em sua relaccedilatildeo com o λόγος definindo que ldquoEssecircncia eacute algo produtivo pelo qual o
Ser eacute o que eacute Esta palavra estrangeira eacute chamada pelos Escolaacutesticos de Entidade ou quidditasrdquo
(IDEM IBIDEM 4) Em segundo lugar considera a ldquoessecircnciardquo em relaccedilatildeo a sua distribuiccedilatildeo na
qual ela eacute ou bem ldquorealrdquo (ou seja uma atualizaccedilatildeorealizaccedilatildeo do ser) ou bem ldquoimaginaacuteriardquo (no
caso de um ser puramente racional) Ambas podem ser ldquosimplesrdquo ou ldquocompostasrdquo ldquoabsolutasrdquo
ou ldquorespectivasrdquo ldquouniversaisrdquo ou ldquosingularesrdquo Dentro do uacuteltimo destes casos a ldquoessecircnciardquo
pode ser ainda ldquogeneacutericardquo (ou um gecircnero compartilhado por outras espeacutecies) ou ldquoespeciacuteficardquo
(relativa a uma uacutenica espeacutecie) Natildeo haacute grande espanto nos pontos apresentados ateacute entatildeo por
Lorhard O que haacute na verdade eacute uma constituiccedilatildeo sistemaacutetica de um diaacutelogo que estava sendo
travado jaacute haacute muito tempo e sobremaneira evidente no periacuteodo no qual ele compocircs sua obra
Suas contribuiccedilotildees mais significantes talvez se deem na seccedilatildeo seguinte quando aborda a
questatildeo do ldquoenterdquo
55
Lorhard tambeacutem considera o ldquoenterdquo no discurso unificador bem como na questatildeo da
ldquoessecircnciardquo afirmando dele algo produtivo ldquodotado de certa essecircnciardquo Em seu caraacuteter
distributivo o ldquoenterdquo (assim como a ldquoessecircnciardquo) eacute ou bem ldquorealrdquo ou bem ldquoracionalrdquo Ele define
o ldquoente de razatildeo ou racionalrdquo afirmando que ldquoEacute um ente de razatildeo que eacute tocado pela cogitaccedilatildeo
de uma mente singular de acordo com o modo real do ente agrave parte disto eacute nada Eacute tambeacutem
chamado ente fictiacutecio e imaginaacuteriordquo (ID IBID 5) Jaacute o ldquoente realrdquo pode se dar por meio do
discurso (λόγος) de sua proacutepria essecircncia ou ainda ser distribuiacutedo em entes primaacuterios e
secundaacuterios (estes uacuteltimos decorrentes dos primeiros) sendo ambos ldquosimplesrdquo ou ldquocomplexosrdquo
ldquoabsolutosrdquo ou ldquorespectivosrdquo ldquouniversaisrdquo ou ldquoparticularesrdquo ldquoimateriaisrdquo ou ldquomateriaisrdquo
ldquopermanentesrdquo ou ldquosucessivosrdquo
Toda a divisatildeo da ontologia de Lorhard acompanha em muitos aspectos a ontologia
derivada da filosofia grega claacutessica desde o processo dialeacutetico de questionamento da realidade
conforme a doutrina platocircnica e a divisatildeo das Categorias de Aristoacuteteles A principal distinccedilatildeo
do emprego do termo ontologia como expressatildeo e manifestaccedilatildeo das doutrinas metafiacutesicas em
Lorhard eacute o foco especiacutefico de uma ldquodoutrina dos inteligiacuteveisrdquo Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman
comentam que
Conforme Lorhard haacute uma importante dualidade entre os entes e nossa discussatildeo
racional a respeito deles Parece que ele insistiu na necessidade dessa dualidade no
sentido de que cada vez que noacutes discutimos os entes no mundo tentando classificaacute-
los tambeacutem temos que refletir sobre os conceitos usados para fazecirc-los (OslashHRSTOslashM
SCHAumlRFE E UCKELMAN OP CIT 4)
Em termos mais simples apoacutes um longo periacuteodo de aristotelismo escolaacutestico talvez tenha sido
Lorhard o primeiro a atentar para o fato de certa confusatildeo gerada dentro da metafiacutesica a respeito
da maneira pela qual se predica o ser do ente em sua participaccedilatildeo presente na realidade
56
Seria liacutecito portanto argumentar que a evidecircncia da confusatildeo de termos se deve ao fato
de Lorhard ter deslocado o ontocentrismo metafiacutesico para uma teoria dos intiligiacuteveis Ainda
conforme Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman a postura de Lorhard eacute diretamente influenciada pela
obra de Clemens Timpler que sustentava a mesma posiccedilatildeo a respeito da metafiacutesica desde uma
confrontaccedilatildeo direta com a filosofia de Francisco Suaacuterez Esta seria a contenda principal do
iniacutecio da modernidade responsaacutevel por conformar e enformar a metafiacutesica como ontologia tal
qual hoje ainda se a concebe Joseph S Freedman desenvolve uma anaacutelise bastante precisa da
maneira pela qual Timpler fundamentou sua postura e as consequecircncias de seu trabalho
sobretudo no que tange agrave disputa com Francisco Suaacuterez A respeito da proposiccedilatildeo ldquotudo que eacute
inteligiacutevelrdquo (omne intelligibile) o tema constitutivo da metafiacutesica Freedman (cf 2009 10-11)
comenta que Timpler provecirc uma moldura conceitual dentro da qual alguns conceitos
ontologicamente baacutesicos satildeo englobados quais sejam ldquoalgordquo (aliquid) ldquoprivaccedilatildeordquo (privatio)
ldquoessecircnciardquo (essentia) e ldquoentidaderdquo (ens) Dentro da dissoluccedilatildeo dos conceitos na obra central de
Timpler Metaphysicae systema methodicum (1604) Freedman comenta
Conforme Timpler ldquotudo aquilo que eacute Inteligiacutevelrdquo eacute dividido entre nihil (ie ldquonadardquo
ou ldquonatildeo-serrdquo) e aliquid aut est (ldquoalgordquo ou ldquoenterdquo) esta eacute basicamente a mesma
dicotomia que William Shakespeare aludiu quando ele coloca no Ato 3 Cena 1 de
Hamlet ndash alguns anos antes (c 1600) da publicaccedilatildeo do texto de Timpler sobre
metafiacutesica ndash que ldquoser ou natildeo ser estaacute eacute a questatildeo []rdquo Mas esta foi a questatildeo que
Timpler e todos os seus (conhecidos) contemporacircneos acadecircmicos aparentemente
desejaram evitar de discutir A discussatildeo da questatildeo de Shakespeare ndash e da dicotomia
de Timpler ndash poderia ter provido as bases para o levantamento de toacutepicos altamente
sensiacuteveis por exemplo 1) a relaccedilatildeo entre Deus e Nada (nihil) 2) a relaccedilatildeo entre Deus
entidade e privaccedilatildeo (ie mal) e 3) a relaccedilatildeo entre Deus e o princiacutepio de contradiccedilatildeo
(FREEDMAN op cit 12)
57
Embora estas questotildees estivessem jaacute sempre presentes dentro dos questionamentos de Timpler
e de seus contemporacircneos elas eram todavia caladas de acordo com Freedman (IDEM IBIDEM)
pela imposiccedilatildeo das instituiccedilotildees cristatildes das coisas sobre as quais se era proibido falar ou acreditar
O que perdura das apresentaccedilotildees filosoacuteficas da metafiacutesica como ontologia em Timpler
ponderando seu princiacutepio do inteligiacutevel concentra-se em primeiro lugar como o mateacuteria de
todas as disciplinas e subdisciplinas acadecircmicas e em segundo lugar como foco de disciplinas
separadas como a archeologia gnostologia hexiologia intelligentia pansophia e tecnologia
(cf ID IBID 14)
O motivo da predileccedilatildeo da questatildeo dos intiligiacuteveis como foco principal de todos os
temas concernentes ao pensamento aparece dentro da possibilidade de envolver todos os
aspectos responsaacuteveis pelos modos operativos de pensar 16 Desta forma por exemplo as
disciplinas separadas como a ldquotecnologiardquo seriam desenvolvidas para as consideraccedilotildees gerais
e universais da estrutura das disciplinas liberais (cf ID IBID 16) Embora discrimine em parte
o princiacutepio da cogniccedilatildeo a metafiacutesica tampouco envolve a loacutegica por levar em consideraccedilatildeo
apenas os princiacutepios excluindo entidades complexas que redundem no princiacutepio de contradiccedilatildeo
Em contrapartida ao sistema metoacutedico de Timpler vecirc-se em Francisco Suaacuterez um
caraacuteter muito mais ontocecircntrico As Disputationes Metaphysicae (1597) de Francisco Suaacuterez
satildeo publicadas dentro de um contexto de desarmonia e conflitos entre a teologia e a filosofia
onde os conceitos fundamentais na discussatildeo sobre o divino estavam sendo postos em questatildeo
A despeito das influecircncias de Suaacuterez e dos necessaacuterios posicionamentos poliacuteticos sua obra
parece instaurar um regulamento por meio do qual nada poderia ser legado agrave mera
inteligibilidade
16 Freedman (ID IBID 15) cita o teoacutelogo calvinista Matthias Martinius contemporacircneo de Timpler que evidencia
de maneira mais clara os motivos das proposiccedilotildees fundamentais Ele atesta que conforme esta designaccedilatildeo agrave
metafiacutesica ldquopertence tudo aquilo que eacute cognosciacutevelrdquo (de omni cogitabili) mas com certas restriccedilotildees englobando
a ldquouniversalidade das coisasrdquo (rerum universitatem) mas natildeo envolvendo disciplinas acadecircmicas especializadas
singulares ou particulares
58
As Disputationes de Suaacuterez podem ser entendidas desde uma divisatildeo da obra na qual a
primeira parte (as primeiras vinte-e-sete questotildees) se refere ao ente no sentido geral enquanto
a segunda parte (as vinte-e-sete uacuteltimas questotildees) lida com o ente particular redundando em
uma dupla divisatildeo da proacutepria metafiacutesica entre ldquometafiacutesica geralrdquo e ldquometafiacutesica especialrdquo (cf
SUAacuteREZ 2004 DOYLE 2004) Ao comentar o desenvolvimento deste aspecto da filosofia de
Suaacuterez Ludger Honnefelder ainda acrescenta
Conforme Suaacuterez a metafiacutesica lida com o conceito de ente tanto ldquoformalrdquo quanto
ldquoobjetivordquo Pelo conceito formal Suaacuterez entende o ato de conhecer do qual ldquoex unica
et prima impositionerdquo que rende uma representaccedilatildeo intencional do objeto pelo
conceito objetivo ele designa aquilo que representa intencionalmente o ato Em outras
palavras Suaacuterez natildeo assume a teoria dos conceitos caracterizada pelo paralelismo
noeacutetico-noemaacutetico de res e conceptus antes ele aceita a abordagem criacutetica de Ockham
em direccedilatildeo a interpretaccedilatildeo realiacutestica dos conceitos universais Desde que Scottus ele
mesmo natildeo depende desse paralelismo quando isto vem a dizer respeito sobre o ente
Suaacuterez substancialmente segue Scottus e aplica ldquoenterdquo para um conceito formal
primaacuterio e unificado que em virtude de sua imposiccedilatildeo representa um objetivo
primaacuterio e unificado do conteuacutedo absolutamente simples que envolve todos os entes
distintos de uma maneira indeterminada ie como ente (HONNEFELDER 2003)
Segundo a exposiccedilatildeo de Honnefelder o direcionamento da metafiacutesica de Suaacuterez iraacute redundar
em alguns pontos baacutesicos em primeiro lugar o fato de que a determinaccedilatildeo do ente transcende
a generalidade dos gecircneros em segundo que a determinaccedilatildeo natildeo pode ela mesma ser definida
podendo apenas ser explicada em relaccedilatildeo agrave existecircncia real em terceiro que toda existecircncia estaacute
sujeita agrave fundamentaccedilatildeo de disposiccedilatildeo ontoloacutegica em uacuteltimo lugar que o ente finito perdura
em um modo indeterminaacutevel de quantidade sendo o ente infinito eacute aquilo que eacute perfeito e
totalmente indivisiacutevel em si mesmo e mais real e completo (cf IDEM IBIDEM)
59
Agora bem com o fito de retomar a linha de raciociacutenio desenvolvida no capiacutetulo eacute
preciso retomar a ideia de substantivaccedilatildeo do Ocidente e a maneira pela qual esse processo se
deixar ver ao longo da histoacuteria da ontologia Martin Heidegger indica em primeiro lugar o que
ele considera como o problema fundamental pelo qual a metafiacutesica se desdobra no Ocidente
qual seja o fato de que o ldquoserrdquo natildeo eacute um ldquoenterdquo mas que todavia um foi tomado pelo outro Ele
apresenta ainda o argumento de que a transposiccedilatildeo da experiecircncia fundamental grega (conforme
apresentada tambeacutem por Charles H Kahn) sofre uma violaccedilatildeo na absorccedilatildeo latina e na
transferecircncia de conceitos de um modo de pensar para o outro Eacute dentro deste ambiente latino
que eacute possiacutevel rastrear a maneira pela qual a metafiacutesica se forma e transforma em ontologia ou
bem dentro de uma filosofia do inteligiacutevel (como em Lorhard e Timpler) ou bem como um
ontocentrismo filosoacutefico (como em Suaacuterez) Sem embargo trata-se de uma disputa em torno agraves
formas primaacuterias da discussatildeo em torno ao ldquoserrdquo e ao ldquoenterdquo Eacute possiacutevel concluir desde a
constataccedilatildeo da entificaccedilatildeo do ser ou substantivaccedilatildeo do Ocidente que a demanda pela resposta
ao problema primeiro da filosofia necessariamente a encaminha para um percurso que natildeo
poderia ser outro Mas qual eacute propriamente este problema primeiro e como se constroacutei esse
caminho Natildeo haveria outra indicaccedilatildeo senatildeo a da ciecircncia dos primeiros princiacutepios e causas de
Aristoacuteteles Jaacute na doutrina das Categorias de Aristoacuteteles eacute possiacutevel observar a confusatildeo entre
ldquoserrdquo e ldquoenterdquo A questatildeo pode ser melhor observada na proposiccedilatildeo baacutesica e amplamente
difundida da Metafiacutesica ldquoO ente se diz em muacuteltiplos significados mas sempre em referecircncia a
uma unidade e a uma realidade determinadardquo (ARISTOacuteTELES 2002 131)17 A referecircncia a uma
unidade e uma realidade determinada eacute a chave para compreender a maneira pela qual a
ontologia se torna a ciecircncia responsaacutevel por esse tema (conforme Aristoacuteteles ldquoHaacute uma ciecircncia
que considera o ente enquanto ente e as propriedades que lhe competem enquanto talrdquo ID IBID)18
17 Τὸ δὲ λέγεται μὲν πολλαχῶς ἀλλὰ πρὸς ἓν καὶ μίαν τινὰ φύσις καὶ οὐχ ὁμωνύμως ἀλλrsquo (Metafiacutesica 1003a 30-
35) 18 Ἔστιν ἐπιστήμη τις ἧ τὸ ὄν ᾗ ὄν καὶ τὰ τούτῳ ὑπάρχοντα καθ αὑτό (Metafiacutesica 1003a 20)
60
Dentro desta ciecircncia o conceito central que unifica e determina ldquoenterdquo e ldquoserrdquo eacute
apresentado como οὐσία O conceito de οὐσία (substantia substacircncia) eacute bem desenvolvido nas
Categorias entre as expressotildees que natildeo satildeo compostas quais sejam a substacircncia mesma
quantidade qualidade relaccedilatildeo lugar tempo posiccedilatildeo estado accedilatildeo ou afecccedilatildeo Ela eacute
apresentada desde duas perspectivas uma primaacuteria outra secundaacuteria A substacircncia primeira
natildeo se afirma de um sujeito nem em um sujeito mas comporta as substacircncias segundas nas
quais a forma afirma a espeacutecie e o gecircnero (ldquoserrdquo do sujeito) comportando tambeacutem os acidentes
(ldquoserrdquo no sujeito) que a eles se atribui Embora o conceito em sua primeira formulaccedilatildeo
contemple o aspecto formal bem como o elemento inteligiacutevel envolve ainda o aspecto material
em seu segundo modo natildeo podendo ser um sem o outro
As consequecircncias do desenvolvimento de uma ciecircncia responsaacutevel pelo ente enquanto
ente centralizando o conceito de substacircncia e substantivando a ideia de ldquoserrdquo por meio de seu
particiacutepio presente ldquoenterdquo satildeo o que se pode considerar como o desenvolvimento da histoacuteria do
ldquoserrdquo ou a histoacuteria da maneira pela qual o Ocidente compreende o ldquoserrdquo e a si mesmo Por meio
desta postulaccedilatildeo o ldquoτὰ ὄνταrdquo eacute posicionado no centro do pensamento ocidental Mais ainda do
que uma simples constataccedilatildeo da maneira pelo qual coube ao Ocidente pensar curioso eacute
especular o fato de que se natildeo fosse possiacutevel pensar fora da delimitaccedilatildeo do ente natildeo haveria
sequer indagaccedilatildeo alguma sobre as limitaccedilotildees ou prejuiacutezos imbuiacutedos nesta formulaccedilatildeo Sem
embargo eacute possiacutevel constatar desde os recursos apresentados (e ainda por muitos outros
caminhos que natildeo este) a necessidade incontida do ser humano ocidental eacute desenhar de maneira
niacutetida as fronteiras do pensamento e da maneira pela qual esse pensamento deve e pode ser
aplicado Resta saber apoacutes esta delimitaccedilatildeo o que haacute para aleacutem da fronteira
61
2 O CAMINHO DA NEGATIVIDADE HENEOLOGIA E MEONTOLOGIA E A
ULTRAPASSAGEM DOS LIMITES DA METAFIacuteSICA
O discurso ontoloacutegico tanto grego quanto latino personificou a atividade filosoacutefica ocidental
em larga escala A maneira pela qual a ontologia habilitava ao raciociacutenio uma seacuterie de
procedimentos facilmente verificaacuteveis nutriu seguranccedila metodoloacutegica aos assuntos
concernentes aos problemas intelectuais com os quais o ser humano fatalmente se deparava ao
longo de suas especulaccedilotildees e que reverberavam ainda na conjuntura soacutecio-pragmaacutetica Eacute neste
sentido que teria afirmado Immanuel Kant de maneira perspicaz que a razatildeo humana se
defronta com inevitaacuteveis questotildees impostas por sua proacutepria natureza19 Tanto para Aristoacuteteles
quanto para Francisco Suaacuterez aleacutem de tantos outros entrementes a importacircncia de assegurar
uma linha de raciociacutenio vaacutelida natildeo somente atribuiacutea autoridade ao argumento como tambeacutem
provia de suficiente clareza a linguagem que advogava suas doutrinas Em outras palavras
tornava-se faacutecil convencer outrem de seus pressupostos dada a indefectiacutevel loacutegica empregada
para encadear as sentenccedilas e alcanccedilar uma conclusatildeo A ontologia por meio de suas loacutegicas de
identidade e natildeo-contradiccedilatildeo (e ateacute certo ponto tambeacutem via argumento do terceiro excluiacutedo)
visava alcanccedilar tanto para afirmaccedilatildeo quanto para negaccedilatildeo a dissoluccedilatildeo de todo e qualquer
paradoxo que colocasse a mente em estado de confusatildeo e discoacuterdia Independente daquilo que
estava sendo afirmado ou negado da linha de raciociacutenio ou doutrina em jogo os procedimentos
discursivos e intelectuais eram basicamente os mesmos com variaccedilotildees conceituais maiores ou
menores dependendo da vertente Todavia prosseguia-se sempre da mesma maneira
19 Kant afirma ldquoA razatildeo humana no seu gecircnio de seu conhecimento possui o peculiar destino de ser incomodada
por questotildees que natildeo pode evitar porque elas satildeo dadas pela natureza da razatildeo mesma mas tambeacutem natildeo possuem
respostas porque elas excedem a capacidade da razatildeo humanardquo (KANT 1956 5 Criacutetica da razatildeo pura AVII-
AVIII)
62
Contudo a despeito da supremacia ontoloacutegica outras formas de pensamento foram
desenvolvidas no decorrer da histoacuteria da filosofia fossem elas similares ou totalmente opostas
Alguns pensadores especialmente radicais se dedicaram a um modo reflexivo que se distanciava
consideravelmente da estrutura ontoloacutegica Suas bases seus pressupostos e seus meacutetodos pelos
quais prosseguiam no caminho especulativo dos temas propostos (muitas vezes os mesmos dos
formuladores da ontologia claacutessica) projetavam-se de maneira consideravelmente diversa Para
eles havia uma necessidade imperativa de incluir todos os elementos presentes na estrutura da
realidade pensada em sua maacutexima possibilidade de concepccedilatildeo tanto os que satildeo quanto os que
natildeo satildeo Ao que parece por este motivo Werner Beierwaltes considera que as caracteriacutesticas
pelas quais se configuram a ontologia claacutessica satildeo sobretudo frutos da interrogaccedilatildeo pelo nexo
da identidade e da diferenccedila quer seja na afirmaccedilatildeo parmeniacutedica da natildeo legitimaccedilatildeo filosoacutefica
da alteridade quer seja na resposta platocircnica do necessaacuterio estabelecimento da diferenccedila na
constituiccedilatildeo do ldquoserrdquo em seu inteiro (cf BEIERWALTES 1989 25) Para Beierwaltes o rigoroso
conceito de unidade demandado por Platatildeo em reposta agrave univocidade do ser de Parmecircnides
resultou na possibilidade de inclusatildeo do ldquonatildeo-serrdquo relativo ao ldquoserrdquo para afirmar sua totalidade
Disto derivaria a altercaccedilatildeo originaacuteria entre identidade e diferenccedila e nisto consiste a
possibilidade de desvio do pensamento ontoloacutegico20 Sem embargo precisamente neste ponto
que acredito poder encontrar o que chamo aqui de caminho da negatividade ou a possibilidade
de inclusatildeo do oxiacutemoro no caminho de pensamento delineado pela ontologia considerando que
ele se desdobra na tradiccedilatildeo do chamado neoplatonismo e ainda na miacutestica medieval
20 Trata-se da definiccedilatildeo do natildeo-ser como alteridade apresentada no Sofista Apoacutes a discussatildeo acerca da comunidade
de gecircneros e a questatildeo do ldquomesmordquo e do ldquooutrordquo que configuram o problema da identidade e da diferenccedila Platatildeo
apresenta a hipoacutetese de compreender o ldquomovimentordquo como ldquooutrordquo do ldquoserrdquo questionando a tese parmeniacutedica a
respeito da ldquoestaticidade do serrdquo Assim Platatildeo coloca a questatildeo ldquoDevemos trabalhar nossa coragem agora para
dizer que aquilo que lsquonatildeo eacutersquo definitivamente eacute algo que possui natureza proacutepria Devemos dizer que assim como
o grande era grande o belo era belo o natildeo grande eacute natildeo grande e o natildeo belo eacute natildeo belo da mesma maneira pela
qual natildeo eacute tambeacutem foi e eacute natildeo-ser e eacute uma das formas dentre as quais satildeordquo (PLATO 1997 282 Sofista 258 c-d)
A sequecircncia do diaacutelogo questionaraacute a realidade deste natildeo-ser relativo culminando na identidade entre pensamento
e discurso abrindo a possibilidade para o discurso falso (o do sofista) e introduzindo a assunccedilatildeo do paradoxo no
seio do pensamento representando o chamado parriciacutedio aos eleatas
63
Ateacute onde eacute possiacutevel investigar o termo neoplatonismo teria sido cunhado pela primeira
vez pelo helenista e medievalista Thomas Gale nos idos de 1670 Gale foi responsaacutevel por uma
seacuterie de estudos sobre o neoplatonismo pagatildeo e cristatildeo escrevendo sobre Plotino Jacircmblico
Joatildeo Escoto Eriuacutegena Maacuteximo Confessor entre outros21 Definiccedilotildees agrave parte os primeiros
elementos responsaacuteveis por delinearem um ldquoneoplatonismo originaacuteriordquo apenas tardiamente
nomeado satildeo atribuiacutedos a Amocircnio Sacas Contudo como a figura histoacuterica de Amocircnio Sacas
eacute tatildeo envolta em controveacutersias e misteacuterios quanto a vida de Pitaacutegoras ou Soacutecrates atribui-se
diretamente a fundaccedilatildeo de uma ldquoescola neoplatocircnicardquo a Plotino disciacutepulo de Amocircnio
Muacuteltiplos debates mais ou menos coerentes envolvem os relatos sobre a relaccedilatildeo entre Plotino e
Amocircnio aleacutem de polecircmicas acerca do proacuteprio Amocircnio22 Destaca-se apenas a autoridade dos
relatos de Porfiacuterio (em sua Vida de Plotino) nos quais se considera que o meacutetodo de pesquisa
aplicado por Plotino estava profundamente ligado ao de seu mestre O conteuacutedo dos discursos
de Plotino tambeacutem teria uma iacutentima relaccedilatildeo com as tentativas de Amocircnio de unificar os diversos
planos do ser e estabelecer a derivaccedilatildeo de todas as coisas a partir do uno23 Sem embargo
Plotino teria absorvido e desenvolvido a doutrina de Amocircnio e necessariamente de Platatildeo em
suas Eneacuteadas em um movimento de exegese ao discurso platocircnico Exegese esta suscetiacutevel de
diversas interpretaccedilotildees dos caminhos por Plotino tomados e mesmo natildeo muito consensual entre
os estudiosos da obra24
21 Extraiacute estes dados de Aaron W Huges em um trabalho intitulado ldquoMedievalrdquo and the Politics of Nostalgia
Ideology Scholarship and the Creation of the Rational Jew (2012) Huges natildeo apenas investiga as origens das
designaccedilotildees do neoplatonismo mas ainda constata que a alcunha de ldquoneoplatocircnicosrdquo continuou sendo utilizada
por eruditos alematildees no seacuteculo dezenove como uma menccedilatildeo pejorativa aos ldquofalsificadoresrdquo das doutrinas de Platatildeo
e Aristoacuteteles (cf HUGES 2012) 22 Conforme Giovanni Reale em sua Storia della filosofia antica (1975-1980) Sobre este ponto especificamente
acerca das incertezas em torno agrave figura de Amocircnio confira REALE 2008 5-13 23 Esta consideraccedilatildeo eacute apresentada por Giovanni Reale com base nos relatos de Nemeacutesio em De natura hominis
(cf REALE 2008 11) Conforme Francisco B Harriet a questatildeo fundamental se encontraria na foacutermula ldquoestaacute mais
aleacutem do intelecto e da essecircnciardquo (ἐπέκεινα νοῦϛ καὶ οὐσίας) conforme a formulaccedilatildeo de Oriacutegenes de Alexandria
em Contra Celsum (fons ex quo initium totius intellectualis naturae uel mentir est) presente em Plotino (Eneacuteadas
V 1 8 e VI 8 16) e derivada do ciacuterculo de Amocircnio (cf HARRIET 2012 153) 24 Sobre a questatildeo da exegese Marcus Reis Pinheiro (em Plotino exegeta de Platatildeo e Parmecircnides 2007)
argumenta que natildeo se pode reduzir a exegeacutetica agrave mera interpretaccedilatildeo dos diaacutelogos de Platatildeo e outros escritos Trata-
se antes do desdobramento de um discurso muito antigo onde ldquo() fazer exegese () natildeo eacute interpretar
objetivamente os textos mas caminhar rumo aos niacuteveis superiores junto com os antigosrdquo (P INHEIRO 2007 80)
64
Neste fluxo talvez o mais cabiacutevel usual e conhecido de todos os estabelecimentos de
um ldquoponto de partidardquo seja o do claacutessico artigo Jean Trouillard Le Parmeacutenide de Platon et son
interpretation neacuteoplatonicienne (1973) onde o neoplatonismo eacute pensado desde a busca da
doutrina originaacuteria de Platatildeo principalmente a partir de uma releitura de seu diaacutelogo
Parmecircnides Todavia a maneira pela qual eacute possiacutevel explanar esta releitura levanta suspeitas
sendo necessaacuterio ponderar em quais formas a exegese plotiniana converge ou diverge das
tentativas de uma interpretaccedilatildeo das doutrinas originaacuterias de Platatildeo Mais ainda estaacute tambeacutem
em jogo a autoridade de apontar que existam de fato doutrinas originaacuterias havendo ainda
abertura para questionar a fiabilidade e o suposto peso das chamadas ldquodoutrinas natildeo-escritasrdquo25
Seja como for interessa sobretudo destacar como com as Eneacuteadas de Plotino o pensamento
filosoacutefico experimenta um movimento iacutempar em relaccedilatildeo agravequilo que vinha sendo apresentado
Para Ciacutecero Cunha Bezerra eacute possiacutevel elencar alguns pontos que evidenciam de maneira
clara a renovaccedilatildeo do neoplatonismo Destaca-se em primeiro lugar a junccedilatildeo entre os elementos
aristoteacutelicos e pitagoacutericos em siacutentese com uma perfeita sintonia entre o platonismo acadecircmico
e as ldquodoutrinas natildeo-escritasrdquo Ademais a ldquohierarquizaccedilatildeordquo do real a partir da qual todos os
graus satildeo derivados desde o uno permite uma sistematizaccedilatildeo do platonismo anterior Por este
motivo tende-se agrave leitura conforme a qual o neoplatonismo possuiria um sistema ldquomonopolarrdquo
frente a um suposto ldquobipolarismordquo platocircnico Por fim haacute ldquo() o fim uacuteltimo do processo de
conhecimento que para o neoplatocircnico eacute a uniatildeo plena com Deus (fugir soacute ao soacute) uma uniatildeo
que tem como marca a supressatildeo (aphaiacuteresis) de todo saber e dizerrdquo (BEZERRA 2006 57)
Dentre os pontos apresentados interessa-me particularmente o uacuteltimo (evidente consequecircncia
dos trecircs primeiros) no qual o neoplatonismo aparece como uma ldquosupressatildeo de todo saber e
dizerrdquo
25 Haacute uma interessante e profunda discussatildeo acerca do tema na tradiccedilatildeo de leitores e inteacuterpretes do platonismo e
do neoplatonismo a respeito deste toacutepico Ciacutecero Cunha Bezerra (em Compreender Plotino e Proclo 2006) aborda
o tema abrindo uma interlocuccedilatildeo com a obra Platone alla ricerca della spienza segreta de Giovanni Reale e ainda
com as investigaccedilotildees de W K C Guthrie e a chamada Escola de Tuumlbingen (cf BEZERRA 200617-24)
65
O senso comum ocidental regula a atividade filosoacutefica como um progresso ininterrupto
rumo ao acuacutemulo de conhecimento e dissoluccedilatildeo dos problemas Curioso agora eacute pensar a
maneira pela qual uma doutrina filosoacutefica pode suprimir o saber e o dizer ao inveacutes de
acrescentar Mas eacute apenas possiacutevel atingir a compreensatildeo necessaacuteria desta supressatildeo uma vez
esclarecido o que eacute propriamente o princiacutepio negativo do pensamento de Plotino Para isto natildeo
se pode perder de vista as duas questotildees que levariam agrave construccedilatildeo do pensamento de Plotino
quais sejam ldquo() o problema religioso (que corresponde agrave busca de compreensatildeo do destino
da alma assim como sua restauraccedilatildeo) e o problema filosoacutefico relativo agrave explicaccedilatildeo racional da
realidade ()rdquo (IDEM IBIDEM 66)26 ponderando ainda que em Plotino ambas estatildeo perfeitamente
inter-relacionadas Para atingir este entendimento todavia eacute necessaacuterio analisar as chamadas
trecircs hipoacutestases de Plotino presentes em suas Eneacuteadas
O conjunto de circunstacircncia que acompanham a formulaccedilatildeo do pensamento de Plotino
eacute todavia aquele anteriormente citado apresentado por Werner Beierwaltes que remete agrave
contenda entre Parmecircnides e Platatildeo Contextualizar a disputa Parmecircnides-Platatildeo da qual
derivam centralmente as hipoacutestases de Plotino natildeo eacute necessariamente complicado embora
interpretaacute-la e desde aiacute desdobrar um novo caminho reflexivo seja uma tarefa bastante
trabalhosa A demanda especulativa eacute altiacutessima e envolve uma bibliografia excessivamente
extensa e complexa Contudo como o interesse aqui eacute a apresentaccedilatildeo dos aspectos centrais do
pensamento de Plotino e como deles redunda uma nova postura e atitude filosoacuteficas o trabalho
fica menos penoso Portanto para colocar em relevo as hipoacutestases de Plotino eacute importante ao
menos demonstrar de forma simples os pontos originais dos quais elas derivam seja em
Parmecircnides seja em Platatildeo (e ateacute certo ponto tambeacutem no neopitagorismo e em Aristoacuteteles
embora esta tarefa exija um pouco mais e seja um pouco mais complicada de rastrear) Para
alcanccedilar este objetivo torna-se imperioso retornar brevemente a Parmecircnides
26 Esta hipoacutetese eacute destacada por Bezerra diretamente da obra de Eacutemile Breacutehier La Philosophie de Plotin (1928)
66
O segundo fragmento do poema Sobre a Natureza de Parmecircnides catalisa os principais
argumentos do conflito permitindo compreender quais satildeo os pontos mais problemaacuteticos do
estabelecimento de sua doutrina na tradiccedilatildeo Aleacutem da Fiacutesica de Simpliacutecio as fontes pelas quais
se estruturou esse fragmento adveacutem dos Comentaacuterios ao Timeu e Comentaacuterios ao Parmecircnides
de Proclo Os oito versos contidos no fragmento centralizam a doutrina de Parmecircnides como
foi herdada pela tradiccedilatildeo a partir da manifestaccedilatildeo das duas uacutenicas vias possiacuteveis para o
pensamento quais sejam a via da verdade e a via da aparecircncia O fragmento diz
εἰ δ᾽ ἄγ᾽ ἐρὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας
αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι
ἡ μέν ὄπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι
πειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ)
ἡ δ᾽ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι
τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν
οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐόν (οὐ γὰρ ἀνυστόν)
οὔτε φράσαις
(KIRK E RAVEN 1957 269)
Pois bem agora vou eu falar e tu presta atenccedilatildeo ouvindo a palavra
acerca das uacutenicas vias de questionamento que satildeo a pensar
uma para o que eacute e como tal natildeo eacute para natildeo ser
eacute o caminho de persuasatildeo ndash pois Verdade o segue ndash
outra para o que natildeo eacute e como tal eacute preciso natildeo ser
esta via indico-te que eacute uma trilha inteiramente inviaacutevel
pois nem ao menos se reconheceria o natildeo ente pois natildeo eacute realizaacutevel
nem tampouco se mostraria
(Traduccedilatildeo de Fernando Santoro cf PARMEcircNIDES 200612)
67
O caminho da verdade que eacute e natildeo eacute para natildeo ser (ἡ μέν ὄπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ
εἶναι) e o caminho da aparecircncia que natildeo eacute e natildeo pode ser (ἡ δ᾽ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών
ἐστι μὴ εἶναι) satildeo via de regra estabelecidos como a manifestaccedilatildeo maacutexima da loacutegica ocidental
e berccedilo dos princiacutepios de identidade e natildeo-contradiccedilatildeo A partir deles eacute possiacutevel natildeo soacute
estabelecer uma identidade (o ser eacute representada pela claacutessica foacutermula A=A) como ainda
verificar a veracidade dessa mesma identidade ndash natildeo eacute possiacutevel que o ser sendo natildeo seja
ilustrado pela foacutermula not (A ˄ notA) um tanto esdruacutexula sem duacutevidas27
O legado de Parmecircnides eacute marcado em sua difusatildeo pelos chamados ldquofiloacutesofos eleatasrdquo
sobretudo por Zenatildeo de Eleacuteia Seus argumentos contra a pluralidade (cf KIRK E RAVEN OP CIT
288-291) e contra o movimento (cf IDEM IBIDEM 291-297) se tornaram assaz populares
sobretudo no que concerne aos paradoxos da flecha no estaacutedio e de Aquiles e a tartaruga Aleacutem
da constataccedilatildeo da univocidade do ser presente em toda linha de pensamento parmeniacutedica28 O
resultado imediato dos exerciacutecios de raciociacutenio de Zenatildeo demonstraram a formataccedilatildeo de uma
estaticidade do ser e da realidade em torno alertando para a ilusatildeo do movimento e alteraccedilotildees
na substacircncia do real O momento no qual Platatildeo compotildee seu diaacutelogo Parmecircnides retrata
justamente o evento no qual tanto Parmecircnides quanto Zenatildeo estatildeo no aacutepice da divulgaccedilatildeo de
sua doutrina dialogando com um ainda jovem Soacutecrates Trata-se de um dos momentos mais
emblemaacuteticos da histoacuteria da filosofia ocidental
27 Haacute uma discussatildeo em torno a uma suposta terceira via aquela na qual o que ldquoeacuterdquo eacute e natildeo eacute ao mesmo tempo
baseada no sexto fragmento onde se lecirc ldquoοἶς τὸ πέλειν τε καὶ οὐκ ταῦτὸν νενόμισταιrdquo (KIRK E RAVEN OP CIT 271)
Embora ainda em um sentido pejorativo de uma via do engano emerge a possibilidade de que algo seja e natildeo seja
Mesmo que natildeo seja profiacutecuo para o andamento da tese se fixar na discussatildeo vale ao menos citaacute-la sobretudo
ponderando os apontamentos feitos por Jean Beaufret acerca da interpretaccedilatildeo de Martin Heidegger da terceira via
como a via dos entes Ao que cabe no propoacutesito do trabalho basta apenas atentar para como a tensatildeo entre as duas
primeiras vias jaacute foram suficientes para levantar controveacutersias Eacute possiacutevel especular ainda que jaacute na primeira via
aparece tambeacutem uma possibilidade de que o ser seja e natildeo seja quando se afirma que ele ldquoeacute e natildeo eacute para natildeo serrdquo
Seria possiacutevel conectar o ldquonatildeo eacuterdquo da sentenccedila como o natildeo-ser relativo necessaacuterio agrave constituiccedilatildeo da inteireza do
ser como argumentado no Sofista de Platatildeo 28 O que significa afirmar que natildeo existem ldquograusrdquo do ser uma coisa ou eacute real (ser) ou irreal (nada) (cf BEZERRA
2003 47)
68
As chamadas ldquotrecircs hipoacutetesesrdquo do Parmecircnides de Platatildeo satildeo apresentadas
respectivamente nas passagens 137c-142a 142b-157a e 157b-159a Elas constituem a mateacuteria
bruta para a elaboraccedilatildeo das trecircs hipoacutestases de Plotino Todas as trecircs hipoacuteteses de Platatildeo satildeo
apresentadas pela personagem do entatildeo velho Parmecircnides arguindo Soacutecrates a respeito da
viabilidade de cada argumento Elas se apresentam ainda a partir do problema constituiacutedo pela
questatildeo da unidade e da multiplicidade A pulsatildeo do jovem Soacutecrates ao inquirir Parmecircnides a
respeito de sua teoria fazendo-o apresentar as trecircs hipoacuteteses parte da colocaccedilatildeo de Parmecircnides
a respeito da assunccedilatildeo da multiplicidade por um lado e da impossibilidade do muacuteltiplo por
outro Parmecircnides eacute levado pelo jovem Soacutecrates a confirmar natildeo apenas sua teoria mas sua
metodologia e plano doutrinaacuterio
Para confrontar a teoria parmeniacutedica Platatildeo desenvolve a primeira hipoacutetese Ela
consiste basicamente na afirmaccedilatildeo de o que o ldquouno eacute unordquo ou seja se haacute uno natildeo eacute possiacutevel
que o uno seja muacuteltiplo Por este motivo ele natildeo pode conter partes nem tampouco ser um
inteiro (composto por partes) Tambeacutem natildeo pode ter um comeccedilo nem um meio nem um fim
natildeo possuindo nada que o limite ou delimite Tampouco pode possuir um formato nem se
encontrar em lugar algum nem estar se movimentando de um lugar para outro (porque entatildeo
assumir-se-ia algo outro que natildeo o uno pelo qual ele se movimenta) e nem em si mesmo
(porque com isto se movimentaria entre suas partes que por definiccedilatildeo natildeo pode conter) Natildeo
pode ainda ser diferente de si mesmo nem o mesmo que si mesmo porque assumindo sua
diferenccedila se assumiria algo outro que natildeo o uno ndash e assumindo sua identidade se assumiria que
haacute algo a saber a proacutepria identidade predicada do uno e que natildeo eacute o uno Natildeo pode tambeacutem
estar no tempo nem ter surgido em momento algum Por fim o uno natildeo pode possuir um nome
ou seja eacute inominaacutevel natildeo podendo ser objeto de opiniatildeo nem conhecimento nem percepccedilatildeo
caso contraacuterio assumir-se-ia um ser ou essecircncia distintos do uno pelo qual se alcanccedila seu
entendimento
69
Necessariamente a primeira hipoacutetese leva a uma outra questatildeo ou ao levantamento de
uma segunda hipoacutetese qual seja o uno eacute e quais satildeo as consequecircncias disto para ele mesmo
Essa hipoacutetese eacute consideravelmente mais complicada e envolve algumas nuances bastante
delicadas O argumento geral se concentra na ideia de que a proposiccedilatildeo uno eacute envolve
necessariamente a ideia de essecircncia do uno O grande problema em afirmar que o uno participa
da essecircncia de uno eacute justamente estabelecer a diferenccedila entre uma coisa e outra ou seja torna-
se inevitaacutevel afirmar que existem duas coisas a saber o uno e a essecircncia do uno O embargo
consiste na simples afirmaccedilatildeo uno eacute em contraposiccedilatildeo agrave afirmaccedilatildeo uno uno Logo desdobram-
se dois unos um uno que eacute e um uno e o ser O primeiro como afirmaccedilatildeo do proacuteprio uno o
segundo como assunccedilatildeo da participaccedilatildeo dele mesmo em sua essecircncia A reaccedilatildeo imediata agrave
afirmaccedilatildeo de que o uno eacute caminha em sentido contraacuterio das negaccedilotildees da primeira hipoacutetese
Sem embargo jaacute neste momento mesmo antes da apresentaccedilatildeo da terceira hipoacutetese
torna-se possiacutevel fazer algumas consideraccedilotildees Em primeiro lugar a hipoacutetese de que o ldquouno eacute
unordquo a despeito da aplicaccedilatildeo da categoria do ser para a predicaccedilatildeo da sentenccedila direciona o
pensamento para um caminho no qual natildeo haacute outra possibilidade senatildeo a completa negaccedilatildeo de
tudo que possivelmente competiria ao uno levando mesmo agrave dissoluccedilatildeo do eacute presente na frase
Em segundo lugar a hipoacutetese de que o ldquouno eacuterdquo desta vez com ecircnfase no eacute gera o movimento
oposto de afirmaccedilatildeo de tudo o que porventura poderia ser predicado de qualquer elemento
Estas duas hipoacuteteses (como se veraacute na apresentaccedilatildeo das hipoacutestases de Plotino)
discriminam perfeitamente as duas vias aqui cogitadas quais sejam uma via afirmativa da
ontologia claacutessica na afirmaccedilatildeo das coisas por meio da qual percebe-se compreende-se e se
faz ciecircncia e uma via negativa do que seraacute ulteriormente nomeada henologia na qual a maacutexima
especulaccedilatildeo acerca da natureza do uno natildeo leva senatildeo agrave negaccedilatildeo absoluta ndash as caracteriacutesticas
desta negaccedilatildeo ou negatividade ver-se-aacute mais claramente nas Eneacuteadas
70
A terceira hipoacutetese do Parmecircnides de Platatildeo eacute apresentada no diaacutelogo muito brevemente
Ela abarca ambos os aspectos centrais das duas primeiras hipoacuteteses sugerindo que o uno eacute e
natildeo eacute imputando a categoria de mudanccedila em sua natureza Trata-se de diagnosticar o fato de
que sendo o uno uno por um lado e muacuteltiplo por outro participa e natildeo participa de sua
essecircncia vem a ser e deixa de ser ponderando ainda que esta mudanccedila se daacute no instante Sendo
assim tanto o movimento de retorno ao uno quanto o movimento de procedecircncia a partir do
uno daacute-se ao mesmo tempo em uma reciprocidade na qual tanto a geraccedilatildeo da multiplicidade
configura o uno nem como uno nem como muacuteltiplo quanto a reuniatildeo da multiplicidade ao
uno tampouco configura o uno nem como uno nem como muacuteltiplo ndash como se a proacutepria ideia
de uno flutuasse em um ldquoinstante incapturaacutevelrdquo
Natildeo haacute duacutevida que o raciociacutenio apresentado por Platatildeo constitui um dos maiores
desafios especulativos da histoacuteria do pensamento ocidental seja nos esforccedilos empreendidos
pela loacutegica de compreensatildeo seja pelo desafio meditativo aflorado da temaacutetica proposta Neste
contexto Marcus Reis Pinheiro indica a interpretaccedilatildeo de Jean-Luc Brisson (Annexe I Les
interpretation du Parmeacutenide dans lrsquoAntiquiteacute presente na ediccedilatildeo Parmenide Paris Flamarion
1999) conforme a qual ldquo() Plotino estaacute no grupo dos inteacuterpretes do diaacutelogo que natildeo o vecirc
apenas como um exerciacutecio loacutegico mas que procura determinar a que tipo de objeto se refere o
diaacutelogordquo (PINHEIRO 2006 3) Seguindo esta linha de raciociacutenio o importante seria portanto
compreender como Plotino absorve a temaacutetica Considerar uma interpretaccedilatildeo para aleacutem da mera
concatenaccedilatildeo loacutegica de conceitos eacute basicamente absorver o sentido de cada termo Isto significa
natildeo apenas expor as formataccedilotildees daquilo que foi introduzido no discurso como ldquounordquo mas
ainda entender de que forma a simples possibilidade de concebecirc-lo no raciociacutenio implica em
uma reduccedilatildeo draacutestica das estruturas hieraacuterquicas do real ou seja constitui uma compreensatildeo
da realidade que possui como primeiro princiacutepio algo que coloca o pensamento em um niacutevel de
paradoxo que necessariamente denota a assunccedilatildeo de uma impossibilidade loacutegica
71
As trecircs hipoacutestases de Plotino seratildeo teoricamente encadeadas de maneira semelhante agraves
hipoacuteteses de Platatildeo embora natildeo sequencialmente Contudo a primeira (e talvez a mais
complexa) jaacute iniciaraacute o movimento de negatividade em direccedilatildeo agraves seguintes estabelecendo os
conflitos presentes na ideia de uno (τὸ ἑν) Plotino considera que ldquoO Uno eacute todas as coisas e
nenhuma delas a fonte para todas as coisas eacute nenhuma das coisas e ainda eacute todas as coisas em
um sentido transcendental ndash todas as coisas para assim dizer tendo seu retorno agrave isto ()rdquo
(PLOTINUS 1969 380 Eneacuteadas V 2 1) Ele ainda assevera a inefabilidade inerente ao uno
conforme a qual todo discurso eacute jaacute sempre indireto e impreciso Apenas mediante referecircncias
como ldquotodas as coisas e nenhuma delasrdquo torna-se possiacutevel acenar para o uno ndash e apenas isto
acenar Entretanto esta eacute para Plotino a uacutenica maneira de compreender a estrutura da realidade
como tal pelo simples motivo de que ldquoEacute precisamente porque haacute nada no Uno que todas as
coisas derivam dele para que o Ser possa ser trazido a fonte natildeo pode ser o Ser mesmo mas o
gerador do Ser ()rdquo (IDEM IBIDEM) que natildeo pode possuir a natureza do ser mas deve se constituir
como outro dele qual seja natildeo-ser ou mesmo nada Plotino prossegue ainda dizendo
ldquoBuscando nada possuindo nada faltando nada o Uno eacute perfeito e em nossa metaacutefora
transborda e sua exuberacircncia produz o novo este produto torna-se novamente seu progenitor
e eacute preenchido e se torna seu contemplador e Princiacutepio-Intelectualrdquo (ID IBID) A passagem
altamente especulativa denota que tudo eacute contemplaccedilatildeo dotada de uma atividade suprema que
comeccedila pelo uno e retorna a ele no simples olhar que natildeo implica nem em complexidade nem
em necessidade29 Mediante uma reflexatildeo propriamente loacutegica a contemplaccedilatildeo por meio da
qual o uno se desdobra e gera todas as coisas se daacute devido a sua proacutepria perfeiccedilatildeo ou seja o
uno natildeo eacute coisa nenhuma e necessariamente engendra todas as coisas porque eacute completo
porque eacute a totalidade de tudo e para isto eacute necessaacuterio que seja ele mesmo e ainda outro de si
29 Estes apontamentos satildeo de John Bussanich que ainda explica que ldquo() a doutrina plotiniana da derivaccedilatildeo do
Uno eacute lsquoprocessatildeorsquo o adjetivo que melhor qualifica isto eacute lsquocontemplativorsquo o movimento no qual a hipoacutestase eacute
gerada coincide com a contemplaccedilatildeo De fato o ponto cardial a chave para a estrutura da processatildeo da metafiacutesica
plotiniana era contemplaccedilatildeo ou theocircriardquo (BUSSANICH 1999 32)
72
Ciacutecero Cunha Bezerra apresenta a organizaccedilatildeo feita por Pierre Aubenque30 conforme a
qual haveriam trecircs esferas argumentativas no desenvolvimento da primeira hipoacutestase uma
loacutegica outra epistemoloacutegica e uma metafiacutesica Bezerra cita uma das passagens mais conhecidas
de Plotino que diz ldquoPrivado de unidade uma coisa cessa de ser aquilo pelo qual eacute chamada
um exeacutercito natildeo eacute um exeacutercito se natildeo eacute uno um coro um rebanho devem ser uma coisa soacuterdquo
(ID IBID 612 VI 9 1) sobretudo para enfatizar o aspecto loacutegico pelo qual Plotino ldquosubverterdquo
a resposta aristoteacutelica da entidade da coisa pela definiccedilatildeo substancial Bezerra argumenta
dizendo que ldquo() Plotino por uma exigecircncia loacutegica jaacute que o princiacutepio originaacuterio natildeo pode
possuir qualquer caraacuteter dos seres relativiza a ontologia e estabelece a henologia como
fundamento de todo serrdquo (BEZERRA OP CIT 67) O problema epistemoloacutegico sobressalta a
ultrapassagem necessaacuteria de todo conhecimento para alcanccedilar tal niacutevel de especulaccedilatildeo ao passo
que a questatildeo metafiacutesica retorna aos trechos anteriormente citados no qual a geraccedilatildeo de todas
as coisas soacute pode derivar de coisa nenhuma
O emprego do termo henologia define aqui o primeiro passo para o caminho da
negatividade Institui-se como negativo o princiacutepio que jaacute natildeo mais decorre de um rendimento
ldquopositivordquo por meio do qual se pode construir um conhecimento soacutelido e confiaacutevel mas uma
base que possui caracteriacutesticas muito diversas e que desafiam a capacidade loacutegica Por este
motivo a primeira demanda eacute jaacute a superaccedilatildeo intelectual (ἐπέκεινα νοῦϛ καὶ οὐσίας) que deve
assumir que o comeccedilo de todas as coisas eacute incoacutegnito O discurso eacute indireto e metafoacuterico porque
somente assim eacute possiacutevel indicar sua possibilidade de ser pensado ndash entendendo principalmente
que o ldquoser pensadordquo natildeo indica nem conota existecircncia porque o ser e a existecircncia mesmo satildeo
ainda posteriores agrave ideia de uno As segunda e terceira hipoacutestases portanto natildeo podem ser
concebidas se de antematildeo natildeo for assumida a negatividade do primeiro princiacutepio
30 Pierre Aubenque ldquoPlotin et le deacutepassement de lrsquoontologie grecque classiquerdquo Colloque des Royaumont Le
Neacuteoplatonisme Paris Centre National de Recherche Scientifique 1971 101-110
73
Somente por meio da completude da pensamento henoloacutegico de Plotino fica possiacutevel
deixar claro os termos pelos quais se destaca a negatividade como ldquosupressatildeo de todo saber e
dizerrdquo Os motivos contudo jaacute satildeo bastante evidentes se levado em consideraccedilatildeo que a
inefabilidade do uno indica que sobre ele natildeo se pode falar e ele natildeo se pode conhecer Portanto
o neoplatonismo necessariamente parte do pressuposto de que o ponto de partida e o ponto de
chegada do pensamento satildeo ambos uma caminhada rumo agrave supressatildeo Ao explicar a processatildeo
por meio da qual o uno engendra todas as coisas destaca-se uma consideraccedilatildeo importante se
os seres engendram o eternamente perfeito engendra eternamente algo inferior a si mesmo por
isto mesmo ldquoEacute preciso observar que a processatildeo plotiniana implica necessariamente uma
negaccedilatildeo A negaccedilatildeo eacute uma condiccedilatildeo a priori no sentido de que o engendrado deve assimilar-se
ao seu gerador mas mantendo uma resistecircncia que diferencia um do outrordquo (IDEM IBIDEM 74)
Em outras palavras a geraccedilatildeo do uno e a abertura da segunda hipoacutestase soacute eacute possiacutevel por meio
da introduccedilatildeo da diferenccedila A diferenccedila eacute o que aqui constitui o passo fundamental da sequecircncia
do pensamento neoplatocircnico O ser eacute na medida em que eacute diferente do uno e por ele eacute
engendrado justamente porque apenas a diferenccedila pode advir do eternamente perfeito
Assim sendo resta saber como o uno engendra e o quecirc ele engendra O que significa
ainda resgatar a pergunta anteriormente colocada por Parmecircnides e Platatildeo como do uno
provem o muacuteltiplo Esta questatildeo eacute sem sombra de duacutevidas uma das mais complexas do sistema
neoplatocircnico em geral A ideia de processatildeo (πρόοδος) pressupotildee uma emanaccedilatildeo a partir do
uno na qual todas as outras coisas satildeo engendradas o que significa dizer que se trata de um
movimento que abarca a realidade em toda sua estrutura na qual ldquo() difere completamente de
um mecanicismo dado que estaacute mais aleacutem de toda contingecircncia e necessidade Nesse sentido
natildeo se pode dizer que se trata de algo que implique um livre-arbiacutetrio ou uma produccedilatildeo artesanalrdquo
(ID IBID 76) Ou seja o uno natildeo necessita de nada e por isto mesmo daacute origem a tudo A
espontaneidade (se eacute que se pode utilizar tal termo) eacute natural e natildeo possui um motor
74
Ao mesmo tempo tudo aquilo que eacute gerado pelo uno possui um poder de conversatildeo
(επιστροφή) um voltar-se sobre si mesmo e voltar-se em direccedilatildeo ao uno (cf ID IBID 76)
movimentada pelo autoconhecimento daquilo que eacute Este autoconhecimento soacute eacute possiacutevel
todavia pelo proacuteprio movimento de emanaccedilatildeo conforme o qual se identifica ldquoserrdquo e
ldquopensamentordquo como havia postulado Parmecircnides e eacute justamente este o momento no qual
emerge a segunda hipoacutestase qual seja a inteligecircncia (νοῦϛ)
As caracteriacutesticas pelas quais a inteligecircncia se mostra desde a compreensatildeo da processatildeo
satildeo a chave para o sentido da filosofia de Plotino Sobre isto Thomas Alexander Szlezaacutek
escreve ldquoNatildeo persegue o Uno com esforccedilo deliberado mas espera tranquilamente ateacute que ele
apreccedila Assim a alma soacute recebe unicamente o Uno eacute uma volta do lsquosolitaacuterio para o solitaacuteriorsquordquo
(SZLEZAacuteK 2010 11) acrescentando ainda que ldquoO caminho que conduz ao Uno natildeo passa poreacutem
pela praacutetica asceacutetica de um anacoreta mas pela apropriaccedilatildeo conceitual do mundo inteligiacutevel
()rdquo (IDEM IBIDEM) Os termos inteligecircncia e inteligiacutevel referem-se aqui a uma definiccedilatildeo
particular que compreende o nuacutecleo da segunda hipoacutestase Bezerra escreve acerca deste ponto
ldquoPlotino no tratado oitavo da terceira Eneacuteada define a Inteligecircncia natildeo como uma coisa
particular mas como algo universal e muacuteltiplordquo (BEZERRA OP CIT 78) explicando que eacute
ldquoUniversal porque abarca todos os seres e muacuteltiplo porque coexistem em sua natureza
simultaneamente o inteligente (Inteligecircncia) e o inteligiacutevel (ser) ()rdquo (IDEM IBIDEM) Plotino
encadeia seu raciociacutenio elucidando como o Princiacutepio-Intelectual eacute universal e iniacutecio de todas as
coisas de maneira que ldquo() assim todas as coisas e o Princiacutepio de tudo deve ser tal que cada
parte dele seja universal eacute todas coisas do contraacuterio conteria partes que natildeo satildeo o Princiacutepio-
Intelectualrdquo (PLOTINUS OP CIT 246 Eneadas III 8 8) Conclui a partir de entatildeo que ldquo() este
Ser eacute ilimitado e que em tudo que flui dele natildeo haacute reduccedilatildeo nem em sua emanaccedilatildeo desde que eacute
o universo inteiro nem em si mesmo o ponto de partida desde que natildeo haacute reuniatildeo de partes
()rdquo (IDEM IBIDEM 246-247) Fica claro o caraacuteter ascendente e natildeo descendente da processatildeo
75
Plotino explica que ldquo() um ser desta natureza natildeo eacute existecircncia primaacuteria deve existir a
partir daquilo do qual transcende o Ser (o Absoluto) ()rdquo (ID IBID 247) e prossegue dizendo
que ldquo() Pluralidade eacute mais tardia que Unidade O Princiacutepio-Intelectual eacute um nuacutemero (=a
expressatildeo de uma pluralidade) e o nuacutemero deriva da unidade a fonte de um nuacutemero como este
deve ser o autecircntico Unordquo (ID IBID) A transcendecircncia que evidencia o caraacuteter progressivo
pode ainda ser entendida desde a ideia de que ldquo() ao contemplar-se a si mesmo a Inteligecircncia
se une ao objeto contemplando uma unidade entre o eu e o ser universal que supera toda
alteridade ()rdquo (BEZERRA OP CIT 79) Com isto eacute possiacutevel resgatar ainda o sentido pelo qual
Beierwaltes destaca a diferenccedila como princiacutepio pelo qual haacute um desvio de Plotino em relaccedilatildeo
agrave ontologia claacutessica (cf BEIERWALTES OP CIT 58) Contudo como se compreende esta
contemplaccedilatildeo eacute o que levaraacute agrave terceira hipoacutestase a alma (ψυχή) Bezerra explica recapitulando
os passos anteriores ldquoVimos anteriormente que o Uno e o Muacuteltiplo apresentam-se sob duas
maneiras distintas a) Uno e natildeo muacuteltiplo (I hipoacutetese) b) Uno-Muacuteltiplo (II hipoacutetese) A alma eacute
portanto ao mesmo tempo uno e muacuteltiplordquo (BEZERRA OP CIT 82) o que significa evidenciar
que ela representa uma distinccedilatildeo radical e afastamento do primeiro princiacutepio o uno
Ainda no oitavo tratado da terceira Eneacuteada Plotino aborda a natureza enquanto ato
criador compreendendo o fenocircmeno a partir de uma tensatildeo entre um Princiacutepio-Racional inerte
e um Princiacutepio-Natural em movimento (cf PLOTINUS OP CIT 239-240 Eneadas III 8 2) que
responderia ainda ao conflito entre unidade e multiplicidade e ainda agrave questatildeo entre tempo e
eternidade Plotino indaga como a natureza responderia ao questionamento colocando
literalmente o argumento na fala da natureza que diria que ldquoOs matemaacuteticos desde suas visotildees
desenham suas figuras mas eu desenho nada eu contemplo as figuras do material do mundo
tomando os seres como eu os sinto desde minha contemplaccedilatildeordquo (IDEM IBDEM 241) chegando a
conclusatildeo de que ldquo() o que noacutes conhecemos por Natureza eacute uma Alma cria de uma Alma
ainda anterior () uma visatildeo interna de si mesmardquo (ID IBID)
76
A visatildeo interna de si mesma mencionada por Plotino prove o entendimento de que ldquoA
alma portanto autodetermina-se e ao mesmo tempo autofragmenta-se pois ao separar-se do
todo volta-se maravilhada para o particularrdquo (BEZERRA OP CIT 84) Disto adveacutem a geraccedilatildeo do
tempo como desordem introduzida no equiliacutebrio primordial e ao mesmo tempo a introduccedilatildeo
de uma ordenaccedilatildeo mediada pela conversatildeo (επιστροφή) ndash pelo retorno maravilhado ao uno ou
uniatildeo ao fundamento por meio da contemplaccedilatildeo
Agora bem toda esta inevitaacutevel breve introduccedilatildeo ao pensamento de Plotino deve
direcionar para uma postura distinta daquela antes observada com a ontologia claacutessica e o
pensamento metafiacutesico Que postura eacute esta Ou melhor qual o caminho que se abre a partir das
trecircs hipoacutestases plotinianas Este eacute o momento no qual o caminho da negatividade comeccedila a se
encorpar e mostrar seu caraacuteter decisivo na constituiccedilatildeo do desvio intelectual do neoplatonismo
Gostaria de fazer um recorte especiacutefico do nono tratado da sexta Eneacuteada para alcanccedilar este
esclarecimento
Plotino reconstitui seu caminho a partir da afirmaccedilatildeo ldquoEacute em virtude da unidade que os
seres satildeo seresrdquo (PLOTINUS OP CIT 614 Eneadas VI 9 1) O que significa afirmar que sem a
unidade natildeo se pode considera que algo seja o que seja Em termos mais simples se nomeio
braccedilo pernas cabeccedila razatildeo sensibilidade entre outras muacuteltiplas singularidades presentes em
um ser humano mas natildeo as congrego em uma unidade pela qual afirmo ldquoser humanordquo que
compreende todas as particulares em questatildeo inexoravelmente perco de vista seu sentido Por
isto ldquoQualquer coisa que possa ser descrita como uma unidade o eacute no preciso grau pelo qual
sustenta um ser caracteriacutestico quanto menor ou maior o niacutevel do ser menor ou maior seraacute a
unidaderdquo (IDEM IBIDEM) Portanto alma seria (em razatildeo de sua distinccedilatildeo da unidade mesma)
uma grande unidade em proporccedilatildeo e na autenticidade do ser e assim ldquoUnidade absoluta natildeo eacute
eacute a alma e a primeira alma a unidade em algum sentido concomitante ()rdquo (ID IBID) deixando
ver como a unidade natildeo eacute e eacute
77
Desta forma pode-se compreender que o uno natildeo pode ser a totalidade dos seres que
anularia sua unidade nem tampouco o ldquoPrinciacutepio-Intelectualrdquo pelo qual as coisas satildeo nem o
ldquoser mesmordquo no sentido da totalidade das coisas Plotino prossegue dizendo ldquoA alma ou mente
movimentando-se rumo ao que eacute sem forma encontra-se em estado de incompetecircncia para
apreender ali onde nada se limita ou onde a se impinge a realidade difusardquo (ID IBID 615 VI
9 3) Assim ldquo(hellip) ante o puro pavor de se sustentar no nada esvai-se O estado eacute doloroso
geralmente busca aliacutevio ao se retratar de sua vagueza na regiatildeo do sentido para ali repousar em
um fundamento soacutelido bem como a visatildeo aflige-se com o minuto no qual repousa na escuridatildeordquo
(ID IBID) Mas para onde olhar frente ao desconforto de natildeo se ter onde repousar Quando se
percebe o quatildeo vago eacute todo e qualquer presumido fundamento ou sentido quando a escuridatildeo
natildeo reflete senatildeo a angustia de uma contemplaccedilatildeo exausta pelo esvair de todo sustento o que
resta para aleacutem discoacuterdia que atinge o intelecto Plotino sintetiza a afliccedilatildeo
A alma deve ver em sua proacutepria maneira isto se daacute por coalescecircncia a unificaccedilatildeo
mas buscando assim conhecer a unidade eacute impedida por esta mesma unificaccedilatildeo de
reconhecer o que foi encontrado natildeo se pode distinguir a si mesmo do objeto de sua
intuiccedilatildeo No entanto este eacute nosso uacutenico recurso caso nossa filosofia busque o
conhecimento da Unidade (ID IBID)
O uacutenico caminho rumo ao conhecimento da unidade eacute um caminho impossiacutevel em si mesmo
uma via cerrada pela proacutepria natureza do questionamento proposto Intuir as trecircs hipoacutestases ou
encadeaacute-las conforme uma loacutegica sistemaacutetica portanto elucida o caminho mas natildeo
necessariamente introspecta e absorve a pureza da experiecircncia Para isto eacute necessaacuterio mais ou
melhor menos ndash muito menos O uacutenico ponto de apoio aqui seraacute a identificaccedilatildeo entre o uno e
bem ou a compreensatildeo da primeira hipoacutestase como uno-bem (τὸ ἑν καὶ αγαθον) cujo sentido
eacute por um lado extrema e pura simplicidade e por outro inefabilidade total devido agrave perfeiccedilatildeo
78
Reivindicar este caminho soacute pode portanto levar a uma supressatildeo absoluta onde
ldquoAinda esta abstenccedilatildeo de autoconhecimento natildeo comporta ignoracircncia ignoracircncia eacute algo de fora
ndash um conhecedor ignorante de um cognosciacutevel ndash mas no solitaacuterio natildeo haacute nem conhecimento
nem nada desconhecidordquo (ID IBID 620 VI 9 6) Plotino entatildeo apresenta uma formulaccedilatildeo
nada usual conforme a qual certo direcionamento de suas intenccedilotildees pode ser entendido em
uma passagem tatildeo emblemaacutetica quanto enigmaacutetica ele escreve
Neste coro a alma olha para a nascente da Vida tambeacutem nascente do Intelecto iniacutecio
do Ser fonte do Bem raiz da Alma Natildeo que eles tenham sido despejados do Supremo
menosprezando-os como se fosse uma massa Nisto aquilo que emana seria pereciacutevel
mas eles satildeo eternos eles nasce de um princiacutepio eterno que produz deles sua
fragmentaccedilatildeo mas em virtude de sua identidade inata portanto eles se manteacutem muito
firmes conto o sol brilhe contanto haveraacute luz
()
Aqueles para os quais toda esta experiecircncia eacute estranha podem entende-la como nossos
anseios terrenos e a alegria que temos ao ganhar o que mais desejamos ndash lembrando
sempre que aqui o que noacutes amamos eacute pereciacutevel doloroso que nosso amor eacute mimeacutetico
e se afasta porque foi tudo um engano nosso bem natildeo estava laacute isto natildeo era o que
procuraacutevamos Haacute apenas o verdadeiro amor onde haacute uniatildeo natildeo segurando isto com
algum tipo de abraccedilo carnal mas possuindo na totalidade sua veracidade Todos
aqueles que viram sabem o que tenho em mente a alma toma outra vida quando se
aproxima de Deus assim restaurada sente que o distribuidor da verdadeira vida estaacute
laacute para ver que agora natildeo temos nada para procurar senatildeo aquilo que precisamos
deixar de lado e deixar assim sozinho assim vindouro assim soacute tudo o que o ambiente
terreno aniquilou na pressa de ser livre impaciente em relaccedilatildeo a qualquer laccedilo que
nos sustenta na base para que com todo nosso ser possamos agarrar-nos sobre isto
quando natildeo sobra nada em noacutes senatildeo aquilo pelo qual tocamos em Deus (ID IBID
623 VI 9 9)
79
As palavras de Plotino ressoam como uma conduta que eacute antes como postura que doutrina O
uso termo ldquoamorrdquo denota claramente uma experiecircncia irregulaacutevel uma tensatildeo entre ausecircncia e
presenccedila preenchimento e falta ndash sem embargo um misteacuterio
O misteacuterio que indicado por Plotino se configura como o guia para a visatildeo que permite
descortinar o sentido pensamento filosoacutefico Um misteacuterio que segue a mesma regra de Platatildeo e
do platonismo onde ldquoNada eacute divulgado para os natildeo-iniciadosrdquo (ID IBID 624 VI 9 11) e do
qual natildeo se pode simplesmente exibir uma estoacuteria ordinaacuteria ldquoCoisas aqui satildeo sinaisrdquo (ID IBID)
adverte Plotino Sinais para aqueles que entram em solo sagrado e tornam real a visatildeo do
inacessiacutevel Ele esclarece ainda ldquoQuando a alma comeccedila novamente a se colocar natildeo se torna
outra mas si mesma assim desprendida natildeo eacute nada senatildeo si mesma auto-reunida natildeo eacute mais
da ordem do ser estaacute no Supremordquo (ID IBID) O desprendimento e a supressatildeo a visatildeo do uno
e o movimento de uniatildeo encaminham para o ldquotodo-transcendenterdquo que jaacute natildeo mais estaacute no niacutevel
daquilo que eacute do ente mesmo do ser mas em uma esfera para aleacutem de todas as coisas que satildeo
e que natildeo satildeo A culminaccedilatildeo do pensamento henoloacutegico de Plotino como uma ldquomiacutestica da
unidaderdquo eacute o berccedilo do neoplatonismo e necessariamente o iniacutecio de sua radicalizaccedilatildeo
Neste fluxo considera-se que existam dois momentos fundamentais do desdobramento
do neoplatonismo a partir da henologia plotiniana quais sejam a teologizaccedilatildeo da henologia
desenvolvida por Proclo e a teologia negativa do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita Em ambos eacute
possiacutevel observar como o caminho da negatividade se configura partir de uma profunda
introspecccedilatildeo de temas que tendem agrave dissoluccedilatildeo do conhecimento ateacute entatildeo concebido
estruturado e instaurado ndash e ainda agrave subversatildeo completa de seus meios de expressatildeo e
significaccedilatildeo isto eacute agrave supressatildeo do saber e do dizer Eles natildeo representam meramente o ldquopasso
adianterdquo como se houvessem ainda superado o discurso antecessor mas antes o ldquopasso atraacutesrdquo
enquanto retorno agraves bases e aos princiacutepios por meio da reivindicaccedilatildeo da atitude desvelada pela
miacutestica onde o misteacuterio natildeo eacute o problema a ser desvendado mas o elemento a ser incorporado
80
O obra de Proclo eacute composta por diversos comentaacuterios aos diaacutelogos de Platatildeo dentre os
quais ao Timeu ao Parmecircnides ao Alcebiacuteades agrave Repuacuteblica entre outros aleacutem de escritos
sistemaacuteticos como os Elementos de Teologia e a Teologia Platocircnica Existem ainda obras que
abordam temas de matemaacutetica astronomia arte magia e tratados propedecircuticos sobre doutrinas
filosoacuteficas Especialmente em relaccedilatildeo agraves contribuiccedilatildeo em torno agrave henologia duas obras satildeo de
suma importacircncia o Comentaacuterio ao Parmecircnides de Platatildeo e os Elementos de Teologia
A leitura de Proclo do Parmecircnides de Platatildeo eacute considerada uma das mais sistemaacuteticas e
originais que teria sobrevivido agraves vicissitudes dos tempos Ademais guardaria ainda um apelo
ao resguardo da filosofia de Platatildeo bem como uma preparaccedilatildeo para um projeto de resgate da
vitalidade do paganismo por meio de um platonismo revigorado 31 Decorreria disto uma
profunda incursatildeo na filosofia como teologia que culminaria em seus Elementos Ainda no
Comentaacuterio Proclo descreve o percurso de Platatildeo em relaccedilatildeo agrave Parmecircnides e manifesta uma
linha argumentativa similar a Plotino
Mas caso se queira chegar o mais proacuteximo da verdade deve-se seguir a linha de nosso
Mestre que Parmecircnides inicia desde o Uno (Ser) (para a proposiccedilatildeo ldquose haacute um unordquo
jaacute que conteacutem aleacutem do ldquoUnordquo o conceito de existecircncia pertence a este tipo de coisas)
ascendendo do Uno Ser para o Uno assim demonstrando que o Uno em sentido estrito
deseja apenas isto ser One e ldquoarrebatar-se para longerdquo do Ser e o Uno Ser eacute
secundaacuterio a este pela razatildeo de sua descendecircncia em direccedilatildeo ao Ser ao passo que o
Uno mesmo eacute superior mesmo agrave designaccedilatildeo ldquoeacuterdquo e a hipoacutetese ldquose haacuterdquo assim que
adicionamos eacute o Uno no sentido estrito natildeo mais permanece (PROCLUS 1987 379-380
In Parm 1033)
31 Estas consideraccedilotildees satildeo de Ciacutecero Cunha Bezerra em Algumas consideraccedilotildees sobre leitura procleana do
Parmecircnides de Platatildeo (2004) Neste artigo ele ainda sustenta em consonacircncia com H D Saffrey (Proclus
diadoque de Platon 1990) que Proclo entra na linha de inteacuterpretes de Platatildeo que entendem sua filosofia como
revelaccedilatildeo de uma verdade divina estruturada a partir do uno filiando Platatildeo aos teoacutelogos gregos (cf BEZERRA 2004
99-100)
81
Proclo apresentaraacute na sequecircncia a impossibilidade de ldquohipotetizarrdquo o uno cindindo de um lado
hipoacutetese-condicionada e de outro anti-hipoacutetese-incondicionada O problema que estaacute sendo
colocado parte da ideia de que natildeo se pode pensar a multiplicidade isolada senatildeo somente por
meio da concepccedilatildeo de uma unificaccedilatildeo Para aleacutem da estrutura binaacuteria uno-muacuteltiplo deve-se
considerar a unificaccedilatildeo como consequecircncia necessaacuteria dando origem agrave formulaccedilatildeo ldquouno-
unificado-muacuteltiplordquo para explicar como eacute simplesmente possiacutevel que hajam elementos pelos
quais outros se unificam32
O resultado da formulaccedilatildeo de Proclo parece ser a absolutizaccedilatildeo do uno e sua
identificaccedilatildeo com Deus algo sobremaneira evidente na proposiccedilatildeo de seus Elementos que diz
ldquoTodo intelecto divino eacute uniforme ou possui a forma do Uno e eacute perfeito E o primeiro intelecto
subsiste por si mesmo e produz outros intelectosrdquo (IDEM 1998 86 Elem Theo Prop CLX)
Proclo argumenta ainda que se haacute um Deus ele eacute preenchido de unidades divinas e eacute uniforme
sendo ainda perfeito e cheio da bondade divina havendo um Deus primeiro que provecirc as
hipoacutestases para outros intelectos
Este eacute precisamente o ponto que seraacute aprofundado pelo Pseudo-Dioniacutesio Areopagita em
sua teologia negativa Tanto em Proclo quanto no Pseudo-Dioniacutesio o divino habita a
compreensatildeo filosoacutefica da realidade como incorporaccedilatildeo do misteacuterio seguindo ainda a esteira
da muacutetua reciprocidade entre filosofia e religiatildeo demanda por Plotino desde o iniacutecio Pseudo-
Dioniacutesio coroa a radicalizaccedilatildeo do uno e sua identidade com o Deus primeiro apresentado como
supraessencial (ὑπερούσιε) suprabondoso (ὑπεράγαθε) e mesmo supradivino (ὑπερθεε) razatildeo
pela qual ele demanda que ldquo() em absoluta renuacutencia de si mesmo e de todas as coisas deveraacutes
na pureza deixar todas as coisas de lado liberando-se de tudo e sendo assim levado para cima
para o Raio da Divina Treva que excede toda existecircnciardquo (DIONYSIUS THE AREOPAGITE 1920 192)
32 Esta passagem eacute cuidadosamente explicada por Giuseppe Girgenti que esclarece que ldquoO ponto culminante do
primeiro grupo de teoremas eacute o alargamento da hierarquia de quatro termos uma vez que o raciociacutenio de Proclo
levou a distinguir o intermediaacuterio entre o proacuteprio Uno e o unificado ou seja elementos que compotildeem o unificada
as primeiras unidades do natildeo-unificado ou a henadirdquo (GIRGENTI 2009 113-114)
82
Discursar acerca da inefabilidade impotildee no Pseudo-Dioniacutesio uma superaccedilatildeo da proacutepria
linguagem que se revela agora como uma construccedilatildeo liberta de qualquer fronteira e acima de
qualquer paradoxo onde negaccedilatildeo (ἀπόφασις) e afirmaccedilatildeo (κατσφάσις) comungam de igual
valor e sentido em uma mesma e uacutenica esfera A primazia propriamente apofaacutetica que toma
conta da fala do Pseudo-Dioniacutesio ganha forccedila quando supera toda definiccedilatildeo conceitual e
identifica Deus como nada daquilo que eacute
Uma vez mais indo ainda mais alto mantemos que Ele natildeo eacute alma ou mente ou
concebido pela faculdade da imaginaccedilatildeo conjuntura razatildeo ou entendimento nem eacute
nenhum ato de razatildeo ou compreensatildeo nem pode ser descrito pela razatildeo ou percebido
pelo entendimento jaacute que natildeo eacute nuacutemero ou ordem ou magnificecircncia ou pequenez
ou igualdade ou desigualdade e jaacute que natildeo estaacute inerte nem em movimento ou em
descanso e natildeo possui poder e natildeo eacute poder nem luz e natildeo vive e natildeo eacute vida nem eacute
essecircncia pessoal ou eternidade ou tempo nem pode ser apreendido pelo
entendimento jaacute que natildeo eacute nem conhecimento nem verdade nem eacute reinado ou
sabedoria nem eacute uno nem unidade nem deidade ou bondade natildeo eacute um espiacuterito como
se entende o termo jaacute que natildeo eacute Filho nem Pai nem eacute nenhuma outra coisa tal como
noacutes ou qualquer outro ente do qual se possa ter conhecimento nem pertence a
categoria de natildeo-existecircncia ou de existecircncia nem os entes existentes o conhecem
como realmente eacute nem Ele os conhece como realmente satildeo nem a razatildeo pode o
atingir nomear ou conhecer nem eacute escuridatildeo nem eacute luz ou erro ou verdade nem
nenhuma afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo pode ser aplicada porquanto aplicar afirmaccedilotildees e
negaccedilotildees natildeo se aproximam Dele noacutes natildeo aplicamos nem negaccedilatildeo nem afirmaccedilatildeo
enquanto transcende toda afirmaccedilatildeo por ser perfeita e uacutenica Causa dos seres e
transcende toda negaccedilatildeo pela preeminecircncia de sua livre natureza simples e absoluta
de qualquer limitaccedilatildeo e para aleacutem de tudo (DIONYSIUS THE AREOPAGITE 1920 200-201)
83
Seria justo afirmar que esta densa passagem da Teologia Miacutestica eacute muito mais proacutexima de uma
declaraccedilatildeo de amor do que uma articulaccedilatildeo filosoacutefica (e caberia aiacute perguntar se haacute enfim
alguma diferenccedila entre uma coisa e outra) Pseudo-Dioniacutesio natildeo apenas promove um
movimento de negaccedilatildeo em direccedilatildeo agrave toda afirmaccedilatildeo mas ainda rumo agrave proacutepria negaccedilatildeo Neste
sentido a definiccedilatildeo mais justa conforme a qual se utiliza aqui o termo negatividade seguiria
com precisatildeo os termos do Pseudo-Dioniacutesio entendendo que o caminho negativo estaacute mais
aleacutem de toda afirmaccedilatildeo e mesmo de toda negaccedilatildeo Esta eacute ainda a via para entender o que pode
ser nomeado como meontologia um percurso intelectual que apoiado pela henologia
neoplatocircnica natildeo se fundamenta mais no ente mas antes no natildeo-ente (μή ὄν) ou mesmo no
nada
As consequecircncias da henologia neoplatocircnica de Plotino e Proclo e da meontologia
miacutestica do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita natildeo passaratildeo incoacutelumes pelos seacuteculos que se seguiriam
agrave composiccedilatildeo dos escritos aqui conjurados Contudo algumas recepccedilotildees bastante acuradas e
inspiradas criativas e bem desenvolvidas ocupar-se-iam de resgatar o sentido do pensamento
negativo e desdobrar a profundidade do problema Eacute possiacutevel citar algumas dezenas de filoacutesofos
que se dedicaram ao diaacutelogo com o neoplatonismo e a teologia negativa Aqui gostaria de
encerrar este capiacutetulo direcionando-o para uma interlocuccedilatildeo especial e ao meu ver central para
a difusatildeo da negatividade na filosofia medieval moderna e contemporacircnea Tenho em mente
Joatildeo o Escoto chamado Eriuacutegena
Eriuacutegena ocupou um lugar de destaque nas altercaccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas durante
o chamado Renascimento Caroliacutengio sendo-lhe atribuiacutedas tarefas como a traduccedilatildeo do grego
para o latim das obras do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita bem como explanaccedilotildees em torno agrave
contenda da divina predestinaccedilatildeo e agraves interpretaccedilotildees e exegeses suscitadas pela disputa erguida
pela cultura biacuteblica do periacuteodo33
33 Para especificaccedilotildees em torno a Eriuacutegena e seu tempo confira CONTRENI 1996 e MCNAMARA 1996
84
A presenccedila do neoplatonismo em Eriuacutegena parece se posicionar de maneira estrateacutegica
ao longo dos movimentos por ele realizados em sua magna obra o Periphyseon Natildeo se pode
perder de vista as possiacuteveis definiccedilotildees do neoplatonismo natildeo apenas dentro de suas esferas
relacionais e a partir das tendecircncias de leitura mas ainda por meio da questatildeo fundamental que
problematiza todo conteuacutedo qual seja como o uno se relaciona com o muacuteltiplo ou ainda como
o que eacute primeiro se relaciona com o que eacute posterior Oscar Federico Bauchwitz sustenta que
ldquo() a questatildeo pela antonomaacutesia do neoplatonismo enquanto uma reflexatildeo acerca da relaccedilatildeo
entre o Criador e a criatura entre o Uno e a multiplicidade pode ser enfocada na obra de
Eriuacutegena no que diz respeito a creatio ex nihilo e ao sentido original que eacute determinado ao
termo nihilrdquo (BAUCHWITZ 2001 11) Assumindo esta hipoacutetese como vaacutelida torna-se
imprescindiacutevel compreender o lugar que tal questatildeo ocupa na obra eriugeneana e como ela se
desenvolve
Conforme os apontamentos de Bauchwitz o ldquonadardquo se apresenta pela primeira vez jaacute
no iniacutecio do Periphyseon ao serem articulados os modos da diferenccedila fundamental da divisatildeo
da natureza (φύσις natura) definida como tudo aquilo que eacute e que natildeo eacute (quae sunt et quae non
sunt) sendo dividida em quatro espeacutecies ldquo() primeiro naquilo que cria e natildeo eacute criado segundo
naquilo que eacute criado e tambeacutem cria terceiro naquilo que eacute criado e natildeo cria enquanto o quarto
nem cria nem eacute criadordquo (ERIVGENAE 1999 37 441ordf) O que eacute pode ser percebido apreendido e
conhecido O que natildeo eacute todavia natildeo se pode perceber apreender ou conhecer (cognoscitur non
quid est sed quia est) De acordo com Bauchwitz o termo quid est (ldquoo que eacuterdquo) diz respeito agrave
essecircncia de tudo que permanece incompreensiacutevel e infinito ao passo que quia est (ldquoque eacuterdquo)
indica a existecircncia da essecircncia divina ou seja seus efeitos como algo determinado e que eacute O
incompreensiacutevel da natureza divina Eriuacutegena deixa ver quando escreve ldquoPortanto se eacute por
causa de sua excelecircncia inefaacutevel e incompreensiacutevel infinitude que a Natureza Divina eacute dita natildeo
ser disto se segue que ela eacute nada ()rdquo (IDEM 2005 61 634C)
85
A impossibilidade de compreender a natureza divina eacute o que permite a Eriuacutegena
descortinar seu entendimento acerca da creatio ex nihilo Bauchwitz escreve sobre este ponto
ldquoA questatildeo se origina eacute que se a diferenccedila fundamental abarca a totalidade da natureza o que
se poderia predicar de Deus Isto eacute o que haacute para mais aleacutem do ser e do natildeo ser senatildeo o Nada
desde o qual Deus cria todas as coisasrdquo (BAUCHWITZ OP CIT 12) O problema eacute apresentado por
Eriuacutegena a partir da busca pelo sentido conforme o qual se questiona de que maneira eacute possiacutevel
compreender como todas as coisas que satildeo se originam do nada (ou nos termos do
neoplatonismo pagatildeo a mesma questatildeo de ldquocomo do uno se origina a multiplicidade) Eacute
possiacutevel interpretar esta passagem alegando que Eriuacutegena se refere ao nihilo em perfeita
sintonia com toda doutrina Cristatilde da criaccedilatildeo como de fato faz sentido afirmar Contudo
Eriuacutegena vislumbra o que considera ldquoa verdadeira essecircncia da natureza divinardquo O Criador que
cria todas as coisas que satildeo criadas insere-se naquela parte da divisatildeo da natureza na qual ldquocria
mas natildeo eacute criadordquo enquanto sua ldquoessecircnciardquo reflete aquilo que ldquonatildeo eacute nem criado nem criardquo
Em outros temos indica-se que nada eacute a natureza divina de Deus ou ainda que natildeo-ser
corresponde agrave divindade
Resta ainda resolver o mesmo problema ante ao qual se encontraram Plotino Proclo o
Pseudo-Dioniacutesio entre outros a saber como eacute possiacutevel para Deus desarraigar-se de seu nada
ou desdobrar-se desde si mesmo Bauchwitz oferece uma explicaccedilatildeo quando potildee em relevo o
problema da expressatildeo do paradoxo
() por meio da criatura eacute Deus quem se manifesta e portanto todas as criaturas
podem ser entendidas como certas apariccedilotildees divinas isto eacute teofania Neste sentido a
teofania nomeia o paradoxo da ineffabilis difusio que diz que o infinito devem finito
que o incompreensiacutevel devem compreensiacutevel que o silecircncio clama (BAUCHWITZ 2003ordf
57)
86
Em Eriuacutegena eacute possiacutevel acompanhar o sentido da explicaccedilatildeo de Bauchwitz na passagem que
diz
Tudo o que eacute entendido e sentido nada mais eacute senatildeo apariccedilatildeo do que natildeo eacute aparente
a manifestaccedilatildeo do oculto afirmaccedilatildeo da negaccedilatildeo compreensatildeo do incompreensiacutevel [a
expressatildeo do inexpressiacutevel o acesso ao inacessiacutevel] o intelecccedilatildeo do ininteligiacutevel o
corpo do incorpoacutereo a essecircncia do supraessencial a forma do informado a medida
do incomensuraacutevel o nuacutemero do inumeraacutevel o peso do impensaacutevel a materializaccedilatildeo
do espiritual a visibilidade do invisiacutevel o lugar do natildeo-lugar o tempo do natildeo-tempo
a definiccedilatildeo do infinito a circunscriccedilatildeo do incircunscrito e as outras coisas que satildeo
ambas consideradas e percebidas pelo intelecto sozinho e natildeo podem se restringir
dentro de recessos da memoacuteria e nas quais escapa agrave destreza da mente (ERIVGENAE OP
CIT 59 633BC)
A despeito da possibilidade de sintonia com a doutrina Cristatilde da criaccedilatildeo (especificamente o
sentido moralizante da gecircnese) natildeo haacute forccedila catequeacutetica senatildeo puramente especulativa na
maneira pela qual Eriuacutegena aborda a questatildeo O acesso ao sagrado aparece antes como uma
atitude fundamental na qual se insiste no misteacuterio da nadidade do divino
O resultado do caminho meditativo de Eriuacutegena eacute uma postura na qual o pensamento
natildeo responde apenas agraves demandas imediatas agraves preocupaccedilotildees que sanem os conflitos
existenciais e sociais mas uma intelecccedilatildeo cujo grau de alcance atinge toda mensurabilidade e
incomensurabilidade da estruturaccedilatildeo do real como internalizaccedilatildeo do segredo oculto e dos
misteacuterios da natureza Parece ser neste sentido que Bauchwitz sugere uma eacutetica do silecircncio
onde ldquo() natildeo basta enunciar o princiacutepio que deve reger as accedilotildees do ser humano () O silecircncio
como destino a ser alcanccedilado soacute tem sentido na medida em que nomeia a incessante e natural
disposiccedilatildeo do proacuteprio homem em dirigir-se a elerdquo (BAUCHWTZ OP CIT 12) Antes de resolver
qualquer problema assume-se o respeito para com a profundeza do incocircndito
87
Durante a introduccedilatildeo desta tese referi-me a um outro escrito de Bauchwitz Nihilismo
e Neoplatonismo assumindo que aquele artigo havia sido responsaacutevel por traccedilar uma direccedilatildeo
ou mesmo proporcionar um estiacutemulo ao desenvolvimento deste trabalho Gostaria de retornar
agravequele artigo uma vez mais para encerrar esta seccedilatildeo com definiccedilotildees mais precisas a respeito da
henologia e da meontologia como ultrapassagem dos limites da metafiacutesica
O capiacutetulo anterior evidenciou que com a ontologia ou a substantivaccedilatildeo do pensamento
ocidental por meio da confusatildeo entre ser e ente perdeu-se natildeo a capacidade intelectual do ser
humano mas o atino para o seu fundamento Em razatildeo da urgecircncia de respostas abandonou-se
tudo aquilo que era por princiacutepio incoacutegnito inefaacutevel inexprimiacutevel Como havia dito na
introduccedilatildeo com o apoio do trabalho de Bauchwitz a consumaccedilatildeo deste movimento eacute anunciado
por meio de um diagnoacutestico do niilismo Neste sentido Bauchwitz escreve
A relaccedilatildeo entre Nihilismo e Neoplatonismo que aponta para uma eacutetica aleacutem dos
limites da temporalidade e de crenccedilas religiosas ainda estaacute para ser esclarecida Uma
tal eacutetica somente poderaacute ser realmente quando cumpridas umas exigecircncias que neste
trabalho foram apenas assinaladas a superaccedilatildeo da vontade e em consequecircncia da
proacutepria liberdade soacute pode ser interpretada em uma perspectiva que jaacute natildeo se encontra
nos limites da ontologia tradicional ou no dizer de Heidegger no acircmbito da metafiacutesica
O sem-propoacutesito de uma tal eacutetica que abnega qualquer visatildeo utilitarista e
simplesmente dada do mundo exige pensar a partir de novas fundamentaccedilotildees e
valores o retorno do divino eacute uma metaacutefora que atende a tais exigecircncias na medida
em que ao tempo que nos abre uma concepccedilatildeo totalmente outra daquele que ancora
os principais valores vigentes questiona pelos conceitos fundamentais que
homologaram esses valores como superiores porque quantificaacuteveis A ausecircncia de
referecircncias fixadas pelos padrotildees contemporacircneos que mensuram o bem-estar de cada
indiviacuteduo e o resgate de uma vivecircncia que se justifica nela mesma e natildeo pelas suas
finalidades devem servir de origem para superar a ldquonoite do mundordquo (BAUCHWITZ OP
CIT 179-180)
88
Em primeiro lugar eacute importante destacar que a falta de esclarecimento da ldquoeacutetica aleacutem dos
limitesrdquo ou como prefiro colocar aqui ldquopara aleacutem das fronteirasrdquo natildeo soacute natildeo estaacute clara como
assim deve permanecer caso queira responder agrave exigecircncia de absorver a negatividade que
tambeacutem faz parte da humanidade do humano mas que foi todavia afasta de sua visatildeo da
realidade Por este motivo utiliza-se aqui o termo conflito das fronteiras para indicar natildeo uma
resoluccedilatildeo de problemas mas a assunccedilatildeo de um confronto Sendo assim a ultrapassagem de
limites deve se dar apenas no que tange agrave possibilidade de abrir o pensamento para aleacutem da
metafiacutesica tradicional Explorar o que haacute de propriamente fraco o que natildeo se sustenta o que
natildeo pode ser
A temaacutetica poderia ser encerrada aqui Seria possiacutevel retornar ao neoplatonismo com
ainda mais cautela e extrair de laacute mesmo os elementos para subverter toda sorte de ordenamento
que lanccedila o ser humano na ldquonoite do mundordquo Contudo meu interesse aqui eacute explorar mais um
momento da histoacuteria da filosofia e se possiacutevel encontrar um ponto de apoio para reunir a
tradiccedilatildeo metafiacutesica e o neoplatonismo em um uacutenico problema Minhas hipoacutetese conforme seraacute
desenvolvida no terceiro e uacuteltimo capiacutetulo eacute encontrar uma orientaccedilatildeo Orientaccedilatildeo extrema
Ali no Extremo Oriente
89
3 O EXTREMO ORIENTE E O CONFLITO DAS FRONTEIRAS A FILOSOFIA COMPARADA INTERCULTURAL
COMO CHAVE DE LEITURA PARA ALGUNS PROBLEMAS DO PENSAMENTO CONTEMPORAcircNEO
O ambiente acadecircmico britacircnico do final da deacutecada de 1970 foi palco de uma fervorosa disputa
acerca das interpretaccedilotildees e definiccedilotildees culturais entre Ocidente e Oriente A publicaccedilatildeo do livro
Orientalism (1978) de Edward Wadie Said (ع إدوارد Idwārd Wadīʿ Saʿīd) fomentou ديعس ودي
uma inesgotaacutevel discussatildeo acerca de qualquer suposta correspondecircncia deste ou daquele
elemento nos princiacutepios da tradiccedilatildeo oriental sustentando em termos bem simples que o
Oriente era antes uma invenccedilatildeo convencional Said sofreu diversas criacuteticas algumas mais
significativas outras menos Uma de suas consideraccedilotildees mais discutidas afirma que ldquo() o
Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente) como sua imagem ideacuteia personalidade e
experiecircncia de contraste Contudo nada desse Oriente eacute meramente imaginativordquo (SAID 1990
13-14) acrescentando ainda de forma incisiva que ldquoO Oriente expressa e representa esse
papel cultural e ateacute mesmo ideologicamente como um modo de discurso com o apoio de
instituiccedilotildees vocabulaacuterio erudiccedilatildeo imagiacutestica doutrina e ateacute burocracias e estilos coloniaisrdquo
(IDEM IBIDEM 14) Said defendeu que o Oriente tal qual eacute conhecido pelo mundo ocidental natildeo
corresponde agrave proveniecircncia originaacuteria de suas tradiccedilotildees mas eacute antes uma estrateacutegia (poliacutetica e
econocircmica) de manutenccedilatildeo geograacutefica Toda designaccedilatildeo acadecircmica de qualquer orientalismo
ateacute entatildeo desenvolvido estaria entatildeo equivocada apoiada em pressupostos que natildeo condizem
com a tradiccedilatildeo oriental Sem embargo o mesmo poderia ser dito a respeito da introspecccedilatildeo do
mundo grego pelo mundo romano-latino e no decorrer da histoacuteria da humanidade eacute possiacutevel
ainda identificar outras centenas de casos semelhantes ateacute o ponto no qual se afirma a
globalizaccedilatildeo por meio da modernizaccedilatildeo de todos os recantos do planeta dentro do iacutempeto de
igualar todas as culturas em um niacutevel comum
90
Entretanto apesar de ser possiacutevel interpretar as assertivas de Said de forma mais
ponderada aproveitando com isto certo direcionamento fatalista embora natildeo necessariamente
inveriacutedico de sua investigaccedilatildeo algumas gafes de sua compreensatildeo da histoacuteria se revelam
bastante perturbadoras Um dos principais criacuteticos de Said Robert Irwin publicou uma obra
onde ampla parte eacute dedicada agrave refutaccedilatildeo direta dos principais argumentos de Said Em For the
Lust of Knowning (2006) Irwin destaca algumas inverdades de Said e contrargumenta de
maneira precisa certas falaacutecias Contudo Irwin eacute tambeacutem bastante emotivo em sua abordagem
ele escreve ldquoPara pocircr minhas cartas na mesa jaacute de iniacutecio a meu ver aquele livro [Orientalism]
eacute uma obra de uma impostura maleacutevola na qual eacute difiacutecil distinguir erros verdadeiros de
falsidades propositadasrdquo (IRWIN 2006 11) Irwin ataca principalmente os erros fatuais de Said
apontando para lacunas na fundamentaccedilatildeo da obra Orientalism34 destacando vaacuterios enganos e
afirmando em siacutentese ldquoPois se eacute possiacutevel apresentar uma imagem falsa do orientalismo do
cristianismo e do imperialismo britacircnico natildeo seria tatildeo obviamente errado apresentar de modo
semelhante uma falsa imagem do islatilde da histoacuteria aacuterabe ou da difiacutecil situaccedilatildeo dos palestinosrdquo
(IDEM IBIDEM 330-331) fazendo referecircncia agraves posiccedilotildees por Said defendidas Em suma Irwin daacute
a entender nas entrelinhas que a politizaccedilatildeo de um criacutetico literaacuterio no caso Said tornou a obra
Orientalism um intento mal construiacutedo como ferramenta para sustentaccedilatildeo de posiccedilotildees poliacuteticas
condenando todo seacuterio estudo que envolve o orientalismo Ateacute entatildeo muitos outros
pesquisadores e eruditos atacaram Said bem como tantos outros o admiravam e o defenderam
Todavia com a apresentaccedilatildeo desta disputa quero aqui destacar um fator iacutempar que natildeo
necessariamente se prende agrave contenda mas que encobre o toacutepico de modo geral
34 Irwin destaca alguns erros ldquoOrientalismo daacute a impressatildeo de um livro escrito agraves pressas Eacute repetitivo e conteacutem
muitos erros factuais Said menciona lsquoPedro o Veneraacutevel e outros orientalistas cluniacensesrsquo Que outros
orientalistas cluniacenses Seria interessante conhecer seus nomes (Mas naturalmente a ideia de que houvesse toda
uma escola de orientalistas cluniacenses eacute absurda Pedro o Veneraacutevel trabalhou sozinho) Como Bernard Lewis
ressaltou Said faz com que exeacutercitos muccedilulmanos conquistem a Turquia antes de conquistarem o norte da Aacutefrica
Isso realmente sugere uma ignoracircncia espantosa da histoacuteria do Oriente Meacutedio da mesma forma que sua crenccedila
quanto a terem a Gratilde-Bretanha e a Franccedila dominado a regiatildeo oriental do Mediterracircneo a partir do final do seacuteculo
XVIIrdquo (IRWIN 2006 329)
91
Com a discussatildeo entre os orientalistas e seus inimigos o importante eacute destacar natildeo
apenas as dificuldades que envolvem todo e qualquer estudo comparado entre Ocidente e
Oriente mas o fato de que eacute da natureza do proacuteprio estudo comparado que haja divergecircncias
A divergecircncia e o erro satildeo de fato disposiccedilotildees naturais dos estudos comparados sem os quais
natildeo seria possiacutevel sequer dar iniacutecio agrave discussatildeo ou desenvolver qualquer linha de raciociacutenio
preparatoacuteria Soacute eacute possiacutevel falar em estudos comparados porque houve de antematildeo a percepccedilatildeo
de uma divergecircncia Mais ainda a necessidade do momento e os acasos eventuais direcionam
os estudiosos para um ou para outro lado Assim como Said saiu em defesa da Palestina durante
um periacuteodo no qual os conflitos haviam se asseverado em decorrecircncia da expulsatildeo das forccedilas
de paz das Naccedilotildees Unidas em 1967 tambeacutem outros pensadores em outros momentos da histoacuteria
foram motivados por acontecimentos histoacutericos sejam eles de guerra ou de paz poliacuteticos
econocircmicos ou religiosos Como por exemplo as diversas manifestaccedilotildees de revolta e
indignaccedilatildeo de Theodor Wiesengrund Adorno e Gershom Scholem apoacutes Auschwitz ou as
anaacutelises polecircmicas de Slavoj Žižek das revoltas do subuacuterbio de Londres e da Primavera Aacuterabe
Contudo algumas deacutecadas antes da publicaccedilatildeo da obra de Said precisamente durante a
deacutecada de 1950 o Departamento de Filosofia da University of Hawairsquoi at Mānoa havia
alavancado uma seacuterie de trabalhos a respeito dos fundamentos e procedimentos dos estudos
comparados Eacute preciso considerar que proacuteprio departamento jaacute havia sido estruturado entre
1930 e 1940 com o objetivo de suprir a lacuna que havia a respeito dos estudos comparados na
filosofia A primeira East-West Philosophers Conferece em 1939 ditou o tom pelo qual se
tornaria possiacutevel falar abertamente alguns anos mais tarde de uma filosofia comparada
intercultural Ali natildeo escapou a ideia de que foi justamente por meio do ldquoerrordquo que se
estabelecia o diaacutelogo entre fronteiras Em outras palavras este diaacutelogo nascia jaacute sempre de um
conflito das fronteiras A hipoacutetese de consenso eacute explorada neste sentido apenas mediante a
assunccedilatildeo de certa ignoracircncia parcial e sopesando ainda as variaccedilotildees de interpretaccedilatildeo
92
O rigor filosoacutefico que direcionou as primeiras tentativas da filosofia comparada em
confrontar as tradiccedilotildees sapienciais ocidentais e orientais permitiu a instauraccedilatildeo de uma postura
cuidadosa e quase mesmo analiacutetica do problema35 Com isto foi possiacutevel comeccedilar a pensar de
que forma elementos do pensamento oriental e da filosofia ocidental poderiam convergir ou
divergir e quais as contribuiccedilotildees que este tipo de comparaccedilatildeo pode trazer aos problemas da
contemporaneidade Todavia como anos mais tarde discutiriam Said Irwin e outros natildeo se
pode desprezar o fato de que nada escapa aos entrelaccedilamentos ldquoirrastreaacuteveisrdquo das relaccedilotildees entre
Ocidente e Oriente Neste sentido embora qualquer comprovaccedilatildeo cientiacutefica empaque frente aos
desafios historiograacuteficos natildeo eacute de todo ingecircnuo especular as influecircncias que por exemplo
Platatildeo teria sofrido da sabedoria primitiva de hinduiacutesta e budistas como sustentam diversos
especialistas36 Ou ainda da indagaccedilatildeo acerca de ateacute que ponto o Aristoacuteteles que conhecemos
natildeo foi orientalizado por Al-Farabi (صر ون ن محمس اب ی محمس ب اراب Abū Naṣr Muḥammad ibn ف
Muḥammad Fārābī) Avicena (ن نا اب ع د ou و لی اب نا ع ع د Pūr Sinɑʼ ou ainda ور نا پ ع د Pur-
e Sina em aacuterabe و لي أب عن ع س ح ن ال بس ب الله ع ن نا ب ع د Abū ʿAlī al-Ḥusayn ibn ʿAbd Allāh
ibn Al-Hasan ibn Ali ibn Sīnā) entre outros filoacutesofos da tradiccedilatildeo aacuterabe Sem contar os
sincretismos que permearam a filosofia do helenismo tardio em Alexandria onde pagatildeos
judeus cristatildeo e mulccedilumanos travavam interminaacuteveis disputas teoacutericas (e natildeo apenas teoacutericas)
a respeitos dos fundamento filosoacuteficos e teoloacutegicos religiosidade momento no qual fica difiacutecil
empreender uma anaacutelise pormenorizada de quem influenciou quem quando o quanto e como37
35 Charles A Moore ponderou no trabalho Some Problems of Comparative Philosophy (1951) a dificuldade em
posicionar as doutrinas orientais em um grupo homogecircneo como podia ser feito com a ocidentais apontando ainda
para o cuidado em evitar as caracterizaccedilotildees e comparaccedilotildees a partir de tendecircncias mais gerais (cf MOORE 1951 67)
Kwee Swan Liat escreveu ainda em Methods of Comparative Philosophy (1951) que ao menos sete esferas de
aplicaccedilatildeo metodoloacutegica devem ser previamente levadas em consideraccedilatildeo (aproximaccedilatildeo filoloacutegica histoacuterica
comparativa formal-valorativa psicoloacutegica fenomenoloacutegica e socioloacutegica-antropoloacutegica) avaliando uma por
uma e propondo por conseguinte uma oitava aproximaccedilatildeo total-integrativa (cf KWEE SWAN LIAT 1951 10ss) 36 Estas hipoacuteteses satildeo levantadas por Graham Parkes na introduccedilatildeo de Heidegger and Asian Thought (1987) (cf
PARKES 1987 1) 37 Este ponto especiacutefico acerca das contendas do periacuteodo heleniacutestico foram sobremaneira bem expostas por Jean
Pepiacuten no escrito intitulado Heacutelleacutenisme et christianisme no volume de Franccedilois Chacirctelet La Philosophie v 1 De
Platon agrave Saint Thomas Paris Marabout 1995
93
Falar efetivamente de uma filosofia comparada intercultural todavia pressupotildee outra
perspectiva aquela na qual ambas as tradiccedilotildees estatildeo culturalmente niacutetidas e bem delineadas
(ainda que por meio de caracterizaccedilotildees vulgares pouco precisas ou mesmo caricatas) e satildeo
entendidas como exponencialmente distintas Entretanto as mesmas dificuldades permanecem
Com isto quero dizer fica difiacutecil afirmar ateacute que ponto um lado compreendeu o outro de modo
suficiente e satisfatoacuterio sendo possiacutevel indagar ainda se as apropriaccedilotildees natildeo se deram mediante
interpretaccedilotildees equivocadas ou leituras transviadas sobretudo quando natildeo haacute domiacutenio pleno dos
idiomas envolvidos
Estas asseveraccedilotildees tomaram conta de muitos pensadores no decorrer da histoacuteria da
humanidade Ateacute onde eacute possiacutevel investigar dois momentos marcam o iniacutecio da relaccedilatildeo
expliacutecita (e natildeo meramente impliacutecita como no caso dos primeiros filoacutesofos gregos de Platatildeo e
de Aristoacuteteles) entre Ocidente e Oriente na filosofia a apropriaccedilatildeo latina durante a Idade Meacutedia
dos escritos aacuterabes do Oriente Meacutedio38 e a interlocuccedilatildeo e introspecccedilatildeo da tradiccedilatildeo do Extremo
Oriente (sobretudo chinesa em um primeiro momento) na filosofia alematilde dos seacuteculos dezessete
e dezoito Aqui interessa especialmente o diaacutelogo com o Extremo Oriente e como ele natildeo se
encerrou no mero intercacircmbio de tradiccedilotildees fomentando um movimento de reversatildeo no qual os
orientais por sua vez tambeacutem abriram interlocuccedilatildeo direta com o pensamento ocidental
introspectando a filosofia e desenvolvendo ao seu modo formas de reflexatildeo nos mesmos
moldes da estrutura categoacuterica ocidental mas partindo dos princiacutepios orientais ainda que em
certa medida (como se veraacute) tais princiacutepios por vezes comunguem em muitos aspectos de
elementos e direcionamentos comuns aos ocidentais e por vezes natildeo Para isto eacute preciso
investigar brevemente a gecircnese desta relaccedilatildeo e como ela tem iniacutecio
38 Sobre este toacutepico que natildeo seraacute abordado aqui confira W Raven e A Akasoy (eds) Islamic Thought in the
Middle Ages Studies in Text Transmissions and Translations in Honour of Hand Daiber Leiden Brill 2008 D
Calma Eacutetudes sur le premier siegravecle de lrsquoaverroisme latin approches et textes ineacutedits Turnhout Brepols 2010
entre outros
94
A despeito da culminaccedilatildeo das luzes no periacuteodo moderno diversos temas obscuros
perpassaram o seacuteculo dezessete sobretudo aqueles motivados pelas missotildees catequeacuteticas
jesuiacutetas na China que inevitavelmente influenciaram o ambiente intelectual da eacutepoca 39
Independente dos transtornos causados pelos europeus em suas incursotildees tambeacutem na Europa
os problemas apareceram Quando os documentos acerca das tradiccedilotildees chinesas de pensamento
desembarcaram no continente europeu despertaram imediato interesse em diversos estudiosos
Contudo tampouco foi ameno o iniacutecio deste diaacutelogo O caso mais draacutestico se deu em
1723 quando Christian Wolff fugiu de Halle an der Saale em Sachsen-Anhalt na Alemanha
em decorrecircncia de uma seacuterie de perseguiccedilotildees despertadas por um discurso por ele pronunciado
dois anos antes sob o tiacutetulo Oratio de Sinarum philosophia practica (1721) O motivo era
polecircmico e suscetiacutevel de distintas interpretaccedilotildees Wolff afirmara que ldquoA mesma autoridade que
possui os ditos e feitos de Cristo possui tambeacutem Confuacutecio para os chineses Moiseacutes para os
judeus e Mohammed para os turcosrdquo (WOLFF 1985 117) Embora Wolff tenha impressionado
grande parte de seus ouvintes com o teor apaixonado de sua preleccedilatildeo tal comparaccedilatildeo redundou
em acirradas criacuteticas por diversos professores e eruditos que acompanhavam a fala e a
interpretaram como uma espeacutecie de ateiacutesmo mais ou menos mitigado Estas acusaccedilotildees todavia
natildeo eram fruto apenas da sinofilia de Wolff mas advinham jaacute de seu confronto com colegas
pietistas da Universidade de Halle devido agrave inclinaccedilatildeo bastante evidente para um pensamento
racionalista e secular40
39 Sobre as missotildees jesuiacutetas confira Wenzhao Li Die christliche China-Mission im 17 Jahrhundert Stuttgart
Franz Steiner 2000 Acerca do caso especiacutefico do diaacutelogo com a filosofia alematilde confira ainda Antonio Florentino
Neto Von der Interpretation zum Gespraumlch Das chinesische Denken in deutschen Philosophie Saarbruumlcken
SVH 2013 Florentino Neto ainda comenta que as missotildees tiveram iniacutecio ainda no seacuteculo dezesseis tendo
comeccedilado no Japatildeo e soacute entatildeo atingido a China no seacuteculo dezessete (cf FLORENTINO NETO 2009 41) 40 Os interesses de Wolff pela China bem como pelo racionalismo paulatinamente aparecem em seus escritos
desde a influecircncia direta de Leibniz ateacute a leitura dos tratados dos jesuiacutetas a respeito da China Menccedilotildees ao
pensamento chinecircs e o peso da admiraccedilatildeo que nutria por Reneacute Descartes satildeo evidentes em seus trabalhos a partir
de 1721 (cf LACH 1953) A despeito dos interesses de Wolff pelo pensamento chinecircs sobretudo acerca dos temas
morais constata-se que ele considerava o cristianismo moralmente superior e mais bem desenvolvido (cf KANAMORI
1997 302-303)
95
A hipoacutetese de que a natureza comum do ser humano possibilita o discurso intercultural
nasce sobretudo da comunhatildeo entre uma radicalizaccedilatildeo quase miacutestica do racionalismo moderno
e o impacto causado por escritos de ordem semelhante embora com princiacutepios e fundamentos
distintos Aleacutem de Wolff tambeacutem Nicolas Malebranche e Gottfried Leibniz se dedicaram agraves
leituras do material trazido pelos jesuiacutetas no mesmo periacuteodo Malebranche compocircs em 1707 o
escrito Entretien drsquoun Philosophe Chreacutetien et drsquoun Philosophe chinois sur lrsquoexistence et la
nature de Dieu por meio do qual mais tarde aproveitou para se livrar das acusaccedilotildees de ser um
ldquospinozistardquo Malebranche ainda encarou uma acirrada disputa acerca da condenaccedilatildeo do Papa
Clemente XI agraves missotildees jesuiacutetas sustentando posiccedilotildees bastante polecircmicas em seu diaacutelogo
Malebranche levanta em sua obra a questatildeo fundamental acerca da entificaccedilatildeo do deus
cristatildeo instigando a pergunta acerca do infinito que eacute respondida pelo filoacutesofo chinecircs da
seguinte maneira ldquoEstou convencido de que quando penso sobre o infinito estou muito longe
de pensar qualquer coisa Mas entatildeo eu penso em um tal ser individual e determinado Agora
o Deus que vocecircs adoram natildeo eacute assim um ser individual e particularrdquo (MALEBRANCHE 1708
17) As preocupaccedilotildees de Malebranche caminham no sentido de articular ser e ente no problema
da ontologia do cristianismo Quando Leibniz escreve seu Discours sur la theacuteologie naturelle
des Chinois (1716) ele o faz justamente tendo em vista repetidos pedidos de esclarecer pontos
levantados por Malebranche apoacutes o escrito ter sido enviado a ele por Nicholas Reacutemond41
Eacute possiacutevel considerar que Leibniz foi o que se devotou com mais afinco agrave tradiccedilatildeo
chinesa Ele teria se envolvido principalmente com o direcionamento praacutetico da sabedoria
chinesa profundamente norteada pelo propoacutesito de melhorar a si mesmo e agrave sociedade por meio
da noccedilatildeo confucionista de cultivo de si (修身 xiushen) no sentido propriamente moral42
41 Leibniz trocou extensa correspondecircncia com os missionaacuterios jesuiacutetas a respeito da filosofia chinesa aleacutem de
apresentar comentaacuterios pontuais em sua Novissima Sinica (1697) Contudo eacute no Discours que suas ponderaccedilotildees
mais seacuterias e cuidadosas satildeo delineadas e manifestas (cf KANG 2009 6-8) 42 Mais especificaccedilotildees sobre este tema podem ser encontrados em Karyn T Lay Introduccedilatildeo agrave filosofia chinesa
Trad Saulo Alencastre Satildeo Paulo Madras 2009
96
Leibniz escreve em seu discurso ldquoMas quem poderia pensar que houvesse na terra um
povo que superasse os nossos aspectos da vida cultural Se formos iguais nos modos de
produccedilatildeo somo superiores nas ciecircncias teoacutericas mas inferiores na filosofia praacuteticardquo (LEIBNIZ
1979 11) concluindo que ldquo() somos inferiores na aacuterea da eacutetica na poliacutetica e na vida dos
haacutebitos cotidianosrdquo (IDEM IBIDEM) A interpretaccedilatildeo de Leibniz exalta a capacidade dos chineses
em se organizarem e valorarem as tensotildees promovidas pelo campo social com base no cultivo
de si e ainda identificando o ldquosirdquo ao povo em geral Importante eacute ressaltar natildeo apenas desta
breve sentenccedila ilustrativa mas a partir de uma visatildeo mais ampla de suas reflexotildees o profundo
interesse em preencher lacunas a respeito da proveniecircncia intelectual de certos problemas
filosoacuteficos
Anos depois tambeacutem Georg W F Hegel Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche
nutririam interesses pelo Oriente43 Contudo a resposta propriamente oriental a respeito do
intercacircmbio filosoacutefico se daria apenas na virada do seacuteculo dezenove para o seacuteculo vinte Este eacute
o momento no qual a filosofia comparada intercultural comeccedila a ganhar corpo precisamente
com a abertura poliacutetica e intelectual do Japatildeo e o desenvolvimento da chamada Escola de
Filosofia de Kyōto44 Embora natildeo haja tempo nem espaccedilo para abordar de maneira mais
cuidadosa os enlaces teoacutericos e praacuteticos da Escola de Kyōto escrutinando as estruturas de
pensamento de cada um de seus primeiros membros (e ainda de seus membros tardios) gostaria
aqui de destacar alguns aspectos fundamentais direcionados por duas questotildees a primeira
sustentando o porquecirc a filosofia tem iniacutecio propriamente acadecircmico no Extremo Oriente e
precisamente no Japatildeo e a segunda indagando como (ou de que modo) isto acontece Uma
hipoacutetese necessariamente leva agrave outra e isto pode ser facilmente observado
43 Um panorama mais especiacutefico das aproximaccedilotildees pode ser visto em Florentino Neto 2009 44 Em minha dissertaccedilatildeo de mestrado jaacute havia explanado os movimentos histoacutericos que levaram agrave abertura do Japatildeo
e ao surgimento da filosofia japonesa moderna ou contemporacircnea Uma bibliografia mais completa acerca do tema
pode ser extraiacuteda das obras de referecircncia William Beasley The Meiji Restoration (Stanford Stanford UP 1972) e
The Rise of Modern Japan (New York St Matinrsquos Press 1995)
97
Em primeira matildeo sustento que os motivos que proporcionaram o surgimento de uma
ldquoescola filosoacuteficardquo no Japatildeo modernizado estatildeo intimamente ligadas com sua introspecccedilatildeo da
tradiccedilatildeo oriental precedente Em palavras mais simples a maneira pela qual os japoneses
compreenderam e sintetizaram as principais linhas de pensamento orientais (hinduiacutesmo
budismo confucionismo e daoiacutesmo) culminando no chamado budismo zen foi sem embargo
a chave para absorver a filosofia ocidental Em segunda matildeo sustento ainda que a filosofia
japonesa nasce cresce e se estabelece mediante duas perspectivas (justamente os ldquoparadigmasrdquo
anteriormente abordados na tese) metafiacutesica e negatividade em decorrecircncia do florescimento
do zen no Japatildeo Por fim argumento que justamente pelo entrelaccedilamento de metafiacutesica
negatividade e o pensamento do Extremo Oriente que nasce a uacutenica filosofia possiacutevel para o
momento histoacuterico pelo qual passava o Japatildeo e com isto abre-se uma pertinente chave de
leitura para o momento que agora mesmo atravessa a filosofia contemporacircnea
Portanto inicialmente eacute essencial destacar a singularidade do budismo zen em relaccedilatildeo
agraves tradiccedilotildees precedentes Existem muacuteltiplas maneiras pelas quais eacute possiacutevel empreender esta
tarefa Acredito ser plausiacutevel direcionar este toacutepico mediante um problema especiacutefico qual seja
da fundamentaccedilatildeo uacuteltima da realidade a partir da meditaccedilatildeo a respeito da questatildeo da vacuidade
entendida como śūnyatā (शनयता)
A ideia de śūnyatā deriva do budismo indiano primitivo Relatos de reflexotildees em torno
ao problema do fundamento da realidade aparecem (como jaacute havia exposto na introduccedilatildeo desta
tese) desde os cacircnones Pāḷi e satildeo expressos de maneira mais clara e niacutetida no budismo mahāyāna
principalmente no Sūtra do Coraccedilatildeo (Prajntildeāpāramitā Hṛdaya परझञापारनमताहरदय) passando pela escola
mādhyamaka de budismo indiano e ainda nos Versos Fundamentais sobre o Caminho do Meio
(Mūlamadhyamaka-kārikā मलमधयमककाररका) de Nāgārjuna (िागारि) onde foi apresentada de maneira
mais profunda e sistemaacutetica
98
Algumas interpretaccedilotildees do escrito de Nāgārjuna destacam o śūnyatā como constituiccedilatildeo
da totalidade da realidade enfatizando que isto significa uma muacutetua dependecircncia (pratītya-
samutpāda परतीतयसमतपाद) de todas as coisas de todas aquelas que possuiriam existecircncia individual
ou substancial e ateacute da proacutepria ideia de nada o que significa propriamente uma anulaccedilatildeo de
qualquer Ente Supremo ou mesmo qualquer verdade absoluta45
Quando os ensinamentos do budismo indiano chegam agrave China e no Japatildeo alguns
princiacutepios fundamentais satildeo radicalizados por ambas as naccedilotildees Existem vaacuterias hipoacuteteses
conforme as quais eacute possiacutevel indagar os motivos desta radicalizaccedilatildeo Alguns consideram que a
doutrina radical do budismo se deve ao gecircnio do monge Boddidharma embora outros
argumentem que o motivo foi o encontro com o daoiacutesmo e o neoconfucionismo A questatildeo pode
permanecer suspensa sem que isto afete a compreensatildeo das bases e dos caminhos do budismo
zen Ao que concerne propriamente agrave introspecccedilatildeo deste conceito fundamental na filosofia
japonesa contemporacircnea (sem embargo o ponto ao qual quero chegar) existem tambeacutem
inuacutemeras controveacutersias embora haja ainda certos pontos solidamente estabelecidos e
mutuamente consentidos que se pode explorar com o intuito de apresentar o problema
O expoente da Escola de Kyōto que pela primeira vez explorou de maneira sistemaacutetica
a questatildeo e a colocou via uma formulaccedilatildeo filosoacutefica foi Kitarō Nishida (西田 幾多郎) Sua
biografia eacute repleta de elementos que o fariam parecer ou bem um rebelde visionaacuterio ou bem
um precoce e intempestivo intelectual permeado por desacordos com o sistema Sem embargo
muitos pesquisadores descreveram com minuacutecia os percalccedilos de sua biografia Por isto natildeo eacute
de todo liacutecito perder muito tempo aqui descrevendo seu percurso pessoal Gostaria apenas de
atentar para alguns pontos sobremaneira importantes no que tange agrave formaccedilatildeo intelectual de
Nishida
45 Este ponto eacute melhor analisado por Michael Barnhart que considera que de acordo com Nāgārjuna ldquo() natildeo se
pode sustentar nenhuma feacute na realidade ou princiacutepio transcendente nem nenhuma razatildeo humana pode pretender
independecircncia de nenhum tipo ()rdquo (BARNHART 1994 649)
99
Em primeiro lugar Nishida viveu em meio agrave restauraccedilatildeo Meiji (1868-1912) um periacuteodo
que divide a histoacuteria do Japatildeo entre preacute-moderna e moderna no qual a sociedade feudal entra
em decliacutenio e a naccedilatildeo eacute ocidentalizada pela forccedila maior da pressatildeo do Departamento de Estado
Norte-Americano A evidecircncia de que o ensino japonecircs estava defasado frente aos desafios do
novo mundo levou seus governantes a implementarem um sistema educacional semelhante ao
ocidental sendo neste periacuteodo fundadas as primeiras universidades japonesas Nishida
frequentou tais universidades embora tivesse seu proacuteprio percurso intelectual independente
tendo a oportunidade de estudar com Raphael von Koumlber professor russo-alematildeo convidado
para ministrar aulas de filosofia no Japatildeo Com Koumlber Nishida estudou a histoacuteria do
cristianismo (com ecircnfase nas influecircncias do paganismo de Plotino) aleacutem da filosofia criacutetica de
Immanuel Kant e da esteacutetica claacutessica Eacute preciso ponderar ainda que Nishida lia com fluecircncia o
francecircs o alematildeo e o inglecircs tendo acesso integral agraves principais obras da filosofia ocidental Por
outro lado o mesmo estudante dedicado era ainda um pensador radical que encontrou na
tradiccedilatildeo do zen budismo um rumo para suas inquietaccedilotildees
Quando Nishida se aproxima do zen budismo e comeccedila a praticar mediaccedilatildeo o impacto
da destruiccedilatildeo dos meacutetodos convencionais de ensino o afeta largamente ponderando sobretudo
que ele jaacute havia abandonado a escola primaacuteria por desentendimentos com o regime educacional
Um artigo de Lothar Knauth intitulado Life is Tragic The Diary of Nishida Kitaro (1965)
destaca uma passagem do diaacuterio de Nishida onde eacute possiacutevel observar sua postura conforme suas
proacutepria palavras
Faccedila sua proacutepria mente e depois disto natildeo dependa dos outros
Natildeo acredite indiscriminadamente nas palavras das pessoas
Natildeo fale de assuntos que ainda natildeo foram amadurecidos
Natildeo desperdice tempo precioso com fofocas ociosas
A lei da mateacuteria de leitura ler pensar escrever
100
Se vocecirc ainda natildeo terminou de pensar sobre um assunto
natildeo mude para outro
Se vocecirc natildeo terminou de ler um livro ateacute o fim
natildeo pegue outro
Non multa sed multum
Diaacuterio Ano Novo 1897 (NISHIDA apud KNAUTH 1965 337)
O trecho do diaacuterio aponta para um jovem estudioso preocupado com o rigor a tensatildeo
proveniente do impacto surtido pelas leituras Knauth expotildee consecutivamente um outro trecho
do diaacuterio este datado de 1 de julho de 1945 jaacute no final da vida de Nishida que diz
simplesmente ldquoEscurecendo nublado vinte grausrdquo (IDEM IBIDEM) A intenccedilatildeo de Knauth com
isto eacute mostrar a profunda introspecccedilatildeo redundante de um amadurecimento especulativo
proveniente de anos de meditaccedilatildeo Contudo ao que interessa ao propoacutesito do toacutepico vale
salientar que mesmo em um conturbado espiacuterito jovem havia jaacute sempre a necessidade de forccedilar
uma ldquoaquietamentordquo da mente uma busca por um lugar silencioso no qual prevalece a maacutexima
non multa sed multum natildeo muito mas bastante
Entre 1891 e 1897 (a ano da primeira citaccedilatildeo) Nishida praticou incessantemente a
meditaccedilatildeo zen havendo tambeacutem contribuiacutedo para uma revista do secto do Budismo da Terra
Pura Sua transformaccedilatildeo efetiva se daria em 1903 onde uma draacutestica revoluccedilatildeo de seu
entendimento abriria caminho para dar iniacutecio ao seu pensamento efetivo
O homens natildeo podem pensar em morrer natildeo podem ter grandes pensamentos ambos
Kawai e Gordon jaacute disseram isto Tentei pensar em mim mesmo morto aos trinta e um
de dezembro de meu trigeacutesimo quinto ano mas entretanto por mais que tentasse natildeo
podia pensar sobre isto seriamente Natildeo importa o quanto eu pense na morte eu natildeo
consigo me fazer esquecer o mundo (ID IBID 341)
101
Para Knauth este trecho evidencia uma iluminaccedilatildeo por meio da ideia de morte miacutestica e
renascimento O resultado imediato da iluminaccedilatildeo ao contraacuterio do que poderia parecer coerente
aos olhos ocidentais daacute-se na publicaccedilatildeo imediata de um artigo onde Nishida afirma ldquoEu
estava errado em usar o Zen em consideraccedilatildeo ao conhecimento Eu deveria tecirc-lo usado para o
espiacuterito e alma Ateacute eu comeccedilar a sentir pela visatildeo eu natildeo pensarei nem em filosofia nem em
religiatildeordquo (ID IBID 342) Este momento representa uma iluminaccedilatildeo justamente pelo fato de que
haacute sem embargo a assunccedilatildeo de uma correta postura mas com um propoacutesito enganoso ndash a busca
pelo conhecimento havia posto em xeque absolutamente todos os anos dedicados agrave meditaccedilatildeo
era necessaacuterio portanto comeccedilar novamente
Conforme Knauth Nishida iraacute se preparar nos proacuteximos anos para exprimir o potencial
introspectado durante sua iluminaccedilatildeo Trecircs pontos satildeo neste momento fundamentais O
primeiro eacute a leitura profundamente marcante para Nishida de Mestre Eckhart46 O segundo eacute
o falecimento de sua filha Yūko viacutetima de um ataque de bronquite O terceiro (diretamente
ligado ao segundo) eacute sua luta contra o cigarro Em 1923 Nishida escreve ldquoDeste dia em diante
eu morri para mundo Eu vivo em minha proacutepria filosofia Tudo sacrificado tudo sacrificado
Profunda impressionante experiecircnciardquo (ID IBID 344) e em 1927 ldquoAgrave tarde eu estava sozinho
na casa Pensamento quietos Quietamente eu passei metade do dia Eu natildeo fumei nem sequer
um cigarro Renascimento despertado de um sonho ruim De uma aacutervore podre de alguma
maneira um novo broto de vida pode florescer Hoje eu estava quase felizrdquo (ID IBID) O motivo
pelo qual Knauth intitula seu artigo com a expressatildeo Life is Tragic adveacutem justamente desta
postura de Nishida conforme a qual a vida humana natildeo passaria de preocupaccedilotildees e problemas
46 Nishida inicia a leitura de Eckhart em 1907 Seria interessante ao propoacutesito da tese que houvesse uma explanaccedilatildeo
maior e mais cuidadosa do pensamento de Eckhart sobretudo no segundo capiacutetulo onde seu posicionamento eacute
fundamental para o desenvolvimento do neoplatonismo e da miacutestica Contudo esta difiacutecil tarefa tornaria o percurso
da tese demasiado longo e cansativo podendo desviar a atenccedilatildeo primordial do trabalho Todavia possuo a intenccedilatildeo
de desdobrar este toacutepico em um trabalho futuro
102
A despeito de um aparente pessimismo o que pode ser destacado do percurso intelectual
e pessoal de Nishida eacute a profundidade com qual ele sentiu o peso da vida A doutrina buacutedica do
sofrimento eacute por ele absorvida de maneira natildeo soacute transcendente mas ainda imanente Os
escritos de Nishida revelaratildeo natildeo apenas um caminho filosoacutefico no qual se imbricam a tradiccedilatildeo
sapiencial oriental e a filosofia ocidental mas a descriccedilatildeo de uma experiecircncia vital na qual pulsa
a forccedila do pensamento especulativo Por esta e outras razotildees Nishida havia sido nomeado com
o nome laico-budista ldquosunshinrdquo uma polegada de mente
A produccedilatildeo propriamente filosoacutefica de Nishida eacute tanto mais densa quando suas reflexotildees
pessoais anotadas em seu diaacuterio contudo relativamente mais faacuteceis de serem abordadas devido
agrave sistematicidade que permeia os escritos A despeito de suas incompatibilidades com o sistema
de ensino sua carreira acadecircmica foi coroada em 1894 quando recebeu o tiacutetulo de licenciado
em filosofia com uma tese acerca da causalidade em David Hume culminando no professorado
junto agrave Universidade Imperial de Kyōto em 1913 Neste iacutenterim dedicou-se ao desdobramento
das bases de sua filosofia que teria sido divulgada de maneira mais consistente na obra que
havia publicado em 1911 sob o tiacutetulo Zen no kenkyū (善の研究 Investigaccedilatildeo sobre o bem) A
obra mais conhecida de Nishida busca o autodespertar o que significa uma visatildeo dos
fenocircmenos que compreendem a experiecircncia pura evidente desde a movimentaccedilatildeo de uma
loacutegica toacutepica O termo ldquoloacutegica toacutepicardquo eacute propositalmente ambivalente Por um lado indica uma
loacutegica do espaccedilo do lugar por outro denuncia como esse lugar (locus) revela uma locuccedilatildeo um
discurso Eacute neste lugar que se desenvolvem os limites do pensamento Relatos de alunos de
Nishida comentam que ele costumava desenhar no quadro negro trecircs esferas uma sobre a outra
na qual a primeira representaria os acidentes circundaacuteveis ao sujeito a segunda os elementos
incapturaacuteveis pela percepccedilatildeo e a terceira (com linhas tracejadas) a impossibilidade final de
limitaccedilatildeo e a esfera do absoluto insuperaacutevel e infinitamente expansiacutevel nomeado com o signo
do nada absoluto (絶対無 Zettaina) sua interpretaccedilatildeo para a noccedilatildeo budista de śūnyatā
103
Com isto Nishida arrancaria da tradiccedilatildeo zen budista uma negatividade total para
fundamentar sua ideia de experiecircncia pura (純粋経験 Junsui keiken) que segundo ele ldquo() se
entende conhecer os fatos como eles simplesmente satildeo (hellip)rdquo (NISHIDA 1990 3) Estaacute presente
nesta formulaccedilatildeo a absorccedilatildeo de Nishida da psicologia funcional de William James onde se
depura a correspondecircncia da percepccedilatildeo com a teoria da verdade Nishida ainda afirma ldquo() o
que usualmente se refere como experiecircncia eacute via de regra adulterado por algum tipo de
pensamento portanto por experiecircncia pura se entende aquele estado no qual se tem experiecircncia
sem qualquer discriminaccedilatildeo deliberativardquo (IDEM IBIDEM) O claacutessico exemplo pelo qual se ilustra
a condiccedilatildeo primaacuteria da pureza da experiecircncia sugere que em uma expressatildeo como ldquoouvi uma
moscardquo haacute um momento no qual o sujeito que ouve a mosca e seu barulho e o ato mesmo de
ouvir ainda natildeo foram distinguidos O fundamento da realidade enquanto nada absoluto para
Nishida encontra-se neste preciso momento neste instante incapturaacutevel na inefabilidade do
indescritiacutevel Entretanto embora a erudiccedilatildeo filosoacutefica de Nishida fosse sobremaneira evidente
bem como sua dedicaccedilatildeo ao zen budismo suas ideias natildeo estavam livres de criacuteticas em ambas
as esferas
Uma das criacuteticas mais ferrenhas a Nishida foi apresentada por Hajime Tanabe (田辺 元)
seu sucessor na caacutetedra de filosofia da Universidade Imperial de Kyōto (em 1928) Ao contraacuterio
de Nishida que nunca havia saiacutedo do Japatildeo Tanabe foi contemplado com um intercacircmbio pelo
governo japonecircs e teve a oportunidade de estudar ao lado de Husserl e Heidegger Sua maior
obra Zangedo to shite no tetsugaku (懺悔道としての哲學 A filosofia como caminho metanoeacutetico
1946) ocupava-se da superaccedilatildeo do inevitaacutevel problema epistemoloacutegico que envolvia a questatildeo
do nada absoluto propondo o termo metanoeacutetica derivado do grego μετανόησις e vertido ao
japonecircs como zangedo (懺悔道) cuja definiccedilatildeo seria nas palavras de Tanabe ldquoum baacutelsamo para
a dor do pesar e ao mesmo tempo o recurso para uma luz absoluta que paradoxalmente torna
vigente a escuridatildeo sem expulsaacute-lardquo (TANABE 1986 2)
104
Em decorrecircncia da necessidade de superaccedilatildeo do proacuteprio pensamento a criacutetica de Tanabe
emerge no sentido de questionar se a filosofia possui condiccedilotildees de enquadrar o autodespertar
religioso conforme exposto por Nishida de maneira sistemaacutetica Conforme Agustiacuten Jacinto
Zavala ldquoResumidamente ao tomar como base o ponto de vista da religiatildeo a filosofia de
Nishida lsquoconverte o trans-histoacuterico absoluto em principium [princiacutepio fundamental] do sistema
e mediante esta determinaccedilatildeo vem [finalmente] ordenar e organizar o histoacuterico relativordquo
(ZAVALA 2013 106) ao passo que ldquoPor isto Tanabe diz lsquoa duacutevida fundamental que albergo
frente a filosofia mestre Nishida se relaciona com este ponto () se a filosofia trata de tomar o
ponto de vista religioso como seu proacuteprio ponto de vista necessariamente deixa de ser si mesmardquo
(IDEM IBIDEM) sintetizando a preocupaccedilatildeo de Tanabe
Os conflitos entre a filosofia a auto-percepccedilatildeo religiosa a partir do estabelecimento do
nada absoluto como fundamento da realidade passaratildeo ainda prelo crivo de diversos
interlocutores sofrendo alteraccedilotildees e recebendo criacuteticas diretas e indiretas Em linhas gerais o
problema de Tanabe estaacute diretamente relacionado com suas compreensotildees estritas da religiatildeo e
da filosofia Em primeiro lugar porque ao contraacuterio de Nishida (que era praticante do zen
budismo) Tanabe partia antes do budismo Jōdo Shinshū (浄土真宗 A Escola da Terra Pura) do
monge Shinran (親鸞)47 Em segundo lugar devido aos interesses de Tanabe pela filosofia da
histoacuteria de Wilhelm Wundt e Heinrich Rickert aleacutem da influecircncia da Lebensphilosophie e o
compromisso histoacuterico que ele alimentou a partir de tais influecircncias Por este motivo era
necessaacuterio tanto para resolver a disputa entre Nishida e Tanabe quanto para superar os estaacutegios
preliminares das discussotildees da Escola de Kyōto reformular as compreensotildees de filosofia e
religiatildeo algo que acontece de maneira somente com Keiji Nishitani (西谷 啓治)
47 Sobre a fundamentaccedilatildeo budista de Tanabe confira Joaquim Antonio Bernardes Carneiro Monteiro ldquoO lsquoNada
Absolutorsquo em Hajime Tanabe uma avaliaccedilatildeo criacuteticardquo In Antonio Florentino Neto e Oswaldo Giacoia Jr (orgs)
O Nada absoluto e a superaccedilatildeo do niilismo Os fundamentos filosoacuteficos da Escola de Kyoto Campinas Phi 2013
155-188
105
Keiji Nishitani eacute talvez o filoacutesofo japonecircs contemporacircneo mais popular entre os
ocidentais O motivo eacute provavelmente o estilo bastante solto e livre de seus ensaios
principalmente os que chegaram traduzidos ao Ocidente ndash precisamente os mais maduros
compostos apoacutes a deacutecada de 1960 como Shūkyo to wa Nanika (宗敎とは何か O que eacute religiatildeo
1961) e Nihirizumu (ニヒリズム Niilismo 1986) Estes mesmos trabalhos sofreram diversas
criacuteticas por parte de colegas japoneses que o acusaram de se afastar dos modos propriamente
orientais de expressatildeo supostamente sugerindo uma indiferenccedila ao idioma vernaacuteculo agraves
tradiccedilotildees e aos projetos de seus antecessores Sobre isto Nishitani teria argumentado que as
lacunas do pensamento japonecircs tradicional sobretudo as idiomaacuteticas impossibilitariam o
alcance do sentido de alguns problemas colocados pela filosofia ocidental motivo pelo qual a
criaccedilatildeo de novas palavras em japonecircs se mostrava absolutamente necessaacuterios48 Sem embargo
os questionamentos impostos pelos novos tempos natildeo se prendiam agraves fronteiras linguiacutesticas e
invadiam o Japatildeo modernizado e ocidentalizado com especial forccedila razatildeo pela qual a
aproximaccedilatildeo com a filosofia sua interiorizaccedilatildeo e reflexatildeo era simplesmente inevitaacutevel
Todavia embora Nishitani tenha realmente pendido para o pensamento filosoacutefico ou para a
maneira pela qual os pensadores ocidentais liam as questotildees conflituosas da contemporaneidade
ao mesmo tempo ele se voltava com ainda maior introspecccedilatildeo para o budismo sobretudo para
o zen Esta ambiguidade intencional do pensamento de Nishitani se revela nas inquiriccedilotildees por
ele levantadas e pelo teor de suas investigaccedilotildees deixando ver claramente sua preocupaccedilatildeo a
respeito do direcionamento reflexivo da filosofia contemporacircnea
48 James Heisig discute esta questatildeo pormenorizadamente quando apresenta o estilo filosoacutefico de Nishitani
Conforme Heisig a influecircncia ocidental absorvida por Nishitani cujas maiores expressotildees foram a esteacutetica de
Immanuel Kant o idealismo alematildeo (especialmente Friedrich W J Schelling) Plotino e o neoplatonismo a
miacutestica de Mestre Eckhart e Francisco de Assis e ainda a hermenecircutica existencial de Wilhelm Dilthey e Martin
Heidegger deixam bastante claro o porquecirc ele subverte e converte os limites e alcances da linguagem Heisig
ainda destaca o momento no qual Nishitani afirma que nos miacutesticos a confluecircncia e a uniatildeo entre religiatildeo e
filosofia alcanccedilaram um ponto elevado despertando seu profundo interesse por tais autores A despeito dos temas
eleitos Heisig considera ainda que por este mesmo motivo o estilo de Nishitani se mostra superior ao de Tanabe
e ao de Nishida (cf HEISIG 2002 233-242)
106
Eacute possiacutevel considerar que o problema com o qual Nishitani se defrontou e que norteou
o andamento geral de seu pensamento mais cuidadosamente desenvolvido possui um ponto de
partido muito bem estabelecido qual seja o problema do niilismo denunciado na virada do
seacuteculo por autores como Friedrich Nietzsche Ernst Juumlnger Fioacutedor Dostoievsky Ivan
Turgeniev entre outros Em Shūkyo to wa Nanika longe de tentar elucidar o sentido da religiatildeo
em termos sistemaacuteticos a despeito do tiacutetulo do escrito Nishitani parece buscar uma imersatildeo na
tensatildeo contraditoacuteria que os seres humanos possuem com a experiecircncia religiosa segundo ele
ldquo() para quem a religiatildeo natildeo eacute uma necessidade precisamente por esta razatildeo ela eacute uma
necessidade Natildeo haacute nenhuma outra coisa sobre a qual se possa dizer o mesmordquo (NISHITANI
1983 1) Sua definiccedilatildeo de religiatildeo se abre a partir da compreensatildeo de uma ldquoauto-despertar da
realidaderdquo cuja explicaccedilatildeo se apoia no termo inglecircs realize segundo ele um termo polissecircmico
que possuem tanto o sentido de actualize (atualizar mas tambeacutem trazer o sentido real como na
expressatildeo actually cujo significado seria na verdade) quanto de understand (compreender)
Nishitani explica ldquo() estou utilizando esta palavra para indicar que nossa habilidade para
perceber a realidade significa realizar (atualizar) a realidade por si mesma em noacutesrdquo (IDEM IBIDEM
5) Esta explicaccedilatildeo apareceria para confrontar o sentido do niilismo que segundo Nishitani
ldquo() se refere agravequilo que torna sem sentido o sentido da vida () sinalizando nada menos do
que fato de que o despertar da nossa existecircncia penetrou em uma profundidade extraordinaacuteriardquo
(ID IBID 4) Em suma Nishitani possui um alvo muito claro lidar com o abismo existencial
que se deixa ver sobremaneira angustiante nos novos tempos aqueles mesmos ldquotempos de
penuacuteriardquo da ldquonoite do mundordquo anunciados por Nietzsche denunciados por Heidegger e que
assombravam os filoacutesofos que se deparavam com a instituiccedilatildeo da morte do pensamento
reflexivo mediante a Era Atocircmica dos desastres ambientais e dos deliacuterios da modernizaccedilatildeo
industrializaccedilatildeo e tecnologizaccedilatildeo do mundo Fatos inegaacuteveis cuja profunda relaccedilatildeo com a
histoacuteria do pensamento torna seu sentido cada vez mais obscuro
107
A forccedila interpretativa que moveraacute o pensamento de Nishitani rumo agraves tentativas de
resoluccedilatildeo dos conflitos passaraacute em primeiro lugar por sua leitura a respeito do problema do
niilismo e sua relaccedilatildeo com a ideia de śūnyatā Quando Nishitani alcanccedila esta abordagem ele
frisa de iniacutecio que ldquo() um dos maiores e mais fundamentais problemas que todas as religiotildees
encaram em nossos tempos eacute sua relaccedilatildeo com a ciecircnciardquo (IDEM IBIDEM 77) O motivo aparenta
ser a incompatibilidade entre o pensamento cientiacutefico e o sentido essencial da vida religiosa
Nishitani entatildeo argumenta de maneira incisiva (e que sintetiza o propoacutesito desta tese no final
das contas)
Uma em cada dez pessoas escuta que a religiatildeo e a ciecircncia tem cada uma seu proacuteprio
domiacutenio e tarefa e que as duas nunca precisaratildeo entrar em conflito caso permaneccedilam
confinadas em suas fronteiras originais Isto eacute inadequado Uma fronteira separa uma
aacuterea da outra e ao mesmo tempo pertence a ambas as aacutereas Os fundamentos do
conflito entre religiatildeo e ciecircncia repousam certamente em tais fronteiras De fato desde
os tempos mais antigos metafiacutesica e filosofia consistiram na exploraccedilatildeo destas
fronteiras entre ciecircncia e religiatildeo (IDEM IBIDEM 77-78)
Nishitani ainda questiona se tais fronteiras podem ser consideradas realmente fronteiras ou natildeo
admitindo que a ciecircncia contemporacircnea natildeo parece se preocupar com a questatildeo A criteacuterio de
verdade objetiva da ciecircncia com o apoio das leis da natureza seria responsaacutevel por de certo
modo menosprezar o conhecimento religioso e mesmo o conhecimento filosoacutefico em
decorrecircncia da verdade cientiacutefica absoluta Mas Nishitani contesta no contrafluxo da tendecircncia
mais geral ldquoMas eacute realmente tatildeo evidente Uma nova maneira de olhar para o absoluto e o
relativo conforme a qual dois absolutos podem se tornar conjuntos impensaacutevel em uacuteltima
instacircnciardquo (ID IBID 78) Para Nishitani o problema vige no fechamento das possibilidades
108
Natildeo haacute aqui uma criacutetica ldquocientofoacutebicardquo mas o levantamento de uma questatildeo qual seja
ldquoNatildeo possuiacutemos uma outra maneira de conceber o relativo senatildeo em termos de estabelecimento
de limites ndash como fazemos por exemplo quando dividimos uma folha de papel em duas ao
traccedilar uma linha nelardquo (ID IBID 79) Nishitani mostraraacute esta possibilidade por meio de sua
interpretaccedilatildeo da ideia de śūnyatā e como ela desvela uma perspectiva que explora os elementos
abandonados pela objetividade cientiacutefica Seja como for eacute possiacutevel considerar jaacute de iniacutecio que
se concentra aiacute toda a potecircncia do diaacutelogo entre metafiacutesica e negatividade apresentado ao longo
desta tese sendo possiacutevel acompanhar Nishitani em uma definiccedilatildeo do conflito das fronteiras
Agora bem quais as saiacutedas ou quais as possiacuteveis chaves de leitura para o problema que
se apresenta a saber a questatildeo do niilismo contemporacircneo Quando emprego aqui o termo
filosofia comparada intercultural tenho em vista a maneira pela Nishitani (entre outros)
exploram as muacuteltiplas significaccedilotildees de distintas tradiccedilotildees culturais em suas convergecircncias e
divergecircncias para se aproximar do problema e propor novos pontos de vista A respeito
especificamente da questatildeo levantada Nishitani utiliza a proacutepria ambivalecircncia do niilismo para
propor uma soluccedilatildeo Seu caminho seraacute resgatar o sentido pelo qual a ciecircncia se apropria das
leis da natureza e desenvolve a tecnologia argumento que eacute precisamente por meio desta
apropriaccedilatildeo que se revelam a medida da liberdade do homem em relaccedilatildeo agraves fronteiras impostas
pelas leis naturais Contudo haacute uma inversatildeo pela qual o controlador se torna o controlado
Conforme Graham Parkes ldquo() a vida humana e o trabalho como um todo se tornam
progressivamente mecanizados e impessoais (nos termos de Heidegger perdemos nossa lsquolivre
relaccedilatildeorsquo com a teacutecnica e estamos lsquoacorrentadosrsquo agrave ela)rdquo explicando ademais que para Nishitani
ldquoA liberdade advinda das leis da natureza que a tecnologia mecanizada nos concede aleacutem do
sentimento concomitante de distacircncia ou separaccedilatildeo do mundo natural levam os seres humanos
a lsquose comportarem como se eles estivessem completamente fora das leis da naturezarsquordquo (PARKES
2013a 103) Sendo assim a uacutenica via possiacutevel eacute restabelecer esta relaccedilatildeo humano-natureza
109
O ponto de apoio de Nishitani para colocar o problema parte da compreensatildeo que
oferece o neoplatonismo e a miacutestica medieval de Deus como nada absoluto (ele cita
especificamente Mestre Eckhart neste ponto) para trazer agrave tona a questatildeo morte-sive-vida
Nishitani evidencia portanto que ldquoEste ponto natildeo pode repousar em um lado mais distante
aleacutem deste mundo e desta vida terrena que possuiacutemos Deve repousar no lado mais proacuteximo
tanto mais proacuteximo quanto nossas vidas ordinariamente devem serrdquo (ID IBID 90) Aproveitando
a perspectiva budista para elucidar este caminho Nishitani esclarece de maneira precisa que
ldquoŚūnyatā eacute o ponto no qual noacutes nos tornamos manifestos de nossa proacutepria talidade (suchness)
como seres humanos concretos como indiviacuteduos com alma e personalidade Ao mesmo tempo
eacute o ponto no qual tudo ao redor se manifesta para noacutes em sua proacutepria talidade (suchness)rdquo (ID
IBID 90)49 Śūnyatā envolve inevitaacutevel e necessariamente este complexo conceito de talidade
(真如 Shinrsquonyo ndash Tathatā तथता) que eacute sem embargo o berccedilo da meditaccedilatildeo oriental
A talidade eacute a via pela qual se extrai a conduccedilatildeo do sistema eacutetico e moral da sociedade
hinduiacutesta primitiva Sua disseminaccedilatildeo no Extremo Oriente eacute carregada por duas tradiccedilotildees quais
sejam o daoiacutesmo e o budismo Os daoiacutestas centram sua noccedilatildeo de ldquoprinciacutepiordquo por meio da noccedilatildeo
de dao (道) e sua relaccedilatildeo com de (德) O famoso Dao De Jing (道德经) bem como a obra do
mestre Zhuangzi (莊子) satildeo os principais responsaacuteveis por colocarem ambos os princiacutepios (dao
e de) e movimento dinacircmico conforme o qual a relaccedilatildeo com natureza natildeo seria entendida nem
como celestial nem como humana mas como ambas sem que uma tenha privileacutegio sobre a
outra ndash e este seria enfim o caminho (dao) da virtude (de) (cf ZHUANGZI 2009 42)
49 Traduzo aqui suchness por talidade com base na ideia de que Nishitani se refere ao conceito budista de Tathatā
(तथता) que em japonecircs se ilustra com o kanji 真如 (Shinnyo) cuja traduccedilatildeo seria ldquorealidade absolutardquo mas natildeo
corresponde ao peso do termo Sobre isto Antonio Morillas escreve que ldquoO termo tathata eacute de difiacutecil traduccedilatildeo
em castelhano Em inglecircs se verte com as expressotildees suchness (a condiccedilatildeo de ser ldquotalrdquo e como se eacute) thatness (o
fato de ser ldquoissordquo que se eacute) e isness (a qualidade de algo que ldquoeacuterdquo sem mais o que eacute e como eacute) () A talidade
[traduccedilatildeo castelhana de tathata] eacute a noccedilatildeo do fato de que a realidade e as coisas e fenocircmenos que a compotildeem satildeo
ldquoassimrdquo ldquotalrdquo e como satildeo que satildeo ldquoissordquo ldquoo que satildeordquo em seu caraacuteter plenamente desnudo na existecircncia luminosardquo
(MORILLAS 2006 167) Pela proximidade com o idioma castelhano opto aqui por adotar a sugestatildeo de Morillas
110
O budismo especialmente o budismo zen absorveria tais ideias com especial forma nos
pensamentos de Kūkai (空海) e Dōgen Zenji (道元禅師) Graham Parkes explica que para Kūkai
duas ideias se configuram essenciais Sokushinjobutsu (即身成仏) a possibilidade de atingir a
iluminaccedilatildeo na vida presente (em contraste ao princiacutepio budista tradicional conforme o qual
seriam necessaacuterias muitas vidas) e Hosshin seppo (発疹 説法 ) o entendimento de que a
personificaccedilatildeo buacutedica eacute desprovida de forma e imagem natildeo permitindo conceitualizaccedilatildeo nem
verbalizaccedilatildeo (cf PARKES 2003 81) A despeito da uniatildeo suscitada pelo daoiacutesmo o budismo
chinecircs do oitavo seacuteculo estava imerso em uma profunda discussatildeo acerca da questatildeo se a
natureza buacutedica podia ser atribuiacuteda somente aos seres sencientes ou tambeacutem agraves miacutenimas
partiacuteculas de poeira Kūkai articula as duas ideias acima mencionadas e interpretas as chamadas
ldquotrecircs intimidadesrdquo (corpo fala mente) do Dainichi Nyorai (木造大日如来坐像) que representa a
revelaccedilatildeo esoteacuterica dos ensinamentos no Budismo para sustentar o muacutetuo pertencimento da
relaccedilatildeo do todo com suas partes assumindo a natureza buacutedica para absolutamente tudo Ele
escreve neste sentido ldquoEssa existecircncia estaacute naquela e aquela estaacute nessa A Existecircncia do Buda
(Mahāvairocana) eacute a existecircncia dos seres sencientes e vice e versa Eles natildeo satildeo idecircnticos mas
satildeo todavia idecircnticos eles natildeo satildeo diferentes mas satildeo todavia diferentesrdquo (KŪKAI 1972 93)
Jaacute para Dōgen a evocaccedilatildeo da conduta zen se daria por meio de uma miacutestica cotidiana
alimentando a noccedilatildeo de que toda atividade eacute expressatildeo da natureza buacutedica Parkes argumenta
que algumas atividades satildeo especialmente ilustrativas como por exemplo preparar a comida
servi-la e come-la Dōgen citaria um trecho do Vimalakīrti Nirdeśa Sūtra (नवमलकीनत निदश सतर) que
diria ldquoQuando somos unos com a comida que comemos somos unos com todo o universordquo
evocando o uso do silecircncio como veiacuteculo para o esclarecimento do śūnyatā como fundamento
absoluto da realidade (cf PARKES OP CIT 84) As praacuteticas rituais natildeo possuiriam todavia
conotaccedilatildeo lituacutergica pontual e direcionada mas antes a totalidade de uma experiecircncia de vida
religiosa
111
Tanto Kūkai quanto Dōgen influenciaram amplamente o pensamento de Nishitani e o
ponto de vista conforme o qual o śūnyatā direciona uma atitude por meio da qual se mostra a
talidade Tanto no daoiacutesmo de Zhuangzi quando no zen budismo de Kūkai e Dōgen estatildeo em
jogo o aspecto formal a aparecircncia (rūpa shiki) da realidade em torno por um lado e a assunccedilatildeo
da dissoluccedilatildeo do fundamento dessa realidade por outro (sua vacuidade śūnyatā kū) Por este
motivo haacute uma muacutetua reciprocidade entre a totalidade e as coisas entre uno e muacuteltiplo Isto eacute
o que permite a participaccedilatildeo e ao mesmo tempo incorporaccedilatildeo da realidade (dharmakāya)
Contudo natildeo seraacute o mero resgate das tradiccedilotildees orientais que forneceraacute a Nishitani a resposta
ao problema no que concerne ao impacto da questatildeo frente aos tempos de niilismo mas sim o
resultado da confrontaccedilatildeo desta tradiccedilatildeo com a filosofia contemporacircnea ocidental ou sem
embargo o confronto entre as fronteiras
Graham Parkes atenta para uma reivindicaccedilatildeo de Nishitani de haver superado em certa
medida o desenvolvimento das filosofias de pensadores como Hegel Nietzsche e Heidegger
(cf PARKES 2013b 189-190) Contudo no cerne desta proposiccedilatildeo estaacute a ideia de que o que foi
superado natildeo foi propriamente o conteuacutedo da meditaccedilatildeo mas a forma da abordagem ou seja
a perspectiva intercultural privilegiada da comparaccedilatildeo filosoacutefica de Nishitani Com o anuacutencio
da morte de Deus e dos tempos de niilismo em Nietzsche ficou evidente um diagnoacutestico da
atividade humana inerente aos valores que a guiam por um lado e a induccedilatildeo ao desespero
suscitado pela projeccedilatildeo cognoscitiva ao ente por outro A saiacuteda de Nietzsche por meio do
ldquogrande antiacutedotordquo da transvaloraccedilatildeo de todos os valores eacute recebida em Nishitani considerando
trecircs ideias chave de sua leitura budista (1) a constituiccedilatildeo do fundamento da existecircncia como
uma experiecircncia aleacutem da relaccedilatildeo entre sujeito objeto por meio do conceito de (referente agrave noccedilatildeo
de dharma धम) (2) a reaccedilatildeo de retorno ao mesmo de toda atividade (a partir do conceito de
karma कम) e a noccedilatildeo de que natildeo haacute nada que exista independente de circunstacircncias e
condicionamento ou a chamada ldquoco-originaccedilatildeo dependenterdquo (o pratītya-samutpāda परतीतयसमतपाद)
112
Portanto o que em Nietzsche seria postulado como destino enquanto o ldquomesmordquo (o ego
fatum nietzscheano) engendrando um ponto de vista criativo em Nishitani seria entendido
desde a ideia do karma Em Nihirizumu Nishitani escreve acerca deste ponto especiacutefico que
ldquoNeste niacutevel fundamental o mundo se move na esfera do mesmo e o mesmo na esfera do
mundo Esta ideia estaacute proacutexima da ideia budista de karma embora em Nietzsche o ponto de
vista do mesmo como destino eacute fundamentalmente criativordquo (NISHITANI 1990 50) Em termos
mais simples de acordo com Parkes ldquo() o que parece um golpe do destino pode ser entendido
antes como uma parte de nossa proacutepria atividaderdquo (PARKES OP CIT 196) O florescimento desta
consideraccedilatildeo se daacute na afirmaccedilatildeo niezscheana do amor fati e da superaccedilatildeo do abismo da grande
suspeita niilista por meio da grande dor pela qual se renasce o que seraacute entendido em Nishitani
a partir do retorno ao abismo onde ldquo() uma vez que algueacutem eacute libertado do abismo a
necessidade se torna um elemento desta vida de liberdade Neste caso necessidade se torna
uma com a criatividaderdquo (NISHITANI OP CIT 52) Entretanto a ressalva de Nishitani consiste que
a afirmaccedilatildeo resultante da superaccedilatildeo do abismo niilista pode ainda ser superar e que a vontade
de poder eacute ainda uma ldquocoisardquo chamada ldquovontaderdquo (cf IDEM OP CIT 234) cuja uacutenica possibilidade
de ser pensada para aleacutem dos fundamentos que redundam no destino como mesmo seria
justamente o ponto de vista do śūnyatā Uma ilustraccedilatildeo possiacutevel de ldquopara onderdquo este ponto de
vista levaria pode ser encontrada quando Nishitani comenta a arte japonesa de arranjo de flores
a chamada Ikebana (生け花) Ali fica niacutetido qual a postura que se assume quando se daacute conda
da vacuidade da realidade uacuteltima e absoluta Nishitani escreve
Desde a perspectiva de sua natureza fundamental todas as coisas no mundo satildeo
lacircminas de grama sem raiacutezes Tal grama entretanto tenho fincado suas raiacutezes no solo
esconde a si mesma em sua fundamental ausecircncia de raiacutezes () sendo cortadas de suas
raiacutezes as flores satildeo feitas pela primeira vez pela manifestaccedilatildeo minuciosa de sua
natureza fundamenta ndash sua falta de raiacutezes (IDEM 2011 1199)
113
Ao fim e ao cabo Nishitani estaacute chamando atenccedilatildeo para uma aprendizagem decorrente da ldquoco-
originaccedilatildeo dependenterdquo a partir da natureza Sobre este ponto e sua relaccedilatildeo com o niilismo
Parkes escreve ldquo() noacutes humanos diferimos de outros entes por meio da possibilidade de nos
tornamos conscientes de nossa proacutepria finitude no estado da niilidade (kyomu) um tipo de
ldquovacuidade ocardquo que eacute uma antecacircmara para a vacuidade criativa (śūnyatā kū)rdquo (PARKES OP
CIT 112) Resumidamente o ponto de vista do śūnyatā se configura para Nishitani a partir da
tradiccedilatildeo do zen budismo oriental e de sua leitura da filosofia ocidental como uma iluminaccedilatildeo
a respeito do fundamento da realidade enquanto vacuidade evidenciado sobremaneira pelo
abismo do niilismo contemporacircneo e que direciona o ser humano para uma vacuidade criativa
na qual sua relaccedilatildeo com as coisas congrega tudo em uma mesma natureza buacutedica ou seja o
lugar onde as flores o arranjo o florista e o ato de fazer o arranjo satildeo a mesma coisa ou o lugar
onde a mosca o anjo Deus e o eu satildeo o mesmo
114
CONCLUSAtildeO
Durante o primeiro semestre de 2011 estava profundamente motivado com a preparaccedilatildeo do
texto final desta tese doutoral Ocupava-me ao mesmo tempo das pesquisas leituras
sistematizaccedilatildeo dos esquemas defesa da versatildeo do final do projeto e dos cursos que iria ministrar
na Universidade Federal do Rio Grande do Norte nos meses seguintes A abordagem agrave histoacuteria
da metafiacutesica agrave tradiccedilatildeo do neoplatonismo e agrave filosofia japonesa contemporacircnea atingiam-me
simultaneamente por meio de muacuteltiplas construccedilotildees conceituais interligadas pela lucidez
provocada mediante a histoacuteria dos efeitos de cada ambiente temaacutetica Contudo ao 11 de marccedilo
daquele ano foi transmitida uma notiacutecia que imediatamente cessou minha produccedilatildeo e
empolgaccedilatildeo com todo e qualquer toacutepico Os jornais incessantemente transmitiam as uacuteltimas
notiacutecias a respeito de um terremoto seguido por um tsunami que havia atingido o Japatildeo e
danificado a estrutura da usina nuclear de Fukushima na cidade de Ōkuma expondo a
comunidade da regiatildeo agrave alarmantes niacuteveis de radioatividade O desastre ambiental seria
considerado algum tempo mais tarde a maior cataacutestrofe nuclear desde Chernobyl em 1986
Evidentemente como havia ocorrido tambeacutem em 2001 durante o ataque terrorista ao
World Trade Center em Nova Iorque as reportagens que chocavam o mundo se tornariam
rapidamente repetitivas e esgotariam o puacuteblico O motivo pelo qual se daria tal neutralizaccedilatildeo e
letargia frente aos fatos foi denunciado por Slavoj Žižek na obra The Year of Dreaming
Dangerously (2012) Ele pondera os eventos destrutivos de 2011 tais quais a Primavera Aacuterabe
e o Occupy Wall Street desde a neutralizaccedilatildeo ideoloacutegica promovida pela miacutedia dando margem
agrave interpretaccedilatildeo conforme a qual os veiacuteculos de comunicaccedilatildeo vigentes aniquilam o potencial
emancipatoacuterio dos eventos por meio da pasteurizaccedilatildeo de sua difusatildeo
115
Žižek destaca o termo da liacutengua persa ldquowar nam nihadanrdquo cujo abstruso significado
seria em linhas gerais ldquomatar algueacutem enterrar seu corpo e plantar flores sobre sua cova para
esconder o cadaacuteverrdquo Para Žižek os meios de comunicaccedilatildeo do capitalismo global destroem a
absorccedilatildeo propriamente humana dos eventos do mundo contemporacircneo exatamente neste
mesmo sentido (cf ŽIŽEK 2012 9) Sem sombra de duacutevidas o mesmo se daria em relaccedilatildeo ao
desastre de Fukushima e hoje trecircs anos depois uma pedra foi posta por sobre o assunto e poucas
pessoas sequer se lembram do ocorrido
Entretanto meu denso envolvimento com a filosofia japonesa natildeo permitiu que os
acontecimentos fossem dissolvidos assim tatildeo facilmente Passei um bom tempo tocado pela
calamidade e mesmo ateacute agora ainda tenho dificuldades em lidar com o assunto As
adversidades emotivas todavia natildeo me impediram de pensar com devoccedilatildeo sobre a questatildeo
pelo contraacuterio estimularam ainda mais o rumo da reflexatildeo filosoacutefica
O ano seguinte seria marcado em meu percurso pessoal pela saiacuteda do paiacutes e realizaccedilatildeo
de estaacutegio sanduiacuteche junto agrave University College Cork (Colaacuteiste na hOllscoile Corcaigh) para
realizar minhas pesquisas sob a supervisatildeo do professor Graham Parkes na Irlanda Parkes
havia publicado no iniacutecio daquele ano um breve artigo intitulado Nuclear Power after
Fukushima 2011 Buddhist and Promethean Perspectives (2012) no qual natildeo apenas analisava
os fatos mas ainda apresentava uma meditaccedilatildeo a respeito de uma filosofia da natureza para
aleacutem das ecologias profundas ou natildeo
Simplificando o assunto o estiacutemulo para o fornecimento de energia nuclear eacute
alimentado pela conclusatildeo de que se trata de uma fonte limpa e autossustentaacutevel em contraste
agrave queima do combustiacutevel e exploraccedilatildeo de recursos foacutesseis ou mesmo aos impactos ambientais
causados pela obstruccedilatildeo de fluxos de aacutegua Aparentemente trata-se de uma soluccedilatildeo emergente
frente ao ainda ineficaz suporte das energias ecologicamente viaacuteveis como a eoacutelica e a solar
116
Parkes pontua sobre isto que ldquoA questatildeo crucial natildeo diz respeito aos meacuteritos relativos
e agraves desvantagens do poder nuclear versus a energia dos combustiacuteveis foacutesseis Antes trata-se
de pensar o que norteia nosso desejo de consumir tanta energia em primeiro lugarrdquo (PARKES
2012 103) O posicionamento diz respeito a um ldquopasso atraacutesrdquo A pergunta eacute o que move no
final das contas o irredutiacutevel e irrefreaacutevel iacutempeto de explorar todos os recursos naturais para
fomentar a manutenccedilatildeo da vida humana na Terra Mesmo com a leitura do escrito eu
particularmente soacute conseguiria compreender o direcionamento proposto por Parkes apoacutes
acompanhar seus seminaacuterios sobre filosofias da natureza entre Ocidente e Oriente no qual
ficariam claras as bases pelas quais ele questionava a conduta contemporacircnea face agrave crise
ambiental
Entretanto quando me deparei com as primeiras leituras oferecidas por Parkes (muitas
das quais constam na bibliografia desta tese) natildeo fui acometido pelo espanto da novidade mas
pela pulsatildeo da comparaccedilatildeo A experiecircncia que jaacute havia acumulado sob a orientaccedilatildeo do
professor Oscar Federico Bauchwitz durante meus anos de pesquisa acadecircmica dedicado agrave
leitura de Nietzsche Heidegger e da tradiccedilatildeo do neoplatonismo e da miacutestica medieval proveu-
me de uma arquitetocircnica meditativa que com a aproximaccedilatildeo com a filosofia oriental apenas
nutriu imediata empatia e introspecccedilatildeo Sendo assim quando congreguei o focirclego e as forccedilas
necessaacuterias para encerrar este trabalho natildeo tinha em mente uma tese levantada de um mero
problema particular mas um longo percurso especulativo que ao longo das paacuteginas aqui
apresentadas tentei descrever da melhor maneira possiacutevel
Sobreveio-me durante os termos finais uma intensa obrigaccedilatildeo de sustentar que a uacutenica
via possiacutevel para enfrentar os problemas filosoacutefico contemporacircneos era a instauraccedilatildeo de um
retorno aos fundamentos por meio da interculturalidade Portanto a conclusatildeo desta tese soacute
pode caminhar rumo agrave elucidaccedilatildeo de quais fundamentos no final das contas satildeo estes que estatildeo
aqui e ali indicados no interior do trabalho
117
Em 1953 Martin Heidegger pronunciou a conferecircncia intitulada Die Frage nach
Technik O escrito eacute talvez uma de suas mais claras expressotildees acerca de sua anaacutelise da
consumaccedilatildeo da histoacuteria da metafiacutesica a instauraccedilatildeo do niilismo europeu e o advento da Era
Teacutecnica Paralelamente durante o mesmo periacuteodo (na verdade em 1954) Nishitani finalizava
a composiccedilatildeo de seu ensaio sobre ldquoNiilismo e Śūnyatārdquo mais tarde incluiacutedo no volume Shūkyo
to wa Nanika abordado aqui ao longo do terceiro capiacutetulo Como foi possiacutevel observar em
Nishitani a saiacuteda do ponto de vista da vacuidade ou nada absoluto demandava a busca por
uma postura interior do ser humano na qual se tornava evidente nada mais senatildeo o elemento
inexplicaacutevel e inexprimiacutevel do fundamento uacuteltimo da realidade que era assumido agora como
oriente para o comportamento humano frente ao colapso do novo mundo A dificuldade inerente
de absorver a proposta de Nishitani todavia eacute ilustrada de maneira praacutetica quando ele aborda
uma questatildeo particular qual seja a relaccedilatildeo entre ser humano e natureza na imagem do jardim
zen Noacutes estamos dentro do jardim e natildeo somos apenas espectadores porque noacutes nos tornamos
parte da real manifestaccedilatildeo da expressatildeo da proacutepria experiecircncia iluminadora do arquiteto do
jardim O jardim eacute meu mestre Zen agora e eacute seu mestre Zen tambeacutem (NISHITANI 1992 55)
Quando Heidegger indica em sua conferecircncia que a essecircncia da teacutecnica natildeo eacute ela mesma nada
teacutecnico ele estaacute em um movimento similar ao de Nishitani chamando atenccedilatildeo para o fato de
que eacute necessaacuterio tambeacutem retornar a algo que natildeo pode ser submetido agrave objetividade cientiacutefica
da relaccedilatildeo sujeito-objeto que sustenta a tecnicizaccedilatildeo do mundo Neste sentido a saiacuteda de
Heidegger eacute ilustrada por meio de um dos conceitos mais enigmaacuteticos de toda sua obra
Gelassenheit Heidegger escreve ldquoTalvez se oculte na Gelassenheit uma accedilatildeo mais elevada do
que em todos os atos do mundo e do que nas maquinaccedilotildees das reliacutequias humanasrdquo (HEIDEGGER
1983a 41) O sentido contudo permanece oculto Resta apenas a ideia de que esta postura
evocada por Heidegger demanda um ldquodeixarrdquo (lassen) que atina para um recolhimento da
paradoxal ambiguidade do que se revela na essecircncia do humano
118
Ressoa tanto em Heidegger quanto em Nishitani uma raiz comum aquela na qual se
ldquoRenuncia aos sentidos agraves operaccedilotildees intelectuais a todo sensiacutevel e ao inteligiacutevelrdquo ainda mais
aquela onde se pede ldquoDespoja-te de todas as coisas que satildeo e ainda das que natildeo satildeo Deixa de
lado teu entender e esforccedila-te por subir o mais que possa ateacute unir-se com aquele que estaacute mais
aleacutem de todo ser e todo saberrdquo Estas palavras aqui propositalmente citadas sem a indicaccedilatildeo
bibliograacutefica satildeo do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita onde neoplatonismo e miacutestica se encontram
no caminho da negatividade Tanto o ldquoprestar atenccedilatildeo aos misteacuterios da naturezardquo em Nishitani
quando a ldquoabstenccedilatildeo da vontade por meio da natildeo-vontaderdquo o ldquoquerer o natildeo-quererrdquo em
Heidegger estatildeo depositados nas sentenccedilas do miacutestico siacuterio
Agora qual eacute este lugar ou natildeo-lugar aleacutem de todo ser e todo saber O que se revela
por meio do despojo e da supressatildeo de todo saber e todo o dizer Esta pergunta natildeo eacute respondida
Natildeo pode ser respondida O que se desvela aiacute eacute justamente o incoacutegnito o misteacuterio Como reagir
portanto frente a tal proposta de em meio a existecircncia contemporacircnea remar no contrafluxo
do sentido do mundo e buscar uma quietude absoluta no silecircncio que adveacutem do misteacuterio da
existecircncia Agrave esta pergunta tampouco se ofereceraacute resposta mas desta vez porque ela jaacute estaacute
respondida A reaccedilatildeo foi nomeada com diversos termos ao longo da histoacuteria recebendo distintas
designaccedilotildees Algumas tradiccedilotildees orientais optam por chama-la ldquoiluminaccedilatildeordquo
Por fim o conflito das fronteiras aqui abordado natildeo eacute um evento especiacutefico um
momento ou instante captaacutevel uma situaccedilatildeo ou circunstacircncia particular O conflito das
fronteiras eacute um caminho ou melhor uma caminhada Uma caminhada rumo ao desconhecido
cujo uacutenico sinal evidente acena para o clamor de um silecircncio ensurdecedor indicando que jaacute eacute
hora de se recolher
119
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2
PROGRAMA INTEGRADO DE DOUTORADO EM FILOSOFIA
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAIacuteBA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
LUIZ FERNANDO FONTES TEIXEIRA
O CONFLITO DAS FRONTEIRAS
Metafiacutesica Negatividade e o Extremo Oriente
Tese de doutorado apresentada ao Programa
Integrado de Doutorado em Filosofia da
Universidade Federal da Paraiacuteba Universidade
Federal de Pernambuco e Universidade Federal
do Rio Grande do Norte como requisito para a
obtenccedilatildeo do grau de Doutor em Filosofia
ORIENTADOR OSCAR FEDERICO BAUCHWITZ
NATAL
2014
3
FICHA CATALOGRAacuteFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA DO CCHLA ndash UFRN
Catalogaccedilatildeo da Publicaccedilatildeo na Fonte
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Biblioteca Setorial do Centro de Ciecircncias Humanas Letras e Artes (CCHLA)
Fontes Teixeira Luiz Fernando
O conflito das fronteiras Metafiacutesica Negatividade e o Extremo Oriente
Luiz Fernando Fontes Teixeira ndash 2014
125 f -
Tese (doutorado) ndash Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro
de Ciecircncias Humanas Letras e Artes Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em
Filosofia
Orientador Prof Dr Oscar Federico Bauchwitz
1 Metafiacutesica 2 Negatividade (Filosofia) I Bauchwitz Oscar Federico
II Universidade Federal do Rio Grande do Norte III Tiacutetulo
RNBSE-CCHLA CDU 111
4
FOLHA DE APROVACcedilAtildeO
LUIZ FERNANDO FONTES TEIXEIRA
O CONFLITO DAS FRONTEIRAS
Metafiacutesica Negatividade e o Extremo Oriente
Tese aprovada como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do grau de Doutor em Filosofia no
Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da Universidade Federal da Paraiacuteba
Universidade Federal de Pernambuco e Universidade Federal do Rio Grande do Norte pela
seguinte banca examinadora
Orientador Prof Dr Oscar Federico Bauchwitz (presidente)
Departamento de Filosofia UFRN
Profa Dra Gisele Amaral dos Santos
Departamento de Filosofia UFRN
Dr Edrisi de Arauacutejo Fernandes
Departamento de Filosofia UFRNUnB
Prof Dr Leonel Ribeiro dos Santos
Faculdade de Letras Universidade de Lisboa
Profa Dra Claudia DrsquoAmico
Departamento de Filosofia Universidad de Buenos Aires
Prof Dr Ciacutecero Cunha Bezerra (suplente)
Departamento de Filosofia UFS
Profa Dra Claudia Pellegrini Drucker (suplente)
Departamento de Filosofia UFSC
Natal 30 de maio de 2014
5
AGRADECIMENTOS
Pelos anos de orientaccedilatildeo e suporte pela incansaacutevel e paciente instruccedilatildeo pelo sempre presente
companheirismo e por tornar possiacutevel o caminho percorrido agradeccedilo ao Prof Dr Oscar
Federico Bauchwitz Pela hospitalidade e cortesia pelos conselhos e indicaccedilotildees pelos diaacutelogos
e por abrir um novo horizonte especulativo para muito aleacutem do trabalho acadecircmico agradeccedilo
ao Prof Dr Graham Parkes
Pela oportunidade de discussatildeo e criacuteticas pela atenccedilatildeo na leitura do trabalho e pelos
inestimaacuteveis acreacutescimos agradeccedilo aos membros das bancas de qualificaccedilatildeo e defesa Profa
Dra Claudia DrsquoAmico Prof Dr Leonel Ribeiro dos Santos Dr Edrisi de Arauacutejo Fernandes e
Profa Dra Gisele Amaral dos Santos
Agradeccedilo ao Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da Universidade Federal
da Paraiacuteba Universidade Federal de Pernambuco e Universidade Federal do Rio Grande do
Norte pela aceitaccedilatildeo do projeto de tese doutoral Agradeccedilo agrave University College Cork (Colaacuteiste
na hOllscoile Corcaigh) pela recepccedilatildeo do estaacutegio sanduiacuteche Agradeccedilo ao Trinity College
Dublin (Colaacuteiste na Triacuteonoacuteide Baile Aacutetha Cliath) pela oportunidade de frequentar os
seminaacuterios e bibliotecas Agradeccedilo agrave Alianccedila Cultural Brasil-Japatildeo e agrave Biblioteca Joatildeo Hideo
Matsumoto e ao Instituto Goethe de Satildeo Paulo e sua biblioteca Agradeccedilo ao Instituto Paulista
de Sacircnscrito e ao Prof Dr Adriano Aprigliano Agradeccedilo ainda agrave Coordenaccedilatildeo de
Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior pelo fomento da tese doutoral e do estaacutegio no
exterior
Agradeccedilo agraves pessoas que direta ou indiretamente contribuiacuteram no processo de
composiccedilatildeo da tese Alan Marinho Lopes Dax Moraes Marcus Vinicius Cavalcante Dantas
Tulio Madson de Oliveira Galvatildeo Sara Barrera Rubio Bastien Duval Javier Coloacuten Joseph
Sexton Agnieszka Klęczar Rodrigo Ferreira Braga Abrahatildeo Marcelo Ferreira Braga e Carla
Almeida
Agradeccedilo especialmente agrave Thaiacutes Ricci Conesa pelo apoio e pela motivaccedilatildeo sem os
quais natildeo concluiria este trabalho Finally yet importantly agradeccedilo ao absoluto integral e
irrestrito apoio de meus pais Luiz Pinto Teixeira e Tereza Cristina Fontes
6
Eacute preciso ainda ter caos dentro de si para dar
luz a uma estrela danccedilante
Friedrich Nietzsche Assim falou Zaratustra
7
RESUMO
O conflito das fronteiras se desdobra como um percurso natural da histoacuteria do pensamento
humano Torna-se manifesto todavia apenas mediante um expliacutecito choque cultural que
evidencia distintas formataccedilotildees conceituais Pensar este conflito pode esclarecer os enlaces
responsaacuteveis pelo desenvolvimento do pensamento contemporacircneo Esta tese pretende analisar
em um primeiro momento a histoacuteria do pensamento enquanto metafiacutesica apresentando um
diagnoacutestico da maneira pela qual o Ocidente impinge sua loacutegica categoacuterica Por conseguinte
apresenta a tradiccedilatildeo da negatividade evidenciando um pensamento para aleacutem da ontologia
claacutessica mediante uma henologia e uma meontologia no neoplatonismo e na miacutestica medieval
Por fim expotildee o pensamento do Extremo Oriente como possiblidade de recepccedilatildeo
contemporacircnea da negatividade e escapatoacuteria para a formataccedilatildeo ocidentalizante da filosofia
vigente
Palavras-chave Fronteiras Metafiacutesica Negatividade Extremo Oriente
8
ABSTRACT
The conflict of borderlines unfolds itself as a natural path in history of human thought It
becomes clear only through an explicit cultural clash which conveys distinct conceptual
formatting Thinking this conflict might enlighten the bindings responsible for development of
contemporary way of thought This thesis intent to analyse in a first moment the history of
thought as Metaphysics presenting a diagnostic towards the way through which the West
impinges its categorical logic Thereafter presents the tradition of Negativity showing a
thinking beyond Classic Ontology through a Henology and a Meontology in Neoplatonism and
Medieval Mysticism At the end exposes the Far Eastern thought as possibility of contemporary
reception of Negativity and escape from the Westernizer formatting of contemporary
philosophy
Key words Frontiers Metaphysics Negativity Far East
9
ZUSAMMENFASSUNG
Der Konflikt der Grenzen entfaltet sich als einen natuumlrlichen Weg in der Geschichte des
menschlichen Denkens Es wird nur klar durch eine explizite Kulturkampf die unterschiedliche
konzeptionelle Formatierung vermittelt Denken dieses Konflikts koumlnnte die Bindungen fuumlr die
Entwicklung der zeitgenoumlssischen Denkweise verantwortlich zu erleuchten Diese These
versuchen zu analysieren in einem ersten Moment die Geschichte des Denkens als Metaphysik
praumlsentiert eine Diagnose auf die Moumlglichkeit durch die der Westen trifft seine kategorische
Logik Danach praumlsentiert die Tradition der Negativitaumlt zeigt ein Denken jenseits Klassische
Ontologie durch eine Henologie und Meontologie im Neuplatonismus und mittelalterliche
Mystik Am Ende macht der Fernost gedacht als Moumlglichkeit der zeitgenoumlssischen Rezeption
von Negativitaumlt und Flucht aus der Westler Formatierung der zeitgenoumlssischen Philosophie
Schuumlsselwoumlrter Frontiers Metaphysik Negativitaumlt Fernost
10
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 11
1 ONTOLOGIA A SUBSTANTIVACcedilAtildeO DO OCIDENTE E O PROBLEMA DA METAFIacuteSICA 28
ENQUANTO DELIMITACcedilAtildeO DAS FRONTEIRAS DO PENSAMENTO
2 O CAMINHO DA NEGATIVIDADE HENOLOGIA E MEONTOLOGIA E A ULTRAPASSAGEM 61
DOS LIMITES DA METAFIacuteSICA
3 O EXTREMO ORIENTE E O CONFLITO DAS FRONTEIRAS A FILOSOFIA COMPARADA 89
INTERCULTURAL COMO CHAVE DE LEITURA PARA ALGUNS PROBLEMAS DO
PENSAMENTO CONTEMPORAcircNEO
CONCLUSAtildeO 113
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 119
11
INTRODUCcedilAtildeO
Aos 16 de abril de 2010 sob a avaliaccedilatildeo de uma banca composta pelos professores Oscar
Federico Bauchwitz Gisele Amaral dos Santos e Acylene Maria Cabral Ferreira defendi a
dissertaccedilatildeo de mestrado intitulada A caminho da fronteira Embora possa ainda dedicar mais
dez anos agrave correta composiccedilatildeo estiliacutestica daquele texto aleacutem da estruturaccedilatildeo dos argumentos
laacute natildeo tatildeo bem encadeados imagino ter alcanccedilado o objetivo de tornar claro natildeo apenas o intuito
do trabalho mas o problema movimentado pela questatildeo do conflito fronteiriccedilo de uma filosofia
comparada intercultural por meio de uma histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica
A questatildeo ldquoentre Heidegger e os japonesesrdquo (subtiacutetulo da dissertaccedilatildeo) abordada ao longo
dos dois anos de mestrado acadecircmico referia-se a uma virada de pontos de vista se em um
primeiro momento os orientais se perguntavam o quecirc a filosofia ocidental podia oferecer ao
pensamento e desenvolvimento do Extremo Oriente em um segundo momento os ocidentais
passaram a se perguntar de que forma os japoneses podiam acrescentar agrave filosofia um elemento
meditativo perdido no periacuteodo da consumaccedilatildeo da teacutecnica moderna e do cientificismo desde
suas perspectivas milenares de pensamento reflexivo
Ao passo em que a pesquisa ia se desenvolvendo o trabalho caminhou paulatinamente
rumo ao impacto violento surtido pelo diaacutelogo entre limites bem delineados de um Ocidente
estruturalmente metafiacutesico e um Oriente especulativo quase inefaacutevel para um leitor ocidental
A conclusatildeo extraiacuteda do caminho percorrido entre os anos de 2008 e 2010 apresentou antes de
qualquer soluccedilatildeo a constataccedilatildeo da instalaccedilatildeo de uma impertinecircncia petrificada no seio da
filosofia contemporacircnea sobre a qual pouco se pode acrescentar na dissoluccedilatildeo de problemas
mas muito se pode desdobrar no que tange ao entrelaccedilamento do alcance de um grau distinto
de movimentaccedilatildeo das arquitetocircnicas conceituais
12
Embora tais palavras pareccedilam abstratas em demasia (e de fato satildeo) o foco atingido se
concentrou em uma inquiriccedilatildeo a respeito do pensamento da linguagem e da verdade a partir
de um inusitado enigma sobre a negatividade do impensaacutevel ou seja sobre o silecircncio que
emerge no preciso momento no qual o pensamento eacute estarrecido e a liacutengua cala
A armadilha construiacuteda a partir das muacuteltiplas tentativas de elaboraccedilatildeo de conceitos afeta
natildeo somente a formataccedilatildeo silogiacutestica do intelecto humano comum mas ainda as
particularidades dos diversos modos de expressatildeo geograficamente distintos Correndo o risco
de se tornar antes uma antropologia filosoacutefica do que propriamente uma histoacuteria e criacutetica da
metafiacutesica o trabalhou refletiu uma anaacutelise agrave proacutepria concepccedilatildeo pela qual se distingue uma
filosofia da outra execrando qualquer nacionalismo filosoacutefico e investigando as questotildees que
envolvem a existecircncia humana dentro de seu modo relacional com o ser e com o ambiente que
a cerca O resultado foi a apresentaccedilatildeo de uma filosofia comparada intercultural que aparece
natildeo simplesmente como um campo disciplina ou subaacuterea da filosofia mas antes como uma
maneira pela qual eacute possiacutevel pensar filosoficamente para aleacutem das fronteiras de uma mera
linguagem de primeira ordem Dentro deste contexto nasce a hipoacutetese do tema o conflito das
fronteiras a partir do pressuposto de uma abordagem aos temas centrais do pensamento
contemporacircneo sustentando a interculturalidade filosoacutefica como aporte central
A proposiccedilatildeo fundamental desta tese adveacutem de alguns questionamentos particulares e
pontuais em um fluxo semelhante ao da dissertaccedilatildeo de 2010 Em abril de 2009 enquanto ainda
trabalhava no texto do mestrado teve lugar no campus da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte o III Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica comissionado pelos professores Oscar
Federico Bauchwitz Jaimir Conte Maria da Paz Nunes de Medeiros e Markus Figueira da Silva
O evento marcava a consolidaccedilatildeo da linha de pesquisa em Metafiacutesica do Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Filosofia da universidade trazendo em sua terceira ediccedilatildeo o tema O que eacute
metafiacutesica Em homenagem aos oitenta anos da preleccedilatildeo homocircnima de Martin Heidegger
13
A conferecircncia pronunciada por Heidegger aos 24 de julho de 1929 foi preparada como
aula inaugural para a assunccedilatildeo da caacutetedra de filosofia que antes pertencera a Edmund Husserl
na Albert-Luumldwigs Universitaumlt Freiburg im Breisgau O escrito se tornou um dos mais
emblemaacuteticos conhecidos e discutidos textos de Heidegger Talvez o fator mais impactante da
preleccedilatildeo seja antes mesmo da abordagem temaacutetica o meacutetodo pouco usual conforme o qual o
questionamento eacute elaborado Heidegger inicia a aula dizendo que embora a questatildeo suscite a
expectativa de que se falaraacute sobre a metafiacutesica ele iraacute na verdade discutir uma questatildeo
metafiacutesica particular proporcionando uma movimentaccedilatildeo em seu interior e habilitando a
oportunidade para que a ela apareccedila por si soacute a partir do problema levantado (cf HEIDEGGER
1976 103) Deixar a metafiacutesica se apresentar por si soacute antes do que sobre ela discorrer
evidencia uma feiccedilatildeo um tanto distinta da abordagem de Heidegger ao problema uma de suas
marcas registradas todavia
Raras vezes a tradiccedilatildeo ocidental se deparou com tal niacutevel de heterodoxia no que tange
agrave instruccedilatildeo filosoacutefica (talvez apenas Platatildeo tenha cunhado semelhante meacutetodo ao perseguir o
pescador com o anzol antes de se aproximar da figura do sofista por exemplo ndash natildeo consigo
pensar em outras ilustraccedilotildees agora mesmo embora certamente elas existam) Uma linha de
raciociacutenio como esta aproxima-se muito mais de uma postura oriental
Durante o Coloacutequio aleacutem de retomar pela eneacutesima vez a leitura da preleccedilatildeo de
Heidegger lembro-me de me dedicar agrave leitura da claacutessica obra propedecircutica de Kaiten Nukariya
The Religion of Samurai (1913) a primeira obra sobre zen budismo publicada no Ocidente (em
liacutengua ocidental) Apoacutes uma breve introduccedilatildeo sobre a origem do budismo na Iacutendia e o percurso
de Śākyamuni Siddhārta Gautama (o Buddha Śākyamuni शाकयमनि) Nukariya relata a maneira
pela qual o monge Bodhidharma introduz o budismo na China destacando que seu meacutetodo era
inteiramente diferente dos outros instrutores de ensino ordinaacuterios
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Sobre Bodhidharma Nukariya relata ldquoEle natildeo explicaria nenhum problema ao
estudante mas simplesmente ajudaacute-lo-ia a ser iluminado colocando-o um abrupto poreacutem eficaz
questionamentordquo (NUKARIYA 2006 10) Com esta metodologia tem iniacutecio a tradiccedilatildeo de
budismo chinecircs nomeada chrsquoan (dʑjen 禪) uma traduccedilatildeo do termo sacircnscrito dhyāna (धयाि) cujo
significado mais geral seria ldquomeditaccedilatildeordquo ou ldquopensamentordquo que futuramente seria lido na
pronuacutencia japonesa (くんよみ kun-yomi) do ideograma como zen (禅 ) Apoacutes expor esta
caracteriacutestica iacutempar do ensino de Bodhidharma Nukariya ainda relata uma breve histoacuteria na
qual um tal Shang Kwang havia requisitado ao mestre que ldquolhe pacificasse a menterdquo
Prontamente Bodhidharma teria respondido ldquoTraga-me aqui sua mente ante mim para que eu
a pacifiquerdquo e Shang Kwang teria replicado ldquomas isto eacute impossiacutevelrdquo recebendo em seguida
a resposta ldquoentatildeo jaacute pacifiquei sua menterdquo Shang Kwang foi instantaneamente iluminado
Certamente Martin Heidegger natildeo exige de seus ouvintes leitores e interlocutores uma
iluminaccedilatildeo tatildeo abrupta e desprovida de raciociacutenio loacutegico mas nem por isto suas reivindicaccedilotildees
satildeo menos ousadas e intensas ou sua meditaccedilatildeo menos profunda Heidegger propocircs diversas
reflexotildees que extraiacutedas de seu contexto especiacutefico configuram-se tatildeo inusitadas quanto as
passagens da tradiccedilatildeo chrsquoan ou zen sendo por vezes consideradas mesmo impertinentes Eacute o
caso de uma de suas mais arrojadas e emblemaacuteticas afirmaccedilotildees ldquoO mais grave eacute que natildeo
pensamosrdquo (HEIDEGGER 2002 6) Desconsiderando o sentido ao qual a sentenccedila pertence
certamente as palavras de Heidegger parecem uma afronta Todavia o leitor atento sabe que
Heidegger se refere agrave distinccedilatildeo entre um pensamento calculador (rechnende Denken) e um
pensamento meditativo (Besinnung) reportando-se ao velamento deste uacuteltimo e da supremacia
exclusiva do primeiro por meio do qual se faz ciecircncia e se daacute o desenvolvimento estrutural da
condiccedilatildeo tecnoloacutegica imperiosa Eacute justamente dentro deste fluxo que Heidegger afirma a
predominacircncia do pensamento cientiacutefico tambeacutem em Was ist Metaphysik
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Para ingressar no interior da metafiacutesica Heidegger chama atenccedilatildeo ao fato de que a
existecircncia humana eacute hoje sobremaneira norteada pela ciecircncia Embora alguns opositores ainda
resistam agrave tal afirmaccedilatildeo natildeo eacute todavia difiacutecil convencecirc-los do contraacuterio argumentando em
favor da tese de Heidegger Natildeo se trata apenas de afirmar que o ser humano se apoia e confia
uacutenica e exclusivamente (quiccedilaacute mesmo cegamente) na ciecircncia como modo de desenvolvimento
e sustentaccedilatildeo da vida humana na Terra Antes disto e mais grave ainda trata-se de constatar
que a maneira pela qual o ser humano hoje pensa eacute tatildeo somente cientiacutefica mesmo em casos nos
quais o discurso supostamente se volta para um tema espiritual ou de feacute (ou qualquer outro
assunto) ndash a despeito de qualquer pretensa e torta teosofia eacute ainda a teologia a ciecircncia reinante
dos seminaacuterios sem embargo Independente do tema ou assunto da circunstacircncia ou
necessidade a maneira de proceder eacute jaacute sempre cientiacutefica sustentada por uma loacutegica inflexiacutevel
que imputa sua norma de que ldquosendo algo aquilo mesmo isto ou bem eacute ou bem natildeo eacute natildeo
havendo uma terceira opccedilatildeordquo
Em outras palavras parece ter se ocultado na mente humana qualquer outro modo de
pensar que natildeo seja o propriamente cientiacutefico Este modo cientiacutefico de pensar possui algumas
caracteriacutestica pelas quais se pode evidenciaacute-lo estritamente desde um triacuteplice entendimento que
compreende ldquoreferecircncia ao mundordquo ldquoposturardquo e ldquoirrupccedilatildeordquo Heidegger explica estes pontos
ldquoAquilo que na referecircncia ao mundo permanece eacute o ente em si mesmo ndash e mais nada Aquilo
que lidera toda postura eacute o ente em si mesmo ndash e nada mais Aquilo que faz acontecer a
discussatildeo investigativa da irrupccedilatildeo eacute o ente em si mesmo ndash e aleacutem disto nadardquo (IDEM OP CIT
105) A cientificidade da existecircncia humana se expressa mediante uma projeccedilatildeo ao ente e nada
mais Ao afirmar a determinaccedilatildeo da ciecircncia na vida e conduta humanas Heidegger quer deixar
ver sobretudo isto o fato de que hoje soacute eacute validado o discurso de um sujeito cujo objeto
cognosciacutevel eacute um ente este mesmo que subjacente obsta-lhe Dentro da relaccedilatildeo entre sujeito
e objeto toda uma tradiccedilatildeo se fundamenta e doravante prossegue da mesma maneira
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Fazendo uma revisatildeo dos passos da histoacuteria do pensamento humano seria mais ou menos
faacutecil portanto imaginar como a partir da metafiacutesica claacutessica se desdobra o cientificismo
sobretudo tendo em vista a doutrina das Categorias de Aristoacuteteles aleacutem da tatildeo aclamada
ldquociecircncia do ente enquanto enterdquo Contudo natildeo eacute este o alvo de Heidegger Deixar a metafiacutesica
aparecer por si soacute deve contemplar a totalidade do questionamento proposto e natildeo um
historicismo vulgar Que todo raciociacutenio eacute regulado e direcionado pelo ente facilmente
constata-se Agora bem o que se passa com a outra parte da inquiriccedilatildeo qual seja o ldquonada
maisrdquo Heidegger formula a questatildeo ldquoA ciecircncia natildeo quer saber do nada Mas certamente em
sua permanecircncia ao manifestar sua proacutepria natureza chama o nada para ajudar O que ela
rejeita eacute necessaacuterio para classificaacute-la Que ambiacutegua essecircncia se revela aiacuterdquo (ID IBIDEM 106) Ao
perquirir o ente e aleacutem disto nada o elemento que confere a exatidatildeo de sua pesquisa eacute
auxiliado pelo ldquonadardquo ou seja trata-se disto e nada mais (por mais redundante e ambivalente
que soe ateacute mesmo um pouco non sense) Heidegger pergunta ldquoO que acontece com o nadardquo
(ID IBID) ou ainda para onde vai esse nada em meio agrave existecircncia cientiacutefica
Eacute justamente a inusitada apariccedilatildeo deste nada que revela o incocircmodo de um elemento
impensaacutevel e inexprimiacutevel que natildeo se dobra ante agrave relaccedilatildeo sujeito-objeto Natildeo eacute preciso aqui
destrinchar todo o caminho percorrido por Heidegger em Was ist Metaphysik Trata-se de um
texto bastante lido e amplamente comentado Basta apenas pontuar a sentenccedila central da
conferecircncia (ou a pergunta-condutora a Leitfrage) por meio da qual emerge a resposta agrave
questatildeo ldquoo que eacute metafiacutesicardquo ldquoPor que haacute absolutamente o ente e natildeo antes nadardquo (ID IBID
122) O extraordinaacuterio da questatildeo eacute justamente a capacidade do ser humano em por ela
perguntar A capacidade de questionar ldquopor que natildeo nadardquo define uma disposiccedilatildeo fundamental
da existecircncia quiccedilaacute mesmo aquela ocultada pelo modo cientiacutefico de existir (ou seja
paradoxalmente este mesmo modo eacute responsaacutevel por evidenciar o que nele se perde)
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A disposiccedilatildeo que regula a eleiccedilatildeo do modo cientiacutefico de pensar tem em vista
salvaguardar o humano do abismo (da falta de fundamento) que se abre quando o nada emerge
silencia o discurso e joga o ser humano em uma situaccedilatildeo incocircmoda uma anguacutestia profunda
Quase como um mestre zen Heidegger deixa a metafiacutesica se abrir natildeo pela pergunta nem
sequer pela acircnsia de prover ao interlocutor (ou a si mesmo) uma resposta mas pela simples
possibilidade e capacidade de perguntar A metafiacutesica neste sentido perdura antes como uma
decisatildeo Ao que parece por este motivo Heidegger cita um trecho de Eacutedipo em Colonos de
Soacutefocles no posfaacutecio agrave preleccedilatildeo (em 1943) destacando os versos (em sua traduccedilatildeo particular
por mim aqui pobremente e quiccedilaacute mesmo irresponsavelmente adaptada) que dizem
ἀλλ᾽ ἀποπαύετε μηδ᾽ ἐπὶ πλείω
θρῆνον ἐγείρετε˙
πάντως γὰρ ἔχει τάδε κῡρος
Mas paremos e nunca mais a partir de agora
despertaremos o lamento
Em todos os lugares se deteacutem o evento
assegurando-lhe uma decisatildeo pela conclusatildeo (ID IBID 312)
A ldquodecisatildeo pela conclusatildeordquo coloniza todos os lugares e se deteacutem a partir de agora em uma
posiccedilatildeo da qual natildeo mais se sairaacute A anguacutestia revelada a partir do pensamento em torno ao
nada manifesta os limites da linguagem e vislumbra o destino do ente no ser em sua plenitude
e predominacircncia Mas para aleacutem da constataccedilatildeo da indigecircncia da linguagem haacute todavia uma
possibilidade de abordar efetivamente esse nada Como eacute possiacutevel pensar para aleacutem da
delimitaccedilatildeo entificante da referecircncia ao mundo da postura e da irrupccedilatildeo Haacute um caminho de
ultrapassagem e superaccedilatildeo possiacutevel ainda nos dias de hoje
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Ao passo em que avanccedilava nas leituras e Heidegger e em algumas outras esta se tornou
a pergunta-chave pela qual imaginava atingir certo direcionamento temaacutetico A despeito da
disposiccedilatildeo de humor apresentada na conferecircncia bem como das consideraccedilotildees do posfaacutecio de
1943 os trabalhos de Heidegger dos anos de 1930 em diante datildeo a entender um claro
direcionamento pelo qual os elementos abandonados pela entificaccedilatildeo do pensamento podem ser
evidenciados qual seja a partir da poesia Os versos de Soacutefocles segundo o proacuteprio Heidegger
ldquoa uacuteltima poesia do uacuteltimo poeta gregordquo natildeo estatildeo ali dispostos sem motivo Tambeacutem natildeo eacute
sem razatildeo que a partir de aiacute haacute uma incansaacutevel busca pela poesia de Friedrich Houmllderlin (aleacutem
de Georg Trakl Stephan George Rainer Maria Rilke e de outros poetas escolhidos por
Heidegger) Ateacute certo ponto eacute possiacutevel afirmar que Heidegger encontra na poesia a
possibilidade de superar a linguagem por meio da proacutepria linguagem Em alguns outros
momentos uma meditaccedilatildeo de teor semelhante aparece como no encontro entre Heidegger e os
japoneses (como apresentei na dissertaccedilatildeo de 2010) Contudo restava ainda buscar os modos
de reflexatildeo que natildeo simplesmente podiam ir aleacutem da expressatildeo da ciecircncia do ente enquanto
ente mas ainda colocaacute-la em questionamento mediante outros meacutetodos
Foi na abertura do III Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica que minhas inquietaccedilotildees
comeccedilaram a se asseverar e ganhar corpo para o que viria a ser esta tese A conferecircncia
inaugural do evento foi sobremaneira marcante neste processo O professor Gilvan Fogel da
Universidade Federal do Rio Janeiro havia sido convidado para encerrar o primeiro dia de
evento Ele apresentou naquela noite a conferecircncia O que eacute metafiacutesica Como ele mesmo frisou
ldquonatildeo a pergunta mas a respostardquo Havia sem embargo a intenccedilatildeo de responder a pergunta
em um certo direcionamento eacute claro O texto vinha ainda acompanhado de um subtiacutetulo (com
o qual foi publicado como tiacutetulo oficial alguns anos depois diga-se de passagem) Sobre a
metafiacutesica ou a respeito do jejum O mote para o subtiacutetulo o proacuteprio professor o explica na
passagem inicial do texto que gostaria de citar por completo agora mesmo
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O subtiacutetulo pode soar estranho insoacutelito e natildeo muito seacuterio Mas pelo que ele insinua
pretende anunciar algo seacuterio mesmo muito seacuterio a saber a metafiacutesica E a inspiraccedilatildeo
ou a motivaccedilatildeo que propicia o encaminhamento para a questatildeo anunciada a
metafiacutesica vem de uma obra igualmente seacuteria muito seacuteria ainda que se possa melhor
que se deva dela se ocupar tambeacutem com grandes e gostosas gargalhadas ndash aquelas que
no destampar do riso sacudindo a barriga bem solta e largada deixam escorrer
viacutesceras pela boca afora Estou me referindo ao Dom Quixote o Engenhoso Fidalgo
Dom Quixote lsquode la Mancharsquo ndash o ldquoda Triste Figurardquo
Entre as poesias que preludiam a primeira parte e que homenageiam seus personagens
maiores temos o uacuteltimo que eacute um diaacutelogo em forma de soneto entre Babieca o
cavalo de El Cid e Rocinante o grande rocim o pangareacute erado de Dom Quixote A
certa altura do diaacutelogo-soneto Babieca pergunta ldquoSeraacute tolice amarrdquo e Rocinante
responde ldquoNatildeo eacute muito prudenterdquo Babieca retruca ldquoEstaacutes metafiacutesicordquo E Rocinante
contesta enfaacutetico ldquoEacute que natildeo comordquo (FOGEL 2011 101)
A passagem sugere que a metafiacutesica eacute antes de tudo coisa de fome Por isto ldquoa respeito do jejumrdquo
denuncia a indisposiccedilatildeo que envolve a metafiacutesica A metafiacutesica eacute portanto certo incocircmodo que
eacute tambeacutem necessidade premente decorrente de certa privaccedilatildeo A partir disto Fogel delineia o
tipo de jejum ao qual se refere natildeo se trata de um jejum nutricional alimentiacutecio mas jejum de
vida conforme ele mesmo diz ldquo() natildeo vida no sentido bioloacutegico mas no sentido banal e
corriqueiro como falamos da vida de ldquonossa vidardquo ndash que ela eacute boa ou ruim ou um buracordquo
(IDEM IBIDEM 102) Esta vida a vida imanente a vida do cotidiano do dia-a-dia esta mesma
que ocupa o tempo e o espaccedilo sofre priva-se absteacutem-se Esta abstenccedilatildeo e privaccedilatildeo satildeo a
condiccedilatildeo pela qual reverbera sua constituiccedilatildeo enquanto sujeito ndash e nasce aiacute uma interpretaccedilatildeo
do que eacute enfim metafiacutesica A partir da conferecircncia de Fogel aleacutem de algumas outras
consideraccedilotildees comecei a ponderar a maneira pela qual abordaria o problema
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Natildeo por meio de uma definiccedilatildeo conceitual acontecimento histoacuterico ou muacutetuo
consentimento temaacutetico mas por meio de uma experiecircncia de pensamento que sem deixar de
lado nenhum dos elementos supracitados configura-se antes como algo intriacutenseco agrave proacutepria
natureza do pensar Ponderando as consideraccedilotildees da conferecircncia de Heidegger a metafiacutesica se
deixa mostrar como uma decisatildeo pela conclusatildeo Um iacutempeto maior do ser humano em
resguardar sua condiccedilatildeo de pacificidade A humanidade teme o caos teme o desalinho receia
o incoacutegnito e inexprimiacutevel Elege por isto seu caminho de seguranccedila com aquilo que lhe eacute
papaacutevel o ente enquanto ente e nada mais Nada quer saber do nada que nada lhe oferece aleacutem
de um indisposto silecircncio um insoacutelito vazio Mediante esta postura embora sob o risco de
ocultar algo em si mesmo que talvez lhe sirva para alcanccedilar siacutetios recocircnditos do misteacuterio de
sua proacutepria existecircncia constitui-se o ser humano um metafiacutesico Sem embargo eacute preciso abster-
se de algo em prol disto ou daquilo que se lhe afigura mais propiacutecio ao momento Fogel enxerga
isto como privaccedilatildeo como jejum como fome Fica muito claro em sua interpretaccedilatildeo o caraacuteter
inflexiacutevel da decisatildeo pela conclusatildeo sobretudo quando traz agrave luz o curioso caso de Vicent van
Gogh
Fogel cita uma carta que van Gogh teria enviado em maio de 1888 a seu irmatildeo Theacuteo
onde descreve sua nova moradia e ao mesmo tempo atelier afirmando que o local eacute pouco
atraente para desenvolver qualquer tipo de flerte ou paquera acrescentando que dificilmente
enxerga como compatiacuteveis o trabalhar e o farrear (faire la noce) A verdade eacute que van Gogh
natildeo possui outra opccedilatildeo senatildeo se privar da diversatildeo do faire la noce natildeo porque eacute asceta ou
abstecircmio nem porque precisa dedicar mais tempo ao seu trabalho ou pagar suas contas (todos
sabem da condiccedilatildeo por vezes paupeacuterrima na qual ele se encontrou ao longo de seu percurso)
mas por ser artista por ser pintor por pintar Urge no artista uma realidade que parece muito
mais real que a vida comum na qual o farrear remete ao contentamento agrave felicidade Natildeo viver
a vida para van Gogh seria natildeo pintar
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Se viver a vida eacute buscar este contentamento esta felicidade entatildeo van Gogh vive para
natildeo-viver Natildeo-viver se torna paradoxalmente a expressatildeo maacutexima da vida metafisicamente
entendida Fogel completa ldquoE por que natildeo viver este natildeo-viver seria ingratidatildeo Seria isso a
saber a distacircncia o agrave parte um dom um presente uma graccedilardquo (IDEM IBIDEM 105)
acrescentando ainda ldquoA metafiacutesica desde que jejum abstinecircncia de vida de viver seria
igualmente muita vida e natildeo cumpri-la natildeo realizaacute-la isto eacute natildeo pensar uma grande
ingratidatildeordquo (ID IBID) e por fim sugerindo ldquoAqui precisa-se confessar viver natildeo eacute preciso
Pintar pensar fazer quadros fazer metafiacutesica ndash isso eacute precisordquo (ID IBID) Ressalte-se o tom das
inquiriccedilotildees da interrogaccedilatildeo acompanhada pela exclamaccedilatildeo A precisatildeo da qual fala fazendo
menccedilatildeo a Fernando Pessoa eacute a necessidade de justeza de ser preciso e acurado destro
rigorosamente alinhado ao fazer metafiacutesica Assim se configura algo muito iacutentimo e sem
embargo inevitaacutevel na natureza humana
Fogel prossegue sua exposiccedilatildeo chamando ao diaacutelogo o Zaratustra de Friedrich
Nietzsche especificamente a seccedilatildeo intitulada Da Visatildeo e do Enigma na qual reincide o anuacutencio
da famosa doutrina do Eterno Retorno citando o trecho que diz
O homem eacute todavia o mais corajoso animal assim ele supera todo e cada animal Com
o jogo sonoro supera ele tambeacutem a dor Mas a dor humana eacute a dor mais profunda A
coragem tambeacutem indica a tontura morte em abismos e onde estaria o homem senatildeo
em abismos Ele natildeo vecirc a si mesmo ndash vecirc abismos (NIETZSCHE 2005 119)
Para Fogel o ldquoverrdquo natildeo denuncia uma observaccedilatildeo circunvisatildeo ou vislumbre mas antes um
acontecimento uma iluminaccedilatildeo um tornar visiacutevel Torna-se visiacutevel o abismo o sem fundo
sem fundamento Ao que parece quanto mais o ser humano contempla sua proacutepria existecircncia
mais sem chatildeo fica maior eacute a falta de fundamento e com maior radicalidade se abre um abismo
frente aos seus peacutes
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Eacute possiacutevel todavia prosseguir caminhando ao lado de Nietzsche e Heidegger bem como
por meio das reflexotildees e interpretaccedilotildees oferecidas por Fogel buscando alcanccedilar uma feiccedilatildeo da
vida humana que permita descortinar a proveniecircncia metafiacutesica de seu percurso e ateacute mesmo
suscitando uma ultrapassagem deste fenocircmeno Contudo eacute necessaacuterio ainda precisar com maior
cuidado os termos contidos na questatildeo Faz parte do labor filosoacutefico se afundar mais e mais em
algo que por si soacute jaacute eacute bastante fundo
Natildeo apenas os pensamentos de Nietzsche e Heidegger oferecem uma especulaccedilatildeo de
formidaacutevel profundidade difiacutecil de ser absorvida em primeira matildeo como tambeacutem por vezes
pode se mostrar demasiado complexo empreender um rastreamento do sentido originaacuterio das
palavras e sentenccedilas salvo mediante uma anaacutelise completa (empresa complicadiacutessima
provavelmente impossiacutevel) de suas obras Mesmo assim talvez ainda natildeo se mostre com
suficiente nitidez se natildeo houver de antematildeo uma explanaccedilatildeo das fontes e referecircncias cruzadas
Com estas ideias em mente buscando avanccedilar cada vez mais no tema e sobre ele meditar
com cada vez mais dedicada atenccedilatildeo e profundidade tentando ampliar com ferocidade o
vocabulaacuterio (para fazer minhas as palavras de Marco Lucchesi) outro escrito me sobreveio
durante o processo de composiccedilatildeo das hipoacuteteses contidas neste trabalho Em Nihilismo e
Neoplatonismo (2003) Oscar Federico Bauchwitz traccedila algumas linhas que especificam a
condiccedilatildeo por meio da qual o problema efetivamente se apresenta
Haacute no texto de Bauchwitz tambeacutem um necessaacuterio retorno a Nietzsche e Heidegger Natildeo
apenas dentro do contexto de um estudo da metafiacutesica enquanto histoacuteria intelectual mas ainda
constatando os tempos onde ela se apresenta como formataccedilatildeo do modo de ldquoagir-pensarrdquo torna-
se imprescindiacutevel resgatar a lembranccedila de que ldquo() com Nietzsche se estabelece uma criacutetica da
metafiacutesica que acaba por homologar o seu oacutebitordquo (BAUCHWTIZ 2003b 169) Como explica
Bauchwitz a declaraccedilatildeo da morte da metafiacutesica eacute aquela mesma da morte do platonismo
cristianismo niilismo e outros sinocircnimos para o mesmo fenocircmeno
23
Esta morte natildeo eacute todavia apenas uma declaraccedilatildeo da inexistecircncia corrente do pensamento
metafiacutesico senatildeo sua consumaccedilatildeo total e absoluta A ldquociecircncia do ente enquanto enterdquo entifica
tudo aquilo que outrora foi nomeado vida (φύσις) pelos gregos dos periacuteodos arcaico e claacutessico
ndash das coisas ao redor aos pensamentos e aos deuses A entificaccedilatildeo do mundo em torno eacute sem
sombra de duacutevidas a maneira pela qual a ciecircncia vigente concebe o mundo configurando o que
Heidegger havia chamado de ldquoreferecircncia ao mundordquo A entificaccedilatildeo do pensamento por sua vez
denota a ldquoposturardquo tambeacutem mencionada por Heidegger aquela mesma segundo a qual haacute uma
maneira ldquocorretardquo de pensar Ao passo que a entificaccedilatildeo dos deuses um pouco mais complicada
apresenta-se como ldquoirrupccedilatildeordquo na qual a circunvisatildeo resultante dos dois elementos acima
mencionados denuncia a morte de deus a fuga dos deuses o viver sem o divino sem o
iluminado sem o deslumbre Desatados os laccedilos entre ser humano e divindade Bauchwitz
questiona ldquoO que natildeo pode o homem modernordquo (IDEM IBIDEM 170) questionamento que
poderia ainda ser vertido nos termos (mais ou menos) de Dostoievsky ldquose deus morreu entatildeo
tudo eacute permitidordquo ou ainda nos (mais ou menos novamente) de Heidegger ldquose apagou da
histoacuteria universal o esplendor da divindade Essa eacute a eacutepoca da noite do mundordquo Contudo para
Bauchwitz perdura algo no labor filosoacutefico que torna liacutecito novamente regressar agrave questatildeo Ele
explica que ldquoResgatar a forccedila mais originaacuteria das palavras eacute o ofiacutecio do filoacutesofo Por isso
dizemos que a miacutestica se mostra no fechar de olhos no fechar da bocardquo (ID IBID 173) Recordo-
me acompanhando os seminaacuterios matinais do professor Bauchwitz de ouvir certa vez a
sentenccedila ldquoo miacutestico estaacute sempre em conflito com a linguagemrdquo Conflito ou confronto natildeo me
lembro muito bem Havia de fato escrito a frase literalmente ao peacute da paacutegina de algum livro
(ou alguma fotocoacutepia) que agora mesmo esqueccedilo qual era e natildeo consigo encontrar
Independente das palavras exatas o que se apresenta no texto de Bauchwitz eacute a sugestatildeo de um
caminho para este resgate por meio de um conflito o confronto suscitado pela miacutestica
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Bauchwitz escreve ldquoO miacutestico eacute em primeiro lugar aquele que acolhe o misteacuterio dentro
de si recolhendo em silecircncio o sentido oculto da realidade soacute depois eacute que o silecircncio rompe a
barreira dos dentes para mostrar-se linguagemrdquo (ID IBID) E ainda prossegue especificando que
ldquoPor isso a miacutestica eacute uma experiecircncia radical da liberdade proacutepria Abrindo matildeo de um mundo
que clama sua atenccedilatildeo o miacutestico encontra-se com o que nele eacute totalmente incoacutegnito e
incognosciacutevel um eu que se mostra como puro nadardquo (ID IBID) A maneira pela qual Bauchwitz
iraacute desdobrar a explicaccedilatildeo destas sentenccedilas sobremaneira enigmaacuteticas percorreraacute trecircs
pensadores que marcam a tradiccedilatildeo do neoplatonismo e da chamada miacutestica medieval quais
sejam Pseudo-Dioniacutesio Areopagita Joatildeo Escoto Eriuacutegena e Mestre Eckhart Contudo o que
havia me saltado aos olhos antes da eleiccedilatildeo temaacutetica autoral ou metodoloacutegica havia sido a
sentenccedila ldquoum eu que se mostra como puro nadardquo Jaacute havia encontrado semelhante formulaccedilatildeo
todavia nunca em autores ocidentais Remeti diretamente a maneira pela qual a tradiccedilatildeo
mahāyāna do budismo do leste asiaacutetico havia compreendido a noccedilatildeo do natildeo-si-mesmo ou natildeo-
ego (anātman अितमि) como dissoluccedilatildeo do eu por meio da tensatildeo entre forma (ou fenocircmeno ou
ainda aparecircncia rūpa रप) e nada (ou vacuidade śūnyatā शनयता) Estas ideias derivam
diretamente do chamado Cacircnone Pāḷi tendo sido transmitidas em sacircnscrito pelo Sūtra do
Coraccedilatildeo (Prajntildeāpāramitā Hṛdaya परझञापारनमताहरदय) ateacute alcanccedilarem formas mais refinadas no
budismo chrsquoan e no zen budismo japonecircs assumindo as configuraccedilotildees de ldquoformardquo ou
ldquoaparecircnciardquo enquanto shiki (色) e ldquonadardquo ou ldquovacuidaderdquo enquanto kū (空) elementos centrais
do pensamento da filosofia japonesa contemporacircnea da Escola de Kyōto (e que tambeacutem havia
abordado brevemente em minha dissertaccedilatildeo de mestrado) Tornou-se imperioso investigar ateacute
que ponto tais ideias se aproximam ou comungam de princiacutepios convergentes aleacutem da maneira
como elas repercutem em suas tradiccedilotildees e particularidades Mais uma vez encontrava-me frente
ao sem-fim nuacutemero de possibilidades comparativas e complementares
25
Contudo temia o risco de cair no engodo certa vez denunciado por Immanuel Kant
quando afirmou em seus Prolegomena zu einer jeden kuumlnftigen Metaphyysik (1783) que ldquo()
dificilmente se espera que natildeo seja possiacutevel descobrir analogias para cada nova ideia entre ditos
de eras passadasrdquo (KANT 1911 7) natildeo havendo grande meacuterito nisto e sendo necessaacuterio admitir
que estes historiadores da filosofia ocupados com tal empreendimento devam antes aguardar
que os ldquoverdadeiros filoacutesofosrdquo esgotem as fontes da razatildeo Sob pena de realizar uma mera
comparaccedilatildeo friacutevola (embora com a consciecircncia de que passo longe de ser um ldquoverdadeiro
filoacutesofordquo ao menos no sentido Kantiano ndash talvez o seja em outro digamos mais Ginsbergiano
de pura pretensatildeo mas certamente natildeo muito talento) ocupei-me em corretamente designar o
problema que me afligia de modo que fosse possiacutevel corretamente endireitar o roteiro da tese
Era preciso encontrar um mote mesmo que ele natildeo deixasse ver claramente os passos a serem
percorridos mas que provessem alguma direccedilatildeo
Tendo isto em vista natildeo podia negar que o interesse pelo que ousei chamar de ldquoconflito
das fronteirasrdquo crescia a partir de um ldquopar de viacutergulasrdquo que aparentemente haviam escapado agrave
anaacutelise da histoacuteria do pensamento Em outras palavras um determinado momento no qual o
transcurso metafiacutesico foi levemente desviado em uma guinada espontacircnea e natural como um
marinheiro que sutilmente move o leme para a esquerda ou para direita ao perceber o advento
de uma portentosa onda logo atraacutes de si soltando o motor e deixando o barco ser levado pelo
mar ndash saacutebia decisatildeo em momentos de tormenta (passei por esta situaccedilatildeo certa vez em mar
aberto transitando entre Paraty e uma praia recocircndita Pouso do Cajaiacuteba se natildeo me falha a
memoacuteria gostaria de poder descrever em pormenores a experiecircncia que seria proveitosa ao
leitor em termos ilustrativos mas estava muito enjoado no barco para congregar detalhes
miacutesticos em minha massa cinzenta) E eram momentos de tormenta Como poderiam natildeo ser
Sendo assim estabeleci um conveniente itineraacuterio (ao menos sob meu ponto de vista) que
compartilho antes de iniciar o trabalho
26
O primeiro passo importante eacute estabelecer dentro de quais termos se apresenta a
metafiacutesica pela qual se nomeia a histoacuteria do pensamento ocidental O primeiro capiacutetulo da tese
intitulado Ontologia a substantivaccedilatildeo do Ocidente e a delimitaccedilatildeo das fronteiras do
pensamento ocupa-se de tal apresentaccedilatildeo e eacute na verdade bastante simples apesar do tiacutetulo
pomposo A despeito da abordagem histoacuterico-conceitual desdobrada em um primeiro momento
o capiacutetulo segue em consonacircncia com a avaliaccedilatildeo de Martin Heidegger assumindo-o como
interlocutor e inteacuterprete da histoacuteria e criacutetica da metafiacutesic Haacute aqui uma ecircnfase nas leituras por
meio das quais Heidegger caracterizou de maneira direta a passagem de uma fisiologia grega
claacutessica (por ele nomeada ldquopensamento originaacuteriordquo) para o acircmbito da ontologia latina e o modo
conforme o qual a proacutepria ideia de ldquoserrdquo eacute compreendida de maneira tatildeo somente substantivada
a partir de seu particiacutepio presente ldquoenterdquo Um necessaacuterio retorno cronoloacutegico-regressivo eacute
estabelecido do fim ao iniacutecio da modernidade pontuando autores como Jacob Lorhard e
Francisco Suaacuterez Todavia o objetivo principal do capiacutetulo eacute compreender este modo de
substantivaccedilatildeo e quais as consequecircncias disto para o pensamento em um sentido geral (a
delimitaccedilatildeo de suas fronteiras no final das contas) sem nunca perder de vista o peso aristoteacutelico
da designaccedilatildeo e realizando algumas especificaccedilotildees sobre isto
O segundo capiacutetulo intitulado O caminho da negatividade henologia e meontologia e
a ultrapassagem dos limites da metafiacutesica pretende caracterizar efetivamente essa nomeada
ldquonegatividaderdquo Negatividade que natildeo eacute simplesmente predominacircncia de um ldquonatildeordquo ou partiacutecula
de privaccedilatildeo mas antes assunccedilatildeo de um oxiacutemoro o auscultar de um inaudito Desenvolve-se
como argumento central por meio do qual se evidencia as estruturas baacutesicas de um pensamento
radical a evidenciaccedilatildeo de uma meditaccedilatildeo que jaacute natildeo eacute mais norteada pelo ldquoenterdquo mas sim pelo
ldquounordquo (henologia) neoplatocircnico ou mesmo por uma profunda meditaccedilatildeo em torno ao ldquonadardquo
(meontologia) presentes no neoplatonismo e sobremaneira evidentes no pensamento miacutestico
27
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo nomeado O Extremo Oriente e o conflito das fronteiras a
filosofia comparada intercultural como chave de leitura para alguns problemas do pensamento
contemporacircneo pretende conectar os pontos e resgatar o sentido da tese O capiacutetulo traz uma
breve apresentaccedilatildeo da chamada Escola de Kyōto e a constituiccedilatildeo da filosofia japonesa
contemporacircnea Este eacute o momento no qual eacute possiacutevel observar a recepccedilatildeo contemporacircnea da
filosofia ocidental (tanto dentro da tradiccedilatildeo metafiacutesica quanto ldquoforardquo dela na dita negatividade)
e o diaacutelogo (e siacutentese) com o mundo do Extremo Oriente O objetivo eacute portanto pensar em
comunhatildeo com os pensadores da Escola de Kyōto com especial atenccedilatildeo para Keiji Nishitani
(西谷 啓治) observando suas propostas para anaacutelise e resoluccedilatildeo dos problemas de filosofia
contemporacircnea e buscando um esclarecimento a respeito dos termos indicados
Ao fim e ao cabo a intenccedilatildeo aqui eacute convidar os leitores ao diaacutelogo intercultural
apresentando em um diaacuterio de minhas leituras diferentes nuances e pontos de vista a respeito
de algumas questotildees especiacuteficas e ousando um diagnoacutestico da filosofia contemporacircnea bem
como uma vaacutelvula de escape para a atual condiccedilatildeo do pensamento filosoacutefico Caso a empreitada
logre ecircxito acredito que uma nova conversa se abra e novas ideias venham agrave mente Sem
embargo trata-se de uma composiccedilatildeo acerca de um conflito o conflito das fronteiras
28
ONTOLOGIA A SUBSTANTIVACcedilAtildeO DO OCIDENTE E O PROBLEMA DA METAFIacuteSICA
ENQUANTO DELIMITACcedilAtildeO DAS FRONTEIRAS DO PENSAMENTO
Embora ontologia tenha um sentido bastante amplo (que seraacute melhor explorado ao longo do
capiacutetulo) aleacutem de uma sem-fim variedade de definiccedilotildees distintas de autor para autor (algumas
das quais seratildeo eleitas e apresentadas aqui) entende-se o conceito (de forma simplificada) como
um discurso capaz de reunir em uma unidade a polissemia do verbo ser O resultado eacute a
centralizaccedilatildeo conceitual de qualquer ulterior doutrina a partir da definiccedilatildeo desenrolada desde
sua compreensatildeo Por substantivaccedilatildeo do Ocidente refiro-me aqui agrave corrente historial
responsaacutevel por compreender o verbo ser de modo substantivado a partir de seu particiacutepio
presente ldquoenterdquo A intenccedilatildeo do capiacutetulo portanto concentra-se na investigaccedilatildeo do processo
decorrido dessa substantivaccedilatildeo e quais as consequecircncias disto para o pensamento ocidental e
contemporacircneo em uma concepccedilatildeo geral no que diz respeito agrave delimitaccedilatildeo das fronteiras do
pensamento
Em primeiro lugar gostaria de abrir uma interlocuccedilatildeo com o professor Charles H Kahn
da University of Pennsylvania dada a relevacircncia e pertinecircncia de sua obra The Verb lsquoBersquo in
Ancient Greek (1973) para o desenvolvimento do capiacutetulo Antes de desdobrar em pormenores
seu estudo bastante extenso e detalhado Kahn sustenta a tese de que haacute uma relatividade
linguiacutestica referente ao verbo ser (cf KAHN 2003 1-3) Em sua introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo de 2003 (cf
IDEM IBIDEM vii) Kahn se reposiciona em relaccedilatildeo ao argumento expresso em sua obra clamando
ser uma posiccedilatildeo bastante defensiva e ldquofora de modardquo para os tempos atuais Ainda assim trata-
se de uma hipoacutetese bastante interessante
29
A posiccedilatildeo de Kahn (cf IBID 1-3) se apoia na afirmaccedilatildeo de Angus C Graham1 acerca
do mesmo verbo dentro do chinecircs claacutessico onde o sinoacutelogo posiciona o ser relativamente agrave
regra gramatical inerente agrave formulaccedilatildeo de uma determinada sentenccedila significando portanto a
impossibilidade de uma doutrina universal acerca do ser compatiacutevel com liacutenguas distintas
(como o grego o aacuterabe ou o chinecircs) Isto concorda em absoluto com a ideia de que no proacuteprio
grego claacutessico e nas liacutenguas indo-europeias em geral conforme a menccedilatildeo feita por Kahn a
Eacutemile Benveniste2 natildeo haacute em hipoacutetese alguma a implementaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo universal ou
condiccedilatildeo necessaacuteria envolta na distribuiccedilatildeo dos significados do verbo ser Haacute sim e Benveniste
endossa a ideia uma predisposiccedilatildeo da linguiacutestica grega agrave ldquovocaccedilatildeo filosoacutefica da noccedilatildeo de serrdquo
Vocaccedilatildeo esta segundo Kahn muito geral e diversificada no desenvolvimento sistemaacutetico de
seu conceito desde Parmecircnides ateacute Aristoacuteteles e de uma maneira mais sistemaacutetica dos Estoicos
ateacute Plotino Em siacutentese Kahn sustenta que a tese de um determinismo linguiacutestico do ser eacute
claramente falsa ou seja mesmo em falantes de uma mesma liacutengua natildeo eacute possiacutevel encontrar
uma mesma doutrina em torno ao ser como eacute possiacutevel ver nos pensamentos distintos de Platatildeo
e Aristoacuteteles Epicuro e Plotino
Todavia natildeo haacute duacutevidas para Kahn a respeito das condiccedilotildees intriacutensecas da liacutengua de um
autor em sua atividade intelectual seus recursos e suas tendecircncias Ele afirma que natildeo haveria
possibilidade de especificar a determinaccedilatildeo ontoloacutegica se o verbo grego εἰμί natildeo fosse provido
do particiacutepio presente τὸ ὄν ou se natildeo houvesse a derivaccedilatildeo nominal ndashία da qual redunda a
noccedilatildeo de οὐσία Ou ainda a classe de morfemas que compreende ἐστί εἶναι e ἐών derivadas
do indo-europeu ndashes Satildeo as formas nominais do verbo que permitem segundo Kahn (cf IBID
451) natildeo soacute uma clara expressatildeo senatildeo tambeacutem a tematizaccedilatildeo do conceito como um toacutepico
distinto para a reflexatildeo filosoacutefica
1 Angus C Graham ldquoBeing in Classical Chineserdquo In The Verb lsquoBersquo and its Synonyms John W M Verhaar (ed)
Dordrecht Holland D Reidel 1967 1-39 2 Eacutemile Benveniste ldquoCateacutegories de penseacutee et cateacutegories de languerdquo Les Eacutetudes philosophiques n 4 (out-dez
1958) PUF Paris 419-429
30
Kahn fala dos primeiros usos do verbo εἰμί (em formas participiais) em sua
possibilidade de representar qualquer construccedilatildeo copulativa (natildeo muito diferente de qualquer
outro particiacutepio em grego) adaptando-se agraves construccedilotildees coordenadas ou subordinadas (em
nuacutemero gecircnero e causa) e expressando diferentes nuances (concessiva causal adversativa)
Contudo frisa haver ainda outras expressotildees para aleacutem do caso copulativo como nos casos
vital veriacutedico ou existencial Quando o verbo aparece dentro da expressatildeo existencial e emerge
a necessidade de indicar uma referecircncia ou seja um caso gramatical locativo surgem as formas
do uso filosoacutefico do ser como τὰ ὄντα o berccedilo para o desenvolvimento da ontologia O sentido
de τὰ ὄντα apareceria em Aristoacuteteles de acordo com Kahn (cf ID IBID 457) em primeira matildeo
como ldquoo que eacuterdquo (o caso os fatos ou eventos) e em segunda matildeo existencialmente como ldquocoisas
que existemrdquo ldquocoisas que estatildeo presentesrdquo ldquocoisas que podem ser encontradas em algum lugarrdquo
Em ambos os casos o verbo ser eacute entificado Como neste sentido haacute uma conotaccedilatildeo ldquodo que
eacuterdquo algo Aristoacuteteles considerou a referecircncia aos atributos de um determinado ente para expressar
a muacuteltipla significaccedilatildeo de τὸ ὄν partindo em seguida para a definiccedilatildeo do ser no sentido primaacuterio
e fazendo uso de seu derivado nominal οὐσία
A manifestaccedilatildeo de οὐσία surge como uma nominalizaccedilatildeo abstrata ou substantivo de
accedilatildeo Kahn enumera trecircs aspectos distintos do uso de οὐσία em uma concepccedilatildeo filosoacutefica o
primeiro uso refere-se agrave nominalizaccedilatildeo do verbo na qual οὐσία representaria ldquoo que algo eacuterdquo
dando abertura para as formas platocircnicas e essecircncias aristoteacutelicas (τὸ τί ἐστι τὸ τί ἦν εἶναι) o
segundo uso eacute todavia menos teacutecnico e predica οὐσία como ldquoserrdquo ldquoexistecircnciardquo ou ldquorealidade
verdadeirardquo o terceiro uso enuncia uma equivalecircncia entre οὐσία e τὸ ὄν referindo ldquoas coisas
que satildeo (neste mundo)rdquo τὰ ὄντα (cf ID IBID 461) Aristoacuteteles pontua precisamente a intenccedilatildeo
socraacutetica primaacuteria de buscar a essecircncia das coisas (τὸ τί ἐστι) por meio do procedimento
silogiacutestico cujo princiacutepio eacute justamente a quididade (ἀρχὴ δὲ τῶν συλλογισμῶν τὸ τί ἐστι)
(ARISTOacuteTELES 2002 604-605 Metafiacutesica 1078b 24-25)
31
O que em Soacutecrates apareceria de fato como τί ἐστι e em Platatildeo como (τὸ) ὅ ἐστι em
Aristoacuteteles seria simplificado como τὸ τί ἐστι e τὸ τί ἦν εἶναι em um uso que expressa a essecircncia
ou natureza das coisas pela definiccedilatildeo ao passo que a definiccedilatildeo propriamente existencial caberia
ao termo οὐσία 3 Kahn ilustra as distinccedilotildees dizendo que
Enquanto o substantivo no primeiro e no segundo usos serve como uma
nominalizaccedilatildeo ldquoabstratardquo para o verbo finito como predicado isto eacute para o ldquoser aquilo
que eacuterdquo (e eacute assim sintaticamente paralelo ao infinitivo articular τὸ εἶναι) οὐσία no
terceiro sentido eacute utilizado ndash como em muitos outros substantivos abstratos ndash para o
sujeito caracterizado (isto eacute o que eu chamo de concreto ou agente de nominalizaccedilatildeo
como tipicamente ilustrado pelo particiacutepio articular τὸ ὄν ou como por exemplo ὁ
τρέχων ldquoo corredorrdquo em contraste agrave accedilatildeo de nominalizaccedilatildeo abstrata τὸ τρέχειν
ldquocorrerrdquo Esta distinccedilatildeo sintaacutetica corresponde em parte ao contraste de Heidegger
entre das Seiende e das Sein der Seienden) (ID IBID)
Embora haja tal distinccedilatildeo Kahn prossegue afirmando que em seu uso tardio (poacutes-platocircnico)
οὐσία e τὸ ὄν satildeo claramente sinocircnimos sendo um utilizado para enfatizar o outro como na
doutrina das Categorias de Aristoacuteteles4 O resultado eacute a inexistecircncia de uma diferenccedila entre o
agente concreto e a accedilatildeo abstrata de nominalizaccedilatildeo do εἰμί onde natildeo haacute distinccedilatildeo conceitual
entre οὐσία e τὸ ὄν ou seja entre a entidade e o que ela eacute Em outras palavras ser e ente se
tornam o mesmo confundem-se em sua aplicaccedilatildeo a despeito das distinccedilotildees conceituais que
definem substacircncia (οὐσία) e essecircncia (τὸ τί ἦν εἶναι)
3 Um comentaacuterio mais preciso foi apresentado em Luiacutes Andreacutes Berdlow ldquoParmenides and the Grammar of Beingrdquo
Classical Philology v 106 (2011) 283-298 4 As Categorias de Aristoacuteteles apresentam a classificaccedilatildeo das coisas que satildeo (τὰ ὄντα) dentre as quais encontra-
se a substacircncia (οὐσία) (cf ARISTOTLE 1952 5-6 Categorias 1a-2b) Na Metafiacutesica Aristoacuteteles deixa isto mais
claro quando diz ldquoMas em primeiro lugar se o ldquoenterdquo (τὸ ὂν) se diz de muitas maneiras ndash dentre as quais algumas
vezes substacircncia (οὐσία) em outras qualidade ou mesmo quantidade aleacutem de todas as outras categorias ndash qual
deles portanto eacute aquele pelo qual as coisas satildeo ()rdquo (ARISTOacuteTELES 2002 669 Metafiacutesica 1089a 5-15) A diferenccedila
conceitual ou mesmo hieraacuterquica eacute paulatinamente abandonada pela necessidade de exprimir um niacutevel de
realidade no qual jaacute natildeo eacute mais possiacutevel discorrer acerca do ente se redundar a palavra definida na proacutepria definiccedilatildeo
32
Essa indistinccedilatildeo entre ser e ente eacute sabido foi o que chamou a atenccedilatildeo de Martin
Heidegger no processo ldquodestrutivordquo de histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica realizado em seu projeto
Sein und Zeit (1927) Conforme Heidegger haacute uma γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας de haacute muito
abandonada O motivo aparente se concentra nas caracteriacutesticas emergentes do proacuteprio ser
quais sejam sua maacutexima universalidade sua vacuidade sua obscuridade sua maacutexima
evidecircncia Neste sentido Heidegger diz
O conceito de ldquoserrdquo eacute indefiniacutevel Isto pode ser concluiacutedo desde sua maacutexima
universalidade E isto com razatildeo ndash se definitio fit per genus proximum et differentiam
specificam De fato ldquoserrdquo natildeo pode ser entendido conceitualmente como ente enti
non additur aliqua natura ldquoserrdquo natildeo pode estar em uma determinaccedilatildeo concebendo
dele um ente O ser por definiccedilatildeo natildeo pode ser derivado de conceitos superiores e
nem dado por nenhuma ilustraccedilatildeo Contudo disto se segue que do ser natildeo se pode
derivar nenhum problema Pode-se concluir em absoluto apenas que o ldquoserrdquo natildeo eacute
algo como um ente Portanto o legiacutetimo dentro de certos limites de determinaccedilatildeo dos
entes ndash a ldquodefiniccedilatildeordquo da loacutegica tradicional que em si tem suas bases na antiga
ontologia ndash natildeo eacute aplicaacutevel ao ser A indefiniccedilatildeo do ser natildeo dispensa a pergunta por
seu significado senatildeo que justamente a intima isto (HEIDEGGER 1967 4)
As observaccedilotildees de Heidegger concordam com a conclusatildeo de Kahn a respeito da tomada de
rumo do verbo ser dentro da filosofia grega claacutessica sobretudo na concepccedilatildeo das bases da antiga
ontologia acerca da indistinccedilatildeo entre ser e ente A γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας agrave qual se refere
Heidegger parece ser a natureza inevitaacutevel da proacutepria metafiacutesica em fechar a porta aberta por
ela mesma para o modo de se relacionar com o ser uma espeacutecie de destinaccedilatildeo forccedilosa da qual
natildeo se poderia de maneira alguma escapar ponderando a projeccedilatildeo que reverbera em cada um
dos sentidos
33
O conflito acerca do entendimento e expressatildeo da φύσις revela em boa parte a maneira
pela qual o conjunto do ser se tornou alvo de disputas A contenda eacute ilustrada na histoacuteria
primaacuteria da filosofia grega enquanto fisiologia e na ldquocontroveacutersiardquo paradigmaacutetica entre
Heraacuteclito e Parmecircnides Uma realidade em constante movimento e mutaccedilatildeo absorvida desde a
observaccedilatildeo teoreacutetica do mundo entorno ou simplesmente o ponto de vista do ldquodevirrdquo parece
compatiacutevel com a natureza infinitiva e inapreensiacutevel do verbo ser como eacute possiacutevel rastrear no
πάντα ῥεῖ heracliacutetico 5 Heraacuteclito expressa o movimento intriacutenseco de abertura do modo
relacional do ser Todavia tal entendimento natildeo eacute compatiacutevel com qualquer tipo de silogismo
loacutegico onde eacute possiacutevel desenhar um conhecimento comum Para assumir a cogniccedilatildeo e percepccedilatildeo
vaacutelidas seria necessaacuterio assumir a permanecircncia de algo como eacute possiacutevel acompanhar na
elaboraccedilatildeo da univocidade do ser em Parmecircnides6
O primeiro ponto de vista paradoxalmente leva agrave evidecircncia da diferenccedila e a posiccedilatildeo do
oxiacutemoro enquanto o segundo permite a identificaccedilatildeo e a possibilidade de conclusatildeo por meio
das loacutegicas da identidade e natildeo-contradiccedilatildeo Aparentemente o primeiro natildeo resulta em nenhum
avanccedilo imediato a respeito de assuntos praacuteticos ou na dissoluccedilatildeo de questotildees teoacutericas enquanto
o segundo iraacute provavelmente resolver problemas de quase todos os tipos no campo pragmaacutetico
e em toda sorte de adversidades naturais e sociais Por meio da loacutegica natural do ser humano
social eacute bastante evidente qual ponto de vista deve ser eleito no intuito de estabelecer a
coexistecircncia mais faacutecil e paciacutefica aquela que afasta o homem da falta de fundamento da
existecircncia ou seja do abismo existencial da afliccedilatildeo que eacute existir
5 Conforme cita Platatildeo no Craacutetilo ldquotodas as coisas estatildeo em processo e nada permanece paradordquo (τά ὄντα ἱέναι
τε πάντα καὶ μένειν οὑδέν) (PLATO 1997 119-120 Craacutetilo 401d-402a) (KIRK E RAVEN 1957 197) Kirk e Raven
ponderam ainda que se trata de um momento ldquoOnde φύσις provavelmente natildeo significa lsquonaturezarsquo mas lsquoas coisas
em sua verdadeira constituiccedilatildeorsquordquo (IDEM IBIDEM 184) 6 ldquoO uacutenico caminho de inquiriccedilatildeo que pode ser pensadordquo (αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι) (KIRK E RAVEN
1957 269) Haacute uma anaacutelise mais detalhada acerca do toacutepico em Ciacutecero Cunha Bezerra ldquoParmeacutenides y la
univocidad del serrdquo Caacutetedra v 1 (2003) 33-48
34
Eacute possiacutevel especular que com a ausecircncia de um princiacutepio solidamente identificado e
natildeo-contraditoacuterio quiccedilaacute nem mesmo uma regra gramatical linguiacutestica poderia ser estabelecida
dando margem mesmo agrave impossibilidade de comunicaccedilatildeo Igualmente tampouco se poderia
delinear uma corrente de haacutebitos pessoais compatiacuteveis aos costumes sociais desabilitando toda
e qualquer eacutetica ou ciecircncia poliacutetica pela qual se pode regulamentar a conduta humana Com a
perspectiva de um devir total e assunccedilatildeo da diferenccedila a presenccedila de certo caos eacute inegaacutevel Com
a fundaccedilatildeo de uma estrutura loacutegica todavia eacute possiacutevel organizar e controlar os pensamentos e
accedilotildees do ser humano e sua convivecircncia social Contudo natildeo necessariamente esta postura iraacute
levar a humanidade para as escolhas mais coerentes ndash e a histoacuteria pode comprovar isto inuacutemeras
vezes O abandono da multiplicidade de perspectivas sobretudo as supracitadas (uma em
detrimento de outra) parece ter dirigido a histoacuteria por vias pouco luacutecidas e por vezes mesmo
autodestrutivas
Mas a anaacutelise da histoacuteria fatual natildeo eacute o que realmente interessa aqui tampouco a
atribuiccedilatildeo de uma culpa ou indicaccedilatildeo de um erro neste ou naquele ponto de vista O que
interessa aqui eacute como identificar a predileccedilatildeo loacutegica do pensamento ocidental com o cerne de
sua postura contemporacircnea e inquirir se eacute possiacutevel (ou se jaacute foi tomado) um caminho de
pensamento distinto e quais os resultados da confrontaccedilatildeo de um ponto de vista com o outro
Para isto eacute preciso retomar uma anaacutelise da histoacuteria da ontologia observando a maneira pela
qual ela se movimenta intriacutenseca e extrinsecamente Dentro das possibilidades de eleiccedilatildeo de um
caminho interpretativo opto aqui em um primeiro momento por absorver a histoacuteria e criacutetica
da metafiacutesica feita por Heidegger durante o seacuteculo vinte com o fito de deixar um pouco mais
evidente o problema fundamental da indistinccedilatildeo entre ser e ente que eacute sem embargo o pontapeacute
inicial de toda a contenda Muito embora seja possiacutevel descortinar a histoacuteria do pensamento
ocidental mediante distintos autores a ecircnfase na nomeada questatildeo do ldquoesquecimento do serrdquo
serve sobremaneira bem ao propoacutesito desta tese
35
Portanto em primeiro lugar eacute preciso considerar que embora ilustrativo Martin
Heidegger passou ao largo de resolver os problemas suscitados pela histoacuteria das ideias Antes
ele desenvolveu problemaacuteticas ainda mais insoluacuteveis e como se natildeo bastasse propocircs novos
enigmas A maior dentre todas as dificuldades talvez ainda precise aguardar muito tempo para
ser descortinada Durante um longo periacuteodo o entretenimento geral dos eruditos se contentou
em traccedilar um denominador comum dentre as vaacuterias questotildees pertinentes aos problemas de sua
filosofia em um movimento enciclopeacutedico quiccedilaacute tatildeo importuno quanto improfiacutecuo de decifrar
seu pensamento Mais conveniente talvez seja simplesmente resguardar o segredo de certas
passagens e aguardar a maturaccedilatildeo necessaacuteria para interpelaacute-las independentemente da espera
suscitada por tal postura
Ainda assim alguns pontos merecem ser postos em relevo e sobre eles decerto vale
despender alguma energia no esforccedilo de meditar acerca de seu sentido Certos trabalhos
compostos por Heidegger guardam de uma soacute vez todo o peso de sua leitura da realidade
notadamente em trechos sutis e aparentemente inofensivos Em momentos nos quais o leitor se
daacute por satisfeito em compreender um posicionamento aparentemente simples e historial como
pueril revisatildeo da histoacuteria da filosofia aiacute mesmo se lhe eacute possiacutevel abrir uma brecha para absorver
a atitude fundamental de seu pensamento Heidegger sempre foi um historiador da filosofia e
natildeo renegou em momento algum o peso de um ofiacutecio como este pelo contraacuterio coube-lhe fazecirc-
lo por diversas vezes e em distintos modos Mesmo quando seus ensaios e conferecircncias se
projetavam a um tema especiacutefico e natildeo a um autor a forte presenccedila de suas interpretaccedilotildees da
histoacuteria da filosofia eacute inegaacutevel Cabe ao propoacutesito desta tese realccedilar um exemplo que torne liacutecito
ilustrar uma fissura por onde seja possiacutevel se esgueirar ateacute a fonte da emanaccedilatildeo especulativa
acerca do sentido da histoacuteria da filosofia e do desenvolvimento do pensamento ocidental
sinocircnimos para o que conveacutem nomear metafiacutesica
36
Aos 13 de novembro de 1935 como sabem os leitores assiacuteduos de Heidegger foi
pronunciada uma conferecircncia preparada para a Kunstwissenschaftlichen Gesellschaft de
Freiburg im Breisgau7 Der Ursprung des Kunstwerkes se tornou de forma veloz e viral um
trabalho amplamente comentado no circuito acadecircmico em geral principalmente no campo da
esteacutetica filosoacutefica e teorias da arte O ponto de vista quase unacircnime dos receptores do trabalho
assentou na interpretaccedilatildeo do texto como uma tese a respeito da arte como ldquoposta em marcha da
verdade enquanto desvelamentordquo uma frase natildeo tatildeo simples de ser decifrada mas repetida
quase como uma foacutermula automaacutetica que se tornou rapidamente um emblemaacutetico clichecirc e uma
resposta imediata agrave pergunta pelo sentido da arte em Heidegger
A popular obra de Michael Inwood A Heidegger Dictionary (1999) destaca
enfaticamente o caraacuteter essencial da proposiccedilatildeo-chave quando pontua no mesmo sentido que
ldquoA obra de arte eacute mais bem um projeto que abre um mundo no qual escolhas podem ser feitas
A verdade a revelaccedilatildeo do lsquoserrsquo eacute o configurar em uma obra e configurar para obra iluminando
o mundo e a terra naquilo que neles perdurardquo (INWOOD 1999 18) Inwood ressalta a
proximidade encontrada por Heidegger entre o termo alematildeo ldquoproteger manterrdquo (bewahren) e
a proacutepria palavra ldquoverdaderdquo (Wahrheit) embora os termos natildeo necessariamente estejam
etimologicamente conectados Ele aponta para a ldquopreservaccedilatildeordquo como elemento pelo qual ldquoA
arte eacute o deixar-acontecer da chegada da verdade do ser enquanto talrdquo (IDEM IBIDEM) com especial
atenccedilatildeo para o proacuteprio fazer (ποίησις) da arte e particularmente da poesia Haacute contudo uma
seacuterie de consideraccedilotildees mais sutis a serem levadas em consideraccedilatildeo nas conferecircncias de
Heidegger proporcionando uma anaacutelise um pouco mais cuidadosa do que estaacute propriamente
em jogo quando Heidegger sobreleva a questatildeo da obra de arte
7 O mesmo trabalho sofreu novas releituras durante todo o ano de 1936 sendo reapresentado respectivamente na
Einladung der Studentenschaft der Universitaumlt em Zuumlrich durante o mecircs de janeiro e na Deutschen Hochstift em
Frankfurt am Main entre novembro e dezembro O ciclo de conferecircncias recebeu ediccedilotildees retrabalhadas em 1956 e
1960 publicadas pela Reclam de Stuttgart e sendo incluiacutedo em 1977 no tomo Holzwege da Gesamtausgabe
37
O editor do volume Holzwege Friedrich-Wilhelm von Hermann dedicou toda uma obra
agrave anaacutelise temaacutetica envolta naquele escrito publicando em 1980 o livro Heideggers Philosophie
der Kunst Em algumas de suas consideraccedilotildees mais amplas sobre as conferecircncias de Heidegger
Hermann atenta para o fato da questatildeo da obra de arte ser levantada a partir de um problema
desdobrado pela ontologia fundamental Hermann observa a problemaacutetica geral do escrito
desde o estabelecimento do ldquoserrdquo como ldquoacontecimentordquo (Ereignis) Conforme ele pondera
trata-se de um trabalho contemporacircneo aos Beitraumlge zur Philosophie (1936-38) Para Hermann
a questatildeo em torno ao ldquoserrdquo como ldquoacontecimentordquo (Ereignis) estende-se em Der Ursprung des
Kunstwerkes por meio de quatro outros problemas (1) o estabelecimento constitutivo da arte
(2) da obra de arte (3) da criaccedilatildeo artiacutestica e (4) da compreensatildeo da arte (cf HERMANN 2001 7)
Contudo circunscrita agrave conferecircncia sobre a arte estaacute a elaboraccedilatildeo da passagem da discussatildeo em
torno agrave verdade do ser para o ldquopensamento da histoacuteria do serrdquo (seinsgeschichtliches Denken)
Trata-se especificamente do momento de transiccedilatildeo do pensamento de Heidegger8 Em
linhas gerais Der Ursprung des Kunstwerkes ressalta uma preocupaccedilatildeo da lida do homem para
com a essecircncia da verdade mediante a obra de arte enquanto coisa Haacute toda uma histoacuteria dos
efeitos pertinentes agraves anaacutelises de Heidegger da obra de Vincent van Gogh9 aleacutem de inuacutemeras
teorizaccedilotildees em torno ao poder salvador da obra de arte Todavia salta aos olhos uma passagem
muito mais peculiar (para qual gostaria de chamar a atenccedilatildeo agora mesmo) qual seja aquela
na qual Heidegger aborda o problema da transposiccedilatildeo da experiecircncia fundamental grega para a
intepretaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo do pensamento romano-latino (cf HEIDEGGER 1977 7)
8 A perspectiva da ontologia fundamental de Sein und Zeit (1927) continuada no curso Grundprobleme der
Phaumlnomenologie ministrado em Marburg durante o semestre de veratildeo de 1927 receberia seu desenvolvimento
desde uma visatildeo historial-reflexiva jaacute na primavera de 1932 ocasiatildeo na qual conforme Hermann satildeo elaboradas
as primeiras linhas de Beitraumlge zur Philosophie redigido entre 1936 e 1938 mas publicado postumamente somente
em 1989 9 Em uma das mais famosas passagens de Der Ursprung des Kunstwerkes Heidegger interpreta os sapatos de um
dos quadros de Vincent van Gogh (natildeo identifica qual todavia) descortinando com isto o cotidiano campesino e
oferecendo uma leitura da realidade a partir de aiacute Uma criacutetica direta foi apresentada por Meyer Shapiro (em The
Still Life as a Personal Object ndash A Note on Heidegger and van Gogh 1968 e ainda em Further Notes on Heidegger
and van Gogh 1994) onde ele sustenta que os sapatos retratados por van Gogh natildeo satildeo de uma pessoa do campo
mas as botas do proacuteprio artista apontando com isto graves mal entendidos na interpretaccedilatildeo de Heidegger
38
Ainda no iniacutecio do escrito Heidegger busca a compreensatildeo mais geral da ldquocoisardquo
abordando como exemplo um bloco de granito A despeito de suas muacuteltiplas caracteriacutesticas ele
enfatiza o ldquoao redorrdquo (das herum sich) pelo qual suas propriedades se agrupam podendo entatildeo
falar de algo como um ldquonuacutecleordquo (Kern) da coisa Esse nuacutecleo de acordo com Heidegger
chamaram-lhe os gregos claacutessicos de ὑποκείμενον Embora ilustrativa a descriccedilatildeo eacute decerto
passiacutevel de baixo niacutevel de representaccedilatildeo posta sua exposiccedilatildeo pouco objetiva O termo eacute mesmo
tatildeo controverso quanto as proacuteprias ideias de ser e ente dentro da perspectiva grega Ela possui
uma carga conceitual talvez natildeo tatildeo difiacutecil de ser desvelada mas que tampouco garante exatidatildeo
e lucidez em sua abordagem variando de eacutepoca para eacutepoca de filoacutesofo para filoacutesofo de
interpretaccedilatildeo para interpretaccedilatildeo Ademais vaacuterias histoacuterias metaforizam o sentido do termo
ὑποκείμενον Uma das mais conhecidas (conto-a sem embasamento ou referecircncias quiccedilaacute
mesmo de maneira inapropriada) relata que certa vez um rei se espantara ao conhecer a obra de
um escultor haacutebil em reproduzir as formas da natureza em blocos de maacutermore Tamanha era a
destreza do artista que se postas lado a lado a escultura e a coisa mesma confundiam-se os
espectadores exceto pelo caraacuteter inanimado da escultura Intrigado o rei mandou chamar o
escultor e perguntou-lhe como fazia para reproduzir com tanta fidelidade o mundo em torno
Natildeo sabendo explicar senatildeo por meio da praacutetica pediu um bloco de maacutermore e agraves vistas do rei
reproduziu perfeitamente um cavalo em tamanho real faltando-lhe apenas galopar O rei lhe
questionou ldquoComo o fizesterdquo e respondeu o escultor ldquofaacutecil apenas retirei do bloco de
maacutermore o que natildeo era cavalordquo O ὑποκείμενον seria portanto aquele elemento sem o qual o
cavalo natildeo seria cavalo ou sem o qual uma coisa natildeo eacute uma coisa Contudo o grande problema
envolto nas tentativas de atingir um entendimento deste sentido por meio de um silogismo uma
loacutegica racional ou uma explicaccedilatildeo conceitual (e natildeo por uma metaacutefora ou estoacuteria) consiste na
dificuldade em elaborar uma equaccedilatildeo que exija menos esforccedilo do ouvinte capacitando uma
lucidez mais ampla e geral que a todos possa atingir
39
Toda definiccedilatildeo a partir de uma predicaccedilatildeo direta pode se configurar ainda mais obscura
e lanccedilar aquele que se propotildee a entender o conceito para um mero encadeamento e conexatildeo de
termos sem contudo realmente promover a experiecircncia do sentido da palavra Sem embargo o
Impeacuterio Romano foi a eacutegide da popularizaccedilatildeo e introspecccedilatildeo do mundo grego competindo-lhes
a tarefa de transpor ao modo latino de pensar os sentidos das meditaccedilotildees gregas Sobre isto
Heidegger ostenta uma posiccedilatildeo bastante firme e vale a pena destacar por completo o trecho no
qual se lhe pode observar sua atitude
Estas denominaccedilotildees natildeo eram meros nomes Em sua fala a experiecircncia fundamental
grega do ser do ente no sentido de sua presenccedila mostrava o que natildeo se podia mostrar
Por meio dessa disposiccedilatildeo instaura-se a interpretaccedilatildeo oficial da coisidade da coisa e
a interpretaccedilatildeo ocidental do ser do ente Comeccedila com a traduccedilatildeo das palavras gregas
para o pensamento romano-latino ὑποκείμενον torna-se subjectum ὑπόστασις torna-
se substantia συνβεβηκός torna-se accidens O processo desta traduccedilatildeo dos nomes
gregos para a liacutengua latina natildeo se daacute sem consequecircncias e nos dias de hoje toma-se
ainda a mesma compreensatildeo Antes pelo contraacuterio por detraacutes da traduccedilatildeo
aparentemente literal haacute um traslado da experiecircncia grega para outro modo de pensar
O pensamento romano assume para si as palavras gregas sem a devida
correspondecircncia com a experiecircncia originaacuteria do que dizem sem a palavra grega A
falta de fundamento do pensamento ocidental comeccedila com essas traduccedilotildees (IDEM
IBIDEM 7-8)
Responsabilizar o pensamento romano-latino pela queda do Ocidente no abismo da falta de
fundamento delega a Heidegger um encargo de peso formidaacutevel cujo maior perigo talvez seja
o de natildeo se ambientar aqui ou ali dentro deste ou daquele territoacuterio neste ou naquele lugar
mas na posiccedilatildeo do meio na esfera do entre no desenho do limite da linha da fronteira
40
A direccedilatildeo do pensamento de Heidegger a partir desta passagem claramente se constitui
desde uma divisatildeo da metafiacutesica ocidental em dois momentos muito distintos embora
interligados A emboscada se encontra na percepccedilatildeo de que todo e qualquer ocidental eacute jaacute
sempre forccedilado a se movimentar na esfera da ontologia latina ao passo que o retorno aos
fundamentos da ontologia grega eacute antes de tudo calcar terreno em solo incerto e regiatildeo
desconhecida Estabelecer uma ponte que permita ao ser humano contemporacircneo entender a
proveniecircncia de sua apreensatildeo da existecircncia eacute um roteiro deveras ousado Resta saber como eacute
possiacutevel ainda pensar os conceitos fundamentais da metafiacutesica dentro de sua propriedade sem
causaacute-los algum tipo de dano que faccedila seu sentido se perder ser obscurecido ou transviado
A partir da colocaccedilatildeo do problema da obra de arte enquanto coisa Heidegger questiona
o que enfim se compreende pelo termo mesmo ldquocoisardquo quando se compromete com a ideia de
tentar envolvecirc-lo conceitualmente (a partir de ὑποκείμενον ὑπόστασις e συνβεβηκός) e desde
aiacute extrair uma explicaccedilatildeo Sobre isto Hermann comenta ldquoComo podemos ver ainda mais e
melhor resolver o problema da obra de arte se torna um problema ontoloacutegico ndash isto eacute em
primeira instacircncia o problema ontoloacutegico do ser-res da resrdquo (HERMANN OP CIT 87) entenda-se
ainda o problema da coisidade da coisa Ele ainda complementa deixando ver a postura exigida
pela tarefa de entender a ontologia grega ldquoPortanto explicar o pensamento grego significa
antes de tudo revelar novamente a experiecircncia de estar no lugar em que se encontra a expressatildeo
de acordo com o fio condutor da palavra filosoacutefica gregardquo (IDEM IBIDEM 93-94) Sem embargo
conforme aponta Hermann (em coerecircncia com Heidegger) o ofiacutecio de introduzir a filosofia
grega (ou se introduzir na filosofia grega sua ontologia e berccedilo da metafiacutesica) constitui-se
desde o caminhar ao lado do fio condutor de sua expressatildeo e manifestaccedilatildeo A caminhada talvez
seja ela mesma o ldquoestar no lugar em que se encontra a expressatildeordquo ou o espaccedilo do ldquoentrerdquo a
ldquolinha de fronteirardquo
41
Algumas dezenas de leituras podem ser desdobradas desde a interpretaccedilatildeo de Heidegger
do lugar de transiccedilatildeo da histoacuteria do ser O itineraacuterio do pensamento de Heidegger legou aos
fieacuteis depositaacuterios de sua vasta caminhada a tarefa ingloacuteria de dar uma passo aleacutem Gostaria de
destacar aqui um direcionamento um pouco menos ousado nem por isto ingecircnuo Considerar
uma histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica em Heidegger eacute procurar pela fenda cuja passagem
encaminha diretamente ao salto no abismo da superaccedilatildeo da metafiacutesica embora natildeo fique ainda
claro o significado destes termos Ademais a intenccedilatildeo aqui eacute justamente esta esclarecer os
enlaces desse percurso histoacuterico nomeado sob o signo da metafiacutesica agrave luz da trajetoacuteria
interpretativa de Heidegger
Justamente sob o tiacutetulo Itineraacuterio do Pensamento de Heidegger (1965) Emmanuel
Carneiro Leatildeo apresenta sua traduccedilatildeo para o portuguecircs da Einfuumlhrung in die Metaphysik (1935)
de Heidegger ndash segundo ele nem de perto uma obra de faacutecil acesso Em primeiro lugar pela
impossibilidade geral de uma introduccedilatildeo em filosofia no sentido amplo Em outras palavras
natildeo haacute caminho de iniciaccedilatildeo agrave filosofia como se houvesse ainda um siacutetio no qual se a conquista
Haacute na verdade o puro levantar de questotildees responsaacuteveis por conduzir o pensamento para dentro
da proacutepria filosofia Carneiro Leatildeo elucida tal dificuldade quando especifica o tiacutetulo da obra
Introduzir agrave metafiacutesica eacute movimentar-lhe a questatildeo fundamental de maneira a
conduzi-la (-ducere) para dentro (-intro) das origens donde a metafiacutesica procede Um
esforccedilo de pensamento que nada tem de horizontal e progressivo Cujo movimento
se processa antes no sentido vertical e regressivo (CARNEIRO LEAtildeO 1999 10)
A filosofia busca o movimento imputado para originaacute-la para com isto retornar agraves suas origens
proacuteprias Em segundo lugar e natildeo menos importante a obra ainda guarda certa inacessibilidade
devido agrave intencional ambiguidade de um periacuteodo conturbado de transiccedilatildeo do pensamento de
Heidegger (tambeacutem evidenciado por Hermann)
42
Eacute preciso movimentar a questatildeo fundamental da metafiacutesica para conduzi-la para dentro
de suas origens Agora bem destacar a questatildeo fundamental eacute o primeiro passo de Heidegger
na obra quando questiona ldquoPorque haacute em geral o ente e natildeo antes nadardquo (HEIDEGGER 1983b
3) Um adendo eacute necessaacuterio ao leitor lusoacutefono Carneiro Leatildeo em sua traduccedilatildeo explica o
emprego do termo ldquoenterdquo para traduzir o alematildeo Seiendes justificando o uso da forma erudita
referida ao latim ens entis para salvaguardar o caraacuteter de tudo que eacute independentemente de
seu modo de ser (cf CARNEIRO LEAtildeO OP CIT 77 nota) Ponderando isto a leitura de Carneiro
Leatildeo segue um rumo bastante simples e esclarecedor ele afirma
O homem natildeo pode existir senatildeo em comeacutercio e comunhatildeo com o mundo dos entes
Ente significa tudo que de algum modo eacute o homem as coisas os acontecimentos ateacute
mesmo o Nada enquanto eacute um Nada ieacute enquanto tem um significado () (IDEM IBIDEM
11)
A forccedila responsaacutevel por manter a decisatildeo a respeito dos entes depende diretamente da
capacidade de enxergar suas distinccedilotildees Em um compecircndio unitaacuterio a base de sustentaccedilatildeo no
comeacutercio com os entes se daacute na e pela linguagem mediante a qual o homem simplesmente
afirma eacute Uma afirmaccedilatildeo aparentemente simples guarda contudo uma relaccedilatildeo complexa e
ambiacutegua talvez mesmo em decorrecircncia de sua extrema simplicidade
A existecircncia humana se agita dentro da tensatildeo entre imanecircncia e transcendecircncia
porque o homem existe enquanto in-siste no domiacutenio da Verdade do Ser ieacute a
vicissitude instaurada pela diferenccedila irredutiacutevel e referecircncia necessaacuteria entre ente e
ser A tarefa do pensamento natildeo eacute procurar sair decircsse ciacuterculo de diferenccedila e referecircncia
e sim necircle ingressar de maneira a poder regressar ateacute a fonte originaacuteria de sua tensatildeo
e unidade (ID IBID 15)
43
O atino para o ingresso ao interior da tarefa do pensamento deixa bastante evidente a intitulaccedilatildeo
da obra Eacute possiacutevel conceber a empreitada em regressar ao fundamento desde o qual a metafiacutesica
eacute ela mesma a proveniecircncia da tensatildeo em torno agrave unidade da existecircncia perante a multiplicidade
Eacute preciso destarte compreender que ldquoSoacute poderemos entender os pensamentos os conceitos
ou as explicaccedilotildees dados na medida em que nos ex-pusermos e dis-pusermos aquilo que se pensa
que se concebe ou que se explicardquo (ID IBID 29) acompanhando assim os passos de Heidegger
e verificando sua coerecircncia teoacuterica de levar colocar e se pocircr no estado da questatildeo
Esta mesma ambivalecircncia eacute tambeacutem destacada por Heidegger quando ele se refere ao
ambiacuteguo das formas essenciais do espiacuterito Natildeo se trata portanto de uma dedicaccedilatildeo integral agraves
possibilidades de captar de maneira exclusivamente formal os procedimentos que envolvem os
estudos mas de perceber (αἴσθησις) e experienciar os fenocircmenos Heidegger adverte ainda
Tomada na totalidade de seu sentido mais cru a filosofia sempre lida com o
fundamento do ente de tal maneira que o proacuteprio ser humano tem enfaticamente a
experiecircncia de seu significado e propoacutesito Por isto agora se vislumbra facilmente a
amplitude da filosofia que poderia e deveria proporcionar o fundamento da existecircncia
da eacutepoca histoacuterica atual e futura pela qual se estabelece a cultura Com tais
espectativas e demandas o estado e a essecircncia da filosofia satildeo sobrecarregadas Na
maior parte das vezes essa demanda excessiva se mostra pela forma de uma censura
da filosofia Diz-se por exemplo porque a metafiacutesica natildeo participou na preparaccedilatildeo
para a revoluccedilatildeo ela deve ser rejeitada Isto eacute tatildeo espirituoso quanto dizer que porque
vocecirc natildeo pode voar com um tocircrno portanto este deve ser abandonado A filosofia
natildeo provecirc diretamente forccedilas nem modos de accedilatildeo e criaccedilatildeo para ajeitar a condiccedilatildeo
histoacuterica simplesmente pelo motivo de dizer respeito apenas a poucos Quais poucos
Aqueles que transformam criativamente convertendo os fins Afetando uma vastidatildeo
apenas indiretamente e nunca fazendo rodeios ateacute certo ponto onde finalmente desde
o longo esquecimento da filosofia degenera-se como autocompreensatildeo da existecircncia
(HEIDEGGER OP CIT 12)
44
Heidegger aponta certa responsabilidade da filosofia na formaccedilatildeo da cultura e direcionamento
da eacutepoca presente e futura A chamada ldquoessencializaccedilatildeo da filosofiardquo eacute em grande parte
responsaacutevel pela tomada de rumo e pela constituiccedilatildeo da histoacuteria ateacute mesmo por seu abandono
Agrave ela estaacute diretamente conectada a ldquoessencializaccedilatildeo do serrdquo e maneira pela qual a filosofia se
apresenta como contemplaccedilatildeo dos fundamentos do ente
Heidegger explica em pormenores a diferenccedila entre ser e ente quando expotildee a gramaacutetica
e etimologia da palavra Certa advertecircncia contudo clama a petrificaccedilatildeo das normas
gramaticais ocas e vazias destituindo a Escola do Mundo do Espiacuterito que circunda a
morfologia dos termos e se restringindo tatildeo somente agrave transmissatildeo de regras do uso da palavra
Neste sentido a maneira pela qual se ostenta a ldquogrande gramaacuteticardquo eacute em si mesma o processo
de substantivaccedilatildeo do Ocidente visto como o cerrar das fronteiras como delimitaccedilatildeo
Tambeacutem em Einfuumlhrung in die Metaphysik Heidegger insiste no argumento exprimido
em Der Ursprung des Kunstwerkes seguindo o fluxo comentado acima quando afirma outra
vez ldquoQue essas formas gramaticais natildeo dissecaram desde toda eternidade uma linguagem
absoluta enquanto controle elas satildeo de fato erigidas de uma particular interpretaccedilatildeo da liacutengua
grega pela liacutengua latinardquo (ID IBID 56) Em outras palavras a linguagem possibilita sendo ela
tambeacutem um ente manipulaccedilatildeo e controle por sobre suas formas Por este motivo eacute possiacutevel
transmitir o conhecimento de uma liacutengua estrangeira somente com o ensino da gramaacutetica
mesmo para pessoas que nunca realmente entraram em contato com essa determinada liacutengua
Ou ainda aprender um idioma antigo natildeo mais utilizado ou cujo vigor ou esplendor se apagou
como o latim o grego claacutessico ou o sacircnscrito antigo sem ter a possibilidade de experenciaacute-los
no cotidiano O domiacutenio teoacuterico de uma liacutengua pode permitir ainda intuiccedilotildees e analogias a
respeito da experiecircncia que esta liacutengua provocava em seus falantes originais sem contudo
garantir exatidatildeo das disposiccedilotildees ou estados de acircnimo referidos pelos termos
45
Dentro da gramaacutetica e morfologia do ser Heidegger evidencia que existe um duplo
sentido para a palavra dentro de seu entendimento como consistecircncia (Staumlndigkeit) qual seja
a) o estar em si mesmo enquanto proveniente de si mesmo e b) o que perdura constantemente
enquanto tal Consistecircncia eacute a palavra-chave de sua leitura do termo ser dentro da circunvisatildeo
grega claacutessica Heidegger aponta que justamente por isso o natildeo-ser denota a desistecircncia ou a
saiacuteda da existecircncia ou ainda o abrir matildeo do ldquosalto para aleacutemrdquo Jaacute a etimologia da palavra ser
revela como os sentidos manifestos pela gramaacutetica e morfologia foram confundidos
historicamente Heidegger expotildee trecircs raiacutezes do termo uma sacircnscrita (es asus) outra indo-
germacircnica (bhuuml) e uma apenas germacircnica (sein) Conforme suas interpretaccedilotildees elas se
desdobram respectivamente em um sentido de ldquoviverrdquo ldquosurgirrdquo e ldquopermanecerrdquo Tratam-se de
verbos distintos todavia Heidegger natildeo citas as fontes das quais ele extrai tais etimologias
Ateacute onde eacute possiacutevel investigar o termo sacircnscrito mais proacuteximo ao que ele considera es
asus seria asti (अनतत) cuja raiz ās (आस) possui incontaacuteveis significados dentre os quais ldquoexistirrdquo
ldquoestar presenterdquo ldquopermanecerrdquo entre vaacuterios outros Aparentemente eacute a origem do indo-europeu
es cujo similar em grego seria o morfema ἐστί e em latim esse (sobremaneira visiacutevel no
portuguecircs estar) Jaacute a palavra bhuuml provavelmente indicada por Heidegger como ldquoindo-
germacircnicardquo em consequecircncia da formataccedilatildeo do verbo ser como ldquobinrdquo ldquobistrdquo (ou ainda ist e em
inglecircs ldquoisrdquo) eacute tambeacutem ela sacircnscrita (bhū भ) e estaacute presente em vaacuterias outras liacutenguas indo-
europeias (como no inglecircs being) Seu significado mais geral seria ldquoserrdquo ou ldquoexistirrdquo embora
aponte tambeacutem para ldquoacontecerrdquo ou ldquoperceberrdquo aleacutem de outros sentidos Sein tambeacutem pode ser
rastreado ateacute certo ponto em sua origem germacircnica no mittelhochdeutsch sīn e no
althochdeutsch wesan derivado da raiz sacircnscrita ves (वस) que daria as formas de Wesen
(essecircncia) ou (war o preteacuterito de Sein ser) em alematildeo De qualquer forma a questatildeo leva
imediatamente ao que Heidegger chama de ldquoessencializaccedilatildeo do serrdquo O motivo eacute simples viver
surgir e permanecer satildeo manifestaccedilotildees que interpelam o ser humano inevitavelmente
46
Contudo o ser ao interpelar o humano natildeo se manifesta antes se oculta esconde sua
proveniecircncia mostra-se ambiacuteguo e pela metade A forma de manifestaccedilatildeo do ser passiacutevel de
ser apreendida como uma realidade existente daacute-se por meio de sua participaccedilatildeo na realidade
presente qual seja ente (seu particiacutepio presente) A predileccedilatildeo pelo ente nasceria justamente
de seu caraacuteter manipulaacutevel embora haja uma conclusatildeo que clama as variaccedilotildees da palavra ser
e seu comportamento com respeito ao ldquoser em si mesmordquo evocado de modo distinto de outros
substantivos e verbos com relaccedilatildeo aos seus respectivos entes A eleiccedilatildeo de uma manifestaccedilatildeo
do ser diz muito sobre o modo relacional do humano com a conduccedilatildeo de sua existecircncia10
Alguns anos antes da composiccedilatildeo da Einfuumlhrung em um compecircndio posteriormente
publicado sob o tiacutetulo Sein und Wahrheit (1933-34) Heidegger se aproximou sistematicamente
da constituiccedilatildeo histoacuterica da metafiacutesica A obra eacute todavia pouco comentada O motivo eacute simples
haacute certo complexo ou trauma envolto na abordagem de um texto do periacuteodo da ascensatildeo do
Partido Nazi e do consentimento ao seu propoacutesito inicial Embora haja certos traccedilos de sintonia
com o discurso do momento pelo qual o povo alematildeo atravessava natildeo haacute nenhum resquiacutecio em
Heidegger dos preconceitos intriacutensecos ao desenrolar do totalitarismo Dentro do ambiente
promissoramente inovador Heidegger escreve ldquoToda gestatildeo essencial se vivifica desde uma
grande determinaccedilatildeo oculta no fundamentordquo (ID 2001 3) As palavras de Heidegger parecem
indicar antes de uma referecircncia ao destino da Alemanha o fato de que a questatildeo fundamental
estaacute contida no proacuteprio fundamento Por este motivo Heidegger ainda sugere um ldquo() caminho
histoacuterico na essecircncia da filosofia ndash e natildeo se poderia ter outro e isto justamente porque a filosofia
eacute ela mesma o acontecimento fundamental da histoacuteria da existecircnciardquo (ID IBIDEM 17) Resta
saber portanto como esse acontecimento fundamental se constitui como metafiacutesica
10 Heidegger justifica este ponto na sua apresentaccedilatildeo do conceito de Cura Sorgen em Sein und Zeit que embora
seja de suma importacircncia uma explanaccedilatildeo mais cuidadosa tomaria aqui e agora demasiado tempo mas que
precisa ao menos ser mencionada Seria esta caracteriacutestica originaacuteria do ser humano Cura Cuidado (Sorgen)
aquilo que o impulsionaria a preservar sua condiccedilatildeo evitando a queda nos abismos existenciais e a confusatildeo
generalizada (cf HEIDEGGER OP CIT 196-200)
47
Quando a tarefa eacute compreender a histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica realizada por Heidegger
insisto nunca eacute demasiada repeticcedilatildeo retomar as primeiras linhas de Sein und Zeit Vale lembrar
uma vez mais a disputa titacircnica a respeito da essecircncia (γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας) que
envolve os questionamentos aparentemente desprestigiados da metafiacutesica Conforme Heidegger
a maneira pela qual o problema perdurou sofreu alteraccedilotildees de Platatildeo e Aristoacuteteles ateacute sua
formulaccedilatildeo mais sofisticada na Wissenschaft der Logik (1812-16) de Georg W F Hegel Em
Sein und Wahrheit eacute tambeacutem a discussatildeo com Hegel que orienta a anaacutelise da metafiacutesica
tradicional Ateacute alcanccedilar Hegel entretanto Heidegger se preocupa em delinear as feiccedilotildees da
perda de sentido da μετὰ τὰ φυσικά aristoteacutelica na recepccedilatildeo tardia de seus escritos onde
ldquoGrandeza e iacutempeto desaparecem tanto na singularidade do questionamento criativo quanto na
designaccedilatildeo conceitual a praccedila desocupada daacute lugar agrave atividade de uma escola ndash somente
sobraram palavras e conceitos mas natildeo o poder estimulante da coisardquo (ID IBID 21)
Para Heidegger a unificaccedilatildeo do termo grego na palavra latina metaphysica natildeo eacute
acompanhada somente de uma correspondecircncia senatildeo ao mesmo tempo de uma mudanccedila em
seu significado Inerente agrave transformaccedilatildeo de seu sentido estaacute a apropriaccedilatildeo cristatilde do conceito
imputando um conhecimento suprassensiacutevel (trans physicam) de maior grau de importacircncia e
relevacircncia e diretamente relacionado ao divino Onde antes havia perplexidade na aspiraccedilatildeo agrave
sapiecircncia e observaccedilatildeo da realidade haacute agora um conhecimento humano elevado e suscetiacutevel agrave
confirmaccedilatildeo pela ciecircncia superior Heidegger visa e cita textualmente a formulaccedilatildeo de
Immanuel Kant da metafiacutesica como a ultrapassagem de todos os objetos empiacutericos a fim de
alcanccedilar um conhecimento viaacutevel e puro ou a superaccedilatildeo do conhecimento sensiacutevel pelo
conhecimento suprassensiacutevel11
11 Embora esta premissa esteja presente jaacute na Kritik der reinen Vernunft e em certa medida em suas especulaccedilotildees
preacute-criacuteticas atingindo ainda todos os escritos intercalados agraves duas outras criacuteticas e ainda os posteriores ele parece
se referir agraves conferecircncias de Kant reunidas por Karl Heinrich Ludwig Poumllitz publicadas em Vorlesungen Kants
uumlber Metaphysik aus drei Semestern Max Heine (org) Leipzig Hirzel 1984 (natildeo tenho certeza disto entretanto)
48
Haacute ainda a absorccedilatildeo do direito agrave verdade metafiacutesica pela ontologia claacutessica e neste
sentido Heidegger cita Alexander Baumgarten onde a verdade metafiacutesica eacute o princiacutepio
universal e fundamental em conveniecircncia agrave determinaccedilatildeo do ente enquanto tal Deste modo
conclui que a metafiacutesica se constitui como uma determinaccedilatildeo cristatilde e ideia matemaacutetico-
metoacutedica de fundamentaccedilatildeo nos sistemas metafiacutesicos da modernidade onde ela se apresenta
como conhecimento do ente em seu todo Hegel ocuparia neste sentido o lugar da consumaccedilatildeo
da plenitude da filosofia ocidental na metafiacutesica destacado o caraacuteter teoloacutegico no qual a medida
do saber eacute o ldquoinfinitordquo (perfectum) manifesto enquanto identidade absoluta (perfectissimus)
ou espiacuterito absoluto Por este motivo ao que parece quando se refere agrave histoacuteria da disputa
titacircnica sobre a essecircncia em Sein und Zeit Heidegger aponta a Wissenschaft der Logik de Hegel
como ponto de chegada Ali a loacutegica eacute entendida como ciecircncia do pensamento todavia natildeo
como ciecircncia responsaacutevel por regular o pensamento mas como fundamento do conceito e em
uacuteltima instacircncia fundamento do ente em si mesmo Heidegger explica dizendo que em Hegel
ldquoA metafiacutesica como ciecircncia do ser do ente eacute lsquoLoacutegicarsquo e esta Loacutegica eacute Loacutegica lsquodorsquo Absoluto isto
eacute de Deus Genitivo deliberadamente ambiacuteguo Natildeo apenas um genitivus objectivus Deus
representado mas sim genitivus subjectivus a essecircncia de deus como presenccedila do Espiacuterito
Absolutordquo (ID IBID 76) Em um momento final da exposiccedilatildeo da questatildeo fundamental da
filosofia Heidegger faz uma divisatildeo entre a filosofia ocidental em seu princiacutepio e em seu fim
escrevendo que
No princiacutepio a mais profunda necessidade era o questionamento na luta com os
poderes incontrolaacuteveis da verdade e da decepccedilatildeo A filosofia causava o mais alto
poder clarificante da naccedilatildeo e de sua existecircncia Riqueza de decisatildeo momento de
decisatildeo No fim alta bem-aventuranccedila na suspensatildeo das contradiccedilotildees fraqueza de
meros conceitos opostos fracasso e morte de todo questionamento Eternidade vazia
cheia de indecisotildees (ID IBID 77)
49
A eternidade vazia cheia de indecisotildees todavia natildeo soa aqui como algo proveniente de um
descontentamento Pelo contraacuterio emerge desde a simples oposiccedilatildeo de conceitos com o fito de
suspender contradiccedilotildees e evidenciar uma maacutexima clareza e nitidez com o intuito de um suposto
pleno contentamento como se a profunda necessidade de questionamento houvesse sido calada
pela extrema emergecircncia de soluccedilatildeo Um abismo entre a filosofia ocidental em seu princiacutepio e
em seu fim eacute diagnosticado de maneira direta e evidente Longe de apontar culpados ou
referendar uma condenaccedilatildeo agrave metafiacutesica claacutessica Heidegger explica o processo intriacutenseco de
explicaccedilatildeo e complicaccedilatildeo da metafiacutesica evidenciando fatualmente a transiccedilatildeo do pensamento
da histoacuteria do ser da ontologia grega agrave latina A distacircncia que provecirc de clareza a anaacutelise eacute todavia
bastante tendenciosa aos propoacutesitos da ontologia fundamental A maneira pela qual a proacutepria
ontologia se protege com uma complexidade de conceitos dificulta a visualizaccedilatildeo do percurso
histoacuterico e da explanaccedilatildeo esclarecedora
Vale portanto retomar alguns aspectos relevantes embora por vezes sutis da pesquisa
acerca da ontologia na metafiacutesica claacutessica Gostaria de propor um breve desvio que agrave primeira
vista pareceraacute desnecessaacuterio contudo configura-se como extremamente pertinente ao
propoacutesito do capiacutetulo Atualmente as pesquisas voltadas ao estudo da ontologia se restringem
ou bem ao estudo histoacuterico ou bem agraves repercussotildees da metafiacutesica na filosofia contemporacircnea
Via de regra servem de embasamento para questotildees projetadas aos assuntos pertinentes da
eacutepoca vigente A ontologia se torna assim uma ldquoaacuterea da filosofiardquo uma ldquodisciplinardquo ou mesmo
um tronco braccedilo ou ramificaccedilatildeo dos estudos filosoacuteficos Os pesquisadores responsaacuteveis por
esta aacuterea da filosofia desdobram prolegocircmenos e comentaacuterios explicativos aos textos claacutessicos
fundamentando muacuteltiplas outras aacutereas Poucas vezes eacute possiacutevel observar um trabalho sobre
ontologia que realmente conecte seu sentido primaacuterio aos problemas apresentados nos dias de
hoje todavia escavando com devoccedilatildeo algumas pesquisas emergem sobremaneira conexas
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A ontologia parece ser mesmo ldquoutilizadardquo como ponte para abrir novos caminhos como
por exemplo as discussotildees histoacutericas na anaacutelise do desenvolvimento da cultura as
investigaccedilotildees epistemoloacutegicas na confrontaccedilatildeo das possibilidades de conhecimento as
consideraccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas na constituiccedilatildeo dos haacutebitos e costumes da relaccedilatildeo do ser humano
com as virtudes deveres e utilidades os juiacutezos esteacuteticos na relaccedilatildeo com a obra de arte ou
mesmo as bases psicanaliacuteticas do entendimento do proacuteprio humano e sua relaccedilatildeo com as coisas
e o mundo entorno
Um dos exemplos mais niacutetidos de um pensamento comprometido em discutir a
ontologia por si mesma observando a maneira pela qual as categorias ontoloacutegicas dispotildeem
ainda hoje os modos de estruturar a realidade talvez se apresente nas recentes discussotildees em
torno ao ldquodigitalrdquo e ao ldquovirtualrdquo ou as propostas de uma ldquoontologia digitalrdquo Ouvi falar pela
primeira vez sobre ldquoontologia digitalrdquo por meio de Rafael Capurro em 2009 durante o III
Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica realizado em Natal na Universidade Federal do Rio
Grande do Norte12 Ateacute entatildeo possuiacutea minhas proacuteprias teorias acerca do mundo digital e da
esfera virtual da internet todavia natildeo tinha sequer noccedilatildeo da envergadura do problema e da
maneira pela qual o assunto podia ser pensado desde uma perspectiva ontoloacutegica e natildeo
meramente poliacutetico-ativista ou mesmo teoacuterico-juriacutedica Embora este natildeo seja propriamente o
assunto do capiacutetulo gostaria de abordar o tema como forma de justificar o questionamento pela
ontologia claacutessica para aleacutem da mera constataccedilatildeo historiograacutefica Conforme pude acompanhar
a inquietaccedilatildeo que move os trabalhos se concentra na crenccedila segundo a qual todos os fenocircmenos
podem ser analisados construiacutedos e manipulados sob a condiccedilatildeo de poderem ser digitalizados
12 A discussatildeo de Capurro havia comeccedilado com uma troca de e-mails com Michael Eldred A conversa redundou
em primeira matildeo nos trabalhos de Capurro intitulados Entwurf einer digitalen Ontologie (1999) e Beitraumlge zu
einer digitalen Ontologie (1999) sendo estendida em ulteriores escritos como Interpreting the digital human
(2008) e Einfuumlhrung in die digitale Ontologie (2009) aleacutem do livro publicado por Eldred The Digital Cast of
Being (2009) Provavelmente a discussatildeo ainda prossegue e outros trabalhos foram ou estatildeo sendo publicados
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Talvez como um chiste mas bastante pertinente e veriacutedico Capurro afirma que
atualmente se algueacutem natildeo estaacute na rede eacute como se natildeo existisse Dando impulso para uma
formulaccedilatildeo inusitada esse est computari em analogia agrave famosa foacutermula de George Berkeley
(esse est percipi) A conclusatildeo bastante perspicaz extraiacuteda por Capurro eacute a de que seria correto
dizer que hoje vemos a realidade no horizonte de sua digitabilidade Uma seacuterie de outros termos
e expressotildees natildeo-convencionais emergem do texto de Capurro como ldquoem tudo que eacute puramente
virtual as coisas consistem essencialmente em bitsrdquo ou a denominaccedilatildeo ldquopitagorismo digitalrdquo
Entretanto todas as definiccedilotildees e determinaccedilotildees estatildeo conectadas ao arcano questionamento em
torno ao ente
O que eacute o ente Esta pergunta fundamental da metafiacutesica natildeo pode ter uma resposta
definitiva a partir da perspectiva de um conhecimento finito sem cair na ilusatildeo
essencialista Isto tem consequecircncias para a problemaacutetica de como pensar uma cultura
digital Uma ontologia digital eacute uma interpretaccedilatildeo possiacutevel do ser dos entes vistos
desde sua digitabilidade No entanto tal ontologia corre sempre o perigo de
transformar-se em uma metafiacutesica digital no momento em que acredita ser a
verdadeira ou uacutenica resposta agrave pergunta pelo ser A ontologia digital eacute uma possiacutevel
compreensatildeo do ser por parte do conhecimento humano finito Todas as regiotildees ou
esferas dos entes satildeo concebidas entatildeo como digitais (CAPURRO 2009 322)
A introduccedilatildeo da digitabilidade para aleacutem da anaacutelise do ldquoserrdquo quantificado pela ciecircncia moderna
confere uma perspectiva nova de experimentaccedilatildeo do ente em sua totalidade Chama atenccedilatildeo o
perigo envolto na transformaccedilatildeo em uma ldquometafiacutesica digitalrdquo na qual uma virada ontocecircntrica
concentraria o poder da verdade enquanto julgamento como oriente agrave pergunta pelo ldquoserrdquo
Talvez o mais importante da anaacutelise de Capurro consista justamente na renovaccedilatildeo desta criacutetica
na qual se chama atenccedilatildeo para a imprecisatildeo especulativa por meio da indefiniccedilatildeo do virtual
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Natildeo eacute difiacutecil perceber que o mundo digital oferece uma vasta gama de temas e
possibilidades de se pensar filosoficamente sob as mais diversas perspectivas Natildeo haacute grande
espanto na busca dos filoacutesofos por reflexotildees em torno aos acontecimentos revolucionaacuterios dos
veiacuteculos de informaccedilatildeo e tecnologias em geral no seacuteculo vinte-e-um Contudo admiraacutevel eacute
encontrar o caminho oposto o momento no qual desenvolvedores da ciecircncia e da teacutecnica
buscam a filosofia para fundamentar seus trabalhos Eacute caso dos estudos realizados por Peter
Oslashhrstroslashm Henrik Schaumlrfe e Sara L Uckelman cujos resultados foram publicados nos anais da
International Conference on Conceptual Structures um evento dedicado agrave ciecircncia da
computaccedilatildeo Os trecircs investigadores fundamentam desde a ontologia moderna claacutessica a
concepccedilatildeo de hipertexto um conceito fundamental da computaccedilatildeo13 Para Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e
Uckelman o nascimento do termo ldquoontologiardquo representa o estabelecimento de um hipertexto
sobre a realidade e a temporalidade em pleno seacuteculo dezessete Os pesquisadores se referem
especificamente a Jacob Lorhard autor dos oito volumes intitulados Ogdoas Scholastica (1606)
responsaacutevel por cunhar o termo ldquoontologiardquo pela primeira vez na histoacuteria
Lorhard compocircs sua Ogdoas como uma gramaacutetica para o ensino escolar por meio de
aacutervores diagramaticais A teacutecnica utilizada por Lorhard foi profundamente influenciada por
Petrus Ramus (Pierre de la Rameacutee) cujo objetivo era transformar a razatildeo dialeacutetica em um
meacutetodo de loacutegica pedagoacutegica Petrus Ramus foi uma figura controversa e polecircmica Aleacutem de
suas interpretaccedilotildees pouco ortodoxas de Aristoacuteteles Ramus defendia uma completa reforma no
sistema educacional Ele fomentava o espiacuterito humanista pelo qual procurava devolver agrave
retoacuterica sua posiccedilatildeo proeminente visando desautorizar o peso da loacutegica escolaacutestica14
13 A ideia de hipertexto eacute bastante antiga todavia o termo no sentido moderno foi cunhado por Ted Nelson em
1965 para descrever o sistema de escrita natildeo-sequencial que envolvia o ligamento entre textos distintos em uma
mesma interface na internet O sistema de hyperlinks em um siacutetio da internet eacute um exemplo bastante simples de
um hipertexto 14 Cf Petrus Ramus Sa Vie Ses Eacutecrits et Ses Opinions Charles Waddington (ed) Paris Librairie de Ch Meyrteis
1855 Acerca das singularidades de Petrus Ramus confira Laura Adriaacuten Lara ldquoPetrus Ramus y el ocaso de la
retoacuterica ciacutevicardquo Utopiacutea y Praxis Latinoamericana v 13 n 43 (out-dez 2008) 11-31 e ainda Frank P Graves
Petrus Ramus and the Educational Reformation of Sixteenth Century New York Macmillan 1912
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Havia um profundo espiacuterito anti-escolaacutestico que movia os interesses de Ramus
enfatizando uma postura radical na qual a filosofia ramista considerava falsa todas as
afirmaccedilotildees de Aristoacuteteles Para facilitar o processo de aprendizagem pelo qual o domiacutenio das
ciecircncias e artes liberais pode ser alcanccedilado Ramus emprega seus ldquoesquemas visuais abstratosrdquo
Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman se referem aos esquemas de Ramus como base para a aacutervore
diagramatical de Jacob Lorhard ndash para os pesquisadores este tipo de diagrama eacute o berccedilo de
todo futuro hipertexto
Eacute faacutecil observar que a estrutura da Ogdoas Scholastica de Jacob Lorhard permite ao
leitor localizar conceitos especiacuteficos e suas respectivas definiccedilotildees por meio de uma rede de
interconexotildees na forma de diagramas A ldquoaacutervorerdquo facilita natildeo soacute a compreensatildeo dos conceitos
como tambeacutem a maneira pela qual eles se relacionam uns com os outros Sem embargo trata-
se de uma gramaacutetica pela qual o domiacutenio de conceitos fundamentais da metafiacutesica se torna
bastante simples concordando em absoluto com a demanda da eacutepoca em introduzir este tipo de
estudo nos niacuteveis baacutesicos de ensino Com obras como as de Lorhard a exigecircncia do estudo da
ontologia foi difundida durante o seacuteculo dezoito como parte essencial da formaccedilatildeo acadecircmica
baacutesica15 Aleacutem disto a Ogdoas ainda sustentava a eacutegide da clarificaccedilatildeo da ontologia como base
para todo ulterior desenvolvimento intelectual Em outros termos Lorhard (assim como Ramus)
acreditava que natildeo era possiacutevel esclarecer nenhuma ciecircncia se natildeo houvesse de antematildeo uma
lucidez absoluta a respeito dos fundamentos do ente que poderia ser proporcionada apenas pelo
estudo por ele nomeado ldquoontologiardquo um discurso que buscava um pleno esclarecimento dos
termos empregados para definir todo e qualquer ulterior passo tomado tanto nas ciecircncias do
espiacuterito quanto nas ciecircncias da natureza
15 Muito disto deve-se ao filoacutesofo norueguecircs Jens Kraft cuja obra (influenciada em larga escala pela Metaphysica
sive Ontologia de Christian Wolff) reforccedilou o peso dos estudos em ontologia Dentro da compreensatildeo de Kraft
compartilhada tambeacutem por Lorhard e outros a ontologia ganha um lugar privilegiado como unificaccedilatildeo sistemaacutetica
das estruturas do pensamento como um todo
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O oitavo livro da Ogdoas de Lorhard que encerra o compecircndio e eacute dedicado agrave ontologia
no sentido de unificar todos os escritos anteriores define a metafiacutesica como ldquo() o
conhecimento de um inteligiacutevel enquanto inteligiacutevel ()rdquo (LORHARD sd 3) Este conhecimento
eacute divido entre conhecimento dos particulares e dos universais Para Lorhard a parte da
metafiacutesica responsaacutevel pelo conhecimento dos particulares ou bem se refere acirc substacircncia
pertinente aos seres natildeo-complexos que subsistem em si mesmos (sejam eles criados ou natildeo)
ou bem aos acidentes
Jaacute o conhecimento dos universais se refere a tudo o que eacute inteligiacutevel redundando nos
atributos gerais ou nas distribuiccedilotildees conforme as quais o λόγος eacute entendido como um inteligiacutevel
As distribuiccedilotildees dizem respeito ao nada por um lado ou a algo por outro sendo este uacuteltimo
em seu aspecto positivo o que envolve as ideias de ldquoessecircnciardquo e ldquoenterdquo As noccedilotildees de ldquoessecircnciardquo
e ldquoenterdquo satildeo centrais natildeo apenas para o sistema de Lorhard mas tambeacutem para todas as
subsequentes compreensotildees da ontologia Em uma primeira definiccedilatildeo Lorhard observa a
ldquoessecircnciardquo em sua relaccedilatildeo com o λόγος definindo que ldquoEssecircncia eacute algo produtivo pelo qual o
Ser eacute o que eacute Esta palavra estrangeira eacute chamada pelos Escolaacutesticos de Entidade ou quidditasrdquo
(IDEM IBIDEM 4) Em segundo lugar considera a ldquoessecircnciardquo em relaccedilatildeo a sua distribuiccedilatildeo na
qual ela eacute ou bem ldquorealrdquo (ou seja uma atualizaccedilatildeorealizaccedilatildeo do ser) ou bem ldquoimaginaacuteriardquo (no
caso de um ser puramente racional) Ambas podem ser ldquosimplesrdquo ou ldquocompostasrdquo ldquoabsolutasrdquo
ou ldquorespectivasrdquo ldquouniversaisrdquo ou ldquosingularesrdquo Dentro do uacuteltimo destes casos a ldquoessecircnciardquo
pode ser ainda ldquogeneacutericardquo (ou um gecircnero compartilhado por outras espeacutecies) ou ldquoespeciacuteficardquo
(relativa a uma uacutenica espeacutecie) Natildeo haacute grande espanto nos pontos apresentados ateacute entatildeo por
Lorhard O que haacute na verdade eacute uma constituiccedilatildeo sistemaacutetica de um diaacutelogo que estava sendo
travado jaacute haacute muito tempo e sobremaneira evidente no periacuteodo no qual ele compocircs sua obra
Suas contribuiccedilotildees mais significantes talvez se deem na seccedilatildeo seguinte quando aborda a
questatildeo do ldquoenterdquo
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Lorhard tambeacutem considera o ldquoenterdquo no discurso unificador bem como na questatildeo da
ldquoessecircnciardquo afirmando dele algo produtivo ldquodotado de certa essecircnciardquo Em seu caraacuteter
distributivo o ldquoenterdquo (assim como a ldquoessecircnciardquo) eacute ou bem ldquorealrdquo ou bem ldquoracionalrdquo Ele define
o ldquoente de razatildeo ou racionalrdquo afirmando que ldquoEacute um ente de razatildeo que eacute tocado pela cogitaccedilatildeo
de uma mente singular de acordo com o modo real do ente agrave parte disto eacute nada Eacute tambeacutem
chamado ente fictiacutecio e imaginaacuteriordquo (ID IBID 5) Jaacute o ldquoente realrdquo pode se dar por meio do
discurso (λόγος) de sua proacutepria essecircncia ou ainda ser distribuiacutedo em entes primaacuterios e
secundaacuterios (estes uacuteltimos decorrentes dos primeiros) sendo ambos ldquosimplesrdquo ou ldquocomplexosrdquo
ldquoabsolutosrdquo ou ldquorespectivosrdquo ldquouniversaisrdquo ou ldquoparticularesrdquo ldquoimateriaisrdquo ou ldquomateriaisrdquo
ldquopermanentesrdquo ou ldquosucessivosrdquo
Toda a divisatildeo da ontologia de Lorhard acompanha em muitos aspectos a ontologia
derivada da filosofia grega claacutessica desde o processo dialeacutetico de questionamento da realidade
conforme a doutrina platocircnica e a divisatildeo das Categorias de Aristoacuteteles A principal distinccedilatildeo
do emprego do termo ontologia como expressatildeo e manifestaccedilatildeo das doutrinas metafiacutesicas em
Lorhard eacute o foco especiacutefico de uma ldquodoutrina dos inteligiacuteveisrdquo Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman
comentam que
Conforme Lorhard haacute uma importante dualidade entre os entes e nossa discussatildeo
racional a respeito deles Parece que ele insistiu na necessidade dessa dualidade no
sentido de que cada vez que noacutes discutimos os entes no mundo tentando classificaacute-
los tambeacutem temos que refletir sobre os conceitos usados para fazecirc-los (OslashHRSTOslashM
SCHAumlRFE E UCKELMAN OP CIT 4)
Em termos mais simples apoacutes um longo periacuteodo de aristotelismo escolaacutestico talvez tenha sido
Lorhard o primeiro a atentar para o fato de certa confusatildeo gerada dentro da metafiacutesica a respeito
da maneira pela qual se predica o ser do ente em sua participaccedilatildeo presente na realidade
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Seria liacutecito portanto argumentar que a evidecircncia da confusatildeo de termos se deve ao fato
de Lorhard ter deslocado o ontocentrismo metafiacutesico para uma teoria dos intiligiacuteveis Ainda
conforme Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman a postura de Lorhard eacute diretamente influenciada pela
obra de Clemens Timpler que sustentava a mesma posiccedilatildeo a respeito da metafiacutesica desde uma
confrontaccedilatildeo direta com a filosofia de Francisco Suaacuterez Esta seria a contenda principal do
iniacutecio da modernidade responsaacutevel por conformar e enformar a metafiacutesica como ontologia tal
qual hoje ainda se a concebe Joseph S Freedman desenvolve uma anaacutelise bastante precisa da
maneira pela qual Timpler fundamentou sua postura e as consequecircncias de seu trabalho
sobretudo no que tange agrave disputa com Francisco Suaacuterez A respeito da proposiccedilatildeo ldquotudo que eacute
inteligiacutevelrdquo (omne intelligibile) o tema constitutivo da metafiacutesica Freedman (cf 2009 10-11)
comenta que Timpler provecirc uma moldura conceitual dentro da qual alguns conceitos
ontologicamente baacutesicos satildeo englobados quais sejam ldquoalgordquo (aliquid) ldquoprivaccedilatildeordquo (privatio)
ldquoessecircnciardquo (essentia) e ldquoentidaderdquo (ens) Dentro da dissoluccedilatildeo dos conceitos na obra central de
Timpler Metaphysicae systema methodicum (1604) Freedman comenta
Conforme Timpler ldquotudo aquilo que eacute Inteligiacutevelrdquo eacute dividido entre nihil (ie ldquonadardquo
ou ldquonatildeo-serrdquo) e aliquid aut est (ldquoalgordquo ou ldquoenterdquo) esta eacute basicamente a mesma
dicotomia que William Shakespeare aludiu quando ele coloca no Ato 3 Cena 1 de
Hamlet ndash alguns anos antes (c 1600) da publicaccedilatildeo do texto de Timpler sobre
metafiacutesica ndash que ldquoser ou natildeo ser estaacute eacute a questatildeo []rdquo Mas esta foi a questatildeo que
Timpler e todos os seus (conhecidos) contemporacircneos acadecircmicos aparentemente
desejaram evitar de discutir A discussatildeo da questatildeo de Shakespeare ndash e da dicotomia
de Timpler ndash poderia ter provido as bases para o levantamento de toacutepicos altamente
sensiacuteveis por exemplo 1) a relaccedilatildeo entre Deus e Nada (nihil) 2) a relaccedilatildeo entre Deus
entidade e privaccedilatildeo (ie mal) e 3) a relaccedilatildeo entre Deus e o princiacutepio de contradiccedilatildeo
(FREEDMAN op cit 12)
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Embora estas questotildees estivessem jaacute sempre presentes dentro dos questionamentos de Timpler
e de seus contemporacircneos elas eram todavia caladas de acordo com Freedman (IDEM IBIDEM)
pela imposiccedilatildeo das instituiccedilotildees cristatildes das coisas sobre as quais se era proibido falar ou acreditar
O que perdura das apresentaccedilotildees filosoacuteficas da metafiacutesica como ontologia em Timpler
ponderando seu princiacutepio do inteligiacutevel concentra-se em primeiro lugar como o mateacuteria de
todas as disciplinas e subdisciplinas acadecircmicas e em segundo lugar como foco de disciplinas
separadas como a archeologia gnostologia hexiologia intelligentia pansophia e tecnologia
(cf ID IBID 14)
O motivo da predileccedilatildeo da questatildeo dos intiligiacuteveis como foco principal de todos os
temas concernentes ao pensamento aparece dentro da possibilidade de envolver todos os
aspectos responsaacuteveis pelos modos operativos de pensar 16 Desta forma por exemplo as
disciplinas separadas como a ldquotecnologiardquo seriam desenvolvidas para as consideraccedilotildees gerais
e universais da estrutura das disciplinas liberais (cf ID IBID 16) Embora discrimine em parte
o princiacutepio da cogniccedilatildeo a metafiacutesica tampouco envolve a loacutegica por levar em consideraccedilatildeo
apenas os princiacutepios excluindo entidades complexas que redundem no princiacutepio de contradiccedilatildeo
Em contrapartida ao sistema metoacutedico de Timpler vecirc-se em Francisco Suaacuterez um
caraacuteter muito mais ontocecircntrico As Disputationes Metaphysicae (1597) de Francisco Suaacuterez
satildeo publicadas dentro de um contexto de desarmonia e conflitos entre a teologia e a filosofia
onde os conceitos fundamentais na discussatildeo sobre o divino estavam sendo postos em questatildeo
A despeito das influecircncias de Suaacuterez e dos necessaacuterios posicionamentos poliacuteticos sua obra
parece instaurar um regulamento por meio do qual nada poderia ser legado agrave mera
inteligibilidade
16 Freedman (ID IBID 15) cita o teoacutelogo calvinista Matthias Martinius contemporacircneo de Timpler que evidencia
de maneira mais clara os motivos das proposiccedilotildees fundamentais Ele atesta que conforme esta designaccedilatildeo agrave
metafiacutesica ldquopertence tudo aquilo que eacute cognosciacutevelrdquo (de omni cogitabili) mas com certas restriccedilotildees englobando
a ldquouniversalidade das coisasrdquo (rerum universitatem) mas natildeo envolvendo disciplinas acadecircmicas especializadas
singulares ou particulares
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As Disputationes de Suaacuterez podem ser entendidas desde uma divisatildeo da obra na qual a
primeira parte (as primeiras vinte-e-sete questotildees) se refere ao ente no sentido geral enquanto
a segunda parte (as vinte-e-sete uacuteltimas questotildees) lida com o ente particular redundando em
uma dupla divisatildeo da proacutepria metafiacutesica entre ldquometafiacutesica geralrdquo e ldquometafiacutesica especialrdquo (cf
SUAacuteREZ 2004 DOYLE 2004) Ao comentar o desenvolvimento deste aspecto da filosofia de
Suaacuterez Ludger Honnefelder ainda acrescenta
Conforme Suaacuterez a metafiacutesica lida com o conceito de ente tanto ldquoformalrdquo quanto
ldquoobjetivordquo Pelo conceito formal Suaacuterez entende o ato de conhecer do qual ldquoex unica
et prima impositionerdquo que rende uma representaccedilatildeo intencional do objeto pelo
conceito objetivo ele designa aquilo que representa intencionalmente o ato Em outras
palavras Suaacuterez natildeo assume a teoria dos conceitos caracterizada pelo paralelismo
noeacutetico-noemaacutetico de res e conceptus antes ele aceita a abordagem criacutetica de Ockham
em direccedilatildeo a interpretaccedilatildeo realiacutestica dos conceitos universais Desde que Scottus ele
mesmo natildeo depende desse paralelismo quando isto vem a dizer respeito sobre o ente
Suaacuterez substancialmente segue Scottus e aplica ldquoenterdquo para um conceito formal
primaacuterio e unificado que em virtude de sua imposiccedilatildeo representa um objetivo
primaacuterio e unificado do conteuacutedo absolutamente simples que envolve todos os entes
distintos de uma maneira indeterminada ie como ente (HONNEFELDER 2003)
Segundo a exposiccedilatildeo de Honnefelder o direcionamento da metafiacutesica de Suaacuterez iraacute redundar
em alguns pontos baacutesicos em primeiro lugar o fato de que a determinaccedilatildeo do ente transcende
a generalidade dos gecircneros em segundo que a determinaccedilatildeo natildeo pode ela mesma ser definida
podendo apenas ser explicada em relaccedilatildeo agrave existecircncia real em terceiro que toda existecircncia estaacute
sujeita agrave fundamentaccedilatildeo de disposiccedilatildeo ontoloacutegica em uacuteltimo lugar que o ente finito perdura
em um modo indeterminaacutevel de quantidade sendo o ente infinito eacute aquilo que eacute perfeito e
totalmente indivisiacutevel em si mesmo e mais real e completo (cf IDEM IBIDEM)
59
Agora bem com o fito de retomar a linha de raciociacutenio desenvolvida no capiacutetulo eacute
preciso retomar a ideia de substantivaccedilatildeo do Ocidente e a maneira pela qual esse processo se
deixar ver ao longo da histoacuteria da ontologia Martin Heidegger indica em primeiro lugar o que
ele considera como o problema fundamental pelo qual a metafiacutesica se desdobra no Ocidente
qual seja o fato de que o ldquoserrdquo natildeo eacute um ldquoenterdquo mas que todavia um foi tomado pelo outro Ele
apresenta ainda o argumento de que a transposiccedilatildeo da experiecircncia fundamental grega (conforme
apresentada tambeacutem por Charles H Kahn) sofre uma violaccedilatildeo na absorccedilatildeo latina e na
transferecircncia de conceitos de um modo de pensar para o outro Eacute dentro deste ambiente latino
que eacute possiacutevel rastrear a maneira pela qual a metafiacutesica se forma e transforma em ontologia ou
bem dentro de uma filosofia do inteligiacutevel (como em Lorhard e Timpler) ou bem como um
ontocentrismo filosoacutefico (como em Suaacuterez) Sem embargo trata-se de uma disputa em torno agraves
formas primaacuterias da discussatildeo em torno ao ldquoserrdquo e ao ldquoenterdquo Eacute possiacutevel concluir desde a
constataccedilatildeo da entificaccedilatildeo do ser ou substantivaccedilatildeo do Ocidente que a demanda pela resposta
ao problema primeiro da filosofia necessariamente a encaminha para um percurso que natildeo
poderia ser outro Mas qual eacute propriamente este problema primeiro e como se constroacutei esse
caminho Natildeo haveria outra indicaccedilatildeo senatildeo a da ciecircncia dos primeiros princiacutepios e causas de
Aristoacuteteles Jaacute na doutrina das Categorias de Aristoacuteteles eacute possiacutevel observar a confusatildeo entre
ldquoserrdquo e ldquoenterdquo A questatildeo pode ser melhor observada na proposiccedilatildeo baacutesica e amplamente
difundida da Metafiacutesica ldquoO ente se diz em muacuteltiplos significados mas sempre em referecircncia a
uma unidade e a uma realidade determinadardquo (ARISTOacuteTELES 2002 131)17 A referecircncia a uma
unidade e uma realidade determinada eacute a chave para compreender a maneira pela qual a
ontologia se torna a ciecircncia responsaacutevel por esse tema (conforme Aristoacuteteles ldquoHaacute uma ciecircncia
que considera o ente enquanto ente e as propriedades que lhe competem enquanto talrdquo ID IBID)18
17 Τὸ δὲ λέγεται μὲν πολλαχῶς ἀλλὰ πρὸς ἓν καὶ μίαν τινὰ φύσις καὶ οὐχ ὁμωνύμως ἀλλrsquo (Metafiacutesica 1003a 30-
35) 18 Ἔστιν ἐπιστήμη τις ἧ τὸ ὄν ᾗ ὄν καὶ τὰ τούτῳ ὑπάρχοντα καθ αὑτό (Metafiacutesica 1003a 20)
60
Dentro desta ciecircncia o conceito central que unifica e determina ldquoenterdquo e ldquoserrdquo eacute
apresentado como οὐσία O conceito de οὐσία (substantia substacircncia) eacute bem desenvolvido nas
Categorias entre as expressotildees que natildeo satildeo compostas quais sejam a substacircncia mesma
quantidade qualidade relaccedilatildeo lugar tempo posiccedilatildeo estado accedilatildeo ou afecccedilatildeo Ela eacute
apresentada desde duas perspectivas uma primaacuteria outra secundaacuteria A substacircncia primeira
natildeo se afirma de um sujeito nem em um sujeito mas comporta as substacircncias segundas nas
quais a forma afirma a espeacutecie e o gecircnero (ldquoserrdquo do sujeito) comportando tambeacutem os acidentes
(ldquoserrdquo no sujeito) que a eles se atribui Embora o conceito em sua primeira formulaccedilatildeo
contemple o aspecto formal bem como o elemento inteligiacutevel envolve ainda o aspecto material
em seu segundo modo natildeo podendo ser um sem o outro
As consequecircncias do desenvolvimento de uma ciecircncia responsaacutevel pelo ente enquanto
ente centralizando o conceito de substacircncia e substantivando a ideia de ldquoserrdquo por meio de seu
particiacutepio presente ldquoenterdquo satildeo o que se pode considerar como o desenvolvimento da histoacuteria do
ldquoserrdquo ou a histoacuteria da maneira pela qual o Ocidente compreende o ldquoserrdquo e a si mesmo Por meio
desta postulaccedilatildeo o ldquoτὰ ὄνταrdquo eacute posicionado no centro do pensamento ocidental Mais ainda do
que uma simples constataccedilatildeo da maneira pelo qual coube ao Ocidente pensar curioso eacute
especular o fato de que se natildeo fosse possiacutevel pensar fora da delimitaccedilatildeo do ente natildeo haveria
sequer indagaccedilatildeo alguma sobre as limitaccedilotildees ou prejuiacutezos imbuiacutedos nesta formulaccedilatildeo Sem
embargo eacute possiacutevel constatar desde os recursos apresentados (e ainda por muitos outros
caminhos que natildeo este) a necessidade incontida do ser humano ocidental eacute desenhar de maneira
niacutetida as fronteiras do pensamento e da maneira pela qual esse pensamento deve e pode ser
aplicado Resta saber apoacutes esta delimitaccedilatildeo o que haacute para aleacutem da fronteira
61
2 O CAMINHO DA NEGATIVIDADE HENEOLOGIA E MEONTOLOGIA E A
ULTRAPASSAGEM DOS LIMITES DA METAFIacuteSICA
O discurso ontoloacutegico tanto grego quanto latino personificou a atividade filosoacutefica ocidental
em larga escala A maneira pela qual a ontologia habilitava ao raciociacutenio uma seacuterie de
procedimentos facilmente verificaacuteveis nutriu seguranccedila metodoloacutegica aos assuntos
concernentes aos problemas intelectuais com os quais o ser humano fatalmente se deparava ao
longo de suas especulaccedilotildees e que reverberavam ainda na conjuntura soacutecio-pragmaacutetica Eacute neste
sentido que teria afirmado Immanuel Kant de maneira perspicaz que a razatildeo humana se
defronta com inevitaacuteveis questotildees impostas por sua proacutepria natureza19 Tanto para Aristoacuteteles
quanto para Francisco Suaacuterez aleacutem de tantos outros entrementes a importacircncia de assegurar
uma linha de raciociacutenio vaacutelida natildeo somente atribuiacutea autoridade ao argumento como tambeacutem
provia de suficiente clareza a linguagem que advogava suas doutrinas Em outras palavras
tornava-se faacutecil convencer outrem de seus pressupostos dada a indefectiacutevel loacutegica empregada
para encadear as sentenccedilas e alcanccedilar uma conclusatildeo A ontologia por meio de suas loacutegicas de
identidade e natildeo-contradiccedilatildeo (e ateacute certo ponto tambeacutem via argumento do terceiro excluiacutedo)
visava alcanccedilar tanto para afirmaccedilatildeo quanto para negaccedilatildeo a dissoluccedilatildeo de todo e qualquer
paradoxo que colocasse a mente em estado de confusatildeo e discoacuterdia Independente daquilo que
estava sendo afirmado ou negado da linha de raciociacutenio ou doutrina em jogo os procedimentos
discursivos e intelectuais eram basicamente os mesmos com variaccedilotildees conceituais maiores ou
menores dependendo da vertente Todavia prosseguia-se sempre da mesma maneira
19 Kant afirma ldquoA razatildeo humana no seu gecircnio de seu conhecimento possui o peculiar destino de ser incomodada
por questotildees que natildeo pode evitar porque elas satildeo dadas pela natureza da razatildeo mesma mas tambeacutem natildeo possuem
respostas porque elas excedem a capacidade da razatildeo humanardquo (KANT 1956 5 Criacutetica da razatildeo pura AVII-
AVIII)
62
Contudo a despeito da supremacia ontoloacutegica outras formas de pensamento foram
desenvolvidas no decorrer da histoacuteria da filosofia fossem elas similares ou totalmente opostas
Alguns pensadores especialmente radicais se dedicaram a um modo reflexivo que se distanciava
consideravelmente da estrutura ontoloacutegica Suas bases seus pressupostos e seus meacutetodos pelos
quais prosseguiam no caminho especulativo dos temas propostos (muitas vezes os mesmos dos
formuladores da ontologia claacutessica) projetavam-se de maneira consideravelmente diversa Para
eles havia uma necessidade imperativa de incluir todos os elementos presentes na estrutura da
realidade pensada em sua maacutexima possibilidade de concepccedilatildeo tanto os que satildeo quanto os que
natildeo satildeo Ao que parece por este motivo Werner Beierwaltes considera que as caracteriacutesticas
pelas quais se configuram a ontologia claacutessica satildeo sobretudo frutos da interrogaccedilatildeo pelo nexo
da identidade e da diferenccedila quer seja na afirmaccedilatildeo parmeniacutedica da natildeo legitimaccedilatildeo filosoacutefica
da alteridade quer seja na resposta platocircnica do necessaacuterio estabelecimento da diferenccedila na
constituiccedilatildeo do ldquoserrdquo em seu inteiro (cf BEIERWALTES 1989 25) Para Beierwaltes o rigoroso
conceito de unidade demandado por Platatildeo em reposta agrave univocidade do ser de Parmecircnides
resultou na possibilidade de inclusatildeo do ldquonatildeo-serrdquo relativo ao ldquoserrdquo para afirmar sua totalidade
Disto derivaria a altercaccedilatildeo originaacuteria entre identidade e diferenccedila e nisto consiste a
possibilidade de desvio do pensamento ontoloacutegico20 Sem embargo precisamente neste ponto
que acredito poder encontrar o que chamo aqui de caminho da negatividade ou a possibilidade
de inclusatildeo do oxiacutemoro no caminho de pensamento delineado pela ontologia considerando que
ele se desdobra na tradiccedilatildeo do chamado neoplatonismo e ainda na miacutestica medieval
20 Trata-se da definiccedilatildeo do natildeo-ser como alteridade apresentada no Sofista Apoacutes a discussatildeo acerca da comunidade
de gecircneros e a questatildeo do ldquomesmordquo e do ldquooutrordquo que configuram o problema da identidade e da diferenccedila Platatildeo
apresenta a hipoacutetese de compreender o ldquomovimentordquo como ldquooutrordquo do ldquoserrdquo questionando a tese parmeniacutedica a
respeito da ldquoestaticidade do serrdquo Assim Platatildeo coloca a questatildeo ldquoDevemos trabalhar nossa coragem agora para
dizer que aquilo que lsquonatildeo eacutersquo definitivamente eacute algo que possui natureza proacutepria Devemos dizer que assim como
o grande era grande o belo era belo o natildeo grande eacute natildeo grande e o natildeo belo eacute natildeo belo da mesma maneira pela
qual natildeo eacute tambeacutem foi e eacute natildeo-ser e eacute uma das formas dentre as quais satildeordquo (PLATO 1997 282 Sofista 258 c-d)
A sequecircncia do diaacutelogo questionaraacute a realidade deste natildeo-ser relativo culminando na identidade entre pensamento
e discurso abrindo a possibilidade para o discurso falso (o do sofista) e introduzindo a assunccedilatildeo do paradoxo no
seio do pensamento representando o chamado parriciacutedio aos eleatas
63
Ateacute onde eacute possiacutevel investigar o termo neoplatonismo teria sido cunhado pela primeira
vez pelo helenista e medievalista Thomas Gale nos idos de 1670 Gale foi responsaacutevel por uma
seacuterie de estudos sobre o neoplatonismo pagatildeo e cristatildeo escrevendo sobre Plotino Jacircmblico
Joatildeo Escoto Eriuacutegena Maacuteximo Confessor entre outros21 Definiccedilotildees agrave parte os primeiros
elementos responsaacuteveis por delinearem um ldquoneoplatonismo originaacuteriordquo apenas tardiamente
nomeado satildeo atribuiacutedos a Amocircnio Sacas Contudo como a figura histoacuterica de Amocircnio Sacas
eacute tatildeo envolta em controveacutersias e misteacuterios quanto a vida de Pitaacutegoras ou Soacutecrates atribui-se
diretamente a fundaccedilatildeo de uma ldquoescola neoplatocircnicardquo a Plotino disciacutepulo de Amocircnio
Muacuteltiplos debates mais ou menos coerentes envolvem os relatos sobre a relaccedilatildeo entre Plotino e
Amocircnio aleacutem de polecircmicas acerca do proacuteprio Amocircnio22 Destaca-se apenas a autoridade dos
relatos de Porfiacuterio (em sua Vida de Plotino) nos quais se considera que o meacutetodo de pesquisa
aplicado por Plotino estava profundamente ligado ao de seu mestre O conteuacutedo dos discursos
de Plotino tambeacutem teria uma iacutentima relaccedilatildeo com as tentativas de Amocircnio de unificar os diversos
planos do ser e estabelecer a derivaccedilatildeo de todas as coisas a partir do uno23 Sem embargo
Plotino teria absorvido e desenvolvido a doutrina de Amocircnio e necessariamente de Platatildeo em
suas Eneacuteadas em um movimento de exegese ao discurso platocircnico Exegese esta suscetiacutevel de
diversas interpretaccedilotildees dos caminhos por Plotino tomados e mesmo natildeo muito consensual entre
os estudiosos da obra24
21 Extraiacute estes dados de Aaron W Huges em um trabalho intitulado ldquoMedievalrdquo and the Politics of Nostalgia
Ideology Scholarship and the Creation of the Rational Jew (2012) Huges natildeo apenas investiga as origens das
designaccedilotildees do neoplatonismo mas ainda constata que a alcunha de ldquoneoplatocircnicosrdquo continuou sendo utilizada
por eruditos alematildees no seacuteculo dezenove como uma menccedilatildeo pejorativa aos ldquofalsificadoresrdquo das doutrinas de Platatildeo
e Aristoacuteteles (cf HUGES 2012) 22 Conforme Giovanni Reale em sua Storia della filosofia antica (1975-1980) Sobre este ponto especificamente
acerca das incertezas em torno agrave figura de Amocircnio confira REALE 2008 5-13 23 Esta consideraccedilatildeo eacute apresentada por Giovanni Reale com base nos relatos de Nemeacutesio em De natura hominis
(cf REALE 2008 11) Conforme Francisco B Harriet a questatildeo fundamental se encontraria na foacutermula ldquoestaacute mais
aleacutem do intelecto e da essecircnciardquo (ἐπέκεινα νοῦϛ καὶ οὐσίας) conforme a formulaccedilatildeo de Oriacutegenes de Alexandria
em Contra Celsum (fons ex quo initium totius intellectualis naturae uel mentir est) presente em Plotino (Eneacuteadas
V 1 8 e VI 8 16) e derivada do ciacuterculo de Amocircnio (cf HARRIET 2012 153) 24 Sobre a questatildeo da exegese Marcus Reis Pinheiro (em Plotino exegeta de Platatildeo e Parmecircnides 2007)
argumenta que natildeo se pode reduzir a exegeacutetica agrave mera interpretaccedilatildeo dos diaacutelogos de Platatildeo e outros escritos Trata-
se antes do desdobramento de um discurso muito antigo onde ldquo() fazer exegese () natildeo eacute interpretar
objetivamente os textos mas caminhar rumo aos niacuteveis superiores junto com os antigosrdquo (P INHEIRO 2007 80)
64
Neste fluxo talvez o mais cabiacutevel usual e conhecido de todos os estabelecimentos de
um ldquoponto de partidardquo seja o do claacutessico artigo Jean Trouillard Le Parmeacutenide de Platon et son
interpretation neacuteoplatonicienne (1973) onde o neoplatonismo eacute pensado desde a busca da
doutrina originaacuteria de Platatildeo principalmente a partir de uma releitura de seu diaacutelogo
Parmecircnides Todavia a maneira pela qual eacute possiacutevel explanar esta releitura levanta suspeitas
sendo necessaacuterio ponderar em quais formas a exegese plotiniana converge ou diverge das
tentativas de uma interpretaccedilatildeo das doutrinas originaacuterias de Platatildeo Mais ainda estaacute tambeacutem
em jogo a autoridade de apontar que existam de fato doutrinas originaacuterias havendo ainda
abertura para questionar a fiabilidade e o suposto peso das chamadas ldquodoutrinas natildeo-escritasrdquo25
Seja como for interessa sobretudo destacar como com as Eneacuteadas de Plotino o pensamento
filosoacutefico experimenta um movimento iacutempar em relaccedilatildeo agravequilo que vinha sendo apresentado
Para Ciacutecero Cunha Bezerra eacute possiacutevel elencar alguns pontos que evidenciam de maneira
clara a renovaccedilatildeo do neoplatonismo Destaca-se em primeiro lugar a junccedilatildeo entre os elementos
aristoteacutelicos e pitagoacutericos em siacutentese com uma perfeita sintonia entre o platonismo acadecircmico
e as ldquodoutrinas natildeo-escritasrdquo Ademais a ldquohierarquizaccedilatildeordquo do real a partir da qual todos os
graus satildeo derivados desde o uno permite uma sistematizaccedilatildeo do platonismo anterior Por este
motivo tende-se agrave leitura conforme a qual o neoplatonismo possuiria um sistema ldquomonopolarrdquo
frente a um suposto ldquobipolarismordquo platocircnico Por fim haacute ldquo() o fim uacuteltimo do processo de
conhecimento que para o neoplatocircnico eacute a uniatildeo plena com Deus (fugir soacute ao soacute) uma uniatildeo
que tem como marca a supressatildeo (aphaiacuteresis) de todo saber e dizerrdquo (BEZERRA 2006 57)
Dentre os pontos apresentados interessa-me particularmente o uacuteltimo (evidente consequecircncia
dos trecircs primeiros) no qual o neoplatonismo aparece como uma ldquosupressatildeo de todo saber e
dizerrdquo
25 Haacute uma interessante e profunda discussatildeo acerca do tema na tradiccedilatildeo de leitores e inteacuterpretes do platonismo e
do neoplatonismo a respeito deste toacutepico Ciacutecero Cunha Bezerra (em Compreender Plotino e Proclo 2006) aborda
o tema abrindo uma interlocuccedilatildeo com a obra Platone alla ricerca della spienza segreta de Giovanni Reale e ainda
com as investigaccedilotildees de W K C Guthrie e a chamada Escola de Tuumlbingen (cf BEZERRA 200617-24)
65
O senso comum ocidental regula a atividade filosoacutefica como um progresso ininterrupto
rumo ao acuacutemulo de conhecimento e dissoluccedilatildeo dos problemas Curioso agora eacute pensar a
maneira pela qual uma doutrina filosoacutefica pode suprimir o saber e o dizer ao inveacutes de
acrescentar Mas eacute apenas possiacutevel atingir a compreensatildeo necessaacuteria desta supressatildeo uma vez
esclarecido o que eacute propriamente o princiacutepio negativo do pensamento de Plotino Para isto natildeo
se pode perder de vista as duas questotildees que levariam agrave construccedilatildeo do pensamento de Plotino
quais sejam ldquo() o problema religioso (que corresponde agrave busca de compreensatildeo do destino
da alma assim como sua restauraccedilatildeo) e o problema filosoacutefico relativo agrave explicaccedilatildeo racional da
realidade ()rdquo (IDEM IBIDEM 66)26 ponderando ainda que em Plotino ambas estatildeo perfeitamente
inter-relacionadas Para atingir este entendimento todavia eacute necessaacuterio analisar as chamadas
trecircs hipoacutestases de Plotino presentes em suas Eneacuteadas
O conjunto de circunstacircncia que acompanham a formulaccedilatildeo do pensamento de Plotino
eacute todavia aquele anteriormente citado apresentado por Werner Beierwaltes que remete agrave
contenda entre Parmecircnides e Platatildeo Contextualizar a disputa Parmecircnides-Platatildeo da qual
derivam centralmente as hipoacutestases de Plotino natildeo eacute necessariamente complicado embora
interpretaacute-la e desde aiacute desdobrar um novo caminho reflexivo seja uma tarefa bastante
trabalhosa A demanda especulativa eacute altiacutessima e envolve uma bibliografia excessivamente
extensa e complexa Contudo como o interesse aqui eacute a apresentaccedilatildeo dos aspectos centrais do
pensamento de Plotino e como deles redunda uma nova postura e atitude filosoacuteficas o trabalho
fica menos penoso Portanto para colocar em relevo as hipoacutestases de Plotino eacute importante ao
menos demonstrar de forma simples os pontos originais dos quais elas derivam seja em
Parmecircnides seja em Platatildeo (e ateacute certo ponto tambeacutem no neopitagorismo e em Aristoacuteteles
embora esta tarefa exija um pouco mais e seja um pouco mais complicada de rastrear) Para
alcanccedilar este objetivo torna-se imperioso retornar brevemente a Parmecircnides
26 Esta hipoacutetese eacute destacada por Bezerra diretamente da obra de Eacutemile Breacutehier La Philosophie de Plotin (1928)
66
O segundo fragmento do poema Sobre a Natureza de Parmecircnides catalisa os principais
argumentos do conflito permitindo compreender quais satildeo os pontos mais problemaacuteticos do
estabelecimento de sua doutrina na tradiccedilatildeo Aleacutem da Fiacutesica de Simpliacutecio as fontes pelas quais
se estruturou esse fragmento adveacutem dos Comentaacuterios ao Timeu e Comentaacuterios ao Parmecircnides
de Proclo Os oito versos contidos no fragmento centralizam a doutrina de Parmecircnides como
foi herdada pela tradiccedilatildeo a partir da manifestaccedilatildeo das duas uacutenicas vias possiacuteveis para o
pensamento quais sejam a via da verdade e a via da aparecircncia O fragmento diz
εἰ δ᾽ ἄγ᾽ ἐρὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας
αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι
ἡ μέν ὄπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι
πειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ)
ἡ δ᾽ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι
τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν
οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐόν (οὐ γὰρ ἀνυστόν)
οὔτε φράσαις
(KIRK E RAVEN 1957 269)
Pois bem agora vou eu falar e tu presta atenccedilatildeo ouvindo a palavra
acerca das uacutenicas vias de questionamento que satildeo a pensar
uma para o que eacute e como tal natildeo eacute para natildeo ser
eacute o caminho de persuasatildeo ndash pois Verdade o segue ndash
outra para o que natildeo eacute e como tal eacute preciso natildeo ser
esta via indico-te que eacute uma trilha inteiramente inviaacutevel
pois nem ao menos se reconheceria o natildeo ente pois natildeo eacute realizaacutevel
nem tampouco se mostraria
(Traduccedilatildeo de Fernando Santoro cf PARMEcircNIDES 200612)
67
O caminho da verdade que eacute e natildeo eacute para natildeo ser (ἡ μέν ὄπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ
εἶναι) e o caminho da aparecircncia que natildeo eacute e natildeo pode ser (ἡ δ᾽ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών
ἐστι μὴ εἶναι) satildeo via de regra estabelecidos como a manifestaccedilatildeo maacutexima da loacutegica ocidental
e berccedilo dos princiacutepios de identidade e natildeo-contradiccedilatildeo A partir deles eacute possiacutevel natildeo soacute
estabelecer uma identidade (o ser eacute representada pela claacutessica foacutermula A=A) como ainda
verificar a veracidade dessa mesma identidade ndash natildeo eacute possiacutevel que o ser sendo natildeo seja
ilustrado pela foacutermula not (A ˄ notA) um tanto esdruacutexula sem duacutevidas27
O legado de Parmecircnides eacute marcado em sua difusatildeo pelos chamados ldquofiloacutesofos eleatasrdquo
sobretudo por Zenatildeo de Eleacuteia Seus argumentos contra a pluralidade (cf KIRK E RAVEN OP CIT
288-291) e contra o movimento (cf IDEM IBIDEM 291-297) se tornaram assaz populares
sobretudo no que concerne aos paradoxos da flecha no estaacutedio e de Aquiles e a tartaruga Aleacutem
da constataccedilatildeo da univocidade do ser presente em toda linha de pensamento parmeniacutedica28 O
resultado imediato dos exerciacutecios de raciociacutenio de Zenatildeo demonstraram a formataccedilatildeo de uma
estaticidade do ser e da realidade em torno alertando para a ilusatildeo do movimento e alteraccedilotildees
na substacircncia do real O momento no qual Platatildeo compotildee seu diaacutelogo Parmecircnides retrata
justamente o evento no qual tanto Parmecircnides quanto Zenatildeo estatildeo no aacutepice da divulgaccedilatildeo de
sua doutrina dialogando com um ainda jovem Soacutecrates Trata-se de um dos momentos mais
emblemaacuteticos da histoacuteria da filosofia ocidental
27 Haacute uma discussatildeo em torno a uma suposta terceira via aquela na qual o que ldquoeacuterdquo eacute e natildeo eacute ao mesmo tempo
baseada no sexto fragmento onde se lecirc ldquoοἶς τὸ πέλειν τε καὶ οὐκ ταῦτὸν νενόμισταιrdquo (KIRK E RAVEN OP CIT 271)
Embora ainda em um sentido pejorativo de uma via do engano emerge a possibilidade de que algo seja e natildeo seja
Mesmo que natildeo seja profiacutecuo para o andamento da tese se fixar na discussatildeo vale ao menos citaacute-la sobretudo
ponderando os apontamentos feitos por Jean Beaufret acerca da interpretaccedilatildeo de Martin Heidegger da terceira via
como a via dos entes Ao que cabe no propoacutesito do trabalho basta apenas atentar para como a tensatildeo entre as duas
primeiras vias jaacute foram suficientes para levantar controveacutersias Eacute possiacutevel especular ainda que jaacute na primeira via
aparece tambeacutem uma possibilidade de que o ser seja e natildeo seja quando se afirma que ele ldquoeacute e natildeo eacute para natildeo serrdquo
Seria possiacutevel conectar o ldquonatildeo eacuterdquo da sentenccedila como o natildeo-ser relativo necessaacuterio agrave constituiccedilatildeo da inteireza do
ser como argumentado no Sofista de Platatildeo 28 O que significa afirmar que natildeo existem ldquograusrdquo do ser uma coisa ou eacute real (ser) ou irreal (nada) (cf BEZERRA
2003 47)
68
As chamadas ldquotrecircs hipoacutetesesrdquo do Parmecircnides de Platatildeo satildeo apresentadas
respectivamente nas passagens 137c-142a 142b-157a e 157b-159a Elas constituem a mateacuteria
bruta para a elaboraccedilatildeo das trecircs hipoacutestases de Plotino Todas as trecircs hipoacuteteses de Platatildeo satildeo
apresentadas pela personagem do entatildeo velho Parmecircnides arguindo Soacutecrates a respeito da
viabilidade de cada argumento Elas se apresentam ainda a partir do problema constituiacutedo pela
questatildeo da unidade e da multiplicidade A pulsatildeo do jovem Soacutecrates ao inquirir Parmecircnides a
respeito de sua teoria fazendo-o apresentar as trecircs hipoacuteteses parte da colocaccedilatildeo de Parmecircnides
a respeito da assunccedilatildeo da multiplicidade por um lado e da impossibilidade do muacuteltiplo por
outro Parmecircnides eacute levado pelo jovem Soacutecrates a confirmar natildeo apenas sua teoria mas sua
metodologia e plano doutrinaacuterio
Para confrontar a teoria parmeniacutedica Platatildeo desenvolve a primeira hipoacutetese Ela
consiste basicamente na afirmaccedilatildeo de o que o ldquouno eacute unordquo ou seja se haacute uno natildeo eacute possiacutevel
que o uno seja muacuteltiplo Por este motivo ele natildeo pode conter partes nem tampouco ser um
inteiro (composto por partes) Tambeacutem natildeo pode ter um comeccedilo nem um meio nem um fim
natildeo possuindo nada que o limite ou delimite Tampouco pode possuir um formato nem se
encontrar em lugar algum nem estar se movimentando de um lugar para outro (porque entatildeo
assumir-se-ia algo outro que natildeo o uno pelo qual ele se movimenta) e nem em si mesmo
(porque com isto se movimentaria entre suas partes que por definiccedilatildeo natildeo pode conter) Natildeo
pode ainda ser diferente de si mesmo nem o mesmo que si mesmo porque assumindo sua
diferenccedila se assumiria algo outro que natildeo o uno ndash e assumindo sua identidade se assumiria que
haacute algo a saber a proacutepria identidade predicada do uno e que natildeo eacute o uno Natildeo pode tambeacutem
estar no tempo nem ter surgido em momento algum Por fim o uno natildeo pode possuir um nome
ou seja eacute inominaacutevel natildeo podendo ser objeto de opiniatildeo nem conhecimento nem percepccedilatildeo
caso contraacuterio assumir-se-ia um ser ou essecircncia distintos do uno pelo qual se alcanccedila seu
entendimento
69
Necessariamente a primeira hipoacutetese leva a uma outra questatildeo ou ao levantamento de
uma segunda hipoacutetese qual seja o uno eacute e quais satildeo as consequecircncias disto para ele mesmo
Essa hipoacutetese eacute consideravelmente mais complicada e envolve algumas nuances bastante
delicadas O argumento geral se concentra na ideia de que a proposiccedilatildeo uno eacute envolve
necessariamente a ideia de essecircncia do uno O grande problema em afirmar que o uno participa
da essecircncia de uno eacute justamente estabelecer a diferenccedila entre uma coisa e outra ou seja torna-
se inevitaacutevel afirmar que existem duas coisas a saber o uno e a essecircncia do uno O embargo
consiste na simples afirmaccedilatildeo uno eacute em contraposiccedilatildeo agrave afirmaccedilatildeo uno uno Logo desdobram-
se dois unos um uno que eacute e um uno e o ser O primeiro como afirmaccedilatildeo do proacuteprio uno o
segundo como assunccedilatildeo da participaccedilatildeo dele mesmo em sua essecircncia A reaccedilatildeo imediata agrave
afirmaccedilatildeo de que o uno eacute caminha em sentido contraacuterio das negaccedilotildees da primeira hipoacutetese
Sem embargo jaacute neste momento mesmo antes da apresentaccedilatildeo da terceira hipoacutetese
torna-se possiacutevel fazer algumas consideraccedilotildees Em primeiro lugar a hipoacutetese de que o ldquouno eacute
unordquo a despeito da aplicaccedilatildeo da categoria do ser para a predicaccedilatildeo da sentenccedila direciona o
pensamento para um caminho no qual natildeo haacute outra possibilidade senatildeo a completa negaccedilatildeo de
tudo que possivelmente competiria ao uno levando mesmo agrave dissoluccedilatildeo do eacute presente na frase
Em segundo lugar a hipoacutetese de que o ldquouno eacuterdquo desta vez com ecircnfase no eacute gera o movimento
oposto de afirmaccedilatildeo de tudo o que porventura poderia ser predicado de qualquer elemento
Estas duas hipoacuteteses (como se veraacute na apresentaccedilatildeo das hipoacutestases de Plotino)
discriminam perfeitamente as duas vias aqui cogitadas quais sejam uma via afirmativa da
ontologia claacutessica na afirmaccedilatildeo das coisas por meio da qual percebe-se compreende-se e se
faz ciecircncia e uma via negativa do que seraacute ulteriormente nomeada henologia na qual a maacutexima
especulaccedilatildeo acerca da natureza do uno natildeo leva senatildeo agrave negaccedilatildeo absoluta ndash as caracteriacutesticas
desta negaccedilatildeo ou negatividade ver-se-aacute mais claramente nas Eneacuteadas
70
A terceira hipoacutetese do Parmecircnides de Platatildeo eacute apresentada no diaacutelogo muito brevemente
Ela abarca ambos os aspectos centrais das duas primeiras hipoacuteteses sugerindo que o uno eacute e
natildeo eacute imputando a categoria de mudanccedila em sua natureza Trata-se de diagnosticar o fato de
que sendo o uno uno por um lado e muacuteltiplo por outro participa e natildeo participa de sua
essecircncia vem a ser e deixa de ser ponderando ainda que esta mudanccedila se daacute no instante Sendo
assim tanto o movimento de retorno ao uno quanto o movimento de procedecircncia a partir do
uno daacute-se ao mesmo tempo em uma reciprocidade na qual tanto a geraccedilatildeo da multiplicidade
configura o uno nem como uno nem como muacuteltiplo quanto a reuniatildeo da multiplicidade ao
uno tampouco configura o uno nem como uno nem como muacuteltiplo ndash como se a proacutepria ideia
de uno flutuasse em um ldquoinstante incapturaacutevelrdquo
Natildeo haacute duacutevida que o raciociacutenio apresentado por Platatildeo constitui um dos maiores
desafios especulativos da histoacuteria do pensamento ocidental seja nos esforccedilos empreendidos
pela loacutegica de compreensatildeo seja pelo desafio meditativo aflorado da temaacutetica proposta Neste
contexto Marcus Reis Pinheiro indica a interpretaccedilatildeo de Jean-Luc Brisson (Annexe I Les
interpretation du Parmeacutenide dans lrsquoAntiquiteacute presente na ediccedilatildeo Parmenide Paris Flamarion
1999) conforme a qual ldquo() Plotino estaacute no grupo dos inteacuterpretes do diaacutelogo que natildeo o vecirc
apenas como um exerciacutecio loacutegico mas que procura determinar a que tipo de objeto se refere o
diaacutelogordquo (PINHEIRO 2006 3) Seguindo esta linha de raciociacutenio o importante seria portanto
compreender como Plotino absorve a temaacutetica Considerar uma interpretaccedilatildeo para aleacutem da mera
concatenaccedilatildeo loacutegica de conceitos eacute basicamente absorver o sentido de cada termo Isto significa
natildeo apenas expor as formataccedilotildees daquilo que foi introduzido no discurso como ldquounordquo mas
ainda entender de que forma a simples possibilidade de concebecirc-lo no raciociacutenio implica em
uma reduccedilatildeo draacutestica das estruturas hieraacuterquicas do real ou seja constitui uma compreensatildeo
da realidade que possui como primeiro princiacutepio algo que coloca o pensamento em um niacutevel de
paradoxo que necessariamente denota a assunccedilatildeo de uma impossibilidade loacutegica
71
As trecircs hipoacutestases de Plotino seratildeo teoricamente encadeadas de maneira semelhante agraves
hipoacuteteses de Platatildeo embora natildeo sequencialmente Contudo a primeira (e talvez a mais
complexa) jaacute iniciaraacute o movimento de negatividade em direccedilatildeo agraves seguintes estabelecendo os
conflitos presentes na ideia de uno (τὸ ἑν) Plotino considera que ldquoO Uno eacute todas as coisas e
nenhuma delas a fonte para todas as coisas eacute nenhuma das coisas e ainda eacute todas as coisas em
um sentido transcendental ndash todas as coisas para assim dizer tendo seu retorno agrave isto ()rdquo
(PLOTINUS 1969 380 Eneacuteadas V 2 1) Ele ainda assevera a inefabilidade inerente ao uno
conforme a qual todo discurso eacute jaacute sempre indireto e impreciso Apenas mediante referecircncias
como ldquotodas as coisas e nenhuma delasrdquo torna-se possiacutevel acenar para o uno ndash e apenas isto
acenar Entretanto esta eacute para Plotino a uacutenica maneira de compreender a estrutura da realidade
como tal pelo simples motivo de que ldquoEacute precisamente porque haacute nada no Uno que todas as
coisas derivam dele para que o Ser possa ser trazido a fonte natildeo pode ser o Ser mesmo mas o
gerador do Ser ()rdquo (IDEM IBIDEM) que natildeo pode possuir a natureza do ser mas deve se constituir
como outro dele qual seja natildeo-ser ou mesmo nada Plotino prossegue ainda dizendo
ldquoBuscando nada possuindo nada faltando nada o Uno eacute perfeito e em nossa metaacutefora
transborda e sua exuberacircncia produz o novo este produto torna-se novamente seu progenitor
e eacute preenchido e se torna seu contemplador e Princiacutepio-Intelectualrdquo (ID IBID) A passagem
altamente especulativa denota que tudo eacute contemplaccedilatildeo dotada de uma atividade suprema que
comeccedila pelo uno e retorna a ele no simples olhar que natildeo implica nem em complexidade nem
em necessidade29 Mediante uma reflexatildeo propriamente loacutegica a contemplaccedilatildeo por meio da
qual o uno se desdobra e gera todas as coisas se daacute devido a sua proacutepria perfeiccedilatildeo ou seja o
uno natildeo eacute coisa nenhuma e necessariamente engendra todas as coisas porque eacute completo
porque eacute a totalidade de tudo e para isto eacute necessaacuterio que seja ele mesmo e ainda outro de si
29 Estes apontamentos satildeo de John Bussanich que ainda explica que ldquo() a doutrina plotiniana da derivaccedilatildeo do
Uno eacute lsquoprocessatildeorsquo o adjetivo que melhor qualifica isto eacute lsquocontemplativorsquo o movimento no qual a hipoacutestase eacute
gerada coincide com a contemplaccedilatildeo De fato o ponto cardial a chave para a estrutura da processatildeo da metafiacutesica
plotiniana era contemplaccedilatildeo ou theocircriardquo (BUSSANICH 1999 32)
72
Ciacutecero Cunha Bezerra apresenta a organizaccedilatildeo feita por Pierre Aubenque30 conforme a
qual haveriam trecircs esferas argumentativas no desenvolvimento da primeira hipoacutestase uma
loacutegica outra epistemoloacutegica e uma metafiacutesica Bezerra cita uma das passagens mais conhecidas
de Plotino que diz ldquoPrivado de unidade uma coisa cessa de ser aquilo pelo qual eacute chamada
um exeacutercito natildeo eacute um exeacutercito se natildeo eacute uno um coro um rebanho devem ser uma coisa soacuterdquo
(ID IBID 612 VI 9 1) sobretudo para enfatizar o aspecto loacutegico pelo qual Plotino ldquosubverterdquo
a resposta aristoteacutelica da entidade da coisa pela definiccedilatildeo substancial Bezerra argumenta
dizendo que ldquo() Plotino por uma exigecircncia loacutegica jaacute que o princiacutepio originaacuterio natildeo pode
possuir qualquer caraacuteter dos seres relativiza a ontologia e estabelece a henologia como
fundamento de todo serrdquo (BEZERRA OP CIT 67) O problema epistemoloacutegico sobressalta a
ultrapassagem necessaacuteria de todo conhecimento para alcanccedilar tal niacutevel de especulaccedilatildeo ao passo
que a questatildeo metafiacutesica retorna aos trechos anteriormente citados no qual a geraccedilatildeo de todas
as coisas soacute pode derivar de coisa nenhuma
O emprego do termo henologia define aqui o primeiro passo para o caminho da
negatividade Institui-se como negativo o princiacutepio que jaacute natildeo mais decorre de um rendimento
ldquopositivordquo por meio do qual se pode construir um conhecimento soacutelido e confiaacutevel mas uma
base que possui caracteriacutesticas muito diversas e que desafiam a capacidade loacutegica Por este
motivo a primeira demanda eacute jaacute a superaccedilatildeo intelectual (ἐπέκεινα νοῦϛ καὶ οὐσίας) que deve
assumir que o comeccedilo de todas as coisas eacute incoacutegnito O discurso eacute indireto e metafoacuterico porque
somente assim eacute possiacutevel indicar sua possibilidade de ser pensado ndash entendendo principalmente
que o ldquoser pensadordquo natildeo indica nem conota existecircncia porque o ser e a existecircncia mesmo satildeo
ainda posteriores agrave ideia de uno As segunda e terceira hipoacutestases portanto natildeo podem ser
concebidas se de antematildeo natildeo for assumida a negatividade do primeiro princiacutepio
30 Pierre Aubenque ldquoPlotin et le deacutepassement de lrsquoontologie grecque classiquerdquo Colloque des Royaumont Le
Neacuteoplatonisme Paris Centre National de Recherche Scientifique 1971 101-110
73
Somente por meio da completude da pensamento henoloacutegico de Plotino fica possiacutevel
deixar claro os termos pelos quais se destaca a negatividade como ldquosupressatildeo de todo saber e
dizerrdquo Os motivos contudo jaacute satildeo bastante evidentes se levado em consideraccedilatildeo que a
inefabilidade do uno indica que sobre ele natildeo se pode falar e ele natildeo se pode conhecer Portanto
o neoplatonismo necessariamente parte do pressuposto de que o ponto de partida e o ponto de
chegada do pensamento satildeo ambos uma caminhada rumo agrave supressatildeo Ao explicar a processatildeo
por meio da qual o uno engendra todas as coisas destaca-se uma consideraccedilatildeo importante se
os seres engendram o eternamente perfeito engendra eternamente algo inferior a si mesmo por
isto mesmo ldquoEacute preciso observar que a processatildeo plotiniana implica necessariamente uma
negaccedilatildeo A negaccedilatildeo eacute uma condiccedilatildeo a priori no sentido de que o engendrado deve assimilar-se
ao seu gerador mas mantendo uma resistecircncia que diferencia um do outrordquo (IDEM IBIDEM 74)
Em outras palavras a geraccedilatildeo do uno e a abertura da segunda hipoacutestase soacute eacute possiacutevel por meio
da introduccedilatildeo da diferenccedila A diferenccedila eacute o que aqui constitui o passo fundamental da sequecircncia
do pensamento neoplatocircnico O ser eacute na medida em que eacute diferente do uno e por ele eacute
engendrado justamente porque apenas a diferenccedila pode advir do eternamente perfeito
Assim sendo resta saber como o uno engendra e o quecirc ele engendra O que significa
ainda resgatar a pergunta anteriormente colocada por Parmecircnides e Platatildeo como do uno
provem o muacuteltiplo Esta questatildeo eacute sem sombra de duacutevidas uma das mais complexas do sistema
neoplatocircnico em geral A ideia de processatildeo (πρόοδος) pressupotildee uma emanaccedilatildeo a partir do
uno na qual todas as outras coisas satildeo engendradas o que significa dizer que se trata de um
movimento que abarca a realidade em toda sua estrutura na qual ldquo() difere completamente de
um mecanicismo dado que estaacute mais aleacutem de toda contingecircncia e necessidade Nesse sentido
natildeo se pode dizer que se trata de algo que implique um livre-arbiacutetrio ou uma produccedilatildeo artesanalrdquo
(ID IBID 76) Ou seja o uno natildeo necessita de nada e por isto mesmo daacute origem a tudo A
espontaneidade (se eacute que se pode utilizar tal termo) eacute natural e natildeo possui um motor
74
Ao mesmo tempo tudo aquilo que eacute gerado pelo uno possui um poder de conversatildeo
(επιστροφή) um voltar-se sobre si mesmo e voltar-se em direccedilatildeo ao uno (cf ID IBID 76)
movimentada pelo autoconhecimento daquilo que eacute Este autoconhecimento soacute eacute possiacutevel
todavia pelo proacuteprio movimento de emanaccedilatildeo conforme o qual se identifica ldquoserrdquo e
ldquopensamentordquo como havia postulado Parmecircnides e eacute justamente este o momento no qual
emerge a segunda hipoacutestase qual seja a inteligecircncia (νοῦϛ)
As caracteriacutesticas pelas quais a inteligecircncia se mostra desde a compreensatildeo da processatildeo
satildeo a chave para o sentido da filosofia de Plotino Sobre isto Thomas Alexander Szlezaacutek
escreve ldquoNatildeo persegue o Uno com esforccedilo deliberado mas espera tranquilamente ateacute que ele
apreccedila Assim a alma soacute recebe unicamente o Uno eacute uma volta do lsquosolitaacuterio para o solitaacuteriorsquordquo
(SZLEZAacuteK 2010 11) acrescentando ainda que ldquoO caminho que conduz ao Uno natildeo passa poreacutem
pela praacutetica asceacutetica de um anacoreta mas pela apropriaccedilatildeo conceitual do mundo inteligiacutevel
()rdquo (IDEM IBIDEM) Os termos inteligecircncia e inteligiacutevel referem-se aqui a uma definiccedilatildeo
particular que compreende o nuacutecleo da segunda hipoacutestase Bezerra escreve acerca deste ponto
ldquoPlotino no tratado oitavo da terceira Eneacuteada define a Inteligecircncia natildeo como uma coisa
particular mas como algo universal e muacuteltiplordquo (BEZERRA OP CIT 78) explicando que eacute
ldquoUniversal porque abarca todos os seres e muacuteltiplo porque coexistem em sua natureza
simultaneamente o inteligente (Inteligecircncia) e o inteligiacutevel (ser) ()rdquo (IDEM IBIDEM) Plotino
encadeia seu raciociacutenio elucidando como o Princiacutepio-Intelectual eacute universal e iniacutecio de todas as
coisas de maneira que ldquo() assim todas as coisas e o Princiacutepio de tudo deve ser tal que cada
parte dele seja universal eacute todas coisas do contraacuterio conteria partes que natildeo satildeo o Princiacutepio-
Intelectualrdquo (PLOTINUS OP CIT 246 Eneadas III 8 8) Conclui a partir de entatildeo que ldquo() este
Ser eacute ilimitado e que em tudo que flui dele natildeo haacute reduccedilatildeo nem em sua emanaccedilatildeo desde que eacute
o universo inteiro nem em si mesmo o ponto de partida desde que natildeo haacute reuniatildeo de partes
()rdquo (IDEM IBIDEM 246-247) Fica claro o caraacuteter ascendente e natildeo descendente da processatildeo
75
Plotino explica que ldquo() um ser desta natureza natildeo eacute existecircncia primaacuteria deve existir a
partir daquilo do qual transcende o Ser (o Absoluto) ()rdquo (ID IBID 247) e prossegue dizendo
que ldquo() Pluralidade eacute mais tardia que Unidade O Princiacutepio-Intelectual eacute um nuacutemero (=a
expressatildeo de uma pluralidade) e o nuacutemero deriva da unidade a fonte de um nuacutemero como este
deve ser o autecircntico Unordquo (ID IBID) A transcendecircncia que evidencia o caraacuteter progressivo
pode ainda ser entendida desde a ideia de que ldquo() ao contemplar-se a si mesmo a Inteligecircncia
se une ao objeto contemplando uma unidade entre o eu e o ser universal que supera toda
alteridade ()rdquo (BEZERRA OP CIT 79) Com isto eacute possiacutevel resgatar ainda o sentido pelo qual
Beierwaltes destaca a diferenccedila como princiacutepio pelo qual haacute um desvio de Plotino em relaccedilatildeo
agrave ontologia claacutessica (cf BEIERWALTES OP CIT 58) Contudo como se compreende esta
contemplaccedilatildeo eacute o que levaraacute agrave terceira hipoacutestase a alma (ψυχή) Bezerra explica recapitulando
os passos anteriores ldquoVimos anteriormente que o Uno e o Muacuteltiplo apresentam-se sob duas
maneiras distintas a) Uno e natildeo muacuteltiplo (I hipoacutetese) b) Uno-Muacuteltiplo (II hipoacutetese) A alma eacute
portanto ao mesmo tempo uno e muacuteltiplordquo (BEZERRA OP CIT 82) o que significa evidenciar
que ela representa uma distinccedilatildeo radical e afastamento do primeiro princiacutepio o uno
Ainda no oitavo tratado da terceira Eneacuteada Plotino aborda a natureza enquanto ato
criador compreendendo o fenocircmeno a partir de uma tensatildeo entre um Princiacutepio-Racional inerte
e um Princiacutepio-Natural em movimento (cf PLOTINUS OP CIT 239-240 Eneadas III 8 2) que
responderia ainda ao conflito entre unidade e multiplicidade e ainda agrave questatildeo entre tempo e
eternidade Plotino indaga como a natureza responderia ao questionamento colocando
literalmente o argumento na fala da natureza que diria que ldquoOs matemaacuteticos desde suas visotildees
desenham suas figuras mas eu desenho nada eu contemplo as figuras do material do mundo
tomando os seres como eu os sinto desde minha contemplaccedilatildeordquo (IDEM IBDEM 241) chegando a
conclusatildeo de que ldquo() o que noacutes conhecemos por Natureza eacute uma Alma cria de uma Alma
ainda anterior () uma visatildeo interna de si mesmardquo (ID IBID)
76
A visatildeo interna de si mesma mencionada por Plotino prove o entendimento de que ldquoA
alma portanto autodetermina-se e ao mesmo tempo autofragmenta-se pois ao separar-se do
todo volta-se maravilhada para o particularrdquo (BEZERRA OP CIT 84) Disto adveacutem a geraccedilatildeo do
tempo como desordem introduzida no equiliacutebrio primordial e ao mesmo tempo a introduccedilatildeo
de uma ordenaccedilatildeo mediada pela conversatildeo (επιστροφή) ndash pelo retorno maravilhado ao uno ou
uniatildeo ao fundamento por meio da contemplaccedilatildeo
Agora bem toda esta inevitaacutevel breve introduccedilatildeo ao pensamento de Plotino deve
direcionar para uma postura distinta daquela antes observada com a ontologia claacutessica e o
pensamento metafiacutesico Que postura eacute esta Ou melhor qual o caminho que se abre a partir das
trecircs hipoacutestases plotinianas Este eacute o momento no qual o caminho da negatividade comeccedila a se
encorpar e mostrar seu caraacuteter decisivo na constituiccedilatildeo do desvio intelectual do neoplatonismo
Gostaria de fazer um recorte especiacutefico do nono tratado da sexta Eneacuteada para alcanccedilar este
esclarecimento
Plotino reconstitui seu caminho a partir da afirmaccedilatildeo ldquoEacute em virtude da unidade que os
seres satildeo seresrdquo (PLOTINUS OP CIT 614 Eneadas VI 9 1) O que significa afirmar que sem a
unidade natildeo se pode considera que algo seja o que seja Em termos mais simples se nomeio
braccedilo pernas cabeccedila razatildeo sensibilidade entre outras muacuteltiplas singularidades presentes em
um ser humano mas natildeo as congrego em uma unidade pela qual afirmo ldquoser humanordquo que
compreende todas as particulares em questatildeo inexoravelmente perco de vista seu sentido Por
isto ldquoQualquer coisa que possa ser descrita como uma unidade o eacute no preciso grau pelo qual
sustenta um ser caracteriacutestico quanto menor ou maior o niacutevel do ser menor ou maior seraacute a
unidaderdquo (IDEM IBIDEM) Portanto alma seria (em razatildeo de sua distinccedilatildeo da unidade mesma)
uma grande unidade em proporccedilatildeo e na autenticidade do ser e assim ldquoUnidade absoluta natildeo eacute
eacute a alma e a primeira alma a unidade em algum sentido concomitante ()rdquo (ID IBID) deixando
ver como a unidade natildeo eacute e eacute
77
Desta forma pode-se compreender que o uno natildeo pode ser a totalidade dos seres que
anularia sua unidade nem tampouco o ldquoPrinciacutepio-Intelectualrdquo pelo qual as coisas satildeo nem o
ldquoser mesmordquo no sentido da totalidade das coisas Plotino prossegue dizendo ldquoA alma ou mente
movimentando-se rumo ao que eacute sem forma encontra-se em estado de incompetecircncia para
apreender ali onde nada se limita ou onde a se impinge a realidade difusardquo (ID IBID 615 VI
9 3) Assim ldquo(hellip) ante o puro pavor de se sustentar no nada esvai-se O estado eacute doloroso
geralmente busca aliacutevio ao se retratar de sua vagueza na regiatildeo do sentido para ali repousar em
um fundamento soacutelido bem como a visatildeo aflige-se com o minuto no qual repousa na escuridatildeordquo
(ID IBID) Mas para onde olhar frente ao desconforto de natildeo se ter onde repousar Quando se
percebe o quatildeo vago eacute todo e qualquer presumido fundamento ou sentido quando a escuridatildeo
natildeo reflete senatildeo a angustia de uma contemplaccedilatildeo exausta pelo esvair de todo sustento o que
resta para aleacutem discoacuterdia que atinge o intelecto Plotino sintetiza a afliccedilatildeo
A alma deve ver em sua proacutepria maneira isto se daacute por coalescecircncia a unificaccedilatildeo
mas buscando assim conhecer a unidade eacute impedida por esta mesma unificaccedilatildeo de
reconhecer o que foi encontrado natildeo se pode distinguir a si mesmo do objeto de sua
intuiccedilatildeo No entanto este eacute nosso uacutenico recurso caso nossa filosofia busque o
conhecimento da Unidade (ID IBID)
O uacutenico caminho rumo ao conhecimento da unidade eacute um caminho impossiacutevel em si mesmo
uma via cerrada pela proacutepria natureza do questionamento proposto Intuir as trecircs hipoacutestases ou
encadeaacute-las conforme uma loacutegica sistemaacutetica portanto elucida o caminho mas natildeo
necessariamente introspecta e absorve a pureza da experiecircncia Para isto eacute necessaacuterio mais ou
melhor menos ndash muito menos O uacutenico ponto de apoio aqui seraacute a identificaccedilatildeo entre o uno e
bem ou a compreensatildeo da primeira hipoacutestase como uno-bem (τὸ ἑν καὶ αγαθον) cujo sentido
eacute por um lado extrema e pura simplicidade e por outro inefabilidade total devido agrave perfeiccedilatildeo
78
Reivindicar este caminho soacute pode portanto levar a uma supressatildeo absoluta onde
ldquoAinda esta abstenccedilatildeo de autoconhecimento natildeo comporta ignoracircncia ignoracircncia eacute algo de fora
ndash um conhecedor ignorante de um cognosciacutevel ndash mas no solitaacuterio natildeo haacute nem conhecimento
nem nada desconhecidordquo (ID IBID 620 VI 9 6) Plotino entatildeo apresenta uma formulaccedilatildeo
nada usual conforme a qual certo direcionamento de suas intenccedilotildees pode ser entendido em
uma passagem tatildeo emblemaacutetica quanto enigmaacutetica ele escreve
Neste coro a alma olha para a nascente da Vida tambeacutem nascente do Intelecto iniacutecio
do Ser fonte do Bem raiz da Alma Natildeo que eles tenham sido despejados do Supremo
menosprezando-os como se fosse uma massa Nisto aquilo que emana seria pereciacutevel
mas eles satildeo eternos eles nasce de um princiacutepio eterno que produz deles sua
fragmentaccedilatildeo mas em virtude de sua identidade inata portanto eles se manteacutem muito
firmes conto o sol brilhe contanto haveraacute luz
()
Aqueles para os quais toda esta experiecircncia eacute estranha podem entende-la como nossos
anseios terrenos e a alegria que temos ao ganhar o que mais desejamos ndash lembrando
sempre que aqui o que noacutes amamos eacute pereciacutevel doloroso que nosso amor eacute mimeacutetico
e se afasta porque foi tudo um engano nosso bem natildeo estava laacute isto natildeo era o que
procuraacutevamos Haacute apenas o verdadeiro amor onde haacute uniatildeo natildeo segurando isto com
algum tipo de abraccedilo carnal mas possuindo na totalidade sua veracidade Todos
aqueles que viram sabem o que tenho em mente a alma toma outra vida quando se
aproxima de Deus assim restaurada sente que o distribuidor da verdadeira vida estaacute
laacute para ver que agora natildeo temos nada para procurar senatildeo aquilo que precisamos
deixar de lado e deixar assim sozinho assim vindouro assim soacute tudo o que o ambiente
terreno aniquilou na pressa de ser livre impaciente em relaccedilatildeo a qualquer laccedilo que
nos sustenta na base para que com todo nosso ser possamos agarrar-nos sobre isto
quando natildeo sobra nada em noacutes senatildeo aquilo pelo qual tocamos em Deus (ID IBID
623 VI 9 9)
79
As palavras de Plotino ressoam como uma conduta que eacute antes como postura que doutrina O
uso termo ldquoamorrdquo denota claramente uma experiecircncia irregulaacutevel uma tensatildeo entre ausecircncia e
presenccedila preenchimento e falta ndash sem embargo um misteacuterio
O misteacuterio que indicado por Plotino se configura como o guia para a visatildeo que permite
descortinar o sentido pensamento filosoacutefico Um misteacuterio que segue a mesma regra de Platatildeo e
do platonismo onde ldquoNada eacute divulgado para os natildeo-iniciadosrdquo (ID IBID 624 VI 9 11) e do
qual natildeo se pode simplesmente exibir uma estoacuteria ordinaacuteria ldquoCoisas aqui satildeo sinaisrdquo (ID IBID)
adverte Plotino Sinais para aqueles que entram em solo sagrado e tornam real a visatildeo do
inacessiacutevel Ele esclarece ainda ldquoQuando a alma comeccedila novamente a se colocar natildeo se torna
outra mas si mesma assim desprendida natildeo eacute nada senatildeo si mesma auto-reunida natildeo eacute mais
da ordem do ser estaacute no Supremordquo (ID IBID) O desprendimento e a supressatildeo a visatildeo do uno
e o movimento de uniatildeo encaminham para o ldquotodo-transcendenterdquo que jaacute natildeo mais estaacute no niacutevel
daquilo que eacute do ente mesmo do ser mas em uma esfera para aleacutem de todas as coisas que satildeo
e que natildeo satildeo A culminaccedilatildeo do pensamento henoloacutegico de Plotino como uma ldquomiacutestica da
unidaderdquo eacute o berccedilo do neoplatonismo e necessariamente o iniacutecio de sua radicalizaccedilatildeo
Neste fluxo considera-se que existam dois momentos fundamentais do desdobramento
do neoplatonismo a partir da henologia plotiniana quais sejam a teologizaccedilatildeo da henologia
desenvolvida por Proclo e a teologia negativa do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita Em ambos eacute
possiacutevel observar como o caminho da negatividade se configura partir de uma profunda
introspecccedilatildeo de temas que tendem agrave dissoluccedilatildeo do conhecimento ateacute entatildeo concebido
estruturado e instaurado ndash e ainda agrave subversatildeo completa de seus meios de expressatildeo e
significaccedilatildeo isto eacute agrave supressatildeo do saber e do dizer Eles natildeo representam meramente o ldquopasso
adianterdquo como se houvessem ainda superado o discurso antecessor mas antes o ldquopasso atraacutesrdquo
enquanto retorno agraves bases e aos princiacutepios por meio da reivindicaccedilatildeo da atitude desvelada pela
miacutestica onde o misteacuterio natildeo eacute o problema a ser desvendado mas o elemento a ser incorporado
80
O obra de Proclo eacute composta por diversos comentaacuterios aos diaacutelogos de Platatildeo dentre os
quais ao Timeu ao Parmecircnides ao Alcebiacuteades agrave Repuacuteblica entre outros aleacutem de escritos
sistemaacuteticos como os Elementos de Teologia e a Teologia Platocircnica Existem ainda obras que
abordam temas de matemaacutetica astronomia arte magia e tratados propedecircuticos sobre doutrinas
filosoacuteficas Especialmente em relaccedilatildeo agraves contribuiccedilatildeo em torno agrave henologia duas obras satildeo de
suma importacircncia o Comentaacuterio ao Parmecircnides de Platatildeo e os Elementos de Teologia
A leitura de Proclo do Parmecircnides de Platatildeo eacute considerada uma das mais sistemaacuteticas e
originais que teria sobrevivido agraves vicissitudes dos tempos Ademais guardaria ainda um apelo
ao resguardo da filosofia de Platatildeo bem como uma preparaccedilatildeo para um projeto de resgate da
vitalidade do paganismo por meio de um platonismo revigorado 31 Decorreria disto uma
profunda incursatildeo na filosofia como teologia que culminaria em seus Elementos Ainda no
Comentaacuterio Proclo descreve o percurso de Platatildeo em relaccedilatildeo agrave Parmecircnides e manifesta uma
linha argumentativa similar a Plotino
Mas caso se queira chegar o mais proacuteximo da verdade deve-se seguir a linha de nosso
Mestre que Parmecircnides inicia desde o Uno (Ser) (para a proposiccedilatildeo ldquose haacute um unordquo
jaacute que conteacutem aleacutem do ldquoUnordquo o conceito de existecircncia pertence a este tipo de coisas)
ascendendo do Uno Ser para o Uno assim demonstrando que o Uno em sentido estrito
deseja apenas isto ser One e ldquoarrebatar-se para longerdquo do Ser e o Uno Ser eacute
secundaacuterio a este pela razatildeo de sua descendecircncia em direccedilatildeo ao Ser ao passo que o
Uno mesmo eacute superior mesmo agrave designaccedilatildeo ldquoeacuterdquo e a hipoacutetese ldquose haacuterdquo assim que
adicionamos eacute o Uno no sentido estrito natildeo mais permanece (PROCLUS 1987 379-380
In Parm 1033)
31 Estas consideraccedilotildees satildeo de Ciacutecero Cunha Bezerra em Algumas consideraccedilotildees sobre leitura procleana do
Parmecircnides de Platatildeo (2004) Neste artigo ele ainda sustenta em consonacircncia com H D Saffrey (Proclus
diadoque de Platon 1990) que Proclo entra na linha de inteacuterpretes de Platatildeo que entendem sua filosofia como
revelaccedilatildeo de uma verdade divina estruturada a partir do uno filiando Platatildeo aos teoacutelogos gregos (cf BEZERRA 2004
99-100)
81
Proclo apresentaraacute na sequecircncia a impossibilidade de ldquohipotetizarrdquo o uno cindindo de um lado
hipoacutetese-condicionada e de outro anti-hipoacutetese-incondicionada O problema que estaacute sendo
colocado parte da ideia de que natildeo se pode pensar a multiplicidade isolada senatildeo somente por
meio da concepccedilatildeo de uma unificaccedilatildeo Para aleacutem da estrutura binaacuteria uno-muacuteltiplo deve-se
considerar a unificaccedilatildeo como consequecircncia necessaacuteria dando origem agrave formulaccedilatildeo ldquouno-
unificado-muacuteltiplordquo para explicar como eacute simplesmente possiacutevel que hajam elementos pelos
quais outros se unificam32
O resultado da formulaccedilatildeo de Proclo parece ser a absolutizaccedilatildeo do uno e sua
identificaccedilatildeo com Deus algo sobremaneira evidente na proposiccedilatildeo de seus Elementos que diz
ldquoTodo intelecto divino eacute uniforme ou possui a forma do Uno e eacute perfeito E o primeiro intelecto
subsiste por si mesmo e produz outros intelectosrdquo (IDEM 1998 86 Elem Theo Prop CLX)
Proclo argumenta ainda que se haacute um Deus ele eacute preenchido de unidades divinas e eacute uniforme
sendo ainda perfeito e cheio da bondade divina havendo um Deus primeiro que provecirc as
hipoacutestases para outros intelectos
Este eacute precisamente o ponto que seraacute aprofundado pelo Pseudo-Dioniacutesio Areopagita em
sua teologia negativa Tanto em Proclo quanto no Pseudo-Dioniacutesio o divino habita a
compreensatildeo filosoacutefica da realidade como incorporaccedilatildeo do misteacuterio seguindo ainda a esteira
da muacutetua reciprocidade entre filosofia e religiatildeo demanda por Plotino desde o iniacutecio Pseudo-
Dioniacutesio coroa a radicalizaccedilatildeo do uno e sua identidade com o Deus primeiro apresentado como
supraessencial (ὑπερούσιε) suprabondoso (ὑπεράγαθε) e mesmo supradivino (ὑπερθεε) razatildeo
pela qual ele demanda que ldquo() em absoluta renuacutencia de si mesmo e de todas as coisas deveraacutes
na pureza deixar todas as coisas de lado liberando-se de tudo e sendo assim levado para cima
para o Raio da Divina Treva que excede toda existecircnciardquo (DIONYSIUS THE AREOPAGITE 1920 192)
32 Esta passagem eacute cuidadosamente explicada por Giuseppe Girgenti que esclarece que ldquoO ponto culminante do
primeiro grupo de teoremas eacute o alargamento da hierarquia de quatro termos uma vez que o raciociacutenio de Proclo
levou a distinguir o intermediaacuterio entre o proacuteprio Uno e o unificado ou seja elementos que compotildeem o unificada
as primeiras unidades do natildeo-unificado ou a henadirdquo (GIRGENTI 2009 113-114)
82
Discursar acerca da inefabilidade impotildee no Pseudo-Dioniacutesio uma superaccedilatildeo da proacutepria
linguagem que se revela agora como uma construccedilatildeo liberta de qualquer fronteira e acima de
qualquer paradoxo onde negaccedilatildeo (ἀπόφασις) e afirmaccedilatildeo (κατσφάσις) comungam de igual
valor e sentido em uma mesma e uacutenica esfera A primazia propriamente apofaacutetica que toma
conta da fala do Pseudo-Dioniacutesio ganha forccedila quando supera toda definiccedilatildeo conceitual e
identifica Deus como nada daquilo que eacute
Uma vez mais indo ainda mais alto mantemos que Ele natildeo eacute alma ou mente ou
concebido pela faculdade da imaginaccedilatildeo conjuntura razatildeo ou entendimento nem eacute
nenhum ato de razatildeo ou compreensatildeo nem pode ser descrito pela razatildeo ou percebido
pelo entendimento jaacute que natildeo eacute nuacutemero ou ordem ou magnificecircncia ou pequenez
ou igualdade ou desigualdade e jaacute que natildeo estaacute inerte nem em movimento ou em
descanso e natildeo possui poder e natildeo eacute poder nem luz e natildeo vive e natildeo eacute vida nem eacute
essecircncia pessoal ou eternidade ou tempo nem pode ser apreendido pelo
entendimento jaacute que natildeo eacute nem conhecimento nem verdade nem eacute reinado ou
sabedoria nem eacute uno nem unidade nem deidade ou bondade natildeo eacute um espiacuterito como
se entende o termo jaacute que natildeo eacute Filho nem Pai nem eacute nenhuma outra coisa tal como
noacutes ou qualquer outro ente do qual se possa ter conhecimento nem pertence a
categoria de natildeo-existecircncia ou de existecircncia nem os entes existentes o conhecem
como realmente eacute nem Ele os conhece como realmente satildeo nem a razatildeo pode o
atingir nomear ou conhecer nem eacute escuridatildeo nem eacute luz ou erro ou verdade nem
nenhuma afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo pode ser aplicada porquanto aplicar afirmaccedilotildees e
negaccedilotildees natildeo se aproximam Dele noacutes natildeo aplicamos nem negaccedilatildeo nem afirmaccedilatildeo
enquanto transcende toda afirmaccedilatildeo por ser perfeita e uacutenica Causa dos seres e
transcende toda negaccedilatildeo pela preeminecircncia de sua livre natureza simples e absoluta
de qualquer limitaccedilatildeo e para aleacutem de tudo (DIONYSIUS THE AREOPAGITE 1920 200-201)
83
Seria justo afirmar que esta densa passagem da Teologia Miacutestica eacute muito mais proacutexima de uma
declaraccedilatildeo de amor do que uma articulaccedilatildeo filosoacutefica (e caberia aiacute perguntar se haacute enfim
alguma diferenccedila entre uma coisa e outra) Pseudo-Dioniacutesio natildeo apenas promove um
movimento de negaccedilatildeo em direccedilatildeo agrave toda afirmaccedilatildeo mas ainda rumo agrave proacutepria negaccedilatildeo Neste
sentido a definiccedilatildeo mais justa conforme a qual se utiliza aqui o termo negatividade seguiria
com precisatildeo os termos do Pseudo-Dioniacutesio entendendo que o caminho negativo estaacute mais
aleacutem de toda afirmaccedilatildeo e mesmo de toda negaccedilatildeo Esta eacute ainda a via para entender o que pode
ser nomeado como meontologia um percurso intelectual que apoiado pela henologia
neoplatocircnica natildeo se fundamenta mais no ente mas antes no natildeo-ente (μή ὄν) ou mesmo no
nada
As consequecircncias da henologia neoplatocircnica de Plotino e Proclo e da meontologia
miacutestica do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita natildeo passaratildeo incoacutelumes pelos seacuteculos que se seguiriam
agrave composiccedilatildeo dos escritos aqui conjurados Contudo algumas recepccedilotildees bastante acuradas e
inspiradas criativas e bem desenvolvidas ocupar-se-iam de resgatar o sentido do pensamento
negativo e desdobrar a profundidade do problema Eacute possiacutevel citar algumas dezenas de filoacutesofos
que se dedicaram ao diaacutelogo com o neoplatonismo e a teologia negativa Aqui gostaria de
encerrar este capiacutetulo direcionando-o para uma interlocuccedilatildeo especial e ao meu ver central para
a difusatildeo da negatividade na filosofia medieval moderna e contemporacircnea Tenho em mente
Joatildeo o Escoto chamado Eriuacutegena
Eriuacutegena ocupou um lugar de destaque nas altercaccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas durante
o chamado Renascimento Caroliacutengio sendo-lhe atribuiacutedas tarefas como a traduccedilatildeo do grego
para o latim das obras do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita bem como explanaccedilotildees em torno agrave
contenda da divina predestinaccedilatildeo e agraves interpretaccedilotildees e exegeses suscitadas pela disputa erguida
pela cultura biacuteblica do periacuteodo33
33 Para especificaccedilotildees em torno a Eriuacutegena e seu tempo confira CONTRENI 1996 e MCNAMARA 1996
84
A presenccedila do neoplatonismo em Eriuacutegena parece se posicionar de maneira estrateacutegica
ao longo dos movimentos por ele realizados em sua magna obra o Periphyseon Natildeo se pode
perder de vista as possiacuteveis definiccedilotildees do neoplatonismo natildeo apenas dentro de suas esferas
relacionais e a partir das tendecircncias de leitura mas ainda por meio da questatildeo fundamental que
problematiza todo conteuacutedo qual seja como o uno se relaciona com o muacuteltiplo ou ainda como
o que eacute primeiro se relaciona com o que eacute posterior Oscar Federico Bauchwitz sustenta que
ldquo() a questatildeo pela antonomaacutesia do neoplatonismo enquanto uma reflexatildeo acerca da relaccedilatildeo
entre o Criador e a criatura entre o Uno e a multiplicidade pode ser enfocada na obra de
Eriuacutegena no que diz respeito a creatio ex nihilo e ao sentido original que eacute determinado ao
termo nihilrdquo (BAUCHWITZ 2001 11) Assumindo esta hipoacutetese como vaacutelida torna-se
imprescindiacutevel compreender o lugar que tal questatildeo ocupa na obra eriugeneana e como ela se
desenvolve
Conforme os apontamentos de Bauchwitz o ldquonadardquo se apresenta pela primeira vez jaacute
no iniacutecio do Periphyseon ao serem articulados os modos da diferenccedila fundamental da divisatildeo
da natureza (φύσις natura) definida como tudo aquilo que eacute e que natildeo eacute (quae sunt et quae non
sunt) sendo dividida em quatro espeacutecies ldquo() primeiro naquilo que cria e natildeo eacute criado segundo
naquilo que eacute criado e tambeacutem cria terceiro naquilo que eacute criado e natildeo cria enquanto o quarto
nem cria nem eacute criadordquo (ERIVGENAE 1999 37 441ordf) O que eacute pode ser percebido apreendido e
conhecido O que natildeo eacute todavia natildeo se pode perceber apreender ou conhecer (cognoscitur non
quid est sed quia est) De acordo com Bauchwitz o termo quid est (ldquoo que eacuterdquo) diz respeito agrave
essecircncia de tudo que permanece incompreensiacutevel e infinito ao passo que quia est (ldquoque eacuterdquo)
indica a existecircncia da essecircncia divina ou seja seus efeitos como algo determinado e que eacute O
incompreensiacutevel da natureza divina Eriuacutegena deixa ver quando escreve ldquoPortanto se eacute por
causa de sua excelecircncia inefaacutevel e incompreensiacutevel infinitude que a Natureza Divina eacute dita natildeo
ser disto se segue que ela eacute nada ()rdquo (IDEM 2005 61 634C)
85
A impossibilidade de compreender a natureza divina eacute o que permite a Eriuacutegena
descortinar seu entendimento acerca da creatio ex nihilo Bauchwitz escreve sobre este ponto
ldquoA questatildeo se origina eacute que se a diferenccedila fundamental abarca a totalidade da natureza o que
se poderia predicar de Deus Isto eacute o que haacute para mais aleacutem do ser e do natildeo ser senatildeo o Nada
desde o qual Deus cria todas as coisasrdquo (BAUCHWITZ OP CIT 12) O problema eacute apresentado por
Eriuacutegena a partir da busca pelo sentido conforme o qual se questiona de que maneira eacute possiacutevel
compreender como todas as coisas que satildeo se originam do nada (ou nos termos do
neoplatonismo pagatildeo a mesma questatildeo de ldquocomo do uno se origina a multiplicidade) Eacute
possiacutevel interpretar esta passagem alegando que Eriuacutegena se refere ao nihilo em perfeita
sintonia com toda doutrina Cristatilde da criaccedilatildeo como de fato faz sentido afirmar Contudo
Eriuacutegena vislumbra o que considera ldquoa verdadeira essecircncia da natureza divinardquo O Criador que
cria todas as coisas que satildeo criadas insere-se naquela parte da divisatildeo da natureza na qual ldquocria
mas natildeo eacute criadordquo enquanto sua ldquoessecircnciardquo reflete aquilo que ldquonatildeo eacute nem criado nem criardquo
Em outros temos indica-se que nada eacute a natureza divina de Deus ou ainda que natildeo-ser
corresponde agrave divindade
Resta ainda resolver o mesmo problema ante ao qual se encontraram Plotino Proclo o
Pseudo-Dioniacutesio entre outros a saber como eacute possiacutevel para Deus desarraigar-se de seu nada
ou desdobrar-se desde si mesmo Bauchwitz oferece uma explicaccedilatildeo quando potildee em relevo o
problema da expressatildeo do paradoxo
() por meio da criatura eacute Deus quem se manifesta e portanto todas as criaturas
podem ser entendidas como certas apariccedilotildees divinas isto eacute teofania Neste sentido a
teofania nomeia o paradoxo da ineffabilis difusio que diz que o infinito devem finito
que o incompreensiacutevel devem compreensiacutevel que o silecircncio clama (BAUCHWITZ 2003ordf
57)
86
Em Eriuacutegena eacute possiacutevel acompanhar o sentido da explicaccedilatildeo de Bauchwitz na passagem que
diz
Tudo o que eacute entendido e sentido nada mais eacute senatildeo apariccedilatildeo do que natildeo eacute aparente
a manifestaccedilatildeo do oculto afirmaccedilatildeo da negaccedilatildeo compreensatildeo do incompreensiacutevel [a
expressatildeo do inexpressiacutevel o acesso ao inacessiacutevel] o intelecccedilatildeo do ininteligiacutevel o
corpo do incorpoacutereo a essecircncia do supraessencial a forma do informado a medida
do incomensuraacutevel o nuacutemero do inumeraacutevel o peso do impensaacutevel a materializaccedilatildeo
do espiritual a visibilidade do invisiacutevel o lugar do natildeo-lugar o tempo do natildeo-tempo
a definiccedilatildeo do infinito a circunscriccedilatildeo do incircunscrito e as outras coisas que satildeo
ambas consideradas e percebidas pelo intelecto sozinho e natildeo podem se restringir
dentro de recessos da memoacuteria e nas quais escapa agrave destreza da mente (ERIVGENAE OP
CIT 59 633BC)
A despeito da possibilidade de sintonia com a doutrina Cristatilde da criaccedilatildeo (especificamente o
sentido moralizante da gecircnese) natildeo haacute forccedila catequeacutetica senatildeo puramente especulativa na
maneira pela qual Eriuacutegena aborda a questatildeo O acesso ao sagrado aparece antes como uma
atitude fundamental na qual se insiste no misteacuterio da nadidade do divino
O resultado do caminho meditativo de Eriuacutegena eacute uma postura na qual o pensamento
natildeo responde apenas agraves demandas imediatas agraves preocupaccedilotildees que sanem os conflitos
existenciais e sociais mas uma intelecccedilatildeo cujo grau de alcance atinge toda mensurabilidade e
incomensurabilidade da estruturaccedilatildeo do real como internalizaccedilatildeo do segredo oculto e dos
misteacuterios da natureza Parece ser neste sentido que Bauchwitz sugere uma eacutetica do silecircncio
onde ldquo() natildeo basta enunciar o princiacutepio que deve reger as accedilotildees do ser humano () O silecircncio
como destino a ser alcanccedilado soacute tem sentido na medida em que nomeia a incessante e natural
disposiccedilatildeo do proacuteprio homem em dirigir-se a elerdquo (BAUCHWTZ OP CIT 12) Antes de resolver
qualquer problema assume-se o respeito para com a profundeza do incocircndito
87
Durante a introduccedilatildeo desta tese referi-me a um outro escrito de Bauchwitz Nihilismo
e Neoplatonismo assumindo que aquele artigo havia sido responsaacutevel por traccedilar uma direccedilatildeo
ou mesmo proporcionar um estiacutemulo ao desenvolvimento deste trabalho Gostaria de retornar
agravequele artigo uma vez mais para encerrar esta seccedilatildeo com definiccedilotildees mais precisas a respeito da
henologia e da meontologia como ultrapassagem dos limites da metafiacutesica
O capiacutetulo anterior evidenciou que com a ontologia ou a substantivaccedilatildeo do pensamento
ocidental por meio da confusatildeo entre ser e ente perdeu-se natildeo a capacidade intelectual do ser
humano mas o atino para o seu fundamento Em razatildeo da urgecircncia de respostas abandonou-se
tudo aquilo que era por princiacutepio incoacutegnito inefaacutevel inexprimiacutevel Como havia dito na
introduccedilatildeo com o apoio do trabalho de Bauchwitz a consumaccedilatildeo deste movimento eacute anunciado
por meio de um diagnoacutestico do niilismo Neste sentido Bauchwitz escreve
A relaccedilatildeo entre Nihilismo e Neoplatonismo que aponta para uma eacutetica aleacutem dos
limites da temporalidade e de crenccedilas religiosas ainda estaacute para ser esclarecida Uma
tal eacutetica somente poderaacute ser realmente quando cumpridas umas exigecircncias que neste
trabalho foram apenas assinaladas a superaccedilatildeo da vontade e em consequecircncia da
proacutepria liberdade soacute pode ser interpretada em uma perspectiva que jaacute natildeo se encontra
nos limites da ontologia tradicional ou no dizer de Heidegger no acircmbito da metafiacutesica
O sem-propoacutesito de uma tal eacutetica que abnega qualquer visatildeo utilitarista e
simplesmente dada do mundo exige pensar a partir de novas fundamentaccedilotildees e
valores o retorno do divino eacute uma metaacutefora que atende a tais exigecircncias na medida
em que ao tempo que nos abre uma concepccedilatildeo totalmente outra daquele que ancora
os principais valores vigentes questiona pelos conceitos fundamentais que
homologaram esses valores como superiores porque quantificaacuteveis A ausecircncia de
referecircncias fixadas pelos padrotildees contemporacircneos que mensuram o bem-estar de cada
indiviacuteduo e o resgate de uma vivecircncia que se justifica nela mesma e natildeo pelas suas
finalidades devem servir de origem para superar a ldquonoite do mundordquo (BAUCHWITZ OP
CIT 179-180)
88
Em primeiro lugar eacute importante destacar que a falta de esclarecimento da ldquoeacutetica aleacutem dos
limitesrdquo ou como prefiro colocar aqui ldquopara aleacutem das fronteirasrdquo natildeo soacute natildeo estaacute clara como
assim deve permanecer caso queira responder agrave exigecircncia de absorver a negatividade que
tambeacutem faz parte da humanidade do humano mas que foi todavia afasta de sua visatildeo da
realidade Por este motivo utiliza-se aqui o termo conflito das fronteiras para indicar natildeo uma
resoluccedilatildeo de problemas mas a assunccedilatildeo de um confronto Sendo assim a ultrapassagem de
limites deve se dar apenas no que tange agrave possibilidade de abrir o pensamento para aleacutem da
metafiacutesica tradicional Explorar o que haacute de propriamente fraco o que natildeo se sustenta o que
natildeo pode ser
A temaacutetica poderia ser encerrada aqui Seria possiacutevel retornar ao neoplatonismo com
ainda mais cautela e extrair de laacute mesmo os elementos para subverter toda sorte de ordenamento
que lanccedila o ser humano na ldquonoite do mundordquo Contudo meu interesse aqui eacute explorar mais um
momento da histoacuteria da filosofia e se possiacutevel encontrar um ponto de apoio para reunir a
tradiccedilatildeo metafiacutesica e o neoplatonismo em um uacutenico problema Minhas hipoacutetese conforme seraacute
desenvolvida no terceiro e uacuteltimo capiacutetulo eacute encontrar uma orientaccedilatildeo Orientaccedilatildeo extrema
Ali no Extremo Oriente
89
3 O EXTREMO ORIENTE E O CONFLITO DAS FRONTEIRAS A FILOSOFIA COMPARADA INTERCULTURAL
COMO CHAVE DE LEITURA PARA ALGUNS PROBLEMAS DO PENSAMENTO CONTEMPORAcircNEO
O ambiente acadecircmico britacircnico do final da deacutecada de 1970 foi palco de uma fervorosa disputa
acerca das interpretaccedilotildees e definiccedilotildees culturais entre Ocidente e Oriente A publicaccedilatildeo do livro
Orientalism (1978) de Edward Wadie Said (ع إدوارد Idwārd Wadīʿ Saʿīd) fomentou ديعس ودي
uma inesgotaacutevel discussatildeo acerca de qualquer suposta correspondecircncia deste ou daquele
elemento nos princiacutepios da tradiccedilatildeo oriental sustentando em termos bem simples que o
Oriente era antes uma invenccedilatildeo convencional Said sofreu diversas criacuteticas algumas mais
significativas outras menos Uma de suas consideraccedilotildees mais discutidas afirma que ldquo() o
Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente) como sua imagem ideacuteia personalidade e
experiecircncia de contraste Contudo nada desse Oriente eacute meramente imaginativordquo (SAID 1990
13-14) acrescentando ainda de forma incisiva que ldquoO Oriente expressa e representa esse
papel cultural e ateacute mesmo ideologicamente como um modo de discurso com o apoio de
instituiccedilotildees vocabulaacuterio erudiccedilatildeo imagiacutestica doutrina e ateacute burocracias e estilos coloniaisrdquo
(IDEM IBIDEM 14) Said defendeu que o Oriente tal qual eacute conhecido pelo mundo ocidental natildeo
corresponde agrave proveniecircncia originaacuteria de suas tradiccedilotildees mas eacute antes uma estrateacutegia (poliacutetica e
econocircmica) de manutenccedilatildeo geograacutefica Toda designaccedilatildeo acadecircmica de qualquer orientalismo
ateacute entatildeo desenvolvido estaria entatildeo equivocada apoiada em pressupostos que natildeo condizem
com a tradiccedilatildeo oriental Sem embargo o mesmo poderia ser dito a respeito da introspecccedilatildeo do
mundo grego pelo mundo romano-latino e no decorrer da histoacuteria da humanidade eacute possiacutevel
ainda identificar outras centenas de casos semelhantes ateacute o ponto no qual se afirma a
globalizaccedilatildeo por meio da modernizaccedilatildeo de todos os recantos do planeta dentro do iacutempeto de
igualar todas as culturas em um niacutevel comum
90
Entretanto apesar de ser possiacutevel interpretar as assertivas de Said de forma mais
ponderada aproveitando com isto certo direcionamento fatalista embora natildeo necessariamente
inveriacutedico de sua investigaccedilatildeo algumas gafes de sua compreensatildeo da histoacuteria se revelam
bastante perturbadoras Um dos principais criacuteticos de Said Robert Irwin publicou uma obra
onde ampla parte eacute dedicada agrave refutaccedilatildeo direta dos principais argumentos de Said Em For the
Lust of Knowning (2006) Irwin destaca algumas inverdades de Said e contrargumenta de
maneira precisa certas falaacutecias Contudo Irwin eacute tambeacutem bastante emotivo em sua abordagem
ele escreve ldquoPara pocircr minhas cartas na mesa jaacute de iniacutecio a meu ver aquele livro [Orientalism]
eacute uma obra de uma impostura maleacutevola na qual eacute difiacutecil distinguir erros verdadeiros de
falsidades propositadasrdquo (IRWIN 2006 11) Irwin ataca principalmente os erros fatuais de Said
apontando para lacunas na fundamentaccedilatildeo da obra Orientalism34 destacando vaacuterios enganos e
afirmando em siacutentese ldquoPois se eacute possiacutevel apresentar uma imagem falsa do orientalismo do
cristianismo e do imperialismo britacircnico natildeo seria tatildeo obviamente errado apresentar de modo
semelhante uma falsa imagem do islatilde da histoacuteria aacuterabe ou da difiacutecil situaccedilatildeo dos palestinosrdquo
(IDEM IBIDEM 330-331) fazendo referecircncia agraves posiccedilotildees por Said defendidas Em suma Irwin daacute
a entender nas entrelinhas que a politizaccedilatildeo de um criacutetico literaacuterio no caso Said tornou a obra
Orientalism um intento mal construiacutedo como ferramenta para sustentaccedilatildeo de posiccedilotildees poliacuteticas
condenando todo seacuterio estudo que envolve o orientalismo Ateacute entatildeo muitos outros
pesquisadores e eruditos atacaram Said bem como tantos outros o admiravam e o defenderam
Todavia com a apresentaccedilatildeo desta disputa quero aqui destacar um fator iacutempar que natildeo
necessariamente se prende agrave contenda mas que encobre o toacutepico de modo geral
34 Irwin destaca alguns erros ldquoOrientalismo daacute a impressatildeo de um livro escrito agraves pressas Eacute repetitivo e conteacutem
muitos erros factuais Said menciona lsquoPedro o Veneraacutevel e outros orientalistas cluniacensesrsquo Que outros
orientalistas cluniacenses Seria interessante conhecer seus nomes (Mas naturalmente a ideia de que houvesse toda
uma escola de orientalistas cluniacenses eacute absurda Pedro o Veneraacutevel trabalhou sozinho) Como Bernard Lewis
ressaltou Said faz com que exeacutercitos muccedilulmanos conquistem a Turquia antes de conquistarem o norte da Aacutefrica
Isso realmente sugere uma ignoracircncia espantosa da histoacuteria do Oriente Meacutedio da mesma forma que sua crenccedila
quanto a terem a Gratilde-Bretanha e a Franccedila dominado a regiatildeo oriental do Mediterracircneo a partir do final do seacuteculo
XVIIrdquo (IRWIN 2006 329)
91
Com a discussatildeo entre os orientalistas e seus inimigos o importante eacute destacar natildeo
apenas as dificuldades que envolvem todo e qualquer estudo comparado entre Ocidente e
Oriente mas o fato de que eacute da natureza do proacuteprio estudo comparado que haja divergecircncias
A divergecircncia e o erro satildeo de fato disposiccedilotildees naturais dos estudos comparados sem os quais
natildeo seria possiacutevel sequer dar iniacutecio agrave discussatildeo ou desenvolver qualquer linha de raciociacutenio
preparatoacuteria Soacute eacute possiacutevel falar em estudos comparados porque houve de antematildeo a percepccedilatildeo
de uma divergecircncia Mais ainda a necessidade do momento e os acasos eventuais direcionam
os estudiosos para um ou para outro lado Assim como Said saiu em defesa da Palestina durante
um periacuteodo no qual os conflitos haviam se asseverado em decorrecircncia da expulsatildeo das forccedilas
de paz das Naccedilotildees Unidas em 1967 tambeacutem outros pensadores em outros momentos da histoacuteria
foram motivados por acontecimentos histoacutericos sejam eles de guerra ou de paz poliacuteticos
econocircmicos ou religiosos Como por exemplo as diversas manifestaccedilotildees de revolta e
indignaccedilatildeo de Theodor Wiesengrund Adorno e Gershom Scholem apoacutes Auschwitz ou as
anaacutelises polecircmicas de Slavoj Žižek das revoltas do subuacuterbio de Londres e da Primavera Aacuterabe
Contudo algumas deacutecadas antes da publicaccedilatildeo da obra de Said precisamente durante a
deacutecada de 1950 o Departamento de Filosofia da University of Hawairsquoi at Mānoa havia
alavancado uma seacuterie de trabalhos a respeito dos fundamentos e procedimentos dos estudos
comparados Eacute preciso considerar que proacuteprio departamento jaacute havia sido estruturado entre
1930 e 1940 com o objetivo de suprir a lacuna que havia a respeito dos estudos comparados na
filosofia A primeira East-West Philosophers Conferece em 1939 ditou o tom pelo qual se
tornaria possiacutevel falar abertamente alguns anos mais tarde de uma filosofia comparada
intercultural Ali natildeo escapou a ideia de que foi justamente por meio do ldquoerrordquo que se
estabelecia o diaacutelogo entre fronteiras Em outras palavras este diaacutelogo nascia jaacute sempre de um
conflito das fronteiras A hipoacutetese de consenso eacute explorada neste sentido apenas mediante a
assunccedilatildeo de certa ignoracircncia parcial e sopesando ainda as variaccedilotildees de interpretaccedilatildeo
92
O rigor filosoacutefico que direcionou as primeiras tentativas da filosofia comparada em
confrontar as tradiccedilotildees sapienciais ocidentais e orientais permitiu a instauraccedilatildeo de uma postura
cuidadosa e quase mesmo analiacutetica do problema35 Com isto foi possiacutevel comeccedilar a pensar de
que forma elementos do pensamento oriental e da filosofia ocidental poderiam convergir ou
divergir e quais as contribuiccedilotildees que este tipo de comparaccedilatildeo pode trazer aos problemas da
contemporaneidade Todavia como anos mais tarde discutiriam Said Irwin e outros natildeo se
pode desprezar o fato de que nada escapa aos entrelaccedilamentos ldquoirrastreaacuteveisrdquo das relaccedilotildees entre
Ocidente e Oriente Neste sentido embora qualquer comprovaccedilatildeo cientiacutefica empaque frente aos
desafios historiograacuteficos natildeo eacute de todo ingecircnuo especular as influecircncias que por exemplo
Platatildeo teria sofrido da sabedoria primitiva de hinduiacutesta e budistas como sustentam diversos
especialistas36 Ou ainda da indagaccedilatildeo acerca de ateacute que ponto o Aristoacuteteles que conhecemos
natildeo foi orientalizado por Al-Farabi (صر ون ن محمس اب ی محمس ب اراب Abū Naṣr Muḥammad ibn ف
Muḥammad Fārābī) Avicena (ن نا اب ع د ou و لی اب نا ع ع د Pūr Sinɑʼ ou ainda ور نا پ ع د Pur-
e Sina em aacuterabe و لي أب عن ع س ح ن ال بس ب الله ع ن نا ب ع د Abū ʿAlī al-Ḥusayn ibn ʿAbd Allāh
ibn Al-Hasan ibn Ali ibn Sīnā) entre outros filoacutesofos da tradiccedilatildeo aacuterabe Sem contar os
sincretismos que permearam a filosofia do helenismo tardio em Alexandria onde pagatildeos
judeus cristatildeo e mulccedilumanos travavam interminaacuteveis disputas teoacutericas (e natildeo apenas teoacutericas)
a respeitos dos fundamento filosoacuteficos e teoloacutegicos religiosidade momento no qual fica difiacutecil
empreender uma anaacutelise pormenorizada de quem influenciou quem quando o quanto e como37
35 Charles A Moore ponderou no trabalho Some Problems of Comparative Philosophy (1951) a dificuldade em
posicionar as doutrinas orientais em um grupo homogecircneo como podia ser feito com a ocidentais apontando ainda
para o cuidado em evitar as caracterizaccedilotildees e comparaccedilotildees a partir de tendecircncias mais gerais (cf MOORE 1951 67)
Kwee Swan Liat escreveu ainda em Methods of Comparative Philosophy (1951) que ao menos sete esferas de
aplicaccedilatildeo metodoloacutegica devem ser previamente levadas em consideraccedilatildeo (aproximaccedilatildeo filoloacutegica histoacuterica
comparativa formal-valorativa psicoloacutegica fenomenoloacutegica e socioloacutegica-antropoloacutegica) avaliando uma por
uma e propondo por conseguinte uma oitava aproximaccedilatildeo total-integrativa (cf KWEE SWAN LIAT 1951 10ss) 36 Estas hipoacuteteses satildeo levantadas por Graham Parkes na introduccedilatildeo de Heidegger and Asian Thought (1987) (cf
PARKES 1987 1) 37 Este ponto especiacutefico acerca das contendas do periacuteodo heleniacutestico foram sobremaneira bem expostas por Jean
Pepiacuten no escrito intitulado Heacutelleacutenisme et christianisme no volume de Franccedilois Chacirctelet La Philosophie v 1 De
Platon agrave Saint Thomas Paris Marabout 1995
93
Falar efetivamente de uma filosofia comparada intercultural todavia pressupotildee outra
perspectiva aquela na qual ambas as tradiccedilotildees estatildeo culturalmente niacutetidas e bem delineadas
(ainda que por meio de caracterizaccedilotildees vulgares pouco precisas ou mesmo caricatas) e satildeo
entendidas como exponencialmente distintas Entretanto as mesmas dificuldades permanecem
Com isto quero dizer fica difiacutecil afirmar ateacute que ponto um lado compreendeu o outro de modo
suficiente e satisfatoacuterio sendo possiacutevel indagar ainda se as apropriaccedilotildees natildeo se deram mediante
interpretaccedilotildees equivocadas ou leituras transviadas sobretudo quando natildeo haacute domiacutenio pleno dos
idiomas envolvidos
Estas asseveraccedilotildees tomaram conta de muitos pensadores no decorrer da histoacuteria da
humanidade Ateacute onde eacute possiacutevel investigar dois momentos marcam o iniacutecio da relaccedilatildeo
expliacutecita (e natildeo meramente impliacutecita como no caso dos primeiros filoacutesofos gregos de Platatildeo e
de Aristoacuteteles) entre Ocidente e Oriente na filosofia a apropriaccedilatildeo latina durante a Idade Meacutedia
dos escritos aacuterabes do Oriente Meacutedio38 e a interlocuccedilatildeo e introspecccedilatildeo da tradiccedilatildeo do Extremo
Oriente (sobretudo chinesa em um primeiro momento) na filosofia alematilde dos seacuteculos dezessete
e dezoito Aqui interessa especialmente o diaacutelogo com o Extremo Oriente e como ele natildeo se
encerrou no mero intercacircmbio de tradiccedilotildees fomentando um movimento de reversatildeo no qual os
orientais por sua vez tambeacutem abriram interlocuccedilatildeo direta com o pensamento ocidental
introspectando a filosofia e desenvolvendo ao seu modo formas de reflexatildeo nos mesmos
moldes da estrutura categoacuterica ocidental mas partindo dos princiacutepios orientais ainda que em
certa medida (como se veraacute) tais princiacutepios por vezes comunguem em muitos aspectos de
elementos e direcionamentos comuns aos ocidentais e por vezes natildeo Para isto eacute preciso
investigar brevemente a gecircnese desta relaccedilatildeo e como ela tem iniacutecio
38 Sobre este toacutepico que natildeo seraacute abordado aqui confira W Raven e A Akasoy (eds) Islamic Thought in the
Middle Ages Studies in Text Transmissions and Translations in Honour of Hand Daiber Leiden Brill 2008 D
Calma Eacutetudes sur le premier siegravecle de lrsquoaverroisme latin approches et textes ineacutedits Turnhout Brepols 2010
entre outros
94
A despeito da culminaccedilatildeo das luzes no periacuteodo moderno diversos temas obscuros
perpassaram o seacuteculo dezessete sobretudo aqueles motivados pelas missotildees catequeacuteticas
jesuiacutetas na China que inevitavelmente influenciaram o ambiente intelectual da eacutepoca 39
Independente dos transtornos causados pelos europeus em suas incursotildees tambeacutem na Europa
os problemas apareceram Quando os documentos acerca das tradiccedilotildees chinesas de pensamento
desembarcaram no continente europeu despertaram imediato interesse em diversos estudiosos
Contudo tampouco foi ameno o iniacutecio deste diaacutelogo O caso mais draacutestico se deu em
1723 quando Christian Wolff fugiu de Halle an der Saale em Sachsen-Anhalt na Alemanha
em decorrecircncia de uma seacuterie de perseguiccedilotildees despertadas por um discurso por ele pronunciado
dois anos antes sob o tiacutetulo Oratio de Sinarum philosophia practica (1721) O motivo era
polecircmico e suscetiacutevel de distintas interpretaccedilotildees Wolff afirmara que ldquoA mesma autoridade que
possui os ditos e feitos de Cristo possui tambeacutem Confuacutecio para os chineses Moiseacutes para os
judeus e Mohammed para os turcosrdquo (WOLFF 1985 117) Embora Wolff tenha impressionado
grande parte de seus ouvintes com o teor apaixonado de sua preleccedilatildeo tal comparaccedilatildeo redundou
em acirradas criacuteticas por diversos professores e eruditos que acompanhavam a fala e a
interpretaram como uma espeacutecie de ateiacutesmo mais ou menos mitigado Estas acusaccedilotildees todavia
natildeo eram fruto apenas da sinofilia de Wolff mas advinham jaacute de seu confronto com colegas
pietistas da Universidade de Halle devido agrave inclinaccedilatildeo bastante evidente para um pensamento
racionalista e secular40
39 Sobre as missotildees jesuiacutetas confira Wenzhao Li Die christliche China-Mission im 17 Jahrhundert Stuttgart
Franz Steiner 2000 Acerca do caso especiacutefico do diaacutelogo com a filosofia alematilde confira ainda Antonio Florentino
Neto Von der Interpretation zum Gespraumlch Das chinesische Denken in deutschen Philosophie Saarbruumlcken
SVH 2013 Florentino Neto ainda comenta que as missotildees tiveram iniacutecio ainda no seacuteculo dezesseis tendo
comeccedilado no Japatildeo e soacute entatildeo atingido a China no seacuteculo dezessete (cf FLORENTINO NETO 2009 41) 40 Os interesses de Wolff pela China bem como pelo racionalismo paulatinamente aparecem em seus escritos
desde a influecircncia direta de Leibniz ateacute a leitura dos tratados dos jesuiacutetas a respeito da China Menccedilotildees ao
pensamento chinecircs e o peso da admiraccedilatildeo que nutria por Reneacute Descartes satildeo evidentes em seus trabalhos a partir
de 1721 (cf LACH 1953) A despeito dos interesses de Wolff pelo pensamento chinecircs sobretudo acerca dos temas
morais constata-se que ele considerava o cristianismo moralmente superior e mais bem desenvolvido (cf KANAMORI
1997 302-303)
95
A hipoacutetese de que a natureza comum do ser humano possibilita o discurso intercultural
nasce sobretudo da comunhatildeo entre uma radicalizaccedilatildeo quase miacutestica do racionalismo moderno
e o impacto causado por escritos de ordem semelhante embora com princiacutepios e fundamentos
distintos Aleacutem de Wolff tambeacutem Nicolas Malebranche e Gottfried Leibniz se dedicaram agraves
leituras do material trazido pelos jesuiacutetas no mesmo periacuteodo Malebranche compocircs em 1707 o
escrito Entretien drsquoun Philosophe Chreacutetien et drsquoun Philosophe chinois sur lrsquoexistence et la
nature de Dieu por meio do qual mais tarde aproveitou para se livrar das acusaccedilotildees de ser um
ldquospinozistardquo Malebranche ainda encarou uma acirrada disputa acerca da condenaccedilatildeo do Papa
Clemente XI agraves missotildees jesuiacutetas sustentando posiccedilotildees bastante polecircmicas em seu diaacutelogo
Malebranche levanta em sua obra a questatildeo fundamental acerca da entificaccedilatildeo do deus
cristatildeo instigando a pergunta acerca do infinito que eacute respondida pelo filoacutesofo chinecircs da
seguinte maneira ldquoEstou convencido de que quando penso sobre o infinito estou muito longe
de pensar qualquer coisa Mas entatildeo eu penso em um tal ser individual e determinado Agora
o Deus que vocecircs adoram natildeo eacute assim um ser individual e particularrdquo (MALEBRANCHE 1708
17) As preocupaccedilotildees de Malebranche caminham no sentido de articular ser e ente no problema
da ontologia do cristianismo Quando Leibniz escreve seu Discours sur la theacuteologie naturelle
des Chinois (1716) ele o faz justamente tendo em vista repetidos pedidos de esclarecer pontos
levantados por Malebranche apoacutes o escrito ter sido enviado a ele por Nicholas Reacutemond41
Eacute possiacutevel considerar que Leibniz foi o que se devotou com mais afinco agrave tradiccedilatildeo
chinesa Ele teria se envolvido principalmente com o direcionamento praacutetico da sabedoria
chinesa profundamente norteada pelo propoacutesito de melhorar a si mesmo e agrave sociedade por meio
da noccedilatildeo confucionista de cultivo de si (修身 xiushen) no sentido propriamente moral42
41 Leibniz trocou extensa correspondecircncia com os missionaacuterios jesuiacutetas a respeito da filosofia chinesa aleacutem de
apresentar comentaacuterios pontuais em sua Novissima Sinica (1697) Contudo eacute no Discours que suas ponderaccedilotildees
mais seacuterias e cuidadosas satildeo delineadas e manifestas (cf KANG 2009 6-8) 42 Mais especificaccedilotildees sobre este tema podem ser encontrados em Karyn T Lay Introduccedilatildeo agrave filosofia chinesa
Trad Saulo Alencastre Satildeo Paulo Madras 2009
96
Leibniz escreve em seu discurso ldquoMas quem poderia pensar que houvesse na terra um
povo que superasse os nossos aspectos da vida cultural Se formos iguais nos modos de
produccedilatildeo somo superiores nas ciecircncias teoacutericas mas inferiores na filosofia praacuteticardquo (LEIBNIZ
1979 11) concluindo que ldquo() somos inferiores na aacuterea da eacutetica na poliacutetica e na vida dos
haacutebitos cotidianosrdquo (IDEM IBIDEM) A interpretaccedilatildeo de Leibniz exalta a capacidade dos chineses
em se organizarem e valorarem as tensotildees promovidas pelo campo social com base no cultivo
de si e ainda identificando o ldquosirdquo ao povo em geral Importante eacute ressaltar natildeo apenas desta
breve sentenccedila ilustrativa mas a partir de uma visatildeo mais ampla de suas reflexotildees o profundo
interesse em preencher lacunas a respeito da proveniecircncia intelectual de certos problemas
filosoacuteficos
Anos depois tambeacutem Georg W F Hegel Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche
nutririam interesses pelo Oriente43 Contudo a resposta propriamente oriental a respeito do
intercacircmbio filosoacutefico se daria apenas na virada do seacuteculo dezenove para o seacuteculo vinte Este eacute
o momento no qual a filosofia comparada intercultural comeccedila a ganhar corpo precisamente
com a abertura poliacutetica e intelectual do Japatildeo e o desenvolvimento da chamada Escola de
Filosofia de Kyōto44 Embora natildeo haja tempo nem espaccedilo para abordar de maneira mais
cuidadosa os enlaces teoacutericos e praacuteticos da Escola de Kyōto escrutinando as estruturas de
pensamento de cada um de seus primeiros membros (e ainda de seus membros tardios) gostaria
aqui de destacar alguns aspectos fundamentais direcionados por duas questotildees a primeira
sustentando o porquecirc a filosofia tem iniacutecio propriamente acadecircmico no Extremo Oriente e
precisamente no Japatildeo e a segunda indagando como (ou de que modo) isto acontece Uma
hipoacutetese necessariamente leva agrave outra e isto pode ser facilmente observado
43 Um panorama mais especiacutefico das aproximaccedilotildees pode ser visto em Florentino Neto 2009 44 Em minha dissertaccedilatildeo de mestrado jaacute havia explanado os movimentos histoacutericos que levaram agrave abertura do Japatildeo
e ao surgimento da filosofia japonesa moderna ou contemporacircnea Uma bibliografia mais completa acerca do tema
pode ser extraiacuteda das obras de referecircncia William Beasley The Meiji Restoration (Stanford Stanford UP 1972) e
The Rise of Modern Japan (New York St Matinrsquos Press 1995)
97
Em primeira matildeo sustento que os motivos que proporcionaram o surgimento de uma
ldquoescola filosoacuteficardquo no Japatildeo modernizado estatildeo intimamente ligadas com sua introspecccedilatildeo da
tradiccedilatildeo oriental precedente Em palavras mais simples a maneira pela qual os japoneses
compreenderam e sintetizaram as principais linhas de pensamento orientais (hinduiacutesmo
budismo confucionismo e daoiacutesmo) culminando no chamado budismo zen foi sem embargo
a chave para absorver a filosofia ocidental Em segunda matildeo sustento ainda que a filosofia
japonesa nasce cresce e se estabelece mediante duas perspectivas (justamente os ldquoparadigmasrdquo
anteriormente abordados na tese) metafiacutesica e negatividade em decorrecircncia do florescimento
do zen no Japatildeo Por fim argumento que justamente pelo entrelaccedilamento de metafiacutesica
negatividade e o pensamento do Extremo Oriente que nasce a uacutenica filosofia possiacutevel para o
momento histoacuterico pelo qual passava o Japatildeo e com isto abre-se uma pertinente chave de
leitura para o momento que agora mesmo atravessa a filosofia contemporacircnea
Portanto inicialmente eacute essencial destacar a singularidade do budismo zen em relaccedilatildeo
agraves tradiccedilotildees precedentes Existem muacuteltiplas maneiras pelas quais eacute possiacutevel empreender esta
tarefa Acredito ser plausiacutevel direcionar este toacutepico mediante um problema especiacutefico qual seja
da fundamentaccedilatildeo uacuteltima da realidade a partir da meditaccedilatildeo a respeito da questatildeo da vacuidade
entendida como śūnyatā (शनयता)
A ideia de śūnyatā deriva do budismo indiano primitivo Relatos de reflexotildees em torno
ao problema do fundamento da realidade aparecem (como jaacute havia exposto na introduccedilatildeo desta
tese) desde os cacircnones Pāḷi e satildeo expressos de maneira mais clara e niacutetida no budismo mahāyāna
principalmente no Sūtra do Coraccedilatildeo (Prajntildeāpāramitā Hṛdaya परझञापारनमताहरदय) passando pela escola
mādhyamaka de budismo indiano e ainda nos Versos Fundamentais sobre o Caminho do Meio
(Mūlamadhyamaka-kārikā मलमधयमककाररका) de Nāgārjuna (िागारि) onde foi apresentada de maneira
mais profunda e sistemaacutetica
98
Algumas interpretaccedilotildees do escrito de Nāgārjuna destacam o śūnyatā como constituiccedilatildeo
da totalidade da realidade enfatizando que isto significa uma muacutetua dependecircncia (pratītya-
samutpāda परतीतयसमतपाद) de todas as coisas de todas aquelas que possuiriam existecircncia individual
ou substancial e ateacute da proacutepria ideia de nada o que significa propriamente uma anulaccedilatildeo de
qualquer Ente Supremo ou mesmo qualquer verdade absoluta45
Quando os ensinamentos do budismo indiano chegam agrave China e no Japatildeo alguns
princiacutepios fundamentais satildeo radicalizados por ambas as naccedilotildees Existem vaacuterias hipoacuteteses
conforme as quais eacute possiacutevel indagar os motivos desta radicalizaccedilatildeo Alguns consideram que a
doutrina radical do budismo se deve ao gecircnio do monge Boddidharma embora outros
argumentem que o motivo foi o encontro com o daoiacutesmo e o neoconfucionismo A questatildeo pode
permanecer suspensa sem que isto afete a compreensatildeo das bases e dos caminhos do budismo
zen Ao que concerne propriamente agrave introspecccedilatildeo deste conceito fundamental na filosofia
japonesa contemporacircnea (sem embargo o ponto ao qual quero chegar) existem tambeacutem
inuacutemeras controveacutersias embora haja ainda certos pontos solidamente estabelecidos e
mutuamente consentidos que se pode explorar com o intuito de apresentar o problema
O expoente da Escola de Kyōto que pela primeira vez explorou de maneira sistemaacutetica
a questatildeo e a colocou via uma formulaccedilatildeo filosoacutefica foi Kitarō Nishida (西田 幾多郎) Sua
biografia eacute repleta de elementos que o fariam parecer ou bem um rebelde visionaacuterio ou bem
um precoce e intempestivo intelectual permeado por desacordos com o sistema Sem embargo
muitos pesquisadores descreveram com minuacutecia os percalccedilos de sua biografia Por isto natildeo eacute
de todo liacutecito perder muito tempo aqui descrevendo seu percurso pessoal Gostaria apenas de
atentar para alguns pontos sobremaneira importantes no que tange agrave formaccedilatildeo intelectual de
Nishida
45 Este ponto eacute melhor analisado por Michael Barnhart que considera que de acordo com Nāgārjuna ldquo() natildeo se
pode sustentar nenhuma feacute na realidade ou princiacutepio transcendente nem nenhuma razatildeo humana pode pretender
independecircncia de nenhum tipo ()rdquo (BARNHART 1994 649)
99
Em primeiro lugar Nishida viveu em meio agrave restauraccedilatildeo Meiji (1868-1912) um periacuteodo
que divide a histoacuteria do Japatildeo entre preacute-moderna e moderna no qual a sociedade feudal entra
em decliacutenio e a naccedilatildeo eacute ocidentalizada pela forccedila maior da pressatildeo do Departamento de Estado
Norte-Americano A evidecircncia de que o ensino japonecircs estava defasado frente aos desafios do
novo mundo levou seus governantes a implementarem um sistema educacional semelhante ao
ocidental sendo neste periacuteodo fundadas as primeiras universidades japonesas Nishida
frequentou tais universidades embora tivesse seu proacuteprio percurso intelectual independente
tendo a oportunidade de estudar com Raphael von Koumlber professor russo-alematildeo convidado
para ministrar aulas de filosofia no Japatildeo Com Koumlber Nishida estudou a histoacuteria do
cristianismo (com ecircnfase nas influecircncias do paganismo de Plotino) aleacutem da filosofia criacutetica de
Immanuel Kant e da esteacutetica claacutessica Eacute preciso ponderar ainda que Nishida lia com fluecircncia o
francecircs o alematildeo e o inglecircs tendo acesso integral agraves principais obras da filosofia ocidental Por
outro lado o mesmo estudante dedicado era ainda um pensador radical que encontrou na
tradiccedilatildeo do zen budismo um rumo para suas inquietaccedilotildees
Quando Nishida se aproxima do zen budismo e comeccedila a praticar mediaccedilatildeo o impacto
da destruiccedilatildeo dos meacutetodos convencionais de ensino o afeta largamente ponderando sobretudo
que ele jaacute havia abandonado a escola primaacuteria por desentendimentos com o regime educacional
Um artigo de Lothar Knauth intitulado Life is Tragic The Diary of Nishida Kitaro (1965)
destaca uma passagem do diaacuterio de Nishida onde eacute possiacutevel observar sua postura conforme suas
proacutepria palavras
Faccedila sua proacutepria mente e depois disto natildeo dependa dos outros
Natildeo acredite indiscriminadamente nas palavras das pessoas
Natildeo fale de assuntos que ainda natildeo foram amadurecidos
Natildeo desperdice tempo precioso com fofocas ociosas
A lei da mateacuteria de leitura ler pensar escrever
100
Se vocecirc ainda natildeo terminou de pensar sobre um assunto
natildeo mude para outro
Se vocecirc natildeo terminou de ler um livro ateacute o fim
natildeo pegue outro
Non multa sed multum
Diaacuterio Ano Novo 1897 (NISHIDA apud KNAUTH 1965 337)
O trecho do diaacuterio aponta para um jovem estudioso preocupado com o rigor a tensatildeo
proveniente do impacto surtido pelas leituras Knauth expotildee consecutivamente um outro trecho
do diaacuterio este datado de 1 de julho de 1945 jaacute no final da vida de Nishida que diz
simplesmente ldquoEscurecendo nublado vinte grausrdquo (IDEM IBIDEM) A intenccedilatildeo de Knauth com
isto eacute mostrar a profunda introspecccedilatildeo redundante de um amadurecimento especulativo
proveniente de anos de meditaccedilatildeo Contudo ao que interessa ao propoacutesito do toacutepico vale
salientar que mesmo em um conturbado espiacuterito jovem havia jaacute sempre a necessidade de forccedilar
uma ldquoaquietamentordquo da mente uma busca por um lugar silencioso no qual prevalece a maacutexima
non multa sed multum natildeo muito mas bastante
Entre 1891 e 1897 (a ano da primeira citaccedilatildeo) Nishida praticou incessantemente a
meditaccedilatildeo zen havendo tambeacutem contribuiacutedo para uma revista do secto do Budismo da Terra
Pura Sua transformaccedilatildeo efetiva se daria em 1903 onde uma draacutestica revoluccedilatildeo de seu
entendimento abriria caminho para dar iniacutecio ao seu pensamento efetivo
O homens natildeo podem pensar em morrer natildeo podem ter grandes pensamentos ambos
Kawai e Gordon jaacute disseram isto Tentei pensar em mim mesmo morto aos trinta e um
de dezembro de meu trigeacutesimo quinto ano mas entretanto por mais que tentasse natildeo
podia pensar sobre isto seriamente Natildeo importa o quanto eu pense na morte eu natildeo
consigo me fazer esquecer o mundo (ID IBID 341)
101
Para Knauth este trecho evidencia uma iluminaccedilatildeo por meio da ideia de morte miacutestica e
renascimento O resultado imediato da iluminaccedilatildeo ao contraacuterio do que poderia parecer coerente
aos olhos ocidentais daacute-se na publicaccedilatildeo imediata de um artigo onde Nishida afirma ldquoEu
estava errado em usar o Zen em consideraccedilatildeo ao conhecimento Eu deveria tecirc-lo usado para o
espiacuterito e alma Ateacute eu comeccedilar a sentir pela visatildeo eu natildeo pensarei nem em filosofia nem em
religiatildeordquo (ID IBID 342) Este momento representa uma iluminaccedilatildeo justamente pelo fato de que
haacute sem embargo a assunccedilatildeo de uma correta postura mas com um propoacutesito enganoso ndash a busca
pelo conhecimento havia posto em xeque absolutamente todos os anos dedicados agrave meditaccedilatildeo
era necessaacuterio portanto comeccedilar novamente
Conforme Knauth Nishida iraacute se preparar nos proacuteximos anos para exprimir o potencial
introspectado durante sua iluminaccedilatildeo Trecircs pontos satildeo neste momento fundamentais O
primeiro eacute a leitura profundamente marcante para Nishida de Mestre Eckhart46 O segundo eacute
o falecimento de sua filha Yūko viacutetima de um ataque de bronquite O terceiro (diretamente
ligado ao segundo) eacute sua luta contra o cigarro Em 1923 Nishida escreve ldquoDeste dia em diante
eu morri para mundo Eu vivo em minha proacutepria filosofia Tudo sacrificado tudo sacrificado
Profunda impressionante experiecircnciardquo (ID IBID 344) e em 1927 ldquoAgrave tarde eu estava sozinho
na casa Pensamento quietos Quietamente eu passei metade do dia Eu natildeo fumei nem sequer
um cigarro Renascimento despertado de um sonho ruim De uma aacutervore podre de alguma
maneira um novo broto de vida pode florescer Hoje eu estava quase felizrdquo (ID IBID) O motivo
pelo qual Knauth intitula seu artigo com a expressatildeo Life is Tragic adveacutem justamente desta
postura de Nishida conforme a qual a vida humana natildeo passaria de preocupaccedilotildees e problemas
46 Nishida inicia a leitura de Eckhart em 1907 Seria interessante ao propoacutesito da tese que houvesse uma explanaccedilatildeo
maior e mais cuidadosa do pensamento de Eckhart sobretudo no segundo capiacutetulo onde seu posicionamento eacute
fundamental para o desenvolvimento do neoplatonismo e da miacutestica Contudo esta difiacutecil tarefa tornaria o percurso
da tese demasiado longo e cansativo podendo desviar a atenccedilatildeo primordial do trabalho Todavia possuo a intenccedilatildeo
de desdobrar este toacutepico em um trabalho futuro
102
A despeito de um aparente pessimismo o que pode ser destacado do percurso intelectual
e pessoal de Nishida eacute a profundidade com qual ele sentiu o peso da vida A doutrina buacutedica do
sofrimento eacute por ele absorvida de maneira natildeo soacute transcendente mas ainda imanente Os
escritos de Nishida revelaratildeo natildeo apenas um caminho filosoacutefico no qual se imbricam a tradiccedilatildeo
sapiencial oriental e a filosofia ocidental mas a descriccedilatildeo de uma experiecircncia vital na qual pulsa
a forccedila do pensamento especulativo Por esta e outras razotildees Nishida havia sido nomeado com
o nome laico-budista ldquosunshinrdquo uma polegada de mente
A produccedilatildeo propriamente filosoacutefica de Nishida eacute tanto mais densa quando suas reflexotildees
pessoais anotadas em seu diaacuterio contudo relativamente mais faacuteceis de serem abordadas devido
agrave sistematicidade que permeia os escritos A despeito de suas incompatibilidades com o sistema
de ensino sua carreira acadecircmica foi coroada em 1894 quando recebeu o tiacutetulo de licenciado
em filosofia com uma tese acerca da causalidade em David Hume culminando no professorado
junto agrave Universidade Imperial de Kyōto em 1913 Neste iacutenterim dedicou-se ao desdobramento
das bases de sua filosofia que teria sido divulgada de maneira mais consistente na obra que
havia publicado em 1911 sob o tiacutetulo Zen no kenkyū (善の研究 Investigaccedilatildeo sobre o bem) A
obra mais conhecida de Nishida busca o autodespertar o que significa uma visatildeo dos
fenocircmenos que compreendem a experiecircncia pura evidente desde a movimentaccedilatildeo de uma
loacutegica toacutepica O termo ldquoloacutegica toacutepicardquo eacute propositalmente ambivalente Por um lado indica uma
loacutegica do espaccedilo do lugar por outro denuncia como esse lugar (locus) revela uma locuccedilatildeo um
discurso Eacute neste lugar que se desenvolvem os limites do pensamento Relatos de alunos de
Nishida comentam que ele costumava desenhar no quadro negro trecircs esferas uma sobre a outra
na qual a primeira representaria os acidentes circundaacuteveis ao sujeito a segunda os elementos
incapturaacuteveis pela percepccedilatildeo e a terceira (com linhas tracejadas) a impossibilidade final de
limitaccedilatildeo e a esfera do absoluto insuperaacutevel e infinitamente expansiacutevel nomeado com o signo
do nada absoluto (絶対無 Zettaina) sua interpretaccedilatildeo para a noccedilatildeo budista de śūnyatā
103
Com isto Nishida arrancaria da tradiccedilatildeo zen budista uma negatividade total para
fundamentar sua ideia de experiecircncia pura (純粋経験 Junsui keiken) que segundo ele ldquo() se
entende conhecer os fatos como eles simplesmente satildeo (hellip)rdquo (NISHIDA 1990 3) Estaacute presente
nesta formulaccedilatildeo a absorccedilatildeo de Nishida da psicologia funcional de William James onde se
depura a correspondecircncia da percepccedilatildeo com a teoria da verdade Nishida ainda afirma ldquo() o
que usualmente se refere como experiecircncia eacute via de regra adulterado por algum tipo de
pensamento portanto por experiecircncia pura se entende aquele estado no qual se tem experiecircncia
sem qualquer discriminaccedilatildeo deliberativardquo (IDEM IBIDEM) O claacutessico exemplo pelo qual se ilustra
a condiccedilatildeo primaacuteria da pureza da experiecircncia sugere que em uma expressatildeo como ldquoouvi uma
moscardquo haacute um momento no qual o sujeito que ouve a mosca e seu barulho e o ato mesmo de
ouvir ainda natildeo foram distinguidos O fundamento da realidade enquanto nada absoluto para
Nishida encontra-se neste preciso momento neste instante incapturaacutevel na inefabilidade do
indescritiacutevel Entretanto embora a erudiccedilatildeo filosoacutefica de Nishida fosse sobremaneira evidente
bem como sua dedicaccedilatildeo ao zen budismo suas ideias natildeo estavam livres de criacuteticas em ambas
as esferas
Uma das criacuteticas mais ferrenhas a Nishida foi apresentada por Hajime Tanabe (田辺 元)
seu sucessor na caacutetedra de filosofia da Universidade Imperial de Kyōto (em 1928) Ao contraacuterio
de Nishida que nunca havia saiacutedo do Japatildeo Tanabe foi contemplado com um intercacircmbio pelo
governo japonecircs e teve a oportunidade de estudar ao lado de Husserl e Heidegger Sua maior
obra Zangedo to shite no tetsugaku (懺悔道としての哲學 A filosofia como caminho metanoeacutetico
1946) ocupava-se da superaccedilatildeo do inevitaacutevel problema epistemoloacutegico que envolvia a questatildeo
do nada absoluto propondo o termo metanoeacutetica derivado do grego μετανόησις e vertido ao
japonecircs como zangedo (懺悔道) cuja definiccedilatildeo seria nas palavras de Tanabe ldquoum baacutelsamo para
a dor do pesar e ao mesmo tempo o recurso para uma luz absoluta que paradoxalmente torna
vigente a escuridatildeo sem expulsaacute-lardquo (TANABE 1986 2)
104
Em decorrecircncia da necessidade de superaccedilatildeo do proacuteprio pensamento a criacutetica de Tanabe
emerge no sentido de questionar se a filosofia possui condiccedilotildees de enquadrar o autodespertar
religioso conforme exposto por Nishida de maneira sistemaacutetica Conforme Agustiacuten Jacinto
Zavala ldquoResumidamente ao tomar como base o ponto de vista da religiatildeo a filosofia de
Nishida lsquoconverte o trans-histoacuterico absoluto em principium [princiacutepio fundamental] do sistema
e mediante esta determinaccedilatildeo vem [finalmente] ordenar e organizar o histoacuterico relativordquo
(ZAVALA 2013 106) ao passo que ldquoPor isto Tanabe diz lsquoa duacutevida fundamental que albergo
frente a filosofia mestre Nishida se relaciona com este ponto () se a filosofia trata de tomar o
ponto de vista religioso como seu proacuteprio ponto de vista necessariamente deixa de ser si mesmardquo
(IDEM IBIDEM) sintetizando a preocupaccedilatildeo de Tanabe
Os conflitos entre a filosofia a auto-percepccedilatildeo religiosa a partir do estabelecimento do
nada absoluto como fundamento da realidade passaratildeo ainda prelo crivo de diversos
interlocutores sofrendo alteraccedilotildees e recebendo criacuteticas diretas e indiretas Em linhas gerais o
problema de Tanabe estaacute diretamente relacionado com suas compreensotildees estritas da religiatildeo e
da filosofia Em primeiro lugar porque ao contraacuterio de Nishida (que era praticante do zen
budismo) Tanabe partia antes do budismo Jōdo Shinshū (浄土真宗 A Escola da Terra Pura) do
monge Shinran (親鸞)47 Em segundo lugar devido aos interesses de Tanabe pela filosofia da
histoacuteria de Wilhelm Wundt e Heinrich Rickert aleacutem da influecircncia da Lebensphilosophie e o
compromisso histoacuterico que ele alimentou a partir de tais influecircncias Por este motivo era
necessaacuterio tanto para resolver a disputa entre Nishida e Tanabe quanto para superar os estaacutegios
preliminares das discussotildees da Escola de Kyōto reformular as compreensotildees de filosofia e
religiatildeo algo que acontece de maneira somente com Keiji Nishitani (西谷 啓治)
47 Sobre a fundamentaccedilatildeo budista de Tanabe confira Joaquim Antonio Bernardes Carneiro Monteiro ldquoO lsquoNada
Absolutorsquo em Hajime Tanabe uma avaliaccedilatildeo criacuteticardquo In Antonio Florentino Neto e Oswaldo Giacoia Jr (orgs)
O Nada absoluto e a superaccedilatildeo do niilismo Os fundamentos filosoacuteficos da Escola de Kyoto Campinas Phi 2013
155-188
105
Keiji Nishitani eacute talvez o filoacutesofo japonecircs contemporacircneo mais popular entre os
ocidentais O motivo eacute provavelmente o estilo bastante solto e livre de seus ensaios
principalmente os que chegaram traduzidos ao Ocidente ndash precisamente os mais maduros
compostos apoacutes a deacutecada de 1960 como Shūkyo to wa Nanika (宗敎とは何か O que eacute religiatildeo
1961) e Nihirizumu (ニヒリズム Niilismo 1986) Estes mesmos trabalhos sofreram diversas
criacuteticas por parte de colegas japoneses que o acusaram de se afastar dos modos propriamente
orientais de expressatildeo supostamente sugerindo uma indiferenccedila ao idioma vernaacuteculo agraves
tradiccedilotildees e aos projetos de seus antecessores Sobre isto Nishitani teria argumentado que as
lacunas do pensamento japonecircs tradicional sobretudo as idiomaacuteticas impossibilitariam o
alcance do sentido de alguns problemas colocados pela filosofia ocidental motivo pelo qual a
criaccedilatildeo de novas palavras em japonecircs se mostrava absolutamente necessaacuterios48 Sem embargo
os questionamentos impostos pelos novos tempos natildeo se prendiam agraves fronteiras linguiacutesticas e
invadiam o Japatildeo modernizado e ocidentalizado com especial forccedila razatildeo pela qual a
aproximaccedilatildeo com a filosofia sua interiorizaccedilatildeo e reflexatildeo era simplesmente inevitaacutevel
Todavia embora Nishitani tenha realmente pendido para o pensamento filosoacutefico ou para a
maneira pela qual os pensadores ocidentais liam as questotildees conflituosas da contemporaneidade
ao mesmo tempo ele se voltava com ainda maior introspecccedilatildeo para o budismo sobretudo para
o zen Esta ambiguidade intencional do pensamento de Nishitani se revela nas inquiriccedilotildees por
ele levantadas e pelo teor de suas investigaccedilotildees deixando ver claramente sua preocupaccedilatildeo a
respeito do direcionamento reflexivo da filosofia contemporacircnea
48 James Heisig discute esta questatildeo pormenorizadamente quando apresenta o estilo filosoacutefico de Nishitani
Conforme Heisig a influecircncia ocidental absorvida por Nishitani cujas maiores expressotildees foram a esteacutetica de
Immanuel Kant o idealismo alematildeo (especialmente Friedrich W J Schelling) Plotino e o neoplatonismo a
miacutestica de Mestre Eckhart e Francisco de Assis e ainda a hermenecircutica existencial de Wilhelm Dilthey e Martin
Heidegger deixam bastante claro o porquecirc ele subverte e converte os limites e alcances da linguagem Heisig
ainda destaca o momento no qual Nishitani afirma que nos miacutesticos a confluecircncia e a uniatildeo entre religiatildeo e
filosofia alcanccedilaram um ponto elevado despertando seu profundo interesse por tais autores A despeito dos temas
eleitos Heisig considera ainda que por este mesmo motivo o estilo de Nishitani se mostra superior ao de Tanabe
e ao de Nishida (cf HEISIG 2002 233-242)
106
Eacute possiacutevel considerar que o problema com o qual Nishitani se defrontou e que norteou
o andamento geral de seu pensamento mais cuidadosamente desenvolvido possui um ponto de
partido muito bem estabelecido qual seja o problema do niilismo denunciado na virada do
seacuteculo por autores como Friedrich Nietzsche Ernst Juumlnger Fioacutedor Dostoievsky Ivan
Turgeniev entre outros Em Shūkyo to wa Nanika longe de tentar elucidar o sentido da religiatildeo
em termos sistemaacuteticos a despeito do tiacutetulo do escrito Nishitani parece buscar uma imersatildeo na
tensatildeo contraditoacuteria que os seres humanos possuem com a experiecircncia religiosa segundo ele
ldquo() para quem a religiatildeo natildeo eacute uma necessidade precisamente por esta razatildeo ela eacute uma
necessidade Natildeo haacute nenhuma outra coisa sobre a qual se possa dizer o mesmordquo (NISHITANI
1983 1) Sua definiccedilatildeo de religiatildeo se abre a partir da compreensatildeo de uma ldquoauto-despertar da
realidaderdquo cuja explicaccedilatildeo se apoia no termo inglecircs realize segundo ele um termo polissecircmico
que possuem tanto o sentido de actualize (atualizar mas tambeacutem trazer o sentido real como na
expressatildeo actually cujo significado seria na verdade) quanto de understand (compreender)
Nishitani explica ldquo() estou utilizando esta palavra para indicar que nossa habilidade para
perceber a realidade significa realizar (atualizar) a realidade por si mesma em noacutesrdquo (IDEM IBIDEM
5) Esta explicaccedilatildeo apareceria para confrontar o sentido do niilismo que segundo Nishitani
ldquo() se refere agravequilo que torna sem sentido o sentido da vida () sinalizando nada menos do
que fato de que o despertar da nossa existecircncia penetrou em uma profundidade extraordinaacuteriardquo
(ID IBID 4) Em suma Nishitani possui um alvo muito claro lidar com o abismo existencial
que se deixa ver sobremaneira angustiante nos novos tempos aqueles mesmos ldquotempos de
penuacuteriardquo da ldquonoite do mundordquo anunciados por Nietzsche denunciados por Heidegger e que
assombravam os filoacutesofos que se deparavam com a instituiccedilatildeo da morte do pensamento
reflexivo mediante a Era Atocircmica dos desastres ambientais e dos deliacuterios da modernizaccedilatildeo
industrializaccedilatildeo e tecnologizaccedilatildeo do mundo Fatos inegaacuteveis cuja profunda relaccedilatildeo com a
histoacuteria do pensamento torna seu sentido cada vez mais obscuro
107
A forccedila interpretativa que moveraacute o pensamento de Nishitani rumo agraves tentativas de
resoluccedilatildeo dos conflitos passaraacute em primeiro lugar por sua leitura a respeito do problema do
niilismo e sua relaccedilatildeo com a ideia de śūnyatā Quando Nishitani alcanccedila esta abordagem ele
frisa de iniacutecio que ldquo() um dos maiores e mais fundamentais problemas que todas as religiotildees
encaram em nossos tempos eacute sua relaccedilatildeo com a ciecircnciardquo (IDEM IBIDEM 77) O motivo aparenta
ser a incompatibilidade entre o pensamento cientiacutefico e o sentido essencial da vida religiosa
Nishitani entatildeo argumenta de maneira incisiva (e que sintetiza o propoacutesito desta tese no final
das contas)
Uma em cada dez pessoas escuta que a religiatildeo e a ciecircncia tem cada uma seu proacuteprio
domiacutenio e tarefa e que as duas nunca precisaratildeo entrar em conflito caso permaneccedilam
confinadas em suas fronteiras originais Isto eacute inadequado Uma fronteira separa uma
aacuterea da outra e ao mesmo tempo pertence a ambas as aacutereas Os fundamentos do
conflito entre religiatildeo e ciecircncia repousam certamente em tais fronteiras De fato desde
os tempos mais antigos metafiacutesica e filosofia consistiram na exploraccedilatildeo destas
fronteiras entre ciecircncia e religiatildeo (IDEM IBIDEM 77-78)
Nishitani ainda questiona se tais fronteiras podem ser consideradas realmente fronteiras ou natildeo
admitindo que a ciecircncia contemporacircnea natildeo parece se preocupar com a questatildeo A criteacuterio de
verdade objetiva da ciecircncia com o apoio das leis da natureza seria responsaacutevel por de certo
modo menosprezar o conhecimento religioso e mesmo o conhecimento filosoacutefico em
decorrecircncia da verdade cientiacutefica absoluta Mas Nishitani contesta no contrafluxo da tendecircncia
mais geral ldquoMas eacute realmente tatildeo evidente Uma nova maneira de olhar para o absoluto e o
relativo conforme a qual dois absolutos podem se tornar conjuntos impensaacutevel em uacuteltima
instacircnciardquo (ID IBID 78) Para Nishitani o problema vige no fechamento das possibilidades
108
Natildeo haacute aqui uma criacutetica ldquocientofoacutebicardquo mas o levantamento de uma questatildeo qual seja
ldquoNatildeo possuiacutemos uma outra maneira de conceber o relativo senatildeo em termos de estabelecimento
de limites ndash como fazemos por exemplo quando dividimos uma folha de papel em duas ao
traccedilar uma linha nelardquo (ID IBID 79) Nishitani mostraraacute esta possibilidade por meio de sua
interpretaccedilatildeo da ideia de śūnyatā e como ela desvela uma perspectiva que explora os elementos
abandonados pela objetividade cientiacutefica Seja como for eacute possiacutevel considerar jaacute de iniacutecio que
se concentra aiacute toda a potecircncia do diaacutelogo entre metafiacutesica e negatividade apresentado ao longo
desta tese sendo possiacutevel acompanhar Nishitani em uma definiccedilatildeo do conflito das fronteiras
Agora bem quais as saiacutedas ou quais as possiacuteveis chaves de leitura para o problema que
se apresenta a saber a questatildeo do niilismo contemporacircneo Quando emprego aqui o termo
filosofia comparada intercultural tenho em vista a maneira pela Nishitani (entre outros)
exploram as muacuteltiplas significaccedilotildees de distintas tradiccedilotildees culturais em suas convergecircncias e
divergecircncias para se aproximar do problema e propor novos pontos de vista A respeito
especificamente da questatildeo levantada Nishitani utiliza a proacutepria ambivalecircncia do niilismo para
propor uma soluccedilatildeo Seu caminho seraacute resgatar o sentido pelo qual a ciecircncia se apropria das
leis da natureza e desenvolve a tecnologia argumento que eacute precisamente por meio desta
apropriaccedilatildeo que se revelam a medida da liberdade do homem em relaccedilatildeo agraves fronteiras impostas
pelas leis naturais Contudo haacute uma inversatildeo pela qual o controlador se torna o controlado
Conforme Graham Parkes ldquo() a vida humana e o trabalho como um todo se tornam
progressivamente mecanizados e impessoais (nos termos de Heidegger perdemos nossa lsquolivre
relaccedilatildeorsquo com a teacutecnica e estamos lsquoacorrentadosrsquo agrave ela)rdquo explicando ademais que para Nishitani
ldquoA liberdade advinda das leis da natureza que a tecnologia mecanizada nos concede aleacutem do
sentimento concomitante de distacircncia ou separaccedilatildeo do mundo natural levam os seres humanos
a lsquose comportarem como se eles estivessem completamente fora das leis da naturezarsquordquo (PARKES
2013a 103) Sendo assim a uacutenica via possiacutevel eacute restabelecer esta relaccedilatildeo humano-natureza
109
O ponto de apoio de Nishitani para colocar o problema parte da compreensatildeo que
oferece o neoplatonismo e a miacutestica medieval de Deus como nada absoluto (ele cita
especificamente Mestre Eckhart neste ponto) para trazer agrave tona a questatildeo morte-sive-vida
Nishitani evidencia portanto que ldquoEste ponto natildeo pode repousar em um lado mais distante
aleacutem deste mundo e desta vida terrena que possuiacutemos Deve repousar no lado mais proacuteximo
tanto mais proacuteximo quanto nossas vidas ordinariamente devem serrdquo (ID IBID 90) Aproveitando
a perspectiva budista para elucidar este caminho Nishitani esclarece de maneira precisa que
ldquoŚūnyatā eacute o ponto no qual noacutes nos tornamos manifestos de nossa proacutepria talidade (suchness)
como seres humanos concretos como indiviacuteduos com alma e personalidade Ao mesmo tempo
eacute o ponto no qual tudo ao redor se manifesta para noacutes em sua proacutepria talidade (suchness)rdquo (ID
IBID 90)49 Śūnyatā envolve inevitaacutevel e necessariamente este complexo conceito de talidade
(真如 Shinrsquonyo ndash Tathatā तथता) que eacute sem embargo o berccedilo da meditaccedilatildeo oriental
A talidade eacute a via pela qual se extrai a conduccedilatildeo do sistema eacutetico e moral da sociedade
hinduiacutesta primitiva Sua disseminaccedilatildeo no Extremo Oriente eacute carregada por duas tradiccedilotildees quais
sejam o daoiacutesmo e o budismo Os daoiacutestas centram sua noccedilatildeo de ldquoprinciacutepiordquo por meio da noccedilatildeo
de dao (道) e sua relaccedilatildeo com de (德) O famoso Dao De Jing (道德经) bem como a obra do
mestre Zhuangzi (莊子) satildeo os principais responsaacuteveis por colocarem ambos os princiacutepios (dao
e de) e movimento dinacircmico conforme o qual a relaccedilatildeo com natureza natildeo seria entendida nem
como celestial nem como humana mas como ambas sem que uma tenha privileacutegio sobre a
outra ndash e este seria enfim o caminho (dao) da virtude (de) (cf ZHUANGZI 2009 42)
49 Traduzo aqui suchness por talidade com base na ideia de que Nishitani se refere ao conceito budista de Tathatā
(तथता) que em japonecircs se ilustra com o kanji 真如 (Shinnyo) cuja traduccedilatildeo seria ldquorealidade absolutardquo mas natildeo
corresponde ao peso do termo Sobre isto Antonio Morillas escreve que ldquoO termo tathata eacute de difiacutecil traduccedilatildeo
em castelhano Em inglecircs se verte com as expressotildees suchness (a condiccedilatildeo de ser ldquotalrdquo e como se eacute) thatness (o
fato de ser ldquoissordquo que se eacute) e isness (a qualidade de algo que ldquoeacuterdquo sem mais o que eacute e como eacute) () A talidade
[traduccedilatildeo castelhana de tathata] eacute a noccedilatildeo do fato de que a realidade e as coisas e fenocircmenos que a compotildeem satildeo
ldquoassimrdquo ldquotalrdquo e como satildeo que satildeo ldquoissordquo ldquoo que satildeordquo em seu caraacuteter plenamente desnudo na existecircncia luminosardquo
(MORILLAS 2006 167) Pela proximidade com o idioma castelhano opto aqui por adotar a sugestatildeo de Morillas
110
O budismo especialmente o budismo zen absorveria tais ideias com especial forma nos
pensamentos de Kūkai (空海) e Dōgen Zenji (道元禅師) Graham Parkes explica que para Kūkai
duas ideias se configuram essenciais Sokushinjobutsu (即身成仏) a possibilidade de atingir a
iluminaccedilatildeo na vida presente (em contraste ao princiacutepio budista tradicional conforme o qual
seriam necessaacuterias muitas vidas) e Hosshin seppo (発疹 説法 ) o entendimento de que a
personificaccedilatildeo buacutedica eacute desprovida de forma e imagem natildeo permitindo conceitualizaccedilatildeo nem
verbalizaccedilatildeo (cf PARKES 2003 81) A despeito da uniatildeo suscitada pelo daoiacutesmo o budismo
chinecircs do oitavo seacuteculo estava imerso em uma profunda discussatildeo acerca da questatildeo se a
natureza buacutedica podia ser atribuiacuteda somente aos seres sencientes ou tambeacutem agraves miacutenimas
partiacuteculas de poeira Kūkai articula as duas ideias acima mencionadas e interpretas as chamadas
ldquotrecircs intimidadesrdquo (corpo fala mente) do Dainichi Nyorai (木造大日如来坐像) que representa a
revelaccedilatildeo esoteacuterica dos ensinamentos no Budismo para sustentar o muacutetuo pertencimento da
relaccedilatildeo do todo com suas partes assumindo a natureza buacutedica para absolutamente tudo Ele
escreve neste sentido ldquoEssa existecircncia estaacute naquela e aquela estaacute nessa A Existecircncia do Buda
(Mahāvairocana) eacute a existecircncia dos seres sencientes e vice e versa Eles natildeo satildeo idecircnticos mas
satildeo todavia idecircnticos eles natildeo satildeo diferentes mas satildeo todavia diferentesrdquo (KŪKAI 1972 93)
Jaacute para Dōgen a evocaccedilatildeo da conduta zen se daria por meio de uma miacutestica cotidiana
alimentando a noccedilatildeo de que toda atividade eacute expressatildeo da natureza buacutedica Parkes argumenta
que algumas atividades satildeo especialmente ilustrativas como por exemplo preparar a comida
servi-la e come-la Dōgen citaria um trecho do Vimalakīrti Nirdeśa Sūtra (नवमलकीनत निदश सतर) que
diria ldquoQuando somos unos com a comida que comemos somos unos com todo o universordquo
evocando o uso do silecircncio como veiacuteculo para o esclarecimento do śūnyatā como fundamento
absoluto da realidade (cf PARKES OP CIT 84) As praacuteticas rituais natildeo possuiriam todavia
conotaccedilatildeo lituacutergica pontual e direcionada mas antes a totalidade de uma experiecircncia de vida
religiosa
111
Tanto Kūkai quanto Dōgen influenciaram amplamente o pensamento de Nishitani e o
ponto de vista conforme o qual o śūnyatā direciona uma atitude por meio da qual se mostra a
talidade Tanto no daoiacutesmo de Zhuangzi quando no zen budismo de Kūkai e Dōgen estatildeo em
jogo o aspecto formal a aparecircncia (rūpa shiki) da realidade em torno por um lado e a assunccedilatildeo
da dissoluccedilatildeo do fundamento dessa realidade por outro (sua vacuidade śūnyatā kū) Por este
motivo haacute uma muacutetua reciprocidade entre a totalidade e as coisas entre uno e muacuteltiplo Isto eacute
o que permite a participaccedilatildeo e ao mesmo tempo incorporaccedilatildeo da realidade (dharmakāya)
Contudo natildeo seraacute o mero resgate das tradiccedilotildees orientais que forneceraacute a Nishitani a resposta
ao problema no que concerne ao impacto da questatildeo frente aos tempos de niilismo mas sim o
resultado da confrontaccedilatildeo desta tradiccedilatildeo com a filosofia contemporacircnea ocidental ou sem
embargo o confronto entre as fronteiras
Graham Parkes atenta para uma reivindicaccedilatildeo de Nishitani de haver superado em certa
medida o desenvolvimento das filosofias de pensadores como Hegel Nietzsche e Heidegger
(cf PARKES 2013b 189-190) Contudo no cerne desta proposiccedilatildeo estaacute a ideia de que o que foi
superado natildeo foi propriamente o conteuacutedo da meditaccedilatildeo mas a forma da abordagem ou seja
a perspectiva intercultural privilegiada da comparaccedilatildeo filosoacutefica de Nishitani Com o anuacutencio
da morte de Deus e dos tempos de niilismo em Nietzsche ficou evidente um diagnoacutestico da
atividade humana inerente aos valores que a guiam por um lado e a induccedilatildeo ao desespero
suscitado pela projeccedilatildeo cognoscitiva ao ente por outro A saiacuteda de Nietzsche por meio do
ldquogrande antiacutedotordquo da transvaloraccedilatildeo de todos os valores eacute recebida em Nishitani considerando
trecircs ideias chave de sua leitura budista (1) a constituiccedilatildeo do fundamento da existecircncia como
uma experiecircncia aleacutem da relaccedilatildeo entre sujeito objeto por meio do conceito de (referente agrave noccedilatildeo
de dharma धम) (2) a reaccedilatildeo de retorno ao mesmo de toda atividade (a partir do conceito de
karma कम) e a noccedilatildeo de que natildeo haacute nada que exista independente de circunstacircncias e
condicionamento ou a chamada ldquoco-originaccedilatildeo dependenterdquo (o pratītya-samutpāda परतीतयसमतपाद)
112
Portanto o que em Nietzsche seria postulado como destino enquanto o ldquomesmordquo (o ego
fatum nietzscheano) engendrando um ponto de vista criativo em Nishitani seria entendido
desde a ideia do karma Em Nihirizumu Nishitani escreve acerca deste ponto especiacutefico que
ldquoNeste niacutevel fundamental o mundo se move na esfera do mesmo e o mesmo na esfera do
mundo Esta ideia estaacute proacutexima da ideia budista de karma embora em Nietzsche o ponto de
vista do mesmo como destino eacute fundamentalmente criativordquo (NISHITANI 1990 50) Em termos
mais simples de acordo com Parkes ldquo() o que parece um golpe do destino pode ser entendido
antes como uma parte de nossa proacutepria atividaderdquo (PARKES OP CIT 196) O florescimento desta
consideraccedilatildeo se daacute na afirmaccedilatildeo niezscheana do amor fati e da superaccedilatildeo do abismo da grande
suspeita niilista por meio da grande dor pela qual se renasce o que seraacute entendido em Nishitani
a partir do retorno ao abismo onde ldquo() uma vez que algueacutem eacute libertado do abismo a
necessidade se torna um elemento desta vida de liberdade Neste caso necessidade se torna
uma com a criatividaderdquo (NISHITANI OP CIT 52) Entretanto a ressalva de Nishitani consiste que
a afirmaccedilatildeo resultante da superaccedilatildeo do abismo niilista pode ainda ser superar e que a vontade
de poder eacute ainda uma ldquocoisardquo chamada ldquovontaderdquo (cf IDEM OP CIT 234) cuja uacutenica possibilidade
de ser pensada para aleacutem dos fundamentos que redundam no destino como mesmo seria
justamente o ponto de vista do śūnyatā Uma ilustraccedilatildeo possiacutevel de ldquopara onderdquo este ponto de
vista levaria pode ser encontrada quando Nishitani comenta a arte japonesa de arranjo de flores
a chamada Ikebana (生け花) Ali fica niacutetido qual a postura que se assume quando se daacute conda
da vacuidade da realidade uacuteltima e absoluta Nishitani escreve
Desde a perspectiva de sua natureza fundamental todas as coisas no mundo satildeo
lacircminas de grama sem raiacutezes Tal grama entretanto tenho fincado suas raiacutezes no solo
esconde a si mesma em sua fundamental ausecircncia de raiacutezes () sendo cortadas de suas
raiacutezes as flores satildeo feitas pela primeira vez pela manifestaccedilatildeo minuciosa de sua
natureza fundamenta ndash sua falta de raiacutezes (IDEM 2011 1199)
113
Ao fim e ao cabo Nishitani estaacute chamando atenccedilatildeo para uma aprendizagem decorrente da ldquoco-
originaccedilatildeo dependenterdquo a partir da natureza Sobre este ponto e sua relaccedilatildeo com o niilismo
Parkes escreve ldquo() noacutes humanos diferimos de outros entes por meio da possibilidade de nos
tornamos conscientes de nossa proacutepria finitude no estado da niilidade (kyomu) um tipo de
ldquovacuidade ocardquo que eacute uma antecacircmara para a vacuidade criativa (śūnyatā kū)rdquo (PARKES OP
CIT 112) Resumidamente o ponto de vista do śūnyatā se configura para Nishitani a partir da
tradiccedilatildeo do zen budismo oriental e de sua leitura da filosofia ocidental como uma iluminaccedilatildeo
a respeito do fundamento da realidade enquanto vacuidade evidenciado sobremaneira pelo
abismo do niilismo contemporacircneo e que direciona o ser humano para uma vacuidade criativa
na qual sua relaccedilatildeo com as coisas congrega tudo em uma mesma natureza buacutedica ou seja o
lugar onde as flores o arranjo o florista e o ato de fazer o arranjo satildeo a mesma coisa ou o lugar
onde a mosca o anjo Deus e o eu satildeo o mesmo
114
CONCLUSAtildeO
Durante o primeiro semestre de 2011 estava profundamente motivado com a preparaccedilatildeo do
texto final desta tese doutoral Ocupava-me ao mesmo tempo das pesquisas leituras
sistematizaccedilatildeo dos esquemas defesa da versatildeo do final do projeto e dos cursos que iria ministrar
na Universidade Federal do Rio Grande do Norte nos meses seguintes A abordagem agrave histoacuteria
da metafiacutesica agrave tradiccedilatildeo do neoplatonismo e agrave filosofia japonesa contemporacircnea atingiam-me
simultaneamente por meio de muacuteltiplas construccedilotildees conceituais interligadas pela lucidez
provocada mediante a histoacuteria dos efeitos de cada ambiente temaacutetica Contudo ao 11 de marccedilo
daquele ano foi transmitida uma notiacutecia que imediatamente cessou minha produccedilatildeo e
empolgaccedilatildeo com todo e qualquer toacutepico Os jornais incessantemente transmitiam as uacuteltimas
notiacutecias a respeito de um terremoto seguido por um tsunami que havia atingido o Japatildeo e
danificado a estrutura da usina nuclear de Fukushima na cidade de Ōkuma expondo a
comunidade da regiatildeo agrave alarmantes niacuteveis de radioatividade O desastre ambiental seria
considerado algum tempo mais tarde a maior cataacutestrofe nuclear desde Chernobyl em 1986
Evidentemente como havia ocorrido tambeacutem em 2001 durante o ataque terrorista ao
World Trade Center em Nova Iorque as reportagens que chocavam o mundo se tornariam
rapidamente repetitivas e esgotariam o puacuteblico O motivo pelo qual se daria tal neutralizaccedilatildeo e
letargia frente aos fatos foi denunciado por Slavoj Žižek na obra The Year of Dreaming
Dangerously (2012) Ele pondera os eventos destrutivos de 2011 tais quais a Primavera Aacuterabe
e o Occupy Wall Street desde a neutralizaccedilatildeo ideoloacutegica promovida pela miacutedia dando margem
agrave interpretaccedilatildeo conforme a qual os veiacuteculos de comunicaccedilatildeo vigentes aniquilam o potencial
emancipatoacuterio dos eventos por meio da pasteurizaccedilatildeo de sua difusatildeo
115
Žižek destaca o termo da liacutengua persa ldquowar nam nihadanrdquo cujo abstruso significado
seria em linhas gerais ldquomatar algueacutem enterrar seu corpo e plantar flores sobre sua cova para
esconder o cadaacuteverrdquo Para Žižek os meios de comunicaccedilatildeo do capitalismo global destroem a
absorccedilatildeo propriamente humana dos eventos do mundo contemporacircneo exatamente neste
mesmo sentido (cf ŽIŽEK 2012 9) Sem sombra de duacutevidas o mesmo se daria em relaccedilatildeo ao
desastre de Fukushima e hoje trecircs anos depois uma pedra foi posta por sobre o assunto e poucas
pessoas sequer se lembram do ocorrido
Entretanto meu denso envolvimento com a filosofia japonesa natildeo permitiu que os
acontecimentos fossem dissolvidos assim tatildeo facilmente Passei um bom tempo tocado pela
calamidade e mesmo ateacute agora ainda tenho dificuldades em lidar com o assunto As
adversidades emotivas todavia natildeo me impediram de pensar com devoccedilatildeo sobre a questatildeo
pelo contraacuterio estimularam ainda mais o rumo da reflexatildeo filosoacutefica
O ano seguinte seria marcado em meu percurso pessoal pela saiacuteda do paiacutes e realizaccedilatildeo
de estaacutegio sanduiacuteche junto agrave University College Cork (Colaacuteiste na hOllscoile Corcaigh) para
realizar minhas pesquisas sob a supervisatildeo do professor Graham Parkes na Irlanda Parkes
havia publicado no iniacutecio daquele ano um breve artigo intitulado Nuclear Power after
Fukushima 2011 Buddhist and Promethean Perspectives (2012) no qual natildeo apenas analisava
os fatos mas ainda apresentava uma meditaccedilatildeo a respeito de uma filosofia da natureza para
aleacutem das ecologias profundas ou natildeo
Simplificando o assunto o estiacutemulo para o fornecimento de energia nuclear eacute
alimentado pela conclusatildeo de que se trata de uma fonte limpa e autossustentaacutevel em contraste
agrave queima do combustiacutevel e exploraccedilatildeo de recursos foacutesseis ou mesmo aos impactos ambientais
causados pela obstruccedilatildeo de fluxos de aacutegua Aparentemente trata-se de uma soluccedilatildeo emergente
frente ao ainda ineficaz suporte das energias ecologicamente viaacuteveis como a eoacutelica e a solar
116
Parkes pontua sobre isto que ldquoA questatildeo crucial natildeo diz respeito aos meacuteritos relativos
e agraves desvantagens do poder nuclear versus a energia dos combustiacuteveis foacutesseis Antes trata-se
de pensar o que norteia nosso desejo de consumir tanta energia em primeiro lugarrdquo (PARKES
2012 103) O posicionamento diz respeito a um ldquopasso atraacutesrdquo A pergunta eacute o que move no
final das contas o irredutiacutevel e irrefreaacutevel iacutempeto de explorar todos os recursos naturais para
fomentar a manutenccedilatildeo da vida humana na Terra Mesmo com a leitura do escrito eu
particularmente soacute conseguiria compreender o direcionamento proposto por Parkes apoacutes
acompanhar seus seminaacuterios sobre filosofias da natureza entre Ocidente e Oriente no qual
ficariam claras as bases pelas quais ele questionava a conduta contemporacircnea face agrave crise
ambiental
Entretanto quando me deparei com as primeiras leituras oferecidas por Parkes (muitas
das quais constam na bibliografia desta tese) natildeo fui acometido pelo espanto da novidade mas
pela pulsatildeo da comparaccedilatildeo A experiecircncia que jaacute havia acumulado sob a orientaccedilatildeo do
professor Oscar Federico Bauchwitz durante meus anos de pesquisa acadecircmica dedicado agrave
leitura de Nietzsche Heidegger e da tradiccedilatildeo do neoplatonismo e da miacutestica medieval proveu-
me de uma arquitetocircnica meditativa que com a aproximaccedilatildeo com a filosofia oriental apenas
nutriu imediata empatia e introspecccedilatildeo Sendo assim quando congreguei o focirclego e as forccedilas
necessaacuterias para encerrar este trabalho natildeo tinha em mente uma tese levantada de um mero
problema particular mas um longo percurso especulativo que ao longo das paacuteginas aqui
apresentadas tentei descrever da melhor maneira possiacutevel
Sobreveio-me durante os termos finais uma intensa obrigaccedilatildeo de sustentar que a uacutenica
via possiacutevel para enfrentar os problemas filosoacutefico contemporacircneos era a instauraccedilatildeo de um
retorno aos fundamentos por meio da interculturalidade Portanto a conclusatildeo desta tese soacute
pode caminhar rumo agrave elucidaccedilatildeo de quais fundamentos no final das contas satildeo estes que estatildeo
aqui e ali indicados no interior do trabalho
117
Em 1953 Martin Heidegger pronunciou a conferecircncia intitulada Die Frage nach
Technik O escrito eacute talvez uma de suas mais claras expressotildees acerca de sua anaacutelise da
consumaccedilatildeo da histoacuteria da metafiacutesica a instauraccedilatildeo do niilismo europeu e o advento da Era
Teacutecnica Paralelamente durante o mesmo periacuteodo (na verdade em 1954) Nishitani finalizava
a composiccedilatildeo de seu ensaio sobre ldquoNiilismo e Śūnyatārdquo mais tarde incluiacutedo no volume Shūkyo
to wa Nanika abordado aqui ao longo do terceiro capiacutetulo Como foi possiacutevel observar em
Nishitani a saiacuteda do ponto de vista da vacuidade ou nada absoluto demandava a busca por
uma postura interior do ser humano na qual se tornava evidente nada mais senatildeo o elemento
inexplicaacutevel e inexprimiacutevel do fundamento uacuteltimo da realidade que era assumido agora como
oriente para o comportamento humano frente ao colapso do novo mundo A dificuldade inerente
de absorver a proposta de Nishitani todavia eacute ilustrada de maneira praacutetica quando ele aborda
uma questatildeo particular qual seja a relaccedilatildeo entre ser humano e natureza na imagem do jardim
zen Noacutes estamos dentro do jardim e natildeo somos apenas espectadores porque noacutes nos tornamos
parte da real manifestaccedilatildeo da expressatildeo da proacutepria experiecircncia iluminadora do arquiteto do
jardim O jardim eacute meu mestre Zen agora e eacute seu mestre Zen tambeacutem (NISHITANI 1992 55)
Quando Heidegger indica em sua conferecircncia que a essecircncia da teacutecnica natildeo eacute ela mesma nada
teacutecnico ele estaacute em um movimento similar ao de Nishitani chamando atenccedilatildeo para o fato de
que eacute necessaacuterio tambeacutem retornar a algo que natildeo pode ser submetido agrave objetividade cientiacutefica
da relaccedilatildeo sujeito-objeto que sustenta a tecnicizaccedilatildeo do mundo Neste sentido a saiacuteda de
Heidegger eacute ilustrada por meio de um dos conceitos mais enigmaacuteticos de toda sua obra
Gelassenheit Heidegger escreve ldquoTalvez se oculte na Gelassenheit uma accedilatildeo mais elevada do
que em todos os atos do mundo e do que nas maquinaccedilotildees das reliacutequias humanasrdquo (HEIDEGGER
1983a 41) O sentido contudo permanece oculto Resta apenas a ideia de que esta postura
evocada por Heidegger demanda um ldquodeixarrdquo (lassen) que atina para um recolhimento da
paradoxal ambiguidade do que se revela na essecircncia do humano
118
Ressoa tanto em Heidegger quanto em Nishitani uma raiz comum aquela na qual se
ldquoRenuncia aos sentidos agraves operaccedilotildees intelectuais a todo sensiacutevel e ao inteligiacutevelrdquo ainda mais
aquela onde se pede ldquoDespoja-te de todas as coisas que satildeo e ainda das que natildeo satildeo Deixa de
lado teu entender e esforccedila-te por subir o mais que possa ateacute unir-se com aquele que estaacute mais
aleacutem de todo ser e todo saberrdquo Estas palavras aqui propositalmente citadas sem a indicaccedilatildeo
bibliograacutefica satildeo do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita onde neoplatonismo e miacutestica se encontram
no caminho da negatividade Tanto o ldquoprestar atenccedilatildeo aos misteacuterios da naturezardquo em Nishitani
quando a ldquoabstenccedilatildeo da vontade por meio da natildeo-vontaderdquo o ldquoquerer o natildeo-quererrdquo em
Heidegger estatildeo depositados nas sentenccedilas do miacutestico siacuterio
Agora qual eacute este lugar ou natildeo-lugar aleacutem de todo ser e todo saber O que se revela
por meio do despojo e da supressatildeo de todo saber e todo o dizer Esta pergunta natildeo eacute respondida
Natildeo pode ser respondida O que se desvela aiacute eacute justamente o incoacutegnito o misteacuterio Como reagir
portanto frente a tal proposta de em meio a existecircncia contemporacircnea remar no contrafluxo
do sentido do mundo e buscar uma quietude absoluta no silecircncio que adveacutem do misteacuterio da
existecircncia Agrave esta pergunta tampouco se ofereceraacute resposta mas desta vez porque ela jaacute estaacute
respondida A reaccedilatildeo foi nomeada com diversos termos ao longo da histoacuteria recebendo distintas
designaccedilotildees Algumas tradiccedilotildees orientais optam por chama-la ldquoiluminaccedilatildeordquo
Por fim o conflito das fronteiras aqui abordado natildeo eacute um evento especiacutefico um
momento ou instante captaacutevel uma situaccedilatildeo ou circunstacircncia particular O conflito das
fronteiras eacute um caminho ou melhor uma caminhada Uma caminhada rumo ao desconhecido
cujo uacutenico sinal evidente acena para o clamor de um silecircncio ensurdecedor indicando que jaacute eacute
hora de se recolher
119
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3
FICHA CATALOGRAacuteFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA DO CCHLA ndash UFRN
Catalogaccedilatildeo da Publicaccedilatildeo na Fonte
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Biblioteca Setorial do Centro de Ciecircncias Humanas Letras e Artes (CCHLA)
Fontes Teixeira Luiz Fernando
O conflito das fronteiras Metafiacutesica Negatividade e o Extremo Oriente
Luiz Fernando Fontes Teixeira ndash 2014
125 f -
Tese (doutorado) ndash Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro
de Ciecircncias Humanas Letras e Artes Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em
Filosofia
Orientador Prof Dr Oscar Federico Bauchwitz
1 Metafiacutesica 2 Negatividade (Filosofia) I Bauchwitz Oscar Federico
II Universidade Federal do Rio Grande do Norte III Tiacutetulo
RNBSE-CCHLA CDU 111
4
FOLHA DE APROVACcedilAtildeO
LUIZ FERNANDO FONTES TEIXEIRA
O CONFLITO DAS FRONTEIRAS
Metafiacutesica Negatividade e o Extremo Oriente
Tese aprovada como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do grau de Doutor em Filosofia no
Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da Universidade Federal da Paraiacuteba
Universidade Federal de Pernambuco e Universidade Federal do Rio Grande do Norte pela
seguinte banca examinadora
Orientador Prof Dr Oscar Federico Bauchwitz (presidente)
Departamento de Filosofia UFRN
Profa Dra Gisele Amaral dos Santos
Departamento de Filosofia UFRN
Dr Edrisi de Arauacutejo Fernandes
Departamento de Filosofia UFRNUnB
Prof Dr Leonel Ribeiro dos Santos
Faculdade de Letras Universidade de Lisboa
Profa Dra Claudia DrsquoAmico
Departamento de Filosofia Universidad de Buenos Aires
Prof Dr Ciacutecero Cunha Bezerra (suplente)
Departamento de Filosofia UFS
Profa Dra Claudia Pellegrini Drucker (suplente)
Departamento de Filosofia UFSC
Natal 30 de maio de 2014
5
AGRADECIMENTOS
Pelos anos de orientaccedilatildeo e suporte pela incansaacutevel e paciente instruccedilatildeo pelo sempre presente
companheirismo e por tornar possiacutevel o caminho percorrido agradeccedilo ao Prof Dr Oscar
Federico Bauchwitz Pela hospitalidade e cortesia pelos conselhos e indicaccedilotildees pelos diaacutelogos
e por abrir um novo horizonte especulativo para muito aleacutem do trabalho acadecircmico agradeccedilo
ao Prof Dr Graham Parkes
Pela oportunidade de discussatildeo e criacuteticas pela atenccedilatildeo na leitura do trabalho e pelos
inestimaacuteveis acreacutescimos agradeccedilo aos membros das bancas de qualificaccedilatildeo e defesa Profa
Dra Claudia DrsquoAmico Prof Dr Leonel Ribeiro dos Santos Dr Edrisi de Arauacutejo Fernandes e
Profa Dra Gisele Amaral dos Santos
Agradeccedilo ao Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da Universidade Federal
da Paraiacuteba Universidade Federal de Pernambuco e Universidade Federal do Rio Grande do
Norte pela aceitaccedilatildeo do projeto de tese doutoral Agradeccedilo agrave University College Cork (Colaacuteiste
na hOllscoile Corcaigh) pela recepccedilatildeo do estaacutegio sanduiacuteche Agradeccedilo ao Trinity College
Dublin (Colaacuteiste na Triacuteonoacuteide Baile Aacutetha Cliath) pela oportunidade de frequentar os
seminaacuterios e bibliotecas Agradeccedilo agrave Alianccedila Cultural Brasil-Japatildeo e agrave Biblioteca Joatildeo Hideo
Matsumoto e ao Instituto Goethe de Satildeo Paulo e sua biblioteca Agradeccedilo ao Instituto Paulista
de Sacircnscrito e ao Prof Dr Adriano Aprigliano Agradeccedilo ainda agrave Coordenaccedilatildeo de
Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior pelo fomento da tese doutoral e do estaacutegio no
exterior
Agradeccedilo agraves pessoas que direta ou indiretamente contribuiacuteram no processo de
composiccedilatildeo da tese Alan Marinho Lopes Dax Moraes Marcus Vinicius Cavalcante Dantas
Tulio Madson de Oliveira Galvatildeo Sara Barrera Rubio Bastien Duval Javier Coloacuten Joseph
Sexton Agnieszka Klęczar Rodrigo Ferreira Braga Abrahatildeo Marcelo Ferreira Braga e Carla
Almeida
Agradeccedilo especialmente agrave Thaiacutes Ricci Conesa pelo apoio e pela motivaccedilatildeo sem os
quais natildeo concluiria este trabalho Finally yet importantly agradeccedilo ao absoluto integral e
irrestrito apoio de meus pais Luiz Pinto Teixeira e Tereza Cristina Fontes
6
Eacute preciso ainda ter caos dentro de si para dar
luz a uma estrela danccedilante
Friedrich Nietzsche Assim falou Zaratustra
7
RESUMO
O conflito das fronteiras se desdobra como um percurso natural da histoacuteria do pensamento
humano Torna-se manifesto todavia apenas mediante um expliacutecito choque cultural que
evidencia distintas formataccedilotildees conceituais Pensar este conflito pode esclarecer os enlaces
responsaacuteveis pelo desenvolvimento do pensamento contemporacircneo Esta tese pretende analisar
em um primeiro momento a histoacuteria do pensamento enquanto metafiacutesica apresentando um
diagnoacutestico da maneira pela qual o Ocidente impinge sua loacutegica categoacuterica Por conseguinte
apresenta a tradiccedilatildeo da negatividade evidenciando um pensamento para aleacutem da ontologia
claacutessica mediante uma henologia e uma meontologia no neoplatonismo e na miacutestica medieval
Por fim expotildee o pensamento do Extremo Oriente como possiblidade de recepccedilatildeo
contemporacircnea da negatividade e escapatoacuteria para a formataccedilatildeo ocidentalizante da filosofia
vigente
Palavras-chave Fronteiras Metafiacutesica Negatividade Extremo Oriente
8
ABSTRACT
The conflict of borderlines unfolds itself as a natural path in history of human thought It
becomes clear only through an explicit cultural clash which conveys distinct conceptual
formatting Thinking this conflict might enlighten the bindings responsible for development of
contemporary way of thought This thesis intent to analyse in a first moment the history of
thought as Metaphysics presenting a diagnostic towards the way through which the West
impinges its categorical logic Thereafter presents the tradition of Negativity showing a
thinking beyond Classic Ontology through a Henology and a Meontology in Neoplatonism and
Medieval Mysticism At the end exposes the Far Eastern thought as possibility of contemporary
reception of Negativity and escape from the Westernizer formatting of contemporary
philosophy
Key words Frontiers Metaphysics Negativity Far East
9
ZUSAMMENFASSUNG
Der Konflikt der Grenzen entfaltet sich als einen natuumlrlichen Weg in der Geschichte des
menschlichen Denkens Es wird nur klar durch eine explizite Kulturkampf die unterschiedliche
konzeptionelle Formatierung vermittelt Denken dieses Konflikts koumlnnte die Bindungen fuumlr die
Entwicklung der zeitgenoumlssischen Denkweise verantwortlich zu erleuchten Diese These
versuchen zu analysieren in einem ersten Moment die Geschichte des Denkens als Metaphysik
praumlsentiert eine Diagnose auf die Moumlglichkeit durch die der Westen trifft seine kategorische
Logik Danach praumlsentiert die Tradition der Negativitaumlt zeigt ein Denken jenseits Klassische
Ontologie durch eine Henologie und Meontologie im Neuplatonismus und mittelalterliche
Mystik Am Ende macht der Fernost gedacht als Moumlglichkeit der zeitgenoumlssischen Rezeption
von Negativitaumlt und Flucht aus der Westler Formatierung der zeitgenoumlssischen Philosophie
Schuumlsselwoumlrter Frontiers Metaphysik Negativitaumlt Fernost
10
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 11
1 ONTOLOGIA A SUBSTANTIVACcedilAtildeO DO OCIDENTE E O PROBLEMA DA METAFIacuteSICA 28
ENQUANTO DELIMITACcedilAtildeO DAS FRONTEIRAS DO PENSAMENTO
2 O CAMINHO DA NEGATIVIDADE HENOLOGIA E MEONTOLOGIA E A ULTRAPASSAGEM 61
DOS LIMITES DA METAFIacuteSICA
3 O EXTREMO ORIENTE E O CONFLITO DAS FRONTEIRAS A FILOSOFIA COMPARADA 89
INTERCULTURAL COMO CHAVE DE LEITURA PARA ALGUNS PROBLEMAS DO
PENSAMENTO CONTEMPORAcircNEO
CONCLUSAtildeO 113
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 119
11
INTRODUCcedilAtildeO
Aos 16 de abril de 2010 sob a avaliaccedilatildeo de uma banca composta pelos professores Oscar
Federico Bauchwitz Gisele Amaral dos Santos e Acylene Maria Cabral Ferreira defendi a
dissertaccedilatildeo de mestrado intitulada A caminho da fronteira Embora possa ainda dedicar mais
dez anos agrave correta composiccedilatildeo estiliacutestica daquele texto aleacutem da estruturaccedilatildeo dos argumentos
laacute natildeo tatildeo bem encadeados imagino ter alcanccedilado o objetivo de tornar claro natildeo apenas o intuito
do trabalho mas o problema movimentado pela questatildeo do conflito fronteiriccedilo de uma filosofia
comparada intercultural por meio de uma histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica
A questatildeo ldquoentre Heidegger e os japonesesrdquo (subtiacutetulo da dissertaccedilatildeo) abordada ao longo
dos dois anos de mestrado acadecircmico referia-se a uma virada de pontos de vista se em um
primeiro momento os orientais se perguntavam o quecirc a filosofia ocidental podia oferecer ao
pensamento e desenvolvimento do Extremo Oriente em um segundo momento os ocidentais
passaram a se perguntar de que forma os japoneses podiam acrescentar agrave filosofia um elemento
meditativo perdido no periacuteodo da consumaccedilatildeo da teacutecnica moderna e do cientificismo desde
suas perspectivas milenares de pensamento reflexivo
Ao passo em que a pesquisa ia se desenvolvendo o trabalho caminhou paulatinamente
rumo ao impacto violento surtido pelo diaacutelogo entre limites bem delineados de um Ocidente
estruturalmente metafiacutesico e um Oriente especulativo quase inefaacutevel para um leitor ocidental
A conclusatildeo extraiacuteda do caminho percorrido entre os anos de 2008 e 2010 apresentou antes de
qualquer soluccedilatildeo a constataccedilatildeo da instalaccedilatildeo de uma impertinecircncia petrificada no seio da
filosofia contemporacircnea sobre a qual pouco se pode acrescentar na dissoluccedilatildeo de problemas
mas muito se pode desdobrar no que tange ao entrelaccedilamento do alcance de um grau distinto
de movimentaccedilatildeo das arquitetocircnicas conceituais
12
Embora tais palavras pareccedilam abstratas em demasia (e de fato satildeo) o foco atingido se
concentrou em uma inquiriccedilatildeo a respeito do pensamento da linguagem e da verdade a partir
de um inusitado enigma sobre a negatividade do impensaacutevel ou seja sobre o silecircncio que
emerge no preciso momento no qual o pensamento eacute estarrecido e a liacutengua cala
A armadilha construiacuteda a partir das muacuteltiplas tentativas de elaboraccedilatildeo de conceitos afeta
natildeo somente a formataccedilatildeo silogiacutestica do intelecto humano comum mas ainda as
particularidades dos diversos modos de expressatildeo geograficamente distintos Correndo o risco
de se tornar antes uma antropologia filosoacutefica do que propriamente uma histoacuteria e criacutetica da
metafiacutesica o trabalhou refletiu uma anaacutelise agrave proacutepria concepccedilatildeo pela qual se distingue uma
filosofia da outra execrando qualquer nacionalismo filosoacutefico e investigando as questotildees que
envolvem a existecircncia humana dentro de seu modo relacional com o ser e com o ambiente que
a cerca O resultado foi a apresentaccedilatildeo de uma filosofia comparada intercultural que aparece
natildeo simplesmente como um campo disciplina ou subaacuterea da filosofia mas antes como uma
maneira pela qual eacute possiacutevel pensar filosoficamente para aleacutem das fronteiras de uma mera
linguagem de primeira ordem Dentro deste contexto nasce a hipoacutetese do tema o conflito das
fronteiras a partir do pressuposto de uma abordagem aos temas centrais do pensamento
contemporacircneo sustentando a interculturalidade filosoacutefica como aporte central
A proposiccedilatildeo fundamental desta tese adveacutem de alguns questionamentos particulares e
pontuais em um fluxo semelhante ao da dissertaccedilatildeo de 2010 Em abril de 2009 enquanto ainda
trabalhava no texto do mestrado teve lugar no campus da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte o III Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica comissionado pelos professores Oscar
Federico Bauchwitz Jaimir Conte Maria da Paz Nunes de Medeiros e Markus Figueira da Silva
O evento marcava a consolidaccedilatildeo da linha de pesquisa em Metafiacutesica do Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Filosofia da universidade trazendo em sua terceira ediccedilatildeo o tema O que eacute
metafiacutesica Em homenagem aos oitenta anos da preleccedilatildeo homocircnima de Martin Heidegger
13
A conferecircncia pronunciada por Heidegger aos 24 de julho de 1929 foi preparada como
aula inaugural para a assunccedilatildeo da caacutetedra de filosofia que antes pertencera a Edmund Husserl
na Albert-Luumldwigs Universitaumlt Freiburg im Breisgau O escrito se tornou um dos mais
emblemaacuteticos conhecidos e discutidos textos de Heidegger Talvez o fator mais impactante da
preleccedilatildeo seja antes mesmo da abordagem temaacutetica o meacutetodo pouco usual conforme o qual o
questionamento eacute elaborado Heidegger inicia a aula dizendo que embora a questatildeo suscite a
expectativa de que se falaraacute sobre a metafiacutesica ele iraacute na verdade discutir uma questatildeo
metafiacutesica particular proporcionando uma movimentaccedilatildeo em seu interior e habilitando a
oportunidade para que a ela apareccedila por si soacute a partir do problema levantado (cf HEIDEGGER
1976 103) Deixar a metafiacutesica se apresentar por si soacute antes do que sobre ela discorrer
evidencia uma feiccedilatildeo um tanto distinta da abordagem de Heidegger ao problema uma de suas
marcas registradas todavia
Raras vezes a tradiccedilatildeo ocidental se deparou com tal niacutevel de heterodoxia no que tange
agrave instruccedilatildeo filosoacutefica (talvez apenas Platatildeo tenha cunhado semelhante meacutetodo ao perseguir o
pescador com o anzol antes de se aproximar da figura do sofista por exemplo ndash natildeo consigo
pensar em outras ilustraccedilotildees agora mesmo embora certamente elas existam) Uma linha de
raciociacutenio como esta aproxima-se muito mais de uma postura oriental
Durante o Coloacutequio aleacutem de retomar pela eneacutesima vez a leitura da preleccedilatildeo de
Heidegger lembro-me de me dedicar agrave leitura da claacutessica obra propedecircutica de Kaiten Nukariya
The Religion of Samurai (1913) a primeira obra sobre zen budismo publicada no Ocidente (em
liacutengua ocidental) Apoacutes uma breve introduccedilatildeo sobre a origem do budismo na Iacutendia e o percurso
de Śākyamuni Siddhārta Gautama (o Buddha Śākyamuni शाकयमनि) Nukariya relata a maneira
pela qual o monge Bodhidharma introduz o budismo na China destacando que seu meacutetodo era
inteiramente diferente dos outros instrutores de ensino ordinaacuterios
14
Sobre Bodhidharma Nukariya relata ldquoEle natildeo explicaria nenhum problema ao
estudante mas simplesmente ajudaacute-lo-ia a ser iluminado colocando-o um abrupto poreacutem eficaz
questionamentordquo (NUKARIYA 2006 10) Com esta metodologia tem iniacutecio a tradiccedilatildeo de
budismo chinecircs nomeada chrsquoan (dʑjen 禪) uma traduccedilatildeo do termo sacircnscrito dhyāna (धयाि) cujo
significado mais geral seria ldquomeditaccedilatildeordquo ou ldquopensamentordquo que futuramente seria lido na
pronuacutencia japonesa (くんよみ kun-yomi) do ideograma como zen (禅 ) Apoacutes expor esta
caracteriacutestica iacutempar do ensino de Bodhidharma Nukariya ainda relata uma breve histoacuteria na
qual um tal Shang Kwang havia requisitado ao mestre que ldquolhe pacificasse a menterdquo
Prontamente Bodhidharma teria respondido ldquoTraga-me aqui sua mente ante mim para que eu
a pacifiquerdquo e Shang Kwang teria replicado ldquomas isto eacute impossiacutevelrdquo recebendo em seguida
a resposta ldquoentatildeo jaacute pacifiquei sua menterdquo Shang Kwang foi instantaneamente iluminado
Certamente Martin Heidegger natildeo exige de seus ouvintes leitores e interlocutores uma
iluminaccedilatildeo tatildeo abrupta e desprovida de raciociacutenio loacutegico mas nem por isto suas reivindicaccedilotildees
satildeo menos ousadas e intensas ou sua meditaccedilatildeo menos profunda Heidegger propocircs diversas
reflexotildees que extraiacutedas de seu contexto especiacutefico configuram-se tatildeo inusitadas quanto as
passagens da tradiccedilatildeo chrsquoan ou zen sendo por vezes consideradas mesmo impertinentes Eacute o
caso de uma de suas mais arrojadas e emblemaacuteticas afirmaccedilotildees ldquoO mais grave eacute que natildeo
pensamosrdquo (HEIDEGGER 2002 6) Desconsiderando o sentido ao qual a sentenccedila pertence
certamente as palavras de Heidegger parecem uma afronta Todavia o leitor atento sabe que
Heidegger se refere agrave distinccedilatildeo entre um pensamento calculador (rechnende Denken) e um
pensamento meditativo (Besinnung) reportando-se ao velamento deste uacuteltimo e da supremacia
exclusiva do primeiro por meio do qual se faz ciecircncia e se daacute o desenvolvimento estrutural da
condiccedilatildeo tecnoloacutegica imperiosa Eacute justamente dentro deste fluxo que Heidegger afirma a
predominacircncia do pensamento cientiacutefico tambeacutem em Was ist Metaphysik
15
Para ingressar no interior da metafiacutesica Heidegger chama atenccedilatildeo ao fato de que a
existecircncia humana eacute hoje sobremaneira norteada pela ciecircncia Embora alguns opositores ainda
resistam agrave tal afirmaccedilatildeo natildeo eacute todavia difiacutecil convencecirc-los do contraacuterio argumentando em
favor da tese de Heidegger Natildeo se trata apenas de afirmar que o ser humano se apoia e confia
uacutenica e exclusivamente (quiccedilaacute mesmo cegamente) na ciecircncia como modo de desenvolvimento
e sustentaccedilatildeo da vida humana na Terra Antes disto e mais grave ainda trata-se de constatar
que a maneira pela qual o ser humano hoje pensa eacute tatildeo somente cientiacutefica mesmo em casos nos
quais o discurso supostamente se volta para um tema espiritual ou de feacute (ou qualquer outro
assunto) ndash a despeito de qualquer pretensa e torta teosofia eacute ainda a teologia a ciecircncia reinante
dos seminaacuterios sem embargo Independente do tema ou assunto da circunstacircncia ou
necessidade a maneira de proceder eacute jaacute sempre cientiacutefica sustentada por uma loacutegica inflexiacutevel
que imputa sua norma de que ldquosendo algo aquilo mesmo isto ou bem eacute ou bem natildeo eacute natildeo
havendo uma terceira opccedilatildeordquo
Em outras palavras parece ter se ocultado na mente humana qualquer outro modo de
pensar que natildeo seja o propriamente cientiacutefico Este modo cientiacutefico de pensar possui algumas
caracteriacutestica pelas quais se pode evidenciaacute-lo estritamente desde um triacuteplice entendimento que
compreende ldquoreferecircncia ao mundordquo ldquoposturardquo e ldquoirrupccedilatildeordquo Heidegger explica estes pontos
ldquoAquilo que na referecircncia ao mundo permanece eacute o ente em si mesmo ndash e mais nada Aquilo
que lidera toda postura eacute o ente em si mesmo ndash e nada mais Aquilo que faz acontecer a
discussatildeo investigativa da irrupccedilatildeo eacute o ente em si mesmo ndash e aleacutem disto nadardquo (IDEM OP CIT
105) A cientificidade da existecircncia humana se expressa mediante uma projeccedilatildeo ao ente e nada
mais Ao afirmar a determinaccedilatildeo da ciecircncia na vida e conduta humanas Heidegger quer deixar
ver sobretudo isto o fato de que hoje soacute eacute validado o discurso de um sujeito cujo objeto
cognosciacutevel eacute um ente este mesmo que subjacente obsta-lhe Dentro da relaccedilatildeo entre sujeito
e objeto toda uma tradiccedilatildeo se fundamenta e doravante prossegue da mesma maneira
16
Fazendo uma revisatildeo dos passos da histoacuteria do pensamento humano seria mais ou menos
faacutecil portanto imaginar como a partir da metafiacutesica claacutessica se desdobra o cientificismo
sobretudo tendo em vista a doutrina das Categorias de Aristoacuteteles aleacutem da tatildeo aclamada
ldquociecircncia do ente enquanto enterdquo Contudo natildeo eacute este o alvo de Heidegger Deixar a metafiacutesica
aparecer por si soacute deve contemplar a totalidade do questionamento proposto e natildeo um
historicismo vulgar Que todo raciociacutenio eacute regulado e direcionado pelo ente facilmente
constata-se Agora bem o que se passa com a outra parte da inquiriccedilatildeo qual seja o ldquonada
maisrdquo Heidegger formula a questatildeo ldquoA ciecircncia natildeo quer saber do nada Mas certamente em
sua permanecircncia ao manifestar sua proacutepria natureza chama o nada para ajudar O que ela
rejeita eacute necessaacuterio para classificaacute-la Que ambiacutegua essecircncia se revela aiacuterdquo (ID IBIDEM 106) Ao
perquirir o ente e aleacutem disto nada o elemento que confere a exatidatildeo de sua pesquisa eacute
auxiliado pelo ldquonadardquo ou seja trata-se disto e nada mais (por mais redundante e ambivalente
que soe ateacute mesmo um pouco non sense) Heidegger pergunta ldquoO que acontece com o nadardquo
(ID IBID) ou ainda para onde vai esse nada em meio agrave existecircncia cientiacutefica
Eacute justamente a inusitada apariccedilatildeo deste nada que revela o incocircmodo de um elemento
impensaacutevel e inexprimiacutevel que natildeo se dobra ante agrave relaccedilatildeo sujeito-objeto Natildeo eacute preciso aqui
destrinchar todo o caminho percorrido por Heidegger em Was ist Metaphysik Trata-se de um
texto bastante lido e amplamente comentado Basta apenas pontuar a sentenccedila central da
conferecircncia (ou a pergunta-condutora a Leitfrage) por meio da qual emerge a resposta agrave
questatildeo ldquoo que eacute metafiacutesicardquo ldquoPor que haacute absolutamente o ente e natildeo antes nadardquo (ID IBID
122) O extraordinaacuterio da questatildeo eacute justamente a capacidade do ser humano em por ela
perguntar A capacidade de questionar ldquopor que natildeo nadardquo define uma disposiccedilatildeo fundamental
da existecircncia quiccedilaacute mesmo aquela ocultada pelo modo cientiacutefico de existir (ou seja
paradoxalmente este mesmo modo eacute responsaacutevel por evidenciar o que nele se perde)
17
A disposiccedilatildeo que regula a eleiccedilatildeo do modo cientiacutefico de pensar tem em vista
salvaguardar o humano do abismo (da falta de fundamento) que se abre quando o nada emerge
silencia o discurso e joga o ser humano em uma situaccedilatildeo incocircmoda uma anguacutestia profunda
Quase como um mestre zen Heidegger deixa a metafiacutesica se abrir natildeo pela pergunta nem
sequer pela acircnsia de prover ao interlocutor (ou a si mesmo) uma resposta mas pela simples
possibilidade e capacidade de perguntar A metafiacutesica neste sentido perdura antes como uma
decisatildeo Ao que parece por este motivo Heidegger cita um trecho de Eacutedipo em Colonos de
Soacutefocles no posfaacutecio agrave preleccedilatildeo (em 1943) destacando os versos (em sua traduccedilatildeo particular
por mim aqui pobremente e quiccedilaacute mesmo irresponsavelmente adaptada) que dizem
ἀλλ᾽ ἀποπαύετε μηδ᾽ ἐπὶ πλείω
θρῆνον ἐγείρετε˙
πάντως γὰρ ἔχει τάδε κῡρος
Mas paremos e nunca mais a partir de agora
despertaremos o lamento
Em todos os lugares se deteacutem o evento
assegurando-lhe uma decisatildeo pela conclusatildeo (ID IBID 312)
A ldquodecisatildeo pela conclusatildeordquo coloniza todos os lugares e se deteacutem a partir de agora em uma
posiccedilatildeo da qual natildeo mais se sairaacute A anguacutestia revelada a partir do pensamento em torno ao
nada manifesta os limites da linguagem e vislumbra o destino do ente no ser em sua plenitude
e predominacircncia Mas para aleacutem da constataccedilatildeo da indigecircncia da linguagem haacute todavia uma
possibilidade de abordar efetivamente esse nada Como eacute possiacutevel pensar para aleacutem da
delimitaccedilatildeo entificante da referecircncia ao mundo da postura e da irrupccedilatildeo Haacute um caminho de
ultrapassagem e superaccedilatildeo possiacutevel ainda nos dias de hoje
18
Ao passo em que avanccedilava nas leituras e Heidegger e em algumas outras esta se tornou
a pergunta-chave pela qual imaginava atingir certo direcionamento temaacutetico A despeito da
disposiccedilatildeo de humor apresentada na conferecircncia bem como das consideraccedilotildees do posfaacutecio de
1943 os trabalhos de Heidegger dos anos de 1930 em diante datildeo a entender um claro
direcionamento pelo qual os elementos abandonados pela entificaccedilatildeo do pensamento podem ser
evidenciados qual seja a partir da poesia Os versos de Soacutefocles segundo o proacuteprio Heidegger
ldquoa uacuteltima poesia do uacuteltimo poeta gregordquo natildeo estatildeo ali dispostos sem motivo Tambeacutem natildeo eacute
sem razatildeo que a partir de aiacute haacute uma incansaacutevel busca pela poesia de Friedrich Houmllderlin (aleacutem
de Georg Trakl Stephan George Rainer Maria Rilke e de outros poetas escolhidos por
Heidegger) Ateacute certo ponto eacute possiacutevel afirmar que Heidegger encontra na poesia a
possibilidade de superar a linguagem por meio da proacutepria linguagem Em alguns outros
momentos uma meditaccedilatildeo de teor semelhante aparece como no encontro entre Heidegger e os
japoneses (como apresentei na dissertaccedilatildeo de 2010) Contudo restava ainda buscar os modos
de reflexatildeo que natildeo simplesmente podiam ir aleacutem da expressatildeo da ciecircncia do ente enquanto
ente mas ainda colocaacute-la em questionamento mediante outros meacutetodos
Foi na abertura do III Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica que minhas inquietaccedilotildees
comeccedilaram a se asseverar e ganhar corpo para o que viria a ser esta tese A conferecircncia
inaugural do evento foi sobremaneira marcante neste processo O professor Gilvan Fogel da
Universidade Federal do Rio Janeiro havia sido convidado para encerrar o primeiro dia de
evento Ele apresentou naquela noite a conferecircncia O que eacute metafiacutesica Como ele mesmo frisou
ldquonatildeo a pergunta mas a respostardquo Havia sem embargo a intenccedilatildeo de responder a pergunta
em um certo direcionamento eacute claro O texto vinha ainda acompanhado de um subtiacutetulo (com
o qual foi publicado como tiacutetulo oficial alguns anos depois diga-se de passagem) Sobre a
metafiacutesica ou a respeito do jejum O mote para o subtiacutetulo o proacuteprio professor o explica na
passagem inicial do texto que gostaria de citar por completo agora mesmo
19
O subtiacutetulo pode soar estranho insoacutelito e natildeo muito seacuterio Mas pelo que ele insinua
pretende anunciar algo seacuterio mesmo muito seacuterio a saber a metafiacutesica E a inspiraccedilatildeo
ou a motivaccedilatildeo que propicia o encaminhamento para a questatildeo anunciada a
metafiacutesica vem de uma obra igualmente seacuteria muito seacuteria ainda que se possa melhor
que se deva dela se ocupar tambeacutem com grandes e gostosas gargalhadas ndash aquelas que
no destampar do riso sacudindo a barriga bem solta e largada deixam escorrer
viacutesceras pela boca afora Estou me referindo ao Dom Quixote o Engenhoso Fidalgo
Dom Quixote lsquode la Mancharsquo ndash o ldquoda Triste Figurardquo
Entre as poesias que preludiam a primeira parte e que homenageiam seus personagens
maiores temos o uacuteltimo que eacute um diaacutelogo em forma de soneto entre Babieca o
cavalo de El Cid e Rocinante o grande rocim o pangareacute erado de Dom Quixote A
certa altura do diaacutelogo-soneto Babieca pergunta ldquoSeraacute tolice amarrdquo e Rocinante
responde ldquoNatildeo eacute muito prudenterdquo Babieca retruca ldquoEstaacutes metafiacutesicordquo E Rocinante
contesta enfaacutetico ldquoEacute que natildeo comordquo (FOGEL 2011 101)
A passagem sugere que a metafiacutesica eacute antes de tudo coisa de fome Por isto ldquoa respeito do jejumrdquo
denuncia a indisposiccedilatildeo que envolve a metafiacutesica A metafiacutesica eacute portanto certo incocircmodo que
eacute tambeacutem necessidade premente decorrente de certa privaccedilatildeo A partir disto Fogel delineia o
tipo de jejum ao qual se refere natildeo se trata de um jejum nutricional alimentiacutecio mas jejum de
vida conforme ele mesmo diz ldquo() natildeo vida no sentido bioloacutegico mas no sentido banal e
corriqueiro como falamos da vida de ldquonossa vidardquo ndash que ela eacute boa ou ruim ou um buracordquo
(IDEM IBIDEM 102) Esta vida a vida imanente a vida do cotidiano do dia-a-dia esta mesma
que ocupa o tempo e o espaccedilo sofre priva-se absteacutem-se Esta abstenccedilatildeo e privaccedilatildeo satildeo a
condiccedilatildeo pela qual reverbera sua constituiccedilatildeo enquanto sujeito ndash e nasce aiacute uma interpretaccedilatildeo
do que eacute enfim metafiacutesica A partir da conferecircncia de Fogel aleacutem de algumas outras
consideraccedilotildees comecei a ponderar a maneira pela qual abordaria o problema
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Natildeo por meio de uma definiccedilatildeo conceitual acontecimento histoacuterico ou muacutetuo
consentimento temaacutetico mas por meio de uma experiecircncia de pensamento que sem deixar de
lado nenhum dos elementos supracitados configura-se antes como algo intriacutenseco agrave proacutepria
natureza do pensar Ponderando as consideraccedilotildees da conferecircncia de Heidegger a metafiacutesica se
deixa mostrar como uma decisatildeo pela conclusatildeo Um iacutempeto maior do ser humano em
resguardar sua condiccedilatildeo de pacificidade A humanidade teme o caos teme o desalinho receia
o incoacutegnito e inexprimiacutevel Elege por isto seu caminho de seguranccedila com aquilo que lhe eacute
papaacutevel o ente enquanto ente e nada mais Nada quer saber do nada que nada lhe oferece aleacutem
de um indisposto silecircncio um insoacutelito vazio Mediante esta postura embora sob o risco de
ocultar algo em si mesmo que talvez lhe sirva para alcanccedilar siacutetios recocircnditos do misteacuterio de
sua proacutepria existecircncia constitui-se o ser humano um metafiacutesico Sem embargo eacute preciso abster-
se de algo em prol disto ou daquilo que se lhe afigura mais propiacutecio ao momento Fogel enxerga
isto como privaccedilatildeo como jejum como fome Fica muito claro em sua interpretaccedilatildeo o caraacuteter
inflexiacutevel da decisatildeo pela conclusatildeo sobretudo quando traz agrave luz o curioso caso de Vicent van
Gogh
Fogel cita uma carta que van Gogh teria enviado em maio de 1888 a seu irmatildeo Theacuteo
onde descreve sua nova moradia e ao mesmo tempo atelier afirmando que o local eacute pouco
atraente para desenvolver qualquer tipo de flerte ou paquera acrescentando que dificilmente
enxerga como compatiacuteveis o trabalhar e o farrear (faire la noce) A verdade eacute que van Gogh
natildeo possui outra opccedilatildeo senatildeo se privar da diversatildeo do faire la noce natildeo porque eacute asceta ou
abstecircmio nem porque precisa dedicar mais tempo ao seu trabalho ou pagar suas contas (todos
sabem da condiccedilatildeo por vezes paupeacuterrima na qual ele se encontrou ao longo de seu percurso)
mas por ser artista por ser pintor por pintar Urge no artista uma realidade que parece muito
mais real que a vida comum na qual o farrear remete ao contentamento agrave felicidade Natildeo viver
a vida para van Gogh seria natildeo pintar
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Se viver a vida eacute buscar este contentamento esta felicidade entatildeo van Gogh vive para
natildeo-viver Natildeo-viver se torna paradoxalmente a expressatildeo maacutexima da vida metafisicamente
entendida Fogel completa ldquoE por que natildeo viver este natildeo-viver seria ingratidatildeo Seria isso a
saber a distacircncia o agrave parte um dom um presente uma graccedilardquo (IDEM IBIDEM 105)
acrescentando ainda ldquoA metafiacutesica desde que jejum abstinecircncia de vida de viver seria
igualmente muita vida e natildeo cumpri-la natildeo realizaacute-la isto eacute natildeo pensar uma grande
ingratidatildeordquo (ID IBID) e por fim sugerindo ldquoAqui precisa-se confessar viver natildeo eacute preciso
Pintar pensar fazer quadros fazer metafiacutesica ndash isso eacute precisordquo (ID IBID) Ressalte-se o tom das
inquiriccedilotildees da interrogaccedilatildeo acompanhada pela exclamaccedilatildeo A precisatildeo da qual fala fazendo
menccedilatildeo a Fernando Pessoa eacute a necessidade de justeza de ser preciso e acurado destro
rigorosamente alinhado ao fazer metafiacutesica Assim se configura algo muito iacutentimo e sem
embargo inevitaacutevel na natureza humana
Fogel prossegue sua exposiccedilatildeo chamando ao diaacutelogo o Zaratustra de Friedrich
Nietzsche especificamente a seccedilatildeo intitulada Da Visatildeo e do Enigma na qual reincide o anuacutencio
da famosa doutrina do Eterno Retorno citando o trecho que diz
O homem eacute todavia o mais corajoso animal assim ele supera todo e cada animal Com
o jogo sonoro supera ele tambeacutem a dor Mas a dor humana eacute a dor mais profunda A
coragem tambeacutem indica a tontura morte em abismos e onde estaria o homem senatildeo
em abismos Ele natildeo vecirc a si mesmo ndash vecirc abismos (NIETZSCHE 2005 119)
Para Fogel o ldquoverrdquo natildeo denuncia uma observaccedilatildeo circunvisatildeo ou vislumbre mas antes um
acontecimento uma iluminaccedilatildeo um tornar visiacutevel Torna-se visiacutevel o abismo o sem fundo
sem fundamento Ao que parece quanto mais o ser humano contempla sua proacutepria existecircncia
mais sem chatildeo fica maior eacute a falta de fundamento e com maior radicalidade se abre um abismo
frente aos seus peacutes
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Eacute possiacutevel todavia prosseguir caminhando ao lado de Nietzsche e Heidegger bem como
por meio das reflexotildees e interpretaccedilotildees oferecidas por Fogel buscando alcanccedilar uma feiccedilatildeo da
vida humana que permita descortinar a proveniecircncia metafiacutesica de seu percurso e ateacute mesmo
suscitando uma ultrapassagem deste fenocircmeno Contudo eacute necessaacuterio ainda precisar com maior
cuidado os termos contidos na questatildeo Faz parte do labor filosoacutefico se afundar mais e mais em
algo que por si soacute jaacute eacute bastante fundo
Natildeo apenas os pensamentos de Nietzsche e Heidegger oferecem uma especulaccedilatildeo de
formidaacutevel profundidade difiacutecil de ser absorvida em primeira matildeo como tambeacutem por vezes
pode se mostrar demasiado complexo empreender um rastreamento do sentido originaacuterio das
palavras e sentenccedilas salvo mediante uma anaacutelise completa (empresa complicadiacutessima
provavelmente impossiacutevel) de suas obras Mesmo assim talvez ainda natildeo se mostre com
suficiente nitidez se natildeo houver de antematildeo uma explanaccedilatildeo das fontes e referecircncias cruzadas
Com estas ideias em mente buscando avanccedilar cada vez mais no tema e sobre ele meditar
com cada vez mais dedicada atenccedilatildeo e profundidade tentando ampliar com ferocidade o
vocabulaacuterio (para fazer minhas as palavras de Marco Lucchesi) outro escrito me sobreveio
durante o processo de composiccedilatildeo das hipoacuteteses contidas neste trabalho Em Nihilismo e
Neoplatonismo (2003) Oscar Federico Bauchwitz traccedila algumas linhas que especificam a
condiccedilatildeo por meio da qual o problema efetivamente se apresenta
Haacute no texto de Bauchwitz tambeacutem um necessaacuterio retorno a Nietzsche e Heidegger Natildeo
apenas dentro do contexto de um estudo da metafiacutesica enquanto histoacuteria intelectual mas ainda
constatando os tempos onde ela se apresenta como formataccedilatildeo do modo de ldquoagir-pensarrdquo torna-
se imprescindiacutevel resgatar a lembranccedila de que ldquo() com Nietzsche se estabelece uma criacutetica da
metafiacutesica que acaba por homologar o seu oacutebitordquo (BAUCHWTIZ 2003b 169) Como explica
Bauchwitz a declaraccedilatildeo da morte da metafiacutesica eacute aquela mesma da morte do platonismo
cristianismo niilismo e outros sinocircnimos para o mesmo fenocircmeno
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Esta morte natildeo eacute todavia apenas uma declaraccedilatildeo da inexistecircncia corrente do pensamento
metafiacutesico senatildeo sua consumaccedilatildeo total e absoluta A ldquociecircncia do ente enquanto enterdquo entifica
tudo aquilo que outrora foi nomeado vida (φύσις) pelos gregos dos periacuteodos arcaico e claacutessico
ndash das coisas ao redor aos pensamentos e aos deuses A entificaccedilatildeo do mundo em torno eacute sem
sombra de duacutevidas a maneira pela qual a ciecircncia vigente concebe o mundo configurando o que
Heidegger havia chamado de ldquoreferecircncia ao mundordquo A entificaccedilatildeo do pensamento por sua vez
denota a ldquoposturardquo tambeacutem mencionada por Heidegger aquela mesma segundo a qual haacute uma
maneira ldquocorretardquo de pensar Ao passo que a entificaccedilatildeo dos deuses um pouco mais complicada
apresenta-se como ldquoirrupccedilatildeordquo na qual a circunvisatildeo resultante dos dois elementos acima
mencionados denuncia a morte de deus a fuga dos deuses o viver sem o divino sem o
iluminado sem o deslumbre Desatados os laccedilos entre ser humano e divindade Bauchwitz
questiona ldquoO que natildeo pode o homem modernordquo (IDEM IBIDEM 170) questionamento que
poderia ainda ser vertido nos termos (mais ou menos) de Dostoievsky ldquose deus morreu entatildeo
tudo eacute permitidordquo ou ainda nos (mais ou menos novamente) de Heidegger ldquose apagou da
histoacuteria universal o esplendor da divindade Essa eacute a eacutepoca da noite do mundordquo Contudo para
Bauchwitz perdura algo no labor filosoacutefico que torna liacutecito novamente regressar agrave questatildeo Ele
explica que ldquoResgatar a forccedila mais originaacuteria das palavras eacute o ofiacutecio do filoacutesofo Por isso
dizemos que a miacutestica se mostra no fechar de olhos no fechar da bocardquo (ID IBID 173) Recordo-
me acompanhando os seminaacuterios matinais do professor Bauchwitz de ouvir certa vez a
sentenccedila ldquoo miacutestico estaacute sempre em conflito com a linguagemrdquo Conflito ou confronto natildeo me
lembro muito bem Havia de fato escrito a frase literalmente ao peacute da paacutegina de algum livro
(ou alguma fotocoacutepia) que agora mesmo esqueccedilo qual era e natildeo consigo encontrar
Independente das palavras exatas o que se apresenta no texto de Bauchwitz eacute a sugestatildeo de um
caminho para este resgate por meio de um conflito o confronto suscitado pela miacutestica
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Bauchwitz escreve ldquoO miacutestico eacute em primeiro lugar aquele que acolhe o misteacuterio dentro
de si recolhendo em silecircncio o sentido oculto da realidade soacute depois eacute que o silecircncio rompe a
barreira dos dentes para mostrar-se linguagemrdquo (ID IBID) E ainda prossegue especificando que
ldquoPor isso a miacutestica eacute uma experiecircncia radical da liberdade proacutepria Abrindo matildeo de um mundo
que clama sua atenccedilatildeo o miacutestico encontra-se com o que nele eacute totalmente incoacutegnito e
incognosciacutevel um eu que se mostra como puro nadardquo (ID IBID) A maneira pela qual Bauchwitz
iraacute desdobrar a explicaccedilatildeo destas sentenccedilas sobremaneira enigmaacuteticas percorreraacute trecircs
pensadores que marcam a tradiccedilatildeo do neoplatonismo e da chamada miacutestica medieval quais
sejam Pseudo-Dioniacutesio Areopagita Joatildeo Escoto Eriuacutegena e Mestre Eckhart Contudo o que
havia me saltado aos olhos antes da eleiccedilatildeo temaacutetica autoral ou metodoloacutegica havia sido a
sentenccedila ldquoum eu que se mostra como puro nadardquo Jaacute havia encontrado semelhante formulaccedilatildeo
todavia nunca em autores ocidentais Remeti diretamente a maneira pela qual a tradiccedilatildeo
mahāyāna do budismo do leste asiaacutetico havia compreendido a noccedilatildeo do natildeo-si-mesmo ou natildeo-
ego (anātman अितमि) como dissoluccedilatildeo do eu por meio da tensatildeo entre forma (ou fenocircmeno ou
ainda aparecircncia rūpa रप) e nada (ou vacuidade śūnyatā शनयता) Estas ideias derivam
diretamente do chamado Cacircnone Pāḷi tendo sido transmitidas em sacircnscrito pelo Sūtra do
Coraccedilatildeo (Prajntildeāpāramitā Hṛdaya परझञापारनमताहरदय) ateacute alcanccedilarem formas mais refinadas no
budismo chrsquoan e no zen budismo japonecircs assumindo as configuraccedilotildees de ldquoformardquo ou
ldquoaparecircnciardquo enquanto shiki (色) e ldquonadardquo ou ldquovacuidaderdquo enquanto kū (空) elementos centrais
do pensamento da filosofia japonesa contemporacircnea da Escola de Kyōto (e que tambeacutem havia
abordado brevemente em minha dissertaccedilatildeo de mestrado) Tornou-se imperioso investigar ateacute
que ponto tais ideias se aproximam ou comungam de princiacutepios convergentes aleacutem da maneira
como elas repercutem em suas tradiccedilotildees e particularidades Mais uma vez encontrava-me frente
ao sem-fim nuacutemero de possibilidades comparativas e complementares
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Contudo temia o risco de cair no engodo certa vez denunciado por Immanuel Kant
quando afirmou em seus Prolegomena zu einer jeden kuumlnftigen Metaphyysik (1783) que ldquo()
dificilmente se espera que natildeo seja possiacutevel descobrir analogias para cada nova ideia entre ditos
de eras passadasrdquo (KANT 1911 7) natildeo havendo grande meacuterito nisto e sendo necessaacuterio admitir
que estes historiadores da filosofia ocupados com tal empreendimento devam antes aguardar
que os ldquoverdadeiros filoacutesofosrdquo esgotem as fontes da razatildeo Sob pena de realizar uma mera
comparaccedilatildeo friacutevola (embora com a consciecircncia de que passo longe de ser um ldquoverdadeiro
filoacutesofordquo ao menos no sentido Kantiano ndash talvez o seja em outro digamos mais Ginsbergiano
de pura pretensatildeo mas certamente natildeo muito talento) ocupei-me em corretamente designar o
problema que me afligia de modo que fosse possiacutevel corretamente endireitar o roteiro da tese
Era preciso encontrar um mote mesmo que ele natildeo deixasse ver claramente os passos a serem
percorridos mas que provessem alguma direccedilatildeo
Tendo isto em vista natildeo podia negar que o interesse pelo que ousei chamar de ldquoconflito
das fronteirasrdquo crescia a partir de um ldquopar de viacutergulasrdquo que aparentemente haviam escapado agrave
anaacutelise da histoacuteria do pensamento Em outras palavras um determinado momento no qual o
transcurso metafiacutesico foi levemente desviado em uma guinada espontacircnea e natural como um
marinheiro que sutilmente move o leme para a esquerda ou para direita ao perceber o advento
de uma portentosa onda logo atraacutes de si soltando o motor e deixando o barco ser levado pelo
mar ndash saacutebia decisatildeo em momentos de tormenta (passei por esta situaccedilatildeo certa vez em mar
aberto transitando entre Paraty e uma praia recocircndita Pouso do Cajaiacuteba se natildeo me falha a
memoacuteria gostaria de poder descrever em pormenores a experiecircncia que seria proveitosa ao
leitor em termos ilustrativos mas estava muito enjoado no barco para congregar detalhes
miacutesticos em minha massa cinzenta) E eram momentos de tormenta Como poderiam natildeo ser
Sendo assim estabeleci um conveniente itineraacuterio (ao menos sob meu ponto de vista) que
compartilho antes de iniciar o trabalho
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O primeiro passo importante eacute estabelecer dentro de quais termos se apresenta a
metafiacutesica pela qual se nomeia a histoacuteria do pensamento ocidental O primeiro capiacutetulo da tese
intitulado Ontologia a substantivaccedilatildeo do Ocidente e a delimitaccedilatildeo das fronteiras do
pensamento ocupa-se de tal apresentaccedilatildeo e eacute na verdade bastante simples apesar do tiacutetulo
pomposo A despeito da abordagem histoacuterico-conceitual desdobrada em um primeiro momento
o capiacutetulo segue em consonacircncia com a avaliaccedilatildeo de Martin Heidegger assumindo-o como
interlocutor e inteacuterprete da histoacuteria e criacutetica da metafiacutesic Haacute aqui uma ecircnfase nas leituras por
meio das quais Heidegger caracterizou de maneira direta a passagem de uma fisiologia grega
claacutessica (por ele nomeada ldquopensamento originaacuteriordquo) para o acircmbito da ontologia latina e o modo
conforme o qual a proacutepria ideia de ldquoserrdquo eacute compreendida de maneira tatildeo somente substantivada
a partir de seu particiacutepio presente ldquoenterdquo Um necessaacuterio retorno cronoloacutegico-regressivo eacute
estabelecido do fim ao iniacutecio da modernidade pontuando autores como Jacob Lorhard e
Francisco Suaacuterez Todavia o objetivo principal do capiacutetulo eacute compreender este modo de
substantivaccedilatildeo e quais as consequecircncias disto para o pensamento em um sentido geral (a
delimitaccedilatildeo de suas fronteiras no final das contas) sem nunca perder de vista o peso aristoteacutelico
da designaccedilatildeo e realizando algumas especificaccedilotildees sobre isto
O segundo capiacutetulo intitulado O caminho da negatividade henologia e meontologia e
a ultrapassagem dos limites da metafiacutesica pretende caracterizar efetivamente essa nomeada
ldquonegatividaderdquo Negatividade que natildeo eacute simplesmente predominacircncia de um ldquonatildeordquo ou partiacutecula
de privaccedilatildeo mas antes assunccedilatildeo de um oxiacutemoro o auscultar de um inaudito Desenvolve-se
como argumento central por meio do qual se evidencia as estruturas baacutesicas de um pensamento
radical a evidenciaccedilatildeo de uma meditaccedilatildeo que jaacute natildeo eacute mais norteada pelo ldquoenterdquo mas sim pelo
ldquounordquo (henologia) neoplatocircnico ou mesmo por uma profunda meditaccedilatildeo em torno ao ldquonadardquo
(meontologia) presentes no neoplatonismo e sobremaneira evidentes no pensamento miacutestico
27
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo nomeado O Extremo Oriente e o conflito das fronteiras a
filosofia comparada intercultural como chave de leitura para alguns problemas do pensamento
contemporacircneo pretende conectar os pontos e resgatar o sentido da tese O capiacutetulo traz uma
breve apresentaccedilatildeo da chamada Escola de Kyōto e a constituiccedilatildeo da filosofia japonesa
contemporacircnea Este eacute o momento no qual eacute possiacutevel observar a recepccedilatildeo contemporacircnea da
filosofia ocidental (tanto dentro da tradiccedilatildeo metafiacutesica quanto ldquoforardquo dela na dita negatividade)
e o diaacutelogo (e siacutentese) com o mundo do Extremo Oriente O objetivo eacute portanto pensar em
comunhatildeo com os pensadores da Escola de Kyōto com especial atenccedilatildeo para Keiji Nishitani
(西谷 啓治) observando suas propostas para anaacutelise e resoluccedilatildeo dos problemas de filosofia
contemporacircnea e buscando um esclarecimento a respeito dos termos indicados
Ao fim e ao cabo a intenccedilatildeo aqui eacute convidar os leitores ao diaacutelogo intercultural
apresentando em um diaacuterio de minhas leituras diferentes nuances e pontos de vista a respeito
de algumas questotildees especiacuteficas e ousando um diagnoacutestico da filosofia contemporacircnea bem
como uma vaacutelvula de escape para a atual condiccedilatildeo do pensamento filosoacutefico Caso a empreitada
logre ecircxito acredito que uma nova conversa se abra e novas ideias venham agrave mente Sem
embargo trata-se de uma composiccedilatildeo acerca de um conflito o conflito das fronteiras
28
ONTOLOGIA A SUBSTANTIVACcedilAtildeO DO OCIDENTE E O PROBLEMA DA METAFIacuteSICA
ENQUANTO DELIMITACcedilAtildeO DAS FRONTEIRAS DO PENSAMENTO
Embora ontologia tenha um sentido bastante amplo (que seraacute melhor explorado ao longo do
capiacutetulo) aleacutem de uma sem-fim variedade de definiccedilotildees distintas de autor para autor (algumas
das quais seratildeo eleitas e apresentadas aqui) entende-se o conceito (de forma simplificada) como
um discurso capaz de reunir em uma unidade a polissemia do verbo ser O resultado eacute a
centralizaccedilatildeo conceitual de qualquer ulterior doutrina a partir da definiccedilatildeo desenrolada desde
sua compreensatildeo Por substantivaccedilatildeo do Ocidente refiro-me aqui agrave corrente historial
responsaacutevel por compreender o verbo ser de modo substantivado a partir de seu particiacutepio
presente ldquoenterdquo A intenccedilatildeo do capiacutetulo portanto concentra-se na investigaccedilatildeo do processo
decorrido dessa substantivaccedilatildeo e quais as consequecircncias disto para o pensamento ocidental e
contemporacircneo em uma concepccedilatildeo geral no que diz respeito agrave delimitaccedilatildeo das fronteiras do
pensamento
Em primeiro lugar gostaria de abrir uma interlocuccedilatildeo com o professor Charles H Kahn
da University of Pennsylvania dada a relevacircncia e pertinecircncia de sua obra The Verb lsquoBersquo in
Ancient Greek (1973) para o desenvolvimento do capiacutetulo Antes de desdobrar em pormenores
seu estudo bastante extenso e detalhado Kahn sustenta a tese de que haacute uma relatividade
linguiacutestica referente ao verbo ser (cf KAHN 2003 1-3) Em sua introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo de 2003 (cf
IDEM IBIDEM vii) Kahn se reposiciona em relaccedilatildeo ao argumento expresso em sua obra clamando
ser uma posiccedilatildeo bastante defensiva e ldquofora de modardquo para os tempos atuais Ainda assim trata-
se de uma hipoacutetese bastante interessante
29
A posiccedilatildeo de Kahn (cf IBID 1-3) se apoia na afirmaccedilatildeo de Angus C Graham1 acerca
do mesmo verbo dentro do chinecircs claacutessico onde o sinoacutelogo posiciona o ser relativamente agrave
regra gramatical inerente agrave formulaccedilatildeo de uma determinada sentenccedila significando portanto a
impossibilidade de uma doutrina universal acerca do ser compatiacutevel com liacutenguas distintas
(como o grego o aacuterabe ou o chinecircs) Isto concorda em absoluto com a ideia de que no proacuteprio
grego claacutessico e nas liacutenguas indo-europeias em geral conforme a menccedilatildeo feita por Kahn a
Eacutemile Benveniste2 natildeo haacute em hipoacutetese alguma a implementaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo universal ou
condiccedilatildeo necessaacuteria envolta na distribuiccedilatildeo dos significados do verbo ser Haacute sim e Benveniste
endossa a ideia uma predisposiccedilatildeo da linguiacutestica grega agrave ldquovocaccedilatildeo filosoacutefica da noccedilatildeo de serrdquo
Vocaccedilatildeo esta segundo Kahn muito geral e diversificada no desenvolvimento sistemaacutetico de
seu conceito desde Parmecircnides ateacute Aristoacuteteles e de uma maneira mais sistemaacutetica dos Estoicos
ateacute Plotino Em siacutentese Kahn sustenta que a tese de um determinismo linguiacutestico do ser eacute
claramente falsa ou seja mesmo em falantes de uma mesma liacutengua natildeo eacute possiacutevel encontrar
uma mesma doutrina em torno ao ser como eacute possiacutevel ver nos pensamentos distintos de Platatildeo
e Aristoacuteteles Epicuro e Plotino
Todavia natildeo haacute duacutevidas para Kahn a respeito das condiccedilotildees intriacutensecas da liacutengua de um
autor em sua atividade intelectual seus recursos e suas tendecircncias Ele afirma que natildeo haveria
possibilidade de especificar a determinaccedilatildeo ontoloacutegica se o verbo grego εἰμί natildeo fosse provido
do particiacutepio presente τὸ ὄν ou se natildeo houvesse a derivaccedilatildeo nominal ndashία da qual redunda a
noccedilatildeo de οὐσία Ou ainda a classe de morfemas que compreende ἐστί εἶναι e ἐών derivadas
do indo-europeu ndashes Satildeo as formas nominais do verbo que permitem segundo Kahn (cf IBID
451) natildeo soacute uma clara expressatildeo senatildeo tambeacutem a tematizaccedilatildeo do conceito como um toacutepico
distinto para a reflexatildeo filosoacutefica
1 Angus C Graham ldquoBeing in Classical Chineserdquo In The Verb lsquoBersquo and its Synonyms John W M Verhaar (ed)
Dordrecht Holland D Reidel 1967 1-39 2 Eacutemile Benveniste ldquoCateacutegories de penseacutee et cateacutegories de languerdquo Les Eacutetudes philosophiques n 4 (out-dez
1958) PUF Paris 419-429
30
Kahn fala dos primeiros usos do verbo εἰμί (em formas participiais) em sua
possibilidade de representar qualquer construccedilatildeo copulativa (natildeo muito diferente de qualquer
outro particiacutepio em grego) adaptando-se agraves construccedilotildees coordenadas ou subordinadas (em
nuacutemero gecircnero e causa) e expressando diferentes nuances (concessiva causal adversativa)
Contudo frisa haver ainda outras expressotildees para aleacutem do caso copulativo como nos casos
vital veriacutedico ou existencial Quando o verbo aparece dentro da expressatildeo existencial e emerge
a necessidade de indicar uma referecircncia ou seja um caso gramatical locativo surgem as formas
do uso filosoacutefico do ser como τὰ ὄντα o berccedilo para o desenvolvimento da ontologia O sentido
de τὰ ὄντα apareceria em Aristoacuteteles de acordo com Kahn (cf ID IBID 457) em primeira matildeo
como ldquoo que eacuterdquo (o caso os fatos ou eventos) e em segunda matildeo existencialmente como ldquocoisas
que existemrdquo ldquocoisas que estatildeo presentesrdquo ldquocoisas que podem ser encontradas em algum lugarrdquo
Em ambos os casos o verbo ser eacute entificado Como neste sentido haacute uma conotaccedilatildeo ldquodo que
eacuterdquo algo Aristoacuteteles considerou a referecircncia aos atributos de um determinado ente para expressar
a muacuteltipla significaccedilatildeo de τὸ ὄν partindo em seguida para a definiccedilatildeo do ser no sentido primaacuterio
e fazendo uso de seu derivado nominal οὐσία
A manifestaccedilatildeo de οὐσία surge como uma nominalizaccedilatildeo abstrata ou substantivo de
accedilatildeo Kahn enumera trecircs aspectos distintos do uso de οὐσία em uma concepccedilatildeo filosoacutefica o
primeiro uso refere-se agrave nominalizaccedilatildeo do verbo na qual οὐσία representaria ldquoo que algo eacuterdquo
dando abertura para as formas platocircnicas e essecircncias aristoteacutelicas (τὸ τί ἐστι τὸ τί ἦν εἶναι) o
segundo uso eacute todavia menos teacutecnico e predica οὐσία como ldquoserrdquo ldquoexistecircnciardquo ou ldquorealidade
verdadeirardquo o terceiro uso enuncia uma equivalecircncia entre οὐσία e τὸ ὄν referindo ldquoas coisas
que satildeo (neste mundo)rdquo τὰ ὄντα (cf ID IBID 461) Aristoacuteteles pontua precisamente a intenccedilatildeo
socraacutetica primaacuteria de buscar a essecircncia das coisas (τὸ τί ἐστι) por meio do procedimento
silogiacutestico cujo princiacutepio eacute justamente a quididade (ἀρχὴ δὲ τῶν συλλογισμῶν τὸ τί ἐστι)
(ARISTOacuteTELES 2002 604-605 Metafiacutesica 1078b 24-25)
31
O que em Soacutecrates apareceria de fato como τί ἐστι e em Platatildeo como (τὸ) ὅ ἐστι em
Aristoacuteteles seria simplificado como τὸ τί ἐστι e τὸ τί ἦν εἶναι em um uso que expressa a essecircncia
ou natureza das coisas pela definiccedilatildeo ao passo que a definiccedilatildeo propriamente existencial caberia
ao termo οὐσία 3 Kahn ilustra as distinccedilotildees dizendo que
Enquanto o substantivo no primeiro e no segundo usos serve como uma
nominalizaccedilatildeo ldquoabstratardquo para o verbo finito como predicado isto eacute para o ldquoser aquilo
que eacuterdquo (e eacute assim sintaticamente paralelo ao infinitivo articular τὸ εἶναι) οὐσία no
terceiro sentido eacute utilizado ndash como em muitos outros substantivos abstratos ndash para o
sujeito caracterizado (isto eacute o que eu chamo de concreto ou agente de nominalizaccedilatildeo
como tipicamente ilustrado pelo particiacutepio articular τὸ ὄν ou como por exemplo ὁ
τρέχων ldquoo corredorrdquo em contraste agrave accedilatildeo de nominalizaccedilatildeo abstrata τὸ τρέχειν
ldquocorrerrdquo Esta distinccedilatildeo sintaacutetica corresponde em parte ao contraste de Heidegger
entre das Seiende e das Sein der Seienden) (ID IBID)
Embora haja tal distinccedilatildeo Kahn prossegue afirmando que em seu uso tardio (poacutes-platocircnico)
οὐσία e τὸ ὄν satildeo claramente sinocircnimos sendo um utilizado para enfatizar o outro como na
doutrina das Categorias de Aristoacuteteles4 O resultado eacute a inexistecircncia de uma diferenccedila entre o
agente concreto e a accedilatildeo abstrata de nominalizaccedilatildeo do εἰμί onde natildeo haacute distinccedilatildeo conceitual
entre οὐσία e τὸ ὄν ou seja entre a entidade e o que ela eacute Em outras palavras ser e ente se
tornam o mesmo confundem-se em sua aplicaccedilatildeo a despeito das distinccedilotildees conceituais que
definem substacircncia (οὐσία) e essecircncia (τὸ τί ἦν εἶναι)
3 Um comentaacuterio mais preciso foi apresentado em Luiacutes Andreacutes Berdlow ldquoParmenides and the Grammar of Beingrdquo
Classical Philology v 106 (2011) 283-298 4 As Categorias de Aristoacuteteles apresentam a classificaccedilatildeo das coisas que satildeo (τὰ ὄντα) dentre as quais encontra-
se a substacircncia (οὐσία) (cf ARISTOTLE 1952 5-6 Categorias 1a-2b) Na Metafiacutesica Aristoacuteteles deixa isto mais
claro quando diz ldquoMas em primeiro lugar se o ldquoenterdquo (τὸ ὂν) se diz de muitas maneiras ndash dentre as quais algumas
vezes substacircncia (οὐσία) em outras qualidade ou mesmo quantidade aleacutem de todas as outras categorias ndash qual
deles portanto eacute aquele pelo qual as coisas satildeo ()rdquo (ARISTOacuteTELES 2002 669 Metafiacutesica 1089a 5-15) A diferenccedila
conceitual ou mesmo hieraacuterquica eacute paulatinamente abandonada pela necessidade de exprimir um niacutevel de
realidade no qual jaacute natildeo eacute mais possiacutevel discorrer acerca do ente se redundar a palavra definida na proacutepria definiccedilatildeo
32
Essa indistinccedilatildeo entre ser e ente eacute sabido foi o que chamou a atenccedilatildeo de Martin
Heidegger no processo ldquodestrutivordquo de histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica realizado em seu projeto
Sein und Zeit (1927) Conforme Heidegger haacute uma γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας de haacute muito
abandonada O motivo aparente se concentra nas caracteriacutesticas emergentes do proacuteprio ser
quais sejam sua maacutexima universalidade sua vacuidade sua obscuridade sua maacutexima
evidecircncia Neste sentido Heidegger diz
O conceito de ldquoserrdquo eacute indefiniacutevel Isto pode ser concluiacutedo desde sua maacutexima
universalidade E isto com razatildeo ndash se definitio fit per genus proximum et differentiam
specificam De fato ldquoserrdquo natildeo pode ser entendido conceitualmente como ente enti
non additur aliqua natura ldquoserrdquo natildeo pode estar em uma determinaccedilatildeo concebendo
dele um ente O ser por definiccedilatildeo natildeo pode ser derivado de conceitos superiores e
nem dado por nenhuma ilustraccedilatildeo Contudo disto se segue que do ser natildeo se pode
derivar nenhum problema Pode-se concluir em absoluto apenas que o ldquoserrdquo natildeo eacute
algo como um ente Portanto o legiacutetimo dentro de certos limites de determinaccedilatildeo dos
entes ndash a ldquodefiniccedilatildeordquo da loacutegica tradicional que em si tem suas bases na antiga
ontologia ndash natildeo eacute aplicaacutevel ao ser A indefiniccedilatildeo do ser natildeo dispensa a pergunta por
seu significado senatildeo que justamente a intima isto (HEIDEGGER 1967 4)
As observaccedilotildees de Heidegger concordam com a conclusatildeo de Kahn a respeito da tomada de
rumo do verbo ser dentro da filosofia grega claacutessica sobretudo na concepccedilatildeo das bases da antiga
ontologia acerca da indistinccedilatildeo entre ser e ente A γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας agrave qual se refere
Heidegger parece ser a natureza inevitaacutevel da proacutepria metafiacutesica em fechar a porta aberta por
ela mesma para o modo de se relacionar com o ser uma espeacutecie de destinaccedilatildeo forccedilosa da qual
natildeo se poderia de maneira alguma escapar ponderando a projeccedilatildeo que reverbera em cada um
dos sentidos
33
O conflito acerca do entendimento e expressatildeo da φύσις revela em boa parte a maneira
pela qual o conjunto do ser se tornou alvo de disputas A contenda eacute ilustrada na histoacuteria
primaacuteria da filosofia grega enquanto fisiologia e na ldquocontroveacutersiardquo paradigmaacutetica entre
Heraacuteclito e Parmecircnides Uma realidade em constante movimento e mutaccedilatildeo absorvida desde a
observaccedilatildeo teoreacutetica do mundo entorno ou simplesmente o ponto de vista do ldquodevirrdquo parece
compatiacutevel com a natureza infinitiva e inapreensiacutevel do verbo ser como eacute possiacutevel rastrear no
πάντα ῥεῖ heracliacutetico 5 Heraacuteclito expressa o movimento intriacutenseco de abertura do modo
relacional do ser Todavia tal entendimento natildeo eacute compatiacutevel com qualquer tipo de silogismo
loacutegico onde eacute possiacutevel desenhar um conhecimento comum Para assumir a cogniccedilatildeo e percepccedilatildeo
vaacutelidas seria necessaacuterio assumir a permanecircncia de algo como eacute possiacutevel acompanhar na
elaboraccedilatildeo da univocidade do ser em Parmecircnides6
O primeiro ponto de vista paradoxalmente leva agrave evidecircncia da diferenccedila e a posiccedilatildeo do
oxiacutemoro enquanto o segundo permite a identificaccedilatildeo e a possibilidade de conclusatildeo por meio
das loacutegicas da identidade e natildeo-contradiccedilatildeo Aparentemente o primeiro natildeo resulta em nenhum
avanccedilo imediato a respeito de assuntos praacuteticos ou na dissoluccedilatildeo de questotildees teoacutericas enquanto
o segundo iraacute provavelmente resolver problemas de quase todos os tipos no campo pragmaacutetico
e em toda sorte de adversidades naturais e sociais Por meio da loacutegica natural do ser humano
social eacute bastante evidente qual ponto de vista deve ser eleito no intuito de estabelecer a
coexistecircncia mais faacutecil e paciacutefica aquela que afasta o homem da falta de fundamento da
existecircncia ou seja do abismo existencial da afliccedilatildeo que eacute existir
5 Conforme cita Platatildeo no Craacutetilo ldquotodas as coisas estatildeo em processo e nada permanece paradordquo (τά ὄντα ἱέναι
τε πάντα καὶ μένειν οὑδέν) (PLATO 1997 119-120 Craacutetilo 401d-402a) (KIRK E RAVEN 1957 197) Kirk e Raven
ponderam ainda que se trata de um momento ldquoOnde φύσις provavelmente natildeo significa lsquonaturezarsquo mas lsquoas coisas
em sua verdadeira constituiccedilatildeorsquordquo (IDEM IBIDEM 184) 6 ldquoO uacutenico caminho de inquiriccedilatildeo que pode ser pensadordquo (αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι) (KIRK E RAVEN
1957 269) Haacute uma anaacutelise mais detalhada acerca do toacutepico em Ciacutecero Cunha Bezerra ldquoParmeacutenides y la
univocidad del serrdquo Caacutetedra v 1 (2003) 33-48
34
Eacute possiacutevel especular que com a ausecircncia de um princiacutepio solidamente identificado e
natildeo-contraditoacuterio quiccedilaacute nem mesmo uma regra gramatical linguiacutestica poderia ser estabelecida
dando margem mesmo agrave impossibilidade de comunicaccedilatildeo Igualmente tampouco se poderia
delinear uma corrente de haacutebitos pessoais compatiacuteveis aos costumes sociais desabilitando toda
e qualquer eacutetica ou ciecircncia poliacutetica pela qual se pode regulamentar a conduta humana Com a
perspectiva de um devir total e assunccedilatildeo da diferenccedila a presenccedila de certo caos eacute inegaacutevel Com
a fundaccedilatildeo de uma estrutura loacutegica todavia eacute possiacutevel organizar e controlar os pensamentos e
accedilotildees do ser humano e sua convivecircncia social Contudo natildeo necessariamente esta postura iraacute
levar a humanidade para as escolhas mais coerentes ndash e a histoacuteria pode comprovar isto inuacutemeras
vezes O abandono da multiplicidade de perspectivas sobretudo as supracitadas (uma em
detrimento de outra) parece ter dirigido a histoacuteria por vias pouco luacutecidas e por vezes mesmo
autodestrutivas
Mas a anaacutelise da histoacuteria fatual natildeo eacute o que realmente interessa aqui tampouco a
atribuiccedilatildeo de uma culpa ou indicaccedilatildeo de um erro neste ou naquele ponto de vista O que
interessa aqui eacute como identificar a predileccedilatildeo loacutegica do pensamento ocidental com o cerne de
sua postura contemporacircnea e inquirir se eacute possiacutevel (ou se jaacute foi tomado) um caminho de
pensamento distinto e quais os resultados da confrontaccedilatildeo de um ponto de vista com o outro
Para isto eacute preciso retomar uma anaacutelise da histoacuteria da ontologia observando a maneira pela
qual ela se movimenta intriacutenseca e extrinsecamente Dentro das possibilidades de eleiccedilatildeo de um
caminho interpretativo opto aqui em um primeiro momento por absorver a histoacuteria e criacutetica
da metafiacutesica feita por Heidegger durante o seacuteculo vinte com o fito de deixar um pouco mais
evidente o problema fundamental da indistinccedilatildeo entre ser e ente que eacute sem embargo o pontapeacute
inicial de toda a contenda Muito embora seja possiacutevel descortinar a histoacuteria do pensamento
ocidental mediante distintos autores a ecircnfase na nomeada questatildeo do ldquoesquecimento do serrdquo
serve sobremaneira bem ao propoacutesito desta tese
35
Portanto em primeiro lugar eacute preciso considerar que embora ilustrativo Martin
Heidegger passou ao largo de resolver os problemas suscitados pela histoacuteria das ideias Antes
ele desenvolveu problemaacuteticas ainda mais insoluacuteveis e como se natildeo bastasse propocircs novos
enigmas A maior dentre todas as dificuldades talvez ainda precise aguardar muito tempo para
ser descortinada Durante um longo periacuteodo o entretenimento geral dos eruditos se contentou
em traccedilar um denominador comum dentre as vaacuterias questotildees pertinentes aos problemas de sua
filosofia em um movimento enciclopeacutedico quiccedilaacute tatildeo importuno quanto improfiacutecuo de decifrar
seu pensamento Mais conveniente talvez seja simplesmente resguardar o segredo de certas
passagens e aguardar a maturaccedilatildeo necessaacuteria para interpelaacute-las independentemente da espera
suscitada por tal postura
Ainda assim alguns pontos merecem ser postos em relevo e sobre eles decerto vale
despender alguma energia no esforccedilo de meditar acerca de seu sentido Certos trabalhos
compostos por Heidegger guardam de uma soacute vez todo o peso de sua leitura da realidade
notadamente em trechos sutis e aparentemente inofensivos Em momentos nos quais o leitor se
daacute por satisfeito em compreender um posicionamento aparentemente simples e historial como
pueril revisatildeo da histoacuteria da filosofia aiacute mesmo se lhe eacute possiacutevel abrir uma brecha para absorver
a atitude fundamental de seu pensamento Heidegger sempre foi um historiador da filosofia e
natildeo renegou em momento algum o peso de um ofiacutecio como este pelo contraacuterio coube-lhe fazecirc-
lo por diversas vezes e em distintos modos Mesmo quando seus ensaios e conferecircncias se
projetavam a um tema especiacutefico e natildeo a um autor a forte presenccedila de suas interpretaccedilotildees da
histoacuteria da filosofia eacute inegaacutevel Cabe ao propoacutesito desta tese realccedilar um exemplo que torne liacutecito
ilustrar uma fissura por onde seja possiacutevel se esgueirar ateacute a fonte da emanaccedilatildeo especulativa
acerca do sentido da histoacuteria da filosofia e do desenvolvimento do pensamento ocidental
sinocircnimos para o que conveacutem nomear metafiacutesica
36
Aos 13 de novembro de 1935 como sabem os leitores assiacuteduos de Heidegger foi
pronunciada uma conferecircncia preparada para a Kunstwissenschaftlichen Gesellschaft de
Freiburg im Breisgau7 Der Ursprung des Kunstwerkes se tornou de forma veloz e viral um
trabalho amplamente comentado no circuito acadecircmico em geral principalmente no campo da
esteacutetica filosoacutefica e teorias da arte O ponto de vista quase unacircnime dos receptores do trabalho
assentou na interpretaccedilatildeo do texto como uma tese a respeito da arte como ldquoposta em marcha da
verdade enquanto desvelamentordquo uma frase natildeo tatildeo simples de ser decifrada mas repetida
quase como uma foacutermula automaacutetica que se tornou rapidamente um emblemaacutetico clichecirc e uma
resposta imediata agrave pergunta pelo sentido da arte em Heidegger
A popular obra de Michael Inwood A Heidegger Dictionary (1999) destaca
enfaticamente o caraacuteter essencial da proposiccedilatildeo-chave quando pontua no mesmo sentido que
ldquoA obra de arte eacute mais bem um projeto que abre um mundo no qual escolhas podem ser feitas
A verdade a revelaccedilatildeo do lsquoserrsquo eacute o configurar em uma obra e configurar para obra iluminando
o mundo e a terra naquilo que neles perdurardquo (INWOOD 1999 18) Inwood ressalta a
proximidade encontrada por Heidegger entre o termo alematildeo ldquoproteger manterrdquo (bewahren) e
a proacutepria palavra ldquoverdaderdquo (Wahrheit) embora os termos natildeo necessariamente estejam
etimologicamente conectados Ele aponta para a ldquopreservaccedilatildeordquo como elemento pelo qual ldquoA
arte eacute o deixar-acontecer da chegada da verdade do ser enquanto talrdquo (IDEM IBIDEM) com especial
atenccedilatildeo para o proacuteprio fazer (ποίησις) da arte e particularmente da poesia Haacute contudo uma
seacuterie de consideraccedilotildees mais sutis a serem levadas em consideraccedilatildeo nas conferecircncias de
Heidegger proporcionando uma anaacutelise um pouco mais cuidadosa do que estaacute propriamente
em jogo quando Heidegger sobreleva a questatildeo da obra de arte
7 O mesmo trabalho sofreu novas releituras durante todo o ano de 1936 sendo reapresentado respectivamente na
Einladung der Studentenschaft der Universitaumlt em Zuumlrich durante o mecircs de janeiro e na Deutschen Hochstift em
Frankfurt am Main entre novembro e dezembro O ciclo de conferecircncias recebeu ediccedilotildees retrabalhadas em 1956 e
1960 publicadas pela Reclam de Stuttgart e sendo incluiacutedo em 1977 no tomo Holzwege da Gesamtausgabe
37
O editor do volume Holzwege Friedrich-Wilhelm von Hermann dedicou toda uma obra
agrave anaacutelise temaacutetica envolta naquele escrito publicando em 1980 o livro Heideggers Philosophie
der Kunst Em algumas de suas consideraccedilotildees mais amplas sobre as conferecircncias de Heidegger
Hermann atenta para o fato da questatildeo da obra de arte ser levantada a partir de um problema
desdobrado pela ontologia fundamental Hermann observa a problemaacutetica geral do escrito
desde o estabelecimento do ldquoserrdquo como ldquoacontecimentordquo (Ereignis) Conforme ele pondera
trata-se de um trabalho contemporacircneo aos Beitraumlge zur Philosophie (1936-38) Para Hermann
a questatildeo em torno ao ldquoserrdquo como ldquoacontecimentordquo (Ereignis) estende-se em Der Ursprung des
Kunstwerkes por meio de quatro outros problemas (1) o estabelecimento constitutivo da arte
(2) da obra de arte (3) da criaccedilatildeo artiacutestica e (4) da compreensatildeo da arte (cf HERMANN 2001 7)
Contudo circunscrita agrave conferecircncia sobre a arte estaacute a elaboraccedilatildeo da passagem da discussatildeo em
torno agrave verdade do ser para o ldquopensamento da histoacuteria do serrdquo (seinsgeschichtliches Denken)
Trata-se especificamente do momento de transiccedilatildeo do pensamento de Heidegger8 Em
linhas gerais Der Ursprung des Kunstwerkes ressalta uma preocupaccedilatildeo da lida do homem para
com a essecircncia da verdade mediante a obra de arte enquanto coisa Haacute toda uma histoacuteria dos
efeitos pertinentes agraves anaacutelises de Heidegger da obra de Vincent van Gogh9 aleacutem de inuacutemeras
teorizaccedilotildees em torno ao poder salvador da obra de arte Todavia salta aos olhos uma passagem
muito mais peculiar (para qual gostaria de chamar a atenccedilatildeo agora mesmo) qual seja aquela
na qual Heidegger aborda o problema da transposiccedilatildeo da experiecircncia fundamental grega para a
intepretaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo do pensamento romano-latino (cf HEIDEGGER 1977 7)
8 A perspectiva da ontologia fundamental de Sein und Zeit (1927) continuada no curso Grundprobleme der
Phaumlnomenologie ministrado em Marburg durante o semestre de veratildeo de 1927 receberia seu desenvolvimento
desde uma visatildeo historial-reflexiva jaacute na primavera de 1932 ocasiatildeo na qual conforme Hermann satildeo elaboradas
as primeiras linhas de Beitraumlge zur Philosophie redigido entre 1936 e 1938 mas publicado postumamente somente
em 1989 9 Em uma das mais famosas passagens de Der Ursprung des Kunstwerkes Heidegger interpreta os sapatos de um
dos quadros de Vincent van Gogh (natildeo identifica qual todavia) descortinando com isto o cotidiano campesino e
oferecendo uma leitura da realidade a partir de aiacute Uma criacutetica direta foi apresentada por Meyer Shapiro (em The
Still Life as a Personal Object ndash A Note on Heidegger and van Gogh 1968 e ainda em Further Notes on Heidegger
and van Gogh 1994) onde ele sustenta que os sapatos retratados por van Gogh natildeo satildeo de uma pessoa do campo
mas as botas do proacuteprio artista apontando com isto graves mal entendidos na interpretaccedilatildeo de Heidegger
38
Ainda no iniacutecio do escrito Heidegger busca a compreensatildeo mais geral da ldquocoisardquo
abordando como exemplo um bloco de granito A despeito de suas muacuteltiplas caracteriacutesticas ele
enfatiza o ldquoao redorrdquo (das herum sich) pelo qual suas propriedades se agrupam podendo entatildeo
falar de algo como um ldquonuacutecleordquo (Kern) da coisa Esse nuacutecleo de acordo com Heidegger
chamaram-lhe os gregos claacutessicos de ὑποκείμενον Embora ilustrativa a descriccedilatildeo eacute decerto
passiacutevel de baixo niacutevel de representaccedilatildeo posta sua exposiccedilatildeo pouco objetiva O termo eacute mesmo
tatildeo controverso quanto as proacuteprias ideias de ser e ente dentro da perspectiva grega Ela possui
uma carga conceitual talvez natildeo tatildeo difiacutecil de ser desvelada mas que tampouco garante exatidatildeo
e lucidez em sua abordagem variando de eacutepoca para eacutepoca de filoacutesofo para filoacutesofo de
interpretaccedilatildeo para interpretaccedilatildeo Ademais vaacuterias histoacuterias metaforizam o sentido do termo
ὑποκείμενον Uma das mais conhecidas (conto-a sem embasamento ou referecircncias quiccedilaacute
mesmo de maneira inapropriada) relata que certa vez um rei se espantara ao conhecer a obra de
um escultor haacutebil em reproduzir as formas da natureza em blocos de maacutermore Tamanha era a
destreza do artista que se postas lado a lado a escultura e a coisa mesma confundiam-se os
espectadores exceto pelo caraacuteter inanimado da escultura Intrigado o rei mandou chamar o
escultor e perguntou-lhe como fazia para reproduzir com tanta fidelidade o mundo em torno
Natildeo sabendo explicar senatildeo por meio da praacutetica pediu um bloco de maacutermore e agraves vistas do rei
reproduziu perfeitamente um cavalo em tamanho real faltando-lhe apenas galopar O rei lhe
questionou ldquoComo o fizesterdquo e respondeu o escultor ldquofaacutecil apenas retirei do bloco de
maacutermore o que natildeo era cavalordquo O ὑποκείμενον seria portanto aquele elemento sem o qual o
cavalo natildeo seria cavalo ou sem o qual uma coisa natildeo eacute uma coisa Contudo o grande problema
envolto nas tentativas de atingir um entendimento deste sentido por meio de um silogismo uma
loacutegica racional ou uma explicaccedilatildeo conceitual (e natildeo por uma metaacutefora ou estoacuteria) consiste na
dificuldade em elaborar uma equaccedilatildeo que exija menos esforccedilo do ouvinte capacitando uma
lucidez mais ampla e geral que a todos possa atingir
39
Toda definiccedilatildeo a partir de uma predicaccedilatildeo direta pode se configurar ainda mais obscura
e lanccedilar aquele que se propotildee a entender o conceito para um mero encadeamento e conexatildeo de
termos sem contudo realmente promover a experiecircncia do sentido da palavra Sem embargo o
Impeacuterio Romano foi a eacutegide da popularizaccedilatildeo e introspecccedilatildeo do mundo grego competindo-lhes
a tarefa de transpor ao modo latino de pensar os sentidos das meditaccedilotildees gregas Sobre isto
Heidegger ostenta uma posiccedilatildeo bastante firme e vale a pena destacar por completo o trecho no
qual se lhe pode observar sua atitude
Estas denominaccedilotildees natildeo eram meros nomes Em sua fala a experiecircncia fundamental
grega do ser do ente no sentido de sua presenccedila mostrava o que natildeo se podia mostrar
Por meio dessa disposiccedilatildeo instaura-se a interpretaccedilatildeo oficial da coisidade da coisa e
a interpretaccedilatildeo ocidental do ser do ente Comeccedila com a traduccedilatildeo das palavras gregas
para o pensamento romano-latino ὑποκείμενον torna-se subjectum ὑπόστασις torna-
se substantia συνβεβηκός torna-se accidens O processo desta traduccedilatildeo dos nomes
gregos para a liacutengua latina natildeo se daacute sem consequecircncias e nos dias de hoje toma-se
ainda a mesma compreensatildeo Antes pelo contraacuterio por detraacutes da traduccedilatildeo
aparentemente literal haacute um traslado da experiecircncia grega para outro modo de pensar
O pensamento romano assume para si as palavras gregas sem a devida
correspondecircncia com a experiecircncia originaacuteria do que dizem sem a palavra grega A
falta de fundamento do pensamento ocidental comeccedila com essas traduccedilotildees (IDEM
IBIDEM 7-8)
Responsabilizar o pensamento romano-latino pela queda do Ocidente no abismo da falta de
fundamento delega a Heidegger um encargo de peso formidaacutevel cujo maior perigo talvez seja
o de natildeo se ambientar aqui ou ali dentro deste ou daquele territoacuterio neste ou naquele lugar
mas na posiccedilatildeo do meio na esfera do entre no desenho do limite da linha da fronteira
40
A direccedilatildeo do pensamento de Heidegger a partir desta passagem claramente se constitui
desde uma divisatildeo da metafiacutesica ocidental em dois momentos muito distintos embora
interligados A emboscada se encontra na percepccedilatildeo de que todo e qualquer ocidental eacute jaacute
sempre forccedilado a se movimentar na esfera da ontologia latina ao passo que o retorno aos
fundamentos da ontologia grega eacute antes de tudo calcar terreno em solo incerto e regiatildeo
desconhecida Estabelecer uma ponte que permita ao ser humano contemporacircneo entender a
proveniecircncia de sua apreensatildeo da existecircncia eacute um roteiro deveras ousado Resta saber como eacute
possiacutevel ainda pensar os conceitos fundamentais da metafiacutesica dentro de sua propriedade sem
causaacute-los algum tipo de dano que faccedila seu sentido se perder ser obscurecido ou transviado
A partir da colocaccedilatildeo do problema da obra de arte enquanto coisa Heidegger questiona
o que enfim se compreende pelo termo mesmo ldquocoisardquo quando se compromete com a ideia de
tentar envolvecirc-lo conceitualmente (a partir de ὑποκείμενον ὑπόστασις e συνβεβηκός) e desde
aiacute extrair uma explicaccedilatildeo Sobre isto Hermann comenta ldquoComo podemos ver ainda mais e
melhor resolver o problema da obra de arte se torna um problema ontoloacutegico ndash isto eacute em
primeira instacircncia o problema ontoloacutegico do ser-res da resrdquo (HERMANN OP CIT 87) entenda-se
ainda o problema da coisidade da coisa Ele ainda complementa deixando ver a postura exigida
pela tarefa de entender a ontologia grega ldquoPortanto explicar o pensamento grego significa
antes de tudo revelar novamente a experiecircncia de estar no lugar em que se encontra a expressatildeo
de acordo com o fio condutor da palavra filosoacutefica gregardquo (IDEM IBIDEM 93-94) Sem embargo
conforme aponta Hermann (em coerecircncia com Heidegger) o ofiacutecio de introduzir a filosofia
grega (ou se introduzir na filosofia grega sua ontologia e berccedilo da metafiacutesica) constitui-se
desde o caminhar ao lado do fio condutor de sua expressatildeo e manifestaccedilatildeo A caminhada talvez
seja ela mesma o ldquoestar no lugar em que se encontra a expressatildeordquo ou o espaccedilo do ldquoentrerdquo a
ldquolinha de fronteirardquo
41
Algumas dezenas de leituras podem ser desdobradas desde a interpretaccedilatildeo de Heidegger
do lugar de transiccedilatildeo da histoacuteria do ser O itineraacuterio do pensamento de Heidegger legou aos
fieacuteis depositaacuterios de sua vasta caminhada a tarefa ingloacuteria de dar uma passo aleacutem Gostaria de
destacar aqui um direcionamento um pouco menos ousado nem por isto ingecircnuo Considerar
uma histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica em Heidegger eacute procurar pela fenda cuja passagem
encaminha diretamente ao salto no abismo da superaccedilatildeo da metafiacutesica embora natildeo fique ainda
claro o significado destes termos Ademais a intenccedilatildeo aqui eacute justamente esta esclarecer os
enlaces desse percurso histoacuterico nomeado sob o signo da metafiacutesica agrave luz da trajetoacuteria
interpretativa de Heidegger
Justamente sob o tiacutetulo Itineraacuterio do Pensamento de Heidegger (1965) Emmanuel
Carneiro Leatildeo apresenta sua traduccedilatildeo para o portuguecircs da Einfuumlhrung in die Metaphysik (1935)
de Heidegger ndash segundo ele nem de perto uma obra de faacutecil acesso Em primeiro lugar pela
impossibilidade geral de uma introduccedilatildeo em filosofia no sentido amplo Em outras palavras
natildeo haacute caminho de iniciaccedilatildeo agrave filosofia como se houvesse ainda um siacutetio no qual se a conquista
Haacute na verdade o puro levantar de questotildees responsaacuteveis por conduzir o pensamento para dentro
da proacutepria filosofia Carneiro Leatildeo elucida tal dificuldade quando especifica o tiacutetulo da obra
Introduzir agrave metafiacutesica eacute movimentar-lhe a questatildeo fundamental de maneira a
conduzi-la (-ducere) para dentro (-intro) das origens donde a metafiacutesica procede Um
esforccedilo de pensamento que nada tem de horizontal e progressivo Cujo movimento
se processa antes no sentido vertical e regressivo (CARNEIRO LEAtildeO 1999 10)
A filosofia busca o movimento imputado para originaacute-la para com isto retornar agraves suas origens
proacuteprias Em segundo lugar e natildeo menos importante a obra ainda guarda certa inacessibilidade
devido agrave intencional ambiguidade de um periacuteodo conturbado de transiccedilatildeo do pensamento de
Heidegger (tambeacutem evidenciado por Hermann)
42
Eacute preciso movimentar a questatildeo fundamental da metafiacutesica para conduzi-la para dentro
de suas origens Agora bem destacar a questatildeo fundamental eacute o primeiro passo de Heidegger
na obra quando questiona ldquoPorque haacute em geral o ente e natildeo antes nadardquo (HEIDEGGER 1983b
3) Um adendo eacute necessaacuterio ao leitor lusoacutefono Carneiro Leatildeo em sua traduccedilatildeo explica o
emprego do termo ldquoenterdquo para traduzir o alematildeo Seiendes justificando o uso da forma erudita
referida ao latim ens entis para salvaguardar o caraacuteter de tudo que eacute independentemente de
seu modo de ser (cf CARNEIRO LEAtildeO OP CIT 77 nota) Ponderando isto a leitura de Carneiro
Leatildeo segue um rumo bastante simples e esclarecedor ele afirma
O homem natildeo pode existir senatildeo em comeacutercio e comunhatildeo com o mundo dos entes
Ente significa tudo que de algum modo eacute o homem as coisas os acontecimentos ateacute
mesmo o Nada enquanto eacute um Nada ieacute enquanto tem um significado () (IDEM IBIDEM
11)
A forccedila responsaacutevel por manter a decisatildeo a respeito dos entes depende diretamente da
capacidade de enxergar suas distinccedilotildees Em um compecircndio unitaacuterio a base de sustentaccedilatildeo no
comeacutercio com os entes se daacute na e pela linguagem mediante a qual o homem simplesmente
afirma eacute Uma afirmaccedilatildeo aparentemente simples guarda contudo uma relaccedilatildeo complexa e
ambiacutegua talvez mesmo em decorrecircncia de sua extrema simplicidade
A existecircncia humana se agita dentro da tensatildeo entre imanecircncia e transcendecircncia
porque o homem existe enquanto in-siste no domiacutenio da Verdade do Ser ieacute a
vicissitude instaurada pela diferenccedila irredutiacutevel e referecircncia necessaacuteria entre ente e
ser A tarefa do pensamento natildeo eacute procurar sair decircsse ciacuterculo de diferenccedila e referecircncia
e sim necircle ingressar de maneira a poder regressar ateacute a fonte originaacuteria de sua tensatildeo
e unidade (ID IBID 15)
43
O atino para o ingresso ao interior da tarefa do pensamento deixa bastante evidente a intitulaccedilatildeo
da obra Eacute possiacutevel conceber a empreitada em regressar ao fundamento desde o qual a metafiacutesica
eacute ela mesma a proveniecircncia da tensatildeo em torno agrave unidade da existecircncia perante a multiplicidade
Eacute preciso destarte compreender que ldquoSoacute poderemos entender os pensamentos os conceitos
ou as explicaccedilotildees dados na medida em que nos ex-pusermos e dis-pusermos aquilo que se pensa
que se concebe ou que se explicardquo (ID IBID 29) acompanhando assim os passos de Heidegger
e verificando sua coerecircncia teoacuterica de levar colocar e se pocircr no estado da questatildeo
Esta mesma ambivalecircncia eacute tambeacutem destacada por Heidegger quando ele se refere ao
ambiacuteguo das formas essenciais do espiacuterito Natildeo se trata portanto de uma dedicaccedilatildeo integral agraves
possibilidades de captar de maneira exclusivamente formal os procedimentos que envolvem os
estudos mas de perceber (αἴσθησις) e experienciar os fenocircmenos Heidegger adverte ainda
Tomada na totalidade de seu sentido mais cru a filosofia sempre lida com o
fundamento do ente de tal maneira que o proacuteprio ser humano tem enfaticamente a
experiecircncia de seu significado e propoacutesito Por isto agora se vislumbra facilmente a
amplitude da filosofia que poderia e deveria proporcionar o fundamento da existecircncia
da eacutepoca histoacuterica atual e futura pela qual se estabelece a cultura Com tais
espectativas e demandas o estado e a essecircncia da filosofia satildeo sobrecarregadas Na
maior parte das vezes essa demanda excessiva se mostra pela forma de uma censura
da filosofia Diz-se por exemplo porque a metafiacutesica natildeo participou na preparaccedilatildeo
para a revoluccedilatildeo ela deve ser rejeitada Isto eacute tatildeo espirituoso quanto dizer que porque
vocecirc natildeo pode voar com um tocircrno portanto este deve ser abandonado A filosofia
natildeo provecirc diretamente forccedilas nem modos de accedilatildeo e criaccedilatildeo para ajeitar a condiccedilatildeo
histoacuterica simplesmente pelo motivo de dizer respeito apenas a poucos Quais poucos
Aqueles que transformam criativamente convertendo os fins Afetando uma vastidatildeo
apenas indiretamente e nunca fazendo rodeios ateacute certo ponto onde finalmente desde
o longo esquecimento da filosofia degenera-se como autocompreensatildeo da existecircncia
(HEIDEGGER OP CIT 12)
44
Heidegger aponta certa responsabilidade da filosofia na formaccedilatildeo da cultura e direcionamento
da eacutepoca presente e futura A chamada ldquoessencializaccedilatildeo da filosofiardquo eacute em grande parte
responsaacutevel pela tomada de rumo e pela constituiccedilatildeo da histoacuteria ateacute mesmo por seu abandono
Agrave ela estaacute diretamente conectada a ldquoessencializaccedilatildeo do serrdquo e maneira pela qual a filosofia se
apresenta como contemplaccedilatildeo dos fundamentos do ente
Heidegger explica em pormenores a diferenccedila entre ser e ente quando expotildee a gramaacutetica
e etimologia da palavra Certa advertecircncia contudo clama a petrificaccedilatildeo das normas
gramaticais ocas e vazias destituindo a Escola do Mundo do Espiacuterito que circunda a
morfologia dos termos e se restringindo tatildeo somente agrave transmissatildeo de regras do uso da palavra
Neste sentido a maneira pela qual se ostenta a ldquogrande gramaacuteticardquo eacute em si mesma o processo
de substantivaccedilatildeo do Ocidente visto como o cerrar das fronteiras como delimitaccedilatildeo
Tambeacutem em Einfuumlhrung in die Metaphysik Heidegger insiste no argumento exprimido
em Der Ursprung des Kunstwerkes seguindo o fluxo comentado acima quando afirma outra
vez ldquoQue essas formas gramaticais natildeo dissecaram desde toda eternidade uma linguagem
absoluta enquanto controle elas satildeo de fato erigidas de uma particular interpretaccedilatildeo da liacutengua
grega pela liacutengua latinardquo (ID IBID 56) Em outras palavras a linguagem possibilita sendo ela
tambeacutem um ente manipulaccedilatildeo e controle por sobre suas formas Por este motivo eacute possiacutevel
transmitir o conhecimento de uma liacutengua estrangeira somente com o ensino da gramaacutetica
mesmo para pessoas que nunca realmente entraram em contato com essa determinada liacutengua
Ou ainda aprender um idioma antigo natildeo mais utilizado ou cujo vigor ou esplendor se apagou
como o latim o grego claacutessico ou o sacircnscrito antigo sem ter a possibilidade de experenciaacute-los
no cotidiano O domiacutenio teoacuterico de uma liacutengua pode permitir ainda intuiccedilotildees e analogias a
respeito da experiecircncia que esta liacutengua provocava em seus falantes originais sem contudo
garantir exatidatildeo das disposiccedilotildees ou estados de acircnimo referidos pelos termos
45
Dentro da gramaacutetica e morfologia do ser Heidegger evidencia que existe um duplo
sentido para a palavra dentro de seu entendimento como consistecircncia (Staumlndigkeit) qual seja
a) o estar em si mesmo enquanto proveniente de si mesmo e b) o que perdura constantemente
enquanto tal Consistecircncia eacute a palavra-chave de sua leitura do termo ser dentro da circunvisatildeo
grega claacutessica Heidegger aponta que justamente por isso o natildeo-ser denota a desistecircncia ou a
saiacuteda da existecircncia ou ainda o abrir matildeo do ldquosalto para aleacutemrdquo Jaacute a etimologia da palavra ser
revela como os sentidos manifestos pela gramaacutetica e morfologia foram confundidos
historicamente Heidegger expotildee trecircs raiacutezes do termo uma sacircnscrita (es asus) outra indo-
germacircnica (bhuuml) e uma apenas germacircnica (sein) Conforme suas interpretaccedilotildees elas se
desdobram respectivamente em um sentido de ldquoviverrdquo ldquosurgirrdquo e ldquopermanecerrdquo Tratam-se de
verbos distintos todavia Heidegger natildeo citas as fontes das quais ele extrai tais etimologias
Ateacute onde eacute possiacutevel investigar o termo sacircnscrito mais proacuteximo ao que ele considera es
asus seria asti (अनतत) cuja raiz ās (आस) possui incontaacuteveis significados dentre os quais ldquoexistirrdquo
ldquoestar presenterdquo ldquopermanecerrdquo entre vaacuterios outros Aparentemente eacute a origem do indo-europeu
es cujo similar em grego seria o morfema ἐστί e em latim esse (sobremaneira visiacutevel no
portuguecircs estar) Jaacute a palavra bhuuml provavelmente indicada por Heidegger como ldquoindo-
germacircnicardquo em consequecircncia da formataccedilatildeo do verbo ser como ldquobinrdquo ldquobistrdquo (ou ainda ist e em
inglecircs ldquoisrdquo) eacute tambeacutem ela sacircnscrita (bhū भ) e estaacute presente em vaacuterias outras liacutenguas indo-
europeias (como no inglecircs being) Seu significado mais geral seria ldquoserrdquo ou ldquoexistirrdquo embora
aponte tambeacutem para ldquoacontecerrdquo ou ldquoperceberrdquo aleacutem de outros sentidos Sein tambeacutem pode ser
rastreado ateacute certo ponto em sua origem germacircnica no mittelhochdeutsch sīn e no
althochdeutsch wesan derivado da raiz sacircnscrita ves (वस) que daria as formas de Wesen
(essecircncia) ou (war o preteacuterito de Sein ser) em alematildeo De qualquer forma a questatildeo leva
imediatamente ao que Heidegger chama de ldquoessencializaccedilatildeo do serrdquo O motivo eacute simples viver
surgir e permanecer satildeo manifestaccedilotildees que interpelam o ser humano inevitavelmente
46
Contudo o ser ao interpelar o humano natildeo se manifesta antes se oculta esconde sua
proveniecircncia mostra-se ambiacuteguo e pela metade A forma de manifestaccedilatildeo do ser passiacutevel de
ser apreendida como uma realidade existente daacute-se por meio de sua participaccedilatildeo na realidade
presente qual seja ente (seu particiacutepio presente) A predileccedilatildeo pelo ente nasceria justamente
de seu caraacuteter manipulaacutevel embora haja uma conclusatildeo que clama as variaccedilotildees da palavra ser
e seu comportamento com respeito ao ldquoser em si mesmordquo evocado de modo distinto de outros
substantivos e verbos com relaccedilatildeo aos seus respectivos entes A eleiccedilatildeo de uma manifestaccedilatildeo
do ser diz muito sobre o modo relacional do humano com a conduccedilatildeo de sua existecircncia10
Alguns anos antes da composiccedilatildeo da Einfuumlhrung em um compecircndio posteriormente
publicado sob o tiacutetulo Sein und Wahrheit (1933-34) Heidegger se aproximou sistematicamente
da constituiccedilatildeo histoacuterica da metafiacutesica A obra eacute todavia pouco comentada O motivo eacute simples
haacute certo complexo ou trauma envolto na abordagem de um texto do periacuteodo da ascensatildeo do
Partido Nazi e do consentimento ao seu propoacutesito inicial Embora haja certos traccedilos de sintonia
com o discurso do momento pelo qual o povo alematildeo atravessava natildeo haacute nenhum resquiacutecio em
Heidegger dos preconceitos intriacutensecos ao desenrolar do totalitarismo Dentro do ambiente
promissoramente inovador Heidegger escreve ldquoToda gestatildeo essencial se vivifica desde uma
grande determinaccedilatildeo oculta no fundamentordquo (ID 2001 3) As palavras de Heidegger parecem
indicar antes de uma referecircncia ao destino da Alemanha o fato de que a questatildeo fundamental
estaacute contida no proacuteprio fundamento Por este motivo Heidegger ainda sugere um ldquo() caminho
histoacuterico na essecircncia da filosofia ndash e natildeo se poderia ter outro e isto justamente porque a filosofia
eacute ela mesma o acontecimento fundamental da histoacuteria da existecircnciardquo (ID IBIDEM 17) Resta
saber portanto como esse acontecimento fundamental se constitui como metafiacutesica
10 Heidegger justifica este ponto na sua apresentaccedilatildeo do conceito de Cura Sorgen em Sein und Zeit que embora
seja de suma importacircncia uma explanaccedilatildeo mais cuidadosa tomaria aqui e agora demasiado tempo mas que
precisa ao menos ser mencionada Seria esta caracteriacutestica originaacuteria do ser humano Cura Cuidado (Sorgen)
aquilo que o impulsionaria a preservar sua condiccedilatildeo evitando a queda nos abismos existenciais e a confusatildeo
generalizada (cf HEIDEGGER OP CIT 196-200)
47
Quando a tarefa eacute compreender a histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica realizada por Heidegger
insisto nunca eacute demasiada repeticcedilatildeo retomar as primeiras linhas de Sein und Zeit Vale lembrar
uma vez mais a disputa titacircnica a respeito da essecircncia (γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας) que
envolve os questionamentos aparentemente desprestigiados da metafiacutesica Conforme Heidegger
a maneira pela qual o problema perdurou sofreu alteraccedilotildees de Platatildeo e Aristoacuteteles ateacute sua
formulaccedilatildeo mais sofisticada na Wissenschaft der Logik (1812-16) de Georg W F Hegel Em
Sein und Wahrheit eacute tambeacutem a discussatildeo com Hegel que orienta a anaacutelise da metafiacutesica
tradicional Ateacute alcanccedilar Hegel entretanto Heidegger se preocupa em delinear as feiccedilotildees da
perda de sentido da μετὰ τὰ φυσικά aristoteacutelica na recepccedilatildeo tardia de seus escritos onde
ldquoGrandeza e iacutempeto desaparecem tanto na singularidade do questionamento criativo quanto na
designaccedilatildeo conceitual a praccedila desocupada daacute lugar agrave atividade de uma escola ndash somente
sobraram palavras e conceitos mas natildeo o poder estimulante da coisardquo (ID IBID 21)
Para Heidegger a unificaccedilatildeo do termo grego na palavra latina metaphysica natildeo eacute
acompanhada somente de uma correspondecircncia senatildeo ao mesmo tempo de uma mudanccedila em
seu significado Inerente agrave transformaccedilatildeo de seu sentido estaacute a apropriaccedilatildeo cristatilde do conceito
imputando um conhecimento suprassensiacutevel (trans physicam) de maior grau de importacircncia e
relevacircncia e diretamente relacionado ao divino Onde antes havia perplexidade na aspiraccedilatildeo agrave
sapiecircncia e observaccedilatildeo da realidade haacute agora um conhecimento humano elevado e suscetiacutevel agrave
confirmaccedilatildeo pela ciecircncia superior Heidegger visa e cita textualmente a formulaccedilatildeo de
Immanuel Kant da metafiacutesica como a ultrapassagem de todos os objetos empiacutericos a fim de
alcanccedilar um conhecimento viaacutevel e puro ou a superaccedilatildeo do conhecimento sensiacutevel pelo
conhecimento suprassensiacutevel11
11 Embora esta premissa esteja presente jaacute na Kritik der reinen Vernunft e em certa medida em suas especulaccedilotildees
preacute-criacuteticas atingindo ainda todos os escritos intercalados agraves duas outras criacuteticas e ainda os posteriores ele parece
se referir agraves conferecircncias de Kant reunidas por Karl Heinrich Ludwig Poumllitz publicadas em Vorlesungen Kants
uumlber Metaphysik aus drei Semestern Max Heine (org) Leipzig Hirzel 1984 (natildeo tenho certeza disto entretanto)
48
Haacute ainda a absorccedilatildeo do direito agrave verdade metafiacutesica pela ontologia claacutessica e neste
sentido Heidegger cita Alexander Baumgarten onde a verdade metafiacutesica eacute o princiacutepio
universal e fundamental em conveniecircncia agrave determinaccedilatildeo do ente enquanto tal Deste modo
conclui que a metafiacutesica se constitui como uma determinaccedilatildeo cristatilde e ideia matemaacutetico-
metoacutedica de fundamentaccedilatildeo nos sistemas metafiacutesicos da modernidade onde ela se apresenta
como conhecimento do ente em seu todo Hegel ocuparia neste sentido o lugar da consumaccedilatildeo
da plenitude da filosofia ocidental na metafiacutesica destacado o caraacuteter teoloacutegico no qual a medida
do saber eacute o ldquoinfinitordquo (perfectum) manifesto enquanto identidade absoluta (perfectissimus)
ou espiacuterito absoluto Por este motivo ao que parece quando se refere agrave histoacuteria da disputa
titacircnica sobre a essecircncia em Sein und Zeit Heidegger aponta a Wissenschaft der Logik de Hegel
como ponto de chegada Ali a loacutegica eacute entendida como ciecircncia do pensamento todavia natildeo
como ciecircncia responsaacutevel por regular o pensamento mas como fundamento do conceito e em
uacuteltima instacircncia fundamento do ente em si mesmo Heidegger explica dizendo que em Hegel
ldquoA metafiacutesica como ciecircncia do ser do ente eacute lsquoLoacutegicarsquo e esta Loacutegica eacute Loacutegica lsquodorsquo Absoluto isto
eacute de Deus Genitivo deliberadamente ambiacuteguo Natildeo apenas um genitivus objectivus Deus
representado mas sim genitivus subjectivus a essecircncia de deus como presenccedila do Espiacuterito
Absolutordquo (ID IBID 76) Em um momento final da exposiccedilatildeo da questatildeo fundamental da
filosofia Heidegger faz uma divisatildeo entre a filosofia ocidental em seu princiacutepio e em seu fim
escrevendo que
No princiacutepio a mais profunda necessidade era o questionamento na luta com os
poderes incontrolaacuteveis da verdade e da decepccedilatildeo A filosofia causava o mais alto
poder clarificante da naccedilatildeo e de sua existecircncia Riqueza de decisatildeo momento de
decisatildeo No fim alta bem-aventuranccedila na suspensatildeo das contradiccedilotildees fraqueza de
meros conceitos opostos fracasso e morte de todo questionamento Eternidade vazia
cheia de indecisotildees (ID IBID 77)
49
A eternidade vazia cheia de indecisotildees todavia natildeo soa aqui como algo proveniente de um
descontentamento Pelo contraacuterio emerge desde a simples oposiccedilatildeo de conceitos com o fito de
suspender contradiccedilotildees e evidenciar uma maacutexima clareza e nitidez com o intuito de um suposto
pleno contentamento como se a profunda necessidade de questionamento houvesse sido calada
pela extrema emergecircncia de soluccedilatildeo Um abismo entre a filosofia ocidental em seu princiacutepio e
em seu fim eacute diagnosticado de maneira direta e evidente Longe de apontar culpados ou
referendar uma condenaccedilatildeo agrave metafiacutesica claacutessica Heidegger explica o processo intriacutenseco de
explicaccedilatildeo e complicaccedilatildeo da metafiacutesica evidenciando fatualmente a transiccedilatildeo do pensamento
da histoacuteria do ser da ontologia grega agrave latina A distacircncia que provecirc de clareza a anaacutelise eacute todavia
bastante tendenciosa aos propoacutesitos da ontologia fundamental A maneira pela qual a proacutepria
ontologia se protege com uma complexidade de conceitos dificulta a visualizaccedilatildeo do percurso
histoacuterico e da explanaccedilatildeo esclarecedora
Vale portanto retomar alguns aspectos relevantes embora por vezes sutis da pesquisa
acerca da ontologia na metafiacutesica claacutessica Gostaria de propor um breve desvio que agrave primeira
vista pareceraacute desnecessaacuterio contudo configura-se como extremamente pertinente ao
propoacutesito do capiacutetulo Atualmente as pesquisas voltadas ao estudo da ontologia se restringem
ou bem ao estudo histoacuterico ou bem agraves repercussotildees da metafiacutesica na filosofia contemporacircnea
Via de regra servem de embasamento para questotildees projetadas aos assuntos pertinentes da
eacutepoca vigente A ontologia se torna assim uma ldquoaacuterea da filosofiardquo uma ldquodisciplinardquo ou mesmo
um tronco braccedilo ou ramificaccedilatildeo dos estudos filosoacuteficos Os pesquisadores responsaacuteveis por
esta aacuterea da filosofia desdobram prolegocircmenos e comentaacuterios explicativos aos textos claacutessicos
fundamentando muacuteltiplas outras aacutereas Poucas vezes eacute possiacutevel observar um trabalho sobre
ontologia que realmente conecte seu sentido primaacuterio aos problemas apresentados nos dias de
hoje todavia escavando com devoccedilatildeo algumas pesquisas emergem sobremaneira conexas
50
A ontologia parece ser mesmo ldquoutilizadardquo como ponte para abrir novos caminhos como
por exemplo as discussotildees histoacutericas na anaacutelise do desenvolvimento da cultura as
investigaccedilotildees epistemoloacutegicas na confrontaccedilatildeo das possibilidades de conhecimento as
consideraccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas na constituiccedilatildeo dos haacutebitos e costumes da relaccedilatildeo do ser humano
com as virtudes deveres e utilidades os juiacutezos esteacuteticos na relaccedilatildeo com a obra de arte ou
mesmo as bases psicanaliacuteticas do entendimento do proacuteprio humano e sua relaccedilatildeo com as coisas
e o mundo entorno
Um dos exemplos mais niacutetidos de um pensamento comprometido em discutir a
ontologia por si mesma observando a maneira pela qual as categorias ontoloacutegicas dispotildeem
ainda hoje os modos de estruturar a realidade talvez se apresente nas recentes discussotildees em
torno ao ldquodigitalrdquo e ao ldquovirtualrdquo ou as propostas de uma ldquoontologia digitalrdquo Ouvi falar pela
primeira vez sobre ldquoontologia digitalrdquo por meio de Rafael Capurro em 2009 durante o III
Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica realizado em Natal na Universidade Federal do Rio
Grande do Norte12 Ateacute entatildeo possuiacutea minhas proacuteprias teorias acerca do mundo digital e da
esfera virtual da internet todavia natildeo tinha sequer noccedilatildeo da envergadura do problema e da
maneira pela qual o assunto podia ser pensado desde uma perspectiva ontoloacutegica e natildeo
meramente poliacutetico-ativista ou mesmo teoacuterico-juriacutedica Embora este natildeo seja propriamente o
assunto do capiacutetulo gostaria de abordar o tema como forma de justificar o questionamento pela
ontologia claacutessica para aleacutem da mera constataccedilatildeo historiograacutefica Conforme pude acompanhar
a inquietaccedilatildeo que move os trabalhos se concentra na crenccedila segundo a qual todos os fenocircmenos
podem ser analisados construiacutedos e manipulados sob a condiccedilatildeo de poderem ser digitalizados
12 A discussatildeo de Capurro havia comeccedilado com uma troca de e-mails com Michael Eldred A conversa redundou
em primeira matildeo nos trabalhos de Capurro intitulados Entwurf einer digitalen Ontologie (1999) e Beitraumlge zu
einer digitalen Ontologie (1999) sendo estendida em ulteriores escritos como Interpreting the digital human
(2008) e Einfuumlhrung in die digitale Ontologie (2009) aleacutem do livro publicado por Eldred The Digital Cast of
Being (2009) Provavelmente a discussatildeo ainda prossegue e outros trabalhos foram ou estatildeo sendo publicados
51
Talvez como um chiste mas bastante pertinente e veriacutedico Capurro afirma que
atualmente se algueacutem natildeo estaacute na rede eacute como se natildeo existisse Dando impulso para uma
formulaccedilatildeo inusitada esse est computari em analogia agrave famosa foacutermula de George Berkeley
(esse est percipi) A conclusatildeo bastante perspicaz extraiacuteda por Capurro eacute a de que seria correto
dizer que hoje vemos a realidade no horizonte de sua digitabilidade Uma seacuterie de outros termos
e expressotildees natildeo-convencionais emergem do texto de Capurro como ldquoem tudo que eacute puramente
virtual as coisas consistem essencialmente em bitsrdquo ou a denominaccedilatildeo ldquopitagorismo digitalrdquo
Entretanto todas as definiccedilotildees e determinaccedilotildees estatildeo conectadas ao arcano questionamento em
torno ao ente
O que eacute o ente Esta pergunta fundamental da metafiacutesica natildeo pode ter uma resposta
definitiva a partir da perspectiva de um conhecimento finito sem cair na ilusatildeo
essencialista Isto tem consequecircncias para a problemaacutetica de como pensar uma cultura
digital Uma ontologia digital eacute uma interpretaccedilatildeo possiacutevel do ser dos entes vistos
desde sua digitabilidade No entanto tal ontologia corre sempre o perigo de
transformar-se em uma metafiacutesica digital no momento em que acredita ser a
verdadeira ou uacutenica resposta agrave pergunta pelo ser A ontologia digital eacute uma possiacutevel
compreensatildeo do ser por parte do conhecimento humano finito Todas as regiotildees ou
esferas dos entes satildeo concebidas entatildeo como digitais (CAPURRO 2009 322)
A introduccedilatildeo da digitabilidade para aleacutem da anaacutelise do ldquoserrdquo quantificado pela ciecircncia moderna
confere uma perspectiva nova de experimentaccedilatildeo do ente em sua totalidade Chama atenccedilatildeo o
perigo envolto na transformaccedilatildeo em uma ldquometafiacutesica digitalrdquo na qual uma virada ontocecircntrica
concentraria o poder da verdade enquanto julgamento como oriente agrave pergunta pelo ldquoserrdquo
Talvez o mais importante da anaacutelise de Capurro consista justamente na renovaccedilatildeo desta criacutetica
na qual se chama atenccedilatildeo para a imprecisatildeo especulativa por meio da indefiniccedilatildeo do virtual
52
Natildeo eacute difiacutecil perceber que o mundo digital oferece uma vasta gama de temas e
possibilidades de se pensar filosoficamente sob as mais diversas perspectivas Natildeo haacute grande
espanto na busca dos filoacutesofos por reflexotildees em torno aos acontecimentos revolucionaacuterios dos
veiacuteculos de informaccedilatildeo e tecnologias em geral no seacuteculo vinte-e-um Contudo admiraacutevel eacute
encontrar o caminho oposto o momento no qual desenvolvedores da ciecircncia e da teacutecnica
buscam a filosofia para fundamentar seus trabalhos Eacute caso dos estudos realizados por Peter
Oslashhrstroslashm Henrik Schaumlrfe e Sara L Uckelman cujos resultados foram publicados nos anais da
International Conference on Conceptual Structures um evento dedicado agrave ciecircncia da
computaccedilatildeo Os trecircs investigadores fundamentam desde a ontologia moderna claacutessica a
concepccedilatildeo de hipertexto um conceito fundamental da computaccedilatildeo13 Para Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e
Uckelman o nascimento do termo ldquoontologiardquo representa o estabelecimento de um hipertexto
sobre a realidade e a temporalidade em pleno seacuteculo dezessete Os pesquisadores se referem
especificamente a Jacob Lorhard autor dos oito volumes intitulados Ogdoas Scholastica (1606)
responsaacutevel por cunhar o termo ldquoontologiardquo pela primeira vez na histoacuteria
Lorhard compocircs sua Ogdoas como uma gramaacutetica para o ensino escolar por meio de
aacutervores diagramaticais A teacutecnica utilizada por Lorhard foi profundamente influenciada por
Petrus Ramus (Pierre de la Rameacutee) cujo objetivo era transformar a razatildeo dialeacutetica em um
meacutetodo de loacutegica pedagoacutegica Petrus Ramus foi uma figura controversa e polecircmica Aleacutem de
suas interpretaccedilotildees pouco ortodoxas de Aristoacuteteles Ramus defendia uma completa reforma no
sistema educacional Ele fomentava o espiacuterito humanista pelo qual procurava devolver agrave
retoacuterica sua posiccedilatildeo proeminente visando desautorizar o peso da loacutegica escolaacutestica14
13 A ideia de hipertexto eacute bastante antiga todavia o termo no sentido moderno foi cunhado por Ted Nelson em
1965 para descrever o sistema de escrita natildeo-sequencial que envolvia o ligamento entre textos distintos em uma
mesma interface na internet O sistema de hyperlinks em um siacutetio da internet eacute um exemplo bastante simples de
um hipertexto 14 Cf Petrus Ramus Sa Vie Ses Eacutecrits et Ses Opinions Charles Waddington (ed) Paris Librairie de Ch Meyrteis
1855 Acerca das singularidades de Petrus Ramus confira Laura Adriaacuten Lara ldquoPetrus Ramus y el ocaso de la
retoacuterica ciacutevicardquo Utopiacutea y Praxis Latinoamericana v 13 n 43 (out-dez 2008) 11-31 e ainda Frank P Graves
Petrus Ramus and the Educational Reformation of Sixteenth Century New York Macmillan 1912
53
Havia um profundo espiacuterito anti-escolaacutestico que movia os interesses de Ramus
enfatizando uma postura radical na qual a filosofia ramista considerava falsa todas as
afirmaccedilotildees de Aristoacuteteles Para facilitar o processo de aprendizagem pelo qual o domiacutenio das
ciecircncias e artes liberais pode ser alcanccedilado Ramus emprega seus ldquoesquemas visuais abstratosrdquo
Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman se referem aos esquemas de Ramus como base para a aacutervore
diagramatical de Jacob Lorhard ndash para os pesquisadores este tipo de diagrama eacute o berccedilo de
todo futuro hipertexto
Eacute faacutecil observar que a estrutura da Ogdoas Scholastica de Jacob Lorhard permite ao
leitor localizar conceitos especiacuteficos e suas respectivas definiccedilotildees por meio de uma rede de
interconexotildees na forma de diagramas A ldquoaacutervorerdquo facilita natildeo soacute a compreensatildeo dos conceitos
como tambeacutem a maneira pela qual eles se relacionam uns com os outros Sem embargo trata-
se de uma gramaacutetica pela qual o domiacutenio de conceitos fundamentais da metafiacutesica se torna
bastante simples concordando em absoluto com a demanda da eacutepoca em introduzir este tipo de
estudo nos niacuteveis baacutesicos de ensino Com obras como as de Lorhard a exigecircncia do estudo da
ontologia foi difundida durante o seacuteculo dezoito como parte essencial da formaccedilatildeo acadecircmica
baacutesica15 Aleacutem disto a Ogdoas ainda sustentava a eacutegide da clarificaccedilatildeo da ontologia como base
para todo ulterior desenvolvimento intelectual Em outros termos Lorhard (assim como Ramus)
acreditava que natildeo era possiacutevel esclarecer nenhuma ciecircncia se natildeo houvesse de antematildeo uma
lucidez absoluta a respeito dos fundamentos do ente que poderia ser proporcionada apenas pelo
estudo por ele nomeado ldquoontologiardquo um discurso que buscava um pleno esclarecimento dos
termos empregados para definir todo e qualquer ulterior passo tomado tanto nas ciecircncias do
espiacuterito quanto nas ciecircncias da natureza
15 Muito disto deve-se ao filoacutesofo norueguecircs Jens Kraft cuja obra (influenciada em larga escala pela Metaphysica
sive Ontologia de Christian Wolff) reforccedilou o peso dos estudos em ontologia Dentro da compreensatildeo de Kraft
compartilhada tambeacutem por Lorhard e outros a ontologia ganha um lugar privilegiado como unificaccedilatildeo sistemaacutetica
das estruturas do pensamento como um todo
54
O oitavo livro da Ogdoas de Lorhard que encerra o compecircndio e eacute dedicado agrave ontologia
no sentido de unificar todos os escritos anteriores define a metafiacutesica como ldquo() o
conhecimento de um inteligiacutevel enquanto inteligiacutevel ()rdquo (LORHARD sd 3) Este conhecimento
eacute divido entre conhecimento dos particulares e dos universais Para Lorhard a parte da
metafiacutesica responsaacutevel pelo conhecimento dos particulares ou bem se refere acirc substacircncia
pertinente aos seres natildeo-complexos que subsistem em si mesmos (sejam eles criados ou natildeo)
ou bem aos acidentes
Jaacute o conhecimento dos universais se refere a tudo o que eacute inteligiacutevel redundando nos
atributos gerais ou nas distribuiccedilotildees conforme as quais o λόγος eacute entendido como um inteligiacutevel
As distribuiccedilotildees dizem respeito ao nada por um lado ou a algo por outro sendo este uacuteltimo
em seu aspecto positivo o que envolve as ideias de ldquoessecircnciardquo e ldquoenterdquo As noccedilotildees de ldquoessecircnciardquo
e ldquoenterdquo satildeo centrais natildeo apenas para o sistema de Lorhard mas tambeacutem para todas as
subsequentes compreensotildees da ontologia Em uma primeira definiccedilatildeo Lorhard observa a
ldquoessecircnciardquo em sua relaccedilatildeo com o λόγος definindo que ldquoEssecircncia eacute algo produtivo pelo qual o
Ser eacute o que eacute Esta palavra estrangeira eacute chamada pelos Escolaacutesticos de Entidade ou quidditasrdquo
(IDEM IBIDEM 4) Em segundo lugar considera a ldquoessecircnciardquo em relaccedilatildeo a sua distribuiccedilatildeo na
qual ela eacute ou bem ldquorealrdquo (ou seja uma atualizaccedilatildeorealizaccedilatildeo do ser) ou bem ldquoimaginaacuteriardquo (no
caso de um ser puramente racional) Ambas podem ser ldquosimplesrdquo ou ldquocompostasrdquo ldquoabsolutasrdquo
ou ldquorespectivasrdquo ldquouniversaisrdquo ou ldquosingularesrdquo Dentro do uacuteltimo destes casos a ldquoessecircnciardquo
pode ser ainda ldquogeneacutericardquo (ou um gecircnero compartilhado por outras espeacutecies) ou ldquoespeciacuteficardquo
(relativa a uma uacutenica espeacutecie) Natildeo haacute grande espanto nos pontos apresentados ateacute entatildeo por
Lorhard O que haacute na verdade eacute uma constituiccedilatildeo sistemaacutetica de um diaacutelogo que estava sendo
travado jaacute haacute muito tempo e sobremaneira evidente no periacuteodo no qual ele compocircs sua obra
Suas contribuiccedilotildees mais significantes talvez se deem na seccedilatildeo seguinte quando aborda a
questatildeo do ldquoenterdquo
55
Lorhard tambeacutem considera o ldquoenterdquo no discurso unificador bem como na questatildeo da
ldquoessecircnciardquo afirmando dele algo produtivo ldquodotado de certa essecircnciardquo Em seu caraacuteter
distributivo o ldquoenterdquo (assim como a ldquoessecircnciardquo) eacute ou bem ldquorealrdquo ou bem ldquoracionalrdquo Ele define
o ldquoente de razatildeo ou racionalrdquo afirmando que ldquoEacute um ente de razatildeo que eacute tocado pela cogitaccedilatildeo
de uma mente singular de acordo com o modo real do ente agrave parte disto eacute nada Eacute tambeacutem
chamado ente fictiacutecio e imaginaacuteriordquo (ID IBID 5) Jaacute o ldquoente realrdquo pode se dar por meio do
discurso (λόγος) de sua proacutepria essecircncia ou ainda ser distribuiacutedo em entes primaacuterios e
secundaacuterios (estes uacuteltimos decorrentes dos primeiros) sendo ambos ldquosimplesrdquo ou ldquocomplexosrdquo
ldquoabsolutosrdquo ou ldquorespectivosrdquo ldquouniversaisrdquo ou ldquoparticularesrdquo ldquoimateriaisrdquo ou ldquomateriaisrdquo
ldquopermanentesrdquo ou ldquosucessivosrdquo
Toda a divisatildeo da ontologia de Lorhard acompanha em muitos aspectos a ontologia
derivada da filosofia grega claacutessica desde o processo dialeacutetico de questionamento da realidade
conforme a doutrina platocircnica e a divisatildeo das Categorias de Aristoacuteteles A principal distinccedilatildeo
do emprego do termo ontologia como expressatildeo e manifestaccedilatildeo das doutrinas metafiacutesicas em
Lorhard eacute o foco especiacutefico de uma ldquodoutrina dos inteligiacuteveisrdquo Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman
comentam que
Conforme Lorhard haacute uma importante dualidade entre os entes e nossa discussatildeo
racional a respeito deles Parece que ele insistiu na necessidade dessa dualidade no
sentido de que cada vez que noacutes discutimos os entes no mundo tentando classificaacute-
los tambeacutem temos que refletir sobre os conceitos usados para fazecirc-los (OslashHRSTOslashM
SCHAumlRFE E UCKELMAN OP CIT 4)
Em termos mais simples apoacutes um longo periacuteodo de aristotelismo escolaacutestico talvez tenha sido
Lorhard o primeiro a atentar para o fato de certa confusatildeo gerada dentro da metafiacutesica a respeito
da maneira pela qual se predica o ser do ente em sua participaccedilatildeo presente na realidade
56
Seria liacutecito portanto argumentar que a evidecircncia da confusatildeo de termos se deve ao fato
de Lorhard ter deslocado o ontocentrismo metafiacutesico para uma teoria dos intiligiacuteveis Ainda
conforme Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman a postura de Lorhard eacute diretamente influenciada pela
obra de Clemens Timpler que sustentava a mesma posiccedilatildeo a respeito da metafiacutesica desde uma
confrontaccedilatildeo direta com a filosofia de Francisco Suaacuterez Esta seria a contenda principal do
iniacutecio da modernidade responsaacutevel por conformar e enformar a metafiacutesica como ontologia tal
qual hoje ainda se a concebe Joseph S Freedman desenvolve uma anaacutelise bastante precisa da
maneira pela qual Timpler fundamentou sua postura e as consequecircncias de seu trabalho
sobretudo no que tange agrave disputa com Francisco Suaacuterez A respeito da proposiccedilatildeo ldquotudo que eacute
inteligiacutevelrdquo (omne intelligibile) o tema constitutivo da metafiacutesica Freedman (cf 2009 10-11)
comenta que Timpler provecirc uma moldura conceitual dentro da qual alguns conceitos
ontologicamente baacutesicos satildeo englobados quais sejam ldquoalgordquo (aliquid) ldquoprivaccedilatildeordquo (privatio)
ldquoessecircnciardquo (essentia) e ldquoentidaderdquo (ens) Dentro da dissoluccedilatildeo dos conceitos na obra central de
Timpler Metaphysicae systema methodicum (1604) Freedman comenta
Conforme Timpler ldquotudo aquilo que eacute Inteligiacutevelrdquo eacute dividido entre nihil (ie ldquonadardquo
ou ldquonatildeo-serrdquo) e aliquid aut est (ldquoalgordquo ou ldquoenterdquo) esta eacute basicamente a mesma
dicotomia que William Shakespeare aludiu quando ele coloca no Ato 3 Cena 1 de
Hamlet ndash alguns anos antes (c 1600) da publicaccedilatildeo do texto de Timpler sobre
metafiacutesica ndash que ldquoser ou natildeo ser estaacute eacute a questatildeo []rdquo Mas esta foi a questatildeo que
Timpler e todos os seus (conhecidos) contemporacircneos acadecircmicos aparentemente
desejaram evitar de discutir A discussatildeo da questatildeo de Shakespeare ndash e da dicotomia
de Timpler ndash poderia ter provido as bases para o levantamento de toacutepicos altamente
sensiacuteveis por exemplo 1) a relaccedilatildeo entre Deus e Nada (nihil) 2) a relaccedilatildeo entre Deus
entidade e privaccedilatildeo (ie mal) e 3) a relaccedilatildeo entre Deus e o princiacutepio de contradiccedilatildeo
(FREEDMAN op cit 12)
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Embora estas questotildees estivessem jaacute sempre presentes dentro dos questionamentos de Timpler
e de seus contemporacircneos elas eram todavia caladas de acordo com Freedman (IDEM IBIDEM)
pela imposiccedilatildeo das instituiccedilotildees cristatildes das coisas sobre as quais se era proibido falar ou acreditar
O que perdura das apresentaccedilotildees filosoacuteficas da metafiacutesica como ontologia em Timpler
ponderando seu princiacutepio do inteligiacutevel concentra-se em primeiro lugar como o mateacuteria de
todas as disciplinas e subdisciplinas acadecircmicas e em segundo lugar como foco de disciplinas
separadas como a archeologia gnostologia hexiologia intelligentia pansophia e tecnologia
(cf ID IBID 14)
O motivo da predileccedilatildeo da questatildeo dos intiligiacuteveis como foco principal de todos os
temas concernentes ao pensamento aparece dentro da possibilidade de envolver todos os
aspectos responsaacuteveis pelos modos operativos de pensar 16 Desta forma por exemplo as
disciplinas separadas como a ldquotecnologiardquo seriam desenvolvidas para as consideraccedilotildees gerais
e universais da estrutura das disciplinas liberais (cf ID IBID 16) Embora discrimine em parte
o princiacutepio da cogniccedilatildeo a metafiacutesica tampouco envolve a loacutegica por levar em consideraccedilatildeo
apenas os princiacutepios excluindo entidades complexas que redundem no princiacutepio de contradiccedilatildeo
Em contrapartida ao sistema metoacutedico de Timpler vecirc-se em Francisco Suaacuterez um
caraacuteter muito mais ontocecircntrico As Disputationes Metaphysicae (1597) de Francisco Suaacuterez
satildeo publicadas dentro de um contexto de desarmonia e conflitos entre a teologia e a filosofia
onde os conceitos fundamentais na discussatildeo sobre o divino estavam sendo postos em questatildeo
A despeito das influecircncias de Suaacuterez e dos necessaacuterios posicionamentos poliacuteticos sua obra
parece instaurar um regulamento por meio do qual nada poderia ser legado agrave mera
inteligibilidade
16 Freedman (ID IBID 15) cita o teoacutelogo calvinista Matthias Martinius contemporacircneo de Timpler que evidencia
de maneira mais clara os motivos das proposiccedilotildees fundamentais Ele atesta que conforme esta designaccedilatildeo agrave
metafiacutesica ldquopertence tudo aquilo que eacute cognosciacutevelrdquo (de omni cogitabili) mas com certas restriccedilotildees englobando
a ldquouniversalidade das coisasrdquo (rerum universitatem) mas natildeo envolvendo disciplinas acadecircmicas especializadas
singulares ou particulares
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As Disputationes de Suaacuterez podem ser entendidas desde uma divisatildeo da obra na qual a
primeira parte (as primeiras vinte-e-sete questotildees) se refere ao ente no sentido geral enquanto
a segunda parte (as vinte-e-sete uacuteltimas questotildees) lida com o ente particular redundando em
uma dupla divisatildeo da proacutepria metafiacutesica entre ldquometafiacutesica geralrdquo e ldquometafiacutesica especialrdquo (cf
SUAacuteREZ 2004 DOYLE 2004) Ao comentar o desenvolvimento deste aspecto da filosofia de
Suaacuterez Ludger Honnefelder ainda acrescenta
Conforme Suaacuterez a metafiacutesica lida com o conceito de ente tanto ldquoformalrdquo quanto
ldquoobjetivordquo Pelo conceito formal Suaacuterez entende o ato de conhecer do qual ldquoex unica
et prima impositionerdquo que rende uma representaccedilatildeo intencional do objeto pelo
conceito objetivo ele designa aquilo que representa intencionalmente o ato Em outras
palavras Suaacuterez natildeo assume a teoria dos conceitos caracterizada pelo paralelismo
noeacutetico-noemaacutetico de res e conceptus antes ele aceita a abordagem criacutetica de Ockham
em direccedilatildeo a interpretaccedilatildeo realiacutestica dos conceitos universais Desde que Scottus ele
mesmo natildeo depende desse paralelismo quando isto vem a dizer respeito sobre o ente
Suaacuterez substancialmente segue Scottus e aplica ldquoenterdquo para um conceito formal
primaacuterio e unificado que em virtude de sua imposiccedilatildeo representa um objetivo
primaacuterio e unificado do conteuacutedo absolutamente simples que envolve todos os entes
distintos de uma maneira indeterminada ie como ente (HONNEFELDER 2003)
Segundo a exposiccedilatildeo de Honnefelder o direcionamento da metafiacutesica de Suaacuterez iraacute redundar
em alguns pontos baacutesicos em primeiro lugar o fato de que a determinaccedilatildeo do ente transcende
a generalidade dos gecircneros em segundo que a determinaccedilatildeo natildeo pode ela mesma ser definida
podendo apenas ser explicada em relaccedilatildeo agrave existecircncia real em terceiro que toda existecircncia estaacute
sujeita agrave fundamentaccedilatildeo de disposiccedilatildeo ontoloacutegica em uacuteltimo lugar que o ente finito perdura
em um modo indeterminaacutevel de quantidade sendo o ente infinito eacute aquilo que eacute perfeito e
totalmente indivisiacutevel em si mesmo e mais real e completo (cf IDEM IBIDEM)
59
Agora bem com o fito de retomar a linha de raciociacutenio desenvolvida no capiacutetulo eacute
preciso retomar a ideia de substantivaccedilatildeo do Ocidente e a maneira pela qual esse processo se
deixar ver ao longo da histoacuteria da ontologia Martin Heidegger indica em primeiro lugar o que
ele considera como o problema fundamental pelo qual a metafiacutesica se desdobra no Ocidente
qual seja o fato de que o ldquoserrdquo natildeo eacute um ldquoenterdquo mas que todavia um foi tomado pelo outro Ele
apresenta ainda o argumento de que a transposiccedilatildeo da experiecircncia fundamental grega (conforme
apresentada tambeacutem por Charles H Kahn) sofre uma violaccedilatildeo na absorccedilatildeo latina e na
transferecircncia de conceitos de um modo de pensar para o outro Eacute dentro deste ambiente latino
que eacute possiacutevel rastrear a maneira pela qual a metafiacutesica se forma e transforma em ontologia ou
bem dentro de uma filosofia do inteligiacutevel (como em Lorhard e Timpler) ou bem como um
ontocentrismo filosoacutefico (como em Suaacuterez) Sem embargo trata-se de uma disputa em torno agraves
formas primaacuterias da discussatildeo em torno ao ldquoserrdquo e ao ldquoenterdquo Eacute possiacutevel concluir desde a
constataccedilatildeo da entificaccedilatildeo do ser ou substantivaccedilatildeo do Ocidente que a demanda pela resposta
ao problema primeiro da filosofia necessariamente a encaminha para um percurso que natildeo
poderia ser outro Mas qual eacute propriamente este problema primeiro e como se constroacutei esse
caminho Natildeo haveria outra indicaccedilatildeo senatildeo a da ciecircncia dos primeiros princiacutepios e causas de
Aristoacuteteles Jaacute na doutrina das Categorias de Aristoacuteteles eacute possiacutevel observar a confusatildeo entre
ldquoserrdquo e ldquoenterdquo A questatildeo pode ser melhor observada na proposiccedilatildeo baacutesica e amplamente
difundida da Metafiacutesica ldquoO ente se diz em muacuteltiplos significados mas sempre em referecircncia a
uma unidade e a uma realidade determinadardquo (ARISTOacuteTELES 2002 131)17 A referecircncia a uma
unidade e uma realidade determinada eacute a chave para compreender a maneira pela qual a
ontologia se torna a ciecircncia responsaacutevel por esse tema (conforme Aristoacuteteles ldquoHaacute uma ciecircncia
que considera o ente enquanto ente e as propriedades que lhe competem enquanto talrdquo ID IBID)18
17 Τὸ δὲ λέγεται μὲν πολλαχῶς ἀλλὰ πρὸς ἓν καὶ μίαν τινὰ φύσις καὶ οὐχ ὁμωνύμως ἀλλrsquo (Metafiacutesica 1003a 30-
35) 18 Ἔστιν ἐπιστήμη τις ἧ τὸ ὄν ᾗ ὄν καὶ τὰ τούτῳ ὑπάρχοντα καθ αὑτό (Metafiacutesica 1003a 20)
60
Dentro desta ciecircncia o conceito central que unifica e determina ldquoenterdquo e ldquoserrdquo eacute
apresentado como οὐσία O conceito de οὐσία (substantia substacircncia) eacute bem desenvolvido nas
Categorias entre as expressotildees que natildeo satildeo compostas quais sejam a substacircncia mesma
quantidade qualidade relaccedilatildeo lugar tempo posiccedilatildeo estado accedilatildeo ou afecccedilatildeo Ela eacute
apresentada desde duas perspectivas uma primaacuteria outra secundaacuteria A substacircncia primeira
natildeo se afirma de um sujeito nem em um sujeito mas comporta as substacircncias segundas nas
quais a forma afirma a espeacutecie e o gecircnero (ldquoserrdquo do sujeito) comportando tambeacutem os acidentes
(ldquoserrdquo no sujeito) que a eles se atribui Embora o conceito em sua primeira formulaccedilatildeo
contemple o aspecto formal bem como o elemento inteligiacutevel envolve ainda o aspecto material
em seu segundo modo natildeo podendo ser um sem o outro
As consequecircncias do desenvolvimento de uma ciecircncia responsaacutevel pelo ente enquanto
ente centralizando o conceito de substacircncia e substantivando a ideia de ldquoserrdquo por meio de seu
particiacutepio presente ldquoenterdquo satildeo o que se pode considerar como o desenvolvimento da histoacuteria do
ldquoserrdquo ou a histoacuteria da maneira pela qual o Ocidente compreende o ldquoserrdquo e a si mesmo Por meio
desta postulaccedilatildeo o ldquoτὰ ὄνταrdquo eacute posicionado no centro do pensamento ocidental Mais ainda do
que uma simples constataccedilatildeo da maneira pelo qual coube ao Ocidente pensar curioso eacute
especular o fato de que se natildeo fosse possiacutevel pensar fora da delimitaccedilatildeo do ente natildeo haveria
sequer indagaccedilatildeo alguma sobre as limitaccedilotildees ou prejuiacutezos imbuiacutedos nesta formulaccedilatildeo Sem
embargo eacute possiacutevel constatar desde os recursos apresentados (e ainda por muitos outros
caminhos que natildeo este) a necessidade incontida do ser humano ocidental eacute desenhar de maneira
niacutetida as fronteiras do pensamento e da maneira pela qual esse pensamento deve e pode ser
aplicado Resta saber apoacutes esta delimitaccedilatildeo o que haacute para aleacutem da fronteira
61
2 O CAMINHO DA NEGATIVIDADE HENEOLOGIA E MEONTOLOGIA E A
ULTRAPASSAGEM DOS LIMITES DA METAFIacuteSICA
O discurso ontoloacutegico tanto grego quanto latino personificou a atividade filosoacutefica ocidental
em larga escala A maneira pela qual a ontologia habilitava ao raciociacutenio uma seacuterie de
procedimentos facilmente verificaacuteveis nutriu seguranccedila metodoloacutegica aos assuntos
concernentes aos problemas intelectuais com os quais o ser humano fatalmente se deparava ao
longo de suas especulaccedilotildees e que reverberavam ainda na conjuntura soacutecio-pragmaacutetica Eacute neste
sentido que teria afirmado Immanuel Kant de maneira perspicaz que a razatildeo humana se
defronta com inevitaacuteveis questotildees impostas por sua proacutepria natureza19 Tanto para Aristoacuteteles
quanto para Francisco Suaacuterez aleacutem de tantos outros entrementes a importacircncia de assegurar
uma linha de raciociacutenio vaacutelida natildeo somente atribuiacutea autoridade ao argumento como tambeacutem
provia de suficiente clareza a linguagem que advogava suas doutrinas Em outras palavras
tornava-se faacutecil convencer outrem de seus pressupostos dada a indefectiacutevel loacutegica empregada
para encadear as sentenccedilas e alcanccedilar uma conclusatildeo A ontologia por meio de suas loacutegicas de
identidade e natildeo-contradiccedilatildeo (e ateacute certo ponto tambeacutem via argumento do terceiro excluiacutedo)
visava alcanccedilar tanto para afirmaccedilatildeo quanto para negaccedilatildeo a dissoluccedilatildeo de todo e qualquer
paradoxo que colocasse a mente em estado de confusatildeo e discoacuterdia Independente daquilo que
estava sendo afirmado ou negado da linha de raciociacutenio ou doutrina em jogo os procedimentos
discursivos e intelectuais eram basicamente os mesmos com variaccedilotildees conceituais maiores ou
menores dependendo da vertente Todavia prosseguia-se sempre da mesma maneira
19 Kant afirma ldquoA razatildeo humana no seu gecircnio de seu conhecimento possui o peculiar destino de ser incomodada
por questotildees que natildeo pode evitar porque elas satildeo dadas pela natureza da razatildeo mesma mas tambeacutem natildeo possuem
respostas porque elas excedem a capacidade da razatildeo humanardquo (KANT 1956 5 Criacutetica da razatildeo pura AVII-
AVIII)
62
Contudo a despeito da supremacia ontoloacutegica outras formas de pensamento foram
desenvolvidas no decorrer da histoacuteria da filosofia fossem elas similares ou totalmente opostas
Alguns pensadores especialmente radicais se dedicaram a um modo reflexivo que se distanciava
consideravelmente da estrutura ontoloacutegica Suas bases seus pressupostos e seus meacutetodos pelos
quais prosseguiam no caminho especulativo dos temas propostos (muitas vezes os mesmos dos
formuladores da ontologia claacutessica) projetavam-se de maneira consideravelmente diversa Para
eles havia uma necessidade imperativa de incluir todos os elementos presentes na estrutura da
realidade pensada em sua maacutexima possibilidade de concepccedilatildeo tanto os que satildeo quanto os que
natildeo satildeo Ao que parece por este motivo Werner Beierwaltes considera que as caracteriacutesticas
pelas quais se configuram a ontologia claacutessica satildeo sobretudo frutos da interrogaccedilatildeo pelo nexo
da identidade e da diferenccedila quer seja na afirmaccedilatildeo parmeniacutedica da natildeo legitimaccedilatildeo filosoacutefica
da alteridade quer seja na resposta platocircnica do necessaacuterio estabelecimento da diferenccedila na
constituiccedilatildeo do ldquoserrdquo em seu inteiro (cf BEIERWALTES 1989 25) Para Beierwaltes o rigoroso
conceito de unidade demandado por Platatildeo em reposta agrave univocidade do ser de Parmecircnides
resultou na possibilidade de inclusatildeo do ldquonatildeo-serrdquo relativo ao ldquoserrdquo para afirmar sua totalidade
Disto derivaria a altercaccedilatildeo originaacuteria entre identidade e diferenccedila e nisto consiste a
possibilidade de desvio do pensamento ontoloacutegico20 Sem embargo precisamente neste ponto
que acredito poder encontrar o que chamo aqui de caminho da negatividade ou a possibilidade
de inclusatildeo do oxiacutemoro no caminho de pensamento delineado pela ontologia considerando que
ele se desdobra na tradiccedilatildeo do chamado neoplatonismo e ainda na miacutestica medieval
20 Trata-se da definiccedilatildeo do natildeo-ser como alteridade apresentada no Sofista Apoacutes a discussatildeo acerca da comunidade
de gecircneros e a questatildeo do ldquomesmordquo e do ldquooutrordquo que configuram o problema da identidade e da diferenccedila Platatildeo
apresenta a hipoacutetese de compreender o ldquomovimentordquo como ldquooutrordquo do ldquoserrdquo questionando a tese parmeniacutedica a
respeito da ldquoestaticidade do serrdquo Assim Platatildeo coloca a questatildeo ldquoDevemos trabalhar nossa coragem agora para
dizer que aquilo que lsquonatildeo eacutersquo definitivamente eacute algo que possui natureza proacutepria Devemos dizer que assim como
o grande era grande o belo era belo o natildeo grande eacute natildeo grande e o natildeo belo eacute natildeo belo da mesma maneira pela
qual natildeo eacute tambeacutem foi e eacute natildeo-ser e eacute uma das formas dentre as quais satildeordquo (PLATO 1997 282 Sofista 258 c-d)
A sequecircncia do diaacutelogo questionaraacute a realidade deste natildeo-ser relativo culminando na identidade entre pensamento
e discurso abrindo a possibilidade para o discurso falso (o do sofista) e introduzindo a assunccedilatildeo do paradoxo no
seio do pensamento representando o chamado parriciacutedio aos eleatas
63
Ateacute onde eacute possiacutevel investigar o termo neoplatonismo teria sido cunhado pela primeira
vez pelo helenista e medievalista Thomas Gale nos idos de 1670 Gale foi responsaacutevel por uma
seacuterie de estudos sobre o neoplatonismo pagatildeo e cristatildeo escrevendo sobre Plotino Jacircmblico
Joatildeo Escoto Eriuacutegena Maacuteximo Confessor entre outros21 Definiccedilotildees agrave parte os primeiros
elementos responsaacuteveis por delinearem um ldquoneoplatonismo originaacuteriordquo apenas tardiamente
nomeado satildeo atribuiacutedos a Amocircnio Sacas Contudo como a figura histoacuterica de Amocircnio Sacas
eacute tatildeo envolta em controveacutersias e misteacuterios quanto a vida de Pitaacutegoras ou Soacutecrates atribui-se
diretamente a fundaccedilatildeo de uma ldquoescola neoplatocircnicardquo a Plotino disciacutepulo de Amocircnio
Muacuteltiplos debates mais ou menos coerentes envolvem os relatos sobre a relaccedilatildeo entre Plotino e
Amocircnio aleacutem de polecircmicas acerca do proacuteprio Amocircnio22 Destaca-se apenas a autoridade dos
relatos de Porfiacuterio (em sua Vida de Plotino) nos quais se considera que o meacutetodo de pesquisa
aplicado por Plotino estava profundamente ligado ao de seu mestre O conteuacutedo dos discursos
de Plotino tambeacutem teria uma iacutentima relaccedilatildeo com as tentativas de Amocircnio de unificar os diversos
planos do ser e estabelecer a derivaccedilatildeo de todas as coisas a partir do uno23 Sem embargo
Plotino teria absorvido e desenvolvido a doutrina de Amocircnio e necessariamente de Platatildeo em
suas Eneacuteadas em um movimento de exegese ao discurso platocircnico Exegese esta suscetiacutevel de
diversas interpretaccedilotildees dos caminhos por Plotino tomados e mesmo natildeo muito consensual entre
os estudiosos da obra24
21 Extraiacute estes dados de Aaron W Huges em um trabalho intitulado ldquoMedievalrdquo and the Politics of Nostalgia
Ideology Scholarship and the Creation of the Rational Jew (2012) Huges natildeo apenas investiga as origens das
designaccedilotildees do neoplatonismo mas ainda constata que a alcunha de ldquoneoplatocircnicosrdquo continuou sendo utilizada
por eruditos alematildees no seacuteculo dezenove como uma menccedilatildeo pejorativa aos ldquofalsificadoresrdquo das doutrinas de Platatildeo
e Aristoacuteteles (cf HUGES 2012) 22 Conforme Giovanni Reale em sua Storia della filosofia antica (1975-1980) Sobre este ponto especificamente
acerca das incertezas em torno agrave figura de Amocircnio confira REALE 2008 5-13 23 Esta consideraccedilatildeo eacute apresentada por Giovanni Reale com base nos relatos de Nemeacutesio em De natura hominis
(cf REALE 2008 11) Conforme Francisco B Harriet a questatildeo fundamental se encontraria na foacutermula ldquoestaacute mais
aleacutem do intelecto e da essecircnciardquo (ἐπέκεινα νοῦϛ καὶ οὐσίας) conforme a formulaccedilatildeo de Oriacutegenes de Alexandria
em Contra Celsum (fons ex quo initium totius intellectualis naturae uel mentir est) presente em Plotino (Eneacuteadas
V 1 8 e VI 8 16) e derivada do ciacuterculo de Amocircnio (cf HARRIET 2012 153) 24 Sobre a questatildeo da exegese Marcus Reis Pinheiro (em Plotino exegeta de Platatildeo e Parmecircnides 2007)
argumenta que natildeo se pode reduzir a exegeacutetica agrave mera interpretaccedilatildeo dos diaacutelogos de Platatildeo e outros escritos Trata-
se antes do desdobramento de um discurso muito antigo onde ldquo() fazer exegese () natildeo eacute interpretar
objetivamente os textos mas caminhar rumo aos niacuteveis superiores junto com os antigosrdquo (P INHEIRO 2007 80)
64
Neste fluxo talvez o mais cabiacutevel usual e conhecido de todos os estabelecimentos de
um ldquoponto de partidardquo seja o do claacutessico artigo Jean Trouillard Le Parmeacutenide de Platon et son
interpretation neacuteoplatonicienne (1973) onde o neoplatonismo eacute pensado desde a busca da
doutrina originaacuteria de Platatildeo principalmente a partir de uma releitura de seu diaacutelogo
Parmecircnides Todavia a maneira pela qual eacute possiacutevel explanar esta releitura levanta suspeitas
sendo necessaacuterio ponderar em quais formas a exegese plotiniana converge ou diverge das
tentativas de uma interpretaccedilatildeo das doutrinas originaacuterias de Platatildeo Mais ainda estaacute tambeacutem
em jogo a autoridade de apontar que existam de fato doutrinas originaacuterias havendo ainda
abertura para questionar a fiabilidade e o suposto peso das chamadas ldquodoutrinas natildeo-escritasrdquo25
Seja como for interessa sobretudo destacar como com as Eneacuteadas de Plotino o pensamento
filosoacutefico experimenta um movimento iacutempar em relaccedilatildeo agravequilo que vinha sendo apresentado
Para Ciacutecero Cunha Bezerra eacute possiacutevel elencar alguns pontos que evidenciam de maneira
clara a renovaccedilatildeo do neoplatonismo Destaca-se em primeiro lugar a junccedilatildeo entre os elementos
aristoteacutelicos e pitagoacutericos em siacutentese com uma perfeita sintonia entre o platonismo acadecircmico
e as ldquodoutrinas natildeo-escritasrdquo Ademais a ldquohierarquizaccedilatildeordquo do real a partir da qual todos os
graus satildeo derivados desde o uno permite uma sistematizaccedilatildeo do platonismo anterior Por este
motivo tende-se agrave leitura conforme a qual o neoplatonismo possuiria um sistema ldquomonopolarrdquo
frente a um suposto ldquobipolarismordquo platocircnico Por fim haacute ldquo() o fim uacuteltimo do processo de
conhecimento que para o neoplatocircnico eacute a uniatildeo plena com Deus (fugir soacute ao soacute) uma uniatildeo
que tem como marca a supressatildeo (aphaiacuteresis) de todo saber e dizerrdquo (BEZERRA 2006 57)
Dentre os pontos apresentados interessa-me particularmente o uacuteltimo (evidente consequecircncia
dos trecircs primeiros) no qual o neoplatonismo aparece como uma ldquosupressatildeo de todo saber e
dizerrdquo
25 Haacute uma interessante e profunda discussatildeo acerca do tema na tradiccedilatildeo de leitores e inteacuterpretes do platonismo e
do neoplatonismo a respeito deste toacutepico Ciacutecero Cunha Bezerra (em Compreender Plotino e Proclo 2006) aborda
o tema abrindo uma interlocuccedilatildeo com a obra Platone alla ricerca della spienza segreta de Giovanni Reale e ainda
com as investigaccedilotildees de W K C Guthrie e a chamada Escola de Tuumlbingen (cf BEZERRA 200617-24)
65
O senso comum ocidental regula a atividade filosoacutefica como um progresso ininterrupto
rumo ao acuacutemulo de conhecimento e dissoluccedilatildeo dos problemas Curioso agora eacute pensar a
maneira pela qual uma doutrina filosoacutefica pode suprimir o saber e o dizer ao inveacutes de
acrescentar Mas eacute apenas possiacutevel atingir a compreensatildeo necessaacuteria desta supressatildeo uma vez
esclarecido o que eacute propriamente o princiacutepio negativo do pensamento de Plotino Para isto natildeo
se pode perder de vista as duas questotildees que levariam agrave construccedilatildeo do pensamento de Plotino
quais sejam ldquo() o problema religioso (que corresponde agrave busca de compreensatildeo do destino
da alma assim como sua restauraccedilatildeo) e o problema filosoacutefico relativo agrave explicaccedilatildeo racional da
realidade ()rdquo (IDEM IBIDEM 66)26 ponderando ainda que em Plotino ambas estatildeo perfeitamente
inter-relacionadas Para atingir este entendimento todavia eacute necessaacuterio analisar as chamadas
trecircs hipoacutestases de Plotino presentes em suas Eneacuteadas
O conjunto de circunstacircncia que acompanham a formulaccedilatildeo do pensamento de Plotino
eacute todavia aquele anteriormente citado apresentado por Werner Beierwaltes que remete agrave
contenda entre Parmecircnides e Platatildeo Contextualizar a disputa Parmecircnides-Platatildeo da qual
derivam centralmente as hipoacutestases de Plotino natildeo eacute necessariamente complicado embora
interpretaacute-la e desde aiacute desdobrar um novo caminho reflexivo seja uma tarefa bastante
trabalhosa A demanda especulativa eacute altiacutessima e envolve uma bibliografia excessivamente
extensa e complexa Contudo como o interesse aqui eacute a apresentaccedilatildeo dos aspectos centrais do
pensamento de Plotino e como deles redunda uma nova postura e atitude filosoacuteficas o trabalho
fica menos penoso Portanto para colocar em relevo as hipoacutestases de Plotino eacute importante ao
menos demonstrar de forma simples os pontos originais dos quais elas derivam seja em
Parmecircnides seja em Platatildeo (e ateacute certo ponto tambeacutem no neopitagorismo e em Aristoacuteteles
embora esta tarefa exija um pouco mais e seja um pouco mais complicada de rastrear) Para
alcanccedilar este objetivo torna-se imperioso retornar brevemente a Parmecircnides
26 Esta hipoacutetese eacute destacada por Bezerra diretamente da obra de Eacutemile Breacutehier La Philosophie de Plotin (1928)
66
O segundo fragmento do poema Sobre a Natureza de Parmecircnides catalisa os principais
argumentos do conflito permitindo compreender quais satildeo os pontos mais problemaacuteticos do
estabelecimento de sua doutrina na tradiccedilatildeo Aleacutem da Fiacutesica de Simpliacutecio as fontes pelas quais
se estruturou esse fragmento adveacutem dos Comentaacuterios ao Timeu e Comentaacuterios ao Parmecircnides
de Proclo Os oito versos contidos no fragmento centralizam a doutrina de Parmecircnides como
foi herdada pela tradiccedilatildeo a partir da manifestaccedilatildeo das duas uacutenicas vias possiacuteveis para o
pensamento quais sejam a via da verdade e a via da aparecircncia O fragmento diz
εἰ δ᾽ ἄγ᾽ ἐρὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας
αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι
ἡ μέν ὄπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι
πειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ)
ἡ δ᾽ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι
τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν
οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐόν (οὐ γὰρ ἀνυστόν)
οὔτε φράσαις
(KIRK E RAVEN 1957 269)
Pois bem agora vou eu falar e tu presta atenccedilatildeo ouvindo a palavra
acerca das uacutenicas vias de questionamento que satildeo a pensar
uma para o que eacute e como tal natildeo eacute para natildeo ser
eacute o caminho de persuasatildeo ndash pois Verdade o segue ndash
outra para o que natildeo eacute e como tal eacute preciso natildeo ser
esta via indico-te que eacute uma trilha inteiramente inviaacutevel
pois nem ao menos se reconheceria o natildeo ente pois natildeo eacute realizaacutevel
nem tampouco se mostraria
(Traduccedilatildeo de Fernando Santoro cf PARMEcircNIDES 200612)
67
O caminho da verdade que eacute e natildeo eacute para natildeo ser (ἡ μέν ὄπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ
εἶναι) e o caminho da aparecircncia que natildeo eacute e natildeo pode ser (ἡ δ᾽ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών
ἐστι μὴ εἶναι) satildeo via de regra estabelecidos como a manifestaccedilatildeo maacutexima da loacutegica ocidental
e berccedilo dos princiacutepios de identidade e natildeo-contradiccedilatildeo A partir deles eacute possiacutevel natildeo soacute
estabelecer uma identidade (o ser eacute representada pela claacutessica foacutermula A=A) como ainda
verificar a veracidade dessa mesma identidade ndash natildeo eacute possiacutevel que o ser sendo natildeo seja
ilustrado pela foacutermula not (A ˄ notA) um tanto esdruacutexula sem duacutevidas27
O legado de Parmecircnides eacute marcado em sua difusatildeo pelos chamados ldquofiloacutesofos eleatasrdquo
sobretudo por Zenatildeo de Eleacuteia Seus argumentos contra a pluralidade (cf KIRK E RAVEN OP CIT
288-291) e contra o movimento (cf IDEM IBIDEM 291-297) se tornaram assaz populares
sobretudo no que concerne aos paradoxos da flecha no estaacutedio e de Aquiles e a tartaruga Aleacutem
da constataccedilatildeo da univocidade do ser presente em toda linha de pensamento parmeniacutedica28 O
resultado imediato dos exerciacutecios de raciociacutenio de Zenatildeo demonstraram a formataccedilatildeo de uma
estaticidade do ser e da realidade em torno alertando para a ilusatildeo do movimento e alteraccedilotildees
na substacircncia do real O momento no qual Platatildeo compotildee seu diaacutelogo Parmecircnides retrata
justamente o evento no qual tanto Parmecircnides quanto Zenatildeo estatildeo no aacutepice da divulgaccedilatildeo de
sua doutrina dialogando com um ainda jovem Soacutecrates Trata-se de um dos momentos mais
emblemaacuteticos da histoacuteria da filosofia ocidental
27 Haacute uma discussatildeo em torno a uma suposta terceira via aquela na qual o que ldquoeacuterdquo eacute e natildeo eacute ao mesmo tempo
baseada no sexto fragmento onde se lecirc ldquoοἶς τὸ πέλειν τε καὶ οὐκ ταῦτὸν νενόμισταιrdquo (KIRK E RAVEN OP CIT 271)
Embora ainda em um sentido pejorativo de uma via do engano emerge a possibilidade de que algo seja e natildeo seja
Mesmo que natildeo seja profiacutecuo para o andamento da tese se fixar na discussatildeo vale ao menos citaacute-la sobretudo
ponderando os apontamentos feitos por Jean Beaufret acerca da interpretaccedilatildeo de Martin Heidegger da terceira via
como a via dos entes Ao que cabe no propoacutesito do trabalho basta apenas atentar para como a tensatildeo entre as duas
primeiras vias jaacute foram suficientes para levantar controveacutersias Eacute possiacutevel especular ainda que jaacute na primeira via
aparece tambeacutem uma possibilidade de que o ser seja e natildeo seja quando se afirma que ele ldquoeacute e natildeo eacute para natildeo serrdquo
Seria possiacutevel conectar o ldquonatildeo eacuterdquo da sentenccedila como o natildeo-ser relativo necessaacuterio agrave constituiccedilatildeo da inteireza do
ser como argumentado no Sofista de Platatildeo 28 O que significa afirmar que natildeo existem ldquograusrdquo do ser uma coisa ou eacute real (ser) ou irreal (nada) (cf BEZERRA
2003 47)
68
As chamadas ldquotrecircs hipoacutetesesrdquo do Parmecircnides de Platatildeo satildeo apresentadas
respectivamente nas passagens 137c-142a 142b-157a e 157b-159a Elas constituem a mateacuteria
bruta para a elaboraccedilatildeo das trecircs hipoacutestases de Plotino Todas as trecircs hipoacuteteses de Platatildeo satildeo
apresentadas pela personagem do entatildeo velho Parmecircnides arguindo Soacutecrates a respeito da
viabilidade de cada argumento Elas se apresentam ainda a partir do problema constituiacutedo pela
questatildeo da unidade e da multiplicidade A pulsatildeo do jovem Soacutecrates ao inquirir Parmecircnides a
respeito de sua teoria fazendo-o apresentar as trecircs hipoacuteteses parte da colocaccedilatildeo de Parmecircnides
a respeito da assunccedilatildeo da multiplicidade por um lado e da impossibilidade do muacuteltiplo por
outro Parmecircnides eacute levado pelo jovem Soacutecrates a confirmar natildeo apenas sua teoria mas sua
metodologia e plano doutrinaacuterio
Para confrontar a teoria parmeniacutedica Platatildeo desenvolve a primeira hipoacutetese Ela
consiste basicamente na afirmaccedilatildeo de o que o ldquouno eacute unordquo ou seja se haacute uno natildeo eacute possiacutevel
que o uno seja muacuteltiplo Por este motivo ele natildeo pode conter partes nem tampouco ser um
inteiro (composto por partes) Tambeacutem natildeo pode ter um comeccedilo nem um meio nem um fim
natildeo possuindo nada que o limite ou delimite Tampouco pode possuir um formato nem se
encontrar em lugar algum nem estar se movimentando de um lugar para outro (porque entatildeo
assumir-se-ia algo outro que natildeo o uno pelo qual ele se movimenta) e nem em si mesmo
(porque com isto se movimentaria entre suas partes que por definiccedilatildeo natildeo pode conter) Natildeo
pode ainda ser diferente de si mesmo nem o mesmo que si mesmo porque assumindo sua
diferenccedila se assumiria algo outro que natildeo o uno ndash e assumindo sua identidade se assumiria que
haacute algo a saber a proacutepria identidade predicada do uno e que natildeo eacute o uno Natildeo pode tambeacutem
estar no tempo nem ter surgido em momento algum Por fim o uno natildeo pode possuir um nome
ou seja eacute inominaacutevel natildeo podendo ser objeto de opiniatildeo nem conhecimento nem percepccedilatildeo
caso contraacuterio assumir-se-ia um ser ou essecircncia distintos do uno pelo qual se alcanccedila seu
entendimento
69
Necessariamente a primeira hipoacutetese leva a uma outra questatildeo ou ao levantamento de
uma segunda hipoacutetese qual seja o uno eacute e quais satildeo as consequecircncias disto para ele mesmo
Essa hipoacutetese eacute consideravelmente mais complicada e envolve algumas nuances bastante
delicadas O argumento geral se concentra na ideia de que a proposiccedilatildeo uno eacute envolve
necessariamente a ideia de essecircncia do uno O grande problema em afirmar que o uno participa
da essecircncia de uno eacute justamente estabelecer a diferenccedila entre uma coisa e outra ou seja torna-
se inevitaacutevel afirmar que existem duas coisas a saber o uno e a essecircncia do uno O embargo
consiste na simples afirmaccedilatildeo uno eacute em contraposiccedilatildeo agrave afirmaccedilatildeo uno uno Logo desdobram-
se dois unos um uno que eacute e um uno e o ser O primeiro como afirmaccedilatildeo do proacuteprio uno o
segundo como assunccedilatildeo da participaccedilatildeo dele mesmo em sua essecircncia A reaccedilatildeo imediata agrave
afirmaccedilatildeo de que o uno eacute caminha em sentido contraacuterio das negaccedilotildees da primeira hipoacutetese
Sem embargo jaacute neste momento mesmo antes da apresentaccedilatildeo da terceira hipoacutetese
torna-se possiacutevel fazer algumas consideraccedilotildees Em primeiro lugar a hipoacutetese de que o ldquouno eacute
unordquo a despeito da aplicaccedilatildeo da categoria do ser para a predicaccedilatildeo da sentenccedila direciona o
pensamento para um caminho no qual natildeo haacute outra possibilidade senatildeo a completa negaccedilatildeo de
tudo que possivelmente competiria ao uno levando mesmo agrave dissoluccedilatildeo do eacute presente na frase
Em segundo lugar a hipoacutetese de que o ldquouno eacuterdquo desta vez com ecircnfase no eacute gera o movimento
oposto de afirmaccedilatildeo de tudo o que porventura poderia ser predicado de qualquer elemento
Estas duas hipoacuteteses (como se veraacute na apresentaccedilatildeo das hipoacutestases de Plotino)
discriminam perfeitamente as duas vias aqui cogitadas quais sejam uma via afirmativa da
ontologia claacutessica na afirmaccedilatildeo das coisas por meio da qual percebe-se compreende-se e se
faz ciecircncia e uma via negativa do que seraacute ulteriormente nomeada henologia na qual a maacutexima
especulaccedilatildeo acerca da natureza do uno natildeo leva senatildeo agrave negaccedilatildeo absoluta ndash as caracteriacutesticas
desta negaccedilatildeo ou negatividade ver-se-aacute mais claramente nas Eneacuteadas
70
A terceira hipoacutetese do Parmecircnides de Platatildeo eacute apresentada no diaacutelogo muito brevemente
Ela abarca ambos os aspectos centrais das duas primeiras hipoacuteteses sugerindo que o uno eacute e
natildeo eacute imputando a categoria de mudanccedila em sua natureza Trata-se de diagnosticar o fato de
que sendo o uno uno por um lado e muacuteltiplo por outro participa e natildeo participa de sua
essecircncia vem a ser e deixa de ser ponderando ainda que esta mudanccedila se daacute no instante Sendo
assim tanto o movimento de retorno ao uno quanto o movimento de procedecircncia a partir do
uno daacute-se ao mesmo tempo em uma reciprocidade na qual tanto a geraccedilatildeo da multiplicidade
configura o uno nem como uno nem como muacuteltiplo quanto a reuniatildeo da multiplicidade ao
uno tampouco configura o uno nem como uno nem como muacuteltiplo ndash como se a proacutepria ideia
de uno flutuasse em um ldquoinstante incapturaacutevelrdquo
Natildeo haacute duacutevida que o raciociacutenio apresentado por Platatildeo constitui um dos maiores
desafios especulativos da histoacuteria do pensamento ocidental seja nos esforccedilos empreendidos
pela loacutegica de compreensatildeo seja pelo desafio meditativo aflorado da temaacutetica proposta Neste
contexto Marcus Reis Pinheiro indica a interpretaccedilatildeo de Jean-Luc Brisson (Annexe I Les
interpretation du Parmeacutenide dans lrsquoAntiquiteacute presente na ediccedilatildeo Parmenide Paris Flamarion
1999) conforme a qual ldquo() Plotino estaacute no grupo dos inteacuterpretes do diaacutelogo que natildeo o vecirc
apenas como um exerciacutecio loacutegico mas que procura determinar a que tipo de objeto se refere o
diaacutelogordquo (PINHEIRO 2006 3) Seguindo esta linha de raciociacutenio o importante seria portanto
compreender como Plotino absorve a temaacutetica Considerar uma interpretaccedilatildeo para aleacutem da mera
concatenaccedilatildeo loacutegica de conceitos eacute basicamente absorver o sentido de cada termo Isto significa
natildeo apenas expor as formataccedilotildees daquilo que foi introduzido no discurso como ldquounordquo mas
ainda entender de que forma a simples possibilidade de concebecirc-lo no raciociacutenio implica em
uma reduccedilatildeo draacutestica das estruturas hieraacuterquicas do real ou seja constitui uma compreensatildeo
da realidade que possui como primeiro princiacutepio algo que coloca o pensamento em um niacutevel de
paradoxo que necessariamente denota a assunccedilatildeo de uma impossibilidade loacutegica
71
As trecircs hipoacutestases de Plotino seratildeo teoricamente encadeadas de maneira semelhante agraves
hipoacuteteses de Platatildeo embora natildeo sequencialmente Contudo a primeira (e talvez a mais
complexa) jaacute iniciaraacute o movimento de negatividade em direccedilatildeo agraves seguintes estabelecendo os
conflitos presentes na ideia de uno (τὸ ἑν) Plotino considera que ldquoO Uno eacute todas as coisas e
nenhuma delas a fonte para todas as coisas eacute nenhuma das coisas e ainda eacute todas as coisas em
um sentido transcendental ndash todas as coisas para assim dizer tendo seu retorno agrave isto ()rdquo
(PLOTINUS 1969 380 Eneacuteadas V 2 1) Ele ainda assevera a inefabilidade inerente ao uno
conforme a qual todo discurso eacute jaacute sempre indireto e impreciso Apenas mediante referecircncias
como ldquotodas as coisas e nenhuma delasrdquo torna-se possiacutevel acenar para o uno ndash e apenas isto
acenar Entretanto esta eacute para Plotino a uacutenica maneira de compreender a estrutura da realidade
como tal pelo simples motivo de que ldquoEacute precisamente porque haacute nada no Uno que todas as
coisas derivam dele para que o Ser possa ser trazido a fonte natildeo pode ser o Ser mesmo mas o
gerador do Ser ()rdquo (IDEM IBIDEM) que natildeo pode possuir a natureza do ser mas deve se constituir
como outro dele qual seja natildeo-ser ou mesmo nada Plotino prossegue ainda dizendo
ldquoBuscando nada possuindo nada faltando nada o Uno eacute perfeito e em nossa metaacutefora
transborda e sua exuberacircncia produz o novo este produto torna-se novamente seu progenitor
e eacute preenchido e se torna seu contemplador e Princiacutepio-Intelectualrdquo (ID IBID) A passagem
altamente especulativa denota que tudo eacute contemplaccedilatildeo dotada de uma atividade suprema que
comeccedila pelo uno e retorna a ele no simples olhar que natildeo implica nem em complexidade nem
em necessidade29 Mediante uma reflexatildeo propriamente loacutegica a contemplaccedilatildeo por meio da
qual o uno se desdobra e gera todas as coisas se daacute devido a sua proacutepria perfeiccedilatildeo ou seja o
uno natildeo eacute coisa nenhuma e necessariamente engendra todas as coisas porque eacute completo
porque eacute a totalidade de tudo e para isto eacute necessaacuterio que seja ele mesmo e ainda outro de si
29 Estes apontamentos satildeo de John Bussanich que ainda explica que ldquo() a doutrina plotiniana da derivaccedilatildeo do
Uno eacute lsquoprocessatildeorsquo o adjetivo que melhor qualifica isto eacute lsquocontemplativorsquo o movimento no qual a hipoacutestase eacute
gerada coincide com a contemplaccedilatildeo De fato o ponto cardial a chave para a estrutura da processatildeo da metafiacutesica
plotiniana era contemplaccedilatildeo ou theocircriardquo (BUSSANICH 1999 32)
72
Ciacutecero Cunha Bezerra apresenta a organizaccedilatildeo feita por Pierre Aubenque30 conforme a
qual haveriam trecircs esferas argumentativas no desenvolvimento da primeira hipoacutestase uma
loacutegica outra epistemoloacutegica e uma metafiacutesica Bezerra cita uma das passagens mais conhecidas
de Plotino que diz ldquoPrivado de unidade uma coisa cessa de ser aquilo pelo qual eacute chamada
um exeacutercito natildeo eacute um exeacutercito se natildeo eacute uno um coro um rebanho devem ser uma coisa soacuterdquo
(ID IBID 612 VI 9 1) sobretudo para enfatizar o aspecto loacutegico pelo qual Plotino ldquosubverterdquo
a resposta aristoteacutelica da entidade da coisa pela definiccedilatildeo substancial Bezerra argumenta
dizendo que ldquo() Plotino por uma exigecircncia loacutegica jaacute que o princiacutepio originaacuterio natildeo pode
possuir qualquer caraacuteter dos seres relativiza a ontologia e estabelece a henologia como
fundamento de todo serrdquo (BEZERRA OP CIT 67) O problema epistemoloacutegico sobressalta a
ultrapassagem necessaacuteria de todo conhecimento para alcanccedilar tal niacutevel de especulaccedilatildeo ao passo
que a questatildeo metafiacutesica retorna aos trechos anteriormente citados no qual a geraccedilatildeo de todas
as coisas soacute pode derivar de coisa nenhuma
O emprego do termo henologia define aqui o primeiro passo para o caminho da
negatividade Institui-se como negativo o princiacutepio que jaacute natildeo mais decorre de um rendimento
ldquopositivordquo por meio do qual se pode construir um conhecimento soacutelido e confiaacutevel mas uma
base que possui caracteriacutesticas muito diversas e que desafiam a capacidade loacutegica Por este
motivo a primeira demanda eacute jaacute a superaccedilatildeo intelectual (ἐπέκεινα νοῦϛ καὶ οὐσίας) que deve
assumir que o comeccedilo de todas as coisas eacute incoacutegnito O discurso eacute indireto e metafoacuterico porque
somente assim eacute possiacutevel indicar sua possibilidade de ser pensado ndash entendendo principalmente
que o ldquoser pensadordquo natildeo indica nem conota existecircncia porque o ser e a existecircncia mesmo satildeo
ainda posteriores agrave ideia de uno As segunda e terceira hipoacutestases portanto natildeo podem ser
concebidas se de antematildeo natildeo for assumida a negatividade do primeiro princiacutepio
30 Pierre Aubenque ldquoPlotin et le deacutepassement de lrsquoontologie grecque classiquerdquo Colloque des Royaumont Le
Neacuteoplatonisme Paris Centre National de Recherche Scientifique 1971 101-110
73
Somente por meio da completude da pensamento henoloacutegico de Plotino fica possiacutevel
deixar claro os termos pelos quais se destaca a negatividade como ldquosupressatildeo de todo saber e
dizerrdquo Os motivos contudo jaacute satildeo bastante evidentes se levado em consideraccedilatildeo que a
inefabilidade do uno indica que sobre ele natildeo se pode falar e ele natildeo se pode conhecer Portanto
o neoplatonismo necessariamente parte do pressuposto de que o ponto de partida e o ponto de
chegada do pensamento satildeo ambos uma caminhada rumo agrave supressatildeo Ao explicar a processatildeo
por meio da qual o uno engendra todas as coisas destaca-se uma consideraccedilatildeo importante se
os seres engendram o eternamente perfeito engendra eternamente algo inferior a si mesmo por
isto mesmo ldquoEacute preciso observar que a processatildeo plotiniana implica necessariamente uma
negaccedilatildeo A negaccedilatildeo eacute uma condiccedilatildeo a priori no sentido de que o engendrado deve assimilar-se
ao seu gerador mas mantendo uma resistecircncia que diferencia um do outrordquo (IDEM IBIDEM 74)
Em outras palavras a geraccedilatildeo do uno e a abertura da segunda hipoacutestase soacute eacute possiacutevel por meio
da introduccedilatildeo da diferenccedila A diferenccedila eacute o que aqui constitui o passo fundamental da sequecircncia
do pensamento neoplatocircnico O ser eacute na medida em que eacute diferente do uno e por ele eacute
engendrado justamente porque apenas a diferenccedila pode advir do eternamente perfeito
Assim sendo resta saber como o uno engendra e o quecirc ele engendra O que significa
ainda resgatar a pergunta anteriormente colocada por Parmecircnides e Platatildeo como do uno
provem o muacuteltiplo Esta questatildeo eacute sem sombra de duacutevidas uma das mais complexas do sistema
neoplatocircnico em geral A ideia de processatildeo (πρόοδος) pressupotildee uma emanaccedilatildeo a partir do
uno na qual todas as outras coisas satildeo engendradas o que significa dizer que se trata de um
movimento que abarca a realidade em toda sua estrutura na qual ldquo() difere completamente de
um mecanicismo dado que estaacute mais aleacutem de toda contingecircncia e necessidade Nesse sentido
natildeo se pode dizer que se trata de algo que implique um livre-arbiacutetrio ou uma produccedilatildeo artesanalrdquo
(ID IBID 76) Ou seja o uno natildeo necessita de nada e por isto mesmo daacute origem a tudo A
espontaneidade (se eacute que se pode utilizar tal termo) eacute natural e natildeo possui um motor
74
Ao mesmo tempo tudo aquilo que eacute gerado pelo uno possui um poder de conversatildeo
(επιστροφή) um voltar-se sobre si mesmo e voltar-se em direccedilatildeo ao uno (cf ID IBID 76)
movimentada pelo autoconhecimento daquilo que eacute Este autoconhecimento soacute eacute possiacutevel
todavia pelo proacuteprio movimento de emanaccedilatildeo conforme o qual se identifica ldquoserrdquo e
ldquopensamentordquo como havia postulado Parmecircnides e eacute justamente este o momento no qual
emerge a segunda hipoacutestase qual seja a inteligecircncia (νοῦϛ)
As caracteriacutesticas pelas quais a inteligecircncia se mostra desde a compreensatildeo da processatildeo
satildeo a chave para o sentido da filosofia de Plotino Sobre isto Thomas Alexander Szlezaacutek
escreve ldquoNatildeo persegue o Uno com esforccedilo deliberado mas espera tranquilamente ateacute que ele
apreccedila Assim a alma soacute recebe unicamente o Uno eacute uma volta do lsquosolitaacuterio para o solitaacuteriorsquordquo
(SZLEZAacuteK 2010 11) acrescentando ainda que ldquoO caminho que conduz ao Uno natildeo passa poreacutem
pela praacutetica asceacutetica de um anacoreta mas pela apropriaccedilatildeo conceitual do mundo inteligiacutevel
()rdquo (IDEM IBIDEM) Os termos inteligecircncia e inteligiacutevel referem-se aqui a uma definiccedilatildeo
particular que compreende o nuacutecleo da segunda hipoacutestase Bezerra escreve acerca deste ponto
ldquoPlotino no tratado oitavo da terceira Eneacuteada define a Inteligecircncia natildeo como uma coisa
particular mas como algo universal e muacuteltiplordquo (BEZERRA OP CIT 78) explicando que eacute
ldquoUniversal porque abarca todos os seres e muacuteltiplo porque coexistem em sua natureza
simultaneamente o inteligente (Inteligecircncia) e o inteligiacutevel (ser) ()rdquo (IDEM IBIDEM) Plotino
encadeia seu raciociacutenio elucidando como o Princiacutepio-Intelectual eacute universal e iniacutecio de todas as
coisas de maneira que ldquo() assim todas as coisas e o Princiacutepio de tudo deve ser tal que cada
parte dele seja universal eacute todas coisas do contraacuterio conteria partes que natildeo satildeo o Princiacutepio-
Intelectualrdquo (PLOTINUS OP CIT 246 Eneadas III 8 8) Conclui a partir de entatildeo que ldquo() este
Ser eacute ilimitado e que em tudo que flui dele natildeo haacute reduccedilatildeo nem em sua emanaccedilatildeo desde que eacute
o universo inteiro nem em si mesmo o ponto de partida desde que natildeo haacute reuniatildeo de partes
()rdquo (IDEM IBIDEM 246-247) Fica claro o caraacuteter ascendente e natildeo descendente da processatildeo
75
Plotino explica que ldquo() um ser desta natureza natildeo eacute existecircncia primaacuteria deve existir a
partir daquilo do qual transcende o Ser (o Absoluto) ()rdquo (ID IBID 247) e prossegue dizendo
que ldquo() Pluralidade eacute mais tardia que Unidade O Princiacutepio-Intelectual eacute um nuacutemero (=a
expressatildeo de uma pluralidade) e o nuacutemero deriva da unidade a fonte de um nuacutemero como este
deve ser o autecircntico Unordquo (ID IBID) A transcendecircncia que evidencia o caraacuteter progressivo
pode ainda ser entendida desde a ideia de que ldquo() ao contemplar-se a si mesmo a Inteligecircncia
se une ao objeto contemplando uma unidade entre o eu e o ser universal que supera toda
alteridade ()rdquo (BEZERRA OP CIT 79) Com isto eacute possiacutevel resgatar ainda o sentido pelo qual
Beierwaltes destaca a diferenccedila como princiacutepio pelo qual haacute um desvio de Plotino em relaccedilatildeo
agrave ontologia claacutessica (cf BEIERWALTES OP CIT 58) Contudo como se compreende esta
contemplaccedilatildeo eacute o que levaraacute agrave terceira hipoacutestase a alma (ψυχή) Bezerra explica recapitulando
os passos anteriores ldquoVimos anteriormente que o Uno e o Muacuteltiplo apresentam-se sob duas
maneiras distintas a) Uno e natildeo muacuteltiplo (I hipoacutetese) b) Uno-Muacuteltiplo (II hipoacutetese) A alma eacute
portanto ao mesmo tempo uno e muacuteltiplordquo (BEZERRA OP CIT 82) o que significa evidenciar
que ela representa uma distinccedilatildeo radical e afastamento do primeiro princiacutepio o uno
Ainda no oitavo tratado da terceira Eneacuteada Plotino aborda a natureza enquanto ato
criador compreendendo o fenocircmeno a partir de uma tensatildeo entre um Princiacutepio-Racional inerte
e um Princiacutepio-Natural em movimento (cf PLOTINUS OP CIT 239-240 Eneadas III 8 2) que
responderia ainda ao conflito entre unidade e multiplicidade e ainda agrave questatildeo entre tempo e
eternidade Plotino indaga como a natureza responderia ao questionamento colocando
literalmente o argumento na fala da natureza que diria que ldquoOs matemaacuteticos desde suas visotildees
desenham suas figuras mas eu desenho nada eu contemplo as figuras do material do mundo
tomando os seres como eu os sinto desde minha contemplaccedilatildeordquo (IDEM IBDEM 241) chegando a
conclusatildeo de que ldquo() o que noacutes conhecemos por Natureza eacute uma Alma cria de uma Alma
ainda anterior () uma visatildeo interna de si mesmardquo (ID IBID)
76
A visatildeo interna de si mesma mencionada por Plotino prove o entendimento de que ldquoA
alma portanto autodetermina-se e ao mesmo tempo autofragmenta-se pois ao separar-se do
todo volta-se maravilhada para o particularrdquo (BEZERRA OP CIT 84) Disto adveacutem a geraccedilatildeo do
tempo como desordem introduzida no equiliacutebrio primordial e ao mesmo tempo a introduccedilatildeo
de uma ordenaccedilatildeo mediada pela conversatildeo (επιστροφή) ndash pelo retorno maravilhado ao uno ou
uniatildeo ao fundamento por meio da contemplaccedilatildeo
Agora bem toda esta inevitaacutevel breve introduccedilatildeo ao pensamento de Plotino deve
direcionar para uma postura distinta daquela antes observada com a ontologia claacutessica e o
pensamento metafiacutesico Que postura eacute esta Ou melhor qual o caminho que se abre a partir das
trecircs hipoacutestases plotinianas Este eacute o momento no qual o caminho da negatividade comeccedila a se
encorpar e mostrar seu caraacuteter decisivo na constituiccedilatildeo do desvio intelectual do neoplatonismo
Gostaria de fazer um recorte especiacutefico do nono tratado da sexta Eneacuteada para alcanccedilar este
esclarecimento
Plotino reconstitui seu caminho a partir da afirmaccedilatildeo ldquoEacute em virtude da unidade que os
seres satildeo seresrdquo (PLOTINUS OP CIT 614 Eneadas VI 9 1) O que significa afirmar que sem a
unidade natildeo se pode considera que algo seja o que seja Em termos mais simples se nomeio
braccedilo pernas cabeccedila razatildeo sensibilidade entre outras muacuteltiplas singularidades presentes em
um ser humano mas natildeo as congrego em uma unidade pela qual afirmo ldquoser humanordquo que
compreende todas as particulares em questatildeo inexoravelmente perco de vista seu sentido Por
isto ldquoQualquer coisa que possa ser descrita como uma unidade o eacute no preciso grau pelo qual
sustenta um ser caracteriacutestico quanto menor ou maior o niacutevel do ser menor ou maior seraacute a
unidaderdquo (IDEM IBIDEM) Portanto alma seria (em razatildeo de sua distinccedilatildeo da unidade mesma)
uma grande unidade em proporccedilatildeo e na autenticidade do ser e assim ldquoUnidade absoluta natildeo eacute
eacute a alma e a primeira alma a unidade em algum sentido concomitante ()rdquo (ID IBID) deixando
ver como a unidade natildeo eacute e eacute
77
Desta forma pode-se compreender que o uno natildeo pode ser a totalidade dos seres que
anularia sua unidade nem tampouco o ldquoPrinciacutepio-Intelectualrdquo pelo qual as coisas satildeo nem o
ldquoser mesmordquo no sentido da totalidade das coisas Plotino prossegue dizendo ldquoA alma ou mente
movimentando-se rumo ao que eacute sem forma encontra-se em estado de incompetecircncia para
apreender ali onde nada se limita ou onde a se impinge a realidade difusardquo (ID IBID 615 VI
9 3) Assim ldquo(hellip) ante o puro pavor de se sustentar no nada esvai-se O estado eacute doloroso
geralmente busca aliacutevio ao se retratar de sua vagueza na regiatildeo do sentido para ali repousar em
um fundamento soacutelido bem como a visatildeo aflige-se com o minuto no qual repousa na escuridatildeordquo
(ID IBID) Mas para onde olhar frente ao desconforto de natildeo se ter onde repousar Quando se
percebe o quatildeo vago eacute todo e qualquer presumido fundamento ou sentido quando a escuridatildeo
natildeo reflete senatildeo a angustia de uma contemplaccedilatildeo exausta pelo esvair de todo sustento o que
resta para aleacutem discoacuterdia que atinge o intelecto Plotino sintetiza a afliccedilatildeo
A alma deve ver em sua proacutepria maneira isto se daacute por coalescecircncia a unificaccedilatildeo
mas buscando assim conhecer a unidade eacute impedida por esta mesma unificaccedilatildeo de
reconhecer o que foi encontrado natildeo se pode distinguir a si mesmo do objeto de sua
intuiccedilatildeo No entanto este eacute nosso uacutenico recurso caso nossa filosofia busque o
conhecimento da Unidade (ID IBID)
O uacutenico caminho rumo ao conhecimento da unidade eacute um caminho impossiacutevel em si mesmo
uma via cerrada pela proacutepria natureza do questionamento proposto Intuir as trecircs hipoacutestases ou
encadeaacute-las conforme uma loacutegica sistemaacutetica portanto elucida o caminho mas natildeo
necessariamente introspecta e absorve a pureza da experiecircncia Para isto eacute necessaacuterio mais ou
melhor menos ndash muito menos O uacutenico ponto de apoio aqui seraacute a identificaccedilatildeo entre o uno e
bem ou a compreensatildeo da primeira hipoacutestase como uno-bem (τὸ ἑν καὶ αγαθον) cujo sentido
eacute por um lado extrema e pura simplicidade e por outro inefabilidade total devido agrave perfeiccedilatildeo
78
Reivindicar este caminho soacute pode portanto levar a uma supressatildeo absoluta onde
ldquoAinda esta abstenccedilatildeo de autoconhecimento natildeo comporta ignoracircncia ignoracircncia eacute algo de fora
ndash um conhecedor ignorante de um cognosciacutevel ndash mas no solitaacuterio natildeo haacute nem conhecimento
nem nada desconhecidordquo (ID IBID 620 VI 9 6) Plotino entatildeo apresenta uma formulaccedilatildeo
nada usual conforme a qual certo direcionamento de suas intenccedilotildees pode ser entendido em
uma passagem tatildeo emblemaacutetica quanto enigmaacutetica ele escreve
Neste coro a alma olha para a nascente da Vida tambeacutem nascente do Intelecto iniacutecio
do Ser fonte do Bem raiz da Alma Natildeo que eles tenham sido despejados do Supremo
menosprezando-os como se fosse uma massa Nisto aquilo que emana seria pereciacutevel
mas eles satildeo eternos eles nasce de um princiacutepio eterno que produz deles sua
fragmentaccedilatildeo mas em virtude de sua identidade inata portanto eles se manteacutem muito
firmes conto o sol brilhe contanto haveraacute luz
()
Aqueles para os quais toda esta experiecircncia eacute estranha podem entende-la como nossos
anseios terrenos e a alegria que temos ao ganhar o que mais desejamos ndash lembrando
sempre que aqui o que noacutes amamos eacute pereciacutevel doloroso que nosso amor eacute mimeacutetico
e se afasta porque foi tudo um engano nosso bem natildeo estava laacute isto natildeo era o que
procuraacutevamos Haacute apenas o verdadeiro amor onde haacute uniatildeo natildeo segurando isto com
algum tipo de abraccedilo carnal mas possuindo na totalidade sua veracidade Todos
aqueles que viram sabem o que tenho em mente a alma toma outra vida quando se
aproxima de Deus assim restaurada sente que o distribuidor da verdadeira vida estaacute
laacute para ver que agora natildeo temos nada para procurar senatildeo aquilo que precisamos
deixar de lado e deixar assim sozinho assim vindouro assim soacute tudo o que o ambiente
terreno aniquilou na pressa de ser livre impaciente em relaccedilatildeo a qualquer laccedilo que
nos sustenta na base para que com todo nosso ser possamos agarrar-nos sobre isto
quando natildeo sobra nada em noacutes senatildeo aquilo pelo qual tocamos em Deus (ID IBID
623 VI 9 9)
79
As palavras de Plotino ressoam como uma conduta que eacute antes como postura que doutrina O
uso termo ldquoamorrdquo denota claramente uma experiecircncia irregulaacutevel uma tensatildeo entre ausecircncia e
presenccedila preenchimento e falta ndash sem embargo um misteacuterio
O misteacuterio que indicado por Plotino se configura como o guia para a visatildeo que permite
descortinar o sentido pensamento filosoacutefico Um misteacuterio que segue a mesma regra de Platatildeo e
do platonismo onde ldquoNada eacute divulgado para os natildeo-iniciadosrdquo (ID IBID 624 VI 9 11) e do
qual natildeo se pode simplesmente exibir uma estoacuteria ordinaacuteria ldquoCoisas aqui satildeo sinaisrdquo (ID IBID)
adverte Plotino Sinais para aqueles que entram em solo sagrado e tornam real a visatildeo do
inacessiacutevel Ele esclarece ainda ldquoQuando a alma comeccedila novamente a se colocar natildeo se torna
outra mas si mesma assim desprendida natildeo eacute nada senatildeo si mesma auto-reunida natildeo eacute mais
da ordem do ser estaacute no Supremordquo (ID IBID) O desprendimento e a supressatildeo a visatildeo do uno
e o movimento de uniatildeo encaminham para o ldquotodo-transcendenterdquo que jaacute natildeo mais estaacute no niacutevel
daquilo que eacute do ente mesmo do ser mas em uma esfera para aleacutem de todas as coisas que satildeo
e que natildeo satildeo A culminaccedilatildeo do pensamento henoloacutegico de Plotino como uma ldquomiacutestica da
unidaderdquo eacute o berccedilo do neoplatonismo e necessariamente o iniacutecio de sua radicalizaccedilatildeo
Neste fluxo considera-se que existam dois momentos fundamentais do desdobramento
do neoplatonismo a partir da henologia plotiniana quais sejam a teologizaccedilatildeo da henologia
desenvolvida por Proclo e a teologia negativa do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita Em ambos eacute
possiacutevel observar como o caminho da negatividade se configura partir de uma profunda
introspecccedilatildeo de temas que tendem agrave dissoluccedilatildeo do conhecimento ateacute entatildeo concebido
estruturado e instaurado ndash e ainda agrave subversatildeo completa de seus meios de expressatildeo e
significaccedilatildeo isto eacute agrave supressatildeo do saber e do dizer Eles natildeo representam meramente o ldquopasso
adianterdquo como se houvessem ainda superado o discurso antecessor mas antes o ldquopasso atraacutesrdquo
enquanto retorno agraves bases e aos princiacutepios por meio da reivindicaccedilatildeo da atitude desvelada pela
miacutestica onde o misteacuterio natildeo eacute o problema a ser desvendado mas o elemento a ser incorporado
80
O obra de Proclo eacute composta por diversos comentaacuterios aos diaacutelogos de Platatildeo dentre os
quais ao Timeu ao Parmecircnides ao Alcebiacuteades agrave Repuacuteblica entre outros aleacutem de escritos
sistemaacuteticos como os Elementos de Teologia e a Teologia Platocircnica Existem ainda obras que
abordam temas de matemaacutetica astronomia arte magia e tratados propedecircuticos sobre doutrinas
filosoacuteficas Especialmente em relaccedilatildeo agraves contribuiccedilatildeo em torno agrave henologia duas obras satildeo de
suma importacircncia o Comentaacuterio ao Parmecircnides de Platatildeo e os Elementos de Teologia
A leitura de Proclo do Parmecircnides de Platatildeo eacute considerada uma das mais sistemaacuteticas e
originais que teria sobrevivido agraves vicissitudes dos tempos Ademais guardaria ainda um apelo
ao resguardo da filosofia de Platatildeo bem como uma preparaccedilatildeo para um projeto de resgate da
vitalidade do paganismo por meio de um platonismo revigorado 31 Decorreria disto uma
profunda incursatildeo na filosofia como teologia que culminaria em seus Elementos Ainda no
Comentaacuterio Proclo descreve o percurso de Platatildeo em relaccedilatildeo agrave Parmecircnides e manifesta uma
linha argumentativa similar a Plotino
Mas caso se queira chegar o mais proacuteximo da verdade deve-se seguir a linha de nosso
Mestre que Parmecircnides inicia desde o Uno (Ser) (para a proposiccedilatildeo ldquose haacute um unordquo
jaacute que conteacutem aleacutem do ldquoUnordquo o conceito de existecircncia pertence a este tipo de coisas)
ascendendo do Uno Ser para o Uno assim demonstrando que o Uno em sentido estrito
deseja apenas isto ser One e ldquoarrebatar-se para longerdquo do Ser e o Uno Ser eacute
secundaacuterio a este pela razatildeo de sua descendecircncia em direccedilatildeo ao Ser ao passo que o
Uno mesmo eacute superior mesmo agrave designaccedilatildeo ldquoeacuterdquo e a hipoacutetese ldquose haacuterdquo assim que
adicionamos eacute o Uno no sentido estrito natildeo mais permanece (PROCLUS 1987 379-380
In Parm 1033)
31 Estas consideraccedilotildees satildeo de Ciacutecero Cunha Bezerra em Algumas consideraccedilotildees sobre leitura procleana do
Parmecircnides de Platatildeo (2004) Neste artigo ele ainda sustenta em consonacircncia com H D Saffrey (Proclus
diadoque de Platon 1990) que Proclo entra na linha de inteacuterpretes de Platatildeo que entendem sua filosofia como
revelaccedilatildeo de uma verdade divina estruturada a partir do uno filiando Platatildeo aos teoacutelogos gregos (cf BEZERRA 2004
99-100)
81
Proclo apresentaraacute na sequecircncia a impossibilidade de ldquohipotetizarrdquo o uno cindindo de um lado
hipoacutetese-condicionada e de outro anti-hipoacutetese-incondicionada O problema que estaacute sendo
colocado parte da ideia de que natildeo se pode pensar a multiplicidade isolada senatildeo somente por
meio da concepccedilatildeo de uma unificaccedilatildeo Para aleacutem da estrutura binaacuteria uno-muacuteltiplo deve-se
considerar a unificaccedilatildeo como consequecircncia necessaacuteria dando origem agrave formulaccedilatildeo ldquouno-
unificado-muacuteltiplordquo para explicar como eacute simplesmente possiacutevel que hajam elementos pelos
quais outros se unificam32
O resultado da formulaccedilatildeo de Proclo parece ser a absolutizaccedilatildeo do uno e sua
identificaccedilatildeo com Deus algo sobremaneira evidente na proposiccedilatildeo de seus Elementos que diz
ldquoTodo intelecto divino eacute uniforme ou possui a forma do Uno e eacute perfeito E o primeiro intelecto
subsiste por si mesmo e produz outros intelectosrdquo (IDEM 1998 86 Elem Theo Prop CLX)
Proclo argumenta ainda que se haacute um Deus ele eacute preenchido de unidades divinas e eacute uniforme
sendo ainda perfeito e cheio da bondade divina havendo um Deus primeiro que provecirc as
hipoacutestases para outros intelectos
Este eacute precisamente o ponto que seraacute aprofundado pelo Pseudo-Dioniacutesio Areopagita em
sua teologia negativa Tanto em Proclo quanto no Pseudo-Dioniacutesio o divino habita a
compreensatildeo filosoacutefica da realidade como incorporaccedilatildeo do misteacuterio seguindo ainda a esteira
da muacutetua reciprocidade entre filosofia e religiatildeo demanda por Plotino desde o iniacutecio Pseudo-
Dioniacutesio coroa a radicalizaccedilatildeo do uno e sua identidade com o Deus primeiro apresentado como
supraessencial (ὑπερούσιε) suprabondoso (ὑπεράγαθε) e mesmo supradivino (ὑπερθεε) razatildeo
pela qual ele demanda que ldquo() em absoluta renuacutencia de si mesmo e de todas as coisas deveraacutes
na pureza deixar todas as coisas de lado liberando-se de tudo e sendo assim levado para cima
para o Raio da Divina Treva que excede toda existecircnciardquo (DIONYSIUS THE AREOPAGITE 1920 192)
32 Esta passagem eacute cuidadosamente explicada por Giuseppe Girgenti que esclarece que ldquoO ponto culminante do
primeiro grupo de teoremas eacute o alargamento da hierarquia de quatro termos uma vez que o raciociacutenio de Proclo
levou a distinguir o intermediaacuterio entre o proacuteprio Uno e o unificado ou seja elementos que compotildeem o unificada
as primeiras unidades do natildeo-unificado ou a henadirdquo (GIRGENTI 2009 113-114)
82
Discursar acerca da inefabilidade impotildee no Pseudo-Dioniacutesio uma superaccedilatildeo da proacutepria
linguagem que se revela agora como uma construccedilatildeo liberta de qualquer fronteira e acima de
qualquer paradoxo onde negaccedilatildeo (ἀπόφασις) e afirmaccedilatildeo (κατσφάσις) comungam de igual
valor e sentido em uma mesma e uacutenica esfera A primazia propriamente apofaacutetica que toma
conta da fala do Pseudo-Dioniacutesio ganha forccedila quando supera toda definiccedilatildeo conceitual e
identifica Deus como nada daquilo que eacute
Uma vez mais indo ainda mais alto mantemos que Ele natildeo eacute alma ou mente ou
concebido pela faculdade da imaginaccedilatildeo conjuntura razatildeo ou entendimento nem eacute
nenhum ato de razatildeo ou compreensatildeo nem pode ser descrito pela razatildeo ou percebido
pelo entendimento jaacute que natildeo eacute nuacutemero ou ordem ou magnificecircncia ou pequenez
ou igualdade ou desigualdade e jaacute que natildeo estaacute inerte nem em movimento ou em
descanso e natildeo possui poder e natildeo eacute poder nem luz e natildeo vive e natildeo eacute vida nem eacute
essecircncia pessoal ou eternidade ou tempo nem pode ser apreendido pelo
entendimento jaacute que natildeo eacute nem conhecimento nem verdade nem eacute reinado ou
sabedoria nem eacute uno nem unidade nem deidade ou bondade natildeo eacute um espiacuterito como
se entende o termo jaacute que natildeo eacute Filho nem Pai nem eacute nenhuma outra coisa tal como
noacutes ou qualquer outro ente do qual se possa ter conhecimento nem pertence a
categoria de natildeo-existecircncia ou de existecircncia nem os entes existentes o conhecem
como realmente eacute nem Ele os conhece como realmente satildeo nem a razatildeo pode o
atingir nomear ou conhecer nem eacute escuridatildeo nem eacute luz ou erro ou verdade nem
nenhuma afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo pode ser aplicada porquanto aplicar afirmaccedilotildees e
negaccedilotildees natildeo se aproximam Dele noacutes natildeo aplicamos nem negaccedilatildeo nem afirmaccedilatildeo
enquanto transcende toda afirmaccedilatildeo por ser perfeita e uacutenica Causa dos seres e
transcende toda negaccedilatildeo pela preeminecircncia de sua livre natureza simples e absoluta
de qualquer limitaccedilatildeo e para aleacutem de tudo (DIONYSIUS THE AREOPAGITE 1920 200-201)
83
Seria justo afirmar que esta densa passagem da Teologia Miacutestica eacute muito mais proacutexima de uma
declaraccedilatildeo de amor do que uma articulaccedilatildeo filosoacutefica (e caberia aiacute perguntar se haacute enfim
alguma diferenccedila entre uma coisa e outra) Pseudo-Dioniacutesio natildeo apenas promove um
movimento de negaccedilatildeo em direccedilatildeo agrave toda afirmaccedilatildeo mas ainda rumo agrave proacutepria negaccedilatildeo Neste
sentido a definiccedilatildeo mais justa conforme a qual se utiliza aqui o termo negatividade seguiria
com precisatildeo os termos do Pseudo-Dioniacutesio entendendo que o caminho negativo estaacute mais
aleacutem de toda afirmaccedilatildeo e mesmo de toda negaccedilatildeo Esta eacute ainda a via para entender o que pode
ser nomeado como meontologia um percurso intelectual que apoiado pela henologia
neoplatocircnica natildeo se fundamenta mais no ente mas antes no natildeo-ente (μή ὄν) ou mesmo no
nada
As consequecircncias da henologia neoplatocircnica de Plotino e Proclo e da meontologia
miacutestica do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita natildeo passaratildeo incoacutelumes pelos seacuteculos que se seguiriam
agrave composiccedilatildeo dos escritos aqui conjurados Contudo algumas recepccedilotildees bastante acuradas e
inspiradas criativas e bem desenvolvidas ocupar-se-iam de resgatar o sentido do pensamento
negativo e desdobrar a profundidade do problema Eacute possiacutevel citar algumas dezenas de filoacutesofos
que se dedicaram ao diaacutelogo com o neoplatonismo e a teologia negativa Aqui gostaria de
encerrar este capiacutetulo direcionando-o para uma interlocuccedilatildeo especial e ao meu ver central para
a difusatildeo da negatividade na filosofia medieval moderna e contemporacircnea Tenho em mente
Joatildeo o Escoto chamado Eriuacutegena
Eriuacutegena ocupou um lugar de destaque nas altercaccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas durante
o chamado Renascimento Caroliacutengio sendo-lhe atribuiacutedas tarefas como a traduccedilatildeo do grego
para o latim das obras do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita bem como explanaccedilotildees em torno agrave
contenda da divina predestinaccedilatildeo e agraves interpretaccedilotildees e exegeses suscitadas pela disputa erguida
pela cultura biacuteblica do periacuteodo33
33 Para especificaccedilotildees em torno a Eriuacutegena e seu tempo confira CONTRENI 1996 e MCNAMARA 1996
84
A presenccedila do neoplatonismo em Eriuacutegena parece se posicionar de maneira estrateacutegica
ao longo dos movimentos por ele realizados em sua magna obra o Periphyseon Natildeo se pode
perder de vista as possiacuteveis definiccedilotildees do neoplatonismo natildeo apenas dentro de suas esferas
relacionais e a partir das tendecircncias de leitura mas ainda por meio da questatildeo fundamental que
problematiza todo conteuacutedo qual seja como o uno se relaciona com o muacuteltiplo ou ainda como
o que eacute primeiro se relaciona com o que eacute posterior Oscar Federico Bauchwitz sustenta que
ldquo() a questatildeo pela antonomaacutesia do neoplatonismo enquanto uma reflexatildeo acerca da relaccedilatildeo
entre o Criador e a criatura entre o Uno e a multiplicidade pode ser enfocada na obra de
Eriuacutegena no que diz respeito a creatio ex nihilo e ao sentido original que eacute determinado ao
termo nihilrdquo (BAUCHWITZ 2001 11) Assumindo esta hipoacutetese como vaacutelida torna-se
imprescindiacutevel compreender o lugar que tal questatildeo ocupa na obra eriugeneana e como ela se
desenvolve
Conforme os apontamentos de Bauchwitz o ldquonadardquo se apresenta pela primeira vez jaacute
no iniacutecio do Periphyseon ao serem articulados os modos da diferenccedila fundamental da divisatildeo
da natureza (φύσις natura) definida como tudo aquilo que eacute e que natildeo eacute (quae sunt et quae non
sunt) sendo dividida em quatro espeacutecies ldquo() primeiro naquilo que cria e natildeo eacute criado segundo
naquilo que eacute criado e tambeacutem cria terceiro naquilo que eacute criado e natildeo cria enquanto o quarto
nem cria nem eacute criadordquo (ERIVGENAE 1999 37 441ordf) O que eacute pode ser percebido apreendido e
conhecido O que natildeo eacute todavia natildeo se pode perceber apreender ou conhecer (cognoscitur non
quid est sed quia est) De acordo com Bauchwitz o termo quid est (ldquoo que eacuterdquo) diz respeito agrave
essecircncia de tudo que permanece incompreensiacutevel e infinito ao passo que quia est (ldquoque eacuterdquo)
indica a existecircncia da essecircncia divina ou seja seus efeitos como algo determinado e que eacute O
incompreensiacutevel da natureza divina Eriuacutegena deixa ver quando escreve ldquoPortanto se eacute por
causa de sua excelecircncia inefaacutevel e incompreensiacutevel infinitude que a Natureza Divina eacute dita natildeo
ser disto se segue que ela eacute nada ()rdquo (IDEM 2005 61 634C)
85
A impossibilidade de compreender a natureza divina eacute o que permite a Eriuacutegena
descortinar seu entendimento acerca da creatio ex nihilo Bauchwitz escreve sobre este ponto
ldquoA questatildeo se origina eacute que se a diferenccedila fundamental abarca a totalidade da natureza o que
se poderia predicar de Deus Isto eacute o que haacute para mais aleacutem do ser e do natildeo ser senatildeo o Nada
desde o qual Deus cria todas as coisasrdquo (BAUCHWITZ OP CIT 12) O problema eacute apresentado por
Eriuacutegena a partir da busca pelo sentido conforme o qual se questiona de que maneira eacute possiacutevel
compreender como todas as coisas que satildeo se originam do nada (ou nos termos do
neoplatonismo pagatildeo a mesma questatildeo de ldquocomo do uno se origina a multiplicidade) Eacute
possiacutevel interpretar esta passagem alegando que Eriuacutegena se refere ao nihilo em perfeita
sintonia com toda doutrina Cristatilde da criaccedilatildeo como de fato faz sentido afirmar Contudo
Eriuacutegena vislumbra o que considera ldquoa verdadeira essecircncia da natureza divinardquo O Criador que
cria todas as coisas que satildeo criadas insere-se naquela parte da divisatildeo da natureza na qual ldquocria
mas natildeo eacute criadordquo enquanto sua ldquoessecircnciardquo reflete aquilo que ldquonatildeo eacute nem criado nem criardquo
Em outros temos indica-se que nada eacute a natureza divina de Deus ou ainda que natildeo-ser
corresponde agrave divindade
Resta ainda resolver o mesmo problema ante ao qual se encontraram Plotino Proclo o
Pseudo-Dioniacutesio entre outros a saber como eacute possiacutevel para Deus desarraigar-se de seu nada
ou desdobrar-se desde si mesmo Bauchwitz oferece uma explicaccedilatildeo quando potildee em relevo o
problema da expressatildeo do paradoxo
() por meio da criatura eacute Deus quem se manifesta e portanto todas as criaturas
podem ser entendidas como certas apariccedilotildees divinas isto eacute teofania Neste sentido a
teofania nomeia o paradoxo da ineffabilis difusio que diz que o infinito devem finito
que o incompreensiacutevel devem compreensiacutevel que o silecircncio clama (BAUCHWITZ 2003ordf
57)
86
Em Eriuacutegena eacute possiacutevel acompanhar o sentido da explicaccedilatildeo de Bauchwitz na passagem que
diz
Tudo o que eacute entendido e sentido nada mais eacute senatildeo apariccedilatildeo do que natildeo eacute aparente
a manifestaccedilatildeo do oculto afirmaccedilatildeo da negaccedilatildeo compreensatildeo do incompreensiacutevel [a
expressatildeo do inexpressiacutevel o acesso ao inacessiacutevel] o intelecccedilatildeo do ininteligiacutevel o
corpo do incorpoacutereo a essecircncia do supraessencial a forma do informado a medida
do incomensuraacutevel o nuacutemero do inumeraacutevel o peso do impensaacutevel a materializaccedilatildeo
do espiritual a visibilidade do invisiacutevel o lugar do natildeo-lugar o tempo do natildeo-tempo
a definiccedilatildeo do infinito a circunscriccedilatildeo do incircunscrito e as outras coisas que satildeo
ambas consideradas e percebidas pelo intelecto sozinho e natildeo podem se restringir
dentro de recessos da memoacuteria e nas quais escapa agrave destreza da mente (ERIVGENAE OP
CIT 59 633BC)
A despeito da possibilidade de sintonia com a doutrina Cristatilde da criaccedilatildeo (especificamente o
sentido moralizante da gecircnese) natildeo haacute forccedila catequeacutetica senatildeo puramente especulativa na
maneira pela qual Eriuacutegena aborda a questatildeo O acesso ao sagrado aparece antes como uma
atitude fundamental na qual se insiste no misteacuterio da nadidade do divino
O resultado do caminho meditativo de Eriuacutegena eacute uma postura na qual o pensamento
natildeo responde apenas agraves demandas imediatas agraves preocupaccedilotildees que sanem os conflitos
existenciais e sociais mas uma intelecccedilatildeo cujo grau de alcance atinge toda mensurabilidade e
incomensurabilidade da estruturaccedilatildeo do real como internalizaccedilatildeo do segredo oculto e dos
misteacuterios da natureza Parece ser neste sentido que Bauchwitz sugere uma eacutetica do silecircncio
onde ldquo() natildeo basta enunciar o princiacutepio que deve reger as accedilotildees do ser humano () O silecircncio
como destino a ser alcanccedilado soacute tem sentido na medida em que nomeia a incessante e natural
disposiccedilatildeo do proacuteprio homem em dirigir-se a elerdquo (BAUCHWTZ OP CIT 12) Antes de resolver
qualquer problema assume-se o respeito para com a profundeza do incocircndito
87
Durante a introduccedilatildeo desta tese referi-me a um outro escrito de Bauchwitz Nihilismo
e Neoplatonismo assumindo que aquele artigo havia sido responsaacutevel por traccedilar uma direccedilatildeo
ou mesmo proporcionar um estiacutemulo ao desenvolvimento deste trabalho Gostaria de retornar
agravequele artigo uma vez mais para encerrar esta seccedilatildeo com definiccedilotildees mais precisas a respeito da
henologia e da meontologia como ultrapassagem dos limites da metafiacutesica
O capiacutetulo anterior evidenciou que com a ontologia ou a substantivaccedilatildeo do pensamento
ocidental por meio da confusatildeo entre ser e ente perdeu-se natildeo a capacidade intelectual do ser
humano mas o atino para o seu fundamento Em razatildeo da urgecircncia de respostas abandonou-se
tudo aquilo que era por princiacutepio incoacutegnito inefaacutevel inexprimiacutevel Como havia dito na
introduccedilatildeo com o apoio do trabalho de Bauchwitz a consumaccedilatildeo deste movimento eacute anunciado
por meio de um diagnoacutestico do niilismo Neste sentido Bauchwitz escreve
A relaccedilatildeo entre Nihilismo e Neoplatonismo que aponta para uma eacutetica aleacutem dos
limites da temporalidade e de crenccedilas religiosas ainda estaacute para ser esclarecida Uma
tal eacutetica somente poderaacute ser realmente quando cumpridas umas exigecircncias que neste
trabalho foram apenas assinaladas a superaccedilatildeo da vontade e em consequecircncia da
proacutepria liberdade soacute pode ser interpretada em uma perspectiva que jaacute natildeo se encontra
nos limites da ontologia tradicional ou no dizer de Heidegger no acircmbito da metafiacutesica
O sem-propoacutesito de uma tal eacutetica que abnega qualquer visatildeo utilitarista e
simplesmente dada do mundo exige pensar a partir de novas fundamentaccedilotildees e
valores o retorno do divino eacute uma metaacutefora que atende a tais exigecircncias na medida
em que ao tempo que nos abre uma concepccedilatildeo totalmente outra daquele que ancora
os principais valores vigentes questiona pelos conceitos fundamentais que
homologaram esses valores como superiores porque quantificaacuteveis A ausecircncia de
referecircncias fixadas pelos padrotildees contemporacircneos que mensuram o bem-estar de cada
indiviacuteduo e o resgate de uma vivecircncia que se justifica nela mesma e natildeo pelas suas
finalidades devem servir de origem para superar a ldquonoite do mundordquo (BAUCHWITZ OP
CIT 179-180)
88
Em primeiro lugar eacute importante destacar que a falta de esclarecimento da ldquoeacutetica aleacutem dos
limitesrdquo ou como prefiro colocar aqui ldquopara aleacutem das fronteirasrdquo natildeo soacute natildeo estaacute clara como
assim deve permanecer caso queira responder agrave exigecircncia de absorver a negatividade que
tambeacutem faz parte da humanidade do humano mas que foi todavia afasta de sua visatildeo da
realidade Por este motivo utiliza-se aqui o termo conflito das fronteiras para indicar natildeo uma
resoluccedilatildeo de problemas mas a assunccedilatildeo de um confronto Sendo assim a ultrapassagem de
limites deve se dar apenas no que tange agrave possibilidade de abrir o pensamento para aleacutem da
metafiacutesica tradicional Explorar o que haacute de propriamente fraco o que natildeo se sustenta o que
natildeo pode ser
A temaacutetica poderia ser encerrada aqui Seria possiacutevel retornar ao neoplatonismo com
ainda mais cautela e extrair de laacute mesmo os elementos para subverter toda sorte de ordenamento
que lanccedila o ser humano na ldquonoite do mundordquo Contudo meu interesse aqui eacute explorar mais um
momento da histoacuteria da filosofia e se possiacutevel encontrar um ponto de apoio para reunir a
tradiccedilatildeo metafiacutesica e o neoplatonismo em um uacutenico problema Minhas hipoacutetese conforme seraacute
desenvolvida no terceiro e uacuteltimo capiacutetulo eacute encontrar uma orientaccedilatildeo Orientaccedilatildeo extrema
Ali no Extremo Oriente
89
3 O EXTREMO ORIENTE E O CONFLITO DAS FRONTEIRAS A FILOSOFIA COMPARADA INTERCULTURAL
COMO CHAVE DE LEITURA PARA ALGUNS PROBLEMAS DO PENSAMENTO CONTEMPORAcircNEO
O ambiente acadecircmico britacircnico do final da deacutecada de 1970 foi palco de uma fervorosa disputa
acerca das interpretaccedilotildees e definiccedilotildees culturais entre Ocidente e Oriente A publicaccedilatildeo do livro
Orientalism (1978) de Edward Wadie Said (ع إدوارد Idwārd Wadīʿ Saʿīd) fomentou ديعس ودي
uma inesgotaacutevel discussatildeo acerca de qualquer suposta correspondecircncia deste ou daquele
elemento nos princiacutepios da tradiccedilatildeo oriental sustentando em termos bem simples que o
Oriente era antes uma invenccedilatildeo convencional Said sofreu diversas criacuteticas algumas mais
significativas outras menos Uma de suas consideraccedilotildees mais discutidas afirma que ldquo() o
Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente) como sua imagem ideacuteia personalidade e
experiecircncia de contraste Contudo nada desse Oriente eacute meramente imaginativordquo (SAID 1990
13-14) acrescentando ainda de forma incisiva que ldquoO Oriente expressa e representa esse
papel cultural e ateacute mesmo ideologicamente como um modo de discurso com o apoio de
instituiccedilotildees vocabulaacuterio erudiccedilatildeo imagiacutestica doutrina e ateacute burocracias e estilos coloniaisrdquo
(IDEM IBIDEM 14) Said defendeu que o Oriente tal qual eacute conhecido pelo mundo ocidental natildeo
corresponde agrave proveniecircncia originaacuteria de suas tradiccedilotildees mas eacute antes uma estrateacutegia (poliacutetica e
econocircmica) de manutenccedilatildeo geograacutefica Toda designaccedilatildeo acadecircmica de qualquer orientalismo
ateacute entatildeo desenvolvido estaria entatildeo equivocada apoiada em pressupostos que natildeo condizem
com a tradiccedilatildeo oriental Sem embargo o mesmo poderia ser dito a respeito da introspecccedilatildeo do
mundo grego pelo mundo romano-latino e no decorrer da histoacuteria da humanidade eacute possiacutevel
ainda identificar outras centenas de casos semelhantes ateacute o ponto no qual se afirma a
globalizaccedilatildeo por meio da modernizaccedilatildeo de todos os recantos do planeta dentro do iacutempeto de
igualar todas as culturas em um niacutevel comum
90
Entretanto apesar de ser possiacutevel interpretar as assertivas de Said de forma mais
ponderada aproveitando com isto certo direcionamento fatalista embora natildeo necessariamente
inveriacutedico de sua investigaccedilatildeo algumas gafes de sua compreensatildeo da histoacuteria se revelam
bastante perturbadoras Um dos principais criacuteticos de Said Robert Irwin publicou uma obra
onde ampla parte eacute dedicada agrave refutaccedilatildeo direta dos principais argumentos de Said Em For the
Lust of Knowning (2006) Irwin destaca algumas inverdades de Said e contrargumenta de
maneira precisa certas falaacutecias Contudo Irwin eacute tambeacutem bastante emotivo em sua abordagem
ele escreve ldquoPara pocircr minhas cartas na mesa jaacute de iniacutecio a meu ver aquele livro [Orientalism]
eacute uma obra de uma impostura maleacutevola na qual eacute difiacutecil distinguir erros verdadeiros de
falsidades propositadasrdquo (IRWIN 2006 11) Irwin ataca principalmente os erros fatuais de Said
apontando para lacunas na fundamentaccedilatildeo da obra Orientalism34 destacando vaacuterios enganos e
afirmando em siacutentese ldquoPois se eacute possiacutevel apresentar uma imagem falsa do orientalismo do
cristianismo e do imperialismo britacircnico natildeo seria tatildeo obviamente errado apresentar de modo
semelhante uma falsa imagem do islatilde da histoacuteria aacuterabe ou da difiacutecil situaccedilatildeo dos palestinosrdquo
(IDEM IBIDEM 330-331) fazendo referecircncia agraves posiccedilotildees por Said defendidas Em suma Irwin daacute
a entender nas entrelinhas que a politizaccedilatildeo de um criacutetico literaacuterio no caso Said tornou a obra
Orientalism um intento mal construiacutedo como ferramenta para sustentaccedilatildeo de posiccedilotildees poliacuteticas
condenando todo seacuterio estudo que envolve o orientalismo Ateacute entatildeo muitos outros
pesquisadores e eruditos atacaram Said bem como tantos outros o admiravam e o defenderam
Todavia com a apresentaccedilatildeo desta disputa quero aqui destacar um fator iacutempar que natildeo
necessariamente se prende agrave contenda mas que encobre o toacutepico de modo geral
34 Irwin destaca alguns erros ldquoOrientalismo daacute a impressatildeo de um livro escrito agraves pressas Eacute repetitivo e conteacutem
muitos erros factuais Said menciona lsquoPedro o Veneraacutevel e outros orientalistas cluniacensesrsquo Que outros
orientalistas cluniacenses Seria interessante conhecer seus nomes (Mas naturalmente a ideia de que houvesse toda
uma escola de orientalistas cluniacenses eacute absurda Pedro o Veneraacutevel trabalhou sozinho) Como Bernard Lewis
ressaltou Said faz com que exeacutercitos muccedilulmanos conquistem a Turquia antes de conquistarem o norte da Aacutefrica
Isso realmente sugere uma ignoracircncia espantosa da histoacuteria do Oriente Meacutedio da mesma forma que sua crenccedila
quanto a terem a Gratilde-Bretanha e a Franccedila dominado a regiatildeo oriental do Mediterracircneo a partir do final do seacuteculo
XVIIrdquo (IRWIN 2006 329)
91
Com a discussatildeo entre os orientalistas e seus inimigos o importante eacute destacar natildeo
apenas as dificuldades que envolvem todo e qualquer estudo comparado entre Ocidente e
Oriente mas o fato de que eacute da natureza do proacuteprio estudo comparado que haja divergecircncias
A divergecircncia e o erro satildeo de fato disposiccedilotildees naturais dos estudos comparados sem os quais
natildeo seria possiacutevel sequer dar iniacutecio agrave discussatildeo ou desenvolver qualquer linha de raciociacutenio
preparatoacuteria Soacute eacute possiacutevel falar em estudos comparados porque houve de antematildeo a percepccedilatildeo
de uma divergecircncia Mais ainda a necessidade do momento e os acasos eventuais direcionam
os estudiosos para um ou para outro lado Assim como Said saiu em defesa da Palestina durante
um periacuteodo no qual os conflitos haviam se asseverado em decorrecircncia da expulsatildeo das forccedilas
de paz das Naccedilotildees Unidas em 1967 tambeacutem outros pensadores em outros momentos da histoacuteria
foram motivados por acontecimentos histoacutericos sejam eles de guerra ou de paz poliacuteticos
econocircmicos ou religiosos Como por exemplo as diversas manifestaccedilotildees de revolta e
indignaccedilatildeo de Theodor Wiesengrund Adorno e Gershom Scholem apoacutes Auschwitz ou as
anaacutelises polecircmicas de Slavoj Žižek das revoltas do subuacuterbio de Londres e da Primavera Aacuterabe
Contudo algumas deacutecadas antes da publicaccedilatildeo da obra de Said precisamente durante a
deacutecada de 1950 o Departamento de Filosofia da University of Hawairsquoi at Mānoa havia
alavancado uma seacuterie de trabalhos a respeito dos fundamentos e procedimentos dos estudos
comparados Eacute preciso considerar que proacuteprio departamento jaacute havia sido estruturado entre
1930 e 1940 com o objetivo de suprir a lacuna que havia a respeito dos estudos comparados na
filosofia A primeira East-West Philosophers Conferece em 1939 ditou o tom pelo qual se
tornaria possiacutevel falar abertamente alguns anos mais tarde de uma filosofia comparada
intercultural Ali natildeo escapou a ideia de que foi justamente por meio do ldquoerrordquo que se
estabelecia o diaacutelogo entre fronteiras Em outras palavras este diaacutelogo nascia jaacute sempre de um
conflito das fronteiras A hipoacutetese de consenso eacute explorada neste sentido apenas mediante a
assunccedilatildeo de certa ignoracircncia parcial e sopesando ainda as variaccedilotildees de interpretaccedilatildeo
92
O rigor filosoacutefico que direcionou as primeiras tentativas da filosofia comparada em
confrontar as tradiccedilotildees sapienciais ocidentais e orientais permitiu a instauraccedilatildeo de uma postura
cuidadosa e quase mesmo analiacutetica do problema35 Com isto foi possiacutevel comeccedilar a pensar de
que forma elementos do pensamento oriental e da filosofia ocidental poderiam convergir ou
divergir e quais as contribuiccedilotildees que este tipo de comparaccedilatildeo pode trazer aos problemas da
contemporaneidade Todavia como anos mais tarde discutiriam Said Irwin e outros natildeo se
pode desprezar o fato de que nada escapa aos entrelaccedilamentos ldquoirrastreaacuteveisrdquo das relaccedilotildees entre
Ocidente e Oriente Neste sentido embora qualquer comprovaccedilatildeo cientiacutefica empaque frente aos
desafios historiograacuteficos natildeo eacute de todo ingecircnuo especular as influecircncias que por exemplo
Platatildeo teria sofrido da sabedoria primitiva de hinduiacutesta e budistas como sustentam diversos
especialistas36 Ou ainda da indagaccedilatildeo acerca de ateacute que ponto o Aristoacuteteles que conhecemos
natildeo foi orientalizado por Al-Farabi (صر ون ن محمس اب ی محمس ب اراب Abū Naṣr Muḥammad ibn ف
Muḥammad Fārābī) Avicena (ن نا اب ع د ou و لی اب نا ع ع د Pūr Sinɑʼ ou ainda ور نا پ ع د Pur-
e Sina em aacuterabe و لي أب عن ع س ح ن ال بس ب الله ع ن نا ب ع د Abū ʿAlī al-Ḥusayn ibn ʿAbd Allāh
ibn Al-Hasan ibn Ali ibn Sīnā) entre outros filoacutesofos da tradiccedilatildeo aacuterabe Sem contar os
sincretismos que permearam a filosofia do helenismo tardio em Alexandria onde pagatildeos
judeus cristatildeo e mulccedilumanos travavam interminaacuteveis disputas teoacutericas (e natildeo apenas teoacutericas)
a respeitos dos fundamento filosoacuteficos e teoloacutegicos religiosidade momento no qual fica difiacutecil
empreender uma anaacutelise pormenorizada de quem influenciou quem quando o quanto e como37
35 Charles A Moore ponderou no trabalho Some Problems of Comparative Philosophy (1951) a dificuldade em
posicionar as doutrinas orientais em um grupo homogecircneo como podia ser feito com a ocidentais apontando ainda
para o cuidado em evitar as caracterizaccedilotildees e comparaccedilotildees a partir de tendecircncias mais gerais (cf MOORE 1951 67)
Kwee Swan Liat escreveu ainda em Methods of Comparative Philosophy (1951) que ao menos sete esferas de
aplicaccedilatildeo metodoloacutegica devem ser previamente levadas em consideraccedilatildeo (aproximaccedilatildeo filoloacutegica histoacuterica
comparativa formal-valorativa psicoloacutegica fenomenoloacutegica e socioloacutegica-antropoloacutegica) avaliando uma por
uma e propondo por conseguinte uma oitava aproximaccedilatildeo total-integrativa (cf KWEE SWAN LIAT 1951 10ss) 36 Estas hipoacuteteses satildeo levantadas por Graham Parkes na introduccedilatildeo de Heidegger and Asian Thought (1987) (cf
PARKES 1987 1) 37 Este ponto especiacutefico acerca das contendas do periacuteodo heleniacutestico foram sobremaneira bem expostas por Jean
Pepiacuten no escrito intitulado Heacutelleacutenisme et christianisme no volume de Franccedilois Chacirctelet La Philosophie v 1 De
Platon agrave Saint Thomas Paris Marabout 1995
93
Falar efetivamente de uma filosofia comparada intercultural todavia pressupotildee outra
perspectiva aquela na qual ambas as tradiccedilotildees estatildeo culturalmente niacutetidas e bem delineadas
(ainda que por meio de caracterizaccedilotildees vulgares pouco precisas ou mesmo caricatas) e satildeo
entendidas como exponencialmente distintas Entretanto as mesmas dificuldades permanecem
Com isto quero dizer fica difiacutecil afirmar ateacute que ponto um lado compreendeu o outro de modo
suficiente e satisfatoacuterio sendo possiacutevel indagar ainda se as apropriaccedilotildees natildeo se deram mediante
interpretaccedilotildees equivocadas ou leituras transviadas sobretudo quando natildeo haacute domiacutenio pleno dos
idiomas envolvidos
Estas asseveraccedilotildees tomaram conta de muitos pensadores no decorrer da histoacuteria da
humanidade Ateacute onde eacute possiacutevel investigar dois momentos marcam o iniacutecio da relaccedilatildeo
expliacutecita (e natildeo meramente impliacutecita como no caso dos primeiros filoacutesofos gregos de Platatildeo e
de Aristoacuteteles) entre Ocidente e Oriente na filosofia a apropriaccedilatildeo latina durante a Idade Meacutedia
dos escritos aacuterabes do Oriente Meacutedio38 e a interlocuccedilatildeo e introspecccedilatildeo da tradiccedilatildeo do Extremo
Oriente (sobretudo chinesa em um primeiro momento) na filosofia alematilde dos seacuteculos dezessete
e dezoito Aqui interessa especialmente o diaacutelogo com o Extremo Oriente e como ele natildeo se
encerrou no mero intercacircmbio de tradiccedilotildees fomentando um movimento de reversatildeo no qual os
orientais por sua vez tambeacutem abriram interlocuccedilatildeo direta com o pensamento ocidental
introspectando a filosofia e desenvolvendo ao seu modo formas de reflexatildeo nos mesmos
moldes da estrutura categoacuterica ocidental mas partindo dos princiacutepios orientais ainda que em
certa medida (como se veraacute) tais princiacutepios por vezes comunguem em muitos aspectos de
elementos e direcionamentos comuns aos ocidentais e por vezes natildeo Para isto eacute preciso
investigar brevemente a gecircnese desta relaccedilatildeo e como ela tem iniacutecio
38 Sobre este toacutepico que natildeo seraacute abordado aqui confira W Raven e A Akasoy (eds) Islamic Thought in the
Middle Ages Studies in Text Transmissions and Translations in Honour of Hand Daiber Leiden Brill 2008 D
Calma Eacutetudes sur le premier siegravecle de lrsquoaverroisme latin approches et textes ineacutedits Turnhout Brepols 2010
entre outros
94
A despeito da culminaccedilatildeo das luzes no periacuteodo moderno diversos temas obscuros
perpassaram o seacuteculo dezessete sobretudo aqueles motivados pelas missotildees catequeacuteticas
jesuiacutetas na China que inevitavelmente influenciaram o ambiente intelectual da eacutepoca 39
Independente dos transtornos causados pelos europeus em suas incursotildees tambeacutem na Europa
os problemas apareceram Quando os documentos acerca das tradiccedilotildees chinesas de pensamento
desembarcaram no continente europeu despertaram imediato interesse em diversos estudiosos
Contudo tampouco foi ameno o iniacutecio deste diaacutelogo O caso mais draacutestico se deu em
1723 quando Christian Wolff fugiu de Halle an der Saale em Sachsen-Anhalt na Alemanha
em decorrecircncia de uma seacuterie de perseguiccedilotildees despertadas por um discurso por ele pronunciado
dois anos antes sob o tiacutetulo Oratio de Sinarum philosophia practica (1721) O motivo era
polecircmico e suscetiacutevel de distintas interpretaccedilotildees Wolff afirmara que ldquoA mesma autoridade que
possui os ditos e feitos de Cristo possui tambeacutem Confuacutecio para os chineses Moiseacutes para os
judeus e Mohammed para os turcosrdquo (WOLFF 1985 117) Embora Wolff tenha impressionado
grande parte de seus ouvintes com o teor apaixonado de sua preleccedilatildeo tal comparaccedilatildeo redundou
em acirradas criacuteticas por diversos professores e eruditos que acompanhavam a fala e a
interpretaram como uma espeacutecie de ateiacutesmo mais ou menos mitigado Estas acusaccedilotildees todavia
natildeo eram fruto apenas da sinofilia de Wolff mas advinham jaacute de seu confronto com colegas
pietistas da Universidade de Halle devido agrave inclinaccedilatildeo bastante evidente para um pensamento
racionalista e secular40
39 Sobre as missotildees jesuiacutetas confira Wenzhao Li Die christliche China-Mission im 17 Jahrhundert Stuttgart
Franz Steiner 2000 Acerca do caso especiacutefico do diaacutelogo com a filosofia alematilde confira ainda Antonio Florentino
Neto Von der Interpretation zum Gespraumlch Das chinesische Denken in deutschen Philosophie Saarbruumlcken
SVH 2013 Florentino Neto ainda comenta que as missotildees tiveram iniacutecio ainda no seacuteculo dezesseis tendo
comeccedilado no Japatildeo e soacute entatildeo atingido a China no seacuteculo dezessete (cf FLORENTINO NETO 2009 41) 40 Os interesses de Wolff pela China bem como pelo racionalismo paulatinamente aparecem em seus escritos
desde a influecircncia direta de Leibniz ateacute a leitura dos tratados dos jesuiacutetas a respeito da China Menccedilotildees ao
pensamento chinecircs e o peso da admiraccedilatildeo que nutria por Reneacute Descartes satildeo evidentes em seus trabalhos a partir
de 1721 (cf LACH 1953) A despeito dos interesses de Wolff pelo pensamento chinecircs sobretudo acerca dos temas
morais constata-se que ele considerava o cristianismo moralmente superior e mais bem desenvolvido (cf KANAMORI
1997 302-303)
95
A hipoacutetese de que a natureza comum do ser humano possibilita o discurso intercultural
nasce sobretudo da comunhatildeo entre uma radicalizaccedilatildeo quase miacutestica do racionalismo moderno
e o impacto causado por escritos de ordem semelhante embora com princiacutepios e fundamentos
distintos Aleacutem de Wolff tambeacutem Nicolas Malebranche e Gottfried Leibniz se dedicaram agraves
leituras do material trazido pelos jesuiacutetas no mesmo periacuteodo Malebranche compocircs em 1707 o
escrito Entretien drsquoun Philosophe Chreacutetien et drsquoun Philosophe chinois sur lrsquoexistence et la
nature de Dieu por meio do qual mais tarde aproveitou para se livrar das acusaccedilotildees de ser um
ldquospinozistardquo Malebranche ainda encarou uma acirrada disputa acerca da condenaccedilatildeo do Papa
Clemente XI agraves missotildees jesuiacutetas sustentando posiccedilotildees bastante polecircmicas em seu diaacutelogo
Malebranche levanta em sua obra a questatildeo fundamental acerca da entificaccedilatildeo do deus
cristatildeo instigando a pergunta acerca do infinito que eacute respondida pelo filoacutesofo chinecircs da
seguinte maneira ldquoEstou convencido de que quando penso sobre o infinito estou muito longe
de pensar qualquer coisa Mas entatildeo eu penso em um tal ser individual e determinado Agora
o Deus que vocecircs adoram natildeo eacute assim um ser individual e particularrdquo (MALEBRANCHE 1708
17) As preocupaccedilotildees de Malebranche caminham no sentido de articular ser e ente no problema
da ontologia do cristianismo Quando Leibniz escreve seu Discours sur la theacuteologie naturelle
des Chinois (1716) ele o faz justamente tendo em vista repetidos pedidos de esclarecer pontos
levantados por Malebranche apoacutes o escrito ter sido enviado a ele por Nicholas Reacutemond41
Eacute possiacutevel considerar que Leibniz foi o que se devotou com mais afinco agrave tradiccedilatildeo
chinesa Ele teria se envolvido principalmente com o direcionamento praacutetico da sabedoria
chinesa profundamente norteada pelo propoacutesito de melhorar a si mesmo e agrave sociedade por meio
da noccedilatildeo confucionista de cultivo de si (修身 xiushen) no sentido propriamente moral42
41 Leibniz trocou extensa correspondecircncia com os missionaacuterios jesuiacutetas a respeito da filosofia chinesa aleacutem de
apresentar comentaacuterios pontuais em sua Novissima Sinica (1697) Contudo eacute no Discours que suas ponderaccedilotildees
mais seacuterias e cuidadosas satildeo delineadas e manifestas (cf KANG 2009 6-8) 42 Mais especificaccedilotildees sobre este tema podem ser encontrados em Karyn T Lay Introduccedilatildeo agrave filosofia chinesa
Trad Saulo Alencastre Satildeo Paulo Madras 2009
96
Leibniz escreve em seu discurso ldquoMas quem poderia pensar que houvesse na terra um
povo que superasse os nossos aspectos da vida cultural Se formos iguais nos modos de
produccedilatildeo somo superiores nas ciecircncias teoacutericas mas inferiores na filosofia praacuteticardquo (LEIBNIZ
1979 11) concluindo que ldquo() somos inferiores na aacuterea da eacutetica na poliacutetica e na vida dos
haacutebitos cotidianosrdquo (IDEM IBIDEM) A interpretaccedilatildeo de Leibniz exalta a capacidade dos chineses
em se organizarem e valorarem as tensotildees promovidas pelo campo social com base no cultivo
de si e ainda identificando o ldquosirdquo ao povo em geral Importante eacute ressaltar natildeo apenas desta
breve sentenccedila ilustrativa mas a partir de uma visatildeo mais ampla de suas reflexotildees o profundo
interesse em preencher lacunas a respeito da proveniecircncia intelectual de certos problemas
filosoacuteficos
Anos depois tambeacutem Georg W F Hegel Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche
nutririam interesses pelo Oriente43 Contudo a resposta propriamente oriental a respeito do
intercacircmbio filosoacutefico se daria apenas na virada do seacuteculo dezenove para o seacuteculo vinte Este eacute
o momento no qual a filosofia comparada intercultural comeccedila a ganhar corpo precisamente
com a abertura poliacutetica e intelectual do Japatildeo e o desenvolvimento da chamada Escola de
Filosofia de Kyōto44 Embora natildeo haja tempo nem espaccedilo para abordar de maneira mais
cuidadosa os enlaces teoacutericos e praacuteticos da Escola de Kyōto escrutinando as estruturas de
pensamento de cada um de seus primeiros membros (e ainda de seus membros tardios) gostaria
aqui de destacar alguns aspectos fundamentais direcionados por duas questotildees a primeira
sustentando o porquecirc a filosofia tem iniacutecio propriamente acadecircmico no Extremo Oriente e
precisamente no Japatildeo e a segunda indagando como (ou de que modo) isto acontece Uma
hipoacutetese necessariamente leva agrave outra e isto pode ser facilmente observado
43 Um panorama mais especiacutefico das aproximaccedilotildees pode ser visto em Florentino Neto 2009 44 Em minha dissertaccedilatildeo de mestrado jaacute havia explanado os movimentos histoacutericos que levaram agrave abertura do Japatildeo
e ao surgimento da filosofia japonesa moderna ou contemporacircnea Uma bibliografia mais completa acerca do tema
pode ser extraiacuteda das obras de referecircncia William Beasley The Meiji Restoration (Stanford Stanford UP 1972) e
The Rise of Modern Japan (New York St Matinrsquos Press 1995)
97
Em primeira matildeo sustento que os motivos que proporcionaram o surgimento de uma
ldquoescola filosoacuteficardquo no Japatildeo modernizado estatildeo intimamente ligadas com sua introspecccedilatildeo da
tradiccedilatildeo oriental precedente Em palavras mais simples a maneira pela qual os japoneses
compreenderam e sintetizaram as principais linhas de pensamento orientais (hinduiacutesmo
budismo confucionismo e daoiacutesmo) culminando no chamado budismo zen foi sem embargo
a chave para absorver a filosofia ocidental Em segunda matildeo sustento ainda que a filosofia
japonesa nasce cresce e se estabelece mediante duas perspectivas (justamente os ldquoparadigmasrdquo
anteriormente abordados na tese) metafiacutesica e negatividade em decorrecircncia do florescimento
do zen no Japatildeo Por fim argumento que justamente pelo entrelaccedilamento de metafiacutesica
negatividade e o pensamento do Extremo Oriente que nasce a uacutenica filosofia possiacutevel para o
momento histoacuterico pelo qual passava o Japatildeo e com isto abre-se uma pertinente chave de
leitura para o momento que agora mesmo atravessa a filosofia contemporacircnea
Portanto inicialmente eacute essencial destacar a singularidade do budismo zen em relaccedilatildeo
agraves tradiccedilotildees precedentes Existem muacuteltiplas maneiras pelas quais eacute possiacutevel empreender esta
tarefa Acredito ser plausiacutevel direcionar este toacutepico mediante um problema especiacutefico qual seja
da fundamentaccedilatildeo uacuteltima da realidade a partir da meditaccedilatildeo a respeito da questatildeo da vacuidade
entendida como śūnyatā (शनयता)
A ideia de śūnyatā deriva do budismo indiano primitivo Relatos de reflexotildees em torno
ao problema do fundamento da realidade aparecem (como jaacute havia exposto na introduccedilatildeo desta
tese) desde os cacircnones Pāḷi e satildeo expressos de maneira mais clara e niacutetida no budismo mahāyāna
principalmente no Sūtra do Coraccedilatildeo (Prajntildeāpāramitā Hṛdaya परझञापारनमताहरदय) passando pela escola
mādhyamaka de budismo indiano e ainda nos Versos Fundamentais sobre o Caminho do Meio
(Mūlamadhyamaka-kārikā मलमधयमककाररका) de Nāgārjuna (िागारि) onde foi apresentada de maneira
mais profunda e sistemaacutetica
98
Algumas interpretaccedilotildees do escrito de Nāgārjuna destacam o śūnyatā como constituiccedilatildeo
da totalidade da realidade enfatizando que isto significa uma muacutetua dependecircncia (pratītya-
samutpāda परतीतयसमतपाद) de todas as coisas de todas aquelas que possuiriam existecircncia individual
ou substancial e ateacute da proacutepria ideia de nada o que significa propriamente uma anulaccedilatildeo de
qualquer Ente Supremo ou mesmo qualquer verdade absoluta45
Quando os ensinamentos do budismo indiano chegam agrave China e no Japatildeo alguns
princiacutepios fundamentais satildeo radicalizados por ambas as naccedilotildees Existem vaacuterias hipoacuteteses
conforme as quais eacute possiacutevel indagar os motivos desta radicalizaccedilatildeo Alguns consideram que a
doutrina radical do budismo se deve ao gecircnio do monge Boddidharma embora outros
argumentem que o motivo foi o encontro com o daoiacutesmo e o neoconfucionismo A questatildeo pode
permanecer suspensa sem que isto afete a compreensatildeo das bases e dos caminhos do budismo
zen Ao que concerne propriamente agrave introspecccedilatildeo deste conceito fundamental na filosofia
japonesa contemporacircnea (sem embargo o ponto ao qual quero chegar) existem tambeacutem
inuacutemeras controveacutersias embora haja ainda certos pontos solidamente estabelecidos e
mutuamente consentidos que se pode explorar com o intuito de apresentar o problema
O expoente da Escola de Kyōto que pela primeira vez explorou de maneira sistemaacutetica
a questatildeo e a colocou via uma formulaccedilatildeo filosoacutefica foi Kitarō Nishida (西田 幾多郎) Sua
biografia eacute repleta de elementos que o fariam parecer ou bem um rebelde visionaacuterio ou bem
um precoce e intempestivo intelectual permeado por desacordos com o sistema Sem embargo
muitos pesquisadores descreveram com minuacutecia os percalccedilos de sua biografia Por isto natildeo eacute
de todo liacutecito perder muito tempo aqui descrevendo seu percurso pessoal Gostaria apenas de
atentar para alguns pontos sobremaneira importantes no que tange agrave formaccedilatildeo intelectual de
Nishida
45 Este ponto eacute melhor analisado por Michael Barnhart que considera que de acordo com Nāgārjuna ldquo() natildeo se
pode sustentar nenhuma feacute na realidade ou princiacutepio transcendente nem nenhuma razatildeo humana pode pretender
independecircncia de nenhum tipo ()rdquo (BARNHART 1994 649)
99
Em primeiro lugar Nishida viveu em meio agrave restauraccedilatildeo Meiji (1868-1912) um periacuteodo
que divide a histoacuteria do Japatildeo entre preacute-moderna e moderna no qual a sociedade feudal entra
em decliacutenio e a naccedilatildeo eacute ocidentalizada pela forccedila maior da pressatildeo do Departamento de Estado
Norte-Americano A evidecircncia de que o ensino japonecircs estava defasado frente aos desafios do
novo mundo levou seus governantes a implementarem um sistema educacional semelhante ao
ocidental sendo neste periacuteodo fundadas as primeiras universidades japonesas Nishida
frequentou tais universidades embora tivesse seu proacuteprio percurso intelectual independente
tendo a oportunidade de estudar com Raphael von Koumlber professor russo-alematildeo convidado
para ministrar aulas de filosofia no Japatildeo Com Koumlber Nishida estudou a histoacuteria do
cristianismo (com ecircnfase nas influecircncias do paganismo de Plotino) aleacutem da filosofia criacutetica de
Immanuel Kant e da esteacutetica claacutessica Eacute preciso ponderar ainda que Nishida lia com fluecircncia o
francecircs o alematildeo e o inglecircs tendo acesso integral agraves principais obras da filosofia ocidental Por
outro lado o mesmo estudante dedicado era ainda um pensador radical que encontrou na
tradiccedilatildeo do zen budismo um rumo para suas inquietaccedilotildees
Quando Nishida se aproxima do zen budismo e comeccedila a praticar mediaccedilatildeo o impacto
da destruiccedilatildeo dos meacutetodos convencionais de ensino o afeta largamente ponderando sobretudo
que ele jaacute havia abandonado a escola primaacuteria por desentendimentos com o regime educacional
Um artigo de Lothar Knauth intitulado Life is Tragic The Diary of Nishida Kitaro (1965)
destaca uma passagem do diaacuterio de Nishida onde eacute possiacutevel observar sua postura conforme suas
proacutepria palavras
Faccedila sua proacutepria mente e depois disto natildeo dependa dos outros
Natildeo acredite indiscriminadamente nas palavras das pessoas
Natildeo fale de assuntos que ainda natildeo foram amadurecidos
Natildeo desperdice tempo precioso com fofocas ociosas
A lei da mateacuteria de leitura ler pensar escrever
100
Se vocecirc ainda natildeo terminou de pensar sobre um assunto
natildeo mude para outro
Se vocecirc natildeo terminou de ler um livro ateacute o fim
natildeo pegue outro
Non multa sed multum
Diaacuterio Ano Novo 1897 (NISHIDA apud KNAUTH 1965 337)
O trecho do diaacuterio aponta para um jovem estudioso preocupado com o rigor a tensatildeo
proveniente do impacto surtido pelas leituras Knauth expotildee consecutivamente um outro trecho
do diaacuterio este datado de 1 de julho de 1945 jaacute no final da vida de Nishida que diz
simplesmente ldquoEscurecendo nublado vinte grausrdquo (IDEM IBIDEM) A intenccedilatildeo de Knauth com
isto eacute mostrar a profunda introspecccedilatildeo redundante de um amadurecimento especulativo
proveniente de anos de meditaccedilatildeo Contudo ao que interessa ao propoacutesito do toacutepico vale
salientar que mesmo em um conturbado espiacuterito jovem havia jaacute sempre a necessidade de forccedilar
uma ldquoaquietamentordquo da mente uma busca por um lugar silencioso no qual prevalece a maacutexima
non multa sed multum natildeo muito mas bastante
Entre 1891 e 1897 (a ano da primeira citaccedilatildeo) Nishida praticou incessantemente a
meditaccedilatildeo zen havendo tambeacutem contribuiacutedo para uma revista do secto do Budismo da Terra
Pura Sua transformaccedilatildeo efetiva se daria em 1903 onde uma draacutestica revoluccedilatildeo de seu
entendimento abriria caminho para dar iniacutecio ao seu pensamento efetivo
O homens natildeo podem pensar em morrer natildeo podem ter grandes pensamentos ambos
Kawai e Gordon jaacute disseram isto Tentei pensar em mim mesmo morto aos trinta e um
de dezembro de meu trigeacutesimo quinto ano mas entretanto por mais que tentasse natildeo
podia pensar sobre isto seriamente Natildeo importa o quanto eu pense na morte eu natildeo
consigo me fazer esquecer o mundo (ID IBID 341)
101
Para Knauth este trecho evidencia uma iluminaccedilatildeo por meio da ideia de morte miacutestica e
renascimento O resultado imediato da iluminaccedilatildeo ao contraacuterio do que poderia parecer coerente
aos olhos ocidentais daacute-se na publicaccedilatildeo imediata de um artigo onde Nishida afirma ldquoEu
estava errado em usar o Zen em consideraccedilatildeo ao conhecimento Eu deveria tecirc-lo usado para o
espiacuterito e alma Ateacute eu comeccedilar a sentir pela visatildeo eu natildeo pensarei nem em filosofia nem em
religiatildeordquo (ID IBID 342) Este momento representa uma iluminaccedilatildeo justamente pelo fato de que
haacute sem embargo a assunccedilatildeo de uma correta postura mas com um propoacutesito enganoso ndash a busca
pelo conhecimento havia posto em xeque absolutamente todos os anos dedicados agrave meditaccedilatildeo
era necessaacuterio portanto comeccedilar novamente
Conforme Knauth Nishida iraacute se preparar nos proacuteximos anos para exprimir o potencial
introspectado durante sua iluminaccedilatildeo Trecircs pontos satildeo neste momento fundamentais O
primeiro eacute a leitura profundamente marcante para Nishida de Mestre Eckhart46 O segundo eacute
o falecimento de sua filha Yūko viacutetima de um ataque de bronquite O terceiro (diretamente
ligado ao segundo) eacute sua luta contra o cigarro Em 1923 Nishida escreve ldquoDeste dia em diante
eu morri para mundo Eu vivo em minha proacutepria filosofia Tudo sacrificado tudo sacrificado
Profunda impressionante experiecircnciardquo (ID IBID 344) e em 1927 ldquoAgrave tarde eu estava sozinho
na casa Pensamento quietos Quietamente eu passei metade do dia Eu natildeo fumei nem sequer
um cigarro Renascimento despertado de um sonho ruim De uma aacutervore podre de alguma
maneira um novo broto de vida pode florescer Hoje eu estava quase felizrdquo (ID IBID) O motivo
pelo qual Knauth intitula seu artigo com a expressatildeo Life is Tragic adveacutem justamente desta
postura de Nishida conforme a qual a vida humana natildeo passaria de preocupaccedilotildees e problemas
46 Nishida inicia a leitura de Eckhart em 1907 Seria interessante ao propoacutesito da tese que houvesse uma explanaccedilatildeo
maior e mais cuidadosa do pensamento de Eckhart sobretudo no segundo capiacutetulo onde seu posicionamento eacute
fundamental para o desenvolvimento do neoplatonismo e da miacutestica Contudo esta difiacutecil tarefa tornaria o percurso
da tese demasiado longo e cansativo podendo desviar a atenccedilatildeo primordial do trabalho Todavia possuo a intenccedilatildeo
de desdobrar este toacutepico em um trabalho futuro
102
A despeito de um aparente pessimismo o que pode ser destacado do percurso intelectual
e pessoal de Nishida eacute a profundidade com qual ele sentiu o peso da vida A doutrina buacutedica do
sofrimento eacute por ele absorvida de maneira natildeo soacute transcendente mas ainda imanente Os
escritos de Nishida revelaratildeo natildeo apenas um caminho filosoacutefico no qual se imbricam a tradiccedilatildeo
sapiencial oriental e a filosofia ocidental mas a descriccedilatildeo de uma experiecircncia vital na qual pulsa
a forccedila do pensamento especulativo Por esta e outras razotildees Nishida havia sido nomeado com
o nome laico-budista ldquosunshinrdquo uma polegada de mente
A produccedilatildeo propriamente filosoacutefica de Nishida eacute tanto mais densa quando suas reflexotildees
pessoais anotadas em seu diaacuterio contudo relativamente mais faacuteceis de serem abordadas devido
agrave sistematicidade que permeia os escritos A despeito de suas incompatibilidades com o sistema
de ensino sua carreira acadecircmica foi coroada em 1894 quando recebeu o tiacutetulo de licenciado
em filosofia com uma tese acerca da causalidade em David Hume culminando no professorado
junto agrave Universidade Imperial de Kyōto em 1913 Neste iacutenterim dedicou-se ao desdobramento
das bases de sua filosofia que teria sido divulgada de maneira mais consistente na obra que
havia publicado em 1911 sob o tiacutetulo Zen no kenkyū (善の研究 Investigaccedilatildeo sobre o bem) A
obra mais conhecida de Nishida busca o autodespertar o que significa uma visatildeo dos
fenocircmenos que compreendem a experiecircncia pura evidente desde a movimentaccedilatildeo de uma
loacutegica toacutepica O termo ldquoloacutegica toacutepicardquo eacute propositalmente ambivalente Por um lado indica uma
loacutegica do espaccedilo do lugar por outro denuncia como esse lugar (locus) revela uma locuccedilatildeo um
discurso Eacute neste lugar que se desenvolvem os limites do pensamento Relatos de alunos de
Nishida comentam que ele costumava desenhar no quadro negro trecircs esferas uma sobre a outra
na qual a primeira representaria os acidentes circundaacuteveis ao sujeito a segunda os elementos
incapturaacuteveis pela percepccedilatildeo e a terceira (com linhas tracejadas) a impossibilidade final de
limitaccedilatildeo e a esfera do absoluto insuperaacutevel e infinitamente expansiacutevel nomeado com o signo
do nada absoluto (絶対無 Zettaina) sua interpretaccedilatildeo para a noccedilatildeo budista de śūnyatā
103
Com isto Nishida arrancaria da tradiccedilatildeo zen budista uma negatividade total para
fundamentar sua ideia de experiecircncia pura (純粋経験 Junsui keiken) que segundo ele ldquo() se
entende conhecer os fatos como eles simplesmente satildeo (hellip)rdquo (NISHIDA 1990 3) Estaacute presente
nesta formulaccedilatildeo a absorccedilatildeo de Nishida da psicologia funcional de William James onde se
depura a correspondecircncia da percepccedilatildeo com a teoria da verdade Nishida ainda afirma ldquo() o
que usualmente se refere como experiecircncia eacute via de regra adulterado por algum tipo de
pensamento portanto por experiecircncia pura se entende aquele estado no qual se tem experiecircncia
sem qualquer discriminaccedilatildeo deliberativardquo (IDEM IBIDEM) O claacutessico exemplo pelo qual se ilustra
a condiccedilatildeo primaacuteria da pureza da experiecircncia sugere que em uma expressatildeo como ldquoouvi uma
moscardquo haacute um momento no qual o sujeito que ouve a mosca e seu barulho e o ato mesmo de
ouvir ainda natildeo foram distinguidos O fundamento da realidade enquanto nada absoluto para
Nishida encontra-se neste preciso momento neste instante incapturaacutevel na inefabilidade do
indescritiacutevel Entretanto embora a erudiccedilatildeo filosoacutefica de Nishida fosse sobremaneira evidente
bem como sua dedicaccedilatildeo ao zen budismo suas ideias natildeo estavam livres de criacuteticas em ambas
as esferas
Uma das criacuteticas mais ferrenhas a Nishida foi apresentada por Hajime Tanabe (田辺 元)
seu sucessor na caacutetedra de filosofia da Universidade Imperial de Kyōto (em 1928) Ao contraacuterio
de Nishida que nunca havia saiacutedo do Japatildeo Tanabe foi contemplado com um intercacircmbio pelo
governo japonecircs e teve a oportunidade de estudar ao lado de Husserl e Heidegger Sua maior
obra Zangedo to shite no tetsugaku (懺悔道としての哲學 A filosofia como caminho metanoeacutetico
1946) ocupava-se da superaccedilatildeo do inevitaacutevel problema epistemoloacutegico que envolvia a questatildeo
do nada absoluto propondo o termo metanoeacutetica derivado do grego μετανόησις e vertido ao
japonecircs como zangedo (懺悔道) cuja definiccedilatildeo seria nas palavras de Tanabe ldquoum baacutelsamo para
a dor do pesar e ao mesmo tempo o recurso para uma luz absoluta que paradoxalmente torna
vigente a escuridatildeo sem expulsaacute-lardquo (TANABE 1986 2)
104
Em decorrecircncia da necessidade de superaccedilatildeo do proacuteprio pensamento a criacutetica de Tanabe
emerge no sentido de questionar se a filosofia possui condiccedilotildees de enquadrar o autodespertar
religioso conforme exposto por Nishida de maneira sistemaacutetica Conforme Agustiacuten Jacinto
Zavala ldquoResumidamente ao tomar como base o ponto de vista da religiatildeo a filosofia de
Nishida lsquoconverte o trans-histoacuterico absoluto em principium [princiacutepio fundamental] do sistema
e mediante esta determinaccedilatildeo vem [finalmente] ordenar e organizar o histoacuterico relativordquo
(ZAVALA 2013 106) ao passo que ldquoPor isto Tanabe diz lsquoa duacutevida fundamental que albergo
frente a filosofia mestre Nishida se relaciona com este ponto () se a filosofia trata de tomar o
ponto de vista religioso como seu proacuteprio ponto de vista necessariamente deixa de ser si mesmardquo
(IDEM IBIDEM) sintetizando a preocupaccedilatildeo de Tanabe
Os conflitos entre a filosofia a auto-percepccedilatildeo religiosa a partir do estabelecimento do
nada absoluto como fundamento da realidade passaratildeo ainda prelo crivo de diversos
interlocutores sofrendo alteraccedilotildees e recebendo criacuteticas diretas e indiretas Em linhas gerais o
problema de Tanabe estaacute diretamente relacionado com suas compreensotildees estritas da religiatildeo e
da filosofia Em primeiro lugar porque ao contraacuterio de Nishida (que era praticante do zen
budismo) Tanabe partia antes do budismo Jōdo Shinshū (浄土真宗 A Escola da Terra Pura) do
monge Shinran (親鸞)47 Em segundo lugar devido aos interesses de Tanabe pela filosofia da
histoacuteria de Wilhelm Wundt e Heinrich Rickert aleacutem da influecircncia da Lebensphilosophie e o
compromisso histoacuterico que ele alimentou a partir de tais influecircncias Por este motivo era
necessaacuterio tanto para resolver a disputa entre Nishida e Tanabe quanto para superar os estaacutegios
preliminares das discussotildees da Escola de Kyōto reformular as compreensotildees de filosofia e
religiatildeo algo que acontece de maneira somente com Keiji Nishitani (西谷 啓治)
47 Sobre a fundamentaccedilatildeo budista de Tanabe confira Joaquim Antonio Bernardes Carneiro Monteiro ldquoO lsquoNada
Absolutorsquo em Hajime Tanabe uma avaliaccedilatildeo criacuteticardquo In Antonio Florentino Neto e Oswaldo Giacoia Jr (orgs)
O Nada absoluto e a superaccedilatildeo do niilismo Os fundamentos filosoacuteficos da Escola de Kyoto Campinas Phi 2013
155-188
105
Keiji Nishitani eacute talvez o filoacutesofo japonecircs contemporacircneo mais popular entre os
ocidentais O motivo eacute provavelmente o estilo bastante solto e livre de seus ensaios
principalmente os que chegaram traduzidos ao Ocidente ndash precisamente os mais maduros
compostos apoacutes a deacutecada de 1960 como Shūkyo to wa Nanika (宗敎とは何か O que eacute religiatildeo
1961) e Nihirizumu (ニヒリズム Niilismo 1986) Estes mesmos trabalhos sofreram diversas
criacuteticas por parte de colegas japoneses que o acusaram de se afastar dos modos propriamente
orientais de expressatildeo supostamente sugerindo uma indiferenccedila ao idioma vernaacuteculo agraves
tradiccedilotildees e aos projetos de seus antecessores Sobre isto Nishitani teria argumentado que as
lacunas do pensamento japonecircs tradicional sobretudo as idiomaacuteticas impossibilitariam o
alcance do sentido de alguns problemas colocados pela filosofia ocidental motivo pelo qual a
criaccedilatildeo de novas palavras em japonecircs se mostrava absolutamente necessaacuterios48 Sem embargo
os questionamentos impostos pelos novos tempos natildeo se prendiam agraves fronteiras linguiacutesticas e
invadiam o Japatildeo modernizado e ocidentalizado com especial forccedila razatildeo pela qual a
aproximaccedilatildeo com a filosofia sua interiorizaccedilatildeo e reflexatildeo era simplesmente inevitaacutevel
Todavia embora Nishitani tenha realmente pendido para o pensamento filosoacutefico ou para a
maneira pela qual os pensadores ocidentais liam as questotildees conflituosas da contemporaneidade
ao mesmo tempo ele se voltava com ainda maior introspecccedilatildeo para o budismo sobretudo para
o zen Esta ambiguidade intencional do pensamento de Nishitani se revela nas inquiriccedilotildees por
ele levantadas e pelo teor de suas investigaccedilotildees deixando ver claramente sua preocupaccedilatildeo a
respeito do direcionamento reflexivo da filosofia contemporacircnea
48 James Heisig discute esta questatildeo pormenorizadamente quando apresenta o estilo filosoacutefico de Nishitani
Conforme Heisig a influecircncia ocidental absorvida por Nishitani cujas maiores expressotildees foram a esteacutetica de
Immanuel Kant o idealismo alematildeo (especialmente Friedrich W J Schelling) Plotino e o neoplatonismo a
miacutestica de Mestre Eckhart e Francisco de Assis e ainda a hermenecircutica existencial de Wilhelm Dilthey e Martin
Heidegger deixam bastante claro o porquecirc ele subverte e converte os limites e alcances da linguagem Heisig
ainda destaca o momento no qual Nishitani afirma que nos miacutesticos a confluecircncia e a uniatildeo entre religiatildeo e
filosofia alcanccedilaram um ponto elevado despertando seu profundo interesse por tais autores A despeito dos temas
eleitos Heisig considera ainda que por este mesmo motivo o estilo de Nishitani se mostra superior ao de Tanabe
e ao de Nishida (cf HEISIG 2002 233-242)
106
Eacute possiacutevel considerar que o problema com o qual Nishitani se defrontou e que norteou
o andamento geral de seu pensamento mais cuidadosamente desenvolvido possui um ponto de
partido muito bem estabelecido qual seja o problema do niilismo denunciado na virada do
seacuteculo por autores como Friedrich Nietzsche Ernst Juumlnger Fioacutedor Dostoievsky Ivan
Turgeniev entre outros Em Shūkyo to wa Nanika longe de tentar elucidar o sentido da religiatildeo
em termos sistemaacuteticos a despeito do tiacutetulo do escrito Nishitani parece buscar uma imersatildeo na
tensatildeo contraditoacuteria que os seres humanos possuem com a experiecircncia religiosa segundo ele
ldquo() para quem a religiatildeo natildeo eacute uma necessidade precisamente por esta razatildeo ela eacute uma
necessidade Natildeo haacute nenhuma outra coisa sobre a qual se possa dizer o mesmordquo (NISHITANI
1983 1) Sua definiccedilatildeo de religiatildeo se abre a partir da compreensatildeo de uma ldquoauto-despertar da
realidaderdquo cuja explicaccedilatildeo se apoia no termo inglecircs realize segundo ele um termo polissecircmico
que possuem tanto o sentido de actualize (atualizar mas tambeacutem trazer o sentido real como na
expressatildeo actually cujo significado seria na verdade) quanto de understand (compreender)
Nishitani explica ldquo() estou utilizando esta palavra para indicar que nossa habilidade para
perceber a realidade significa realizar (atualizar) a realidade por si mesma em noacutesrdquo (IDEM IBIDEM
5) Esta explicaccedilatildeo apareceria para confrontar o sentido do niilismo que segundo Nishitani
ldquo() se refere agravequilo que torna sem sentido o sentido da vida () sinalizando nada menos do
que fato de que o despertar da nossa existecircncia penetrou em uma profundidade extraordinaacuteriardquo
(ID IBID 4) Em suma Nishitani possui um alvo muito claro lidar com o abismo existencial
que se deixa ver sobremaneira angustiante nos novos tempos aqueles mesmos ldquotempos de
penuacuteriardquo da ldquonoite do mundordquo anunciados por Nietzsche denunciados por Heidegger e que
assombravam os filoacutesofos que se deparavam com a instituiccedilatildeo da morte do pensamento
reflexivo mediante a Era Atocircmica dos desastres ambientais e dos deliacuterios da modernizaccedilatildeo
industrializaccedilatildeo e tecnologizaccedilatildeo do mundo Fatos inegaacuteveis cuja profunda relaccedilatildeo com a
histoacuteria do pensamento torna seu sentido cada vez mais obscuro
107
A forccedila interpretativa que moveraacute o pensamento de Nishitani rumo agraves tentativas de
resoluccedilatildeo dos conflitos passaraacute em primeiro lugar por sua leitura a respeito do problema do
niilismo e sua relaccedilatildeo com a ideia de śūnyatā Quando Nishitani alcanccedila esta abordagem ele
frisa de iniacutecio que ldquo() um dos maiores e mais fundamentais problemas que todas as religiotildees
encaram em nossos tempos eacute sua relaccedilatildeo com a ciecircnciardquo (IDEM IBIDEM 77) O motivo aparenta
ser a incompatibilidade entre o pensamento cientiacutefico e o sentido essencial da vida religiosa
Nishitani entatildeo argumenta de maneira incisiva (e que sintetiza o propoacutesito desta tese no final
das contas)
Uma em cada dez pessoas escuta que a religiatildeo e a ciecircncia tem cada uma seu proacuteprio
domiacutenio e tarefa e que as duas nunca precisaratildeo entrar em conflito caso permaneccedilam
confinadas em suas fronteiras originais Isto eacute inadequado Uma fronteira separa uma
aacuterea da outra e ao mesmo tempo pertence a ambas as aacutereas Os fundamentos do
conflito entre religiatildeo e ciecircncia repousam certamente em tais fronteiras De fato desde
os tempos mais antigos metafiacutesica e filosofia consistiram na exploraccedilatildeo destas
fronteiras entre ciecircncia e religiatildeo (IDEM IBIDEM 77-78)
Nishitani ainda questiona se tais fronteiras podem ser consideradas realmente fronteiras ou natildeo
admitindo que a ciecircncia contemporacircnea natildeo parece se preocupar com a questatildeo A criteacuterio de
verdade objetiva da ciecircncia com o apoio das leis da natureza seria responsaacutevel por de certo
modo menosprezar o conhecimento religioso e mesmo o conhecimento filosoacutefico em
decorrecircncia da verdade cientiacutefica absoluta Mas Nishitani contesta no contrafluxo da tendecircncia
mais geral ldquoMas eacute realmente tatildeo evidente Uma nova maneira de olhar para o absoluto e o
relativo conforme a qual dois absolutos podem se tornar conjuntos impensaacutevel em uacuteltima
instacircnciardquo (ID IBID 78) Para Nishitani o problema vige no fechamento das possibilidades
108
Natildeo haacute aqui uma criacutetica ldquocientofoacutebicardquo mas o levantamento de uma questatildeo qual seja
ldquoNatildeo possuiacutemos uma outra maneira de conceber o relativo senatildeo em termos de estabelecimento
de limites ndash como fazemos por exemplo quando dividimos uma folha de papel em duas ao
traccedilar uma linha nelardquo (ID IBID 79) Nishitani mostraraacute esta possibilidade por meio de sua
interpretaccedilatildeo da ideia de śūnyatā e como ela desvela uma perspectiva que explora os elementos
abandonados pela objetividade cientiacutefica Seja como for eacute possiacutevel considerar jaacute de iniacutecio que
se concentra aiacute toda a potecircncia do diaacutelogo entre metafiacutesica e negatividade apresentado ao longo
desta tese sendo possiacutevel acompanhar Nishitani em uma definiccedilatildeo do conflito das fronteiras
Agora bem quais as saiacutedas ou quais as possiacuteveis chaves de leitura para o problema que
se apresenta a saber a questatildeo do niilismo contemporacircneo Quando emprego aqui o termo
filosofia comparada intercultural tenho em vista a maneira pela Nishitani (entre outros)
exploram as muacuteltiplas significaccedilotildees de distintas tradiccedilotildees culturais em suas convergecircncias e
divergecircncias para se aproximar do problema e propor novos pontos de vista A respeito
especificamente da questatildeo levantada Nishitani utiliza a proacutepria ambivalecircncia do niilismo para
propor uma soluccedilatildeo Seu caminho seraacute resgatar o sentido pelo qual a ciecircncia se apropria das
leis da natureza e desenvolve a tecnologia argumento que eacute precisamente por meio desta
apropriaccedilatildeo que se revelam a medida da liberdade do homem em relaccedilatildeo agraves fronteiras impostas
pelas leis naturais Contudo haacute uma inversatildeo pela qual o controlador se torna o controlado
Conforme Graham Parkes ldquo() a vida humana e o trabalho como um todo se tornam
progressivamente mecanizados e impessoais (nos termos de Heidegger perdemos nossa lsquolivre
relaccedilatildeorsquo com a teacutecnica e estamos lsquoacorrentadosrsquo agrave ela)rdquo explicando ademais que para Nishitani
ldquoA liberdade advinda das leis da natureza que a tecnologia mecanizada nos concede aleacutem do
sentimento concomitante de distacircncia ou separaccedilatildeo do mundo natural levam os seres humanos
a lsquose comportarem como se eles estivessem completamente fora das leis da naturezarsquordquo (PARKES
2013a 103) Sendo assim a uacutenica via possiacutevel eacute restabelecer esta relaccedilatildeo humano-natureza
109
O ponto de apoio de Nishitani para colocar o problema parte da compreensatildeo que
oferece o neoplatonismo e a miacutestica medieval de Deus como nada absoluto (ele cita
especificamente Mestre Eckhart neste ponto) para trazer agrave tona a questatildeo morte-sive-vida
Nishitani evidencia portanto que ldquoEste ponto natildeo pode repousar em um lado mais distante
aleacutem deste mundo e desta vida terrena que possuiacutemos Deve repousar no lado mais proacuteximo
tanto mais proacuteximo quanto nossas vidas ordinariamente devem serrdquo (ID IBID 90) Aproveitando
a perspectiva budista para elucidar este caminho Nishitani esclarece de maneira precisa que
ldquoŚūnyatā eacute o ponto no qual noacutes nos tornamos manifestos de nossa proacutepria talidade (suchness)
como seres humanos concretos como indiviacuteduos com alma e personalidade Ao mesmo tempo
eacute o ponto no qual tudo ao redor se manifesta para noacutes em sua proacutepria talidade (suchness)rdquo (ID
IBID 90)49 Śūnyatā envolve inevitaacutevel e necessariamente este complexo conceito de talidade
(真如 Shinrsquonyo ndash Tathatā तथता) que eacute sem embargo o berccedilo da meditaccedilatildeo oriental
A talidade eacute a via pela qual se extrai a conduccedilatildeo do sistema eacutetico e moral da sociedade
hinduiacutesta primitiva Sua disseminaccedilatildeo no Extremo Oriente eacute carregada por duas tradiccedilotildees quais
sejam o daoiacutesmo e o budismo Os daoiacutestas centram sua noccedilatildeo de ldquoprinciacutepiordquo por meio da noccedilatildeo
de dao (道) e sua relaccedilatildeo com de (德) O famoso Dao De Jing (道德经) bem como a obra do
mestre Zhuangzi (莊子) satildeo os principais responsaacuteveis por colocarem ambos os princiacutepios (dao
e de) e movimento dinacircmico conforme o qual a relaccedilatildeo com natureza natildeo seria entendida nem
como celestial nem como humana mas como ambas sem que uma tenha privileacutegio sobre a
outra ndash e este seria enfim o caminho (dao) da virtude (de) (cf ZHUANGZI 2009 42)
49 Traduzo aqui suchness por talidade com base na ideia de que Nishitani se refere ao conceito budista de Tathatā
(तथता) que em japonecircs se ilustra com o kanji 真如 (Shinnyo) cuja traduccedilatildeo seria ldquorealidade absolutardquo mas natildeo
corresponde ao peso do termo Sobre isto Antonio Morillas escreve que ldquoO termo tathata eacute de difiacutecil traduccedilatildeo
em castelhano Em inglecircs se verte com as expressotildees suchness (a condiccedilatildeo de ser ldquotalrdquo e como se eacute) thatness (o
fato de ser ldquoissordquo que se eacute) e isness (a qualidade de algo que ldquoeacuterdquo sem mais o que eacute e como eacute) () A talidade
[traduccedilatildeo castelhana de tathata] eacute a noccedilatildeo do fato de que a realidade e as coisas e fenocircmenos que a compotildeem satildeo
ldquoassimrdquo ldquotalrdquo e como satildeo que satildeo ldquoissordquo ldquoo que satildeordquo em seu caraacuteter plenamente desnudo na existecircncia luminosardquo
(MORILLAS 2006 167) Pela proximidade com o idioma castelhano opto aqui por adotar a sugestatildeo de Morillas
110
O budismo especialmente o budismo zen absorveria tais ideias com especial forma nos
pensamentos de Kūkai (空海) e Dōgen Zenji (道元禅師) Graham Parkes explica que para Kūkai
duas ideias se configuram essenciais Sokushinjobutsu (即身成仏) a possibilidade de atingir a
iluminaccedilatildeo na vida presente (em contraste ao princiacutepio budista tradicional conforme o qual
seriam necessaacuterias muitas vidas) e Hosshin seppo (発疹 説法 ) o entendimento de que a
personificaccedilatildeo buacutedica eacute desprovida de forma e imagem natildeo permitindo conceitualizaccedilatildeo nem
verbalizaccedilatildeo (cf PARKES 2003 81) A despeito da uniatildeo suscitada pelo daoiacutesmo o budismo
chinecircs do oitavo seacuteculo estava imerso em uma profunda discussatildeo acerca da questatildeo se a
natureza buacutedica podia ser atribuiacuteda somente aos seres sencientes ou tambeacutem agraves miacutenimas
partiacuteculas de poeira Kūkai articula as duas ideias acima mencionadas e interpretas as chamadas
ldquotrecircs intimidadesrdquo (corpo fala mente) do Dainichi Nyorai (木造大日如来坐像) que representa a
revelaccedilatildeo esoteacuterica dos ensinamentos no Budismo para sustentar o muacutetuo pertencimento da
relaccedilatildeo do todo com suas partes assumindo a natureza buacutedica para absolutamente tudo Ele
escreve neste sentido ldquoEssa existecircncia estaacute naquela e aquela estaacute nessa A Existecircncia do Buda
(Mahāvairocana) eacute a existecircncia dos seres sencientes e vice e versa Eles natildeo satildeo idecircnticos mas
satildeo todavia idecircnticos eles natildeo satildeo diferentes mas satildeo todavia diferentesrdquo (KŪKAI 1972 93)
Jaacute para Dōgen a evocaccedilatildeo da conduta zen se daria por meio de uma miacutestica cotidiana
alimentando a noccedilatildeo de que toda atividade eacute expressatildeo da natureza buacutedica Parkes argumenta
que algumas atividades satildeo especialmente ilustrativas como por exemplo preparar a comida
servi-la e come-la Dōgen citaria um trecho do Vimalakīrti Nirdeśa Sūtra (नवमलकीनत निदश सतर) que
diria ldquoQuando somos unos com a comida que comemos somos unos com todo o universordquo
evocando o uso do silecircncio como veiacuteculo para o esclarecimento do śūnyatā como fundamento
absoluto da realidade (cf PARKES OP CIT 84) As praacuteticas rituais natildeo possuiriam todavia
conotaccedilatildeo lituacutergica pontual e direcionada mas antes a totalidade de uma experiecircncia de vida
religiosa
111
Tanto Kūkai quanto Dōgen influenciaram amplamente o pensamento de Nishitani e o
ponto de vista conforme o qual o śūnyatā direciona uma atitude por meio da qual se mostra a
talidade Tanto no daoiacutesmo de Zhuangzi quando no zen budismo de Kūkai e Dōgen estatildeo em
jogo o aspecto formal a aparecircncia (rūpa shiki) da realidade em torno por um lado e a assunccedilatildeo
da dissoluccedilatildeo do fundamento dessa realidade por outro (sua vacuidade śūnyatā kū) Por este
motivo haacute uma muacutetua reciprocidade entre a totalidade e as coisas entre uno e muacuteltiplo Isto eacute
o que permite a participaccedilatildeo e ao mesmo tempo incorporaccedilatildeo da realidade (dharmakāya)
Contudo natildeo seraacute o mero resgate das tradiccedilotildees orientais que forneceraacute a Nishitani a resposta
ao problema no que concerne ao impacto da questatildeo frente aos tempos de niilismo mas sim o
resultado da confrontaccedilatildeo desta tradiccedilatildeo com a filosofia contemporacircnea ocidental ou sem
embargo o confronto entre as fronteiras
Graham Parkes atenta para uma reivindicaccedilatildeo de Nishitani de haver superado em certa
medida o desenvolvimento das filosofias de pensadores como Hegel Nietzsche e Heidegger
(cf PARKES 2013b 189-190) Contudo no cerne desta proposiccedilatildeo estaacute a ideia de que o que foi
superado natildeo foi propriamente o conteuacutedo da meditaccedilatildeo mas a forma da abordagem ou seja
a perspectiva intercultural privilegiada da comparaccedilatildeo filosoacutefica de Nishitani Com o anuacutencio
da morte de Deus e dos tempos de niilismo em Nietzsche ficou evidente um diagnoacutestico da
atividade humana inerente aos valores que a guiam por um lado e a induccedilatildeo ao desespero
suscitado pela projeccedilatildeo cognoscitiva ao ente por outro A saiacuteda de Nietzsche por meio do
ldquogrande antiacutedotordquo da transvaloraccedilatildeo de todos os valores eacute recebida em Nishitani considerando
trecircs ideias chave de sua leitura budista (1) a constituiccedilatildeo do fundamento da existecircncia como
uma experiecircncia aleacutem da relaccedilatildeo entre sujeito objeto por meio do conceito de (referente agrave noccedilatildeo
de dharma धम) (2) a reaccedilatildeo de retorno ao mesmo de toda atividade (a partir do conceito de
karma कम) e a noccedilatildeo de que natildeo haacute nada que exista independente de circunstacircncias e
condicionamento ou a chamada ldquoco-originaccedilatildeo dependenterdquo (o pratītya-samutpāda परतीतयसमतपाद)
112
Portanto o que em Nietzsche seria postulado como destino enquanto o ldquomesmordquo (o ego
fatum nietzscheano) engendrando um ponto de vista criativo em Nishitani seria entendido
desde a ideia do karma Em Nihirizumu Nishitani escreve acerca deste ponto especiacutefico que
ldquoNeste niacutevel fundamental o mundo se move na esfera do mesmo e o mesmo na esfera do
mundo Esta ideia estaacute proacutexima da ideia budista de karma embora em Nietzsche o ponto de
vista do mesmo como destino eacute fundamentalmente criativordquo (NISHITANI 1990 50) Em termos
mais simples de acordo com Parkes ldquo() o que parece um golpe do destino pode ser entendido
antes como uma parte de nossa proacutepria atividaderdquo (PARKES OP CIT 196) O florescimento desta
consideraccedilatildeo se daacute na afirmaccedilatildeo niezscheana do amor fati e da superaccedilatildeo do abismo da grande
suspeita niilista por meio da grande dor pela qual se renasce o que seraacute entendido em Nishitani
a partir do retorno ao abismo onde ldquo() uma vez que algueacutem eacute libertado do abismo a
necessidade se torna um elemento desta vida de liberdade Neste caso necessidade se torna
uma com a criatividaderdquo (NISHITANI OP CIT 52) Entretanto a ressalva de Nishitani consiste que
a afirmaccedilatildeo resultante da superaccedilatildeo do abismo niilista pode ainda ser superar e que a vontade
de poder eacute ainda uma ldquocoisardquo chamada ldquovontaderdquo (cf IDEM OP CIT 234) cuja uacutenica possibilidade
de ser pensada para aleacutem dos fundamentos que redundam no destino como mesmo seria
justamente o ponto de vista do śūnyatā Uma ilustraccedilatildeo possiacutevel de ldquopara onderdquo este ponto de
vista levaria pode ser encontrada quando Nishitani comenta a arte japonesa de arranjo de flores
a chamada Ikebana (生け花) Ali fica niacutetido qual a postura que se assume quando se daacute conda
da vacuidade da realidade uacuteltima e absoluta Nishitani escreve
Desde a perspectiva de sua natureza fundamental todas as coisas no mundo satildeo
lacircminas de grama sem raiacutezes Tal grama entretanto tenho fincado suas raiacutezes no solo
esconde a si mesma em sua fundamental ausecircncia de raiacutezes () sendo cortadas de suas
raiacutezes as flores satildeo feitas pela primeira vez pela manifestaccedilatildeo minuciosa de sua
natureza fundamenta ndash sua falta de raiacutezes (IDEM 2011 1199)
113
Ao fim e ao cabo Nishitani estaacute chamando atenccedilatildeo para uma aprendizagem decorrente da ldquoco-
originaccedilatildeo dependenterdquo a partir da natureza Sobre este ponto e sua relaccedilatildeo com o niilismo
Parkes escreve ldquo() noacutes humanos diferimos de outros entes por meio da possibilidade de nos
tornamos conscientes de nossa proacutepria finitude no estado da niilidade (kyomu) um tipo de
ldquovacuidade ocardquo que eacute uma antecacircmara para a vacuidade criativa (śūnyatā kū)rdquo (PARKES OP
CIT 112) Resumidamente o ponto de vista do śūnyatā se configura para Nishitani a partir da
tradiccedilatildeo do zen budismo oriental e de sua leitura da filosofia ocidental como uma iluminaccedilatildeo
a respeito do fundamento da realidade enquanto vacuidade evidenciado sobremaneira pelo
abismo do niilismo contemporacircneo e que direciona o ser humano para uma vacuidade criativa
na qual sua relaccedilatildeo com as coisas congrega tudo em uma mesma natureza buacutedica ou seja o
lugar onde as flores o arranjo o florista e o ato de fazer o arranjo satildeo a mesma coisa ou o lugar
onde a mosca o anjo Deus e o eu satildeo o mesmo
114
CONCLUSAtildeO
Durante o primeiro semestre de 2011 estava profundamente motivado com a preparaccedilatildeo do
texto final desta tese doutoral Ocupava-me ao mesmo tempo das pesquisas leituras
sistematizaccedilatildeo dos esquemas defesa da versatildeo do final do projeto e dos cursos que iria ministrar
na Universidade Federal do Rio Grande do Norte nos meses seguintes A abordagem agrave histoacuteria
da metafiacutesica agrave tradiccedilatildeo do neoplatonismo e agrave filosofia japonesa contemporacircnea atingiam-me
simultaneamente por meio de muacuteltiplas construccedilotildees conceituais interligadas pela lucidez
provocada mediante a histoacuteria dos efeitos de cada ambiente temaacutetica Contudo ao 11 de marccedilo
daquele ano foi transmitida uma notiacutecia que imediatamente cessou minha produccedilatildeo e
empolgaccedilatildeo com todo e qualquer toacutepico Os jornais incessantemente transmitiam as uacuteltimas
notiacutecias a respeito de um terremoto seguido por um tsunami que havia atingido o Japatildeo e
danificado a estrutura da usina nuclear de Fukushima na cidade de Ōkuma expondo a
comunidade da regiatildeo agrave alarmantes niacuteveis de radioatividade O desastre ambiental seria
considerado algum tempo mais tarde a maior cataacutestrofe nuclear desde Chernobyl em 1986
Evidentemente como havia ocorrido tambeacutem em 2001 durante o ataque terrorista ao
World Trade Center em Nova Iorque as reportagens que chocavam o mundo se tornariam
rapidamente repetitivas e esgotariam o puacuteblico O motivo pelo qual se daria tal neutralizaccedilatildeo e
letargia frente aos fatos foi denunciado por Slavoj Žižek na obra The Year of Dreaming
Dangerously (2012) Ele pondera os eventos destrutivos de 2011 tais quais a Primavera Aacuterabe
e o Occupy Wall Street desde a neutralizaccedilatildeo ideoloacutegica promovida pela miacutedia dando margem
agrave interpretaccedilatildeo conforme a qual os veiacuteculos de comunicaccedilatildeo vigentes aniquilam o potencial
emancipatoacuterio dos eventos por meio da pasteurizaccedilatildeo de sua difusatildeo
115
Žižek destaca o termo da liacutengua persa ldquowar nam nihadanrdquo cujo abstruso significado
seria em linhas gerais ldquomatar algueacutem enterrar seu corpo e plantar flores sobre sua cova para
esconder o cadaacuteverrdquo Para Žižek os meios de comunicaccedilatildeo do capitalismo global destroem a
absorccedilatildeo propriamente humana dos eventos do mundo contemporacircneo exatamente neste
mesmo sentido (cf ŽIŽEK 2012 9) Sem sombra de duacutevidas o mesmo se daria em relaccedilatildeo ao
desastre de Fukushima e hoje trecircs anos depois uma pedra foi posta por sobre o assunto e poucas
pessoas sequer se lembram do ocorrido
Entretanto meu denso envolvimento com a filosofia japonesa natildeo permitiu que os
acontecimentos fossem dissolvidos assim tatildeo facilmente Passei um bom tempo tocado pela
calamidade e mesmo ateacute agora ainda tenho dificuldades em lidar com o assunto As
adversidades emotivas todavia natildeo me impediram de pensar com devoccedilatildeo sobre a questatildeo
pelo contraacuterio estimularam ainda mais o rumo da reflexatildeo filosoacutefica
O ano seguinte seria marcado em meu percurso pessoal pela saiacuteda do paiacutes e realizaccedilatildeo
de estaacutegio sanduiacuteche junto agrave University College Cork (Colaacuteiste na hOllscoile Corcaigh) para
realizar minhas pesquisas sob a supervisatildeo do professor Graham Parkes na Irlanda Parkes
havia publicado no iniacutecio daquele ano um breve artigo intitulado Nuclear Power after
Fukushima 2011 Buddhist and Promethean Perspectives (2012) no qual natildeo apenas analisava
os fatos mas ainda apresentava uma meditaccedilatildeo a respeito de uma filosofia da natureza para
aleacutem das ecologias profundas ou natildeo
Simplificando o assunto o estiacutemulo para o fornecimento de energia nuclear eacute
alimentado pela conclusatildeo de que se trata de uma fonte limpa e autossustentaacutevel em contraste
agrave queima do combustiacutevel e exploraccedilatildeo de recursos foacutesseis ou mesmo aos impactos ambientais
causados pela obstruccedilatildeo de fluxos de aacutegua Aparentemente trata-se de uma soluccedilatildeo emergente
frente ao ainda ineficaz suporte das energias ecologicamente viaacuteveis como a eoacutelica e a solar
116
Parkes pontua sobre isto que ldquoA questatildeo crucial natildeo diz respeito aos meacuteritos relativos
e agraves desvantagens do poder nuclear versus a energia dos combustiacuteveis foacutesseis Antes trata-se
de pensar o que norteia nosso desejo de consumir tanta energia em primeiro lugarrdquo (PARKES
2012 103) O posicionamento diz respeito a um ldquopasso atraacutesrdquo A pergunta eacute o que move no
final das contas o irredutiacutevel e irrefreaacutevel iacutempeto de explorar todos os recursos naturais para
fomentar a manutenccedilatildeo da vida humana na Terra Mesmo com a leitura do escrito eu
particularmente soacute conseguiria compreender o direcionamento proposto por Parkes apoacutes
acompanhar seus seminaacuterios sobre filosofias da natureza entre Ocidente e Oriente no qual
ficariam claras as bases pelas quais ele questionava a conduta contemporacircnea face agrave crise
ambiental
Entretanto quando me deparei com as primeiras leituras oferecidas por Parkes (muitas
das quais constam na bibliografia desta tese) natildeo fui acometido pelo espanto da novidade mas
pela pulsatildeo da comparaccedilatildeo A experiecircncia que jaacute havia acumulado sob a orientaccedilatildeo do
professor Oscar Federico Bauchwitz durante meus anos de pesquisa acadecircmica dedicado agrave
leitura de Nietzsche Heidegger e da tradiccedilatildeo do neoplatonismo e da miacutestica medieval proveu-
me de uma arquitetocircnica meditativa que com a aproximaccedilatildeo com a filosofia oriental apenas
nutriu imediata empatia e introspecccedilatildeo Sendo assim quando congreguei o focirclego e as forccedilas
necessaacuterias para encerrar este trabalho natildeo tinha em mente uma tese levantada de um mero
problema particular mas um longo percurso especulativo que ao longo das paacuteginas aqui
apresentadas tentei descrever da melhor maneira possiacutevel
Sobreveio-me durante os termos finais uma intensa obrigaccedilatildeo de sustentar que a uacutenica
via possiacutevel para enfrentar os problemas filosoacutefico contemporacircneos era a instauraccedilatildeo de um
retorno aos fundamentos por meio da interculturalidade Portanto a conclusatildeo desta tese soacute
pode caminhar rumo agrave elucidaccedilatildeo de quais fundamentos no final das contas satildeo estes que estatildeo
aqui e ali indicados no interior do trabalho
117
Em 1953 Martin Heidegger pronunciou a conferecircncia intitulada Die Frage nach
Technik O escrito eacute talvez uma de suas mais claras expressotildees acerca de sua anaacutelise da
consumaccedilatildeo da histoacuteria da metafiacutesica a instauraccedilatildeo do niilismo europeu e o advento da Era
Teacutecnica Paralelamente durante o mesmo periacuteodo (na verdade em 1954) Nishitani finalizava
a composiccedilatildeo de seu ensaio sobre ldquoNiilismo e Śūnyatārdquo mais tarde incluiacutedo no volume Shūkyo
to wa Nanika abordado aqui ao longo do terceiro capiacutetulo Como foi possiacutevel observar em
Nishitani a saiacuteda do ponto de vista da vacuidade ou nada absoluto demandava a busca por
uma postura interior do ser humano na qual se tornava evidente nada mais senatildeo o elemento
inexplicaacutevel e inexprimiacutevel do fundamento uacuteltimo da realidade que era assumido agora como
oriente para o comportamento humano frente ao colapso do novo mundo A dificuldade inerente
de absorver a proposta de Nishitani todavia eacute ilustrada de maneira praacutetica quando ele aborda
uma questatildeo particular qual seja a relaccedilatildeo entre ser humano e natureza na imagem do jardim
zen Noacutes estamos dentro do jardim e natildeo somos apenas espectadores porque noacutes nos tornamos
parte da real manifestaccedilatildeo da expressatildeo da proacutepria experiecircncia iluminadora do arquiteto do
jardim O jardim eacute meu mestre Zen agora e eacute seu mestre Zen tambeacutem (NISHITANI 1992 55)
Quando Heidegger indica em sua conferecircncia que a essecircncia da teacutecnica natildeo eacute ela mesma nada
teacutecnico ele estaacute em um movimento similar ao de Nishitani chamando atenccedilatildeo para o fato de
que eacute necessaacuterio tambeacutem retornar a algo que natildeo pode ser submetido agrave objetividade cientiacutefica
da relaccedilatildeo sujeito-objeto que sustenta a tecnicizaccedilatildeo do mundo Neste sentido a saiacuteda de
Heidegger eacute ilustrada por meio de um dos conceitos mais enigmaacuteticos de toda sua obra
Gelassenheit Heidegger escreve ldquoTalvez se oculte na Gelassenheit uma accedilatildeo mais elevada do
que em todos os atos do mundo e do que nas maquinaccedilotildees das reliacutequias humanasrdquo (HEIDEGGER
1983a 41) O sentido contudo permanece oculto Resta apenas a ideia de que esta postura
evocada por Heidegger demanda um ldquodeixarrdquo (lassen) que atina para um recolhimento da
paradoxal ambiguidade do que se revela na essecircncia do humano
118
Ressoa tanto em Heidegger quanto em Nishitani uma raiz comum aquela na qual se
ldquoRenuncia aos sentidos agraves operaccedilotildees intelectuais a todo sensiacutevel e ao inteligiacutevelrdquo ainda mais
aquela onde se pede ldquoDespoja-te de todas as coisas que satildeo e ainda das que natildeo satildeo Deixa de
lado teu entender e esforccedila-te por subir o mais que possa ateacute unir-se com aquele que estaacute mais
aleacutem de todo ser e todo saberrdquo Estas palavras aqui propositalmente citadas sem a indicaccedilatildeo
bibliograacutefica satildeo do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita onde neoplatonismo e miacutestica se encontram
no caminho da negatividade Tanto o ldquoprestar atenccedilatildeo aos misteacuterios da naturezardquo em Nishitani
quando a ldquoabstenccedilatildeo da vontade por meio da natildeo-vontaderdquo o ldquoquerer o natildeo-quererrdquo em
Heidegger estatildeo depositados nas sentenccedilas do miacutestico siacuterio
Agora qual eacute este lugar ou natildeo-lugar aleacutem de todo ser e todo saber O que se revela
por meio do despojo e da supressatildeo de todo saber e todo o dizer Esta pergunta natildeo eacute respondida
Natildeo pode ser respondida O que se desvela aiacute eacute justamente o incoacutegnito o misteacuterio Como reagir
portanto frente a tal proposta de em meio a existecircncia contemporacircnea remar no contrafluxo
do sentido do mundo e buscar uma quietude absoluta no silecircncio que adveacutem do misteacuterio da
existecircncia Agrave esta pergunta tampouco se ofereceraacute resposta mas desta vez porque ela jaacute estaacute
respondida A reaccedilatildeo foi nomeada com diversos termos ao longo da histoacuteria recebendo distintas
designaccedilotildees Algumas tradiccedilotildees orientais optam por chama-la ldquoiluminaccedilatildeordquo
Por fim o conflito das fronteiras aqui abordado natildeo eacute um evento especiacutefico um
momento ou instante captaacutevel uma situaccedilatildeo ou circunstacircncia particular O conflito das
fronteiras eacute um caminho ou melhor uma caminhada Uma caminhada rumo ao desconhecido
cujo uacutenico sinal evidente acena para o clamor de um silecircncio ensurdecedor indicando que jaacute eacute
hora de se recolher
119
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FOLHA DE APROVACcedilAtildeO
LUIZ FERNANDO FONTES TEIXEIRA
O CONFLITO DAS FRONTEIRAS
Metafiacutesica Negatividade e o Extremo Oriente
Tese aprovada como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do grau de Doutor em Filosofia no
Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da Universidade Federal da Paraiacuteba
Universidade Federal de Pernambuco e Universidade Federal do Rio Grande do Norte pela
seguinte banca examinadora
Orientador Prof Dr Oscar Federico Bauchwitz (presidente)
Departamento de Filosofia UFRN
Profa Dra Gisele Amaral dos Santos
Departamento de Filosofia UFRN
Dr Edrisi de Arauacutejo Fernandes
Departamento de Filosofia UFRNUnB
Prof Dr Leonel Ribeiro dos Santos
Faculdade de Letras Universidade de Lisboa
Profa Dra Claudia DrsquoAmico
Departamento de Filosofia Universidad de Buenos Aires
Prof Dr Ciacutecero Cunha Bezerra (suplente)
Departamento de Filosofia UFS
Profa Dra Claudia Pellegrini Drucker (suplente)
Departamento de Filosofia UFSC
Natal 30 de maio de 2014
5
AGRADECIMENTOS
Pelos anos de orientaccedilatildeo e suporte pela incansaacutevel e paciente instruccedilatildeo pelo sempre presente
companheirismo e por tornar possiacutevel o caminho percorrido agradeccedilo ao Prof Dr Oscar
Federico Bauchwitz Pela hospitalidade e cortesia pelos conselhos e indicaccedilotildees pelos diaacutelogos
e por abrir um novo horizonte especulativo para muito aleacutem do trabalho acadecircmico agradeccedilo
ao Prof Dr Graham Parkes
Pela oportunidade de discussatildeo e criacuteticas pela atenccedilatildeo na leitura do trabalho e pelos
inestimaacuteveis acreacutescimos agradeccedilo aos membros das bancas de qualificaccedilatildeo e defesa Profa
Dra Claudia DrsquoAmico Prof Dr Leonel Ribeiro dos Santos Dr Edrisi de Arauacutejo Fernandes e
Profa Dra Gisele Amaral dos Santos
Agradeccedilo ao Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da Universidade Federal
da Paraiacuteba Universidade Federal de Pernambuco e Universidade Federal do Rio Grande do
Norte pela aceitaccedilatildeo do projeto de tese doutoral Agradeccedilo agrave University College Cork (Colaacuteiste
na hOllscoile Corcaigh) pela recepccedilatildeo do estaacutegio sanduiacuteche Agradeccedilo ao Trinity College
Dublin (Colaacuteiste na Triacuteonoacuteide Baile Aacutetha Cliath) pela oportunidade de frequentar os
seminaacuterios e bibliotecas Agradeccedilo agrave Alianccedila Cultural Brasil-Japatildeo e agrave Biblioteca Joatildeo Hideo
Matsumoto e ao Instituto Goethe de Satildeo Paulo e sua biblioteca Agradeccedilo ao Instituto Paulista
de Sacircnscrito e ao Prof Dr Adriano Aprigliano Agradeccedilo ainda agrave Coordenaccedilatildeo de
Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior pelo fomento da tese doutoral e do estaacutegio no
exterior
Agradeccedilo agraves pessoas que direta ou indiretamente contribuiacuteram no processo de
composiccedilatildeo da tese Alan Marinho Lopes Dax Moraes Marcus Vinicius Cavalcante Dantas
Tulio Madson de Oliveira Galvatildeo Sara Barrera Rubio Bastien Duval Javier Coloacuten Joseph
Sexton Agnieszka Klęczar Rodrigo Ferreira Braga Abrahatildeo Marcelo Ferreira Braga e Carla
Almeida
Agradeccedilo especialmente agrave Thaiacutes Ricci Conesa pelo apoio e pela motivaccedilatildeo sem os
quais natildeo concluiria este trabalho Finally yet importantly agradeccedilo ao absoluto integral e
irrestrito apoio de meus pais Luiz Pinto Teixeira e Tereza Cristina Fontes
6
Eacute preciso ainda ter caos dentro de si para dar
luz a uma estrela danccedilante
Friedrich Nietzsche Assim falou Zaratustra
7
RESUMO
O conflito das fronteiras se desdobra como um percurso natural da histoacuteria do pensamento
humano Torna-se manifesto todavia apenas mediante um expliacutecito choque cultural que
evidencia distintas formataccedilotildees conceituais Pensar este conflito pode esclarecer os enlaces
responsaacuteveis pelo desenvolvimento do pensamento contemporacircneo Esta tese pretende analisar
em um primeiro momento a histoacuteria do pensamento enquanto metafiacutesica apresentando um
diagnoacutestico da maneira pela qual o Ocidente impinge sua loacutegica categoacuterica Por conseguinte
apresenta a tradiccedilatildeo da negatividade evidenciando um pensamento para aleacutem da ontologia
claacutessica mediante uma henologia e uma meontologia no neoplatonismo e na miacutestica medieval
Por fim expotildee o pensamento do Extremo Oriente como possiblidade de recepccedilatildeo
contemporacircnea da negatividade e escapatoacuteria para a formataccedilatildeo ocidentalizante da filosofia
vigente
Palavras-chave Fronteiras Metafiacutesica Negatividade Extremo Oriente
8
ABSTRACT
The conflict of borderlines unfolds itself as a natural path in history of human thought It
becomes clear only through an explicit cultural clash which conveys distinct conceptual
formatting Thinking this conflict might enlighten the bindings responsible for development of
contemporary way of thought This thesis intent to analyse in a first moment the history of
thought as Metaphysics presenting a diagnostic towards the way through which the West
impinges its categorical logic Thereafter presents the tradition of Negativity showing a
thinking beyond Classic Ontology through a Henology and a Meontology in Neoplatonism and
Medieval Mysticism At the end exposes the Far Eastern thought as possibility of contemporary
reception of Negativity and escape from the Westernizer formatting of contemporary
philosophy
Key words Frontiers Metaphysics Negativity Far East
9
ZUSAMMENFASSUNG
Der Konflikt der Grenzen entfaltet sich als einen natuumlrlichen Weg in der Geschichte des
menschlichen Denkens Es wird nur klar durch eine explizite Kulturkampf die unterschiedliche
konzeptionelle Formatierung vermittelt Denken dieses Konflikts koumlnnte die Bindungen fuumlr die
Entwicklung der zeitgenoumlssischen Denkweise verantwortlich zu erleuchten Diese These
versuchen zu analysieren in einem ersten Moment die Geschichte des Denkens als Metaphysik
praumlsentiert eine Diagnose auf die Moumlglichkeit durch die der Westen trifft seine kategorische
Logik Danach praumlsentiert die Tradition der Negativitaumlt zeigt ein Denken jenseits Klassische
Ontologie durch eine Henologie und Meontologie im Neuplatonismus und mittelalterliche
Mystik Am Ende macht der Fernost gedacht als Moumlglichkeit der zeitgenoumlssischen Rezeption
von Negativitaumlt und Flucht aus der Westler Formatierung der zeitgenoumlssischen Philosophie
Schuumlsselwoumlrter Frontiers Metaphysik Negativitaumlt Fernost
10
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 11
1 ONTOLOGIA A SUBSTANTIVACcedilAtildeO DO OCIDENTE E O PROBLEMA DA METAFIacuteSICA 28
ENQUANTO DELIMITACcedilAtildeO DAS FRONTEIRAS DO PENSAMENTO
2 O CAMINHO DA NEGATIVIDADE HENOLOGIA E MEONTOLOGIA E A ULTRAPASSAGEM 61
DOS LIMITES DA METAFIacuteSICA
3 O EXTREMO ORIENTE E O CONFLITO DAS FRONTEIRAS A FILOSOFIA COMPARADA 89
INTERCULTURAL COMO CHAVE DE LEITURA PARA ALGUNS PROBLEMAS DO
PENSAMENTO CONTEMPORAcircNEO
CONCLUSAtildeO 113
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 119
11
INTRODUCcedilAtildeO
Aos 16 de abril de 2010 sob a avaliaccedilatildeo de uma banca composta pelos professores Oscar
Federico Bauchwitz Gisele Amaral dos Santos e Acylene Maria Cabral Ferreira defendi a
dissertaccedilatildeo de mestrado intitulada A caminho da fronteira Embora possa ainda dedicar mais
dez anos agrave correta composiccedilatildeo estiliacutestica daquele texto aleacutem da estruturaccedilatildeo dos argumentos
laacute natildeo tatildeo bem encadeados imagino ter alcanccedilado o objetivo de tornar claro natildeo apenas o intuito
do trabalho mas o problema movimentado pela questatildeo do conflito fronteiriccedilo de uma filosofia
comparada intercultural por meio de uma histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica
A questatildeo ldquoentre Heidegger e os japonesesrdquo (subtiacutetulo da dissertaccedilatildeo) abordada ao longo
dos dois anos de mestrado acadecircmico referia-se a uma virada de pontos de vista se em um
primeiro momento os orientais se perguntavam o quecirc a filosofia ocidental podia oferecer ao
pensamento e desenvolvimento do Extremo Oriente em um segundo momento os ocidentais
passaram a se perguntar de que forma os japoneses podiam acrescentar agrave filosofia um elemento
meditativo perdido no periacuteodo da consumaccedilatildeo da teacutecnica moderna e do cientificismo desde
suas perspectivas milenares de pensamento reflexivo
Ao passo em que a pesquisa ia se desenvolvendo o trabalho caminhou paulatinamente
rumo ao impacto violento surtido pelo diaacutelogo entre limites bem delineados de um Ocidente
estruturalmente metafiacutesico e um Oriente especulativo quase inefaacutevel para um leitor ocidental
A conclusatildeo extraiacuteda do caminho percorrido entre os anos de 2008 e 2010 apresentou antes de
qualquer soluccedilatildeo a constataccedilatildeo da instalaccedilatildeo de uma impertinecircncia petrificada no seio da
filosofia contemporacircnea sobre a qual pouco se pode acrescentar na dissoluccedilatildeo de problemas
mas muito se pode desdobrar no que tange ao entrelaccedilamento do alcance de um grau distinto
de movimentaccedilatildeo das arquitetocircnicas conceituais
12
Embora tais palavras pareccedilam abstratas em demasia (e de fato satildeo) o foco atingido se
concentrou em uma inquiriccedilatildeo a respeito do pensamento da linguagem e da verdade a partir
de um inusitado enigma sobre a negatividade do impensaacutevel ou seja sobre o silecircncio que
emerge no preciso momento no qual o pensamento eacute estarrecido e a liacutengua cala
A armadilha construiacuteda a partir das muacuteltiplas tentativas de elaboraccedilatildeo de conceitos afeta
natildeo somente a formataccedilatildeo silogiacutestica do intelecto humano comum mas ainda as
particularidades dos diversos modos de expressatildeo geograficamente distintos Correndo o risco
de se tornar antes uma antropologia filosoacutefica do que propriamente uma histoacuteria e criacutetica da
metafiacutesica o trabalhou refletiu uma anaacutelise agrave proacutepria concepccedilatildeo pela qual se distingue uma
filosofia da outra execrando qualquer nacionalismo filosoacutefico e investigando as questotildees que
envolvem a existecircncia humana dentro de seu modo relacional com o ser e com o ambiente que
a cerca O resultado foi a apresentaccedilatildeo de uma filosofia comparada intercultural que aparece
natildeo simplesmente como um campo disciplina ou subaacuterea da filosofia mas antes como uma
maneira pela qual eacute possiacutevel pensar filosoficamente para aleacutem das fronteiras de uma mera
linguagem de primeira ordem Dentro deste contexto nasce a hipoacutetese do tema o conflito das
fronteiras a partir do pressuposto de uma abordagem aos temas centrais do pensamento
contemporacircneo sustentando a interculturalidade filosoacutefica como aporte central
A proposiccedilatildeo fundamental desta tese adveacutem de alguns questionamentos particulares e
pontuais em um fluxo semelhante ao da dissertaccedilatildeo de 2010 Em abril de 2009 enquanto ainda
trabalhava no texto do mestrado teve lugar no campus da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte o III Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica comissionado pelos professores Oscar
Federico Bauchwitz Jaimir Conte Maria da Paz Nunes de Medeiros e Markus Figueira da Silva
O evento marcava a consolidaccedilatildeo da linha de pesquisa em Metafiacutesica do Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Filosofia da universidade trazendo em sua terceira ediccedilatildeo o tema O que eacute
metafiacutesica Em homenagem aos oitenta anos da preleccedilatildeo homocircnima de Martin Heidegger
13
A conferecircncia pronunciada por Heidegger aos 24 de julho de 1929 foi preparada como
aula inaugural para a assunccedilatildeo da caacutetedra de filosofia que antes pertencera a Edmund Husserl
na Albert-Luumldwigs Universitaumlt Freiburg im Breisgau O escrito se tornou um dos mais
emblemaacuteticos conhecidos e discutidos textos de Heidegger Talvez o fator mais impactante da
preleccedilatildeo seja antes mesmo da abordagem temaacutetica o meacutetodo pouco usual conforme o qual o
questionamento eacute elaborado Heidegger inicia a aula dizendo que embora a questatildeo suscite a
expectativa de que se falaraacute sobre a metafiacutesica ele iraacute na verdade discutir uma questatildeo
metafiacutesica particular proporcionando uma movimentaccedilatildeo em seu interior e habilitando a
oportunidade para que a ela apareccedila por si soacute a partir do problema levantado (cf HEIDEGGER
1976 103) Deixar a metafiacutesica se apresentar por si soacute antes do que sobre ela discorrer
evidencia uma feiccedilatildeo um tanto distinta da abordagem de Heidegger ao problema uma de suas
marcas registradas todavia
Raras vezes a tradiccedilatildeo ocidental se deparou com tal niacutevel de heterodoxia no que tange
agrave instruccedilatildeo filosoacutefica (talvez apenas Platatildeo tenha cunhado semelhante meacutetodo ao perseguir o
pescador com o anzol antes de se aproximar da figura do sofista por exemplo ndash natildeo consigo
pensar em outras ilustraccedilotildees agora mesmo embora certamente elas existam) Uma linha de
raciociacutenio como esta aproxima-se muito mais de uma postura oriental
Durante o Coloacutequio aleacutem de retomar pela eneacutesima vez a leitura da preleccedilatildeo de
Heidegger lembro-me de me dedicar agrave leitura da claacutessica obra propedecircutica de Kaiten Nukariya
The Religion of Samurai (1913) a primeira obra sobre zen budismo publicada no Ocidente (em
liacutengua ocidental) Apoacutes uma breve introduccedilatildeo sobre a origem do budismo na Iacutendia e o percurso
de Śākyamuni Siddhārta Gautama (o Buddha Śākyamuni शाकयमनि) Nukariya relata a maneira
pela qual o monge Bodhidharma introduz o budismo na China destacando que seu meacutetodo era
inteiramente diferente dos outros instrutores de ensino ordinaacuterios
14
Sobre Bodhidharma Nukariya relata ldquoEle natildeo explicaria nenhum problema ao
estudante mas simplesmente ajudaacute-lo-ia a ser iluminado colocando-o um abrupto poreacutem eficaz
questionamentordquo (NUKARIYA 2006 10) Com esta metodologia tem iniacutecio a tradiccedilatildeo de
budismo chinecircs nomeada chrsquoan (dʑjen 禪) uma traduccedilatildeo do termo sacircnscrito dhyāna (धयाि) cujo
significado mais geral seria ldquomeditaccedilatildeordquo ou ldquopensamentordquo que futuramente seria lido na
pronuacutencia japonesa (くんよみ kun-yomi) do ideograma como zen (禅 ) Apoacutes expor esta
caracteriacutestica iacutempar do ensino de Bodhidharma Nukariya ainda relata uma breve histoacuteria na
qual um tal Shang Kwang havia requisitado ao mestre que ldquolhe pacificasse a menterdquo
Prontamente Bodhidharma teria respondido ldquoTraga-me aqui sua mente ante mim para que eu
a pacifiquerdquo e Shang Kwang teria replicado ldquomas isto eacute impossiacutevelrdquo recebendo em seguida
a resposta ldquoentatildeo jaacute pacifiquei sua menterdquo Shang Kwang foi instantaneamente iluminado
Certamente Martin Heidegger natildeo exige de seus ouvintes leitores e interlocutores uma
iluminaccedilatildeo tatildeo abrupta e desprovida de raciociacutenio loacutegico mas nem por isto suas reivindicaccedilotildees
satildeo menos ousadas e intensas ou sua meditaccedilatildeo menos profunda Heidegger propocircs diversas
reflexotildees que extraiacutedas de seu contexto especiacutefico configuram-se tatildeo inusitadas quanto as
passagens da tradiccedilatildeo chrsquoan ou zen sendo por vezes consideradas mesmo impertinentes Eacute o
caso de uma de suas mais arrojadas e emblemaacuteticas afirmaccedilotildees ldquoO mais grave eacute que natildeo
pensamosrdquo (HEIDEGGER 2002 6) Desconsiderando o sentido ao qual a sentenccedila pertence
certamente as palavras de Heidegger parecem uma afronta Todavia o leitor atento sabe que
Heidegger se refere agrave distinccedilatildeo entre um pensamento calculador (rechnende Denken) e um
pensamento meditativo (Besinnung) reportando-se ao velamento deste uacuteltimo e da supremacia
exclusiva do primeiro por meio do qual se faz ciecircncia e se daacute o desenvolvimento estrutural da
condiccedilatildeo tecnoloacutegica imperiosa Eacute justamente dentro deste fluxo que Heidegger afirma a
predominacircncia do pensamento cientiacutefico tambeacutem em Was ist Metaphysik
15
Para ingressar no interior da metafiacutesica Heidegger chama atenccedilatildeo ao fato de que a
existecircncia humana eacute hoje sobremaneira norteada pela ciecircncia Embora alguns opositores ainda
resistam agrave tal afirmaccedilatildeo natildeo eacute todavia difiacutecil convencecirc-los do contraacuterio argumentando em
favor da tese de Heidegger Natildeo se trata apenas de afirmar que o ser humano se apoia e confia
uacutenica e exclusivamente (quiccedilaacute mesmo cegamente) na ciecircncia como modo de desenvolvimento
e sustentaccedilatildeo da vida humana na Terra Antes disto e mais grave ainda trata-se de constatar
que a maneira pela qual o ser humano hoje pensa eacute tatildeo somente cientiacutefica mesmo em casos nos
quais o discurso supostamente se volta para um tema espiritual ou de feacute (ou qualquer outro
assunto) ndash a despeito de qualquer pretensa e torta teosofia eacute ainda a teologia a ciecircncia reinante
dos seminaacuterios sem embargo Independente do tema ou assunto da circunstacircncia ou
necessidade a maneira de proceder eacute jaacute sempre cientiacutefica sustentada por uma loacutegica inflexiacutevel
que imputa sua norma de que ldquosendo algo aquilo mesmo isto ou bem eacute ou bem natildeo eacute natildeo
havendo uma terceira opccedilatildeordquo
Em outras palavras parece ter se ocultado na mente humana qualquer outro modo de
pensar que natildeo seja o propriamente cientiacutefico Este modo cientiacutefico de pensar possui algumas
caracteriacutestica pelas quais se pode evidenciaacute-lo estritamente desde um triacuteplice entendimento que
compreende ldquoreferecircncia ao mundordquo ldquoposturardquo e ldquoirrupccedilatildeordquo Heidegger explica estes pontos
ldquoAquilo que na referecircncia ao mundo permanece eacute o ente em si mesmo ndash e mais nada Aquilo
que lidera toda postura eacute o ente em si mesmo ndash e nada mais Aquilo que faz acontecer a
discussatildeo investigativa da irrupccedilatildeo eacute o ente em si mesmo ndash e aleacutem disto nadardquo (IDEM OP CIT
105) A cientificidade da existecircncia humana se expressa mediante uma projeccedilatildeo ao ente e nada
mais Ao afirmar a determinaccedilatildeo da ciecircncia na vida e conduta humanas Heidegger quer deixar
ver sobretudo isto o fato de que hoje soacute eacute validado o discurso de um sujeito cujo objeto
cognosciacutevel eacute um ente este mesmo que subjacente obsta-lhe Dentro da relaccedilatildeo entre sujeito
e objeto toda uma tradiccedilatildeo se fundamenta e doravante prossegue da mesma maneira
16
Fazendo uma revisatildeo dos passos da histoacuteria do pensamento humano seria mais ou menos
faacutecil portanto imaginar como a partir da metafiacutesica claacutessica se desdobra o cientificismo
sobretudo tendo em vista a doutrina das Categorias de Aristoacuteteles aleacutem da tatildeo aclamada
ldquociecircncia do ente enquanto enterdquo Contudo natildeo eacute este o alvo de Heidegger Deixar a metafiacutesica
aparecer por si soacute deve contemplar a totalidade do questionamento proposto e natildeo um
historicismo vulgar Que todo raciociacutenio eacute regulado e direcionado pelo ente facilmente
constata-se Agora bem o que se passa com a outra parte da inquiriccedilatildeo qual seja o ldquonada
maisrdquo Heidegger formula a questatildeo ldquoA ciecircncia natildeo quer saber do nada Mas certamente em
sua permanecircncia ao manifestar sua proacutepria natureza chama o nada para ajudar O que ela
rejeita eacute necessaacuterio para classificaacute-la Que ambiacutegua essecircncia se revela aiacuterdquo (ID IBIDEM 106) Ao
perquirir o ente e aleacutem disto nada o elemento que confere a exatidatildeo de sua pesquisa eacute
auxiliado pelo ldquonadardquo ou seja trata-se disto e nada mais (por mais redundante e ambivalente
que soe ateacute mesmo um pouco non sense) Heidegger pergunta ldquoO que acontece com o nadardquo
(ID IBID) ou ainda para onde vai esse nada em meio agrave existecircncia cientiacutefica
Eacute justamente a inusitada apariccedilatildeo deste nada que revela o incocircmodo de um elemento
impensaacutevel e inexprimiacutevel que natildeo se dobra ante agrave relaccedilatildeo sujeito-objeto Natildeo eacute preciso aqui
destrinchar todo o caminho percorrido por Heidegger em Was ist Metaphysik Trata-se de um
texto bastante lido e amplamente comentado Basta apenas pontuar a sentenccedila central da
conferecircncia (ou a pergunta-condutora a Leitfrage) por meio da qual emerge a resposta agrave
questatildeo ldquoo que eacute metafiacutesicardquo ldquoPor que haacute absolutamente o ente e natildeo antes nadardquo (ID IBID
122) O extraordinaacuterio da questatildeo eacute justamente a capacidade do ser humano em por ela
perguntar A capacidade de questionar ldquopor que natildeo nadardquo define uma disposiccedilatildeo fundamental
da existecircncia quiccedilaacute mesmo aquela ocultada pelo modo cientiacutefico de existir (ou seja
paradoxalmente este mesmo modo eacute responsaacutevel por evidenciar o que nele se perde)
17
A disposiccedilatildeo que regula a eleiccedilatildeo do modo cientiacutefico de pensar tem em vista
salvaguardar o humano do abismo (da falta de fundamento) que se abre quando o nada emerge
silencia o discurso e joga o ser humano em uma situaccedilatildeo incocircmoda uma anguacutestia profunda
Quase como um mestre zen Heidegger deixa a metafiacutesica se abrir natildeo pela pergunta nem
sequer pela acircnsia de prover ao interlocutor (ou a si mesmo) uma resposta mas pela simples
possibilidade e capacidade de perguntar A metafiacutesica neste sentido perdura antes como uma
decisatildeo Ao que parece por este motivo Heidegger cita um trecho de Eacutedipo em Colonos de
Soacutefocles no posfaacutecio agrave preleccedilatildeo (em 1943) destacando os versos (em sua traduccedilatildeo particular
por mim aqui pobremente e quiccedilaacute mesmo irresponsavelmente adaptada) que dizem
ἀλλ᾽ ἀποπαύετε μηδ᾽ ἐπὶ πλείω
θρῆνον ἐγείρετε˙
πάντως γὰρ ἔχει τάδε κῡρος
Mas paremos e nunca mais a partir de agora
despertaremos o lamento
Em todos os lugares se deteacutem o evento
assegurando-lhe uma decisatildeo pela conclusatildeo (ID IBID 312)
A ldquodecisatildeo pela conclusatildeordquo coloniza todos os lugares e se deteacutem a partir de agora em uma
posiccedilatildeo da qual natildeo mais se sairaacute A anguacutestia revelada a partir do pensamento em torno ao
nada manifesta os limites da linguagem e vislumbra o destino do ente no ser em sua plenitude
e predominacircncia Mas para aleacutem da constataccedilatildeo da indigecircncia da linguagem haacute todavia uma
possibilidade de abordar efetivamente esse nada Como eacute possiacutevel pensar para aleacutem da
delimitaccedilatildeo entificante da referecircncia ao mundo da postura e da irrupccedilatildeo Haacute um caminho de
ultrapassagem e superaccedilatildeo possiacutevel ainda nos dias de hoje
18
Ao passo em que avanccedilava nas leituras e Heidegger e em algumas outras esta se tornou
a pergunta-chave pela qual imaginava atingir certo direcionamento temaacutetico A despeito da
disposiccedilatildeo de humor apresentada na conferecircncia bem como das consideraccedilotildees do posfaacutecio de
1943 os trabalhos de Heidegger dos anos de 1930 em diante datildeo a entender um claro
direcionamento pelo qual os elementos abandonados pela entificaccedilatildeo do pensamento podem ser
evidenciados qual seja a partir da poesia Os versos de Soacutefocles segundo o proacuteprio Heidegger
ldquoa uacuteltima poesia do uacuteltimo poeta gregordquo natildeo estatildeo ali dispostos sem motivo Tambeacutem natildeo eacute
sem razatildeo que a partir de aiacute haacute uma incansaacutevel busca pela poesia de Friedrich Houmllderlin (aleacutem
de Georg Trakl Stephan George Rainer Maria Rilke e de outros poetas escolhidos por
Heidegger) Ateacute certo ponto eacute possiacutevel afirmar que Heidegger encontra na poesia a
possibilidade de superar a linguagem por meio da proacutepria linguagem Em alguns outros
momentos uma meditaccedilatildeo de teor semelhante aparece como no encontro entre Heidegger e os
japoneses (como apresentei na dissertaccedilatildeo de 2010) Contudo restava ainda buscar os modos
de reflexatildeo que natildeo simplesmente podiam ir aleacutem da expressatildeo da ciecircncia do ente enquanto
ente mas ainda colocaacute-la em questionamento mediante outros meacutetodos
Foi na abertura do III Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica que minhas inquietaccedilotildees
comeccedilaram a se asseverar e ganhar corpo para o que viria a ser esta tese A conferecircncia
inaugural do evento foi sobremaneira marcante neste processo O professor Gilvan Fogel da
Universidade Federal do Rio Janeiro havia sido convidado para encerrar o primeiro dia de
evento Ele apresentou naquela noite a conferecircncia O que eacute metafiacutesica Como ele mesmo frisou
ldquonatildeo a pergunta mas a respostardquo Havia sem embargo a intenccedilatildeo de responder a pergunta
em um certo direcionamento eacute claro O texto vinha ainda acompanhado de um subtiacutetulo (com
o qual foi publicado como tiacutetulo oficial alguns anos depois diga-se de passagem) Sobre a
metafiacutesica ou a respeito do jejum O mote para o subtiacutetulo o proacuteprio professor o explica na
passagem inicial do texto que gostaria de citar por completo agora mesmo
19
O subtiacutetulo pode soar estranho insoacutelito e natildeo muito seacuterio Mas pelo que ele insinua
pretende anunciar algo seacuterio mesmo muito seacuterio a saber a metafiacutesica E a inspiraccedilatildeo
ou a motivaccedilatildeo que propicia o encaminhamento para a questatildeo anunciada a
metafiacutesica vem de uma obra igualmente seacuteria muito seacuteria ainda que se possa melhor
que se deva dela se ocupar tambeacutem com grandes e gostosas gargalhadas ndash aquelas que
no destampar do riso sacudindo a barriga bem solta e largada deixam escorrer
viacutesceras pela boca afora Estou me referindo ao Dom Quixote o Engenhoso Fidalgo
Dom Quixote lsquode la Mancharsquo ndash o ldquoda Triste Figurardquo
Entre as poesias que preludiam a primeira parte e que homenageiam seus personagens
maiores temos o uacuteltimo que eacute um diaacutelogo em forma de soneto entre Babieca o
cavalo de El Cid e Rocinante o grande rocim o pangareacute erado de Dom Quixote A
certa altura do diaacutelogo-soneto Babieca pergunta ldquoSeraacute tolice amarrdquo e Rocinante
responde ldquoNatildeo eacute muito prudenterdquo Babieca retruca ldquoEstaacutes metafiacutesicordquo E Rocinante
contesta enfaacutetico ldquoEacute que natildeo comordquo (FOGEL 2011 101)
A passagem sugere que a metafiacutesica eacute antes de tudo coisa de fome Por isto ldquoa respeito do jejumrdquo
denuncia a indisposiccedilatildeo que envolve a metafiacutesica A metafiacutesica eacute portanto certo incocircmodo que
eacute tambeacutem necessidade premente decorrente de certa privaccedilatildeo A partir disto Fogel delineia o
tipo de jejum ao qual se refere natildeo se trata de um jejum nutricional alimentiacutecio mas jejum de
vida conforme ele mesmo diz ldquo() natildeo vida no sentido bioloacutegico mas no sentido banal e
corriqueiro como falamos da vida de ldquonossa vidardquo ndash que ela eacute boa ou ruim ou um buracordquo
(IDEM IBIDEM 102) Esta vida a vida imanente a vida do cotidiano do dia-a-dia esta mesma
que ocupa o tempo e o espaccedilo sofre priva-se absteacutem-se Esta abstenccedilatildeo e privaccedilatildeo satildeo a
condiccedilatildeo pela qual reverbera sua constituiccedilatildeo enquanto sujeito ndash e nasce aiacute uma interpretaccedilatildeo
do que eacute enfim metafiacutesica A partir da conferecircncia de Fogel aleacutem de algumas outras
consideraccedilotildees comecei a ponderar a maneira pela qual abordaria o problema
20
Natildeo por meio de uma definiccedilatildeo conceitual acontecimento histoacuterico ou muacutetuo
consentimento temaacutetico mas por meio de uma experiecircncia de pensamento que sem deixar de
lado nenhum dos elementos supracitados configura-se antes como algo intriacutenseco agrave proacutepria
natureza do pensar Ponderando as consideraccedilotildees da conferecircncia de Heidegger a metafiacutesica se
deixa mostrar como uma decisatildeo pela conclusatildeo Um iacutempeto maior do ser humano em
resguardar sua condiccedilatildeo de pacificidade A humanidade teme o caos teme o desalinho receia
o incoacutegnito e inexprimiacutevel Elege por isto seu caminho de seguranccedila com aquilo que lhe eacute
papaacutevel o ente enquanto ente e nada mais Nada quer saber do nada que nada lhe oferece aleacutem
de um indisposto silecircncio um insoacutelito vazio Mediante esta postura embora sob o risco de
ocultar algo em si mesmo que talvez lhe sirva para alcanccedilar siacutetios recocircnditos do misteacuterio de
sua proacutepria existecircncia constitui-se o ser humano um metafiacutesico Sem embargo eacute preciso abster-
se de algo em prol disto ou daquilo que se lhe afigura mais propiacutecio ao momento Fogel enxerga
isto como privaccedilatildeo como jejum como fome Fica muito claro em sua interpretaccedilatildeo o caraacuteter
inflexiacutevel da decisatildeo pela conclusatildeo sobretudo quando traz agrave luz o curioso caso de Vicent van
Gogh
Fogel cita uma carta que van Gogh teria enviado em maio de 1888 a seu irmatildeo Theacuteo
onde descreve sua nova moradia e ao mesmo tempo atelier afirmando que o local eacute pouco
atraente para desenvolver qualquer tipo de flerte ou paquera acrescentando que dificilmente
enxerga como compatiacuteveis o trabalhar e o farrear (faire la noce) A verdade eacute que van Gogh
natildeo possui outra opccedilatildeo senatildeo se privar da diversatildeo do faire la noce natildeo porque eacute asceta ou
abstecircmio nem porque precisa dedicar mais tempo ao seu trabalho ou pagar suas contas (todos
sabem da condiccedilatildeo por vezes paupeacuterrima na qual ele se encontrou ao longo de seu percurso)
mas por ser artista por ser pintor por pintar Urge no artista uma realidade que parece muito
mais real que a vida comum na qual o farrear remete ao contentamento agrave felicidade Natildeo viver
a vida para van Gogh seria natildeo pintar
21
Se viver a vida eacute buscar este contentamento esta felicidade entatildeo van Gogh vive para
natildeo-viver Natildeo-viver se torna paradoxalmente a expressatildeo maacutexima da vida metafisicamente
entendida Fogel completa ldquoE por que natildeo viver este natildeo-viver seria ingratidatildeo Seria isso a
saber a distacircncia o agrave parte um dom um presente uma graccedilardquo (IDEM IBIDEM 105)
acrescentando ainda ldquoA metafiacutesica desde que jejum abstinecircncia de vida de viver seria
igualmente muita vida e natildeo cumpri-la natildeo realizaacute-la isto eacute natildeo pensar uma grande
ingratidatildeordquo (ID IBID) e por fim sugerindo ldquoAqui precisa-se confessar viver natildeo eacute preciso
Pintar pensar fazer quadros fazer metafiacutesica ndash isso eacute precisordquo (ID IBID) Ressalte-se o tom das
inquiriccedilotildees da interrogaccedilatildeo acompanhada pela exclamaccedilatildeo A precisatildeo da qual fala fazendo
menccedilatildeo a Fernando Pessoa eacute a necessidade de justeza de ser preciso e acurado destro
rigorosamente alinhado ao fazer metafiacutesica Assim se configura algo muito iacutentimo e sem
embargo inevitaacutevel na natureza humana
Fogel prossegue sua exposiccedilatildeo chamando ao diaacutelogo o Zaratustra de Friedrich
Nietzsche especificamente a seccedilatildeo intitulada Da Visatildeo e do Enigma na qual reincide o anuacutencio
da famosa doutrina do Eterno Retorno citando o trecho que diz
O homem eacute todavia o mais corajoso animal assim ele supera todo e cada animal Com
o jogo sonoro supera ele tambeacutem a dor Mas a dor humana eacute a dor mais profunda A
coragem tambeacutem indica a tontura morte em abismos e onde estaria o homem senatildeo
em abismos Ele natildeo vecirc a si mesmo ndash vecirc abismos (NIETZSCHE 2005 119)
Para Fogel o ldquoverrdquo natildeo denuncia uma observaccedilatildeo circunvisatildeo ou vislumbre mas antes um
acontecimento uma iluminaccedilatildeo um tornar visiacutevel Torna-se visiacutevel o abismo o sem fundo
sem fundamento Ao que parece quanto mais o ser humano contempla sua proacutepria existecircncia
mais sem chatildeo fica maior eacute a falta de fundamento e com maior radicalidade se abre um abismo
frente aos seus peacutes
22
Eacute possiacutevel todavia prosseguir caminhando ao lado de Nietzsche e Heidegger bem como
por meio das reflexotildees e interpretaccedilotildees oferecidas por Fogel buscando alcanccedilar uma feiccedilatildeo da
vida humana que permita descortinar a proveniecircncia metafiacutesica de seu percurso e ateacute mesmo
suscitando uma ultrapassagem deste fenocircmeno Contudo eacute necessaacuterio ainda precisar com maior
cuidado os termos contidos na questatildeo Faz parte do labor filosoacutefico se afundar mais e mais em
algo que por si soacute jaacute eacute bastante fundo
Natildeo apenas os pensamentos de Nietzsche e Heidegger oferecem uma especulaccedilatildeo de
formidaacutevel profundidade difiacutecil de ser absorvida em primeira matildeo como tambeacutem por vezes
pode se mostrar demasiado complexo empreender um rastreamento do sentido originaacuterio das
palavras e sentenccedilas salvo mediante uma anaacutelise completa (empresa complicadiacutessima
provavelmente impossiacutevel) de suas obras Mesmo assim talvez ainda natildeo se mostre com
suficiente nitidez se natildeo houver de antematildeo uma explanaccedilatildeo das fontes e referecircncias cruzadas
Com estas ideias em mente buscando avanccedilar cada vez mais no tema e sobre ele meditar
com cada vez mais dedicada atenccedilatildeo e profundidade tentando ampliar com ferocidade o
vocabulaacuterio (para fazer minhas as palavras de Marco Lucchesi) outro escrito me sobreveio
durante o processo de composiccedilatildeo das hipoacuteteses contidas neste trabalho Em Nihilismo e
Neoplatonismo (2003) Oscar Federico Bauchwitz traccedila algumas linhas que especificam a
condiccedilatildeo por meio da qual o problema efetivamente se apresenta
Haacute no texto de Bauchwitz tambeacutem um necessaacuterio retorno a Nietzsche e Heidegger Natildeo
apenas dentro do contexto de um estudo da metafiacutesica enquanto histoacuteria intelectual mas ainda
constatando os tempos onde ela se apresenta como formataccedilatildeo do modo de ldquoagir-pensarrdquo torna-
se imprescindiacutevel resgatar a lembranccedila de que ldquo() com Nietzsche se estabelece uma criacutetica da
metafiacutesica que acaba por homologar o seu oacutebitordquo (BAUCHWTIZ 2003b 169) Como explica
Bauchwitz a declaraccedilatildeo da morte da metafiacutesica eacute aquela mesma da morte do platonismo
cristianismo niilismo e outros sinocircnimos para o mesmo fenocircmeno
23
Esta morte natildeo eacute todavia apenas uma declaraccedilatildeo da inexistecircncia corrente do pensamento
metafiacutesico senatildeo sua consumaccedilatildeo total e absoluta A ldquociecircncia do ente enquanto enterdquo entifica
tudo aquilo que outrora foi nomeado vida (φύσις) pelos gregos dos periacuteodos arcaico e claacutessico
ndash das coisas ao redor aos pensamentos e aos deuses A entificaccedilatildeo do mundo em torno eacute sem
sombra de duacutevidas a maneira pela qual a ciecircncia vigente concebe o mundo configurando o que
Heidegger havia chamado de ldquoreferecircncia ao mundordquo A entificaccedilatildeo do pensamento por sua vez
denota a ldquoposturardquo tambeacutem mencionada por Heidegger aquela mesma segundo a qual haacute uma
maneira ldquocorretardquo de pensar Ao passo que a entificaccedilatildeo dos deuses um pouco mais complicada
apresenta-se como ldquoirrupccedilatildeordquo na qual a circunvisatildeo resultante dos dois elementos acima
mencionados denuncia a morte de deus a fuga dos deuses o viver sem o divino sem o
iluminado sem o deslumbre Desatados os laccedilos entre ser humano e divindade Bauchwitz
questiona ldquoO que natildeo pode o homem modernordquo (IDEM IBIDEM 170) questionamento que
poderia ainda ser vertido nos termos (mais ou menos) de Dostoievsky ldquose deus morreu entatildeo
tudo eacute permitidordquo ou ainda nos (mais ou menos novamente) de Heidegger ldquose apagou da
histoacuteria universal o esplendor da divindade Essa eacute a eacutepoca da noite do mundordquo Contudo para
Bauchwitz perdura algo no labor filosoacutefico que torna liacutecito novamente regressar agrave questatildeo Ele
explica que ldquoResgatar a forccedila mais originaacuteria das palavras eacute o ofiacutecio do filoacutesofo Por isso
dizemos que a miacutestica se mostra no fechar de olhos no fechar da bocardquo (ID IBID 173) Recordo-
me acompanhando os seminaacuterios matinais do professor Bauchwitz de ouvir certa vez a
sentenccedila ldquoo miacutestico estaacute sempre em conflito com a linguagemrdquo Conflito ou confronto natildeo me
lembro muito bem Havia de fato escrito a frase literalmente ao peacute da paacutegina de algum livro
(ou alguma fotocoacutepia) que agora mesmo esqueccedilo qual era e natildeo consigo encontrar
Independente das palavras exatas o que se apresenta no texto de Bauchwitz eacute a sugestatildeo de um
caminho para este resgate por meio de um conflito o confronto suscitado pela miacutestica
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Bauchwitz escreve ldquoO miacutestico eacute em primeiro lugar aquele que acolhe o misteacuterio dentro
de si recolhendo em silecircncio o sentido oculto da realidade soacute depois eacute que o silecircncio rompe a
barreira dos dentes para mostrar-se linguagemrdquo (ID IBID) E ainda prossegue especificando que
ldquoPor isso a miacutestica eacute uma experiecircncia radical da liberdade proacutepria Abrindo matildeo de um mundo
que clama sua atenccedilatildeo o miacutestico encontra-se com o que nele eacute totalmente incoacutegnito e
incognosciacutevel um eu que se mostra como puro nadardquo (ID IBID) A maneira pela qual Bauchwitz
iraacute desdobrar a explicaccedilatildeo destas sentenccedilas sobremaneira enigmaacuteticas percorreraacute trecircs
pensadores que marcam a tradiccedilatildeo do neoplatonismo e da chamada miacutestica medieval quais
sejam Pseudo-Dioniacutesio Areopagita Joatildeo Escoto Eriuacutegena e Mestre Eckhart Contudo o que
havia me saltado aos olhos antes da eleiccedilatildeo temaacutetica autoral ou metodoloacutegica havia sido a
sentenccedila ldquoum eu que se mostra como puro nadardquo Jaacute havia encontrado semelhante formulaccedilatildeo
todavia nunca em autores ocidentais Remeti diretamente a maneira pela qual a tradiccedilatildeo
mahāyāna do budismo do leste asiaacutetico havia compreendido a noccedilatildeo do natildeo-si-mesmo ou natildeo-
ego (anātman अितमि) como dissoluccedilatildeo do eu por meio da tensatildeo entre forma (ou fenocircmeno ou
ainda aparecircncia rūpa रप) e nada (ou vacuidade śūnyatā शनयता) Estas ideias derivam
diretamente do chamado Cacircnone Pāḷi tendo sido transmitidas em sacircnscrito pelo Sūtra do
Coraccedilatildeo (Prajntildeāpāramitā Hṛdaya परझञापारनमताहरदय) ateacute alcanccedilarem formas mais refinadas no
budismo chrsquoan e no zen budismo japonecircs assumindo as configuraccedilotildees de ldquoformardquo ou
ldquoaparecircnciardquo enquanto shiki (色) e ldquonadardquo ou ldquovacuidaderdquo enquanto kū (空) elementos centrais
do pensamento da filosofia japonesa contemporacircnea da Escola de Kyōto (e que tambeacutem havia
abordado brevemente em minha dissertaccedilatildeo de mestrado) Tornou-se imperioso investigar ateacute
que ponto tais ideias se aproximam ou comungam de princiacutepios convergentes aleacutem da maneira
como elas repercutem em suas tradiccedilotildees e particularidades Mais uma vez encontrava-me frente
ao sem-fim nuacutemero de possibilidades comparativas e complementares
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Contudo temia o risco de cair no engodo certa vez denunciado por Immanuel Kant
quando afirmou em seus Prolegomena zu einer jeden kuumlnftigen Metaphyysik (1783) que ldquo()
dificilmente se espera que natildeo seja possiacutevel descobrir analogias para cada nova ideia entre ditos
de eras passadasrdquo (KANT 1911 7) natildeo havendo grande meacuterito nisto e sendo necessaacuterio admitir
que estes historiadores da filosofia ocupados com tal empreendimento devam antes aguardar
que os ldquoverdadeiros filoacutesofosrdquo esgotem as fontes da razatildeo Sob pena de realizar uma mera
comparaccedilatildeo friacutevola (embora com a consciecircncia de que passo longe de ser um ldquoverdadeiro
filoacutesofordquo ao menos no sentido Kantiano ndash talvez o seja em outro digamos mais Ginsbergiano
de pura pretensatildeo mas certamente natildeo muito talento) ocupei-me em corretamente designar o
problema que me afligia de modo que fosse possiacutevel corretamente endireitar o roteiro da tese
Era preciso encontrar um mote mesmo que ele natildeo deixasse ver claramente os passos a serem
percorridos mas que provessem alguma direccedilatildeo
Tendo isto em vista natildeo podia negar que o interesse pelo que ousei chamar de ldquoconflito
das fronteirasrdquo crescia a partir de um ldquopar de viacutergulasrdquo que aparentemente haviam escapado agrave
anaacutelise da histoacuteria do pensamento Em outras palavras um determinado momento no qual o
transcurso metafiacutesico foi levemente desviado em uma guinada espontacircnea e natural como um
marinheiro que sutilmente move o leme para a esquerda ou para direita ao perceber o advento
de uma portentosa onda logo atraacutes de si soltando o motor e deixando o barco ser levado pelo
mar ndash saacutebia decisatildeo em momentos de tormenta (passei por esta situaccedilatildeo certa vez em mar
aberto transitando entre Paraty e uma praia recocircndita Pouso do Cajaiacuteba se natildeo me falha a
memoacuteria gostaria de poder descrever em pormenores a experiecircncia que seria proveitosa ao
leitor em termos ilustrativos mas estava muito enjoado no barco para congregar detalhes
miacutesticos em minha massa cinzenta) E eram momentos de tormenta Como poderiam natildeo ser
Sendo assim estabeleci um conveniente itineraacuterio (ao menos sob meu ponto de vista) que
compartilho antes de iniciar o trabalho
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O primeiro passo importante eacute estabelecer dentro de quais termos se apresenta a
metafiacutesica pela qual se nomeia a histoacuteria do pensamento ocidental O primeiro capiacutetulo da tese
intitulado Ontologia a substantivaccedilatildeo do Ocidente e a delimitaccedilatildeo das fronteiras do
pensamento ocupa-se de tal apresentaccedilatildeo e eacute na verdade bastante simples apesar do tiacutetulo
pomposo A despeito da abordagem histoacuterico-conceitual desdobrada em um primeiro momento
o capiacutetulo segue em consonacircncia com a avaliaccedilatildeo de Martin Heidegger assumindo-o como
interlocutor e inteacuterprete da histoacuteria e criacutetica da metafiacutesic Haacute aqui uma ecircnfase nas leituras por
meio das quais Heidegger caracterizou de maneira direta a passagem de uma fisiologia grega
claacutessica (por ele nomeada ldquopensamento originaacuteriordquo) para o acircmbito da ontologia latina e o modo
conforme o qual a proacutepria ideia de ldquoserrdquo eacute compreendida de maneira tatildeo somente substantivada
a partir de seu particiacutepio presente ldquoenterdquo Um necessaacuterio retorno cronoloacutegico-regressivo eacute
estabelecido do fim ao iniacutecio da modernidade pontuando autores como Jacob Lorhard e
Francisco Suaacuterez Todavia o objetivo principal do capiacutetulo eacute compreender este modo de
substantivaccedilatildeo e quais as consequecircncias disto para o pensamento em um sentido geral (a
delimitaccedilatildeo de suas fronteiras no final das contas) sem nunca perder de vista o peso aristoteacutelico
da designaccedilatildeo e realizando algumas especificaccedilotildees sobre isto
O segundo capiacutetulo intitulado O caminho da negatividade henologia e meontologia e
a ultrapassagem dos limites da metafiacutesica pretende caracterizar efetivamente essa nomeada
ldquonegatividaderdquo Negatividade que natildeo eacute simplesmente predominacircncia de um ldquonatildeordquo ou partiacutecula
de privaccedilatildeo mas antes assunccedilatildeo de um oxiacutemoro o auscultar de um inaudito Desenvolve-se
como argumento central por meio do qual se evidencia as estruturas baacutesicas de um pensamento
radical a evidenciaccedilatildeo de uma meditaccedilatildeo que jaacute natildeo eacute mais norteada pelo ldquoenterdquo mas sim pelo
ldquounordquo (henologia) neoplatocircnico ou mesmo por uma profunda meditaccedilatildeo em torno ao ldquonadardquo
(meontologia) presentes no neoplatonismo e sobremaneira evidentes no pensamento miacutestico
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O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo nomeado O Extremo Oriente e o conflito das fronteiras a
filosofia comparada intercultural como chave de leitura para alguns problemas do pensamento
contemporacircneo pretende conectar os pontos e resgatar o sentido da tese O capiacutetulo traz uma
breve apresentaccedilatildeo da chamada Escola de Kyōto e a constituiccedilatildeo da filosofia japonesa
contemporacircnea Este eacute o momento no qual eacute possiacutevel observar a recepccedilatildeo contemporacircnea da
filosofia ocidental (tanto dentro da tradiccedilatildeo metafiacutesica quanto ldquoforardquo dela na dita negatividade)
e o diaacutelogo (e siacutentese) com o mundo do Extremo Oriente O objetivo eacute portanto pensar em
comunhatildeo com os pensadores da Escola de Kyōto com especial atenccedilatildeo para Keiji Nishitani
(西谷 啓治) observando suas propostas para anaacutelise e resoluccedilatildeo dos problemas de filosofia
contemporacircnea e buscando um esclarecimento a respeito dos termos indicados
Ao fim e ao cabo a intenccedilatildeo aqui eacute convidar os leitores ao diaacutelogo intercultural
apresentando em um diaacuterio de minhas leituras diferentes nuances e pontos de vista a respeito
de algumas questotildees especiacuteficas e ousando um diagnoacutestico da filosofia contemporacircnea bem
como uma vaacutelvula de escape para a atual condiccedilatildeo do pensamento filosoacutefico Caso a empreitada
logre ecircxito acredito que uma nova conversa se abra e novas ideias venham agrave mente Sem
embargo trata-se de uma composiccedilatildeo acerca de um conflito o conflito das fronteiras
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ONTOLOGIA A SUBSTANTIVACcedilAtildeO DO OCIDENTE E O PROBLEMA DA METAFIacuteSICA
ENQUANTO DELIMITACcedilAtildeO DAS FRONTEIRAS DO PENSAMENTO
Embora ontologia tenha um sentido bastante amplo (que seraacute melhor explorado ao longo do
capiacutetulo) aleacutem de uma sem-fim variedade de definiccedilotildees distintas de autor para autor (algumas
das quais seratildeo eleitas e apresentadas aqui) entende-se o conceito (de forma simplificada) como
um discurso capaz de reunir em uma unidade a polissemia do verbo ser O resultado eacute a
centralizaccedilatildeo conceitual de qualquer ulterior doutrina a partir da definiccedilatildeo desenrolada desde
sua compreensatildeo Por substantivaccedilatildeo do Ocidente refiro-me aqui agrave corrente historial
responsaacutevel por compreender o verbo ser de modo substantivado a partir de seu particiacutepio
presente ldquoenterdquo A intenccedilatildeo do capiacutetulo portanto concentra-se na investigaccedilatildeo do processo
decorrido dessa substantivaccedilatildeo e quais as consequecircncias disto para o pensamento ocidental e
contemporacircneo em uma concepccedilatildeo geral no que diz respeito agrave delimitaccedilatildeo das fronteiras do
pensamento
Em primeiro lugar gostaria de abrir uma interlocuccedilatildeo com o professor Charles H Kahn
da University of Pennsylvania dada a relevacircncia e pertinecircncia de sua obra The Verb lsquoBersquo in
Ancient Greek (1973) para o desenvolvimento do capiacutetulo Antes de desdobrar em pormenores
seu estudo bastante extenso e detalhado Kahn sustenta a tese de que haacute uma relatividade
linguiacutestica referente ao verbo ser (cf KAHN 2003 1-3) Em sua introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo de 2003 (cf
IDEM IBIDEM vii) Kahn se reposiciona em relaccedilatildeo ao argumento expresso em sua obra clamando
ser uma posiccedilatildeo bastante defensiva e ldquofora de modardquo para os tempos atuais Ainda assim trata-
se de uma hipoacutetese bastante interessante
29
A posiccedilatildeo de Kahn (cf IBID 1-3) se apoia na afirmaccedilatildeo de Angus C Graham1 acerca
do mesmo verbo dentro do chinecircs claacutessico onde o sinoacutelogo posiciona o ser relativamente agrave
regra gramatical inerente agrave formulaccedilatildeo de uma determinada sentenccedila significando portanto a
impossibilidade de uma doutrina universal acerca do ser compatiacutevel com liacutenguas distintas
(como o grego o aacuterabe ou o chinecircs) Isto concorda em absoluto com a ideia de que no proacuteprio
grego claacutessico e nas liacutenguas indo-europeias em geral conforme a menccedilatildeo feita por Kahn a
Eacutemile Benveniste2 natildeo haacute em hipoacutetese alguma a implementaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo universal ou
condiccedilatildeo necessaacuteria envolta na distribuiccedilatildeo dos significados do verbo ser Haacute sim e Benveniste
endossa a ideia uma predisposiccedilatildeo da linguiacutestica grega agrave ldquovocaccedilatildeo filosoacutefica da noccedilatildeo de serrdquo
Vocaccedilatildeo esta segundo Kahn muito geral e diversificada no desenvolvimento sistemaacutetico de
seu conceito desde Parmecircnides ateacute Aristoacuteteles e de uma maneira mais sistemaacutetica dos Estoicos
ateacute Plotino Em siacutentese Kahn sustenta que a tese de um determinismo linguiacutestico do ser eacute
claramente falsa ou seja mesmo em falantes de uma mesma liacutengua natildeo eacute possiacutevel encontrar
uma mesma doutrina em torno ao ser como eacute possiacutevel ver nos pensamentos distintos de Platatildeo
e Aristoacuteteles Epicuro e Plotino
Todavia natildeo haacute duacutevidas para Kahn a respeito das condiccedilotildees intriacutensecas da liacutengua de um
autor em sua atividade intelectual seus recursos e suas tendecircncias Ele afirma que natildeo haveria
possibilidade de especificar a determinaccedilatildeo ontoloacutegica se o verbo grego εἰμί natildeo fosse provido
do particiacutepio presente τὸ ὄν ou se natildeo houvesse a derivaccedilatildeo nominal ndashία da qual redunda a
noccedilatildeo de οὐσία Ou ainda a classe de morfemas que compreende ἐστί εἶναι e ἐών derivadas
do indo-europeu ndashes Satildeo as formas nominais do verbo que permitem segundo Kahn (cf IBID
451) natildeo soacute uma clara expressatildeo senatildeo tambeacutem a tematizaccedilatildeo do conceito como um toacutepico
distinto para a reflexatildeo filosoacutefica
1 Angus C Graham ldquoBeing in Classical Chineserdquo In The Verb lsquoBersquo and its Synonyms John W M Verhaar (ed)
Dordrecht Holland D Reidel 1967 1-39 2 Eacutemile Benveniste ldquoCateacutegories de penseacutee et cateacutegories de languerdquo Les Eacutetudes philosophiques n 4 (out-dez
1958) PUF Paris 419-429
30
Kahn fala dos primeiros usos do verbo εἰμί (em formas participiais) em sua
possibilidade de representar qualquer construccedilatildeo copulativa (natildeo muito diferente de qualquer
outro particiacutepio em grego) adaptando-se agraves construccedilotildees coordenadas ou subordinadas (em
nuacutemero gecircnero e causa) e expressando diferentes nuances (concessiva causal adversativa)
Contudo frisa haver ainda outras expressotildees para aleacutem do caso copulativo como nos casos
vital veriacutedico ou existencial Quando o verbo aparece dentro da expressatildeo existencial e emerge
a necessidade de indicar uma referecircncia ou seja um caso gramatical locativo surgem as formas
do uso filosoacutefico do ser como τὰ ὄντα o berccedilo para o desenvolvimento da ontologia O sentido
de τὰ ὄντα apareceria em Aristoacuteteles de acordo com Kahn (cf ID IBID 457) em primeira matildeo
como ldquoo que eacuterdquo (o caso os fatos ou eventos) e em segunda matildeo existencialmente como ldquocoisas
que existemrdquo ldquocoisas que estatildeo presentesrdquo ldquocoisas que podem ser encontradas em algum lugarrdquo
Em ambos os casos o verbo ser eacute entificado Como neste sentido haacute uma conotaccedilatildeo ldquodo que
eacuterdquo algo Aristoacuteteles considerou a referecircncia aos atributos de um determinado ente para expressar
a muacuteltipla significaccedilatildeo de τὸ ὄν partindo em seguida para a definiccedilatildeo do ser no sentido primaacuterio
e fazendo uso de seu derivado nominal οὐσία
A manifestaccedilatildeo de οὐσία surge como uma nominalizaccedilatildeo abstrata ou substantivo de
accedilatildeo Kahn enumera trecircs aspectos distintos do uso de οὐσία em uma concepccedilatildeo filosoacutefica o
primeiro uso refere-se agrave nominalizaccedilatildeo do verbo na qual οὐσία representaria ldquoo que algo eacuterdquo
dando abertura para as formas platocircnicas e essecircncias aristoteacutelicas (τὸ τί ἐστι τὸ τί ἦν εἶναι) o
segundo uso eacute todavia menos teacutecnico e predica οὐσία como ldquoserrdquo ldquoexistecircnciardquo ou ldquorealidade
verdadeirardquo o terceiro uso enuncia uma equivalecircncia entre οὐσία e τὸ ὄν referindo ldquoas coisas
que satildeo (neste mundo)rdquo τὰ ὄντα (cf ID IBID 461) Aristoacuteteles pontua precisamente a intenccedilatildeo
socraacutetica primaacuteria de buscar a essecircncia das coisas (τὸ τί ἐστι) por meio do procedimento
silogiacutestico cujo princiacutepio eacute justamente a quididade (ἀρχὴ δὲ τῶν συλλογισμῶν τὸ τί ἐστι)
(ARISTOacuteTELES 2002 604-605 Metafiacutesica 1078b 24-25)
31
O que em Soacutecrates apareceria de fato como τί ἐστι e em Platatildeo como (τὸ) ὅ ἐστι em
Aristoacuteteles seria simplificado como τὸ τί ἐστι e τὸ τί ἦν εἶναι em um uso que expressa a essecircncia
ou natureza das coisas pela definiccedilatildeo ao passo que a definiccedilatildeo propriamente existencial caberia
ao termo οὐσία 3 Kahn ilustra as distinccedilotildees dizendo que
Enquanto o substantivo no primeiro e no segundo usos serve como uma
nominalizaccedilatildeo ldquoabstratardquo para o verbo finito como predicado isto eacute para o ldquoser aquilo
que eacuterdquo (e eacute assim sintaticamente paralelo ao infinitivo articular τὸ εἶναι) οὐσία no
terceiro sentido eacute utilizado ndash como em muitos outros substantivos abstratos ndash para o
sujeito caracterizado (isto eacute o que eu chamo de concreto ou agente de nominalizaccedilatildeo
como tipicamente ilustrado pelo particiacutepio articular τὸ ὄν ou como por exemplo ὁ
τρέχων ldquoo corredorrdquo em contraste agrave accedilatildeo de nominalizaccedilatildeo abstrata τὸ τρέχειν
ldquocorrerrdquo Esta distinccedilatildeo sintaacutetica corresponde em parte ao contraste de Heidegger
entre das Seiende e das Sein der Seienden) (ID IBID)
Embora haja tal distinccedilatildeo Kahn prossegue afirmando que em seu uso tardio (poacutes-platocircnico)
οὐσία e τὸ ὄν satildeo claramente sinocircnimos sendo um utilizado para enfatizar o outro como na
doutrina das Categorias de Aristoacuteteles4 O resultado eacute a inexistecircncia de uma diferenccedila entre o
agente concreto e a accedilatildeo abstrata de nominalizaccedilatildeo do εἰμί onde natildeo haacute distinccedilatildeo conceitual
entre οὐσία e τὸ ὄν ou seja entre a entidade e o que ela eacute Em outras palavras ser e ente se
tornam o mesmo confundem-se em sua aplicaccedilatildeo a despeito das distinccedilotildees conceituais que
definem substacircncia (οὐσία) e essecircncia (τὸ τί ἦν εἶναι)
3 Um comentaacuterio mais preciso foi apresentado em Luiacutes Andreacutes Berdlow ldquoParmenides and the Grammar of Beingrdquo
Classical Philology v 106 (2011) 283-298 4 As Categorias de Aristoacuteteles apresentam a classificaccedilatildeo das coisas que satildeo (τὰ ὄντα) dentre as quais encontra-
se a substacircncia (οὐσία) (cf ARISTOTLE 1952 5-6 Categorias 1a-2b) Na Metafiacutesica Aristoacuteteles deixa isto mais
claro quando diz ldquoMas em primeiro lugar se o ldquoenterdquo (τὸ ὂν) se diz de muitas maneiras ndash dentre as quais algumas
vezes substacircncia (οὐσία) em outras qualidade ou mesmo quantidade aleacutem de todas as outras categorias ndash qual
deles portanto eacute aquele pelo qual as coisas satildeo ()rdquo (ARISTOacuteTELES 2002 669 Metafiacutesica 1089a 5-15) A diferenccedila
conceitual ou mesmo hieraacuterquica eacute paulatinamente abandonada pela necessidade de exprimir um niacutevel de
realidade no qual jaacute natildeo eacute mais possiacutevel discorrer acerca do ente se redundar a palavra definida na proacutepria definiccedilatildeo
32
Essa indistinccedilatildeo entre ser e ente eacute sabido foi o que chamou a atenccedilatildeo de Martin
Heidegger no processo ldquodestrutivordquo de histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica realizado em seu projeto
Sein und Zeit (1927) Conforme Heidegger haacute uma γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας de haacute muito
abandonada O motivo aparente se concentra nas caracteriacutesticas emergentes do proacuteprio ser
quais sejam sua maacutexima universalidade sua vacuidade sua obscuridade sua maacutexima
evidecircncia Neste sentido Heidegger diz
O conceito de ldquoserrdquo eacute indefiniacutevel Isto pode ser concluiacutedo desde sua maacutexima
universalidade E isto com razatildeo ndash se definitio fit per genus proximum et differentiam
specificam De fato ldquoserrdquo natildeo pode ser entendido conceitualmente como ente enti
non additur aliqua natura ldquoserrdquo natildeo pode estar em uma determinaccedilatildeo concebendo
dele um ente O ser por definiccedilatildeo natildeo pode ser derivado de conceitos superiores e
nem dado por nenhuma ilustraccedilatildeo Contudo disto se segue que do ser natildeo se pode
derivar nenhum problema Pode-se concluir em absoluto apenas que o ldquoserrdquo natildeo eacute
algo como um ente Portanto o legiacutetimo dentro de certos limites de determinaccedilatildeo dos
entes ndash a ldquodefiniccedilatildeordquo da loacutegica tradicional que em si tem suas bases na antiga
ontologia ndash natildeo eacute aplicaacutevel ao ser A indefiniccedilatildeo do ser natildeo dispensa a pergunta por
seu significado senatildeo que justamente a intima isto (HEIDEGGER 1967 4)
As observaccedilotildees de Heidegger concordam com a conclusatildeo de Kahn a respeito da tomada de
rumo do verbo ser dentro da filosofia grega claacutessica sobretudo na concepccedilatildeo das bases da antiga
ontologia acerca da indistinccedilatildeo entre ser e ente A γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας agrave qual se refere
Heidegger parece ser a natureza inevitaacutevel da proacutepria metafiacutesica em fechar a porta aberta por
ela mesma para o modo de se relacionar com o ser uma espeacutecie de destinaccedilatildeo forccedilosa da qual
natildeo se poderia de maneira alguma escapar ponderando a projeccedilatildeo que reverbera em cada um
dos sentidos
33
O conflito acerca do entendimento e expressatildeo da φύσις revela em boa parte a maneira
pela qual o conjunto do ser se tornou alvo de disputas A contenda eacute ilustrada na histoacuteria
primaacuteria da filosofia grega enquanto fisiologia e na ldquocontroveacutersiardquo paradigmaacutetica entre
Heraacuteclito e Parmecircnides Uma realidade em constante movimento e mutaccedilatildeo absorvida desde a
observaccedilatildeo teoreacutetica do mundo entorno ou simplesmente o ponto de vista do ldquodevirrdquo parece
compatiacutevel com a natureza infinitiva e inapreensiacutevel do verbo ser como eacute possiacutevel rastrear no
πάντα ῥεῖ heracliacutetico 5 Heraacuteclito expressa o movimento intriacutenseco de abertura do modo
relacional do ser Todavia tal entendimento natildeo eacute compatiacutevel com qualquer tipo de silogismo
loacutegico onde eacute possiacutevel desenhar um conhecimento comum Para assumir a cogniccedilatildeo e percepccedilatildeo
vaacutelidas seria necessaacuterio assumir a permanecircncia de algo como eacute possiacutevel acompanhar na
elaboraccedilatildeo da univocidade do ser em Parmecircnides6
O primeiro ponto de vista paradoxalmente leva agrave evidecircncia da diferenccedila e a posiccedilatildeo do
oxiacutemoro enquanto o segundo permite a identificaccedilatildeo e a possibilidade de conclusatildeo por meio
das loacutegicas da identidade e natildeo-contradiccedilatildeo Aparentemente o primeiro natildeo resulta em nenhum
avanccedilo imediato a respeito de assuntos praacuteticos ou na dissoluccedilatildeo de questotildees teoacutericas enquanto
o segundo iraacute provavelmente resolver problemas de quase todos os tipos no campo pragmaacutetico
e em toda sorte de adversidades naturais e sociais Por meio da loacutegica natural do ser humano
social eacute bastante evidente qual ponto de vista deve ser eleito no intuito de estabelecer a
coexistecircncia mais faacutecil e paciacutefica aquela que afasta o homem da falta de fundamento da
existecircncia ou seja do abismo existencial da afliccedilatildeo que eacute existir
5 Conforme cita Platatildeo no Craacutetilo ldquotodas as coisas estatildeo em processo e nada permanece paradordquo (τά ὄντα ἱέναι
τε πάντα καὶ μένειν οὑδέν) (PLATO 1997 119-120 Craacutetilo 401d-402a) (KIRK E RAVEN 1957 197) Kirk e Raven
ponderam ainda que se trata de um momento ldquoOnde φύσις provavelmente natildeo significa lsquonaturezarsquo mas lsquoas coisas
em sua verdadeira constituiccedilatildeorsquordquo (IDEM IBIDEM 184) 6 ldquoO uacutenico caminho de inquiriccedilatildeo que pode ser pensadordquo (αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι) (KIRK E RAVEN
1957 269) Haacute uma anaacutelise mais detalhada acerca do toacutepico em Ciacutecero Cunha Bezerra ldquoParmeacutenides y la
univocidad del serrdquo Caacutetedra v 1 (2003) 33-48
34
Eacute possiacutevel especular que com a ausecircncia de um princiacutepio solidamente identificado e
natildeo-contraditoacuterio quiccedilaacute nem mesmo uma regra gramatical linguiacutestica poderia ser estabelecida
dando margem mesmo agrave impossibilidade de comunicaccedilatildeo Igualmente tampouco se poderia
delinear uma corrente de haacutebitos pessoais compatiacuteveis aos costumes sociais desabilitando toda
e qualquer eacutetica ou ciecircncia poliacutetica pela qual se pode regulamentar a conduta humana Com a
perspectiva de um devir total e assunccedilatildeo da diferenccedila a presenccedila de certo caos eacute inegaacutevel Com
a fundaccedilatildeo de uma estrutura loacutegica todavia eacute possiacutevel organizar e controlar os pensamentos e
accedilotildees do ser humano e sua convivecircncia social Contudo natildeo necessariamente esta postura iraacute
levar a humanidade para as escolhas mais coerentes ndash e a histoacuteria pode comprovar isto inuacutemeras
vezes O abandono da multiplicidade de perspectivas sobretudo as supracitadas (uma em
detrimento de outra) parece ter dirigido a histoacuteria por vias pouco luacutecidas e por vezes mesmo
autodestrutivas
Mas a anaacutelise da histoacuteria fatual natildeo eacute o que realmente interessa aqui tampouco a
atribuiccedilatildeo de uma culpa ou indicaccedilatildeo de um erro neste ou naquele ponto de vista O que
interessa aqui eacute como identificar a predileccedilatildeo loacutegica do pensamento ocidental com o cerne de
sua postura contemporacircnea e inquirir se eacute possiacutevel (ou se jaacute foi tomado) um caminho de
pensamento distinto e quais os resultados da confrontaccedilatildeo de um ponto de vista com o outro
Para isto eacute preciso retomar uma anaacutelise da histoacuteria da ontologia observando a maneira pela
qual ela se movimenta intriacutenseca e extrinsecamente Dentro das possibilidades de eleiccedilatildeo de um
caminho interpretativo opto aqui em um primeiro momento por absorver a histoacuteria e criacutetica
da metafiacutesica feita por Heidegger durante o seacuteculo vinte com o fito de deixar um pouco mais
evidente o problema fundamental da indistinccedilatildeo entre ser e ente que eacute sem embargo o pontapeacute
inicial de toda a contenda Muito embora seja possiacutevel descortinar a histoacuteria do pensamento
ocidental mediante distintos autores a ecircnfase na nomeada questatildeo do ldquoesquecimento do serrdquo
serve sobremaneira bem ao propoacutesito desta tese
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Portanto em primeiro lugar eacute preciso considerar que embora ilustrativo Martin
Heidegger passou ao largo de resolver os problemas suscitados pela histoacuteria das ideias Antes
ele desenvolveu problemaacuteticas ainda mais insoluacuteveis e como se natildeo bastasse propocircs novos
enigmas A maior dentre todas as dificuldades talvez ainda precise aguardar muito tempo para
ser descortinada Durante um longo periacuteodo o entretenimento geral dos eruditos se contentou
em traccedilar um denominador comum dentre as vaacuterias questotildees pertinentes aos problemas de sua
filosofia em um movimento enciclopeacutedico quiccedilaacute tatildeo importuno quanto improfiacutecuo de decifrar
seu pensamento Mais conveniente talvez seja simplesmente resguardar o segredo de certas
passagens e aguardar a maturaccedilatildeo necessaacuteria para interpelaacute-las independentemente da espera
suscitada por tal postura
Ainda assim alguns pontos merecem ser postos em relevo e sobre eles decerto vale
despender alguma energia no esforccedilo de meditar acerca de seu sentido Certos trabalhos
compostos por Heidegger guardam de uma soacute vez todo o peso de sua leitura da realidade
notadamente em trechos sutis e aparentemente inofensivos Em momentos nos quais o leitor se
daacute por satisfeito em compreender um posicionamento aparentemente simples e historial como
pueril revisatildeo da histoacuteria da filosofia aiacute mesmo se lhe eacute possiacutevel abrir uma brecha para absorver
a atitude fundamental de seu pensamento Heidegger sempre foi um historiador da filosofia e
natildeo renegou em momento algum o peso de um ofiacutecio como este pelo contraacuterio coube-lhe fazecirc-
lo por diversas vezes e em distintos modos Mesmo quando seus ensaios e conferecircncias se
projetavam a um tema especiacutefico e natildeo a um autor a forte presenccedila de suas interpretaccedilotildees da
histoacuteria da filosofia eacute inegaacutevel Cabe ao propoacutesito desta tese realccedilar um exemplo que torne liacutecito
ilustrar uma fissura por onde seja possiacutevel se esgueirar ateacute a fonte da emanaccedilatildeo especulativa
acerca do sentido da histoacuteria da filosofia e do desenvolvimento do pensamento ocidental
sinocircnimos para o que conveacutem nomear metafiacutesica
36
Aos 13 de novembro de 1935 como sabem os leitores assiacuteduos de Heidegger foi
pronunciada uma conferecircncia preparada para a Kunstwissenschaftlichen Gesellschaft de
Freiburg im Breisgau7 Der Ursprung des Kunstwerkes se tornou de forma veloz e viral um
trabalho amplamente comentado no circuito acadecircmico em geral principalmente no campo da
esteacutetica filosoacutefica e teorias da arte O ponto de vista quase unacircnime dos receptores do trabalho
assentou na interpretaccedilatildeo do texto como uma tese a respeito da arte como ldquoposta em marcha da
verdade enquanto desvelamentordquo uma frase natildeo tatildeo simples de ser decifrada mas repetida
quase como uma foacutermula automaacutetica que se tornou rapidamente um emblemaacutetico clichecirc e uma
resposta imediata agrave pergunta pelo sentido da arte em Heidegger
A popular obra de Michael Inwood A Heidegger Dictionary (1999) destaca
enfaticamente o caraacuteter essencial da proposiccedilatildeo-chave quando pontua no mesmo sentido que
ldquoA obra de arte eacute mais bem um projeto que abre um mundo no qual escolhas podem ser feitas
A verdade a revelaccedilatildeo do lsquoserrsquo eacute o configurar em uma obra e configurar para obra iluminando
o mundo e a terra naquilo que neles perdurardquo (INWOOD 1999 18) Inwood ressalta a
proximidade encontrada por Heidegger entre o termo alematildeo ldquoproteger manterrdquo (bewahren) e
a proacutepria palavra ldquoverdaderdquo (Wahrheit) embora os termos natildeo necessariamente estejam
etimologicamente conectados Ele aponta para a ldquopreservaccedilatildeordquo como elemento pelo qual ldquoA
arte eacute o deixar-acontecer da chegada da verdade do ser enquanto talrdquo (IDEM IBIDEM) com especial
atenccedilatildeo para o proacuteprio fazer (ποίησις) da arte e particularmente da poesia Haacute contudo uma
seacuterie de consideraccedilotildees mais sutis a serem levadas em consideraccedilatildeo nas conferecircncias de
Heidegger proporcionando uma anaacutelise um pouco mais cuidadosa do que estaacute propriamente
em jogo quando Heidegger sobreleva a questatildeo da obra de arte
7 O mesmo trabalho sofreu novas releituras durante todo o ano de 1936 sendo reapresentado respectivamente na
Einladung der Studentenschaft der Universitaumlt em Zuumlrich durante o mecircs de janeiro e na Deutschen Hochstift em
Frankfurt am Main entre novembro e dezembro O ciclo de conferecircncias recebeu ediccedilotildees retrabalhadas em 1956 e
1960 publicadas pela Reclam de Stuttgart e sendo incluiacutedo em 1977 no tomo Holzwege da Gesamtausgabe
37
O editor do volume Holzwege Friedrich-Wilhelm von Hermann dedicou toda uma obra
agrave anaacutelise temaacutetica envolta naquele escrito publicando em 1980 o livro Heideggers Philosophie
der Kunst Em algumas de suas consideraccedilotildees mais amplas sobre as conferecircncias de Heidegger
Hermann atenta para o fato da questatildeo da obra de arte ser levantada a partir de um problema
desdobrado pela ontologia fundamental Hermann observa a problemaacutetica geral do escrito
desde o estabelecimento do ldquoserrdquo como ldquoacontecimentordquo (Ereignis) Conforme ele pondera
trata-se de um trabalho contemporacircneo aos Beitraumlge zur Philosophie (1936-38) Para Hermann
a questatildeo em torno ao ldquoserrdquo como ldquoacontecimentordquo (Ereignis) estende-se em Der Ursprung des
Kunstwerkes por meio de quatro outros problemas (1) o estabelecimento constitutivo da arte
(2) da obra de arte (3) da criaccedilatildeo artiacutestica e (4) da compreensatildeo da arte (cf HERMANN 2001 7)
Contudo circunscrita agrave conferecircncia sobre a arte estaacute a elaboraccedilatildeo da passagem da discussatildeo em
torno agrave verdade do ser para o ldquopensamento da histoacuteria do serrdquo (seinsgeschichtliches Denken)
Trata-se especificamente do momento de transiccedilatildeo do pensamento de Heidegger8 Em
linhas gerais Der Ursprung des Kunstwerkes ressalta uma preocupaccedilatildeo da lida do homem para
com a essecircncia da verdade mediante a obra de arte enquanto coisa Haacute toda uma histoacuteria dos
efeitos pertinentes agraves anaacutelises de Heidegger da obra de Vincent van Gogh9 aleacutem de inuacutemeras
teorizaccedilotildees em torno ao poder salvador da obra de arte Todavia salta aos olhos uma passagem
muito mais peculiar (para qual gostaria de chamar a atenccedilatildeo agora mesmo) qual seja aquela
na qual Heidegger aborda o problema da transposiccedilatildeo da experiecircncia fundamental grega para a
intepretaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo do pensamento romano-latino (cf HEIDEGGER 1977 7)
8 A perspectiva da ontologia fundamental de Sein und Zeit (1927) continuada no curso Grundprobleme der
Phaumlnomenologie ministrado em Marburg durante o semestre de veratildeo de 1927 receberia seu desenvolvimento
desde uma visatildeo historial-reflexiva jaacute na primavera de 1932 ocasiatildeo na qual conforme Hermann satildeo elaboradas
as primeiras linhas de Beitraumlge zur Philosophie redigido entre 1936 e 1938 mas publicado postumamente somente
em 1989 9 Em uma das mais famosas passagens de Der Ursprung des Kunstwerkes Heidegger interpreta os sapatos de um
dos quadros de Vincent van Gogh (natildeo identifica qual todavia) descortinando com isto o cotidiano campesino e
oferecendo uma leitura da realidade a partir de aiacute Uma criacutetica direta foi apresentada por Meyer Shapiro (em The
Still Life as a Personal Object ndash A Note on Heidegger and van Gogh 1968 e ainda em Further Notes on Heidegger
and van Gogh 1994) onde ele sustenta que os sapatos retratados por van Gogh natildeo satildeo de uma pessoa do campo
mas as botas do proacuteprio artista apontando com isto graves mal entendidos na interpretaccedilatildeo de Heidegger
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Ainda no iniacutecio do escrito Heidegger busca a compreensatildeo mais geral da ldquocoisardquo
abordando como exemplo um bloco de granito A despeito de suas muacuteltiplas caracteriacutesticas ele
enfatiza o ldquoao redorrdquo (das herum sich) pelo qual suas propriedades se agrupam podendo entatildeo
falar de algo como um ldquonuacutecleordquo (Kern) da coisa Esse nuacutecleo de acordo com Heidegger
chamaram-lhe os gregos claacutessicos de ὑποκείμενον Embora ilustrativa a descriccedilatildeo eacute decerto
passiacutevel de baixo niacutevel de representaccedilatildeo posta sua exposiccedilatildeo pouco objetiva O termo eacute mesmo
tatildeo controverso quanto as proacuteprias ideias de ser e ente dentro da perspectiva grega Ela possui
uma carga conceitual talvez natildeo tatildeo difiacutecil de ser desvelada mas que tampouco garante exatidatildeo
e lucidez em sua abordagem variando de eacutepoca para eacutepoca de filoacutesofo para filoacutesofo de
interpretaccedilatildeo para interpretaccedilatildeo Ademais vaacuterias histoacuterias metaforizam o sentido do termo
ὑποκείμενον Uma das mais conhecidas (conto-a sem embasamento ou referecircncias quiccedilaacute
mesmo de maneira inapropriada) relata que certa vez um rei se espantara ao conhecer a obra de
um escultor haacutebil em reproduzir as formas da natureza em blocos de maacutermore Tamanha era a
destreza do artista que se postas lado a lado a escultura e a coisa mesma confundiam-se os
espectadores exceto pelo caraacuteter inanimado da escultura Intrigado o rei mandou chamar o
escultor e perguntou-lhe como fazia para reproduzir com tanta fidelidade o mundo em torno
Natildeo sabendo explicar senatildeo por meio da praacutetica pediu um bloco de maacutermore e agraves vistas do rei
reproduziu perfeitamente um cavalo em tamanho real faltando-lhe apenas galopar O rei lhe
questionou ldquoComo o fizesterdquo e respondeu o escultor ldquofaacutecil apenas retirei do bloco de
maacutermore o que natildeo era cavalordquo O ὑποκείμενον seria portanto aquele elemento sem o qual o
cavalo natildeo seria cavalo ou sem o qual uma coisa natildeo eacute uma coisa Contudo o grande problema
envolto nas tentativas de atingir um entendimento deste sentido por meio de um silogismo uma
loacutegica racional ou uma explicaccedilatildeo conceitual (e natildeo por uma metaacutefora ou estoacuteria) consiste na
dificuldade em elaborar uma equaccedilatildeo que exija menos esforccedilo do ouvinte capacitando uma
lucidez mais ampla e geral que a todos possa atingir
39
Toda definiccedilatildeo a partir de uma predicaccedilatildeo direta pode se configurar ainda mais obscura
e lanccedilar aquele que se propotildee a entender o conceito para um mero encadeamento e conexatildeo de
termos sem contudo realmente promover a experiecircncia do sentido da palavra Sem embargo o
Impeacuterio Romano foi a eacutegide da popularizaccedilatildeo e introspecccedilatildeo do mundo grego competindo-lhes
a tarefa de transpor ao modo latino de pensar os sentidos das meditaccedilotildees gregas Sobre isto
Heidegger ostenta uma posiccedilatildeo bastante firme e vale a pena destacar por completo o trecho no
qual se lhe pode observar sua atitude
Estas denominaccedilotildees natildeo eram meros nomes Em sua fala a experiecircncia fundamental
grega do ser do ente no sentido de sua presenccedila mostrava o que natildeo se podia mostrar
Por meio dessa disposiccedilatildeo instaura-se a interpretaccedilatildeo oficial da coisidade da coisa e
a interpretaccedilatildeo ocidental do ser do ente Comeccedila com a traduccedilatildeo das palavras gregas
para o pensamento romano-latino ὑποκείμενον torna-se subjectum ὑπόστασις torna-
se substantia συνβεβηκός torna-se accidens O processo desta traduccedilatildeo dos nomes
gregos para a liacutengua latina natildeo se daacute sem consequecircncias e nos dias de hoje toma-se
ainda a mesma compreensatildeo Antes pelo contraacuterio por detraacutes da traduccedilatildeo
aparentemente literal haacute um traslado da experiecircncia grega para outro modo de pensar
O pensamento romano assume para si as palavras gregas sem a devida
correspondecircncia com a experiecircncia originaacuteria do que dizem sem a palavra grega A
falta de fundamento do pensamento ocidental comeccedila com essas traduccedilotildees (IDEM
IBIDEM 7-8)
Responsabilizar o pensamento romano-latino pela queda do Ocidente no abismo da falta de
fundamento delega a Heidegger um encargo de peso formidaacutevel cujo maior perigo talvez seja
o de natildeo se ambientar aqui ou ali dentro deste ou daquele territoacuterio neste ou naquele lugar
mas na posiccedilatildeo do meio na esfera do entre no desenho do limite da linha da fronteira
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A direccedilatildeo do pensamento de Heidegger a partir desta passagem claramente se constitui
desde uma divisatildeo da metafiacutesica ocidental em dois momentos muito distintos embora
interligados A emboscada se encontra na percepccedilatildeo de que todo e qualquer ocidental eacute jaacute
sempre forccedilado a se movimentar na esfera da ontologia latina ao passo que o retorno aos
fundamentos da ontologia grega eacute antes de tudo calcar terreno em solo incerto e regiatildeo
desconhecida Estabelecer uma ponte que permita ao ser humano contemporacircneo entender a
proveniecircncia de sua apreensatildeo da existecircncia eacute um roteiro deveras ousado Resta saber como eacute
possiacutevel ainda pensar os conceitos fundamentais da metafiacutesica dentro de sua propriedade sem
causaacute-los algum tipo de dano que faccedila seu sentido se perder ser obscurecido ou transviado
A partir da colocaccedilatildeo do problema da obra de arte enquanto coisa Heidegger questiona
o que enfim se compreende pelo termo mesmo ldquocoisardquo quando se compromete com a ideia de
tentar envolvecirc-lo conceitualmente (a partir de ὑποκείμενον ὑπόστασις e συνβεβηκός) e desde
aiacute extrair uma explicaccedilatildeo Sobre isto Hermann comenta ldquoComo podemos ver ainda mais e
melhor resolver o problema da obra de arte se torna um problema ontoloacutegico ndash isto eacute em
primeira instacircncia o problema ontoloacutegico do ser-res da resrdquo (HERMANN OP CIT 87) entenda-se
ainda o problema da coisidade da coisa Ele ainda complementa deixando ver a postura exigida
pela tarefa de entender a ontologia grega ldquoPortanto explicar o pensamento grego significa
antes de tudo revelar novamente a experiecircncia de estar no lugar em que se encontra a expressatildeo
de acordo com o fio condutor da palavra filosoacutefica gregardquo (IDEM IBIDEM 93-94) Sem embargo
conforme aponta Hermann (em coerecircncia com Heidegger) o ofiacutecio de introduzir a filosofia
grega (ou se introduzir na filosofia grega sua ontologia e berccedilo da metafiacutesica) constitui-se
desde o caminhar ao lado do fio condutor de sua expressatildeo e manifestaccedilatildeo A caminhada talvez
seja ela mesma o ldquoestar no lugar em que se encontra a expressatildeordquo ou o espaccedilo do ldquoentrerdquo a
ldquolinha de fronteirardquo
41
Algumas dezenas de leituras podem ser desdobradas desde a interpretaccedilatildeo de Heidegger
do lugar de transiccedilatildeo da histoacuteria do ser O itineraacuterio do pensamento de Heidegger legou aos
fieacuteis depositaacuterios de sua vasta caminhada a tarefa ingloacuteria de dar uma passo aleacutem Gostaria de
destacar aqui um direcionamento um pouco menos ousado nem por isto ingecircnuo Considerar
uma histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica em Heidegger eacute procurar pela fenda cuja passagem
encaminha diretamente ao salto no abismo da superaccedilatildeo da metafiacutesica embora natildeo fique ainda
claro o significado destes termos Ademais a intenccedilatildeo aqui eacute justamente esta esclarecer os
enlaces desse percurso histoacuterico nomeado sob o signo da metafiacutesica agrave luz da trajetoacuteria
interpretativa de Heidegger
Justamente sob o tiacutetulo Itineraacuterio do Pensamento de Heidegger (1965) Emmanuel
Carneiro Leatildeo apresenta sua traduccedilatildeo para o portuguecircs da Einfuumlhrung in die Metaphysik (1935)
de Heidegger ndash segundo ele nem de perto uma obra de faacutecil acesso Em primeiro lugar pela
impossibilidade geral de uma introduccedilatildeo em filosofia no sentido amplo Em outras palavras
natildeo haacute caminho de iniciaccedilatildeo agrave filosofia como se houvesse ainda um siacutetio no qual se a conquista
Haacute na verdade o puro levantar de questotildees responsaacuteveis por conduzir o pensamento para dentro
da proacutepria filosofia Carneiro Leatildeo elucida tal dificuldade quando especifica o tiacutetulo da obra
Introduzir agrave metafiacutesica eacute movimentar-lhe a questatildeo fundamental de maneira a
conduzi-la (-ducere) para dentro (-intro) das origens donde a metafiacutesica procede Um
esforccedilo de pensamento que nada tem de horizontal e progressivo Cujo movimento
se processa antes no sentido vertical e regressivo (CARNEIRO LEAtildeO 1999 10)
A filosofia busca o movimento imputado para originaacute-la para com isto retornar agraves suas origens
proacuteprias Em segundo lugar e natildeo menos importante a obra ainda guarda certa inacessibilidade
devido agrave intencional ambiguidade de um periacuteodo conturbado de transiccedilatildeo do pensamento de
Heidegger (tambeacutem evidenciado por Hermann)
42
Eacute preciso movimentar a questatildeo fundamental da metafiacutesica para conduzi-la para dentro
de suas origens Agora bem destacar a questatildeo fundamental eacute o primeiro passo de Heidegger
na obra quando questiona ldquoPorque haacute em geral o ente e natildeo antes nadardquo (HEIDEGGER 1983b
3) Um adendo eacute necessaacuterio ao leitor lusoacutefono Carneiro Leatildeo em sua traduccedilatildeo explica o
emprego do termo ldquoenterdquo para traduzir o alematildeo Seiendes justificando o uso da forma erudita
referida ao latim ens entis para salvaguardar o caraacuteter de tudo que eacute independentemente de
seu modo de ser (cf CARNEIRO LEAtildeO OP CIT 77 nota) Ponderando isto a leitura de Carneiro
Leatildeo segue um rumo bastante simples e esclarecedor ele afirma
O homem natildeo pode existir senatildeo em comeacutercio e comunhatildeo com o mundo dos entes
Ente significa tudo que de algum modo eacute o homem as coisas os acontecimentos ateacute
mesmo o Nada enquanto eacute um Nada ieacute enquanto tem um significado () (IDEM IBIDEM
11)
A forccedila responsaacutevel por manter a decisatildeo a respeito dos entes depende diretamente da
capacidade de enxergar suas distinccedilotildees Em um compecircndio unitaacuterio a base de sustentaccedilatildeo no
comeacutercio com os entes se daacute na e pela linguagem mediante a qual o homem simplesmente
afirma eacute Uma afirmaccedilatildeo aparentemente simples guarda contudo uma relaccedilatildeo complexa e
ambiacutegua talvez mesmo em decorrecircncia de sua extrema simplicidade
A existecircncia humana se agita dentro da tensatildeo entre imanecircncia e transcendecircncia
porque o homem existe enquanto in-siste no domiacutenio da Verdade do Ser ieacute a
vicissitude instaurada pela diferenccedila irredutiacutevel e referecircncia necessaacuteria entre ente e
ser A tarefa do pensamento natildeo eacute procurar sair decircsse ciacuterculo de diferenccedila e referecircncia
e sim necircle ingressar de maneira a poder regressar ateacute a fonte originaacuteria de sua tensatildeo
e unidade (ID IBID 15)
43
O atino para o ingresso ao interior da tarefa do pensamento deixa bastante evidente a intitulaccedilatildeo
da obra Eacute possiacutevel conceber a empreitada em regressar ao fundamento desde o qual a metafiacutesica
eacute ela mesma a proveniecircncia da tensatildeo em torno agrave unidade da existecircncia perante a multiplicidade
Eacute preciso destarte compreender que ldquoSoacute poderemos entender os pensamentos os conceitos
ou as explicaccedilotildees dados na medida em que nos ex-pusermos e dis-pusermos aquilo que se pensa
que se concebe ou que se explicardquo (ID IBID 29) acompanhando assim os passos de Heidegger
e verificando sua coerecircncia teoacuterica de levar colocar e se pocircr no estado da questatildeo
Esta mesma ambivalecircncia eacute tambeacutem destacada por Heidegger quando ele se refere ao
ambiacuteguo das formas essenciais do espiacuterito Natildeo se trata portanto de uma dedicaccedilatildeo integral agraves
possibilidades de captar de maneira exclusivamente formal os procedimentos que envolvem os
estudos mas de perceber (αἴσθησις) e experienciar os fenocircmenos Heidegger adverte ainda
Tomada na totalidade de seu sentido mais cru a filosofia sempre lida com o
fundamento do ente de tal maneira que o proacuteprio ser humano tem enfaticamente a
experiecircncia de seu significado e propoacutesito Por isto agora se vislumbra facilmente a
amplitude da filosofia que poderia e deveria proporcionar o fundamento da existecircncia
da eacutepoca histoacuterica atual e futura pela qual se estabelece a cultura Com tais
espectativas e demandas o estado e a essecircncia da filosofia satildeo sobrecarregadas Na
maior parte das vezes essa demanda excessiva se mostra pela forma de uma censura
da filosofia Diz-se por exemplo porque a metafiacutesica natildeo participou na preparaccedilatildeo
para a revoluccedilatildeo ela deve ser rejeitada Isto eacute tatildeo espirituoso quanto dizer que porque
vocecirc natildeo pode voar com um tocircrno portanto este deve ser abandonado A filosofia
natildeo provecirc diretamente forccedilas nem modos de accedilatildeo e criaccedilatildeo para ajeitar a condiccedilatildeo
histoacuterica simplesmente pelo motivo de dizer respeito apenas a poucos Quais poucos
Aqueles que transformam criativamente convertendo os fins Afetando uma vastidatildeo
apenas indiretamente e nunca fazendo rodeios ateacute certo ponto onde finalmente desde
o longo esquecimento da filosofia degenera-se como autocompreensatildeo da existecircncia
(HEIDEGGER OP CIT 12)
44
Heidegger aponta certa responsabilidade da filosofia na formaccedilatildeo da cultura e direcionamento
da eacutepoca presente e futura A chamada ldquoessencializaccedilatildeo da filosofiardquo eacute em grande parte
responsaacutevel pela tomada de rumo e pela constituiccedilatildeo da histoacuteria ateacute mesmo por seu abandono
Agrave ela estaacute diretamente conectada a ldquoessencializaccedilatildeo do serrdquo e maneira pela qual a filosofia se
apresenta como contemplaccedilatildeo dos fundamentos do ente
Heidegger explica em pormenores a diferenccedila entre ser e ente quando expotildee a gramaacutetica
e etimologia da palavra Certa advertecircncia contudo clama a petrificaccedilatildeo das normas
gramaticais ocas e vazias destituindo a Escola do Mundo do Espiacuterito que circunda a
morfologia dos termos e se restringindo tatildeo somente agrave transmissatildeo de regras do uso da palavra
Neste sentido a maneira pela qual se ostenta a ldquogrande gramaacuteticardquo eacute em si mesma o processo
de substantivaccedilatildeo do Ocidente visto como o cerrar das fronteiras como delimitaccedilatildeo
Tambeacutem em Einfuumlhrung in die Metaphysik Heidegger insiste no argumento exprimido
em Der Ursprung des Kunstwerkes seguindo o fluxo comentado acima quando afirma outra
vez ldquoQue essas formas gramaticais natildeo dissecaram desde toda eternidade uma linguagem
absoluta enquanto controle elas satildeo de fato erigidas de uma particular interpretaccedilatildeo da liacutengua
grega pela liacutengua latinardquo (ID IBID 56) Em outras palavras a linguagem possibilita sendo ela
tambeacutem um ente manipulaccedilatildeo e controle por sobre suas formas Por este motivo eacute possiacutevel
transmitir o conhecimento de uma liacutengua estrangeira somente com o ensino da gramaacutetica
mesmo para pessoas que nunca realmente entraram em contato com essa determinada liacutengua
Ou ainda aprender um idioma antigo natildeo mais utilizado ou cujo vigor ou esplendor se apagou
como o latim o grego claacutessico ou o sacircnscrito antigo sem ter a possibilidade de experenciaacute-los
no cotidiano O domiacutenio teoacuterico de uma liacutengua pode permitir ainda intuiccedilotildees e analogias a
respeito da experiecircncia que esta liacutengua provocava em seus falantes originais sem contudo
garantir exatidatildeo das disposiccedilotildees ou estados de acircnimo referidos pelos termos
45
Dentro da gramaacutetica e morfologia do ser Heidegger evidencia que existe um duplo
sentido para a palavra dentro de seu entendimento como consistecircncia (Staumlndigkeit) qual seja
a) o estar em si mesmo enquanto proveniente de si mesmo e b) o que perdura constantemente
enquanto tal Consistecircncia eacute a palavra-chave de sua leitura do termo ser dentro da circunvisatildeo
grega claacutessica Heidegger aponta que justamente por isso o natildeo-ser denota a desistecircncia ou a
saiacuteda da existecircncia ou ainda o abrir matildeo do ldquosalto para aleacutemrdquo Jaacute a etimologia da palavra ser
revela como os sentidos manifestos pela gramaacutetica e morfologia foram confundidos
historicamente Heidegger expotildee trecircs raiacutezes do termo uma sacircnscrita (es asus) outra indo-
germacircnica (bhuuml) e uma apenas germacircnica (sein) Conforme suas interpretaccedilotildees elas se
desdobram respectivamente em um sentido de ldquoviverrdquo ldquosurgirrdquo e ldquopermanecerrdquo Tratam-se de
verbos distintos todavia Heidegger natildeo citas as fontes das quais ele extrai tais etimologias
Ateacute onde eacute possiacutevel investigar o termo sacircnscrito mais proacuteximo ao que ele considera es
asus seria asti (अनतत) cuja raiz ās (आस) possui incontaacuteveis significados dentre os quais ldquoexistirrdquo
ldquoestar presenterdquo ldquopermanecerrdquo entre vaacuterios outros Aparentemente eacute a origem do indo-europeu
es cujo similar em grego seria o morfema ἐστί e em latim esse (sobremaneira visiacutevel no
portuguecircs estar) Jaacute a palavra bhuuml provavelmente indicada por Heidegger como ldquoindo-
germacircnicardquo em consequecircncia da formataccedilatildeo do verbo ser como ldquobinrdquo ldquobistrdquo (ou ainda ist e em
inglecircs ldquoisrdquo) eacute tambeacutem ela sacircnscrita (bhū भ) e estaacute presente em vaacuterias outras liacutenguas indo-
europeias (como no inglecircs being) Seu significado mais geral seria ldquoserrdquo ou ldquoexistirrdquo embora
aponte tambeacutem para ldquoacontecerrdquo ou ldquoperceberrdquo aleacutem de outros sentidos Sein tambeacutem pode ser
rastreado ateacute certo ponto em sua origem germacircnica no mittelhochdeutsch sīn e no
althochdeutsch wesan derivado da raiz sacircnscrita ves (वस) que daria as formas de Wesen
(essecircncia) ou (war o preteacuterito de Sein ser) em alematildeo De qualquer forma a questatildeo leva
imediatamente ao que Heidegger chama de ldquoessencializaccedilatildeo do serrdquo O motivo eacute simples viver
surgir e permanecer satildeo manifestaccedilotildees que interpelam o ser humano inevitavelmente
46
Contudo o ser ao interpelar o humano natildeo se manifesta antes se oculta esconde sua
proveniecircncia mostra-se ambiacuteguo e pela metade A forma de manifestaccedilatildeo do ser passiacutevel de
ser apreendida como uma realidade existente daacute-se por meio de sua participaccedilatildeo na realidade
presente qual seja ente (seu particiacutepio presente) A predileccedilatildeo pelo ente nasceria justamente
de seu caraacuteter manipulaacutevel embora haja uma conclusatildeo que clama as variaccedilotildees da palavra ser
e seu comportamento com respeito ao ldquoser em si mesmordquo evocado de modo distinto de outros
substantivos e verbos com relaccedilatildeo aos seus respectivos entes A eleiccedilatildeo de uma manifestaccedilatildeo
do ser diz muito sobre o modo relacional do humano com a conduccedilatildeo de sua existecircncia10
Alguns anos antes da composiccedilatildeo da Einfuumlhrung em um compecircndio posteriormente
publicado sob o tiacutetulo Sein und Wahrheit (1933-34) Heidegger se aproximou sistematicamente
da constituiccedilatildeo histoacuterica da metafiacutesica A obra eacute todavia pouco comentada O motivo eacute simples
haacute certo complexo ou trauma envolto na abordagem de um texto do periacuteodo da ascensatildeo do
Partido Nazi e do consentimento ao seu propoacutesito inicial Embora haja certos traccedilos de sintonia
com o discurso do momento pelo qual o povo alematildeo atravessava natildeo haacute nenhum resquiacutecio em
Heidegger dos preconceitos intriacutensecos ao desenrolar do totalitarismo Dentro do ambiente
promissoramente inovador Heidegger escreve ldquoToda gestatildeo essencial se vivifica desde uma
grande determinaccedilatildeo oculta no fundamentordquo (ID 2001 3) As palavras de Heidegger parecem
indicar antes de uma referecircncia ao destino da Alemanha o fato de que a questatildeo fundamental
estaacute contida no proacuteprio fundamento Por este motivo Heidegger ainda sugere um ldquo() caminho
histoacuterico na essecircncia da filosofia ndash e natildeo se poderia ter outro e isto justamente porque a filosofia
eacute ela mesma o acontecimento fundamental da histoacuteria da existecircnciardquo (ID IBIDEM 17) Resta
saber portanto como esse acontecimento fundamental se constitui como metafiacutesica
10 Heidegger justifica este ponto na sua apresentaccedilatildeo do conceito de Cura Sorgen em Sein und Zeit que embora
seja de suma importacircncia uma explanaccedilatildeo mais cuidadosa tomaria aqui e agora demasiado tempo mas que
precisa ao menos ser mencionada Seria esta caracteriacutestica originaacuteria do ser humano Cura Cuidado (Sorgen)
aquilo que o impulsionaria a preservar sua condiccedilatildeo evitando a queda nos abismos existenciais e a confusatildeo
generalizada (cf HEIDEGGER OP CIT 196-200)
47
Quando a tarefa eacute compreender a histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica realizada por Heidegger
insisto nunca eacute demasiada repeticcedilatildeo retomar as primeiras linhas de Sein und Zeit Vale lembrar
uma vez mais a disputa titacircnica a respeito da essecircncia (γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας) que
envolve os questionamentos aparentemente desprestigiados da metafiacutesica Conforme Heidegger
a maneira pela qual o problema perdurou sofreu alteraccedilotildees de Platatildeo e Aristoacuteteles ateacute sua
formulaccedilatildeo mais sofisticada na Wissenschaft der Logik (1812-16) de Georg W F Hegel Em
Sein und Wahrheit eacute tambeacutem a discussatildeo com Hegel que orienta a anaacutelise da metafiacutesica
tradicional Ateacute alcanccedilar Hegel entretanto Heidegger se preocupa em delinear as feiccedilotildees da
perda de sentido da μετὰ τὰ φυσικά aristoteacutelica na recepccedilatildeo tardia de seus escritos onde
ldquoGrandeza e iacutempeto desaparecem tanto na singularidade do questionamento criativo quanto na
designaccedilatildeo conceitual a praccedila desocupada daacute lugar agrave atividade de uma escola ndash somente
sobraram palavras e conceitos mas natildeo o poder estimulante da coisardquo (ID IBID 21)
Para Heidegger a unificaccedilatildeo do termo grego na palavra latina metaphysica natildeo eacute
acompanhada somente de uma correspondecircncia senatildeo ao mesmo tempo de uma mudanccedila em
seu significado Inerente agrave transformaccedilatildeo de seu sentido estaacute a apropriaccedilatildeo cristatilde do conceito
imputando um conhecimento suprassensiacutevel (trans physicam) de maior grau de importacircncia e
relevacircncia e diretamente relacionado ao divino Onde antes havia perplexidade na aspiraccedilatildeo agrave
sapiecircncia e observaccedilatildeo da realidade haacute agora um conhecimento humano elevado e suscetiacutevel agrave
confirmaccedilatildeo pela ciecircncia superior Heidegger visa e cita textualmente a formulaccedilatildeo de
Immanuel Kant da metafiacutesica como a ultrapassagem de todos os objetos empiacutericos a fim de
alcanccedilar um conhecimento viaacutevel e puro ou a superaccedilatildeo do conhecimento sensiacutevel pelo
conhecimento suprassensiacutevel11
11 Embora esta premissa esteja presente jaacute na Kritik der reinen Vernunft e em certa medida em suas especulaccedilotildees
preacute-criacuteticas atingindo ainda todos os escritos intercalados agraves duas outras criacuteticas e ainda os posteriores ele parece
se referir agraves conferecircncias de Kant reunidas por Karl Heinrich Ludwig Poumllitz publicadas em Vorlesungen Kants
uumlber Metaphysik aus drei Semestern Max Heine (org) Leipzig Hirzel 1984 (natildeo tenho certeza disto entretanto)
48
Haacute ainda a absorccedilatildeo do direito agrave verdade metafiacutesica pela ontologia claacutessica e neste
sentido Heidegger cita Alexander Baumgarten onde a verdade metafiacutesica eacute o princiacutepio
universal e fundamental em conveniecircncia agrave determinaccedilatildeo do ente enquanto tal Deste modo
conclui que a metafiacutesica se constitui como uma determinaccedilatildeo cristatilde e ideia matemaacutetico-
metoacutedica de fundamentaccedilatildeo nos sistemas metafiacutesicos da modernidade onde ela se apresenta
como conhecimento do ente em seu todo Hegel ocuparia neste sentido o lugar da consumaccedilatildeo
da plenitude da filosofia ocidental na metafiacutesica destacado o caraacuteter teoloacutegico no qual a medida
do saber eacute o ldquoinfinitordquo (perfectum) manifesto enquanto identidade absoluta (perfectissimus)
ou espiacuterito absoluto Por este motivo ao que parece quando se refere agrave histoacuteria da disputa
titacircnica sobre a essecircncia em Sein und Zeit Heidegger aponta a Wissenschaft der Logik de Hegel
como ponto de chegada Ali a loacutegica eacute entendida como ciecircncia do pensamento todavia natildeo
como ciecircncia responsaacutevel por regular o pensamento mas como fundamento do conceito e em
uacuteltima instacircncia fundamento do ente em si mesmo Heidegger explica dizendo que em Hegel
ldquoA metafiacutesica como ciecircncia do ser do ente eacute lsquoLoacutegicarsquo e esta Loacutegica eacute Loacutegica lsquodorsquo Absoluto isto
eacute de Deus Genitivo deliberadamente ambiacuteguo Natildeo apenas um genitivus objectivus Deus
representado mas sim genitivus subjectivus a essecircncia de deus como presenccedila do Espiacuterito
Absolutordquo (ID IBID 76) Em um momento final da exposiccedilatildeo da questatildeo fundamental da
filosofia Heidegger faz uma divisatildeo entre a filosofia ocidental em seu princiacutepio e em seu fim
escrevendo que
No princiacutepio a mais profunda necessidade era o questionamento na luta com os
poderes incontrolaacuteveis da verdade e da decepccedilatildeo A filosofia causava o mais alto
poder clarificante da naccedilatildeo e de sua existecircncia Riqueza de decisatildeo momento de
decisatildeo No fim alta bem-aventuranccedila na suspensatildeo das contradiccedilotildees fraqueza de
meros conceitos opostos fracasso e morte de todo questionamento Eternidade vazia
cheia de indecisotildees (ID IBID 77)
49
A eternidade vazia cheia de indecisotildees todavia natildeo soa aqui como algo proveniente de um
descontentamento Pelo contraacuterio emerge desde a simples oposiccedilatildeo de conceitos com o fito de
suspender contradiccedilotildees e evidenciar uma maacutexima clareza e nitidez com o intuito de um suposto
pleno contentamento como se a profunda necessidade de questionamento houvesse sido calada
pela extrema emergecircncia de soluccedilatildeo Um abismo entre a filosofia ocidental em seu princiacutepio e
em seu fim eacute diagnosticado de maneira direta e evidente Longe de apontar culpados ou
referendar uma condenaccedilatildeo agrave metafiacutesica claacutessica Heidegger explica o processo intriacutenseco de
explicaccedilatildeo e complicaccedilatildeo da metafiacutesica evidenciando fatualmente a transiccedilatildeo do pensamento
da histoacuteria do ser da ontologia grega agrave latina A distacircncia que provecirc de clareza a anaacutelise eacute todavia
bastante tendenciosa aos propoacutesitos da ontologia fundamental A maneira pela qual a proacutepria
ontologia se protege com uma complexidade de conceitos dificulta a visualizaccedilatildeo do percurso
histoacuterico e da explanaccedilatildeo esclarecedora
Vale portanto retomar alguns aspectos relevantes embora por vezes sutis da pesquisa
acerca da ontologia na metafiacutesica claacutessica Gostaria de propor um breve desvio que agrave primeira
vista pareceraacute desnecessaacuterio contudo configura-se como extremamente pertinente ao
propoacutesito do capiacutetulo Atualmente as pesquisas voltadas ao estudo da ontologia se restringem
ou bem ao estudo histoacuterico ou bem agraves repercussotildees da metafiacutesica na filosofia contemporacircnea
Via de regra servem de embasamento para questotildees projetadas aos assuntos pertinentes da
eacutepoca vigente A ontologia se torna assim uma ldquoaacuterea da filosofiardquo uma ldquodisciplinardquo ou mesmo
um tronco braccedilo ou ramificaccedilatildeo dos estudos filosoacuteficos Os pesquisadores responsaacuteveis por
esta aacuterea da filosofia desdobram prolegocircmenos e comentaacuterios explicativos aos textos claacutessicos
fundamentando muacuteltiplas outras aacutereas Poucas vezes eacute possiacutevel observar um trabalho sobre
ontologia que realmente conecte seu sentido primaacuterio aos problemas apresentados nos dias de
hoje todavia escavando com devoccedilatildeo algumas pesquisas emergem sobremaneira conexas
50
A ontologia parece ser mesmo ldquoutilizadardquo como ponte para abrir novos caminhos como
por exemplo as discussotildees histoacutericas na anaacutelise do desenvolvimento da cultura as
investigaccedilotildees epistemoloacutegicas na confrontaccedilatildeo das possibilidades de conhecimento as
consideraccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas na constituiccedilatildeo dos haacutebitos e costumes da relaccedilatildeo do ser humano
com as virtudes deveres e utilidades os juiacutezos esteacuteticos na relaccedilatildeo com a obra de arte ou
mesmo as bases psicanaliacuteticas do entendimento do proacuteprio humano e sua relaccedilatildeo com as coisas
e o mundo entorno
Um dos exemplos mais niacutetidos de um pensamento comprometido em discutir a
ontologia por si mesma observando a maneira pela qual as categorias ontoloacutegicas dispotildeem
ainda hoje os modos de estruturar a realidade talvez se apresente nas recentes discussotildees em
torno ao ldquodigitalrdquo e ao ldquovirtualrdquo ou as propostas de uma ldquoontologia digitalrdquo Ouvi falar pela
primeira vez sobre ldquoontologia digitalrdquo por meio de Rafael Capurro em 2009 durante o III
Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica realizado em Natal na Universidade Federal do Rio
Grande do Norte12 Ateacute entatildeo possuiacutea minhas proacuteprias teorias acerca do mundo digital e da
esfera virtual da internet todavia natildeo tinha sequer noccedilatildeo da envergadura do problema e da
maneira pela qual o assunto podia ser pensado desde uma perspectiva ontoloacutegica e natildeo
meramente poliacutetico-ativista ou mesmo teoacuterico-juriacutedica Embora este natildeo seja propriamente o
assunto do capiacutetulo gostaria de abordar o tema como forma de justificar o questionamento pela
ontologia claacutessica para aleacutem da mera constataccedilatildeo historiograacutefica Conforme pude acompanhar
a inquietaccedilatildeo que move os trabalhos se concentra na crenccedila segundo a qual todos os fenocircmenos
podem ser analisados construiacutedos e manipulados sob a condiccedilatildeo de poderem ser digitalizados
12 A discussatildeo de Capurro havia comeccedilado com uma troca de e-mails com Michael Eldred A conversa redundou
em primeira matildeo nos trabalhos de Capurro intitulados Entwurf einer digitalen Ontologie (1999) e Beitraumlge zu
einer digitalen Ontologie (1999) sendo estendida em ulteriores escritos como Interpreting the digital human
(2008) e Einfuumlhrung in die digitale Ontologie (2009) aleacutem do livro publicado por Eldred The Digital Cast of
Being (2009) Provavelmente a discussatildeo ainda prossegue e outros trabalhos foram ou estatildeo sendo publicados
51
Talvez como um chiste mas bastante pertinente e veriacutedico Capurro afirma que
atualmente se algueacutem natildeo estaacute na rede eacute como se natildeo existisse Dando impulso para uma
formulaccedilatildeo inusitada esse est computari em analogia agrave famosa foacutermula de George Berkeley
(esse est percipi) A conclusatildeo bastante perspicaz extraiacuteda por Capurro eacute a de que seria correto
dizer que hoje vemos a realidade no horizonte de sua digitabilidade Uma seacuterie de outros termos
e expressotildees natildeo-convencionais emergem do texto de Capurro como ldquoem tudo que eacute puramente
virtual as coisas consistem essencialmente em bitsrdquo ou a denominaccedilatildeo ldquopitagorismo digitalrdquo
Entretanto todas as definiccedilotildees e determinaccedilotildees estatildeo conectadas ao arcano questionamento em
torno ao ente
O que eacute o ente Esta pergunta fundamental da metafiacutesica natildeo pode ter uma resposta
definitiva a partir da perspectiva de um conhecimento finito sem cair na ilusatildeo
essencialista Isto tem consequecircncias para a problemaacutetica de como pensar uma cultura
digital Uma ontologia digital eacute uma interpretaccedilatildeo possiacutevel do ser dos entes vistos
desde sua digitabilidade No entanto tal ontologia corre sempre o perigo de
transformar-se em uma metafiacutesica digital no momento em que acredita ser a
verdadeira ou uacutenica resposta agrave pergunta pelo ser A ontologia digital eacute uma possiacutevel
compreensatildeo do ser por parte do conhecimento humano finito Todas as regiotildees ou
esferas dos entes satildeo concebidas entatildeo como digitais (CAPURRO 2009 322)
A introduccedilatildeo da digitabilidade para aleacutem da anaacutelise do ldquoserrdquo quantificado pela ciecircncia moderna
confere uma perspectiva nova de experimentaccedilatildeo do ente em sua totalidade Chama atenccedilatildeo o
perigo envolto na transformaccedilatildeo em uma ldquometafiacutesica digitalrdquo na qual uma virada ontocecircntrica
concentraria o poder da verdade enquanto julgamento como oriente agrave pergunta pelo ldquoserrdquo
Talvez o mais importante da anaacutelise de Capurro consista justamente na renovaccedilatildeo desta criacutetica
na qual se chama atenccedilatildeo para a imprecisatildeo especulativa por meio da indefiniccedilatildeo do virtual
52
Natildeo eacute difiacutecil perceber que o mundo digital oferece uma vasta gama de temas e
possibilidades de se pensar filosoficamente sob as mais diversas perspectivas Natildeo haacute grande
espanto na busca dos filoacutesofos por reflexotildees em torno aos acontecimentos revolucionaacuterios dos
veiacuteculos de informaccedilatildeo e tecnologias em geral no seacuteculo vinte-e-um Contudo admiraacutevel eacute
encontrar o caminho oposto o momento no qual desenvolvedores da ciecircncia e da teacutecnica
buscam a filosofia para fundamentar seus trabalhos Eacute caso dos estudos realizados por Peter
Oslashhrstroslashm Henrik Schaumlrfe e Sara L Uckelman cujos resultados foram publicados nos anais da
International Conference on Conceptual Structures um evento dedicado agrave ciecircncia da
computaccedilatildeo Os trecircs investigadores fundamentam desde a ontologia moderna claacutessica a
concepccedilatildeo de hipertexto um conceito fundamental da computaccedilatildeo13 Para Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e
Uckelman o nascimento do termo ldquoontologiardquo representa o estabelecimento de um hipertexto
sobre a realidade e a temporalidade em pleno seacuteculo dezessete Os pesquisadores se referem
especificamente a Jacob Lorhard autor dos oito volumes intitulados Ogdoas Scholastica (1606)
responsaacutevel por cunhar o termo ldquoontologiardquo pela primeira vez na histoacuteria
Lorhard compocircs sua Ogdoas como uma gramaacutetica para o ensino escolar por meio de
aacutervores diagramaticais A teacutecnica utilizada por Lorhard foi profundamente influenciada por
Petrus Ramus (Pierre de la Rameacutee) cujo objetivo era transformar a razatildeo dialeacutetica em um
meacutetodo de loacutegica pedagoacutegica Petrus Ramus foi uma figura controversa e polecircmica Aleacutem de
suas interpretaccedilotildees pouco ortodoxas de Aristoacuteteles Ramus defendia uma completa reforma no
sistema educacional Ele fomentava o espiacuterito humanista pelo qual procurava devolver agrave
retoacuterica sua posiccedilatildeo proeminente visando desautorizar o peso da loacutegica escolaacutestica14
13 A ideia de hipertexto eacute bastante antiga todavia o termo no sentido moderno foi cunhado por Ted Nelson em
1965 para descrever o sistema de escrita natildeo-sequencial que envolvia o ligamento entre textos distintos em uma
mesma interface na internet O sistema de hyperlinks em um siacutetio da internet eacute um exemplo bastante simples de
um hipertexto 14 Cf Petrus Ramus Sa Vie Ses Eacutecrits et Ses Opinions Charles Waddington (ed) Paris Librairie de Ch Meyrteis
1855 Acerca das singularidades de Petrus Ramus confira Laura Adriaacuten Lara ldquoPetrus Ramus y el ocaso de la
retoacuterica ciacutevicardquo Utopiacutea y Praxis Latinoamericana v 13 n 43 (out-dez 2008) 11-31 e ainda Frank P Graves
Petrus Ramus and the Educational Reformation of Sixteenth Century New York Macmillan 1912
53
Havia um profundo espiacuterito anti-escolaacutestico que movia os interesses de Ramus
enfatizando uma postura radical na qual a filosofia ramista considerava falsa todas as
afirmaccedilotildees de Aristoacuteteles Para facilitar o processo de aprendizagem pelo qual o domiacutenio das
ciecircncias e artes liberais pode ser alcanccedilado Ramus emprega seus ldquoesquemas visuais abstratosrdquo
Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman se referem aos esquemas de Ramus como base para a aacutervore
diagramatical de Jacob Lorhard ndash para os pesquisadores este tipo de diagrama eacute o berccedilo de
todo futuro hipertexto
Eacute faacutecil observar que a estrutura da Ogdoas Scholastica de Jacob Lorhard permite ao
leitor localizar conceitos especiacuteficos e suas respectivas definiccedilotildees por meio de uma rede de
interconexotildees na forma de diagramas A ldquoaacutervorerdquo facilita natildeo soacute a compreensatildeo dos conceitos
como tambeacutem a maneira pela qual eles se relacionam uns com os outros Sem embargo trata-
se de uma gramaacutetica pela qual o domiacutenio de conceitos fundamentais da metafiacutesica se torna
bastante simples concordando em absoluto com a demanda da eacutepoca em introduzir este tipo de
estudo nos niacuteveis baacutesicos de ensino Com obras como as de Lorhard a exigecircncia do estudo da
ontologia foi difundida durante o seacuteculo dezoito como parte essencial da formaccedilatildeo acadecircmica
baacutesica15 Aleacutem disto a Ogdoas ainda sustentava a eacutegide da clarificaccedilatildeo da ontologia como base
para todo ulterior desenvolvimento intelectual Em outros termos Lorhard (assim como Ramus)
acreditava que natildeo era possiacutevel esclarecer nenhuma ciecircncia se natildeo houvesse de antematildeo uma
lucidez absoluta a respeito dos fundamentos do ente que poderia ser proporcionada apenas pelo
estudo por ele nomeado ldquoontologiardquo um discurso que buscava um pleno esclarecimento dos
termos empregados para definir todo e qualquer ulterior passo tomado tanto nas ciecircncias do
espiacuterito quanto nas ciecircncias da natureza
15 Muito disto deve-se ao filoacutesofo norueguecircs Jens Kraft cuja obra (influenciada em larga escala pela Metaphysica
sive Ontologia de Christian Wolff) reforccedilou o peso dos estudos em ontologia Dentro da compreensatildeo de Kraft
compartilhada tambeacutem por Lorhard e outros a ontologia ganha um lugar privilegiado como unificaccedilatildeo sistemaacutetica
das estruturas do pensamento como um todo
54
O oitavo livro da Ogdoas de Lorhard que encerra o compecircndio e eacute dedicado agrave ontologia
no sentido de unificar todos os escritos anteriores define a metafiacutesica como ldquo() o
conhecimento de um inteligiacutevel enquanto inteligiacutevel ()rdquo (LORHARD sd 3) Este conhecimento
eacute divido entre conhecimento dos particulares e dos universais Para Lorhard a parte da
metafiacutesica responsaacutevel pelo conhecimento dos particulares ou bem se refere acirc substacircncia
pertinente aos seres natildeo-complexos que subsistem em si mesmos (sejam eles criados ou natildeo)
ou bem aos acidentes
Jaacute o conhecimento dos universais se refere a tudo o que eacute inteligiacutevel redundando nos
atributos gerais ou nas distribuiccedilotildees conforme as quais o λόγος eacute entendido como um inteligiacutevel
As distribuiccedilotildees dizem respeito ao nada por um lado ou a algo por outro sendo este uacuteltimo
em seu aspecto positivo o que envolve as ideias de ldquoessecircnciardquo e ldquoenterdquo As noccedilotildees de ldquoessecircnciardquo
e ldquoenterdquo satildeo centrais natildeo apenas para o sistema de Lorhard mas tambeacutem para todas as
subsequentes compreensotildees da ontologia Em uma primeira definiccedilatildeo Lorhard observa a
ldquoessecircnciardquo em sua relaccedilatildeo com o λόγος definindo que ldquoEssecircncia eacute algo produtivo pelo qual o
Ser eacute o que eacute Esta palavra estrangeira eacute chamada pelos Escolaacutesticos de Entidade ou quidditasrdquo
(IDEM IBIDEM 4) Em segundo lugar considera a ldquoessecircnciardquo em relaccedilatildeo a sua distribuiccedilatildeo na
qual ela eacute ou bem ldquorealrdquo (ou seja uma atualizaccedilatildeorealizaccedilatildeo do ser) ou bem ldquoimaginaacuteriardquo (no
caso de um ser puramente racional) Ambas podem ser ldquosimplesrdquo ou ldquocompostasrdquo ldquoabsolutasrdquo
ou ldquorespectivasrdquo ldquouniversaisrdquo ou ldquosingularesrdquo Dentro do uacuteltimo destes casos a ldquoessecircnciardquo
pode ser ainda ldquogeneacutericardquo (ou um gecircnero compartilhado por outras espeacutecies) ou ldquoespeciacuteficardquo
(relativa a uma uacutenica espeacutecie) Natildeo haacute grande espanto nos pontos apresentados ateacute entatildeo por
Lorhard O que haacute na verdade eacute uma constituiccedilatildeo sistemaacutetica de um diaacutelogo que estava sendo
travado jaacute haacute muito tempo e sobremaneira evidente no periacuteodo no qual ele compocircs sua obra
Suas contribuiccedilotildees mais significantes talvez se deem na seccedilatildeo seguinte quando aborda a
questatildeo do ldquoenterdquo
55
Lorhard tambeacutem considera o ldquoenterdquo no discurso unificador bem como na questatildeo da
ldquoessecircnciardquo afirmando dele algo produtivo ldquodotado de certa essecircnciardquo Em seu caraacuteter
distributivo o ldquoenterdquo (assim como a ldquoessecircnciardquo) eacute ou bem ldquorealrdquo ou bem ldquoracionalrdquo Ele define
o ldquoente de razatildeo ou racionalrdquo afirmando que ldquoEacute um ente de razatildeo que eacute tocado pela cogitaccedilatildeo
de uma mente singular de acordo com o modo real do ente agrave parte disto eacute nada Eacute tambeacutem
chamado ente fictiacutecio e imaginaacuteriordquo (ID IBID 5) Jaacute o ldquoente realrdquo pode se dar por meio do
discurso (λόγος) de sua proacutepria essecircncia ou ainda ser distribuiacutedo em entes primaacuterios e
secundaacuterios (estes uacuteltimos decorrentes dos primeiros) sendo ambos ldquosimplesrdquo ou ldquocomplexosrdquo
ldquoabsolutosrdquo ou ldquorespectivosrdquo ldquouniversaisrdquo ou ldquoparticularesrdquo ldquoimateriaisrdquo ou ldquomateriaisrdquo
ldquopermanentesrdquo ou ldquosucessivosrdquo
Toda a divisatildeo da ontologia de Lorhard acompanha em muitos aspectos a ontologia
derivada da filosofia grega claacutessica desde o processo dialeacutetico de questionamento da realidade
conforme a doutrina platocircnica e a divisatildeo das Categorias de Aristoacuteteles A principal distinccedilatildeo
do emprego do termo ontologia como expressatildeo e manifestaccedilatildeo das doutrinas metafiacutesicas em
Lorhard eacute o foco especiacutefico de uma ldquodoutrina dos inteligiacuteveisrdquo Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman
comentam que
Conforme Lorhard haacute uma importante dualidade entre os entes e nossa discussatildeo
racional a respeito deles Parece que ele insistiu na necessidade dessa dualidade no
sentido de que cada vez que noacutes discutimos os entes no mundo tentando classificaacute-
los tambeacutem temos que refletir sobre os conceitos usados para fazecirc-los (OslashHRSTOslashM
SCHAumlRFE E UCKELMAN OP CIT 4)
Em termos mais simples apoacutes um longo periacuteodo de aristotelismo escolaacutestico talvez tenha sido
Lorhard o primeiro a atentar para o fato de certa confusatildeo gerada dentro da metafiacutesica a respeito
da maneira pela qual se predica o ser do ente em sua participaccedilatildeo presente na realidade
56
Seria liacutecito portanto argumentar que a evidecircncia da confusatildeo de termos se deve ao fato
de Lorhard ter deslocado o ontocentrismo metafiacutesico para uma teoria dos intiligiacuteveis Ainda
conforme Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman a postura de Lorhard eacute diretamente influenciada pela
obra de Clemens Timpler que sustentava a mesma posiccedilatildeo a respeito da metafiacutesica desde uma
confrontaccedilatildeo direta com a filosofia de Francisco Suaacuterez Esta seria a contenda principal do
iniacutecio da modernidade responsaacutevel por conformar e enformar a metafiacutesica como ontologia tal
qual hoje ainda se a concebe Joseph S Freedman desenvolve uma anaacutelise bastante precisa da
maneira pela qual Timpler fundamentou sua postura e as consequecircncias de seu trabalho
sobretudo no que tange agrave disputa com Francisco Suaacuterez A respeito da proposiccedilatildeo ldquotudo que eacute
inteligiacutevelrdquo (omne intelligibile) o tema constitutivo da metafiacutesica Freedman (cf 2009 10-11)
comenta que Timpler provecirc uma moldura conceitual dentro da qual alguns conceitos
ontologicamente baacutesicos satildeo englobados quais sejam ldquoalgordquo (aliquid) ldquoprivaccedilatildeordquo (privatio)
ldquoessecircnciardquo (essentia) e ldquoentidaderdquo (ens) Dentro da dissoluccedilatildeo dos conceitos na obra central de
Timpler Metaphysicae systema methodicum (1604) Freedman comenta
Conforme Timpler ldquotudo aquilo que eacute Inteligiacutevelrdquo eacute dividido entre nihil (ie ldquonadardquo
ou ldquonatildeo-serrdquo) e aliquid aut est (ldquoalgordquo ou ldquoenterdquo) esta eacute basicamente a mesma
dicotomia que William Shakespeare aludiu quando ele coloca no Ato 3 Cena 1 de
Hamlet ndash alguns anos antes (c 1600) da publicaccedilatildeo do texto de Timpler sobre
metafiacutesica ndash que ldquoser ou natildeo ser estaacute eacute a questatildeo []rdquo Mas esta foi a questatildeo que
Timpler e todos os seus (conhecidos) contemporacircneos acadecircmicos aparentemente
desejaram evitar de discutir A discussatildeo da questatildeo de Shakespeare ndash e da dicotomia
de Timpler ndash poderia ter provido as bases para o levantamento de toacutepicos altamente
sensiacuteveis por exemplo 1) a relaccedilatildeo entre Deus e Nada (nihil) 2) a relaccedilatildeo entre Deus
entidade e privaccedilatildeo (ie mal) e 3) a relaccedilatildeo entre Deus e o princiacutepio de contradiccedilatildeo
(FREEDMAN op cit 12)
57
Embora estas questotildees estivessem jaacute sempre presentes dentro dos questionamentos de Timpler
e de seus contemporacircneos elas eram todavia caladas de acordo com Freedman (IDEM IBIDEM)
pela imposiccedilatildeo das instituiccedilotildees cristatildes das coisas sobre as quais se era proibido falar ou acreditar
O que perdura das apresentaccedilotildees filosoacuteficas da metafiacutesica como ontologia em Timpler
ponderando seu princiacutepio do inteligiacutevel concentra-se em primeiro lugar como o mateacuteria de
todas as disciplinas e subdisciplinas acadecircmicas e em segundo lugar como foco de disciplinas
separadas como a archeologia gnostologia hexiologia intelligentia pansophia e tecnologia
(cf ID IBID 14)
O motivo da predileccedilatildeo da questatildeo dos intiligiacuteveis como foco principal de todos os
temas concernentes ao pensamento aparece dentro da possibilidade de envolver todos os
aspectos responsaacuteveis pelos modos operativos de pensar 16 Desta forma por exemplo as
disciplinas separadas como a ldquotecnologiardquo seriam desenvolvidas para as consideraccedilotildees gerais
e universais da estrutura das disciplinas liberais (cf ID IBID 16) Embora discrimine em parte
o princiacutepio da cogniccedilatildeo a metafiacutesica tampouco envolve a loacutegica por levar em consideraccedilatildeo
apenas os princiacutepios excluindo entidades complexas que redundem no princiacutepio de contradiccedilatildeo
Em contrapartida ao sistema metoacutedico de Timpler vecirc-se em Francisco Suaacuterez um
caraacuteter muito mais ontocecircntrico As Disputationes Metaphysicae (1597) de Francisco Suaacuterez
satildeo publicadas dentro de um contexto de desarmonia e conflitos entre a teologia e a filosofia
onde os conceitos fundamentais na discussatildeo sobre o divino estavam sendo postos em questatildeo
A despeito das influecircncias de Suaacuterez e dos necessaacuterios posicionamentos poliacuteticos sua obra
parece instaurar um regulamento por meio do qual nada poderia ser legado agrave mera
inteligibilidade
16 Freedman (ID IBID 15) cita o teoacutelogo calvinista Matthias Martinius contemporacircneo de Timpler que evidencia
de maneira mais clara os motivos das proposiccedilotildees fundamentais Ele atesta que conforme esta designaccedilatildeo agrave
metafiacutesica ldquopertence tudo aquilo que eacute cognosciacutevelrdquo (de omni cogitabili) mas com certas restriccedilotildees englobando
a ldquouniversalidade das coisasrdquo (rerum universitatem) mas natildeo envolvendo disciplinas acadecircmicas especializadas
singulares ou particulares
58
As Disputationes de Suaacuterez podem ser entendidas desde uma divisatildeo da obra na qual a
primeira parte (as primeiras vinte-e-sete questotildees) se refere ao ente no sentido geral enquanto
a segunda parte (as vinte-e-sete uacuteltimas questotildees) lida com o ente particular redundando em
uma dupla divisatildeo da proacutepria metafiacutesica entre ldquometafiacutesica geralrdquo e ldquometafiacutesica especialrdquo (cf
SUAacuteREZ 2004 DOYLE 2004) Ao comentar o desenvolvimento deste aspecto da filosofia de
Suaacuterez Ludger Honnefelder ainda acrescenta
Conforme Suaacuterez a metafiacutesica lida com o conceito de ente tanto ldquoformalrdquo quanto
ldquoobjetivordquo Pelo conceito formal Suaacuterez entende o ato de conhecer do qual ldquoex unica
et prima impositionerdquo que rende uma representaccedilatildeo intencional do objeto pelo
conceito objetivo ele designa aquilo que representa intencionalmente o ato Em outras
palavras Suaacuterez natildeo assume a teoria dos conceitos caracterizada pelo paralelismo
noeacutetico-noemaacutetico de res e conceptus antes ele aceita a abordagem criacutetica de Ockham
em direccedilatildeo a interpretaccedilatildeo realiacutestica dos conceitos universais Desde que Scottus ele
mesmo natildeo depende desse paralelismo quando isto vem a dizer respeito sobre o ente
Suaacuterez substancialmente segue Scottus e aplica ldquoenterdquo para um conceito formal
primaacuterio e unificado que em virtude de sua imposiccedilatildeo representa um objetivo
primaacuterio e unificado do conteuacutedo absolutamente simples que envolve todos os entes
distintos de uma maneira indeterminada ie como ente (HONNEFELDER 2003)
Segundo a exposiccedilatildeo de Honnefelder o direcionamento da metafiacutesica de Suaacuterez iraacute redundar
em alguns pontos baacutesicos em primeiro lugar o fato de que a determinaccedilatildeo do ente transcende
a generalidade dos gecircneros em segundo que a determinaccedilatildeo natildeo pode ela mesma ser definida
podendo apenas ser explicada em relaccedilatildeo agrave existecircncia real em terceiro que toda existecircncia estaacute
sujeita agrave fundamentaccedilatildeo de disposiccedilatildeo ontoloacutegica em uacuteltimo lugar que o ente finito perdura
em um modo indeterminaacutevel de quantidade sendo o ente infinito eacute aquilo que eacute perfeito e
totalmente indivisiacutevel em si mesmo e mais real e completo (cf IDEM IBIDEM)
59
Agora bem com o fito de retomar a linha de raciociacutenio desenvolvida no capiacutetulo eacute
preciso retomar a ideia de substantivaccedilatildeo do Ocidente e a maneira pela qual esse processo se
deixar ver ao longo da histoacuteria da ontologia Martin Heidegger indica em primeiro lugar o que
ele considera como o problema fundamental pelo qual a metafiacutesica se desdobra no Ocidente
qual seja o fato de que o ldquoserrdquo natildeo eacute um ldquoenterdquo mas que todavia um foi tomado pelo outro Ele
apresenta ainda o argumento de que a transposiccedilatildeo da experiecircncia fundamental grega (conforme
apresentada tambeacutem por Charles H Kahn) sofre uma violaccedilatildeo na absorccedilatildeo latina e na
transferecircncia de conceitos de um modo de pensar para o outro Eacute dentro deste ambiente latino
que eacute possiacutevel rastrear a maneira pela qual a metafiacutesica se forma e transforma em ontologia ou
bem dentro de uma filosofia do inteligiacutevel (como em Lorhard e Timpler) ou bem como um
ontocentrismo filosoacutefico (como em Suaacuterez) Sem embargo trata-se de uma disputa em torno agraves
formas primaacuterias da discussatildeo em torno ao ldquoserrdquo e ao ldquoenterdquo Eacute possiacutevel concluir desde a
constataccedilatildeo da entificaccedilatildeo do ser ou substantivaccedilatildeo do Ocidente que a demanda pela resposta
ao problema primeiro da filosofia necessariamente a encaminha para um percurso que natildeo
poderia ser outro Mas qual eacute propriamente este problema primeiro e como se constroacutei esse
caminho Natildeo haveria outra indicaccedilatildeo senatildeo a da ciecircncia dos primeiros princiacutepios e causas de
Aristoacuteteles Jaacute na doutrina das Categorias de Aristoacuteteles eacute possiacutevel observar a confusatildeo entre
ldquoserrdquo e ldquoenterdquo A questatildeo pode ser melhor observada na proposiccedilatildeo baacutesica e amplamente
difundida da Metafiacutesica ldquoO ente se diz em muacuteltiplos significados mas sempre em referecircncia a
uma unidade e a uma realidade determinadardquo (ARISTOacuteTELES 2002 131)17 A referecircncia a uma
unidade e uma realidade determinada eacute a chave para compreender a maneira pela qual a
ontologia se torna a ciecircncia responsaacutevel por esse tema (conforme Aristoacuteteles ldquoHaacute uma ciecircncia
que considera o ente enquanto ente e as propriedades que lhe competem enquanto talrdquo ID IBID)18
17 Τὸ δὲ λέγεται μὲν πολλαχῶς ἀλλὰ πρὸς ἓν καὶ μίαν τινὰ φύσις καὶ οὐχ ὁμωνύμως ἀλλrsquo (Metafiacutesica 1003a 30-
35) 18 Ἔστιν ἐπιστήμη τις ἧ τὸ ὄν ᾗ ὄν καὶ τὰ τούτῳ ὑπάρχοντα καθ αὑτό (Metafiacutesica 1003a 20)
60
Dentro desta ciecircncia o conceito central que unifica e determina ldquoenterdquo e ldquoserrdquo eacute
apresentado como οὐσία O conceito de οὐσία (substantia substacircncia) eacute bem desenvolvido nas
Categorias entre as expressotildees que natildeo satildeo compostas quais sejam a substacircncia mesma
quantidade qualidade relaccedilatildeo lugar tempo posiccedilatildeo estado accedilatildeo ou afecccedilatildeo Ela eacute
apresentada desde duas perspectivas uma primaacuteria outra secundaacuteria A substacircncia primeira
natildeo se afirma de um sujeito nem em um sujeito mas comporta as substacircncias segundas nas
quais a forma afirma a espeacutecie e o gecircnero (ldquoserrdquo do sujeito) comportando tambeacutem os acidentes
(ldquoserrdquo no sujeito) que a eles se atribui Embora o conceito em sua primeira formulaccedilatildeo
contemple o aspecto formal bem como o elemento inteligiacutevel envolve ainda o aspecto material
em seu segundo modo natildeo podendo ser um sem o outro
As consequecircncias do desenvolvimento de uma ciecircncia responsaacutevel pelo ente enquanto
ente centralizando o conceito de substacircncia e substantivando a ideia de ldquoserrdquo por meio de seu
particiacutepio presente ldquoenterdquo satildeo o que se pode considerar como o desenvolvimento da histoacuteria do
ldquoserrdquo ou a histoacuteria da maneira pela qual o Ocidente compreende o ldquoserrdquo e a si mesmo Por meio
desta postulaccedilatildeo o ldquoτὰ ὄνταrdquo eacute posicionado no centro do pensamento ocidental Mais ainda do
que uma simples constataccedilatildeo da maneira pelo qual coube ao Ocidente pensar curioso eacute
especular o fato de que se natildeo fosse possiacutevel pensar fora da delimitaccedilatildeo do ente natildeo haveria
sequer indagaccedilatildeo alguma sobre as limitaccedilotildees ou prejuiacutezos imbuiacutedos nesta formulaccedilatildeo Sem
embargo eacute possiacutevel constatar desde os recursos apresentados (e ainda por muitos outros
caminhos que natildeo este) a necessidade incontida do ser humano ocidental eacute desenhar de maneira
niacutetida as fronteiras do pensamento e da maneira pela qual esse pensamento deve e pode ser
aplicado Resta saber apoacutes esta delimitaccedilatildeo o que haacute para aleacutem da fronteira
61
2 O CAMINHO DA NEGATIVIDADE HENEOLOGIA E MEONTOLOGIA E A
ULTRAPASSAGEM DOS LIMITES DA METAFIacuteSICA
O discurso ontoloacutegico tanto grego quanto latino personificou a atividade filosoacutefica ocidental
em larga escala A maneira pela qual a ontologia habilitava ao raciociacutenio uma seacuterie de
procedimentos facilmente verificaacuteveis nutriu seguranccedila metodoloacutegica aos assuntos
concernentes aos problemas intelectuais com os quais o ser humano fatalmente se deparava ao
longo de suas especulaccedilotildees e que reverberavam ainda na conjuntura soacutecio-pragmaacutetica Eacute neste
sentido que teria afirmado Immanuel Kant de maneira perspicaz que a razatildeo humana se
defronta com inevitaacuteveis questotildees impostas por sua proacutepria natureza19 Tanto para Aristoacuteteles
quanto para Francisco Suaacuterez aleacutem de tantos outros entrementes a importacircncia de assegurar
uma linha de raciociacutenio vaacutelida natildeo somente atribuiacutea autoridade ao argumento como tambeacutem
provia de suficiente clareza a linguagem que advogava suas doutrinas Em outras palavras
tornava-se faacutecil convencer outrem de seus pressupostos dada a indefectiacutevel loacutegica empregada
para encadear as sentenccedilas e alcanccedilar uma conclusatildeo A ontologia por meio de suas loacutegicas de
identidade e natildeo-contradiccedilatildeo (e ateacute certo ponto tambeacutem via argumento do terceiro excluiacutedo)
visava alcanccedilar tanto para afirmaccedilatildeo quanto para negaccedilatildeo a dissoluccedilatildeo de todo e qualquer
paradoxo que colocasse a mente em estado de confusatildeo e discoacuterdia Independente daquilo que
estava sendo afirmado ou negado da linha de raciociacutenio ou doutrina em jogo os procedimentos
discursivos e intelectuais eram basicamente os mesmos com variaccedilotildees conceituais maiores ou
menores dependendo da vertente Todavia prosseguia-se sempre da mesma maneira
19 Kant afirma ldquoA razatildeo humana no seu gecircnio de seu conhecimento possui o peculiar destino de ser incomodada
por questotildees que natildeo pode evitar porque elas satildeo dadas pela natureza da razatildeo mesma mas tambeacutem natildeo possuem
respostas porque elas excedem a capacidade da razatildeo humanardquo (KANT 1956 5 Criacutetica da razatildeo pura AVII-
AVIII)
62
Contudo a despeito da supremacia ontoloacutegica outras formas de pensamento foram
desenvolvidas no decorrer da histoacuteria da filosofia fossem elas similares ou totalmente opostas
Alguns pensadores especialmente radicais se dedicaram a um modo reflexivo que se distanciava
consideravelmente da estrutura ontoloacutegica Suas bases seus pressupostos e seus meacutetodos pelos
quais prosseguiam no caminho especulativo dos temas propostos (muitas vezes os mesmos dos
formuladores da ontologia claacutessica) projetavam-se de maneira consideravelmente diversa Para
eles havia uma necessidade imperativa de incluir todos os elementos presentes na estrutura da
realidade pensada em sua maacutexima possibilidade de concepccedilatildeo tanto os que satildeo quanto os que
natildeo satildeo Ao que parece por este motivo Werner Beierwaltes considera que as caracteriacutesticas
pelas quais se configuram a ontologia claacutessica satildeo sobretudo frutos da interrogaccedilatildeo pelo nexo
da identidade e da diferenccedila quer seja na afirmaccedilatildeo parmeniacutedica da natildeo legitimaccedilatildeo filosoacutefica
da alteridade quer seja na resposta platocircnica do necessaacuterio estabelecimento da diferenccedila na
constituiccedilatildeo do ldquoserrdquo em seu inteiro (cf BEIERWALTES 1989 25) Para Beierwaltes o rigoroso
conceito de unidade demandado por Platatildeo em reposta agrave univocidade do ser de Parmecircnides
resultou na possibilidade de inclusatildeo do ldquonatildeo-serrdquo relativo ao ldquoserrdquo para afirmar sua totalidade
Disto derivaria a altercaccedilatildeo originaacuteria entre identidade e diferenccedila e nisto consiste a
possibilidade de desvio do pensamento ontoloacutegico20 Sem embargo precisamente neste ponto
que acredito poder encontrar o que chamo aqui de caminho da negatividade ou a possibilidade
de inclusatildeo do oxiacutemoro no caminho de pensamento delineado pela ontologia considerando que
ele se desdobra na tradiccedilatildeo do chamado neoplatonismo e ainda na miacutestica medieval
20 Trata-se da definiccedilatildeo do natildeo-ser como alteridade apresentada no Sofista Apoacutes a discussatildeo acerca da comunidade
de gecircneros e a questatildeo do ldquomesmordquo e do ldquooutrordquo que configuram o problema da identidade e da diferenccedila Platatildeo
apresenta a hipoacutetese de compreender o ldquomovimentordquo como ldquooutrordquo do ldquoserrdquo questionando a tese parmeniacutedica a
respeito da ldquoestaticidade do serrdquo Assim Platatildeo coloca a questatildeo ldquoDevemos trabalhar nossa coragem agora para
dizer que aquilo que lsquonatildeo eacutersquo definitivamente eacute algo que possui natureza proacutepria Devemos dizer que assim como
o grande era grande o belo era belo o natildeo grande eacute natildeo grande e o natildeo belo eacute natildeo belo da mesma maneira pela
qual natildeo eacute tambeacutem foi e eacute natildeo-ser e eacute uma das formas dentre as quais satildeordquo (PLATO 1997 282 Sofista 258 c-d)
A sequecircncia do diaacutelogo questionaraacute a realidade deste natildeo-ser relativo culminando na identidade entre pensamento
e discurso abrindo a possibilidade para o discurso falso (o do sofista) e introduzindo a assunccedilatildeo do paradoxo no
seio do pensamento representando o chamado parriciacutedio aos eleatas
63
Ateacute onde eacute possiacutevel investigar o termo neoplatonismo teria sido cunhado pela primeira
vez pelo helenista e medievalista Thomas Gale nos idos de 1670 Gale foi responsaacutevel por uma
seacuterie de estudos sobre o neoplatonismo pagatildeo e cristatildeo escrevendo sobre Plotino Jacircmblico
Joatildeo Escoto Eriuacutegena Maacuteximo Confessor entre outros21 Definiccedilotildees agrave parte os primeiros
elementos responsaacuteveis por delinearem um ldquoneoplatonismo originaacuteriordquo apenas tardiamente
nomeado satildeo atribuiacutedos a Amocircnio Sacas Contudo como a figura histoacuterica de Amocircnio Sacas
eacute tatildeo envolta em controveacutersias e misteacuterios quanto a vida de Pitaacutegoras ou Soacutecrates atribui-se
diretamente a fundaccedilatildeo de uma ldquoescola neoplatocircnicardquo a Plotino disciacutepulo de Amocircnio
Muacuteltiplos debates mais ou menos coerentes envolvem os relatos sobre a relaccedilatildeo entre Plotino e
Amocircnio aleacutem de polecircmicas acerca do proacuteprio Amocircnio22 Destaca-se apenas a autoridade dos
relatos de Porfiacuterio (em sua Vida de Plotino) nos quais se considera que o meacutetodo de pesquisa
aplicado por Plotino estava profundamente ligado ao de seu mestre O conteuacutedo dos discursos
de Plotino tambeacutem teria uma iacutentima relaccedilatildeo com as tentativas de Amocircnio de unificar os diversos
planos do ser e estabelecer a derivaccedilatildeo de todas as coisas a partir do uno23 Sem embargo
Plotino teria absorvido e desenvolvido a doutrina de Amocircnio e necessariamente de Platatildeo em
suas Eneacuteadas em um movimento de exegese ao discurso platocircnico Exegese esta suscetiacutevel de
diversas interpretaccedilotildees dos caminhos por Plotino tomados e mesmo natildeo muito consensual entre
os estudiosos da obra24
21 Extraiacute estes dados de Aaron W Huges em um trabalho intitulado ldquoMedievalrdquo and the Politics of Nostalgia
Ideology Scholarship and the Creation of the Rational Jew (2012) Huges natildeo apenas investiga as origens das
designaccedilotildees do neoplatonismo mas ainda constata que a alcunha de ldquoneoplatocircnicosrdquo continuou sendo utilizada
por eruditos alematildees no seacuteculo dezenove como uma menccedilatildeo pejorativa aos ldquofalsificadoresrdquo das doutrinas de Platatildeo
e Aristoacuteteles (cf HUGES 2012) 22 Conforme Giovanni Reale em sua Storia della filosofia antica (1975-1980) Sobre este ponto especificamente
acerca das incertezas em torno agrave figura de Amocircnio confira REALE 2008 5-13 23 Esta consideraccedilatildeo eacute apresentada por Giovanni Reale com base nos relatos de Nemeacutesio em De natura hominis
(cf REALE 2008 11) Conforme Francisco B Harriet a questatildeo fundamental se encontraria na foacutermula ldquoestaacute mais
aleacutem do intelecto e da essecircnciardquo (ἐπέκεινα νοῦϛ καὶ οὐσίας) conforme a formulaccedilatildeo de Oriacutegenes de Alexandria
em Contra Celsum (fons ex quo initium totius intellectualis naturae uel mentir est) presente em Plotino (Eneacuteadas
V 1 8 e VI 8 16) e derivada do ciacuterculo de Amocircnio (cf HARRIET 2012 153) 24 Sobre a questatildeo da exegese Marcus Reis Pinheiro (em Plotino exegeta de Platatildeo e Parmecircnides 2007)
argumenta que natildeo se pode reduzir a exegeacutetica agrave mera interpretaccedilatildeo dos diaacutelogos de Platatildeo e outros escritos Trata-
se antes do desdobramento de um discurso muito antigo onde ldquo() fazer exegese () natildeo eacute interpretar
objetivamente os textos mas caminhar rumo aos niacuteveis superiores junto com os antigosrdquo (P INHEIRO 2007 80)
64
Neste fluxo talvez o mais cabiacutevel usual e conhecido de todos os estabelecimentos de
um ldquoponto de partidardquo seja o do claacutessico artigo Jean Trouillard Le Parmeacutenide de Platon et son
interpretation neacuteoplatonicienne (1973) onde o neoplatonismo eacute pensado desde a busca da
doutrina originaacuteria de Platatildeo principalmente a partir de uma releitura de seu diaacutelogo
Parmecircnides Todavia a maneira pela qual eacute possiacutevel explanar esta releitura levanta suspeitas
sendo necessaacuterio ponderar em quais formas a exegese plotiniana converge ou diverge das
tentativas de uma interpretaccedilatildeo das doutrinas originaacuterias de Platatildeo Mais ainda estaacute tambeacutem
em jogo a autoridade de apontar que existam de fato doutrinas originaacuterias havendo ainda
abertura para questionar a fiabilidade e o suposto peso das chamadas ldquodoutrinas natildeo-escritasrdquo25
Seja como for interessa sobretudo destacar como com as Eneacuteadas de Plotino o pensamento
filosoacutefico experimenta um movimento iacutempar em relaccedilatildeo agravequilo que vinha sendo apresentado
Para Ciacutecero Cunha Bezerra eacute possiacutevel elencar alguns pontos que evidenciam de maneira
clara a renovaccedilatildeo do neoplatonismo Destaca-se em primeiro lugar a junccedilatildeo entre os elementos
aristoteacutelicos e pitagoacutericos em siacutentese com uma perfeita sintonia entre o platonismo acadecircmico
e as ldquodoutrinas natildeo-escritasrdquo Ademais a ldquohierarquizaccedilatildeordquo do real a partir da qual todos os
graus satildeo derivados desde o uno permite uma sistematizaccedilatildeo do platonismo anterior Por este
motivo tende-se agrave leitura conforme a qual o neoplatonismo possuiria um sistema ldquomonopolarrdquo
frente a um suposto ldquobipolarismordquo platocircnico Por fim haacute ldquo() o fim uacuteltimo do processo de
conhecimento que para o neoplatocircnico eacute a uniatildeo plena com Deus (fugir soacute ao soacute) uma uniatildeo
que tem como marca a supressatildeo (aphaiacuteresis) de todo saber e dizerrdquo (BEZERRA 2006 57)
Dentre os pontos apresentados interessa-me particularmente o uacuteltimo (evidente consequecircncia
dos trecircs primeiros) no qual o neoplatonismo aparece como uma ldquosupressatildeo de todo saber e
dizerrdquo
25 Haacute uma interessante e profunda discussatildeo acerca do tema na tradiccedilatildeo de leitores e inteacuterpretes do platonismo e
do neoplatonismo a respeito deste toacutepico Ciacutecero Cunha Bezerra (em Compreender Plotino e Proclo 2006) aborda
o tema abrindo uma interlocuccedilatildeo com a obra Platone alla ricerca della spienza segreta de Giovanni Reale e ainda
com as investigaccedilotildees de W K C Guthrie e a chamada Escola de Tuumlbingen (cf BEZERRA 200617-24)
65
O senso comum ocidental regula a atividade filosoacutefica como um progresso ininterrupto
rumo ao acuacutemulo de conhecimento e dissoluccedilatildeo dos problemas Curioso agora eacute pensar a
maneira pela qual uma doutrina filosoacutefica pode suprimir o saber e o dizer ao inveacutes de
acrescentar Mas eacute apenas possiacutevel atingir a compreensatildeo necessaacuteria desta supressatildeo uma vez
esclarecido o que eacute propriamente o princiacutepio negativo do pensamento de Plotino Para isto natildeo
se pode perder de vista as duas questotildees que levariam agrave construccedilatildeo do pensamento de Plotino
quais sejam ldquo() o problema religioso (que corresponde agrave busca de compreensatildeo do destino
da alma assim como sua restauraccedilatildeo) e o problema filosoacutefico relativo agrave explicaccedilatildeo racional da
realidade ()rdquo (IDEM IBIDEM 66)26 ponderando ainda que em Plotino ambas estatildeo perfeitamente
inter-relacionadas Para atingir este entendimento todavia eacute necessaacuterio analisar as chamadas
trecircs hipoacutestases de Plotino presentes em suas Eneacuteadas
O conjunto de circunstacircncia que acompanham a formulaccedilatildeo do pensamento de Plotino
eacute todavia aquele anteriormente citado apresentado por Werner Beierwaltes que remete agrave
contenda entre Parmecircnides e Platatildeo Contextualizar a disputa Parmecircnides-Platatildeo da qual
derivam centralmente as hipoacutestases de Plotino natildeo eacute necessariamente complicado embora
interpretaacute-la e desde aiacute desdobrar um novo caminho reflexivo seja uma tarefa bastante
trabalhosa A demanda especulativa eacute altiacutessima e envolve uma bibliografia excessivamente
extensa e complexa Contudo como o interesse aqui eacute a apresentaccedilatildeo dos aspectos centrais do
pensamento de Plotino e como deles redunda uma nova postura e atitude filosoacuteficas o trabalho
fica menos penoso Portanto para colocar em relevo as hipoacutestases de Plotino eacute importante ao
menos demonstrar de forma simples os pontos originais dos quais elas derivam seja em
Parmecircnides seja em Platatildeo (e ateacute certo ponto tambeacutem no neopitagorismo e em Aristoacuteteles
embora esta tarefa exija um pouco mais e seja um pouco mais complicada de rastrear) Para
alcanccedilar este objetivo torna-se imperioso retornar brevemente a Parmecircnides
26 Esta hipoacutetese eacute destacada por Bezerra diretamente da obra de Eacutemile Breacutehier La Philosophie de Plotin (1928)
66
O segundo fragmento do poema Sobre a Natureza de Parmecircnides catalisa os principais
argumentos do conflito permitindo compreender quais satildeo os pontos mais problemaacuteticos do
estabelecimento de sua doutrina na tradiccedilatildeo Aleacutem da Fiacutesica de Simpliacutecio as fontes pelas quais
se estruturou esse fragmento adveacutem dos Comentaacuterios ao Timeu e Comentaacuterios ao Parmecircnides
de Proclo Os oito versos contidos no fragmento centralizam a doutrina de Parmecircnides como
foi herdada pela tradiccedilatildeo a partir da manifestaccedilatildeo das duas uacutenicas vias possiacuteveis para o
pensamento quais sejam a via da verdade e a via da aparecircncia O fragmento diz
εἰ δ᾽ ἄγ᾽ ἐρὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας
αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι
ἡ μέν ὄπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι
πειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ)
ἡ δ᾽ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι
τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν
οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐόν (οὐ γὰρ ἀνυστόν)
οὔτε φράσαις
(KIRK E RAVEN 1957 269)
Pois bem agora vou eu falar e tu presta atenccedilatildeo ouvindo a palavra
acerca das uacutenicas vias de questionamento que satildeo a pensar
uma para o que eacute e como tal natildeo eacute para natildeo ser
eacute o caminho de persuasatildeo ndash pois Verdade o segue ndash
outra para o que natildeo eacute e como tal eacute preciso natildeo ser
esta via indico-te que eacute uma trilha inteiramente inviaacutevel
pois nem ao menos se reconheceria o natildeo ente pois natildeo eacute realizaacutevel
nem tampouco se mostraria
(Traduccedilatildeo de Fernando Santoro cf PARMEcircNIDES 200612)
67
O caminho da verdade que eacute e natildeo eacute para natildeo ser (ἡ μέν ὄπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ
εἶναι) e o caminho da aparecircncia que natildeo eacute e natildeo pode ser (ἡ δ᾽ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών
ἐστι μὴ εἶναι) satildeo via de regra estabelecidos como a manifestaccedilatildeo maacutexima da loacutegica ocidental
e berccedilo dos princiacutepios de identidade e natildeo-contradiccedilatildeo A partir deles eacute possiacutevel natildeo soacute
estabelecer uma identidade (o ser eacute representada pela claacutessica foacutermula A=A) como ainda
verificar a veracidade dessa mesma identidade ndash natildeo eacute possiacutevel que o ser sendo natildeo seja
ilustrado pela foacutermula not (A ˄ notA) um tanto esdruacutexula sem duacutevidas27
O legado de Parmecircnides eacute marcado em sua difusatildeo pelos chamados ldquofiloacutesofos eleatasrdquo
sobretudo por Zenatildeo de Eleacuteia Seus argumentos contra a pluralidade (cf KIRK E RAVEN OP CIT
288-291) e contra o movimento (cf IDEM IBIDEM 291-297) se tornaram assaz populares
sobretudo no que concerne aos paradoxos da flecha no estaacutedio e de Aquiles e a tartaruga Aleacutem
da constataccedilatildeo da univocidade do ser presente em toda linha de pensamento parmeniacutedica28 O
resultado imediato dos exerciacutecios de raciociacutenio de Zenatildeo demonstraram a formataccedilatildeo de uma
estaticidade do ser e da realidade em torno alertando para a ilusatildeo do movimento e alteraccedilotildees
na substacircncia do real O momento no qual Platatildeo compotildee seu diaacutelogo Parmecircnides retrata
justamente o evento no qual tanto Parmecircnides quanto Zenatildeo estatildeo no aacutepice da divulgaccedilatildeo de
sua doutrina dialogando com um ainda jovem Soacutecrates Trata-se de um dos momentos mais
emblemaacuteticos da histoacuteria da filosofia ocidental
27 Haacute uma discussatildeo em torno a uma suposta terceira via aquela na qual o que ldquoeacuterdquo eacute e natildeo eacute ao mesmo tempo
baseada no sexto fragmento onde se lecirc ldquoοἶς τὸ πέλειν τε καὶ οὐκ ταῦτὸν νενόμισταιrdquo (KIRK E RAVEN OP CIT 271)
Embora ainda em um sentido pejorativo de uma via do engano emerge a possibilidade de que algo seja e natildeo seja
Mesmo que natildeo seja profiacutecuo para o andamento da tese se fixar na discussatildeo vale ao menos citaacute-la sobretudo
ponderando os apontamentos feitos por Jean Beaufret acerca da interpretaccedilatildeo de Martin Heidegger da terceira via
como a via dos entes Ao que cabe no propoacutesito do trabalho basta apenas atentar para como a tensatildeo entre as duas
primeiras vias jaacute foram suficientes para levantar controveacutersias Eacute possiacutevel especular ainda que jaacute na primeira via
aparece tambeacutem uma possibilidade de que o ser seja e natildeo seja quando se afirma que ele ldquoeacute e natildeo eacute para natildeo serrdquo
Seria possiacutevel conectar o ldquonatildeo eacuterdquo da sentenccedila como o natildeo-ser relativo necessaacuterio agrave constituiccedilatildeo da inteireza do
ser como argumentado no Sofista de Platatildeo 28 O que significa afirmar que natildeo existem ldquograusrdquo do ser uma coisa ou eacute real (ser) ou irreal (nada) (cf BEZERRA
2003 47)
68
As chamadas ldquotrecircs hipoacutetesesrdquo do Parmecircnides de Platatildeo satildeo apresentadas
respectivamente nas passagens 137c-142a 142b-157a e 157b-159a Elas constituem a mateacuteria
bruta para a elaboraccedilatildeo das trecircs hipoacutestases de Plotino Todas as trecircs hipoacuteteses de Platatildeo satildeo
apresentadas pela personagem do entatildeo velho Parmecircnides arguindo Soacutecrates a respeito da
viabilidade de cada argumento Elas se apresentam ainda a partir do problema constituiacutedo pela
questatildeo da unidade e da multiplicidade A pulsatildeo do jovem Soacutecrates ao inquirir Parmecircnides a
respeito de sua teoria fazendo-o apresentar as trecircs hipoacuteteses parte da colocaccedilatildeo de Parmecircnides
a respeito da assunccedilatildeo da multiplicidade por um lado e da impossibilidade do muacuteltiplo por
outro Parmecircnides eacute levado pelo jovem Soacutecrates a confirmar natildeo apenas sua teoria mas sua
metodologia e plano doutrinaacuterio
Para confrontar a teoria parmeniacutedica Platatildeo desenvolve a primeira hipoacutetese Ela
consiste basicamente na afirmaccedilatildeo de o que o ldquouno eacute unordquo ou seja se haacute uno natildeo eacute possiacutevel
que o uno seja muacuteltiplo Por este motivo ele natildeo pode conter partes nem tampouco ser um
inteiro (composto por partes) Tambeacutem natildeo pode ter um comeccedilo nem um meio nem um fim
natildeo possuindo nada que o limite ou delimite Tampouco pode possuir um formato nem se
encontrar em lugar algum nem estar se movimentando de um lugar para outro (porque entatildeo
assumir-se-ia algo outro que natildeo o uno pelo qual ele se movimenta) e nem em si mesmo
(porque com isto se movimentaria entre suas partes que por definiccedilatildeo natildeo pode conter) Natildeo
pode ainda ser diferente de si mesmo nem o mesmo que si mesmo porque assumindo sua
diferenccedila se assumiria algo outro que natildeo o uno ndash e assumindo sua identidade se assumiria que
haacute algo a saber a proacutepria identidade predicada do uno e que natildeo eacute o uno Natildeo pode tambeacutem
estar no tempo nem ter surgido em momento algum Por fim o uno natildeo pode possuir um nome
ou seja eacute inominaacutevel natildeo podendo ser objeto de opiniatildeo nem conhecimento nem percepccedilatildeo
caso contraacuterio assumir-se-ia um ser ou essecircncia distintos do uno pelo qual se alcanccedila seu
entendimento
69
Necessariamente a primeira hipoacutetese leva a uma outra questatildeo ou ao levantamento de
uma segunda hipoacutetese qual seja o uno eacute e quais satildeo as consequecircncias disto para ele mesmo
Essa hipoacutetese eacute consideravelmente mais complicada e envolve algumas nuances bastante
delicadas O argumento geral se concentra na ideia de que a proposiccedilatildeo uno eacute envolve
necessariamente a ideia de essecircncia do uno O grande problema em afirmar que o uno participa
da essecircncia de uno eacute justamente estabelecer a diferenccedila entre uma coisa e outra ou seja torna-
se inevitaacutevel afirmar que existem duas coisas a saber o uno e a essecircncia do uno O embargo
consiste na simples afirmaccedilatildeo uno eacute em contraposiccedilatildeo agrave afirmaccedilatildeo uno uno Logo desdobram-
se dois unos um uno que eacute e um uno e o ser O primeiro como afirmaccedilatildeo do proacuteprio uno o
segundo como assunccedilatildeo da participaccedilatildeo dele mesmo em sua essecircncia A reaccedilatildeo imediata agrave
afirmaccedilatildeo de que o uno eacute caminha em sentido contraacuterio das negaccedilotildees da primeira hipoacutetese
Sem embargo jaacute neste momento mesmo antes da apresentaccedilatildeo da terceira hipoacutetese
torna-se possiacutevel fazer algumas consideraccedilotildees Em primeiro lugar a hipoacutetese de que o ldquouno eacute
unordquo a despeito da aplicaccedilatildeo da categoria do ser para a predicaccedilatildeo da sentenccedila direciona o
pensamento para um caminho no qual natildeo haacute outra possibilidade senatildeo a completa negaccedilatildeo de
tudo que possivelmente competiria ao uno levando mesmo agrave dissoluccedilatildeo do eacute presente na frase
Em segundo lugar a hipoacutetese de que o ldquouno eacuterdquo desta vez com ecircnfase no eacute gera o movimento
oposto de afirmaccedilatildeo de tudo o que porventura poderia ser predicado de qualquer elemento
Estas duas hipoacuteteses (como se veraacute na apresentaccedilatildeo das hipoacutestases de Plotino)
discriminam perfeitamente as duas vias aqui cogitadas quais sejam uma via afirmativa da
ontologia claacutessica na afirmaccedilatildeo das coisas por meio da qual percebe-se compreende-se e se
faz ciecircncia e uma via negativa do que seraacute ulteriormente nomeada henologia na qual a maacutexima
especulaccedilatildeo acerca da natureza do uno natildeo leva senatildeo agrave negaccedilatildeo absoluta ndash as caracteriacutesticas
desta negaccedilatildeo ou negatividade ver-se-aacute mais claramente nas Eneacuteadas
70
A terceira hipoacutetese do Parmecircnides de Platatildeo eacute apresentada no diaacutelogo muito brevemente
Ela abarca ambos os aspectos centrais das duas primeiras hipoacuteteses sugerindo que o uno eacute e
natildeo eacute imputando a categoria de mudanccedila em sua natureza Trata-se de diagnosticar o fato de
que sendo o uno uno por um lado e muacuteltiplo por outro participa e natildeo participa de sua
essecircncia vem a ser e deixa de ser ponderando ainda que esta mudanccedila se daacute no instante Sendo
assim tanto o movimento de retorno ao uno quanto o movimento de procedecircncia a partir do
uno daacute-se ao mesmo tempo em uma reciprocidade na qual tanto a geraccedilatildeo da multiplicidade
configura o uno nem como uno nem como muacuteltiplo quanto a reuniatildeo da multiplicidade ao
uno tampouco configura o uno nem como uno nem como muacuteltiplo ndash como se a proacutepria ideia
de uno flutuasse em um ldquoinstante incapturaacutevelrdquo
Natildeo haacute duacutevida que o raciociacutenio apresentado por Platatildeo constitui um dos maiores
desafios especulativos da histoacuteria do pensamento ocidental seja nos esforccedilos empreendidos
pela loacutegica de compreensatildeo seja pelo desafio meditativo aflorado da temaacutetica proposta Neste
contexto Marcus Reis Pinheiro indica a interpretaccedilatildeo de Jean-Luc Brisson (Annexe I Les
interpretation du Parmeacutenide dans lrsquoAntiquiteacute presente na ediccedilatildeo Parmenide Paris Flamarion
1999) conforme a qual ldquo() Plotino estaacute no grupo dos inteacuterpretes do diaacutelogo que natildeo o vecirc
apenas como um exerciacutecio loacutegico mas que procura determinar a que tipo de objeto se refere o
diaacutelogordquo (PINHEIRO 2006 3) Seguindo esta linha de raciociacutenio o importante seria portanto
compreender como Plotino absorve a temaacutetica Considerar uma interpretaccedilatildeo para aleacutem da mera
concatenaccedilatildeo loacutegica de conceitos eacute basicamente absorver o sentido de cada termo Isto significa
natildeo apenas expor as formataccedilotildees daquilo que foi introduzido no discurso como ldquounordquo mas
ainda entender de que forma a simples possibilidade de concebecirc-lo no raciociacutenio implica em
uma reduccedilatildeo draacutestica das estruturas hieraacuterquicas do real ou seja constitui uma compreensatildeo
da realidade que possui como primeiro princiacutepio algo que coloca o pensamento em um niacutevel de
paradoxo que necessariamente denota a assunccedilatildeo de uma impossibilidade loacutegica
71
As trecircs hipoacutestases de Plotino seratildeo teoricamente encadeadas de maneira semelhante agraves
hipoacuteteses de Platatildeo embora natildeo sequencialmente Contudo a primeira (e talvez a mais
complexa) jaacute iniciaraacute o movimento de negatividade em direccedilatildeo agraves seguintes estabelecendo os
conflitos presentes na ideia de uno (τὸ ἑν) Plotino considera que ldquoO Uno eacute todas as coisas e
nenhuma delas a fonte para todas as coisas eacute nenhuma das coisas e ainda eacute todas as coisas em
um sentido transcendental ndash todas as coisas para assim dizer tendo seu retorno agrave isto ()rdquo
(PLOTINUS 1969 380 Eneacuteadas V 2 1) Ele ainda assevera a inefabilidade inerente ao uno
conforme a qual todo discurso eacute jaacute sempre indireto e impreciso Apenas mediante referecircncias
como ldquotodas as coisas e nenhuma delasrdquo torna-se possiacutevel acenar para o uno ndash e apenas isto
acenar Entretanto esta eacute para Plotino a uacutenica maneira de compreender a estrutura da realidade
como tal pelo simples motivo de que ldquoEacute precisamente porque haacute nada no Uno que todas as
coisas derivam dele para que o Ser possa ser trazido a fonte natildeo pode ser o Ser mesmo mas o
gerador do Ser ()rdquo (IDEM IBIDEM) que natildeo pode possuir a natureza do ser mas deve se constituir
como outro dele qual seja natildeo-ser ou mesmo nada Plotino prossegue ainda dizendo
ldquoBuscando nada possuindo nada faltando nada o Uno eacute perfeito e em nossa metaacutefora
transborda e sua exuberacircncia produz o novo este produto torna-se novamente seu progenitor
e eacute preenchido e se torna seu contemplador e Princiacutepio-Intelectualrdquo (ID IBID) A passagem
altamente especulativa denota que tudo eacute contemplaccedilatildeo dotada de uma atividade suprema que
comeccedila pelo uno e retorna a ele no simples olhar que natildeo implica nem em complexidade nem
em necessidade29 Mediante uma reflexatildeo propriamente loacutegica a contemplaccedilatildeo por meio da
qual o uno se desdobra e gera todas as coisas se daacute devido a sua proacutepria perfeiccedilatildeo ou seja o
uno natildeo eacute coisa nenhuma e necessariamente engendra todas as coisas porque eacute completo
porque eacute a totalidade de tudo e para isto eacute necessaacuterio que seja ele mesmo e ainda outro de si
29 Estes apontamentos satildeo de John Bussanich que ainda explica que ldquo() a doutrina plotiniana da derivaccedilatildeo do
Uno eacute lsquoprocessatildeorsquo o adjetivo que melhor qualifica isto eacute lsquocontemplativorsquo o movimento no qual a hipoacutestase eacute
gerada coincide com a contemplaccedilatildeo De fato o ponto cardial a chave para a estrutura da processatildeo da metafiacutesica
plotiniana era contemplaccedilatildeo ou theocircriardquo (BUSSANICH 1999 32)
72
Ciacutecero Cunha Bezerra apresenta a organizaccedilatildeo feita por Pierre Aubenque30 conforme a
qual haveriam trecircs esferas argumentativas no desenvolvimento da primeira hipoacutestase uma
loacutegica outra epistemoloacutegica e uma metafiacutesica Bezerra cita uma das passagens mais conhecidas
de Plotino que diz ldquoPrivado de unidade uma coisa cessa de ser aquilo pelo qual eacute chamada
um exeacutercito natildeo eacute um exeacutercito se natildeo eacute uno um coro um rebanho devem ser uma coisa soacuterdquo
(ID IBID 612 VI 9 1) sobretudo para enfatizar o aspecto loacutegico pelo qual Plotino ldquosubverterdquo
a resposta aristoteacutelica da entidade da coisa pela definiccedilatildeo substancial Bezerra argumenta
dizendo que ldquo() Plotino por uma exigecircncia loacutegica jaacute que o princiacutepio originaacuterio natildeo pode
possuir qualquer caraacuteter dos seres relativiza a ontologia e estabelece a henologia como
fundamento de todo serrdquo (BEZERRA OP CIT 67) O problema epistemoloacutegico sobressalta a
ultrapassagem necessaacuteria de todo conhecimento para alcanccedilar tal niacutevel de especulaccedilatildeo ao passo
que a questatildeo metafiacutesica retorna aos trechos anteriormente citados no qual a geraccedilatildeo de todas
as coisas soacute pode derivar de coisa nenhuma
O emprego do termo henologia define aqui o primeiro passo para o caminho da
negatividade Institui-se como negativo o princiacutepio que jaacute natildeo mais decorre de um rendimento
ldquopositivordquo por meio do qual se pode construir um conhecimento soacutelido e confiaacutevel mas uma
base que possui caracteriacutesticas muito diversas e que desafiam a capacidade loacutegica Por este
motivo a primeira demanda eacute jaacute a superaccedilatildeo intelectual (ἐπέκεινα νοῦϛ καὶ οὐσίας) que deve
assumir que o comeccedilo de todas as coisas eacute incoacutegnito O discurso eacute indireto e metafoacuterico porque
somente assim eacute possiacutevel indicar sua possibilidade de ser pensado ndash entendendo principalmente
que o ldquoser pensadordquo natildeo indica nem conota existecircncia porque o ser e a existecircncia mesmo satildeo
ainda posteriores agrave ideia de uno As segunda e terceira hipoacutestases portanto natildeo podem ser
concebidas se de antematildeo natildeo for assumida a negatividade do primeiro princiacutepio
30 Pierre Aubenque ldquoPlotin et le deacutepassement de lrsquoontologie grecque classiquerdquo Colloque des Royaumont Le
Neacuteoplatonisme Paris Centre National de Recherche Scientifique 1971 101-110
73
Somente por meio da completude da pensamento henoloacutegico de Plotino fica possiacutevel
deixar claro os termos pelos quais se destaca a negatividade como ldquosupressatildeo de todo saber e
dizerrdquo Os motivos contudo jaacute satildeo bastante evidentes se levado em consideraccedilatildeo que a
inefabilidade do uno indica que sobre ele natildeo se pode falar e ele natildeo se pode conhecer Portanto
o neoplatonismo necessariamente parte do pressuposto de que o ponto de partida e o ponto de
chegada do pensamento satildeo ambos uma caminhada rumo agrave supressatildeo Ao explicar a processatildeo
por meio da qual o uno engendra todas as coisas destaca-se uma consideraccedilatildeo importante se
os seres engendram o eternamente perfeito engendra eternamente algo inferior a si mesmo por
isto mesmo ldquoEacute preciso observar que a processatildeo plotiniana implica necessariamente uma
negaccedilatildeo A negaccedilatildeo eacute uma condiccedilatildeo a priori no sentido de que o engendrado deve assimilar-se
ao seu gerador mas mantendo uma resistecircncia que diferencia um do outrordquo (IDEM IBIDEM 74)
Em outras palavras a geraccedilatildeo do uno e a abertura da segunda hipoacutestase soacute eacute possiacutevel por meio
da introduccedilatildeo da diferenccedila A diferenccedila eacute o que aqui constitui o passo fundamental da sequecircncia
do pensamento neoplatocircnico O ser eacute na medida em que eacute diferente do uno e por ele eacute
engendrado justamente porque apenas a diferenccedila pode advir do eternamente perfeito
Assim sendo resta saber como o uno engendra e o quecirc ele engendra O que significa
ainda resgatar a pergunta anteriormente colocada por Parmecircnides e Platatildeo como do uno
provem o muacuteltiplo Esta questatildeo eacute sem sombra de duacutevidas uma das mais complexas do sistema
neoplatocircnico em geral A ideia de processatildeo (πρόοδος) pressupotildee uma emanaccedilatildeo a partir do
uno na qual todas as outras coisas satildeo engendradas o que significa dizer que se trata de um
movimento que abarca a realidade em toda sua estrutura na qual ldquo() difere completamente de
um mecanicismo dado que estaacute mais aleacutem de toda contingecircncia e necessidade Nesse sentido
natildeo se pode dizer que se trata de algo que implique um livre-arbiacutetrio ou uma produccedilatildeo artesanalrdquo
(ID IBID 76) Ou seja o uno natildeo necessita de nada e por isto mesmo daacute origem a tudo A
espontaneidade (se eacute que se pode utilizar tal termo) eacute natural e natildeo possui um motor
74
Ao mesmo tempo tudo aquilo que eacute gerado pelo uno possui um poder de conversatildeo
(επιστροφή) um voltar-se sobre si mesmo e voltar-se em direccedilatildeo ao uno (cf ID IBID 76)
movimentada pelo autoconhecimento daquilo que eacute Este autoconhecimento soacute eacute possiacutevel
todavia pelo proacuteprio movimento de emanaccedilatildeo conforme o qual se identifica ldquoserrdquo e
ldquopensamentordquo como havia postulado Parmecircnides e eacute justamente este o momento no qual
emerge a segunda hipoacutestase qual seja a inteligecircncia (νοῦϛ)
As caracteriacutesticas pelas quais a inteligecircncia se mostra desde a compreensatildeo da processatildeo
satildeo a chave para o sentido da filosofia de Plotino Sobre isto Thomas Alexander Szlezaacutek
escreve ldquoNatildeo persegue o Uno com esforccedilo deliberado mas espera tranquilamente ateacute que ele
apreccedila Assim a alma soacute recebe unicamente o Uno eacute uma volta do lsquosolitaacuterio para o solitaacuteriorsquordquo
(SZLEZAacuteK 2010 11) acrescentando ainda que ldquoO caminho que conduz ao Uno natildeo passa poreacutem
pela praacutetica asceacutetica de um anacoreta mas pela apropriaccedilatildeo conceitual do mundo inteligiacutevel
()rdquo (IDEM IBIDEM) Os termos inteligecircncia e inteligiacutevel referem-se aqui a uma definiccedilatildeo
particular que compreende o nuacutecleo da segunda hipoacutestase Bezerra escreve acerca deste ponto
ldquoPlotino no tratado oitavo da terceira Eneacuteada define a Inteligecircncia natildeo como uma coisa
particular mas como algo universal e muacuteltiplordquo (BEZERRA OP CIT 78) explicando que eacute
ldquoUniversal porque abarca todos os seres e muacuteltiplo porque coexistem em sua natureza
simultaneamente o inteligente (Inteligecircncia) e o inteligiacutevel (ser) ()rdquo (IDEM IBIDEM) Plotino
encadeia seu raciociacutenio elucidando como o Princiacutepio-Intelectual eacute universal e iniacutecio de todas as
coisas de maneira que ldquo() assim todas as coisas e o Princiacutepio de tudo deve ser tal que cada
parte dele seja universal eacute todas coisas do contraacuterio conteria partes que natildeo satildeo o Princiacutepio-
Intelectualrdquo (PLOTINUS OP CIT 246 Eneadas III 8 8) Conclui a partir de entatildeo que ldquo() este
Ser eacute ilimitado e que em tudo que flui dele natildeo haacute reduccedilatildeo nem em sua emanaccedilatildeo desde que eacute
o universo inteiro nem em si mesmo o ponto de partida desde que natildeo haacute reuniatildeo de partes
()rdquo (IDEM IBIDEM 246-247) Fica claro o caraacuteter ascendente e natildeo descendente da processatildeo
75
Plotino explica que ldquo() um ser desta natureza natildeo eacute existecircncia primaacuteria deve existir a
partir daquilo do qual transcende o Ser (o Absoluto) ()rdquo (ID IBID 247) e prossegue dizendo
que ldquo() Pluralidade eacute mais tardia que Unidade O Princiacutepio-Intelectual eacute um nuacutemero (=a
expressatildeo de uma pluralidade) e o nuacutemero deriva da unidade a fonte de um nuacutemero como este
deve ser o autecircntico Unordquo (ID IBID) A transcendecircncia que evidencia o caraacuteter progressivo
pode ainda ser entendida desde a ideia de que ldquo() ao contemplar-se a si mesmo a Inteligecircncia
se une ao objeto contemplando uma unidade entre o eu e o ser universal que supera toda
alteridade ()rdquo (BEZERRA OP CIT 79) Com isto eacute possiacutevel resgatar ainda o sentido pelo qual
Beierwaltes destaca a diferenccedila como princiacutepio pelo qual haacute um desvio de Plotino em relaccedilatildeo
agrave ontologia claacutessica (cf BEIERWALTES OP CIT 58) Contudo como se compreende esta
contemplaccedilatildeo eacute o que levaraacute agrave terceira hipoacutestase a alma (ψυχή) Bezerra explica recapitulando
os passos anteriores ldquoVimos anteriormente que o Uno e o Muacuteltiplo apresentam-se sob duas
maneiras distintas a) Uno e natildeo muacuteltiplo (I hipoacutetese) b) Uno-Muacuteltiplo (II hipoacutetese) A alma eacute
portanto ao mesmo tempo uno e muacuteltiplordquo (BEZERRA OP CIT 82) o que significa evidenciar
que ela representa uma distinccedilatildeo radical e afastamento do primeiro princiacutepio o uno
Ainda no oitavo tratado da terceira Eneacuteada Plotino aborda a natureza enquanto ato
criador compreendendo o fenocircmeno a partir de uma tensatildeo entre um Princiacutepio-Racional inerte
e um Princiacutepio-Natural em movimento (cf PLOTINUS OP CIT 239-240 Eneadas III 8 2) que
responderia ainda ao conflito entre unidade e multiplicidade e ainda agrave questatildeo entre tempo e
eternidade Plotino indaga como a natureza responderia ao questionamento colocando
literalmente o argumento na fala da natureza que diria que ldquoOs matemaacuteticos desde suas visotildees
desenham suas figuras mas eu desenho nada eu contemplo as figuras do material do mundo
tomando os seres como eu os sinto desde minha contemplaccedilatildeordquo (IDEM IBDEM 241) chegando a
conclusatildeo de que ldquo() o que noacutes conhecemos por Natureza eacute uma Alma cria de uma Alma
ainda anterior () uma visatildeo interna de si mesmardquo (ID IBID)
76
A visatildeo interna de si mesma mencionada por Plotino prove o entendimento de que ldquoA
alma portanto autodetermina-se e ao mesmo tempo autofragmenta-se pois ao separar-se do
todo volta-se maravilhada para o particularrdquo (BEZERRA OP CIT 84) Disto adveacutem a geraccedilatildeo do
tempo como desordem introduzida no equiliacutebrio primordial e ao mesmo tempo a introduccedilatildeo
de uma ordenaccedilatildeo mediada pela conversatildeo (επιστροφή) ndash pelo retorno maravilhado ao uno ou
uniatildeo ao fundamento por meio da contemplaccedilatildeo
Agora bem toda esta inevitaacutevel breve introduccedilatildeo ao pensamento de Plotino deve
direcionar para uma postura distinta daquela antes observada com a ontologia claacutessica e o
pensamento metafiacutesico Que postura eacute esta Ou melhor qual o caminho que se abre a partir das
trecircs hipoacutestases plotinianas Este eacute o momento no qual o caminho da negatividade comeccedila a se
encorpar e mostrar seu caraacuteter decisivo na constituiccedilatildeo do desvio intelectual do neoplatonismo
Gostaria de fazer um recorte especiacutefico do nono tratado da sexta Eneacuteada para alcanccedilar este
esclarecimento
Plotino reconstitui seu caminho a partir da afirmaccedilatildeo ldquoEacute em virtude da unidade que os
seres satildeo seresrdquo (PLOTINUS OP CIT 614 Eneadas VI 9 1) O que significa afirmar que sem a
unidade natildeo se pode considera que algo seja o que seja Em termos mais simples se nomeio
braccedilo pernas cabeccedila razatildeo sensibilidade entre outras muacuteltiplas singularidades presentes em
um ser humano mas natildeo as congrego em uma unidade pela qual afirmo ldquoser humanordquo que
compreende todas as particulares em questatildeo inexoravelmente perco de vista seu sentido Por
isto ldquoQualquer coisa que possa ser descrita como uma unidade o eacute no preciso grau pelo qual
sustenta um ser caracteriacutestico quanto menor ou maior o niacutevel do ser menor ou maior seraacute a
unidaderdquo (IDEM IBIDEM) Portanto alma seria (em razatildeo de sua distinccedilatildeo da unidade mesma)
uma grande unidade em proporccedilatildeo e na autenticidade do ser e assim ldquoUnidade absoluta natildeo eacute
eacute a alma e a primeira alma a unidade em algum sentido concomitante ()rdquo (ID IBID) deixando
ver como a unidade natildeo eacute e eacute
77
Desta forma pode-se compreender que o uno natildeo pode ser a totalidade dos seres que
anularia sua unidade nem tampouco o ldquoPrinciacutepio-Intelectualrdquo pelo qual as coisas satildeo nem o
ldquoser mesmordquo no sentido da totalidade das coisas Plotino prossegue dizendo ldquoA alma ou mente
movimentando-se rumo ao que eacute sem forma encontra-se em estado de incompetecircncia para
apreender ali onde nada se limita ou onde a se impinge a realidade difusardquo (ID IBID 615 VI
9 3) Assim ldquo(hellip) ante o puro pavor de se sustentar no nada esvai-se O estado eacute doloroso
geralmente busca aliacutevio ao se retratar de sua vagueza na regiatildeo do sentido para ali repousar em
um fundamento soacutelido bem como a visatildeo aflige-se com o minuto no qual repousa na escuridatildeordquo
(ID IBID) Mas para onde olhar frente ao desconforto de natildeo se ter onde repousar Quando se
percebe o quatildeo vago eacute todo e qualquer presumido fundamento ou sentido quando a escuridatildeo
natildeo reflete senatildeo a angustia de uma contemplaccedilatildeo exausta pelo esvair de todo sustento o que
resta para aleacutem discoacuterdia que atinge o intelecto Plotino sintetiza a afliccedilatildeo
A alma deve ver em sua proacutepria maneira isto se daacute por coalescecircncia a unificaccedilatildeo
mas buscando assim conhecer a unidade eacute impedida por esta mesma unificaccedilatildeo de
reconhecer o que foi encontrado natildeo se pode distinguir a si mesmo do objeto de sua
intuiccedilatildeo No entanto este eacute nosso uacutenico recurso caso nossa filosofia busque o
conhecimento da Unidade (ID IBID)
O uacutenico caminho rumo ao conhecimento da unidade eacute um caminho impossiacutevel em si mesmo
uma via cerrada pela proacutepria natureza do questionamento proposto Intuir as trecircs hipoacutestases ou
encadeaacute-las conforme uma loacutegica sistemaacutetica portanto elucida o caminho mas natildeo
necessariamente introspecta e absorve a pureza da experiecircncia Para isto eacute necessaacuterio mais ou
melhor menos ndash muito menos O uacutenico ponto de apoio aqui seraacute a identificaccedilatildeo entre o uno e
bem ou a compreensatildeo da primeira hipoacutestase como uno-bem (τὸ ἑν καὶ αγαθον) cujo sentido
eacute por um lado extrema e pura simplicidade e por outro inefabilidade total devido agrave perfeiccedilatildeo
78
Reivindicar este caminho soacute pode portanto levar a uma supressatildeo absoluta onde
ldquoAinda esta abstenccedilatildeo de autoconhecimento natildeo comporta ignoracircncia ignoracircncia eacute algo de fora
ndash um conhecedor ignorante de um cognosciacutevel ndash mas no solitaacuterio natildeo haacute nem conhecimento
nem nada desconhecidordquo (ID IBID 620 VI 9 6) Plotino entatildeo apresenta uma formulaccedilatildeo
nada usual conforme a qual certo direcionamento de suas intenccedilotildees pode ser entendido em
uma passagem tatildeo emblemaacutetica quanto enigmaacutetica ele escreve
Neste coro a alma olha para a nascente da Vida tambeacutem nascente do Intelecto iniacutecio
do Ser fonte do Bem raiz da Alma Natildeo que eles tenham sido despejados do Supremo
menosprezando-os como se fosse uma massa Nisto aquilo que emana seria pereciacutevel
mas eles satildeo eternos eles nasce de um princiacutepio eterno que produz deles sua
fragmentaccedilatildeo mas em virtude de sua identidade inata portanto eles se manteacutem muito
firmes conto o sol brilhe contanto haveraacute luz
()
Aqueles para os quais toda esta experiecircncia eacute estranha podem entende-la como nossos
anseios terrenos e a alegria que temos ao ganhar o que mais desejamos ndash lembrando
sempre que aqui o que noacutes amamos eacute pereciacutevel doloroso que nosso amor eacute mimeacutetico
e se afasta porque foi tudo um engano nosso bem natildeo estava laacute isto natildeo era o que
procuraacutevamos Haacute apenas o verdadeiro amor onde haacute uniatildeo natildeo segurando isto com
algum tipo de abraccedilo carnal mas possuindo na totalidade sua veracidade Todos
aqueles que viram sabem o que tenho em mente a alma toma outra vida quando se
aproxima de Deus assim restaurada sente que o distribuidor da verdadeira vida estaacute
laacute para ver que agora natildeo temos nada para procurar senatildeo aquilo que precisamos
deixar de lado e deixar assim sozinho assim vindouro assim soacute tudo o que o ambiente
terreno aniquilou na pressa de ser livre impaciente em relaccedilatildeo a qualquer laccedilo que
nos sustenta na base para que com todo nosso ser possamos agarrar-nos sobre isto
quando natildeo sobra nada em noacutes senatildeo aquilo pelo qual tocamos em Deus (ID IBID
623 VI 9 9)
79
As palavras de Plotino ressoam como uma conduta que eacute antes como postura que doutrina O
uso termo ldquoamorrdquo denota claramente uma experiecircncia irregulaacutevel uma tensatildeo entre ausecircncia e
presenccedila preenchimento e falta ndash sem embargo um misteacuterio
O misteacuterio que indicado por Plotino se configura como o guia para a visatildeo que permite
descortinar o sentido pensamento filosoacutefico Um misteacuterio que segue a mesma regra de Platatildeo e
do platonismo onde ldquoNada eacute divulgado para os natildeo-iniciadosrdquo (ID IBID 624 VI 9 11) e do
qual natildeo se pode simplesmente exibir uma estoacuteria ordinaacuteria ldquoCoisas aqui satildeo sinaisrdquo (ID IBID)
adverte Plotino Sinais para aqueles que entram em solo sagrado e tornam real a visatildeo do
inacessiacutevel Ele esclarece ainda ldquoQuando a alma comeccedila novamente a se colocar natildeo se torna
outra mas si mesma assim desprendida natildeo eacute nada senatildeo si mesma auto-reunida natildeo eacute mais
da ordem do ser estaacute no Supremordquo (ID IBID) O desprendimento e a supressatildeo a visatildeo do uno
e o movimento de uniatildeo encaminham para o ldquotodo-transcendenterdquo que jaacute natildeo mais estaacute no niacutevel
daquilo que eacute do ente mesmo do ser mas em uma esfera para aleacutem de todas as coisas que satildeo
e que natildeo satildeo A culminaccedilatildeo do pensamento henoloacutegico de Plotino como uma ldquomiacutestica da
unidaderdquo eacute o berccedilo do neoplatonismo e necessariamente o iniacutecio de sua radicalizaccedilatildeo
Neste fluxo considera-se que existam dois momentos fundamentais do desdobramento
do neoplatonismo a partir da henologia plotiniana quais sejam a teologizaccedilatildeo da henologia
desenvolvida por Proclo e a teologia negativa do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita Em ambos eacute
possiacutevel observar como o caminho da negatividade se configura partir de uma profunda
introspecccedilatildeo de temas que tendem agrave dissoluccedilatildeo do conhecimento ateacute entatildeo concebido
estruturado e instaurado ndash e ainda agrave subversatildeo completa de seus meios de expressatildeo e
significaccedilatildeo isto eacute agrave supressatildeo do saber e do dizer Eles natildeo representam meramente o ldquopasso
adianterdquo como se houvessem ainda superado o discurso antecessor mas antes o ldquopasso atraacutesrdquo
enquanto retorno agraves bases e aos princiacutepios por meio da reivindicaccedilatildeo da atitude desvelada pela
miacutestica onde o misteacuterio natildeo eacute o problema a ser desvendado mas o elemento a ser incorporado
80
O obra de Proclo eacute composta por diversos comentaacuterios aos diaacutelogos de Platatildeo dentre os
quais ao Timeu ao Parmecircnides ao Alcebiacuteades agrave Repuacuteblica entre outros aleacutem de escritos
sistemaacuteticos como os Elementos de Teologia e a Teologia Platocircnica Existem ainda obras que
abordam temas de matemaacutetica astronomia arte magia e tratados propedecircuticos sobre doutrinas
filosoacuteficas Especialmente em relaccedilatildeo agraves contribuiccedilatildeo em torno agrave henologia duas obras satildeo de
suma importacircncia o Comentaacuterio ao Parmecircnides de Platatildeo e os Elementos de Teologia
A leitura de Proclo do Parmecircnides de Platatildeo eacute considerada uma das mais sistemaacuteticas e
originais que teria sobrevivido agraves vicissitudes dos tempos Ademais guardaria ainda um apelo
ao resguardo da filosofia de Platatildeo bem como uma preparaccedilatildeo para um projeto de resgate da
vitalidade do paganismo por meio de um platonismo revigorado 31 Decorreria disto uma
profunda incursatildeo na filosofia como teologia que culminaria em seus Elementos Ainda no
Comentaacuterio Proclo descreve o percurso de Platatildeo em relaccedilatildeo agrave Parmecircnides e manifesta uma
linha argumentativa similar a Plotino
Mas caso se queira chegar o mais proacuteximo da verdade deve-se seguir a linha de nosso
Mestre que Parmecircnides inicia desde o Uno (Ser) (para a proposiccedilatildeo ldquose haacute um unordquo
jaacute que conteacutem aleacutem do ldquoUnordquo o conceito de existecircncia pertence a este tipo de coisas)
ascendendo do Uno Ser para o Uno assim demonstrando que o Uno em sentido estrito
deseja apenas isto ser One e ldquoarrebatar-se para longerdquo do Ser e o Uno Ser eacute
secundaacuterio a este pela razatildeo de sua descendecircncia em direccedilatildeo ao Ser ao passo que o
Uno mesmo eacute superior mesmo agrave designaccedilatildeo ldquoeacuterdquo e a hipoacutetese ldquose haacuterdquo assim que
adicionamos eacute o Uno no sentido estrito natildeo mais permanece (PROCLUS 1987 379-380
In Parm 1033)
31 Estas consideraccedilotildees satildeo de Ciacutecero Cunha Bezerra em Algumas consideraccedilotildees sobre leitura procleana do
Parmecircnides de Platatildeo (2004) Neste artigo ele ainda sustenta em consonacircncia com H D Saffrey (Proclus
diadoque de Platon 1990) que Proclo entra na linha de inteacuterpretes de Platatildeo que entendem sua filosofia como
revelaccedilatildeo de uma verdade divina estruturada a partir do uno filiando Platatildeo aos teoacutelogos gregos (cf BEZERRA 2004
99-100)
81
Proclo apresentaraacute na sequecircncia a impossibilidade de ldquohipotetizarrdquo o uno cindindo de um lado
hipoacutetese-condicionada e de outro anti-hipoacutetese-incondicionada O problema que estaacute sendo
colocado parte da ideia de que natildeo se pode pensar a multiplicidade isolada senatildeo somente por
meio da concepccedilatildeo de uma unificaccedilatildeo Para aleacutem da estrutura binaacuteria uno-muacuteltiplo deve-se
considerar a unificaccedilatildeo como consequecircncia necessaacuteria dando origem agrave formulaccedilatildeo ldquouno-
unificado-muacuteltiplordquo para explicar como eacute simplesmente possiacutevel que hajam elementos pelos
quais outros se unificam32
O resultado da formulaccedilatildeo de Proclo parece ser a absolutizaccedilatildeo do uno e sua
identificaccedilatildeo com Deus algo sobremaneira evidente na proposiccedilatildeo de seus Elementos que diz
ldquoTodo intelecto divino eacute uniforme ou possui a forma do Uno e eacute perfeito E o primeiro intelecto
subsiste por si mesmo e produz outros intelectosrdquo (IDEM 1998 86 Elem Theo Prop CLX)
Proclo argumenta ainda que se haacute um Deus ele eacute preenchido de unidades divinas e eacute uniforme
sendo ainda perfeito e cheio da bondade divina havendo um Deus primeiro que provecirc as
hipoacutestases para outros intelectos
Este eacute precisamente o ponto que seraacute aprofundado pelo Pseudo-Dioniacutesio Areopagita em
sua teologia negativa Tanto em Proclo quanto no Pseudo-Dioniacutesio o divino habita a
compreensatildeo filosoacutefica da realidade como incorporaccedilatildeo do misteacuterio seguindo ainda a esteira
da muacutetua reciprocidade entre filosofia e religiatildeo demanda por Plotino desde o iniacutecio Pseudo-
Dioniacutesio coroa a radicalizaccedilatildeo do uno e sua identidade com o Deus primeiro apresentado como
supraessencial (ὑπερούσιε) suprabondoso (ὑπεράγαθε) e mesmo supradivino (ὑπερθεε) razatildeo
pela qual ele demanda que ldquo() em absoluta renuacutencia de si mesmo e de todas as coisas deveraacutes
na pureza deixar todas as coisas de lado liberando-se de tudo e sendo assim levado para cima
para o Raio da Divina Treva que excede toda existecircnciardquo (DIONYSIUS THE AREOPAGITE 1920 192)
32 Esta passagem eacute cuidadosamente explicada por Giuseppe Girgenti que esclarece que ldquoO ponto culminante do
primeiro grupo de teoremas eacute o alargamento da hierarquia de quatro termos uma vez que o raciociacutenio de Proclo
levou a distinguir o intermediaacuterio entre o proacuteprio Uno e o unificado ou seja elementos que compotildeem o unificada
as primeiras unidades do natildeo-unificado ou a henadirdquo (GIRGENTI 2009 113-114)
82
Discursar acerca da inefabilidade impotildee no Pseudo-Dioniacutesio uma superaccedilatildeo da proacutepria
linguagem que se revela agora como uma construccedilatildeo liberta de qualquer fronteira e acima de
qualquer paradoxo onde negaccedilatildeo (ἀπόφασις) e afirmaccedilatildeo (κατσφάσις) comungam de igual
valor e sentido em uma mesma e uacutenica esfera A primazia propriamente apofaacutetica que toma
conta da fala do Pseudo-Dioniacutesio ganha forccedila quando supera toda definiccedilatildeo conceitual e
identifica Deus como nada daquilo que eacute
Uma vez mais indo ainda mais alto mantemos que Ele natildeo eacute alma ou mente ou
concebido pela faculdade da imaginaccedilatildeo conjuntura razatildeo ou entendimento nem eacute
nenhum ato de razatildeo ou compreensatildeo nem pode ser descrito pela razatildeo ou percebido
pelo entendimento jaacute que natildeo eacute nuacutemero ou ordem ou magnificecircncia ou pequenez
ou igualdade ou desigualdade e jaacute que natildeo estaacute inerte nem em movimento ou em
descanso e natildeo possui poder e natildeo eacute poder nem luz e natildeo vive e natildeo eacute vida nem eacute
essecircncia pessoal ou eternidade ou tempo nem pode ser apreendido pelo
entendimento jaacute que natildeo eacute nem conhecimento nem verdade nem eacute reinado ou
sabedoria nem eacute uno nem unidade nem deidade ou bondade natildeo eacute um espiacuterito como
se entende o termo jaacute que natildeo eacute Filho nem Pai nem eacute nenhuma outra coisa tal como
noacutes ou qualquer outro ente do qual se possa ter conhecimento nem pertence a
categoria de natildeo-existecircncia ou de existecircncia nem os entes existentes o conhecem
como realmente eacute nem Ele os conhece como realmente satildeo nem a razatildeo pode o
atingir nomear ou conhecer nem eacute escuridatildeo nem eacute luz ou erro ou verdade nem
nenhuma afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo pode ser aplicada porquanto aplicar afirmaccedilotildees e
negaccedilotildees natildeo se aproximam Dele noacutes natildeo aplicamos nem negaccedilatildeo nem afirmaccedilatildeo
enquanto transcende toda afirmaccedilatildeo por ser perfeita e uacutenica Causa dos seres e
transcende toda negaccedilatildeo pela preeminecircncia de sua livre natureza simples e absoluta
de qualquer limitaccedilatildeo e para aleacutem de tudo (DIONYSIUS THE AREOPAGITE 1920 200-201)
83
Seria justo afirmar que esta densa passagem da Teologia Miacutestica eacute muito mais proacutexima de uma
declaraccedilatildeo de amor do que uma articulaccedilatildeo filosoacutefica (e caberia aiacute perguntar se haacute enfim
alguma diferenccedila entre uma coisa e outra) Pseudo-Dioniacutesio natildeo apenas promove um
movimento de negaccedilatildeo em direccedilatildeo agrave toda afirmaccedilatildeo mas ainda rumo agrave proacutepria negaccedilatildeo Neste
sentido a definiccedilatildeo mais justa conforme a qual se utiliza aqui o termo negatividade seguiria
com precisatildeo os termos do Pseudo-Dioniacutesio entendendo que o caminho negativo estaacute mais
aleacutem de toda afirmaccedilatildeo e mesmo de toda negaccedilatildeo Esta eacute ainda a via para entender o que pode
ser nomeado como meontologia um percurso intelectual que apoiado pela henologia
neoplatocircnica natildeo se fundamenta mais no ente mas antes no natildeo-ente (μή ὄν) ou mesmo no
nada
As consequecircncias da henologia neoplatocircnica de Plotino e Proclo e da meontologia
miacutestica do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita natildeo passaratildeo incoacutelumes pelos seacuteculos que se seguiriam
agrave composiccedilatildeo dos escritos aqui conjurados Contudo algumas recepccedilotildees bastante acuradas e
inspiradas criativas e bem desenvolvidas ocupar-se-iam de resgatar o sentido do pensamento
negativo e desdobrar a profundidade do problema Eacute possiacutevel citar algumas dezenas de filoacutesofos
que se dedicaram ao diaacutelogo com o neoplatonismo e a teologia negativa Aqui gostaria de
encerrar este capiacutetulo direcionando-o para uma interlocuccedilatildeo especial e ao meu ver central para
a difusatildeo da negatividade na filosofia medieval moderna e contemporacircnea Tenho em mente
Joatildeo o Escoto chamado Eriuacutegena
Eriuacutegena ocupou um lugar de destaque nas altercaccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas durante
o chamado Renascimento Caroliacutengio sendo-lhe atribuiacutedas tarefas como a traduccedilatildeo do grego
para o latim das obras do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita bem como explanaccedilotildees em torno agrave
contenda da divina predestinaccedilatildeo e agraves interpretaccedilotildees e exegeses suscitadas pela disputa erguida
pela cultura biacuteblica do periacuteodo33
33 Para especificaccedilotildees em torno a Eriuacutegena e seu tempo confira CONTRENI 1996 e MCNAMARA 1996
84
A presenccedila do neoplatonismo em Eriuacutegena parece se posicionar de maneira estrateacutegica
ao longo dos movimentos por ele realizados em sua magna obra o Periphyseon Natildeo se pode
perder de vista as possiacuteveis definiccedilotildees do neoplatonismo natildeo apenas dentro de suas esferas
relacionais e a partir das tendecircncias de leitura mas ainda por meio da questatildeo fundamental que
problematiza todo conteuacutedo qual seja como o uno se relaciona com o muacuteltiplo ou ainda como
o que eacute primeiro se relaciona com o que eacute posterior Oscar Federico Bauchwitz sustenta que
ldquo() a questatildeo pela antonomaacutesia do neoplatonismo enquanto uma reflexatildeo acerca da relaccedilatildeo
entre o Criador e a criatura entre o Uno e a multiplicidade pode ser enfocada na obra de
Eriuacutegena no que diz respeito a creatio ex nihilo e ao sentido original que eacute determinado ao
termo nihilrdquo (BAUCHWITZ 2001 11) Assumindo esta hipoacutetese como vaacutelida torna-se
imprescindiacutevel compreender o lugar que tal questatildeo ocupa na obra eriugeneana e como ela se
desenvolve
Conforme os apontamentos de Bauchwitz o ldquonadardquo se apresenta pela primeira vez jaacute
no iniacutecio do Periphyseon ao serem articulados os modos da diferenccedila fundamental da divisatildeo
da natureza (φύσις natura) definida como tudo aquilo que eacute e que natildeo eacute (quae sunt et quae non
sunt) sendo dividida em quatro espeacutecies ldquo() primeiro naquilo que cria e natildeo eacute criado segundo
naquilo que eacute criado e tambeacutem cria terceiro naquilo que eacute criado e natildeo cria enquanto o quarto
nem cria nem eacute criadordquo (ERIVGENAE 1999 37 441ordf) O que eacute pode ser percebido apreendido e
conhecido O que natildeo eacute todavia natildeo se pode perceber apreender ou conhecer (cognoscitur non
quid est sed quia est) De acordo com Bauchwitz o termo quid est (ldquoo que eacuterdquo) diz respeito agrave
essecircncia de tudo que permanece incompreensiacutevel e infinito ao passo que quia est (ldquoque eacuterdquo)
indica a existecircncia da essecircncia divina ou seja seus efeitos como algo determinado e que eacute O
incompreensiacutevel da natureza divina Eriuacutegena deixa ver quando escreve ldquoPortanto se eacute por
causa de sua excelecircncia inefaacutevel e incompreensiacutevel infinitude que a Natureza Divina eacute dita natildeo
ser disto se segue que ela eacute nada ()rdquo (IDEM 2005 61 634C)
85
A impossibilidade de compreender a natureza divina eacute o que permite a Eriuacutegena
descortinar seu entendimento acerca da creatio ex nihilo Bauchwitz escreve sobre este ponto
ldquoA questatildeo se origina eacute que se a diferenccedila fundamental abarca a totalidade da natureza o que
se poderia predicar de Deus Isto eacute o que haacute para mais aleacutem do ser e do natildeo ser senatildeo o Nada
desde o qual Deus cria todas as coisasrdquo (BAUCHWITZ OP CIT 12) O problema eacute apresentado por
Eriuacutegena a partir da busca pelo sentido conforme o qual se questiona de que maneira eacute possiacutevel
compreender como todas as coisas que satildeo se originam do nada (ou nos termos do
neoplatonismo pagatildeo a mesma questatildeo de ldquocomo do uno se origina a multiplicidade) Eacute
possiacutevel interpretar esta passagem alegando que Eriuacutegena se refere ao nihilo em perfeita
sintonia com toda doutrina Cristatilde da criaccedilatildeo como de fato faz sentido afirmar Contudo
Eriuacutegena vislumbra o que considera ldquoa verdadeira essecircncia da natureza divinardquo O Criador que
cria todas as coisas que satildeo criadas insere-se naquela parte da divisatildeo da natureza na qual ldquocria
mas natildeo eacute criadordquo enquanto sua ldquoessecircnciardquo reflete aquilo que ldquonatildeo eacute nem criado nem criardquo
Em outros temos indica-se que nada eacute a natureza divina de Deus ou ainda que natildeo-ser
corresponde agrave divindade
Resta ainda resolver o mesmo problema ante ao qual se encontraram Plotino Proclo o
Pseudo-Dioniacutesio entre outros a saber como eacute possiacutevel para Deus desarraigar-se de seu nada
ou desdobrar-se desde si mesmo Bauchwitz oferece uma explicaccedilatildeo quando potildee em relevo o
problema da expressatildeo do paradoxo
() por meio da criatura eacute Deus quem se manifesta e portanto todas as criaturas
podem ser entendidas como certas apariccedilotildees divinas isto eacute teofania Neste sentido a
teofania nomeia o paradoxo da ineffabilis difusio que diz que o infinito devem finito
que o incompreensiacutevel devem compreensiacutevel que o silecircncio clama (BAUCHWITZ 2003ordf
57)
86
Em Eriuacutegena eacute possiacutevel acompanhar o sentido da explicaccedilatildeo de Bauchwitz na passagem que
diz
Tudo o que eacute entendido e sentido nada mais eacute senatildeo apariccedilatildeo do que natildeo eacute aparente
a manifestaccedilatildeo do oculto afirmaccedilatildeo da negaccedilatildeo compreensatildeo do incompreensiacutevel [a
expressatildeo do inexpressiacutevel o acesso ao inacessiacutevel] o intelecccedilatildeo do ininteligiacutevel o
corpo do incorpoacutereo a essecircncia do supraessencial a forma do informado a medida
do incomensuraacutevel o nuacutemero do inumeraacutevel o peso do impensaacutevel a materializaccedilatildeo
do espiritual a visibilidade do invisiacutevel o lugar do natildeo-lugar o tempo do natildeo-tempo
a definiccedilatildeo do infinito a circunscriccedilatildeo do incircunscrito e as outras coisas que satildeo
ambas consideradas e percebidas pelo intelecto sozinho e natildeo podem se restringir
dentro de recessos da memoacuteria e nas quais escapa agrave destreza da mente (ERIVGENAE OP
CIT 59 633BC)
A despeito da possibilidade de sintonia com a doutrina Cristatilde da criaccedilatildeo (especificamente o
sentido moralizante da gecircnese) natildeo haacute forccedila catequeacutetica senatildeo puramente especulativa na
maneira pela qual Eriuacutegena aborda a questatildeo O acesso ao sagrado aparece antes como uma
atitude fundamental na qual se insiste no misteacuterio da nadidade do divino
O resultado do caminho meditativo de Eriuacutegena eacute uma postura na qual o pensamento
natildeo responde apenas agraves demandas imediatas agraves preocupaccedilotildees que sanem os conflitos
existenciais e sociais mas uma intelecccedilatildeo cujo grau de alcance atinge toda mensurabilidade e
incomensurabilidade da estruturaccedilatildeo do real como internalizaccedilatildeo do segredo oculto e dos
misteacuterios da natureza Parece ser neste sentido que Bauchwitz sugere uma eacutetica do silecircncio
onde ldquo() natildeo basta enunciar o princiacutepio que deve reger as accedilotildees do ser humano () O silecircncio
como destino a ser alcanccedilado soacute tem sentido na medida em que nomeia a incessante e natural
disposiccedilatildeo do proacuteprio homem em dirigir-se a elerdquo (BAUCHWTZ OP CIT 12) Antes de resolver
qualquer problema assume-se o respeito para com a profundeza do incocircndito
87
Durante a introduccedilatildeo desta tese referi-me a um outro escrito de Bauchwitz Nihilismo
e Neoplatonismo assumindo que aquele artigo havia sido responsaacutevel por traccedilar uma direccedilatildeo
ou mesmo proporcionar um estiacutemulo ao desenvolvimento deste trabalho Gostaria de retornar
agravequele artigo uma vez mais para encerrar esta seccedilatildeo com definiccedilotildees mais precisas a respeito da
henologia e da meontologia como ultrapassagem dos limites da metafiacutesica
O capiacutetulo anterior evidenciou que com a ontologia ou a substantivaccedilatildeo do pensamento
ocidental por meio da confusatildeo entre ser e ente perdeu-se natildeo a capacidade intelectual do ser
humano mas o atino para o seu fundamento Em razatildeo da urgecircncia de respostas abandonou-se
tudo aquilo que era por princiacutepio incoacutegnito inefaacutevel inexprimiacutevel Como havia dito na
introduccedilatildeo com o apoio do trabalho de Bauchwitz a consumaccedilatildeo deste movimento eacute anunciado
por meio de um diagnoacutestico do niilismo Neste sentido Bauchwitz escreve
A relaccedilatildeo entre Nihilismo e Neoplatonismo que aponta para uma eacutetica aleacutem dos
limites da temporalidade e de crenccedilas religiosas ainda estaacute para ser esclarecida Uma
tal eacutetica somente poderaacute ser realmente quando cumpridas umas exigecircncias que neste
trabalho foram apenas assinaladas a superaccedilatildeo da vontade e em consequecircncia da
proacutepria liberdade soacute pode ser interpretada em uma perspectiva que jaacute natildeo se encontra
nos limites da ontologia tradicional ou no dizer de Heidegger no acircmbito da metafiacutesica
O sem-propoacutesito de uma tal eacutetica que abnega qualquer visatildeo utilitarista e
simplesmente dada do mundo exige pensar a partir de novas fundamentaccedilotildees e
valores o retorno do divino eacute uma metaacutefora que atende a tais exigecircncias na medida
em que ao tempo que nos abre uma concepccedilatildeo totalmente outra daquele que ancora
os principais valores vigentes questiona pelos conceitos fundamentais que
homologaram esses valores como superiores porque quantificaacuteveis A ausecircncia de
referecircncias fixadas pelos padrotildees contemporacircneos que mensuram o bem-estar de cada
indiviacuteduo e o resgate de uma vivecircncia que se justifica nela mesma e natildeo pelas suas
finalidades devem servir de origem para superar a ldquonoite do mundordquo (BAUCHWITZ OP
CIT 179-180)
88
Em primeiro lugar eacute importante destacar que a falta de esclarecimento da ldquoeacutetica aleacutem dos
limitesrdquo ou como prefiro colocar aqui ldquopara aleacutem das fronteirasrdquo natildeo soacute natildeo estaacute clara como
assim deve permanecer caso queira responder agrave exigecircncia de absorver a negatividade que
tambeacutem faz parte da humanidade do humano mas que foi todavia afasta de sua visatildeo da
realidade Por este motivo utiliza-se aqui o termo conflito das fronteiras para indicar natildeo uma
resoluccedilatildeo de problemas mas a assunccedilatildeo de um confronto Sendo assim a ultrapassagem de
limites deve se dar apenas no que tange agrave possibilidade de abrir o pensamento para aleacutem da
metafiacutesica tradicional Explorar o que haacute de propriamente fraco o que natildeo se sustenta o que
natildeo pode ser
A temaacutetica poderia ser encerrada aqui Seria possiacutevel retornar ao neoplatonismo com
ainda mais cautela e extrair de laacute mesmo os elementos para subverter toda sorte de ordenamento
que lanccedila o ser humano na ldquonoite do mundordquo Contudo meu interesse aqui eacute explorar mais um
momento da histoacuteria da filosofia e se possiacutevel encontrar um ponto de apoio para reunir a
tradiccedilatildeo metafiacutesica e o neoplatonismo em um uacutenico problema Minhas hipoacutetese conforme seraacute
desenvolvida no terceiro e uacuteltimo capiacutetulo eacute encontrar uma orientaccedilatildeo Orientaccedilatildeo extrema
Ali no Extremo Oriente
89
3 O EXTREMO ORIENTE E O CONFLITO DAS FRONTEIRAS A FILOSOFIA COMPARADA INTERCULTURAL
COMO CHAVE DE LEITURA PARA ALGUNS PROBLEMAS DO PENSAMENTO CONTEMPORAcircNEO
O ambiente acadecircmico britacircnico do final da deacutecada de 1970 foi palco de uma fervorosa disputa
acerca das interpretaccedilotildees e definiccedilotildees culturais entre Ocidente e Oriente A publicaccedilatildeo do livro
Orientalism (1978) de Edward Wadie Said (ع إدوارد Idwārd Wadīʿ Saʿīd) fomentou ديعس ودي
uma inesgotaacutevel discussatildeo acerca de qualquer suposta correspondecircncia deste ou daquele
elemento nos princiacutepios da tradiccedilatildeo oriental sustentando em termos bem simples que o
Oriente era antes uma invenccedilatildeo convencional Said sofreu diversas criacuteticas algumas mais
significativas outras menos Uma de suas consideraccedilotildees mais discutidas afirma que ldquo() o
Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente) como sua imagem ideacuteia personalidade e
experiecircncia de contraste Contudo nada desse Oriente eacute meramente imaginativordquo (SAID 1990
13-14) acrescentando ainda de forma incisiva que ldquoO Oriente expressa e representa esse
papel cultural e ateacute mesmo ideologicamente como um modo de discurso com o apoio de
instituiccedilotildees vocabulaacuterio erudiccedilatildeo imagiacutestica doutrina e ateacute burocracias e estilos coloniaisrdquo
(IDEM IBIDEM 14) Said defendeu que o Oriente tal qual eacute conhecido pelo mundo ocidental natildeo
corresponde agrave proveniecircncia originaacuteria de suas tradiccedilotildees mas eacute antes uma estrateacutegia (poliacutetica e
econocircmica) de manutenccedilatildeo geograacutefica Toda designaccedilatildeo acadecircmica de qualquer orientalismo
ateacute entatildeo desenvolvido estaria entatildeo equivocada apoiada em pressupostos que natildeo condizem
com a tradiccedilatildeo oriental Sem embargo o mesmo poderia ser dito a respeito da introspecccedilatildeo do
mundo grego pelo mundo romano-latino e no decorrer da histoacuteria da humanidade eacute possiacutevel
ainda identificar outras centenas de casos semelhantes ateacute o ponto no qual se afirma a
globalizaccedilatildeo por meio da modernizaccedilatildeo de todos os recantos do planeta dentro do iacutempeto de
igualar todas as culturas em um niacutevel comum
90
Entretanto apesar de ser possiacutevel interpretar as assertivas de Said de forma mais
ponderada aproveitando com isto certo direcionamento fatalista embora natildeo necessariamente
inveriacutedico de sua investigaccedilatildeo algumas gafes de sua compreensatildeo da histoacuteria se revelam
bastante perturbadoras Um dos principais criacuteticos de Said Robert Irwin publicou uma obra
onde ampla parte eacute dedicada agrave refutaccedilatildeo direta dos principais argumentos de Said Em For the
Lust of Knowning (2006) Irwin destaca algumas inverdades de Said e contrargumenta de
maneira precisa certas falaacutecias Contudo Irwin eacute tambeacutem bastante emotivo em sua abordagem
ele escreve ldquoPara pocircr minhas cartas na mesa jaacute de iniacutecio a meu ver aquele livro [Orientalism]
eacute uma obra de uma impostura maleacutevola na qual eacute difiacutecil distinguir erros verdadeiros de
falsidades propositadasrdquo (IRWIN 2006 11) Irwin ataca principalmente os erros fatuais de Said
apontando para lacunas na fundamentaccedilatildeo da obra Orientalism34 destacando vaacuterios enganos e
afirmando em siacutentese ldquoPois se eacute possiacutevel apresentar uma imagem falsa do orientalismo do
cristianismo e do imperialismo britacircnico natildeo seria tatildeo obviamente errado apresentar de modo
semelhante uma falsa imagem do islatilde da histoacuteria aacuterabe ou da difiacutecil situaccedilatildeo dos palestinosrdquo
(IDEM IBIDEM 330-331) fazendo referecircncia agraves posiccedilotildees por Said defendidas Em suma Irwin daacute
a entender nas entrelinhas que a politizaccedilatildeo de um criacutetico literaacuterio no caso Said tornou a obra
Orientalism um intento mal construiacutedo como ferramenta para sustentaccedilatildeo de posiccedilotildees poliacuteticas
condenando todo seacuterio estudo que envolve o orientalismo Ateacute entatildeo muitos outros
pesquisadores e eruditos atacaram Said bem como tantos outros o admiravam e o defenderam
Todavia com a apresentaccedilatildeo desta disputa quero aqui destacar um fator iacutempar que natildeo
necessariamente se prende agrave contenda mas que encobre o toacutepico de modo geral
34 Irwin destaca alguns erros ldquoOrientalismo daacute a impressatildeo de um livro escrito agraves pressas Eacute repetitivo e conteacutem
muitos erros factuais Said menciona lsquoPedro o Veneraacutevel e outros orientalistas cluniacensesrsquo Que outros
orientalistas cluniacenses Seria interessante conhecer seus nomes (Mas naturalmente a ideia de que houvesse toda
uma escola de orientalistas cluniacenses eacute absurda Pedro o Veneraacutevel trabalhou sozinho) Como Bernard Lewis
ressaltou Said faz com que exeacutercitos muccedilulmanos conquistem a Turquia antes de conquistarem o norte da Aacutefrica
Isso realmente sugere uma ignoracircncia espantosa da histoacuteria do Oriente Meacutedio da mesma forma que sua crenccedila
quanto a terem a Gratilde-Bretanha e a Franccedila dominado a regiatildeo oriental do Mediterracircneo a partir do final do seacuteculo
XVIIrdquo (IRWIN 2006 329)
91
Com a discussatildeo entre os orientalistas e seus inimigos o importante eacute destacar natildeo
apenas as dificuldades que envolvem todo e qualquer estudo comparado entre Ocidente e
Oriente mas o fato de que eacute da natureza do proacuteprio estudo comparado que haja divergecircncias
A divergecircncia e o erro satildeo de fato disposiccedilotildees naturais dos estudos comparados sem os quais
natildeo seria possiacutevel sequer dar iniacutecio agrave discussatildeo ou desenvolver qualquer linha de raciociacutenio
preparatoacuteria Soacute eacute possiacutevel falar em estudos comparados porque houve de antematildeo a percepccedilatildeo
de uma divergecircncia Mais ainda a necessidade do momento e os acasos eventuais direcionam
os estudiosos para um ou para outro lado Assim como Said saiu em defesa da Palestina durante
um periacuteodo no qual os conflitos haviam se asseverado em decorrecircncia da expulsatildeo das forccedilas
de paz das Naccedilotildees Unidas em 1967 tambeacutem outros pensadores em outros momentos da histoacuteria
foram motivados por acontecimentos histoacutericos sejam eles de guerra ou de paz poliacuteticos
econocircmicos ou religiosos Como por exemplo as diversas manifestaccedilotildees de revolta e
indignaccedilatildeo de Theodor Wiesengrund Adorno e Gershom Scholem apoacutes Auschwitz ou as
anaacutelises polecircmicas de Slavoj Žižek das revoltas do subuacuterbio de Londres e da Primavera Aacuterabe
Contudo algumas deacutecadas antes da publicaccedilatildeo da obra de Said precisamente durante a
deacutecada de 1950 o Departamento de Filosofia da University of Hawairsquoi at Mānoa havia
alavancado uma seacuterie de trabalhos a respeito dos fundamentos e procedimentos dos estudos
comparados Eacute preciso considerar que proacuteprio departamento jaacute havia sido estruturado entre
1930 e 1940 com o objetivo de suprir a lacuna que havia a respeito dos estudos comparados na
filosofia A primeira East-West Philosophers Conferece em 1939 ditou o tom pelo qual se
tornaria possiacutevel falar abertamente alguns anos mais tarde de uma filosofia comparada
intercultural Ali natildeo escapou a ideia de que foi justamente por meio do ldquoerrordquo que se
estabelecia o diaacutelogo entre fronteiras Em outras palavras este diaacutelogo nascia jaacute sempre de um
conflito das fronteiras A hipoacutetese de consenso eacute explorada neste sentido apenas mediante a
assunccedilatildeo de certa ignoracircncia parcial e sopesando ainda as variaccedilotildees de interpretaccedilatildeo
92
O rigor filosoacutefico que direcionou as primeiras tentativas da filosofia comparada em
confrontar as tradiccedilotildees sapienciais ocidentais e orientais permitiu a instauraccedilatildeo de uma postura
cuidadosa e quase mesmo analiacutetica do problema35 Com isto foi possiacutevel comeccedilar a pensar de
que forma elementos do pensamento oriental e da filosofia ocidental poderiam convergir ou
divergir e quais as contribuiccedilotildees que este tipo de comparaccedilatildeo pode trazer aos problemas da
contemporaneidade Todavia como anos mais tarde discutiriam Said Irwin e outros natildeo se
pode desprezar o fato de que nada escapa aos entrelaccedilamentos ldquoirrastreaacuteveisrdquo das relaccedilotildees entre
Ocidente e Oriente Neste sentido embora qualquer comprovaccedilatildeo cientiacutefica empaque frente aos
desafios historiograacuteficos natildeo eacute de todo ingecircnuo especular as influecircncias que por exemplo
Platatildeo teria sofrido da sabedoria primitiva de hinduiacutesta e budistas como sustentam diversos
especialistas36 Ou ainda da indagaccedilatildeo acerca de ateacute que ponto o Aristoacuteteles que conhecemos
natildeo foi orientalizado por Al-Farabi (صر ون ن محمس اب ی محمس ب اراب Abū Naṣr Muḥammad ibn ف
Muḥammad Fārābī) Avicena (ن نا اب ع د ou و لی اب نا ع ع د Pūr Sinɑʼ ou ainda ور نا پ ع د Pur-
e Sina em aacuterabe و لي أب عن ع س ح ن ال بس ب الله ع ن نا ب ع د Abū ʿAlī al-Ḥusayn ibn ʿAbd Allāh
ibn Al-Hasan ibn Ali ibn Sīnā) entre outros filoacutesofos da tradiccedilatildeo aacuterabe Sem contar os
sincretismos que permearam a filosofia do helenismo tardio em Alexandria onde pagatildeos
judeus cristatildeo e mulccedilumanos travavam interminaacuteveis disputas teoacutericas (e natildeo apenas teoacutericas)
a respeitos dos fundamento filosoacuteficos e teoloacutegicos religiosidade momento no qual fica difiacutecil
empreender uma anaacutelise pormenorizada de quem influenciou quem quando o quanto e como37
35 Charles A Moore ponderou no trabalho Some Problems of Comparative Philosophy (1951) a dificuldade em
posicionar as doutrinas orientais em um grupo homogecircneo como podia ser feito com a ocidentais apontando ainda
para o cuidado em evitar as caracterizaccedilotildees e comparaccedilotildees a partir de tendecircncias mais gerais (cf MOORE 1951 67)
Kwee Swan Liat escreveu ainda em Methods of Comparative Philosophy (1951) que ao menos sete esferas de
aplicaccedilatildeo metodoloacutegica devem ser previamente levadas em consideraccedilatildeo (aproximaccedilatildeo filoloacutegica histoacuterica
comparativa formal-valorativa psicoloacutegica fenomenoloacutegica e socioloacutegica-antropoloacutegica) avaliando uma por
uma e propondo por conseguinte uma oitava aproximaccedilatildeo total-integrativa (cf KWEE SWAN LIAT 1951 10ss) 36 Estas hipoacuteteses satildeo levantadas por Graham Parkes na introduccedilatildeo de Heidegger and Asian Thought (1987) (cf
PARKES 1987 1) 37 Este ponto especiacutefico acerca das contendas do periacuteodo heleniacutestico foram sobremaneira bem expostas por Jean
Pepiacuten no escrito intitulado Heacutelleacutenisme et christianisme no volume de Franccedilois Chacirctelet La Philosophie v 1 De
Platon agrave Saint Thomas Paris Marabout 1995
93
Falar efetivamente de uma filosofia comparada intercultural todavia pressupotildee outra
perspectiva aquela na qual ambas as tradiccedilotildees estatildeo culturalmente niacutetidas e bem delineadas
(ainda que por meio de caracterizaccedilotildees vulgares pouco precisas ou mesmo caricatas) e satildeo
entendidas como exponencialmente distintas Entretanto as mesmas dificuldades permanecem
Com isto quero dizer fica difiacutecil afirmar ateacute que ponto um lado compreendeu o outro de modo
suficiente e satisfatoacuterio sendo possiacutevel indagar ainda se as apropriaccedilotildees natildeo se deram mediante
interpretaccedilotildees equivocadas ou leituras transviadas sobretudo quando natildeo haacute domiacutenio pleno dos
idiomas envolvidos
Estas asseveraccedilotildees tomaram conta de muitos pensadores no decorrer da histoacuteria da
humanidade Ateacute onde eacute possiacutevel investigar dois momentos marcam o iniacutecio da relaccedilatildeo
expliacutecita (e natildeo meramente impliacutecita como no caso dos primeiros filoacutesofos gregos de Platatildeo e
de Aristoacuteteles) entre Ocidente e Oriente na filosofia a apropriaccedilatildeo latina durante a Idade Meacutedia
dos escritos aacuterabes do Oriente Meacutedio38 e a interlocuccedilatildeo e introspecccedilatildeo da tradiccedilatildeo do Extremo
Oriente (sobretudo chinesa em um primeiro momento) na filosofia alematilde dos seacuteculos dezessete
e dezoito Aqui interessa especialmente o diaacutelogo com o Extremo Oriente e como ele natildeo se
encerrou no mero intercacircmbio de tradiccedilotildees fomentando um movimento de reversatildeo no qual os
orientais por sua vez tambeacutem abriram interlocuccedilatildeo direta com o pensamento ocidental
introspectando a filosofia e desenvolvendo ao seu modo formas de reflexatildeo nos mesmos
moldes da estrutura categoacuterica ocidental mas partindo dos princiacutepios orientais ainda que em
certa medida (como se veraacute) tais princiacutepios por vezes comunguem em muitos aspectos de
elementos e direcionamentos comuns aos ocidentais e por vezes natildeo Para isto eacute preciso
investigar brevemente a gecircnese desta relaccedilatildeo e como ela tem iniacutecio
38 Sobre este toacutepico que natildeo seraacute abordado aqui confira W Raven e A Akasoy (eds) Islamic Thought in the
Middle Ages Studies in Text Transmissions and Translations in Honour of Hand Daiber Leiden Brill 2008 D
Calma Eacutetudes sur le premier siegravecle de lrsquoaverroisme latin approches et textes ineacutedits Turnhout Brepols 2010
entre outros
94
A despeito da culminaccedilatildeo das luzes no periacuteodo moderno diversos temas obscuros
perpassaram o seacuteculo dezessete sobretudo aqueles motivados pelas missotildees catequeacuteticas
jesuiacutetas na China que inevitavelmente influenciaram o ambiente intelectual da eacutepoca 39
Independente dos transtornos causados pelos europeus em suas incursotildees tambeacutem na Europa
os problemas apareceram Quando os documentos acerca das tradiccedilotildees chinesas de pensamento
desembarcaram no continente europeu despertaram imediato interesse em diversos estudiosos
Contudo tampouco foi ameno o iniacutecio deste diaacutelogo O caso mais draacutestico se deu em
1723 quando Christian Wolff fugiu de Halle an der Saale em Sachsen-Anhalt na Alemanha
em decorrecircncia de uma seacuterie de perseguiccedilotildees despertadas por um discurso por ele pronunciado
dois anos antes sob o tiacutetulo Oratio de Sinarum philosophia practica (1721) O motivo era
polecircmico e suscetiacutevel de distintas interpretaccedilotildees Wolff afirmara que ldquoA mesma autoridade que
possui os ditos e feitos de Cristo possui tambeacutem Confuacutecio para os chineses Moiseacutes para os
judeus e Mohammed para os turcosrdquo (WOLFF 1985 117) Embora Wolff tenha impressionado
grande parte de seus ouvintes com o teor apaixonado de sua preleccedilatildeo tal comparaccedilatildeo redundou
em acirradas criacuteticas por diversos professores e eruditos que acompanhavam a fala e a
interpretaram como uma espeacutecie de ateiacutesmo mais ou menos mitigado Estas acusaccedilotildees todavia
natildeo eram fruto apenas da sinofilia de Wolff mas advinham jaacute de seu confronto com colegas
pietistas da Universidade de Halle devido agrave inclinaccedilatildeo bastante evidente para um pensamento
racionalista e secular40
39 Sobre as missotildees jesuiacutetas confira Wenzhao Li Die christliche China-Mission im 17 Jahrhundert Stuttgart
Franz Steiner 2000 Acerca do caso especiacutefico do diaacutelogo com a filosofia alematilde confira ainda Antonio Florentino
Neto Von der Interpretation zum Gespraumlch Das chinesische Denken in deutschen Philosophie Saarbruumlcken
SVH 2013 Florentino Neto ainda comenta que as missotildees tiveram iniacutecio ainda no seacuteculo dezesseis tendo
comeccedilado no Japatildeo e soacute entatildeo atingido a China no seacuteculo dezessete (cf FLORENTINO NETO 2009 41) 40 Os interesses de Wolff pela China bem como pelo racionalismo paulatinamente aparecem em seus escritos
desde a influecircncia direta de Leibniz ateacute a leitura dos tratados dos jesuiacutetas a respeito da China Menccedilotildees ao
pensamento chinecircs e o peso da admiraccedilatildeo que nutria por Reneacute Descartes satildeo evidentes em seus trabalhos a partir
de 1721 (cf LACH 1953) A despeito dos interesses de Wolff pelo pensamento chinecircs sobretudo acerca dos temas
morais constata-se que ele considerava o cristianismo moralmente superior e mais bem desenvolvido (cf KANAMORI
1997 302-303)
95
A hipoacutetese de que a natureza comum do ser humano possibilita o discurso intercultural
nasce sobretudo da comunhatildeo entre uma radicalizaccedilatildeo quase miacutestica do racionalismo moderno
e o impacto causado por escritos de ordem semelhante embora com princiacutepios e fundamentos
distintos Aleacutem de Wolff tambeacutem Nicolas Malebranche e Gottfried Leibniz se dedicaram agraves
leituras do material trazido pelos jesuiacutetas no mesmo periacuteodo Malebranche compocircs em 1707 o
escrito Entretien drsquoun Philosophe Chreacutetien et drsquoun Philosophe chinois sur lrsquoexistence et la
nature de Dieu por meio do qual mais tarde aproveitou para se livrar das acusaccedilotildees de ser um
ldquospinozistardquo Malebranche ainda encarou uma acirrada disputa acerca da condenaccedilatildeo do Papa
Clemente XI agraves missotildees jesuiacutetas sustentando posiccedilotildees bastante polecircmicas em seu diaacutelogo
Malebranche levanta em sua obra a questatildeo fundamental acerca da entificaccedilatildeo do deus
cristatildeo instigando a pergunta acerca do infinito que eacute respondida pelo filoacutesofo chinecircs da
seguinte maneira ldquoEstou convencido de que quando penso sobre o infinito estou muito longe
de pensar qualquer coisa Mas entatildeo eu penso em um tal ser individual e determinado Agora
o Deus que vocecircs adoram natildeo eacute assim um ser individual e particularrdquo (MALEBRANCHE 1708
17) As preocupaccedilotildees de Malebranche caminham no sentido de articular ser e ente no problema
da ontologia do cristianismo Quando Leibniz escreve seu Discours sur la theacuteologie naturelle
des Chinois (1716) ele o faz justamente tendo em vista repetidos pedidos de esclarecer pontos
levantados por Malebranche apoacutes o escrito ter sido enviado a ele por Nicholas Reacutemond41
Eacute possiacutevel considerar que Leibniz foi o que se devotou com mais afinco agrave tradiccedilatildeo
chinesa Ele teria se envolvido principalmente com o direcionamento praacutetico da sabedoria
chinesa profundamente norteada pelo propoacutesito de melhorar a si mesmo e agrave sociedade por meio
da noccedilatildeo confucionista de cultivo de si (修身 xiushen) no sentido propriamente moral42
41 Leibniz trocou extensa correspondecircncia com os missionaacuterios jesuiacutetas a respeito da filosofia chinesa aleacutem de
apresentar comentaacuterios pontuais em sua Novissima Sinica (1697) Contudo eacute no Discours que suas ponderaccedilotildees
mais seacuterias e cuidadosas satildeo delineadas e manifestas (cf KANG 2009 6-8) 42 Mais especificaccedilotildees sobre este tema podem ser encontrados em Karyn T Lay Introduccedilatildeo agrave filosofia chinesa
Trad Saulo Alencastre Satildeo Paulo Madras 2009
96
Leibniz escreve em seu discurso ldquoMas quem poderia pensar que houvesse na terra um
povo que superasse os nossos aspectos da vida cultural Se formos iguais nos modos de
produccedilatildeo somo superiores nas ciecircncias teoacutericas mas inferiores na filosofia praacuteticardquo (LEIBNIZ
1979 11) concluindo que ldquo() somos inferiores na aacuterea da eacutetica na poliacutetica e na vida dos
haacutebitos cotidianosrdquo (IDEM IBIDEM) A interpretaccedilatildeo de Leibniz exalta a capacidade dos chineses
em se organizarem e valorarem as tensotildees promovidas pelo campo social com base no cultivo
de si e ainda identificando o ldquosirdquo ao povo em geral Importante eacute ressaltar natildeo apenas desta
breve sentenccedila ilustrativa mas a partir de uma visatildeo mais ampla de suas reflexotildees o profundo
interesse em preencher lacunas a respeito da proveniecircncia intelectual de certos problemas
filosoacuteficos
Anos depois tambeacutem Georg W F Hegel Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche
nutririam interesses pelo Oriente43 Contudo a resposta propriamente oriental a respeito do
intercacircmbio filosoacutefico se daria apenas na virada do seacuteculo dezenove para o seacuteculo vinte Este eacute
o momento no qual a filosofia comparada intercultural comeccedila a ganhar corpo precisamente
com a abertura poliacutetica e intelectual do Japatildeo e o desenvolvimento da chamada Escola de
Filosofia de Kyōto44 Embora natildeo haja tempo nem espaccedilo para abordar de maneira mais
cuidadosa os enlaces teoacutericos e praacuteticos da Escola de Kyōto escrutinando as estruturas de
pensamento de cada um de seus primeiros membros (e ainda de seus membros tardios) gostaria
aqui de destacar alguns aspectos fundamentais direcionados por duas questotildees a primeira
sustentando o porquecirc a filosofia tem iniacutecio propriamente acadecircmico no Extremo Oriente e
precisamente no Japatildeo e a segunda indagando como (ou de que modo) isto acontece Uma
hipoacutetese necessariamente leva agrave outra e isto pode ser facilmente observado
43 Um panorama mais especiacutefico das aproximaccedilotildees pode ser visto em Florentino Neto 2009 44 Em minha dissertaccedilatildeo de mestrado jaacute havia explanado os movimentos histoacutericos que levaram agrave abertura do Japatildeo
e ao surgimento da filosofia japonesa moderna ou contemporacircnea Uma bibliografia mais completa acerca do tema
pode ser extraiacuteda das obras de referecircncia William Beasley The Meiji Restoration (Stanford Stanford UP 1972) e
The Rise of Modern Japan (New York St Matinrsquos Press 1995)
97
Em primeira matildeo sustento que os motivos que proporcionaram o surgimento de uma
ldquoescola filosoacuteficardquo no Japatildeo modernizado estatildeo intimamente ligadas com sua introspecccedilatildeo da
tradiccedilatildeo oriental precedente Em palavras mais simples a maneira pela qual os japoneses
compreenderam e sintetizaram as principais linhas de pensamento orientais (hinduiacutesmo
budismo confucionismo e daoiacutesmo) culminando no chamado budismo zen foi sem embargo
a chave para absorver a filosofia ocidental Em segunda matildeo sustento ainda que a filosofia
japonesa nasce cresce e se estabelece mediante duas perspectivas (justamente os ldquoparadigmasrdquo
anteriormente abordados na tese) metafiacutesica e negatividade em decorrecircncia do florescimento
do zen no Japatildeo Por fim argumento que justamente pelo entrelaccedilamento de metafiacutesica
negatividade e o pensamento do Extremo Oriente que nasce a uacutenica filosofia possiacutevel para o
momento histoacuterico pelo qual passava o Japatildeo e com isto abre-se uma pertinente chave de
leitura para o momento que agora mesmo atravessa a filosofia contemporacircnea
Portanto inicialmente eacute essencial destacar a singularidade do budismo zen em relaccedilatildeo
agraves tradiccedilotildees precedentes Existem muacuteltiplas maneiras pelas quais eacute possiacutevel empreender esta
tarefa Acredito ser plausiacutevel direcionar este toacutepico mediante um problema especiacutefico qual seja
da fundamentaccedilatildeo uacuteltima da realidade a partir da meditaccedilatildeo a respeito da questatildeo da vacuidade
entendida como śūnyatā (शनयता)
A ideia de śūnyatā deriva do budismo indiano primitivo Relatos de reflexotildees em torno
ao problema do fundamento da realidade aparecem (como jaacute havia exposto na introduccedilatildeo desta
tese) desde os cacircnones Pāḷi e satildeo expressos de maneira mais clara e niacutetida no budismo mahāyāna
principalmente no Sūtra do Coraccedilatildeo (Prajntildeāpāramitā Hṛdaya परझञापारनमताहरदय) passando pela escola
mādhyamaka de budismo indiano e ainda nos Versos Fundamentais sobre o Caminho do Meio
(Mūlamadhyamaka-kārikā मलमधयमककाररका) de Nāgārjuna (िागारि) onde foi apresentada de maneira
mais profunda e sistemaacutetica
98
Algumas interpretaccedilotildees do escrito de Nāgārjuna destacam o śūnyatā como constituiccedilatildeo
da totalidade da realidade enfatizando que isto significa uma muacutetua dependecircncia (pratītya-
samutpāda परतीतयसमतपाद) de todas as coisas de todas aquelas que possuiriam existecircncia individual
ou substancial e ateacute da proacutepria ideia de nada o que significa propriamente uma anulaccedilatildeo de
qualquer Ente Supremo ou mesmo qualquer verdade absoluta45
Quando os ensinamentos do budismo indiano chegam agrave China e no Japatildeo alguns
princiacutepios fundamentais satildeo radicalizados por ambas as naccedilotildees Existem vaacuterias hipoacuteteses
conforme as quais eacute possiacutevel indagar os motivos desta radicalizaccedilatildeo Alguns consideram que a
doutrina radical do budismo se deve ao gecircnio do monge Boddidharma embora outros
argumentem que o motivo foi o encontro com o daoiacutesmo e o neoconfucionismo A questatildeo pode
permanecer suspensa sem que isto afete a compreensatildeo das bases e dos caminhos do budismo
zen Ao que concerne propriamente agrave introspecccedilatildeo deste conceito fundamental na filosofia
japonesa contemporacircnea (sem embargo o ponto ao qual quero chegar) existem tambeacutem
inuacutemeras controveacutersias embora haja ainda certos pontos solidamente estabelecidos e
mutuamente consentidos que se pode explorar com o intuito de apresentar o problema
O expoente da Escola de Kyōto que pela primeira vez explorou de maneira sistemaacutetica
a questatildeo e a colocou via uma formulaccedilatildeo filosoacutefica foi Kitarō Nishida (西田 幾多郎) Sua
biografia eacute repleta de elementos que o fariam parecer ou bem um rebelde visionaacuterio ou bem
um precoce e intempestivo intelectual permeado por desacordos com o sistema Sem embargo
muitos pesquisadores descreveram com minuacutecia os percalccedilos de sua biografia Por isto natildeo eacute
de todo liacutecito perder muito tempo aqui descrevendo seu percurso pessoal Gostaria apenas de
atentar para alguns pontos sobremaneira importantes no que tange agrave formaccedilatildeo intelectual de
Nishida
45 Este ponto eacute melhor analisado por Michael Barnhart que considera que de acordo com Nāgārjuna ldquo() natildeo se
pode sustentar nenhuma feacute na realidade ou princiacutepio transcendente nem nenhuma razatildeo humana pode pretender
independecircncia de nenhum tipo ()rdquo (BARNHART 1994 649)
99
Em primeiro lugar Nishida viveu em meio agrave restauraccedilatildeo Meiji (1868-1912) um periacuteodo
que divide a histoacuteria do Japatildeo entre preacute-moderna e moderna no qual a sociedade feudal entra
em decliacutenio e a naccedilatildeo eacute ocidentalizada pela forccedila maior da pressatildeo do Departamento de Estado
Norte-Americano A evidecircncia de que o ensino japonecircs estava defasado frente aos desafios do
novo mundo levou seus governantes a implementarem um sistema educacional semelhante ao
ocidental sendo neste periacuteodo fundadas as primeiras universidades japonesas Nishida
frequentou tais universidades embora tivesse seu proacuteprio percurso intelectual independente
tendo a oportunidade de estudar com Raphael von Koumlber professor russo-alematildeo convidado
para ministrar aulas de filosofia no Japatildeo Com Koumlber Nishida estudou a histoacuteria do
cristianismo (com ecircnfase nas influecircncias do paganismo de Plotino) aleacutem da filosofia criacutetica de
Immanuel Kant e da esteacutetica claacutessica Eacute preciso ponderar ainda que Nishida lia com fluecircncia o
francecircs o alematildeo e o inglecircs tendo acesso integral agraves principais obras da filosofia ocidental Por
outro lado o mesmo estudante dedicado era ainda um pensador radical que encontrou na
tradiccedilatildeo do zen budismo um rumo para suas inquietaccedilotildees
Quando Nishida se aproxima do zen budismo e comeccedila a praticar mediaccedilatildeo o impacto
da destruiccedilatildeo dos meacutetodos convencionais de ensino o afeta largamente ponderando sobretudo
que ele jaacute havia abandonado a escola primaacuteria por desentendimentos com o regime educacional
Um artigo de Lothar Knauth intitulado Life is Tragic The Diary of Nishida Kitaro (1965)
destaca uma passagem do diaacuterio de Nishida onde eacute possiacutevel observar sua postura conforme suas
proacutepria palavras
Faccedila sua proacutepria mente e depois disto natildeo dependa dos outros
Natildeo acredite indiscriminadamente nas palavras das pessoas
Natildeo fale de assuntos que ainda natildeo foram amadurecidos
Natildeo desperdice tempo precioso com fofocas ociosas
A lei da mateacuteria de leitura ler pensar escrever
100
Se vocecirc ainda natildeo terminou de pensar sobre um assunto
natildeo mude para outro
Se vocecirc natildeo terminou de ler um livro ateacute o fim
natildeo pegue outro
Non multa sed multum
Diaacuterio Ano Novo 1897 (NISHIDA apud KNAUTH 1965 337)
O trecho do diaacuterio aponta para um jovem estudioso preocupado com o rigor a tensatildeo
proveniente do impacto surtido pelas leituras Knauth expotildee consecutivamente um outro trecho
do diaacuterio este datado de 1 de julho de 1945 jaacute no final da vida de Nishida que diz
simplesmente ldquoEscurecendo nublado vinte grausrdquo (IDEM IBIDEM) A intenccedilatildeo de Knauth com
isto eacute mostrar a profunda introspecccedilatildeo redundante de um amadurecimento especulativo
proveniente de anos de meditaccedilatildeo Contudo ao que interessa ao propoacutesito do toacutepico vale
salientar que mesmo em um conturbado espiacuterito jovem havia jaacute sempre a necessidade de forccedilar
uma ldquoaquietamentordquo da mente uma busca por um lugar silencioso no qual prevalece a maacutexima
non multa sed multum natildeo muito mas bastante
Entre 1891 e 1897 (a ano da primeira citaccedilatildeo) Nishida praticou incessantemente a
meditaccedilatildeo zen havendo tambeacutem contribuiacutedo para uma revista do secto do Budismo da Terra
Pura Sua transformaccedilatildeo efetiva se daria em 1903 onde uma draacutestica revoluccedilatildeo de seu
entendimento abriria caminho para dar iniacutecio ao seu pensamento efetivo
O homens natildeo podem pensar em morrer natildeo podem ter grandes pensamentos ambos
Kawai e Gordon jaacute disseram isto Tentei pensar em mim mesmo morto aos trinta e um
de dezembro de meu trigeacutesimo quinto ano mas entretanto por mais que tentasse natildeo
podia pensar sobre isto seriamente Natildeo importa o quanto eu pense na morte eu natildeo
consigo me fazer esquecer o mundo (ID IBID 341)
101
Para Knauth este trecho evidencia uma iluminaccedilatildeo por meio da ideia de morte miacutestica e
renascimento O resultado imediato da iluminaccedilatildeo ao contraacuterio do que poderia parecer coerente
aos olhos ocidentais daacute-se na publicaccedilatildeo imediata de um artigo onde Nishida afirma ldquoEu
estava errado em usar o Zen em consideraccedilatildeo ao conhecimento Eu deveria tecirc-lo usado para o
espiacuterito e alma Ateacute eu comeccedilar a sentir pela visatildeo eu natildeo pensarei nem em filosofia nem em
religiatildeordquo (ID IBID 342) Este momento representa uma iluminaccedilatildeo justamente pelo fato de que
haacute sem embargo a assunccedilatildeo de uma correta postura mas com um propoacutesito enganoso ndash a busca
pelo conhecimento havia posto em xeque absolutamente todos os anos dedicados agrave meditaccedilatildeo
era necessaacuterio portanto comeccedilar novamente
Conforme Knauth Nishida iraacute se preparar nos proacuteximos anos para exprimir o potencial
introspectado durante sua iluminaccedilatildeo Trecircs pontos satildeo neste momento fundamentais O
primeiro eacute a leitura profundamente marcante para Nishida de Mestre Eckhart46 O segundo eacute
o falecimento de sua filha Yūko viacutetima de um ataque de bronquite O terceiro (diretamente
ligado ao segundo) eacute sua luta contra o cigarro Em 1923 Nishida escreve ldquoDeste dia em diante
eu morri para mundo Eu vivo em minha proacutepria filosofia Tudo sacrificado tudo sacrificado
Profunda impressionante experiecircnciardquo (ID IBID 344) e em 1927 ldquoAgrave tarde eu estava sozinho
na casa Pensamento quietos Quietamente eu passei metade do dia Eu natildeo fumei nem sequer
um cigarro Renascimento despertado de um sonho ruim De uma aacutervore podre de alguma
maneira um novo broto de vida pode florescer Hoje eu estava quase felizrdquo (ID IBID) O motivo
pelo qual Knauth intitula seu artigo com a expressatildeo Life is Tragic adveacutem justamente desta
postura de Nishida conforme a qual a vida humana natildeo passaria de preocupaccedilotildees e problemas
46 Nishida inicia a leitura de Eckhart em 1907 Seria interessante ao propoacutesito da tese que houvesse uma explanaccedilatildeo
maior e mais cuidadosa do pensamento de Eckhart sobretudo no segundo capiacutetulo onde seu posicionamento eacute
fundamental para o desenvolvimento do neoplatonismo e da miacutestica Contudo esta difiacutecil tarefa tornaria o percurso
da tese demasiado longo e cansativo podendo desviar a atenccedilatildeo primordial do trabalho Todavia possuo a intenccedilatildeo
de desdobrar este toacutepico em um trabalho futuro
102
A despeito de um aparente pessimismo o que pode ser destacado do percurso intelectual
e pessoal de Nishida eacute a profundidade com qual ele sentiu o peso da vida A doutrina buacutedica do
sofrimento eacute por ele absorvida de maneira natildeo soacute transcendente mas ainda imanente Os
escritos de Nishida revelaratildeo natildeo apenas um caminho filosoacutefico no qual se imbricam a tradiccedilatildeo
sapiencial oriental e a filosofia ocidental mas a descriccedilatildeo de uma experiecircncia vital na qual pulsa
a forccedila do pensamento especulativo Por esta e outras razotildees Nishida havia sido nomeado com
o nome laico-budista ldquosunshinrdquo uma polegada de mente
A produccedilatildeo propriamente filosoacutefica de Nishida eacute tanto mais densa quando suas reflexotildees
pessoais anotadas em seu diaacuterio contudo relativamente mais faacuteceis de serem abordadas devido
agrave sistematicidade que permeia os escritos A despeito de suas incompatibilidades com o sistema
de ensino sua carreira acadecircmica foi coroada em 1894 quando recebeu o tiacutetulo de licenciado
em filosofia com uma tese acerca da causalidade em David Hume culminando no professorado
junto agrave Universidade Imperial de Kyōto em 1913 Neste iacutenterim dedicou-se ao desdobramento
das bases de sua filosofia que teria sido divulgada de maneira mais consistente na obra que
havia publicado em 1911 sob o tiacutetulo Zen no kenkyū (善の研究 Investigaccedilatildeo sobre o bem) A
obra mais conhecida de Nishida busca o autodespertar o que significa uma visatildeo dos
fenocircmenos que compreendem a experiecircncia pura evidente desde a movimentaccedilatildeo de uma
loacutegica toacutepica O termo ldquoloacutegica toacutepicardquo eacute propositalmente ambivalente Por um lado indica uma
loacutegica do espaccedilo do lugar por outro denuncia como esse lugar (locus) revela uma locuccedilatildeo um
discurso Eacute neste lugar que se desenvolvem os limites do pensamento Relatos de alunos de
Nishida comentam que ele costumava desenhar no quadro negro trecircs esferas uma sobre a outra
na qual a primeira representaria os acidentes circundaacuteveis ao sujeito a segunda os elementos
incapturaacuteveis pela percepccedilatildeo e a terceira (com linhas tracejadas) a impossibilidade final de
limitaccedilatildeo e a esfera do absoluto insuperaacutevel e infinitamente expansiacutevel nomeado com o signo
do nada absoluto (絶対無 Zettaina) sua interpretaccedilatildeo para a noccedilatildeo budista de śūnyatā
103
Com isto Nishida arrancaria da tradiccedilatildeo zen budista uma negatividade total para
fundamentar sua ideia de experiecircncia pura (純粋経験 Junsui keiken) que segundo ele ldquo() se
entende conhecer os fatos como eles simplesmente satildeo (hellip)rdquo (NISHIDA 1990 3) Estaacute presente
nesta formulaccedilatildeo a absorccedilatildeo de Nishida da psicologia funcional de William James onde se
depura a correspondecircncia da percepccedilatildeo com a teoria da verdade Nishida ainda afirma ldquo() o
que usualmente se refere como experiecircncia eacute via de regra adulterado por algum tipo de
pensamento portanto por experiecircncia pura se entende aquele estado no qual se tem experiecircncia
sem qualquer discriminaccedilatildeo deliberativardquo (IDEM IBIDEM) O claacutessico exemplo pelo qual se ilustra
a condiccedilatildeo primaacuteria da pureza da experiecircncia sugere que em uma expressatildeo como ldquoouvi uma
moscardquo haacute um momento no qual o sujeito que ouve a mosca e seu barulho e o ato mesmo de
ouvir ainda natildeo foram distinguidos O fundamento da realidade enquanto nada absoluto para
Nishida encontra-se neste preciso momento neste instante incapturaacutevel na inefabilidade do
indescritiacutevel Entretanto embora a erudiccedilatildeo filosoacutefica de Nishida fosse sobremaneira evidente
bem como sua dedicaccedilatildeo ao zen budismo suas ideias natildeo estavam livres de criacuteticas em ambas
as esferas
Uma das criacuteticas mais ferrenhas a Nishida foi apresentada por Hajime Tanabe (田辺 元)
seu sucessor na caacutetedra de filosofia da Universidade Imperial de Kyōto (em 1928) Ao contraacuterio
de Nishida que nunca havia saiacutedo do Japatildeo Tanabe foi contemplado com um intercacircmbio pelo
governo japonecircs e teve a oportunidade de estudar ao lado de Husserl e Heidegger Sua maior
obra Zangedo to shite no tetsugaku (懺悔道としての哲學 A filosofia como caminho metanoeacutetico
1946) ocupava-se da superaccedilatildeo do inevitaacutevel problema epistemoloacutegico que envolvia a questatildeo
do nada absoluto propondo o termo metanoeacutetica derivado do grego μετανόησις e vertido ao
japonecircs como zangedo (懺悔道) cuja definiccedilatildeo seria nas palavras de Tanabe ldquoum baacutelsamo para
a dor do pesar e ao mesmo tempo o recurso para uma luz absoluta que paradoxalmente torna
vigente a escuridatildeo sem expulsaacute-lardquo (TANABE 1986 2)
104
Em decorrecircncia da necessidade de superaccedilatildeo do proacuteprio pensamento a criacutetica de Tanabe
emerge no sentido de questionar se a filosofia possui condiccedilotildees de enquadrar o autodespertar
religioso conforme exposto por Nishida de maneira sistemaacutetica Conforme Agustiacuten Jacinto
Zavala ldquoResumidamente ao tomar como base o ponto de vista da religiatildeo a filosofia de
Nishida lsquoconverte o trans-histoacuterico absoluto em principium [princiacutepio fundamental] do sistema
e mediante esta determinaccedilatildeo vem [finalmente] ordenar e organizar o histoacuterico relativordquo
(ZAVALA 2013 106) ao passo que ldquoPor isto Tanabe diz lsquoa duacutevida fundamental que albergo
frente a filosofia mestre Nishida se relaciona com este ponto () se a filosofia trata de tomar o
ponto de vista religioso como seu proacuteprio ponto de vista necessariamente deixa de ser si mesmardquo
(IDEM IBIDEM) sintetizando a preocupaccedilatildeo de Tanabe
Os conflitos entre a filosofia a auto-percepccedilatildeo religiosa a partir do estabelecimento do
nada absoluto como fundamento da realidade passaratildeo ainda prelo crivo de diversos
interlocutores sofrendo alteraccedilotildees e recebendo criacuteticas diretas e indiretas Em linhas gerais o
problema de Tanabe estaacute diretamente relacionado com suas compreensotildees estritas da religiatildeo e
da filosofia Em primeiro lugar porque ao contraacuterio de Nishida (que era praticante do zen
budismo) Tanabe partia antes do budismo Jōdo Shinshū (浄土真宗 A Escola da Terra Pura) do
monge Shinran (親鸞)47 Em segundo lugar devido aos interesses de Tanabe pela filosofia da
histoacuteria de Wilhelm Wundt e Heinrich Rickert aleacutem da influecircncia da Lebensphilosophie e o
compromisso histoacuterico que ele alimentou a partir de tais influecircncias Por este motivo era
necessaacuterio tanto para resolver a disputa entre Nishida e Tanabe quanto para superar os estaacutegios
preliminares das discussotildees da Escola de Kyōto reformular as compreensotildees de filosofia e
religiatildeo algo que acontece de maneira somente com Keiji Nishitani (西谷 啓治)
47 Sobre a fundamentaccedilatildeo budista de Tanabe confira Joaquim Antonio Bernardes Carneiro Monteiro ldquoO lsquoNada
Absolutorsquo em Hajime Tanabe uma avaliaccedilatildeo criacuteticardquo In Antonio Florentino Neto e Oswaldo Giacoia Jr (orgs)
O Nada absoluto e a superaccedilatildeo do niilismo Os fundamentos filosoacuteficos da Escola de Kyoto Campinas Phi 2013
155-188
105
Keiji Nishitani eacute talvez o filoacutesofo japonecircs contemporacircneo mais popular entre os
ocidentais O motivo eacute provavelmente o estilo bastante solto e livre de seus ensaios
principalmente os que chegaram traduzidos ao Ocidente ndash precisamente os mais maduros
compostos apoacutes a deacutecada de 1960 como Shūkyo to wa Nanika (宗敎とは何か O que eacute religiatildeo
1961) e Nihirizumu (ニヒリズム Niilismo 1986) Estes mesmos trabalhos sofreram diversas
criacuteticas por parte de colegas japoneses que o acusaram de se afastar dos modos propriamente
orientais de expressatildeo supostamente sugerindo uma indiferenccedila ao idioma vernaacuteculo agraves
tradiccedilotildees e aos projetos de seus antecessores Sobre isto Nishitani teria argumentado que as
lacunas do pensamento japonecircs tradicional sobretudo as idiomaacuteticas impossibilitariam o
alcance do sentido de alguns problemas colocados pela filosofia ocidental motivo pelo qual a
criaccedilatildeo de novas palavras em japonecircs se mostrava absolutamente necessaacuterios48 Sem embargo
os questionamentos impostos pelos novos tempos natildeo se prendiam agraves fronteiras linguiacutesticas e
invadiam o Japatildeo modernizado e ocidentalizado com especial forccedila razatildeo pela qual a
aproximaccedilatildeo com a filosofia sua interiorizaccedilatildeo e reflexatildeo era simplesmente inevitaacutevel
Todavia embora Nishitani tenha realmente pendido para o pensamento filosoacutefico ou para a
maneira pela qual os pensadores ocidentais liam as questotildees conflituosas da contemporaneidade
ao mesmo tempo ele se voltava com ainda maior introspecccedilatildeo para o budismo sobretudo para
o zen Esta ambiguidade intencional do pensamento de Nishitani se revela nas inquiriccedilotildees por
ele levantadas e pelo teor de suas investigaccedilotildees deixando ver claramente sua preocupaccedilatildeo a
respeito do direcionamento reflexivo da filosofia contemporacircnea
48 James Heisig discute esta questatildeo pormenorizadamente quando apresenta o estilo filosoacutefico de Nishitani
Conforme Heisig a influecircncia ocidental absorvida por Nishitani cujas maiores expressotildees foram a esteacutetica de
Immanuel Kant o idealismo alematildeo (especialmente Friedrich W J Schelling) Plotino e o neoplatonismo a
miacutestica de Mestre Eckhart e Francisco de Assis e ainda a hermenecircutica existencial de Wilhelm Dilthey e Martin
Heidegger deixam bastante claro o porquecirc ele subverte e converte os limites e alcances da linguagem Heisig
ainda destaca o momento no qual Nishitani afirma que nos miacutesticos a confluecircncia e a uniatildeo entre religiatildeo e
filosofia alcanccedilaram um ponto elevado despertando seu profundo interesse por tais autores A despeito dos temas
eleitos Heisig considera ainda que por este mesmo motivo o estilo de Nishitani se mostra superior ao de Tanabe
e ao de Nishida (cf HEISIG 2002 233-242)
106
Eacute possiacutevel considerar que o problema com o qual Nishitani se defrontou e que norteou
o andamento geral de seu pensamento mais cuidadosamente desenvolvido possui um ponto de
partido muito bem estabelecido qual seja o problema do niilismo denunciado na virada do
seacuteculo por autores como Friedrich Nietzsche Ernst Juumlnger Fioacutedor Dostoievsky Ivan
Turgeniev entre outros Em Shūkyo to wa Nanika longe de tentar elucidar o sentido da religiatildeo
em termos sistemaacuteticos a despeito do tiacutetulo do escrito Nishitani parece buscar uma imersatildeo na
tensatildeo contraditoacuteria que os seres humanos possuem com a experiecircncia religiosa segundo ele
ldquo() para quem a religiatildeo natildeo eacute uma necessidade precisamente por esta razatildeo ela eacute uma
necessidade Natildeo haacute nenhuma outra coisa sobre a qual se possa dizer o mesmordquo (NISHITANI
1983 1) Sua definiccedilatildeo de religiatildeo se abre a partir da compreensatildeo de uma ldquoauto-despertar da
realidaderdquo cuja explicaccedilatildeo se apoia no termo inglecircs realize segundo ele um termo polissecircmico
que possuem tanto o sentido de actualize (atualizar mas tambeacutem trazer o sentido real como na
expressatildeo actually cujo significado seria na verdade) quanto de understand (compreender)
Nishitani explica ldquo() estou utilizando esta palavra para indicar que nossa habilidade para
perceber a realidade significa realizar (atualizar) a realidade por si mesma em noacutesrdquo (IDEM IBIDEM
5) Esta explicaccedilatildeo apareceria para confrontar o sentido do niilismo que segundo Nishitani
ldquo() se refere agravequilo que torna sem sentido o sentido da vida () sinalizando nada menos do
que fato de que o despertar da nossa existecircncia penetrou em uma profundidade extraordinaacuteriardquo
(ID IBID 4) Em suma Nishitani possui um alvo muito claro lidar com o abismo existencial
que se deixa ver sobremaneira angustiante nos novos tempos aqueles mesmos ldquotempos de
penuacuteriardquo da ldquonoite do mundordquo anunciados por Nietzsche denunciados por Heidegger e que
assombravam os filoacutesofos que se deparavam com a instituiccedilatildeo da morte do pensamento
reflexivo mediante a Era Atocircmica dos desastres ambientais e dos deliacuterios da modernizaccedilatildeo
industrializaccedilatildeo e tecnologizaccedilatildeo do mundo Fatos inegaacuteveis cuja profunda relaccedilatildeo com a
histoacuteria do pensamento torna seu sentido cada vez mais obscuro
107
A forccedila interpretativa que moveraacute o pensamento de Nishitani rumo agraves tentativas de
resoluccedilatildeo dos conflitos passaraacute em primeiro lugar por sua leitura a respeito do problema do
niilismo e sua relaccedilatildeo com a ideia de śūnyatā Quando Nishitani alcanccedila esta abordagem ele
frisa de iniacutecio que ldquo() um dos maiores e mais fundamentais problemas que todas as religiotildees
encaram em nossos tempos eacute sua relaccedilatildeo com a ciecircnciardquo (IDEM IBIDEM 77) O motivo aparenta
ser a incompatibilidade entre o pensamento cientiacutefico e o sentido essencial da vida religiosa
Nishitani entatildeo argumenta de maneira incisiva (e que sintetiza o propoacutesito desta tese no final
das contas)
Uma em cada dez pessoas escuta que a religiatildeo e a ciecircncia tem cada uma seu proacuteprio
domiacutenio e tarefa e que as duas nunca precisaratildeo entrar em conflito caso permaneccedilam
confinadas em suas fronteiras originais Isto eacute inadequado Uma fronteira separa uma
aacuterea da outra e ao mesmo tempo pertence a ambas as aacutereas Os fundamentos do
conflito entre religiatildeo e ciecircncia repousam certamente em tais fronteiras De fato desde
os tempos mais antigos metafiacutesica e filosofia consistiram na exploraccedilatildeo destas
fronteiras entre ciecircncia e religiatildeo (IDEM IBIDEM 77-78)
Nishitani ainda questiona se tais fronteiras podem ser consideradas realmente fronteiras ou natildeo
admitindo que a ciecircncia contemporacircnea natildeo parece se preocupar com a questatildeo A criteacuterio de
verdade objetiva da ciecircncia com o apoio das leis da natureza seria responsaacutevel por de certo
modo menosprezar o conhecimento religioso e mesmo o conhecimento filosoacutefico em
decorrecircncia da verdade cientiacutefica absoluta Mas Nishitani contesta no contrafluxo da tendecircncia
mais geral ldquoMas eacute realmente tatildeo evidente Uma nova maneira de olhar para o absoluto e o
relativo conforme a qual dois absolutos podem se tornar conjuntos impensaacutevel em uacuteltima
instacircnciardquo (ID IBID 78) Para Nishitani o problema vige no fechamento das possibilidades
108
Natildeo haacute aqui uma criacutetica ldquocientofoacutebicardquo mas o levantamento de uma questatildeo qual seja
ldquoNatildeo possuiacutemos uma outra maneira de conceber o relativo senatildeo em termos de estabelecimento
de limites ndash como fazemos por exemplo quando dividimos uma folha de papel em duas ao
traccedilar uma linha nelardquo (ID IBID 79) Nishitani mostraraacute esta possibilidade por meio de sua
interpretaccedilatildeo da ideia de śūnyatā e como ela desvela uma perspectiva que explora os elementos
abandonados pela objetividade cientiacutefica Seja como for eacute possiacutevel considerar jaacute de iniacutecio que
se concentra aiacute toda a potecircncia do diaacutelogo entre metafiacutesica e negatividade apresentado ao longo
desta tese sendo possiacutevel acompanhar Nishitani em uma definiccedilatildeo do conflito das fronteiras
Agora bem quais as saiacutedas ou quais as possiacuteveis chaves de leitura para o problema que
se apresenta a saber a questatildeo do niilismo contemporacircneo Quando emprego aqui o termo
filosofia comparada intercultural tenho em vista a maneira pela Nishitani (entre outros)
exploram as muacuteltiplas significaccedilotildees de distintas tradiccedilotildees culturais em suas convergecircncias e
divergecircncias para se aproximar do problema e propor novos pontos de vista A respeito
especificamente da questatildeo levantada Nishitani utiliza a proacutepria ambivalecircncia do niilismo para
propor uma soluccedilatildeo Seu caminho seraacute resgatar o sentido pelo qual a ciecircncia se apropria das
leis da natureza e desenvolve a tecnologia argumento que eacute precisamente por meio desta
apropriaccedilatildeo que se revelam a medida da liberdade do homem em relaccedilatildeo agraves fronteiras impostas
pelas leis naturais Contudo haacute uma inversatildeo pela qual o controlador se torna o controlado
Conforme Graham Parkes ldquo() a vida humana e o trabalho como um todo se tornam
progressivamente mecanizados e impessoais (nos termos de Heidegger perdemos nossa lsquolivre
relaccedilatildeorsquo com a teacutecnica e estamos lsquoacorrentadosrsquo agrave ela)rdquo explicando ademais que para Nishitani
ldquoA liberdade advinda das leis da natureza que a tecnologia mecanizada nos concede aleacutem do
sentimento concomitante de distacircncia ou separaccedilatildeo do mundo natural levam os seres humanos
a lsquose comportarem como se eles estivessem completamente fora das leis da naturezarsquordquo (PARKES
2013a 103) Sendo assim a uacutenica via possiacutevel eacute restabelecer esta relaccedilatildeo humano-natureza
109
O ponto de apoio de Nishitani para colocar o problema parte da compreensatildeo que
oferece o neoplatonismo e a miacutestica medieval de Deus como nada absoluto (ele cita
especificamente Mestre Eckhart neste ponto) para trazer agrave tona a questatildeo morte-sive-vida
Nishitani evidencia portanto que ldquoEste ponto natildeo pode repousar em um lado mais distante
aleacutem deste mundo e desta vida terrena que possuiacutemos Deve repousar no lado mais proacuteximo
tanto mais proacuteximo quanto nossas vidas ordinariamente devem serrdquo (ID IBID 90) Aproveitando
a perspectiva budista para elucidar este caminho Nishitani esclarece de maneira precisa que
ldquoŚūnyatā eacute o ponto no qual noacutes nos tornamos manifestos de nossa proacutepria talidade (suchness)
como seres humanos concretos como indiviacuteduos com alma e personalidade Ao mesmo tempo
eacute o ponto no qual tudo ao redor se manifesta para noacutes em sua proacutepria talidade (suchness)rdquo (ID
IBID 90)49 Śūnyatā envolve inevitaacutevel e necessariamente este complexo conceito de talidade
(真如 Shinrsquonyo ndash Tathatā तथता) que eacute sem embargo o berccedilo da meditaccedilatildeo oriental
A talidade eacute a via pela qual se extrai a conduccedilatildeo do sistema eacutetico e moral da sociedade
hinduiacutesta primitiva Sua disseminaccedilatildeo no Extremo Oriente eacute carregada por duas tradiccedilotildees quais
sejam o daoiacutesmo e o budismo Os daoiacutestas centram sua noccedilatildeo de ldquoprinciacutepiordquo por meio da noccedilatildeo
de dao (道) e sua relaccedilatildeo com de (德) O famoso Dao De Jing (道德经) bem como a obra do
mestre Zhuangzi (莊子) satildeo os principais responsaacuteveis por colocarem ambos os princiacutepios (dao
e de) e movimento dinacircmico conforme o qual a relaccedilatildeo com natureza natildeo seria entendida nem
como celestial nem como humana mas como ambas sem que uma tenha privileacutegio sobre a
outra ndash e este seria enfim o caminho (dao) da virtude (de) (cf ZHUANGZI 2009 42)
49 Traduzo aqui suchness por talidade com base na ideia de que Nishitani se refere ao conceito budista de Tathatā
(तथता) que em japonecircs se ilustra com o kanji 真如 (Shinnyo) cuja traduccedilatildeo seria ldquorealidade absolutardquo mas natildeo
corresponde ao peso do termo Sobre isto Antonio Morillas escreve que ldquoO termo tathata eacute de difiacutecil traduccedilatildeo
em castelhano Em inglecircs se verte com as expressotildees suchness (a condiccedilatildeo de ser ldquotalrdquo e como se eacute) thatness (o
fato de ser ldquoissordquo que se eacute) e isness (a qualidade de algo que ldquoeacuterdquo sem mais o que eacute e como eacute) () A talidade
[traduccedilatildeo castelhana de tathata] eacute a noccedilatildeo do fato de que a realidade e as coisas e fenocircmenos que a compotildeem satildeo
ldquoassimrdquo ldquotalrdquo e como satildeo que satildeo ldquoissordquo ldquoo que satildeordquo em seu caraacuteter plenamente desnudo na existecircncia luminosardquo
(MORILLAS 2006 167) Pela proximidade com o idioma castelhano opto aqui por adotar a sugestatildeo de Morillas
110
O budismo especialmente o budismo zen absorveria tais ideias com especial forma nos
pensamentos de Kūkai (空海) e Dōgen Zenji (道元禅師) Graham Parkes explica que para Kūkai
duas ideias se configuram essenciais Sokushinjobutsu (即身成仏) a possibilidade de atingir a
iluminaccedilatildeo na vida presente (em contraste ao princiacutepio budista tradicional conforme o qual
seriam necessaacuterias muitas vidas) e Hosshin seppo (発疹 説法 ) o entendimento de que a
personificaccedilatildeo buacutedica eacute desprovida de forma e imagem natildeo permitindo conceitualizaccedilatildeo nem
verbalizaccedilatildeo (cf PARKES 2003 81) A despeito da uniatildeo suscitada pelo daoiacutesmo o budismo
chinecircs do oitavo seacuteculo estava imerso em uma profunda discussatildeo acerca da questatildeo se a
natureza buacutedica podia ser atribuiacuteda somente aos seres sencientes ou tambeacutem agraves miacutenimas
partiacuteculas de poeira Kūkai articula as duas ideias acima mencionadas e interpretas as chamadas
ldquotrecircs intimidadesrdquo (corpo fala mente) do Dainichi Nyorai (木造大日如来坐像) que representa a
revelaccedilatildeo esoteacuterica dos ensinamentos no Budismo para sustentar o muacutetuo pertencimento da
relaccedilatildeo do todo com suas partes assumindo a natureza buacutedica para absolutamente tudo Ele
escreve neste sentido ldquoEssa existecircncia estaacute naquela e aquela estaacute nessa A Existecircncia do Buda
(Mahāvairocana) eacute a existecircncia dos seres sencientes e vice e versa Eles natildeo satildeo idecircnticos mas
satildeo todavia idecircnticos eles natildeo satildeo diferentes mas satildeo todavia diferentesrdquo (KŪKAI 1972 93)
Jaacute para Dōgen a evocaccedilatildeo da conduta zen se daria por meio de uma miacutestica cotidiana
alimentando a noccedilatildeo de que toda atividade eacute expressatildeo da natureza buacutedica Parkes argumenta
que algumas atividades satildeo especialmente ilustrativas como por exemplo preparar a comida
servi-la e come-la Dōgen citaria um trecho do Vimalakīrti Nirdeśa Sūtra (नवमलकीनत निदश सतर) que
diria ldquoQuando somos unos com a comida que comemos somos unos com todo o universordquo
evocando o uso do silecircncio como veiacuteculo para o esclarecimento do śūnyatā como fundamento
absoluto da realidade (cf PARKES OP CIT 84) As praacuteticas rituais natildeo possuiriam todavia
conotaccedilatildeo lituacutergica pontual e direcionada mas antes a totalidade de uma experiecircncia de vida
religiosa
111
Tanto Kūkai quanto Dōgen influenciaram amplamente o pensamento de Nishitani e o
ponto de vista conforme o qual o śūnyatā direciona uma atitude por meio da qual se mostra a
talidade Tanto no daoiacutesmo de Zhuangzi quando no zen budismo de Kūkai e Dōgen estatildeo em
jogo o aspecto formal a aparecircncia (rūpa shiki) da realidade em torno por um lado e a assunccedilatildeo
da dissoluccedilatildeo do fundamento dessa realidade por outro (sua vacuidade śūnyatā kū) Por este
motivo haacute uma muacutetua reciprocidade entre a totalidade e as coisas entre uno e muacuteltiplo Isto eacute
o que permite a participaccedilatildeo e ao mesmo tempo incorporaccedilatildeo da realidade (dharmakāya)
Contudo natildeo seraacute o mero resgate das tradiccedilotildees orientais que forneceraacute a Nishitani a resposta
ao problema no que concerne ao impacto da questatildeo frente aos tempos de niilismo mas sim o
resultado da confrontaccedilatildeo desta tradiccedilatildeo com a filosofia contemporacircnea ocidental ou sem
embargo o confronto entre as fronteiras
Graham Parkes atenta para uma reivindicaccedilatildeo de Nishitani de haver superado em certa
medida o desenvolvimento das filosofias de pensadores como Hegel Nietzsche e Heidegger
(cf PARKES 2013b 189-190) Contudo no cerne desta proposiccedilatildeo estaacute a ideia de que o que foi
superado natildeo foi propriamente o conteuacutedo da meditaccedilatildeo mas a forma da abordagem ou seja
a perspectiva intercultural privilegiada da comparaccedilatildeo filosoacutefica de Nishitani Com o anuacutencio
da morte de Deus e dos tempos de niilismo em Nietzsche ficou evidente um diagnoacutestico da
atividade humana inerente aos valores que a guiam por um lado e a induccedilatildeo ao desespero
suscitado pela projeccedilatildeo cognoscitiva ao ente por outro A saiacuteda de Nietzsche por meio do
ldquogrande antiacutedotordquo da transvaloraccedilatildeo de todos os valores eacute recebida em Nishitani considerando
trecircs ideias chave de sua leitura budista (1) a constituiccedilatildeo do fundamento da existecircncia como
uma experiecircncia aleacutem da relaccedilatildeo entre sujeito objeto por meio do conceito de (referente agrave noccedilatildeo
de dharma धम) (2) a reaccedilatildeo de retorno ao mesmo de toda atividade (a partir do conceito de
karma कम) e a noccedilatildeo de que natildeo haacute nada que exista independente de circunstacircncias e
condicionamento ou a chamada ldquoco-originaccedilatildeo dependenterdquo (o pratītya-samutpāda परतीतयसमतपाद)
112
Portanto o que em Nietzsche seria postulado como destino enquanto o ldquomesmordquo (o ego
fatum nietzscheano) engendrando um ponto de vista criativo em Nishitani seria entendido
desde a ideia do karma Em Nihirizumu Nishitani escreve acerca deste ponto especiacutefico que
ldquoNeste niacutevel fundamental o mundo se move na esfera do mesmo e o mesmo na esfera do
mundo Esta ideia estaacute proacutexima da ideia budista de karma embora em Nietzsche o ponto de
vista do mesmo como destino eacute fundamentalmente criativordquo (NISHITANI 1990 50) Em termos
mais simples de acordo com Parkes ldquo() o que parece um golpe do destino pode ser entendido
antes como uma parte de nossa proacutepria atividaderdquo (PARKES OP CIT 196) O florescimento desta
consideraccedilatildeo se daacute na afirmaccedilatildeo niezscheana do amor fati e da superaccedilatildeo do abismo da grande
suspeita niilista por meio da grande dor pela qual se renasce o que seraacute entendido em Nishitani
a partir do retorno ao abismo onde ldquo() uma vez que algueacutem eacute libertado do abismo a
necessidade se torna um elemento desta vida de liberdade Neste caso necessidade se torna
uma com a criatividaderdquo (NISHITANI OP CIT 52) Entretanto a ressalva de Nishitani consiste que
a afirmaccedilatildeo resultante da superaccedilatildeo do abismo niilista pode ainda ser superar e que a vontade
de poder eacute ainda uma ldquocoisardquo chamada ldquovontaderdquo (cf IDEM OP CIT 234) cuja uacutenica possibilidade
de ser pensada para aleacutem dos fundamentos que redundam no destino como mesmo seria
justamente o ponto de vista do śūnyatā Uma ilustraccedilatildeo possiacutevel de ldquopara onderdquo este ponto de
vista levaria pode ser encontrada quando Nishitani comenta a arte japonesa de arranjo de flores
a chamada Ikebana (生け花) Ali fica niacutetido qual a postura que se assume quando se daacute conda
da vacuidade da realidade uacuteltima e absoluta Nishitani escreve
Desde a perspectiva de sua natureza fundamental todas as coisas no mundo satildeo
lacircminas de grama sem raiacutezes Tal grama entretanto tenho fincado suas raiacutezes no solo
esconde a si mesma em sua fundamental ausecircncia de raiacutezes () sendo cortadas de suas
raiacutezes as flores satildeo feitas pela primeira vez pela manifestaccedilatildeo minuciosa de sua
natureza fundamenta ndash sua falta de raiacutezes (IDEM 2011 1199)
113
Ao fim e ao cabo Nishitani estaacute chamando atenccedilatildeo para uma aprendizagem decorrente da ldquoco-
originaccedilatildeo dependenterdquo a partir da natureza Sobre este ponto e sua relaccedilatildeo com o niilismo
Parkes escreve ldquo() noacutes humanos diferimos de outros entes por meio da possibilidade de nos
tornamos conscientes de nossa proacutepria finitude no estado da niilidade (kyomu) um tipo de
ldquovacuidade ocardquo que eacute uma antecacircmara para a vacuidade criativa (śūnyatā kū)rdquo (PARKES OP
CIT 112) Resumidamente o ponto de vista do śūnyatā se configura para Nishitani a partir da
tradiccedilatildeo do zen budismo oriental e de sua leitura da filosofia ocidental como uma iluminaccedilatildeo
a respeito do fundamento da realidade enquanto vacuidade evidenciado sobremaneira pelo
abismo do niilismo contemporacircneo e que direciona o ser humano para uma vacuidade criativa
na qual sua relaccedilatildeo com as coisas congrega tudo em uma mesma natureza buacutedica ou seja o
lugar onde as flores o arranjo o florista e o ato de fazer o arranjo satildeo a mesma coisa ou o lugar
onde a mosca o anjo Deus e o eu satildeo o mesmo
114
CONCLUSAtildeO
Durante o primeiro semestre de 2011 estava profundamente motivado com a preparaccedilatildeo do
texto final desta tese doutoral Ocupava-me ao mesmo tempo das pesquisas leituras
sistematizaccedilatildeo dos esquemas defesa da versatildeo do final do projeto e dos cursos que iria ministrar
na Universidade Federal do Rio Grande do Norte nos meses seguintes A abordagem agrave histoacuteria
da metafiacutesica agrave tradiccedilatildeo do neoplatonismo e agrave filosofia japonesa contemporacircnea atingiam-me
simultaneamente por meio de muacuteltiplas construccedilotildees conceituais interligadas pela lucidez
provocada mediante a histoacuteria dos efeitos de cada ambiente temaacutetica Contudo ao 11 de marccedilo
daquele ano foi transmitida uma notiacutecia que imediatamente cessou minha produccedilatildeo e
empolgaccedilatildeo com todo e qualquer toacutepico Os jornais incessantemente transmitiam as uacuteltimas
notiacutecias a respeito de um terremoto seguido por um tsunami que havia atingido o Japatildeo e
danificado a estrutura da usina nuclear de Fukushima na cidade de Ōkuma expondo a
comunidade da regiatildeo agrave alarmantes niacuteveis de radioatividade O desastre ambiental seria
considerado algum tempo mais tarde a maior cataacutestrofe nuclear desde Chernobyl em 1986
Evidentemente como havia ocorrido tambeacutem em 2001 durante o ataque terrorista ao
World Trade Center em Nova Iorque as reportagens que chocavam o mundo se tornariam
rapidamente repetitivas e esgotariam o puacuteblico O motivo pelo qual se daria tal neutralizaccedilatildeo e
letargia frente aos fatos foi denunciado por Slavoj Žižek na obra The Year of Dreaming
Dangerously (2012) Ele pondera os eventos destrutivos de 2011 tais quais a Primavera Aacuterabe
e o Occupy Wall Street desde a neutralizaccedilatildeo ideoloacutegica promovida pela miacutedia dando margem
agrave interpretaccedilatildeo conforme a qual os veiacuteculos de comunicaccedilatildeo vigentes aniquilam o potencial
emancipatoacuterio dos eventos por meio da pasteurizaccedilatildeo de sua difusatildeo
115
Žižek destaca o termo da liacutengua persa ldquowar nam nihadanrdquo cujo abstruso significado
seria em linhas gerais ldquomatar algueacutem enterrar seu corpo e plantar flores sobre sua cova para
esconder o cadaacuteverrdquo Para Žižek os meios de comunicaccedilatildeo do capitalismo global destroem a
absorccedilatildeo propriamente humana dos eventos do mundo contemporacircneo exatamente neste
mesmo sentido (cf ŽIŽEK 2012 9) Sem sombra de duacutevidas o mesmo se daria em relaccedilatildeo ao
desastre de Fukushima e hoje trecircs anos depois uma pedra foi posta por sobre o assunto e poucas
pessoas sequer se lembram do ocorrido
Entretanto meu denso envolvimento com a filosofia japonesa natildeo permitiu que os
acontecimentos fossem dissolvidos assim tatildeo facilmente Passei um bom tempo tocado pela
calamidade e mesmo ateacute agora ainda tenho dificuldades em lidar com o assunto As
adversidades emotivas todavia natildeo me impediram de pensar com devoccedilatildeo sobre a questatildeo
pelo contraacuterio estimularam ainda mais o rumo da reflexatildeo filosoacutefica
O ano seguinte seria marcado em meu percurso pessoal pela saiacuteda do paiacutes e realizaccedilatildeo
de estaacutegio sanduiacuteche junto agrave University College Cork (Colaacuteiste na hOllscoile Corcaigh) para
realizar minhas pesquisas sob a supervisatildeo do professor Graham Parkes na Irlanda Parkes
havia publicado no iniacutecio daquele ano um breve artigo intitulado Nuclear Power after
Fukushima 2011 Buddhist and Promethean Perspectives (2012) no qual natildeo apenas analisava
os fatos mas ainda apresentava uma meditaccedilatildeo a respeito de uma filosofia da natureza para
aleacutem das ecologias profundas ou natildeo
Simplificando o assunto o estiacutemulo para o fornecimento de energia nuclear eacute
alimentado pela conclusatildeo de que se trata de uma fonte limpa e autossustentaacutevel em contraste
agrave queima do combustiacutevel e exploraccedilatildeo de recursos foacutesseis ou mesmo aos impactos ambientais
causados pela obstruccedilatildeo de fluxos de aacutegua Aparentemente trata-se de uma soluccedilatildeo emergente
frente ao ainda ineficaz suporte das energias ecologicamente viaacuteveis como a eoacutelica e a solar
116
Parkes pontua sobre isto que ldquoA questatildeo crucial natildeo diz respeito aos meacuteritos relativos
e agraves desvantagens do poder nuclear versus a energia dos combustiacuteveis foacutesseis Antes trata-se
de pensar o que norteia nosso desejo de consumir tanta energia em primeiro lugarrdquo (PARKES
2012 103) O posicionamento diz respeito a um ldquopasso atraacutesrdquo A pergunta eacute o que move no
final das contas o irredutiacutevel e irrefreaacutevel iacutempeto de explorar todos os recursos naturais para
fomentar a manutenccedilatildeo da vida humana na Terra Mesmo com a leitura do escrito eu
particularmente soacute conseguiria compreender o direcionamento proposto por Parkes apoacutes
acompanhar seus seminaacuterios sobre filosofias da natureza entre Ocidente e Oriente no qual
ficariam claras as bases pelas quais ele questionava a conduta contemporacircnea face agrave crise
ambiental
Entretanto quando me deparei com as primeiras leituras oferecidas por Parkes (muitas
das quais constam na bibliografia desta tese) natildeo fui acometido pelo espanto da novidade mas
pela pulsatildeo da comparaccedilatildeo A experiecircncia que jaacute havia acumulado sob a orientaccedilatildeo do
professor Oscar Federico Bauchwitz durante meus anos de pesquisa acadecircmica dedicado agrave
leitura de Nietzsche Heidegger e da tradiccedilatildeo do neoplatonismo e da miacutestica medieval proveu-
me de uma arquitetocircnica meditativa que com a aproximaccedilatildeo com a filosofia oriental apenas
nutriu imediata empatia e introspecccedilatildeo Sendo assim quando congreguei o focirclego e as forccedilas
necessaacuterias para encerrar este trabalho natildeo tinha em mente uma tese levantada de um mero
problema particular mas um longo percurso especulativo que ao longo das paacuteginas aqui
apresentadas tentei descrever da melhor maneira possiacutevel
Sobreveio-me durante os termos finais uma intensa obrigaccedilatildeo de sustentar que a uacutenica
via possiacutevel para enfrentar os problemas filosoacutefico contemporacircneos era a instauraccedilatildeo de um
retorno aos fundamentos por meio da interculturalidade Portanto a conclusatildeo desta tese soacute
pode caminhar rumo agrave elucidaccedilatildeo de quais fundamentos no final das contas satildeo estes que estatildeo
aqui e ali indicados no interior do trabalho
117
Em 1953 Martin Heidegger pronunciou a conferecircncia intitulada Die Frage nach
Technik O escrito eacute talvez uma de suas mais claras expressotildees acerca de sua anaacutelise da
consumaccedilatildeo da histoacuteria da metafiacutesica a instauraccedilatildeo do niilismo europeu e o advento da Era
Teacutecnica Paralelamente durante o mesmo periacuteodo (na verdade em 1954) Nishitani finalizava
a composiccedilatildeo de seu ensaio sobre ldquoNiilismo e Śūnyatārdquo mais tarde incluiacutedo no volume Shūkyo
to wa Nanika abordado aqui ao longo do terceiro capiacutetulo Como foi possiacutevel observar em
Nishitani a saiacuteda do ponto de vista da vacuidade ou nada absoluto demandava a busca por
uma postura interior do ser humano na qual se tornava evidente nada mais senatildeo o elemento
inexplicaacutevel e inexprimiacutevel do fundamento uacuteltimo da realidade que era assumido agora como
oriente para o comportamento humano frente ao colapso do novo mundo A dificuldade inerente
de absorver a proposta de Nishitani todavia eacute ilustrada de maneira praacutetica quando ele aborda
uma questatildeo particular qual seja a relaccedilatildeo entre ser humano e natureza na imagem do jardim
zen Noacutes estamos dentro do jardim e natildeo somos apenas espectadores porque noacutes nos tornamos
parte da real manifestaccedilatildeo da expressatildeo da proacutepria experiecircncia iluminadora do arquiteto do
jardim O jardim eacute meu mestre Zen agora e eacute seu mestre Zen tambeacutem (NISHITANI 1992 55)
Quando Heidegger indica em sua conferecircncia que a essecircncia da teacutecnica natildeo eacute ela mesma nada
teacutecnico ele estaacute em um movimento similar ao de Nishitani chamando atenccedilatildeo para o fato de
que eacute necessaacuterio tambeacutem retornar a algo que natildeo pode ser submetido agrave objetividade cientiacutefica
da relaccedilatildeo sujeito-objeto que sustenta a tecnicizaccedilatildeo do mundo Neste sentido a saiacuteda de
Heidegger eacute ilustrada por meio de um dos conceitos mais enigmaacuteticos de toda sua obra
Gelassenheit Heidegger escreve ldquoTalvez se oculte na Gelassenheit uma accedilatildeo mais elevada do
que em todos os atos do mundo e do que nas maquinaccedilotildees das reliacutequias humanasrdquo (HEIDEGGER
1983a 41) O sentido contudo permanece oculto Resta apenas a ideia de que esta postura
evocada por Heidegger demanda um ldquodeixarrdquo (lassen) que atina para um recolhimento da
paradoxal ambiguidade do que se revela na essecircncia do humano
118
Ressoa tanto em Heidegger quanto em Nishitani uma raiz comum aquela na qual se
ldquoRenuncia aos sentidos agraves operaccedilotildees intelectuais a todo sensiacutevel e ao inteligiacutevelrdquo ainda mais
aquela onde se pede ldquoDespoja-te de todas as coisas que satildeo e ainda das que natildeo satildeo Deixa de
lado teu entender e esforccedila-te por subir o mais que possa ateacute unir-se com aquele que estaacute mais
aleacutem de todo ser e todo saberrdquo Estas palavras aqui propositalmente citadas sem a indicaccedilatildeo
bibliograacutefica satildeo do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita onde neoplatonismo e miacutestica se encontram
no caminho da negatividade Tanto o ldquoprestar atenccedilatildeo aos misteacuterios da naturezardquo em Nishitani
quando a ldquoabstenccedilatildeo da vontade por meio da natildeo-vontaderdquo o ldquoquerer o natildeo-quererrdquo em
Heidegger estatildeo depositados nas sentenccedilas do miacutestico siacuterio
Agora qual eacute este lugar ou natildeo-lugar aleacutem de todo ser e todo saber O que se revela
por meio do despojo e da supressatildeo de todo saber e todo o dizer Esta pergunta natildeo eacute respondida
Natildeo pode ser respondida O que se desvela aiacute eacute justamente o incoacutegnito o misteacuterio Como reagir
portanto frente a tal proposta de em meio a existecircncia contemporacircnea remar no contrafluxo
do sentido do mundo e buscar uma quietude absoluta no silecircncio que adveacutem do misteacuterio da
existecircncia Agrave esta pergunta tampouco se ofereceraacute resposta mas desta vez porque ela jaacute estaacute
respondida A reaccedilatildeo foi nomeada com diversos termos ao longo da histoacuteria recebendo distintas
designaccedilotildees Algumas tradiccedilotildees orientais optam por chama-la ldquoiluminaccedilatildeordquo
Por fim o conflito das fronteiras aqui abordado natildeo eacute um evento especiacutefico um
momento ou instante captaacutevel uma situaccedilatildeo ou circunstacircncia particular O conflito das
fronteiras eacute um caminho ou melhor uma caminhada Uma caminhada rumo ao desconhecido
cujo uacutenico sinal evidente acena para o clamor de um silecircncio ensurdecedor indicando que jaacute eacute
hora de se recolher
119
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5
AGRADECIMENTOS
Pelos anos de orientaccedilatildeo e suporte pela incansaacutevel e paciente instruccedilatildeo pelo sempre presente
companheirismo e por tornar possiacutevel o caminho percorrido agradeccedilo ao Prof Dr Oscar
Federico Bauchwitz Pela hospitalidade e cortesia pelos conselhos e indicaccedilotildees pelos diaacutelogos
e por abrir um novo horizonte especulativo para muito aleacutem do trabalho acadecircmico agradeccedilo
ao Prof Dr Graham Parkes
Pela oportunidade de discussatildeo e criacuteticas pela atenccedilatildeo na leitura do trabalho e pelos
inestimaacuteveis acreacutescimos agradeccedilo aos membros das bancas de qualificaccedilatildeo e defesa Profa
Dra Claudia DrsquoAmico Prof Dr Leonel Ribeiro dos Santos Dr Edrisi de Arauacutejo Fernandes e
Profa Dra Gisele Amaral dos Santos
Agradeccedilo ao Programa Integrado de Doutorado em Filosofia da Universidade Federal
da Paraiacuteba Universidade Federal de Pernambuco e Universidade Federal do Rio Grande do
Norte pela aceitaccedilatildeo do projeto de tese doutoral Agradeccedilo agrave University College Cork (Colaacuteiste
na hOllscoile Corcaigh) pela recepccedilatildeo do estaacutegio sanduiacuteche Agradeccedilo ao Trinity College
Dublin (Colaacuteiste na Triacuteonoacuteide Baile Aacutetha Cliath) pela oportunidade de frequentar os
seminaacuterios e bibliotecas Agradeccedilo agrave Alianccedila Cultural Brasil-Japatildeo e agrave Biblioteca Joatildeo Hideo
Matsumoto e ao Instituto Goethe de Satildeo Paulo e sua biblioteca Agradeccedilo ao Instituto Paulista
de Sacircnscrito e ao Prof Dr Adriano Aprigliano Agradeccedilo ainda agrave Coordenaccedilatildeo de
Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior pelo fomento da tese doutoral e do estaacutegio no
exterior
Agradeccedilo agraves pessoas que direta ou indiretamente contribuiacuteram no processo de
composiccedilatildeo da tese Alan Marinho Lopes Dax Moraes Marcus Vinicius Cavalcante Dantas
Tulio Madson de Oliveira Galvatildeo Sara Barrera Rubio Bastien Duval Javier Coloacuten Joseph
Sexton Agnieszka Klęczar Rodrigo Ferreira Braga Abrahatildeo Marcelo Ferreira Braga e Carla
Almeida
Agradeccedilo especialmente agrave Thaiacutes Ricci Conesa pelo apoio e pela motivaccedilatildeo sem os
quais natildeo concluiria este trabalho Finally yet importantly agradeccedilo ao absoluto integral e
irrestrito apoio de meus pais Luiz Pinto Teixeira e Tereza Cristina Fontes
6
Eacute preciso ainda ter caos dentro de si para dar
luz a uma estrela danccedilante
Friedrich Nietzsche Assim falou Zaratustra
7
RESUMO
O conflito das fronteiras se desdobra como um percurso natural da histoacuteria do pensamento
humano Torna-se manifesto todavia apenas mediante um expliacutecito choque cultural que
evidencia distintas formataccedilotildees conceituais Pensar este conflito pode esclarecer os enlaces
responsaacuteveis pelo desenvolvimento do pensamento contemporacircneo Esta tese pretende analisar
em um primeiro momento a histoacuteria do pensamento enquanto metafiacutesica apresentando um
diagnoacutestico da maneira pela qual o Ocidente impinge sua loacutegica categoacuterica Por conseguinte
apresenta a tradiccedilatildeo da negatividade evidenciando um pensamento para aleacutem da ontologia
claacutessica mediante uma henologia e uma meontologia no neoplatonismo e na miacutestica medieval
Por fim expotildee o pensamento do Extremo Oriente como possiblidade de recepccedilatildeo
contemporacircnea da negatividade e escapatoacuteria para a formataccedilatildeo ocidentalizante da filosofia
vigente
Palavras-chave Fronteiras Metafiacutesica Negatividade Extremo Oriente
8
ABSTRACT
The conflict of borderlines unfolds itself as a natural path in history of human thought It
becomes clear only through an explicit cultural clash which conveys distinct conceptual
formatting Thinking this conflict might enlighten the bindings responsible for development of
contemporary way of thought This thesis intent to analyse in a first moment the history of
thought as Metaphysics presenting a diagnostic towards the way through which the West
impinges its categorical logic Thereafter presents the tradition of Negativity showing a
thinking beyond Classic Ontology through a Henology and a Meontology in Neoplatonism and
Medieval Mysticism At the end exposes the Far Eastern thought as possibility of contemporary
reception of Negativity and escape from the Westernizer formatting of contemporary
philosophy
Key words Frontiers Metaphysics Negativity Far East
9
ZUSAMMENFASSUNG
Der Konflikt der Grenzen entfaltet sich als einen natuumlrlichen Weg in der Geschichte des
menschlichen Denkens Es wird nur klar durch eine explizite Kulturkampf die unterschiedliche
konzeptionelle Formatierung vermittelt Denken dieses Konflikts koumlnnte die Bindungen fuumlr die
Entwicklung der zeitgenoumlssischen Denkweise verantwortlich zu erleuchten Diese These
versuchen zu analysieren in einem ersten Moment die Geschichte des Denkens als Metaphysik
praumlsentiert eine Diagnose auf die Moumlglichkeit durch die der Westen trifft seine kategorische
Logik Danach praumlsentiert die Tradition der Negativitaumlt zeigt ein Denken jenseits Klassische
Ontologie durch eine Henologie und Meontologie im Neuplatonismus und mittelalterliche
Mystik Am Ende macht der Fernost gedacht als Moumlglichkeit der zeitgenoumlssischen Rezeption
von Negativitaumlt und Flucht aus der Westler Formatierung der zeitgenoumlssischen Philosophie
Schuumlsselwoumlrter Frontiers Metaphysik Negativitaumlt Fernost
10
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 11
1 ONTOLOGIA A SUBSTANTIVACcedilAtildeO DO OCIDENTE E O PROBLEMA DA METAFIacuteSICA 28
ENQUANTO DELIMITACcedilAtildeO DAS FRONTEIRAS DO PENSAMENTO
2 O CAMINHO DA NEGATIVIDADE HENOLOGIA E MEONTOLOGIA E A ULTRAPASSAGEM 61
DOS LIMITES DA METAFIacuteSICA
3 O EXTREMO ORIENTE E O CONFLITO DAS FRONTEIRAS A FILOSOFIA COMPARADA 89
INTERCULTURAL COMO CHAVE DE LEITURA PARA ALGUNS PROBLEMAS DO
PENSAMENTO CONTEMPORAcircNEO
CONCLUSAtildeO 113
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 119
11
INTRODUCcedilAtildeO
Aos 16 de abril de 2010 sob a avaliaccedilatildeo de uma banca composta pelos professores Oscar
Federico Bauchwitz Gisele Amaral dos Santos e Acylene Maria Cabral Ferreira defendi a
dissertaccedilatildeo de mestrado intitulada A caminho da fronteira Embora possa ainda dedicar mais
dez anos agrave correta composiccedilatildeo estiliacutestica daquele texto aleacutem da estruturaccedilatildeo dos argumentos
laacute natildeo tatildeo bem encadeados imagino ter alcanccedilado o objetivo de tornar claro natildeo apenas o intuito
do trabalho mas o problema movimentado pela questatildeo do conflito fronteiriccedilo de uma filosofia
comparada intercultural por meio de uma histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica
A questatildeo ldquoentre Heidegger e os japonesesrdquo (subtiacutetulo da dissertaccedilatildeo) abordada ao longo
dos dois anos de mestrado acadecircmico referia-se a uma virada de pontos de vista se em um
primeiro momento os orientais se perguntavam o quecirc a filosofia ocidental podia oferecer ao
pensamento e desenvolvimento do Extremo Oriente em um segundo momento os ocidentais
passaram a se perguntar de que forma os japoneses podiam acrescentar agrave filosofia um elemento
meditativo perdido no periacuteodo da consumaccedilatildeo da teacutecnica moderna e do cientificismo desde
suas perspectivas milenares de pensamento reflexivo
Ao passo em que a pesquisa ia se desenvolvendo o trabalho caminhou paulatinamente
rumo ao impacto violento surtido pelo diaacutelogo entre limites bem delineados de um Ocidente
estruturalmente metafiacutesico e um Oriente especulativo quase inefaacutevel para um leitor ocidental
A conclusatildeo extraiacuteda do caminho percorrido entre os anos de 2008 e 2010 apresentou antes de
qualquer soluccedilatildeo a constataccedilatildeo da instalaccedilatildeo de uma impertinecircncia petrificada no seio da
filosofia contemporacircnea sobre a qual pouco se pode acrescentar na dissoluccedilatildeo de problemas
mas muito se pode desdobrar no que tange ao entrelaccedilamento do alcance de um grau distinto
de movimentaccedilatildeo das arquitetocircnicas conceituais
12
Embora tais palavras pareccedilam abstratas em demasia (e de fato satildeo) o foco atingido se
concentrou em uma inquiriccedilatildeo a respeito do pensamento da linguagem e da verdade a partir
de um inusitado enigma sobre a negatividade do impensaacutevel ou seja sobre o silecircncio que
emerge no preciso momento no qual o pensamento eacute estarrecido e a liacutengua cala
A armadilha construiacuteda a partir das muacuteltiplas tentativas de elaboraccedilatildeo de conceitos afeta
natildeo somente a formataccedilatildeo silogiacutestica do intelecto humano comum mas ainda as
particularidades dos diversos modos de expressatildeo geograficamente distintos Correndo o risco
de se tornar antes uma antropologia filosoacutefica do que propriamente uma histoacuteria e criacutetica da
metafiacutesica o trabalhou refletiu uma anaacutelise agrave proacutepria concepccedilatildeo pela qual se distingue uma
filosofia da outra execrando qualquer nacionalismo filosoacutefico e investigando as questotildees que
envolvem a existecircncia humana dentro de seu modo relacional com o ser e com o ambiente que
a cerca O resultado foi a apresentaccedilatildeo de uma filosofia comparada intercultural que aparece
natildeo simplesmente como um campo disciplina ou subaacuterea da filosofia mas antes como uma
maneira pela qual eacute possiacutevel pensar filosoficamente para aleacutem das fronteiras de uma mera
linguagem de primeira ordem Dentro deste contexto nasce a hipoacutetese do tema o conflito das
fronteiras a partir do pressuposto de uma abordagem aos temas centrais do pensamento
contemporacircneo sustentando a interculturalidade filosoacutefica como aporte central
A proposiccedilatildeo fundamental desta tese adveacutem de alguns questionamentos particulares e
pontuais em um fluxo semelhante ao da dissertaccedilatildeo de 2010 Em abril de 2009 enquanto ainda
trabalhava no texto do mestrado teve lugar no campus da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte o III Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica comissionado pelos professores Oscar
Federico Bauchwitz Jaimir Conte Maria da Paz Nunes de Medeiros e Markus Figueira da Silva
O evento marcava a consolidaccedilatildeo da linha de pesquisa em Metafiacutesica do Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Filosofia da universidade trazendo em sua terceira ediccedilatildeo o tema O que eacute
metafiacutesica Em homenagem aos oitenta anos da preleccedilatildeo homocircnima de Martin Heidegger
13
A conferecircncia pronunciada por Heidegger aos 24 de julho de 1929 foi preparada como
aula inaugural para a assunccedilatildeo da caacutetedra de filosofia que antes pertencera a Edmund Husserl
na Albert-Luumldwigs Universitaumlt Freiburg im Breisgau O escrito se tornou um dos mais
emblemaacuteticos conhecidos e discutidos textos de Heidegger Talvez o fator mais impactante da
preleccedilatildeo seja antes mesmo da abordagem temaacutetica o meacutetodo pouco usual conforme o qual o
questionamento eacute elaborado Heidegger inicia a aula dizendo que embora a questatildeo suscite a
expectativa de que se falaraacute sobre a metafiacutesica ele iraacute na verdade discutir uma questatildeo
metafiacutesica particular proporcionando uma movimentaccedilatildeo em seu interior e habilitando a
oportunidade para que a ela apareccedila por si soacute a partir do problema levantado (cf HEIDEGGER
1976 103) Deixar a metafiacutesica se apresentar por si soacute antes do que sobre ela discorrer
evidencia uma feiccedilatildeo um tanto distinta da abordagem de Heidegger ao problema uma de suas
marcas registradas todavia
Raras vezes a tradiccedilatildeo ocidental se deparou com tal niacutevel de heterodoxia no que tange
agrave instruccedilatildeo filosoacutefica (talvez apenas Platatildeo tenha cunhado semelhante meacutetodo ao perseguir o
pescador com o anzol antes de se aproximar da figura do sofista por exemplo ndash natildeo consigo
pensar em outras ilustraccedilotildees agora mesmo embora certamente elas existam) Uma linha de
raciociacutenio como esta aproxima-se muito mais de uma postura oriental
Durante o Coloacutequio aleacutem de retomar pela eneacutesima vez a leitura da preleccedilatildeo de
Heidegger lembro-me de me dedicar agrave leitura da claacutessica obra propedecircutica de Kaiten Nukariya
The Religion of Samurai (1913) a primeira obra sobre zen budismo publicada no Ocidente (em
liacutengua ocidental) Apoacutes uma breve introduccedilatildeo sobre a origem do budismo na Iacutendia e o percurso
de Śākyamuni Siddhārta Gautama (o Buddha Śākyamuni शाकयमनि) Nukariya relata a maneira
pela qual o monge Bodhidharma introduz o budismo na China destacando que seu meacutetodo era
inteiramente diferente dos outros instrutores de ensino ordinaacuterios
14
Sobre Bodhidharma Nukariya relata ldquoEle natildeo explicaria nenhum problema ao
estudante mas simplesmente ajudaacute-lo-ia a ser iluminado colocando-o um abrupto poreacutem eficaz
questionamentordquo (NUKARIYA 2006 10) Com esta metodologia tem iniacutecio a tradiccedilatildeo de
budismo chinecircs nomeada chrsquoan (dʑjen 禪) uma traduccedilatildeo do termo sacircnscrito dhyāna (धयाि) cujo
significado mais geral seria ldquomeditaccedilatildeordquo ou ldquopensamentordquo que futuramente seria lido na
pronuacutencia japonesa (くんよみ kun-yomi) do ideograma como zen (禅 ) Apoacutes expor esta
caracteriacutestica iacutempar do ensino de Bodhidharma Nukariya ainda relata uma breve histoacuteria na
qual um tal Shang Kwang havia requisitado ao mestre que ldquolhe pacificasse a menterdquo
Prontamente Bodhidharma teria respondido ldquoTraga-me aqui sua mente ante mim para que eu
a pacifiquerdquo e Shang Kwang teria replicado ldquomas isto eacute impossiacutevelrdquo recebendo em seguida
a resposta ldquoentatildeo jaacute pacifiquei sua menterdquo Shang Kwang foi instantaneamente iluminado
Certamente Martin Heidegger natildeo exige de seus ouvintes leitores e interlocutores uma
iluminaccedilatildeo tatildeo abrupta e desprovida de raciociacutenio loacutegico mas nem por isto suas reivindicaccedilotildees
satildeo menos ousadas e intensas ou sua meditaccedilatildeo menos profunda Heidegger propocircs diversas
reflexotildees que extraiacutedas de seu contexto especiacutefico configuram-se tatildeo inusitadas quanto as
passagens da tradiccedilatildeo chrsquoan ou zen sendo por vezes consideradas mesmo impertinentes Eacute o
caso de uma de suas mais arrojadas e emblemaacuteticas afirmaccedilotildees ldquoO mais grave eacute que natildeo
pensamosrdquo (HEIDEGGER 2002 6) Desconsiderando o sentido ao qual a sentenccedila pertence
certamente as palavras de Heidegger parecem uma afronta Todavia o leitor atento sabe que
Heidegger se refere agrave distinccedilatildeo entre um pensamento calculador (rechnende Denken) e um
pensamento meditativo (Besinnung) reportando-se ao velamento deste uacuteltimo e da supremacia
exclusiva do primeiro por meio do qual se faz ciecircncia e se daacute o desenvolvimento estrutural da
condiccedilatildeo tecnoloacutegica imperiosa Eacute justamente dentro deste fluxo que Heidegger afirma a
predominacircncia do pensamento cientiacutefico tambeacutem em Was ist Metaphysik
15
Para ingressar no interior da metafiacutesica Heidegger chama atenccedilatildeo ao fato de que a
existecircncia humana eacute hoje sobremaneira norteada pela ciecircncia Embora alguns opositores ainda
resistam agrave tal afirmaccedilatildeo natildeo eacute todavia difiacutecil convencecirc-los do contraacuterio argumentando em
favor da tese de Heidegger Natildeo se trata apenas de afirmar que o ser humano se apoia e confia
uacutenica e exclusivamente (quiccedilaacute mesmo cegamente) na ciecircncia como modo de desenvolvimento
e sustentaccedilatildeo da vida humana na Terra Antes disto e mais grave ainda trata-se de constatar
que a maneira pela qual o ser humano hoje pensa eacute tatildeo somente cientiacutefica mesmo em casos nos
quais o discurso supostamente se volta para um tema espiritual ou de feacute (ou qualquer outro
assunto) ndash a despeito de qualquer pretensa e torta teosofia eacute ainda a teologia a ciecircncia reinante
dos seminaacuterios sem embargo Independente do tema ou assunto da circunstacircncia ou
necessidade a maneira de proceder eacute jaacute sempre cientiacutefica sustentada por uma loacutegica inflexiacutevel
que imputa sua norma de que ldquosendo algo aquilo mesmo isto ou bem eacute ou bem natildeo eacute natildeo
havendo uma terceira opccedilatildeordquo
Em outras palavras parece ter se ocultado na mente humana qualquer outro modo de
pensar que natildeo seja o propriamente cientiacutefico Este modo cientiacutefico de pensar possui algumas
caracteriacutestica pelas quais se pode evidenciaacute-lo estritamente desde um triacuteplice entendimento que
compreende ldquoreferecircncia ao mundordquo ldquoposturardquo e ldquoirrupccedilatildeordquo Heidegger explica estes pontos
ldquoAquilo que na referecircncia ao mundo permanece eacute o ente em si mesmo ndash e mais nada Aquilo
que lidera toda postura eacute o ente em si mesmo ndash e nada mais Aquilo que faz acontecer a
discussatildeo investigativa da irrupccedilatildeo eacute o ente em si mesmo ndash e aleacutem disto nadardquo (IDEM OP CIT
105) A cientificidade da existecircncia humana se expressa mediante uma projeccedilatildeo ao ente e nada
mais Ao afirmar a determinaccedilatildeo da ciecircncia na vida e conduta humanas Heidegger quer deixar
ver sobretudo isto o fato de que hoje soacute eacute validado o discurso de um sujeito cujo objeto
cognosciacutevel eacute um ente este mesmo que subjacente obsta-lhe Dentro da relaccedilatildeo entre sujeito
e objeto toda uma tradiccedilatildeo se fundamenta e doravante prossegue da mesma maneira
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Fazendo uma revisatildeo dos passos da histoacuteria do pensamento humano seria mais ou menos
faacutecil portanto imaginar como a partir da metafiacutesica claacutessica se desdobra o cientificismo
sobretudo tendo em vista a doutrina das Categorias de Aristoacuteteles aleacutem da tatildeo aclamada
ldquociecircncia do ente enquanto enterdquo Contudo natildeo eacute este o alvo de Heidegger Deixar a metafiacutesica
aparecer por si soacute deve contemplar a totalidade do questionamento proposto e natildeo um
historicismo vulgar Que todo raciociacutenio eacute regulado e direcionado pelo ente facilmente
constata-se Agora bem o que se passa com a outra parte da inquiriccedilatildeo qual seja o ldquonada
maisrdquo Heidegger formula a questatildeo ldquoA ciecircncia natildeo quer saber do nada Mas certamente em
sua permanecircncia ao manifestar sua proacutepria natureza chama o nada para ajudar O que ela
rejeita eacute necessaacuterio para classificaacute-la Que ambiacutegua essecircncia se revela aiacuterdquo (ID IBIDEM 106) Ao
perquirir o ente e aleacutem disto nada o elemento que confere a exatidatildeo de sua pesquisa eacute
auxiliado pelo ldquonadardquo ou seja trata-se disto e nada mais (por mais redundante e ambivalente
que soe ateacute mesmo um pouco non sense) Heidegger pergunta ldquoO que acontece com o nadardquo
(ID IBID) ou ainda para onde vai esse nada em meio agrave existecircncia cientiacutefica
Eacute justamente a inusitada apariccedilatildeo deste nada que revela o incocircmodo de um elemento
impensaacutevel e inexprimiacutevel que natildeo se dobra ante agrave relaccedilatildeo sujeito-objeto Natildeo eacute preciso aqui
destrinchar todo o caminho percorrido por Heidegger em Was ist Metaphysik Trata-se de um
texto bastante lido e amplamente comentado Basta apenas pontuar a sentenccedila central da
conferecircncia (ou a pergunta-condutora a Leitfrage) por meio da qual emerge a resposta agrave
questatildeo ldquoo que eacute metafiacutesicardquo ldquoPor que haacute absolutamente o ente e natildeo antes nadardquo (ID IBID
122) O extraordinaacuterio da questatildeo eacute justamente a capacidade do ser humano em por ela
perguntar A capacidade de questionar ldquopor que natildeo nadardquo define uma disposiccedilatildeo fundamental
da existecircncia quiccedilaacute mesmo aquela ocultada pelo modo cientiacutefico de existir (ou seja
paradoxalmente este mesmo modo eacute responsaacutevel por evidenciar o que nele se perde)
17
A disposiccedilatildeo que regula a eleiccedilatildeo do modo cientiacutefico de pensar tem em vista
salvaguardar o humano do abismo (da falta de fundamento) que se abre quando o nada emerge
silencia o discurso e joga o ser humano em uma situaccedilatildeo incocircmoda uma anguacutestia profunda
Quase como um mestre zen Heidegger deixa a metafiacutesica se abrir natildeo pela pergunta nem
sequer pela acircnsia de prover ao interlocutor (ou a si mesmo) uma resposta mas pela simples
possibilidade e capacidade de perguntar A metafiacutesica neste sentido perdura antes como uma
decisatildeo Ao que parece por este motivo Heidegger cita um trecho de Eacutedipo em Colonos de
Soacutefocles no posfaacutecio agrave preleccedilatildeo (em 1943) destacando os versos (em sua traduccedilatildeo particular
por mim aqui pobremente e quiccedilaacute mesmo irresponsavelmente adaptada) que dizem
ἀλλ᾽ ἀποπαύετε μηδ᾽ ἐπὶ πλείω
θρῆνον ἐγείρετε˙
πάντως γὰρ ἔχει τάδε κῡρος
Mas paremos e nunca mais a partir de agora
despertaremos o lamento
Em todos os lugares se deteacutem o evento
assegurando-lhe uma decisatildeo pela conclusatildeo (ID IBID 312)
A ldquodecisatildeo pela conclusatildeordquo coloniza todos os lugares e se deteacutem a partir de agora em uma
posiccedilatildeo da qual natildeo mais se sairaacute A anguacutestia revelada a partir do pensamento em torno ao
nada manifesta os limites da linguagem e vislumbra o destino do ente no ser em sua plenitude
e predominacircncia Mas para aleacutem da constataccedilatildeo da indigecircncia da linguagem haacute todavia uma
possibilidade de abordar efetivamente esse nada Como eacute possiacutevel pensar para aleacutem da
delimitaccedilatildeo entificante da referecircncia ao mundo da postura e da irrupccedilatildeo Haacute um caminho de
ultrapassagem e superaccedilatildeo possiacutevel ainda nos dias de hoje
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Ao passo em que avanccedilava nas leituras e Heidegger e em algumas outras esta se tornou
a pergunta-chave pela qual imaginava atingir certo direcionamento temaacutetico A despeito da
disposiccedilatildeo de humor apresentada na conferecircncia bem como das consideraccedilotildees do posfaacutecio de
1943 os trabalhos de Heidegger dos anos de 1930 em diante datildeo a entender um claro
direcionamento pelo qual os elementos abandonados pela entificaccedilatildeo do pensamento podem ser
evidenciados qual seja a partir da poesia Os versos de Soacutefocles segundo o proacuteprio Heidegger
ldquoa uacuteltima poesia do uacuteltimo poeta gregordquo natildeo estatildeo ali dispostos sem motivo Tambeacutem natildeo eacute
sem razatildeo que a partir de aiacute haacute uma incansaacutevel busca pela poesia de Friedrich Houmllderlin (aleacutem
de Georg Trakl Stephan George Rainer Maria Rilke e de outros poetas escolhidos por
Heidegger) Ateacute certo ponto eacute possiacutevel afirmar que Heidegger encontra na poesia a
possibilidade de superar a linguagem por meio da proacutepria linguagem Em alguns outros
momentos uma meditaccedilatildeo de teor semelhante aparece como no encontro entre Heidegger e os
japoneses (como apresentei na dissertaccedilatildeo de 2010) Contudo restava ainda buscar os modos
de reflexatildeo que natildeo simplesmente podiam ir aleacutem da expressatildeo da ciecircncia do ente enquanto
ente mas ainda colocaacute-la em questionamento mediante outros meacutetodos
Foi na abertura do III Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica que minhas inquietaccedilotildees
comeccedilaram a se asseverar e ganhar corpo para o que viria a ser esta tese A conferecircncia
inaugural do evento foi sobremaneira marcante neste processo O professor Gilvan Fogel da
Universidade Federal do Rio Janeiro havia sido convidado para encerrar o primeiro dia de
evento Ele apresentou naquela noite a conferecircncia O que eacute metafiacutesica Como ele mesmo frisou
ldquonatildeo a pergunta mas a respostardquo Havia sem embargo a intenccedilatildeo de responder a pergunta
em um certo direcionamento eacute claro O texto vinha ainda acompanhado de um subtiacutetulo (com
o qual foi publicado como tiacutetulo oficial alguns anos depois diga-se de passagem) Sobre a
metafiacutesica ou a respeito do jejum O mote para o subtiacutetulo o proacuteprio professor o explica na
passagem inicial do texto que gostaria de citar por completo agora mesmo
19
O subtiacutetulo pode soar estranho insoacutelito e natildeo muito seacuterio Mas pelo que ele insinua
pretende anunciar algo seacuterio mesmo muito seacuterio a saber a metafiacutesica E a inspiraccedilatildeo
ou a motivaccedilatildeo que propicia o encaminhamento para a questatildeo anunciada a
metafiacutesica vem de uma obra igualmente seacuteria muito seacuteria ainda que se possa melhor
que se deva dela se ocupar tambeacutem com grandes e gostosas gargalhadas ndash aquelas que
no destampar do riso sacudindo a barriga bem solta e largada deixam escorrer
viacutesceras pela boca afora Estou me referindo ao Dom Quixote o Engenhoso Fidalgo
Dom Quixote lsquode la Mancharsquo ndash o ldquoda Triste Figurardquo
Entre as poesias que preludiam a primeira parte e que homenageiam seus personagens
maiores temos o uacuteltimo que eacute um diaacutelogo em forma de soneto entre Babieca o
cavalo de El Cid e Rocinante o grande rocim o pangareacute erado de Dom Quixote A
certa altura do diaacutelogo-soneto Babieca pergunta ldquoSeraacute tolice amarrdquo e Rocinante
responde ldquoNatildeo eacute muito prudenterdquo Babieca retruca ldquoEstaacutes metafiacutesicordquo E Rocinante
contesta enfaacutetico ldquoEacute que natildeo comordquo (FOGEL 2011 101)
A passagem sugere que a metafiacutesica eacute antes de tudo coisa de fome Por isto ldquoa respeito do jejumrdquo
denuncia a indisposiccedilatildeo que envolve a metafiacutesica A metafiacutesica eacute portanto certo incocircmodo que
eacute tambeacutem necessidade premente decorrente de certa privaccedilatildeo A partir disto Fogel delineia o
tipo de jejum ao qual se refere natildeo se trata de um jejum nutricional alimentiacutecio mas jejum de
vida conforme ele mesmo diz ldquo() natildeo vida no sentido bioloacutegico mas no sentido banal e
corriqueiro como falamos da vida de ldquonossa vidardquo ndash que ela eacute boa ou ruim ou um buracordquo
(IDEM IBIDEM 102) Esta vida a vida imanente a vida do cotidiano do dia-a-dia esta mesma
que ocupa o tempo e o espaccedilo sofre priva-se absteacutem-se Esta abstenccedilatildeo e privaccedilatildeo satildeo a
condiccedilatildeo pela qual reverbera sua constituiccedilatildeo enquanto sujeito ndash e nasce aiacute uma interpretaccedilatildeo
do que eacute enfim metafiacutesica A partir da conferecircncia de Fogel aleacutem de algumas outras
consideraccedilotildees comecei a ponderar a maneira pela qual abordaria o problema
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Natildeo por meio de uma definiccedilatildeo conceitual acontecimento histoacuterico ou muacutetuo
consentimento temaacutetico mas por meio de uma experiecircncia de pensamento que sem deixar de
lado nenhum dos elementos supracitados configura-se antes como algo intriacutenseco agrave proacutepria
natureza do pensar Ponderando as consideraccedilotildees da conferecircncia de Heidegger a metafiacutesica se
deixa mostrar como uma decisatildeo pela conclusatildeo Um iacutempeto maior do ser humano em
resguardar sua condiccedilatildeo de pacificidade A humanidade teme o caos teme o desalinho receia
o incoacutegnito e inexprimiacutevel Elege por isto seu caminho de seguranccedila com aquilo que lhe eacute
papaacutevel o ente enquanto ente e nada mais Nada quer saber do nada que nada lhe oferece aleacutem
de um indisposto silecircncio um insoacutelito vazio Mediante esta postura embora sob o risco de
ocultar algo em si mesmo que talvez lhe sirva para alcanccedilar siacutetios recocircnditos do misteacuterio de
sua proacutepria existecircncia constitui-se o ser humano um metafiacutesico Sem embargo eacute preciso abster-
se de algo em prol disto ou daquilo que se lhe afigura mais propiacutecio ao momento Fogel enxerga
isto como privaccedilatildeo como jejum como fome Fica muito claro em sua interpretaccedilatildeo o caraacuteter
inflexiacutevel da decisatildeo pela conclusatildeo sobretudo quando traz agrave luz o curioso caso de Vicent van
Gogh
Fogel cita uma carta que van Gogh teria enviado em maio de 1888 a seu irmatildeo Theacuteo
onde descreve sua nova moradia e ao mesmo tempo atelier afirmando que o local eacute pouco
atraente para desenvolver qualquer tipo de flerte ou paquera acrescentando que dificilmente
enxerga como compatiacuteveis o trabalhar e o farrear (faire la noce) A verdade eacute que van Gogh
natildeo possui outra opccedilatildeo senatildeo se privar da diversatildeo do faire la noce natildeo porque eacute asceta ou
abstecircmio nem porque precisa dedicar mais tempo ao seu trabalho ou pagar suas contas (todos
sabem da condiccedilatildeo por vezes paupeacuterrima na qual ele se encontrou ao longo de seu percurso)
mas por ser artista por ser pintor por pintar Urge no artista uma realidade que parece muito
mais real que a vida comum na qual o farrear remete ao contentamento agrave felicidade Natildeo viver
a vida para van Gogh seria natildeo pintar
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Se viver a vida eacute buscar este contentamento esta felicidade entatildeo van Gogh vive para
natildeo-viver Natildeo-viver se torna paradoxalmente a expressatildeo maacutexima da vida metafisicamente
entendida Fogel completa ldquoE por que natildeo viver este natildeo-viver seria ingratidatildeo Seria isso a
saber a distacircncia o agrave parte um dom um presente uma graccedilardquo (IDEM IBIDEM 105)
acrescentando ainda ldquoA metafiacutesica desde que jejum abstinecircncia de vida de viver seria
igualmente muita vida e natildeo cumpri-la natildeo realizaacute-la isto eacute natildeo pensar uma grande
ingratidatildeordquo (ID IBID) e por fim sugerindo ldquoAqui precisa-se confessar viver natildeo eacute preciso
Pintar pensar fazer quadros fazer metafiacutesica ndash isso eacute precisordquo (ID IBID) Ressalte-se o tom das
inquiriccedilotildees da interrogaccedilatildeo acompanhada pela exclamaccedilatildeo A precisatildeo da qual fala fazendo
menccedilatildeo a Fernando Pessoa eacute a necessidade de justeza de ser preciso e acurado destro
rigorosamente alinhado ao fazer metafiacutesica Assim se configura algo muito iacutentimo e sem
embargo inevitaacutevel na natureza humana
Fogel prossegue sua exposiccedilatildeo chamando ao diaacutelogo o Zaratustra de Friedrich
Nietzsche especificamente a seccedilatildeo intitulada Da Visatildeo e do Enigma na qual reincide o anuacutencio
da famosa doutrina do Eterno Retorno citando o trecho que diz
O homem eacute todavia o mais corajoso animal assim ele supera todo e cada animal Com
o jogo sonoro supera ele tambeacutem a dor Mas a dor humana eacute a dor mais profunda A
coragem tambeacutem indica a tontura morte em abismos e onde estaria o homem senatildeo
em abismos Ele natildeo vecirc a si mesmo ndash vecirc abismos (NIETZSCHE 2005 119)
Para Fogel o ldquoverrdquo natildeo denuncia uma observaccedilatildeo circunvisatildeo ou vislumbre mas antes um
acontecimento uma iluminaccedilatildeo um tornar visiacutevel Torna-se visiacutevel o abismo o sem fundo
sem fundamento Ao que parece quanto mais o ser humano contempla sua proacutepria existecircncia
mais sem chatildeo fica maior eacute a falta de fundamento e com maior radicalidade se abre um abismo
frente aos seus peacutes
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Eacute possiacutevel todavia prosseguir caminhando ao lado de Nietzsche e Heidegger bem como
por meio das reflexotildees e interpretaccedilotildees oferecidas por Fogel buscando alcanccedilar uma feiccedilatildeo da
vida humana que permita descortinar a proveniecircncia metafiacutesica de seu percurso e ateacute mesmo
suscitando uma ultrapassagem deste fenocircmeno Contudo eacute necessaacuterio ainda precisar com maior
cuidado os termos contidos na questatildeo Faz parte do labor filosoacutefico se afundar mais e mais em
algo que por si soacute jaacute eacute bastante fundo
Natildeo apenas os pensamentos de Nietzsche e Heidegger oferecem uma especulaccedilatildeo de
formidaacutevel profundidade difiacutecil de ser absorvida em primeira matildeo como tambeacutem por vezes
pode se mostrar demasiado complexo empreender um rastreamento do sentido originaacuterio das
palavras e sentenccedilas salvo mediante uma anaacutelise completa (empresa complicadiacutessima
provavelmente impossiacutevel) de suas obras Mesmo assim talvez ainda natildeo se mostre com
suficiente nitidez se natildeo houver de antematildeo uma explanaccedilatildeo das fontes e referecircncias cruzadas
Com estas ideias em mente buscando avanccedilar cada vez mais no tema e sobre ele meditar
com cada vez mais dedicada atenccedilatildeo e profundidade tentando ampliar com ferocidade o
vocabulaacuterio (para fazer minhas as palavras de Marco Lucchesi) outro escrito me sobreveio
durante o processo de composiccedilatildeo das hipoacuteteses contidas neste trabalho Em Nihilismo e
Neoplatonismo (2003) Oscar Federico Bauchwitz traccedila algumas linhas que especificam a
condiccedilatildeo por meio da qual o problema efetivamente se apresenta
Haacute no texto de Bauchwitz tambeacutem um necessaacuterio retorno a Nietzsche e Heidegger Natildeo
apenas dentro do contexto de um estudo da metafiacutesica enquanto histoacuteria intelectual mas ainda
constatando os tempos onde ela se apresenta como formataccedilatildeo do modo de ldquoagir-pensarrdquo torna-
se imprescindiacutevel resgatar a lembranccedila de que ldquo() com Nietzsche se estabelece uma criacutetica da
metafiacutesica que acaba por homologar o seu oacutebitordquo (BAUCHWTIZ 2003b 169) Como explica
Bauchwitz a declaraccedilatildeo da morte da metafiacutesica eacute aquela mesma da morte do platonismo
cristianismo niilismo e outros sinocircnimos para o mesmo fenocircmeno
23
Esta morte natildeo eacute todavia apenas uma declaraccedilatildeo da inexistecircncia corrente do pensamento
metafiacutesico senatildeo sua consumaccedilatildeo total e absoluta A ldquociecircncia do ente enquanto enterdquo entifica
tudo aquilo que outrora foi nomeado vida (φύσις) pelos gregos dos periacuteodos arcaico e claacutessico
ndash das coisas ao redor aos pensamentos e aos deuses A entificaccedilatildeo do mundo em torno eacute sem
sombra de duacutevidas a maneira pela qual a ciecircncia vigente concebe o mundo configurando o que
Heidegger havia chamado de ldquoreferecircncia ao mundordquo A entificaccedilatildeo do pensamento por sua vez
denota a ldquoposturardquo tambeacutem mencionada por Heidegger aquela mesma segundo a qual haacute uma
maneira ldquocorretardquo de pensar Ao passo que a entificaccedilatildeo dos deuses um pouco mais complicada
apresenta-se como ldquoirrupccedilatildeordquo na qual a circunvisatildeo resultante dos dois elementos acima
mencionados denuncia a morte de deus a fuga dos deuses o viver sem o divino sem o
iluminado sem o deslumbre Desatados os laccedilos entre ser humano e divindade Bauchwitz
questiona ldquoO que natildeo pode o homem modernordquo (IDEM IBIDEM 170) questionamento que
poderia ainda ser vertido nos termos (mais ou menos) de Dostoievsky ldquose deus morreu entatildeo
tudo eacute permitidordquo ou ainda nos (mais ou menos novamente) de Heidegger ldquose apagou da
histoacuteria universal o esplendor da divindade Essa eacute a eacutepoca da noite do mundordquo Contudo para
Bauchwitz perdura algo no labor filosoacutefico que torna liacutecito novamente regressar agrave questatildeo Ele
explica que ldquoResgatar a forccedila mais originaacuteria das palavras eacute o ofiacutecio do filoacutesofo Por isso
dizemos que a miacutestica se mostra no fechar de olhos no fechar da bocardquo (ID IBID 173) Recordo-
me acompanhando os seminaacuterios matinais do professor Bauchwitz de ouvir certa vez a
sentenccedila ldquoo miacutestico estaacute sempre em conflito com a linguagemrdquo Conflito ou confronto natildeo me
lembro muito bem Havia de fato escrito a frase literalmente ao peacute da paacutegina de algum livro
(ou alguma fotocoacutepia) que agora mesmo esqueccedilo qual era e natildeo consigo encontrar
Independente das palavras exatas o que se apresenta no texto de Bauchwitz eacute a sugestatildeo de um
caminho para este resgate por meio de um conflito o confronto suscitado pela miacutestica
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Bauchwitz escreve ldquoO miacutestico eacute em primeiro lugar aquele que acolhe o misteacuterio dentro
de si recolhendo em silecircncio o sentido oculto da realidade soacute depois eacute que o silecircncio rompe a
barreira dos dentes para mostrar-se linguagemrdquo (ID IBID) E ainda prossegue especificando que
ldquoPor isso a miacutestica eacute uma experiecircncia radical da liberdade proacutepria Abrindo matildeo de um mundo
que clama sua atenccedilatildeo o miacutestico encontra-se com o que nele eacute totalmente incoacutegnito e
incognosciacutevel um eu que se mostra como puro nadardquo (ID IBID) A maneira pela qual Bauchwitz
iraacute desdobrar a explicaccedilatildeo destas sentenccedilas sobremaneira enigmaacuteticas percorreraacute trecircs
pensadores que marcam a tradiccedilatildeo do neoplatonismo e da chamada miacutestica medieval quais
sejam Pseudo-Dioniacutesio Areopagita Joatildeo Escoto Eriuacutegena e Mestre Eckhart Contudo o que
havia me saltado aos olhos antes da eleiccedilatildeo temaacutetica autoral ou metodoloacutegica havia sido a
sentenccedila ldquoum eu que se mostra como puro nadardquo Jaacute havia encontrado semelhante formulaccedilatildeo
todavia nunca em autores ocidentais Remeti diretamente a maneira pela qual a tradiccedilatildeo
mahāyāna do budismo do leste asiaacutetico havia compreendido a noccedilatildeo do natildeo-si-mesmo ou natildeo-
ego (anātman अितमि) como dissoluccedilatildeo do eu por meio da tensatildeo entre forma (ou fenocircmeno ou
ainda aparecircncia rūpa रप) e nada (ou vacuidade śūnyatā शनयता) Estas ideias derivam
diretamente do chamado Cacircnone Pāḷi tendo sido transmitidas em sacircnscrito pelo Sūtra do
Coraccedilatildeo (Prajntildeāpāramitā Hṛdaya परझञापारनमताहरदय) ateacute alcanccedilarem formas mais refinadas no
budismo chrsquoan e no zen budismo japonecircs assumindo as configuraccedilotildees de ldquoformardquo ou
ldquoaparecircnciardquo enquanto shiki (色) e ldquonadardquo ou ldquovacuidaderdquo enquanto kū (空) elementos centrais
do pensamento da filosofia japonesa contemporacircnea da Escola de Kyōto (e que tambeacutem havia
abordado brevemente em minha dissertaccedilatildeo de mestrado) Tornou-se imperioso investigar ateacute
que ponto tais ideias se aproximam ou comungam de princiacutepios convergentes aleacutem da maneira
como elas repercutem em suas tradiccedilotildees e particularidades Mais uma vez encontrava-me frente
ao sem-fim nuacutemero de possibilidades comparativas e complementares
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Contudo temia o risco de cair no engodo certa vez denunciado por Immanuel Kant
quando afirmou em seus Prolegomena zu einer jeden kuumlnftigen Metaphyysik (1783) que ldquo()
dificilmente se espera que natildeo seja possiacutevel descobrir analogias para cada nova ideia entre ditos
de eras passadasrdquo (KANT 1911 7) natildeo havendo grande meacuterito nisto e sendo necessaacuterio admitir
que estes historiadores da filosofia ocupados com tal empreendimento devam antes aguardar
que os ldquoverdadeiros filoacutesofosrdquo esgotem as fontes da razatildeo Sob pena de realizar uma mera
comparaccedilatildeo friacutevola (embora com a consciecircncia de que passo longe de ser um ldquoverdadeiro
filoacutesofordquo ao menos no sentido Kantiano ndash talvez o seja em outro digamos mais Ginsbergiano
de pura pretensatildeo mas certamente natildeo muito talento) ocupei-me em corretamente designar o
problema que me afligia de modo que fosse possiacutevel corretamente endireitar o roteiro da tese
Era preciso encontrar um mote mesmo que ele natildeo deixasse ver claramente os passos a serem
percorridos mas que provessem alguma direccedilatildeo
Tendo isto em vista natildeo podia negar que o interesse pelo que ousei chamar de ldquoconflito
das fronteirasrdquo crescia a partir de um ldquopar de viacutergulasrdquo que aparentemente haviam escapado agrave
anaacutelise da histoacuteria do pensamento Em outras palavras um determinado momento no qual o
transcurso metafiacutesico foi levemente desviado em uma guinada espontacircnea e natural como um
marinheiro que sutilmente move o leme para a esquerda ou para direita ao perceber o advento
de uma portentosa onda logo atraacutes de si soltando o motor e deixando o barco ser levado pelo
mar ndash saacutebia decisatildeo em momentos de tormenta (passei por esta situaccedilatildeo certa vez em mar
aberto transitando entre Paraty e uma praia recocircndita Pouso do Cajaiacuteba se natildeo me falha a
memoacuteria gostaria de poder descrever em pormenores a experiecircncia que seria proveitosa ao
leitor em termos ilustrativos mas estava muito enjoado no barco para congregar detalhes
miacutesticos em minha massa cinzenta) E eram momentos de tormenta Como poderiam natildeo ser
Sendo assim estabeleci um conveniente itineraacuterio (ao menos sob meu ponto de vista) que
compartilho antes de iniciar o trabalho
26
O primeiro passo importante eacute estabelecer dentro de quais termos se apresenta a
metafiacutesica pela qual se nomeia a histoacuteria do pensamento ocidental O primeiro capiacutetulo da tese
intitulado Ontologia a substantivaccedilatildeo do Ocidente e a delimitaccedilatildeo das fronteiras do
pensamento ocupa-se de tal apresentaccedilatildeo e eacute na verdade bastante simples apesar do tiacutetulo
pomposo A despeito da abordagem histoacuterico-conceitual desdobrada em um primeiro momento
o capiacutetulo segue em consonacircncia com a avaliaccedilatildeo de Martin Heidegger assumindo-o como
interlocutor e inteacuterprete da histoacuteria e criacutetica da metafiacutesic Haacute aqui uma ecircnfase nas leituras por
meio das quais Heidegger caracterizou de maneira direta a passagem de uma fisiologia grega
claacutessica (por ele nomeada ldquopensamento originaacuteriordquo) para o acircmbito da ontologia latina e o modo
conforme o qual a proacutepria ideia de ldquoserrdquo eacute compreendida de maneira tatildeo somente substantivada
a partir de seu particiacutepio presente ldquoenterdquo Um necessaacuterio retorno cronoloacutegico-regressivo eacute
estabelecido do fim ao iniacutecio da modernidade pontuando autores como Jacob Lorhard e
Francisco Suaacuterez Todavia o objetivo principal do capiacutetulo eacute compreender este modo de
substantivaccedilatildeo e quais as consequecircncias disto para o pensamento em um sentido geral (a
delimitaccedilatildeo de suas fronteiras no final das contas) sem nunca perder de vista o peso aristoteacutelico
da designaccedilatildeo e realizando algumas especificaccedilotildees sobre isto
O segundo capiacutetulo intitulado O caminho da negatividade henologia e meontologia e
a ultrapassagem dos limites da metafiacutesica pretende caracterizar efetivamente essa nomeada
ldquonegatividaderdquo Negatividade que natildeo eacute simplesmente predominacircncia de um ldquonatildeordquo ou partiacutecula
de privaccedilatildeo mas antes assunccedilatildeo de um oxiacutemoro o auscultar de um inaudito Desenvolve-se
como argumento central por meio do qual se evidencia as estruturas baacutesicas de um pensamento
radical a evidenciaccedilatildeo de uma meditaccedilatildeo que jaacute natildeo eacute mais norteada pelo ldquoenterdquo mas sim pelo
ldquounordquo (henologia) neoplatocircnico ou mesmo por uma profunda meditaccedilatildeo em torno ao ldquonadardquo
(meontologia) presentes no neoplatonismo e sobremaneira evidentes no pensamento miacutestico
27
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo nomeado O Extremo Oriente e o conflito das fronteiras a
filosofia comparada intercultural como chave de leitura para alguns problemas do pensamento
contemporacircneo pretende conectar os pontos e resgatar o sentido da tese O capiacutetulo traz uma
breve apresentaccedilatildeo da chamada Escola de Kyōto e a constituiccedilatildeo da filosofia japonesa
contemporacircnea Este eacute o momento no qual eacute possiacutevel observar a recepccedilatildeo contemporacircnea da
filosofia ocidental (tanto dentro da tradiccedilatildeo metafiacutesica quanto ldquoforardquo dela na dita negatividade)
e o diaacutelogo (e siacutentese) com o mundo do Extremo Oriente O objetivo eacute portanto pensar em
comunhatildeo com os pensadores da Escola de Kyōto com especial atenccedilatildeo para Keiji Nishitani
(西谷 啓治) observando suas propostas para anaacutelise e resoluccedilatildeo dos problemas de filosofia
contemporacircnea e buscando um esclarecimento a respeito dos termos indicados
Ao fim e ao cabo a intenccedilatildeo aqui eacute convidar os leitores ao diaacutelogo intercultural
apresentando em um diaacuterio de minhas leituras diferentes nuances e pontos de vista a respeito
de algumas questotildees especiacuteficas e ousando um diagnoacutestico da filosofia contemporacircnea bem
como uma vaacutelvula de escape para a atual condiccedilatildeo do pensamento filosoacutefico Caso a empreitada
logre ecircxito acredito que uma nova conversa se abra e novas ideias venham agrave mente Sem
embargo trata-se de uma composiccedilatildeo acerca de um conflito o conflito das fronteiras
28
ONTOLOGIA A SUBSTANTIVACcedilAtildeO DO OCIDENTE E O PROBLEMA DA METAFIacuteSICA
ENQUANTO DELIMITACcedilAtildeO DAS FRONTEIRAS DO PENSAMENTO
Embora ontologia tenha um sentido bastante amplo (que seraacute melhor explorado ao longo do
capiacutetulo) aleacutem de uma sem-fim variedade de definiccedilotildees distintas de autor para autor (algumas
das quais seratildeo eleitas e apresentadas aqui) entende-se o conceito (de forma simplificada) como
um discurso capaz de reunir em uma unidade a polissemia do verbo ser O resultado eacute a
centralizaccedilatildeo conceitual de qualquer ulterior doutrina a partir da definiccedilatildeo desenrolada desde
sua compreensatildeo Por substantivaccedilatildeo do Ocidente refiro-me aqui agrave corrente historial
responsaacutevel por compreender o verbo ser de modo substantivado a partir de seu particiacutepio
presente ldquoenterdquo A intenccedilatildeo do capiacutetulo portanto concentra-se na investigaccedilatildeo do processo
decorrido dessa substantivaccedilatildeo e quais as consequecircncias disto para o pensamento ocidental e
contemporacircneo em uma concepccedilatildeo geral no que diz respeito agrave delimitaccedilatildeo das fronteiras do
pensamento
Em primeiro lugar gostaria de abrir uma interlocuccedilatildeo com o professor Charles H Kahn
da University of Pennsylvania dada a relevacircncia e pertinecircncia de sua obra The Verb lsquoBersquo in
Ancient Greek (1973) para o desenvolvimento do capiacutetulo Antes de desdobrar em pormenores
seu estudo bastante extenso e detalhado Kahn sustenta a tese de que haacute uma relatividade
linguiacutestica referente ao verbo ser (cf KAHN 2003 1-3) Em sua introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo de 2003 (cf
IDEM IBIDEM vii) Kahn se reposiciona em relaccedilatildeo ao argumento expresso em sua obra clamando
ser uma posiccedilatildeo bastante defensiva e ldquofora de modardquo para os tempos atuais Ainda assim trata-
se de uma hipoacutetese bastante interessante
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A posiccedilatildeo de Kahn (cf IBID 1-3) se apoia na afirmaccedilatildeo de Angus C Graham1 acerca
do mesmo verbo dentro do chinecircs claacutessico onde o sinoacutelogo posiciona o ser relativamente agrave
regra gramatical inerente agrave formulaccedilatildeo de uma determinada sentenccedila significando portanto a
impossibilidade de uma doutrina universal acerca do ser compatiacutevel com liacutenguas distintas
(como o grego o aacuterabe ou o chinecircs) Isto concorda em absoluto com a ideia de que no proacuteprio
grego claacutessico e nas liacutenguas indo-europeias em geral conforme a menccedilatildeo feita por Kahn a
Eacutemile Benveniste2 natildeo haacute em hipoacutetese alguma a implementaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo universal ou
condiccedilatildeo necessaacuteria envolta na distribuiccedilatildeo dos significados do verbo ser Haacute sim e Benveniste
endossa a ideia uma predisposiccedilatildeo da linguiacutestica grega agrave ldquovocaccedilatildeo filosoacutefica da noccedilatildeo de serrdquo
Vocaccedilatildeo esta segundo Kahn muito geral e diversificada no desenvolvimento sistemaacutetico de
seu conceito desde Parmecircnides ateacute Aristoacuteteles e de uma maneira mais sistemaacutetica dos Estoicos
ateacute Plotino Em siacutentese Kahn sustenta que a tese de um determinismo linguiacutestico do ser eacute
claramente falsa ou seja mesmo em falantes de uma mesma liacutengua natildeo eacute possiacutevel encontrar
uma mesma doutrina em torno ao ser como eacute possiacutevel ver nos pensamentos distintos de Platatildeo
e Aristoacuteteles Epicuro e Plotino
Todavia natildeo haacute duacutevidas para Kahn a respeito das condiccedilotildees intriacutensecas da liacutengua de um
autor em sua atividade intelectual seus recursos e suas tendecircncias Ele afirma que natildeo haveria
possibilidade de especificar a determinaccedilatildeo ontoloacutegica se o verbo grego εἰμί natildeo fosse provido
do particiacutepio presente τὸ ὄν ou se natildeo houvesse a derivaccedilatildeo nominal ndashία da qual redunda a
noccedilatildeo de οὐσία Ou ainda a classe de morfemas que compreende ἐστί εἶναι e ἐών derivadas
do indo-europeu ndashes Satildeo as formas nominais do verbo que permitem segundo Kahn (cf IBID
451) natildeo soacute uma clara expressatildeo senatildeo tambeacutem a tematizaccedilatildeo do conceito como um toacutepico
distinto para a reflexatildeo filosoacutefica
1 Angus C Graham ldquoBeing in Classical Chineserdquo In The Verb lsquoBersquo and its Synonyms John W M Verhaar (ed)
Dordrecht Holland D Reidel 1967 1-39 2 Eacutemile Benveniste ldquoCateacutegories de penseacutee et cateacutegories de languerdquo Les Eacutetudes philosophiques n 4 (out-dez
1958) PUF Paris 419-429
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Kahn fala dos primeiros usos do verbo εἰμί (em formas participiais) em sua
possibilidade de representar qualquer construccedilatildeo copulativa (natildeo muito diferente de qualquer
outro particiacutepio em grego) adaptando-se agraves construccedilotildees coordenadas ou subordinadas (em
nuacutemero gecircnero e causa) e expressando diferentes nuances (concessiva causal adversativa)
Contudo frisa haver ainda outras expressotildees para aleacutem do caso copulativo como nos casos
vital veriacutedico ou existencial Quando o verbo aparece dentro da expressatildeo existencial e emerge
a necessidade de indicar uma referecircncia ou seja um caso gramatical locativo surgem as formas
do uso filosoacutefico do ser como τὰ ὄντα o berccedilo para o desenvolvimento da ontologia O sentido
de τὰ ὄντα apareceria em Aristoacuteteles de acordo com Kahn (cf ID IBID 457) em primeira matildeo
como ldquoo que eacuterdquo (o caso os fatos ou eventos) e em segunda matildeo existencialmente como ldquocoisas
que existemrdquo ldquocoisas que estatildeo presentesrdquo ldquocoisas que podem ser encontradas em algum lugarrdquo
Em ambos os casos o verbo ser eacute entificado Como neste sentido haacute uma conotaccedilatildeo ldquodo que
eacuterdquo algo Aristoacuteteles considerou a referecircncia aos atributos de um determinado ente para expressar
a muacuteltipla significaccedilatildeo de τὸ ὄν partindo em seguida para a definiccedilatildeo do ser no sentido primaacuterio
e fazendo uso de seu derivado nominal οὐσία
A manifestaccedilatildeo de οὐσία surge como uma nominalizaccedilatildeo abstrata ou substantivo de
accedilatildeo Kahn enumera trecircs aspectos distintos do uso de οὐσία em uma concepccedilatildeo filosoacutefica o
primeiro uso refere-se agrave nominalizaccedilatildeo do verbo na qual οὐσία representaria ldquoo que algo eacuterdquo
dando abertura para as formas platocircnicas e essecircncias aristoteacutelicas (τὸ τί ἐστι τὸ τί ἦν εἶναι) o
segundo uso eacute todavia menos teacutecnico e predica οὐσία como ldquoserrdquo ldquoexistecircnciardquo ou ldquorealidade
verdadeirardquo o terceiro uso enuncia uma equivalecircncia entre οὐσία e τὸ ὄν referindo ldquoas coisas
que satildeo (neste mundo)rdquo τὰ ὄντα (cf ID IBID 461) Aristoacuteteles pontua precisamente a intenccedilatildeo
socraacutetica primaacuteria de buscar a essecircncia das coisas (τὸ τί ἐστι) por meio do procedimento
silogiacutestico cujo princiacutepio eacute justamente a quididade (ἀρχὴ δὲ τῶν συλλογισμῶν τὸ τί ἐστι)
(ARISTOacuteTELES 2002 604-605 Metafiacutesica 1078b 24-25)
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O que em Soacutecrates apareceria de fato como τί ἐστι e em Platatildeo como (τὸ) ὅ ἐστι em
Aristoacuteteles seria simplificado como τὸ τί ἐστι e τὸ τί ἦν εἶναι em um uso que expressa a essecircncia
ou natureza das coisas pela definiccedilatildeo ao passo que a definiccedilatildeo propriamente existencial caberia
ao termo οὐσία 3 Kahn ilustra as distinccedilotildees dizendo que
Enquanto o substantivo no primeiro e no segundo usos serve como uma
nominalizaccedilatildeo ldquoabstratardquo para o verbo finito como predicado isto eacute para o ldquoser aquilo
que eacuterdquo (e eacute assim sintaticamente paralelo ao infinitivo articular τὸ εἶναι) οὐσία no
terceiro sentido eacute utilizado ndash como em muitos outros substantivos abstratos ndash para o
sujeito caracterizado (isto eacute o que eu chamo de concreto ou agente de nominalizaccedilatildeo
como tipicamente ilustrado pelo particiacutepio articular τὸ ὄν ou como por exemplo ὁ
τρέχων ldquoo corredorrdquo em contraste agrave accedilatildeo de nominalizaccedilatildeo abstrata τὸ τρέχειν
ldquocorrerrdquo Esta distinccedilatildeo sintaacutetica corresponde em parte ao contraste de Heidegger
entre das Seiende e das Sein der Seienden) (ID IBID)
Embora haja tal distinccedilatildeo Kahn prossegue afirmando que em seu uso tardio (poacutes-platocircnico)
οὐσία e τὸ ὄν satildeo claramente sinocircnimos sendo um utilizado para enfatizar o outro como na
doutrina das Categorias de Aristoacuteteles4 O resultado eacute a inexistecircncia de uma diferenccedila entre o
agente concreto e a accedilatildeo abstrata de nominalizaccedilatildeo do εἰμί onde natildeo haacute distinccedilatildeo conceitual
entre οὐσία e τὸ ὄν ou seja entre a entidade e o que ela eacute Em outras palavras ser e ente se
tornam o mesmo confundem-se em sua aplicaccedilatildeo a despeito das distinccedilotildees conceituais que
definem substacircncia (οὐσία) e essecircncia (τὸ τί ἦν εἶναι)
3 Um comentaacuterio mais preciso foi apresentado em Luiacutes Andreacutes Berdlow ldquoParmenides and the Grammar of Beingrdquo
Classical Philology v 106 (2011) 283-298 4 As Categorias de Aristoacuteteles apresentam a classificaccedilatildeo das coisas que satildeo (τὰ ὄντα) dentre as quais encontra-
se a substacircncia (οὐσία) (cf ARISTOTLE 1952 5-6 Categorias 1a-2b) Na Metafiacutesica Aristoacuteteles deixa isto mais
claro quando diz ldquoMas em primeiro lugar se o ldquoenterdquo (τὸ ὂν) se diz de muitas maneiras ndash dentre as quais algumas
vezes substacircncia (οὐσία) em outras qualidade ou mesmo quantidade aleacutem de todas as outras categorias ndash qual
deles portanto eacute aquele pelo qual as coisas satildeo ()rdquo (ARISTOacuteTELES 2002 669 Metafiacutesica 1089a 5-15) A diferenccedila
conceitual ou mesmo hieraacuterquica eacute paulatinamente abandonada pela necessidade de exprimir um niacutevel de
realidade no qual jaacute natildeo eacute mais possiacutevel discorrer acerca do ente se redundar a palavra definida na proacutepria definiccedilatildeo
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Essa indistinccedilatildeo entre ser e ente eacute sabido foi o que chamou a atenccedilatildeo de Martin
Heidegger no processo ldquodestrutivordquo de histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica realizado em seu projeto
Sein und Zeit (1927) Conforme Heidegger haacute uma γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας de haacute muito
abandonada O motivo aparente se concentra nas caracteriacutesticas emergentes do proacuteprio ser
quais sejam sua maacutexima universalidade sua vacuidade sua obscuridade sua maacutexima
evidecircncia Neste sentido Heidegger diz
O conceito de ldquoserrdquo eacute indefiniacutevel Isto pode ser concluiacutedo desde sua maacutexima
universalidade E isto com razatildeo ndash se definitio fit per genus proximum et differentiam
specificam De fato ldquoserrdquo natildeo pode ser entendido conceitualmente como ente enti
non additur aliqua natura ldquoserrdquo natildeo pode estar em uma determinaccedilatildeo concebendo
dele um ente O ser por definiccedilatildeo natildeo pode ser derivado de conceitos superiores e
nem dado por nenhuma ilustraccedilatildeo Contudo disto se segue que do ser natildeo se pode
derivar nenhum problema Pode-se concluir em absoluto apenas que o ldquoserrdquo natildeo eacute
algo como um ente Portanto o legiacutetimo dentro de certos limites de determinaccedilatildeo dos
entes ndash a ldquodefiniccedilatildeordquo da loacutegica tradicional que em si tem suas bases na antiga
ontologia ndash natildeo eacute aplicaacutevel ao ser A indefiniccedilatildeo do ser natildeo dispensa a pergunta por
seu significado senatildeo que justamente a intima isto (HEIDEGGER 1967 4)
As observaccedilotildees de Heidegger concordam com a conclusatildeo de Kahn a respeito da tomada de
rumo do verbo ser dentro da filosofia grega claacutessica sobretudo na concepccedilatildeo das bases da antiga
ontologia acerca da indistinccedilatildeo entre ser e ente A γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας agrave qual se refere
Heidegger parece ser a natureza inevitaacutevel da proacutepria metafiacutesica em fechar a porta aberta por
ela mesma para o modo de se relacionar com o ser uma espeacutecie de destinaccedilatildeo forccedilosa da qual
natildeo se poderia de maneira alguma escapar ponderando a projeccedilatildeo que reverbera em cada um
dos sentidos
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O conflito acerca do entendimento e expressatildeo da φύσις revela em boa parte a maneira
pela qual o conjunto do ser se tornou alvo de disputas A contenda eacute ilustrada na histoacuteria
primaacuteria da filosofia grega enquanto fisiologia e na ldquocontroveacutersiardquo paradigmaacutetica entre
Heraacuteclito e Parmecircnides Uma realidade em constante movimento e mutaccedilatildeo absorvida desde a
observaccedilatildeo teoreacutetica do mundo entorno ou simplesmente o ponto de vista do ldquodevirrdquo parece
compatiacutevel com a natureza infinitiva e inapreensiacutevel do verbo ser como eacute possiacutevel rastrear no
πάντα ῥεῖ heracliacutetico 5 Heraacuteclito expressa o movimento intriacutenseco de abertura do modo
relacional do ser Todavia tal entendimento natildeo eacute compatiacutevel com qualquer tipo de silogismo
loacutegico onde eacute possiacutevel desenhar um conhecimento comum Para assumir a cogniccedilatildeo e percepccedilatildeo
vaacutelidas seria necessaacuterio assumir a permanecircncia de algo como eacute possiacutevel acompanhar na
elaboraccedilatildeo da univocidade do ser em Parmecircnides6
O primeiro ponto de vista paradoxalmente leva agrave evidecircncia da diferenccedila e a posiccedilatildeo do
oxiacutemoro enquanto o segundo permite a identificaccedilatildeo e a possibilidade de conclusatildeo por meio
das loacutegicas da identidade e natildeo-contradiccedilatildeo Aparentemente o primeiro natildeo resulta em nenhum
avanccedilo imediato a respeito de assuntos praacuteticos ou na dissoluccedilatildeo de questotildees teoacutericas enquanto
o segundo iraacute provavelmente resolver problemas de quase todos os tipos no campo pragmaacutetico
e em toda sorte de adversidades naturais e sociais Por meio da loacutegica natural do ser humano
social eacute bastante evidente qual ponto de vista deve ser eleito no intuito de estabelecer a
coexistecircncia mais faacutecil e paciacutefica aquela que afasta o homem da falta de fundamento da
existecircncia ou seja do abismo existencial da afliccedilatildeo que eacute existir
5 Conforme cita Platatildeo no Craacutetilo ldquotodas as coisas estatildeo em processo e nada permanece paradordquo (τά ὄντα ἱέναι
τε πάντα καὶ μένειν οὑδέν) (PLATO 1997 119-120 Craacutetilo 401d-402a) (KIRK E RAVEN 1957 197) Kirk e Raven
ponderam ainda que se trata de um momento ldquoOnde φύσις provavelmente natildeo significa lsquonaturezarsquo mas lsquoas coisas
em sua verdadeira constituiccedilatildeorsquordquo (IDEM IBIDEM 184) 6 ldquoO uacutenico caminho de inquiriccedilatildeo que pode ser pensadordquo (αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι) (KIRK E RAVEN
1957 269) Haacute uma anaacutelise mais detalhada acerca do toacutepico em Ciacutecero Cunha Bezerra ldquoParmeacutenides y la
univocidad del serrdquo Caacutetedra v 1 (2003) 33-48
34
Eacute possiacutevel especular que com a ausecircncia de um princiacutepio solidamente identificado e
natildeo-contraditoacuterio quiccedilaacute nem mesmo uma regra gramatical linguiacutestica poderia ser estabelecida
dando margem mesmo agrave impossibilidade de comunicaccedilatildeo Igualmente tampouco se poderia
delinear uma corrente de haacutebitos pessoais compatiacuteveis aos costumes sociais desabilitando toda
e qualquer eacutetica ou ciecircncia poliacutetica pela qual se pode regulamentar a conduta humana Com a
perspectiva de um devir total e assunccedilatildeo da diferenccedila a presenccedila de certo caos eacute inegaacutevel Com
a fundaccedilatildeo de uma estrutura loacutegica todavia eacute possiacutevel organizar e controlar os pensamentos e
accedilotildees do ser humano e sua convivecircncia social Contudo natildeo necessariamente esta postura iraacute
levar a humanidade para as escolhas mais coerentes ndash e a histoacuteria pode comprovar isto inuacutemeras
vezes O abandono da multiplicidade de perspectivas sobretudo as supracitadas (uma em
detrimento de outra) parece ter dirigido a histoacuteria por vias pouco luacutecidas e por vezes mesmo
autodestrutivas
Mas a anaacutelise da histoacuteria fatual natildeo eacute o que realmente interessa aqui tampouco a
atribuiccedilatildeo de uma culpa ou indicaccedilatildeo de um erro neste ou naquele ponto de vista O que
interessa aqui eacute como identificar a predileccedilatildeo loacutegica do pensamento ocidental com o cerne de
sua postura contemporacircnea e inquirir se eacute possiacutevel (ou se jaacute foi tomado) um caminho de
pensamento distinto e quais os resultados da confrontaccedilatildeo de um ponto de vista com o outro
Para isto eacute preciso retomar uma anaacutelise da histoacuteria da ontologia observando a maneira pela
qual ela se movimenta intriacutenseca e extrinsecamente Dentro das possibilidades de eleiccedilatildeo de um
caminho interpretativo opto aqui em um primeiro momento por absorver a histoacuteria e criacutetica
da metafiacutesica feita por Heidegger durante o seacuteculo vinte com o fito de deixar um pouco mais
evidente o problema fundamental da indistinccedilatildeo entre ser e ente que eacute sem embargo o pontapeacute
inicial de toda a contenda Muito embora seja possiacutevel descortinar a histoacuteria do pensamento
ocidental mediante distintos autores a ecircnfase na nomeada questatildeo do ldquoesquecimento do serrdquo
serve sobremaneira bem ao propoacutesito desta tese
35
Portanto em primeiro lugar eacute preciso considerar que embora ilustrativo Martin
Heidegger passou ao largo de resolver os problemas suscitados pela histoacuteria das ideias Antes
ele desenvolveu problemaacuteticas ainda mais insoluacuteveis e como se natildeo bastasse propocircs novos
enigmas A maior dentre todas as dificuldades talvez ainda precise aguardar muito tempo para
ser descortinada Durante um longo periacuteodo o entretenimento geral dos eruditos se contentou
em traccedilar um denominador comum dentre as vaacuterias questotildees pertinentes aos problemas de sua
filosofia em um movimento enciclopeacutedico quiccedilaacute tatildeo importuno quanto improfiacutecuo de decifrar
seu pensamento Mais conveniente talvez seja simplesmente resguardar o segredo de certas
passagens e aguardar a maturaccedilatildeo necessaacuteria para interpelaacute-las independentemente da espera
suscitada por tal postura
Ainda assim alguns pontos merecem ser postos em relevo e sobre eles decerto vale
despender alguma energia no esforccedilo de meditar acerca de seu sentido Certos trabalhos
compostos por Heidegger guardam de uma soacute vez todo o peso de sua leitura da realidade
notadamente em trechos sutis e aparentemente inofensivos Em momentos nos quais o leitor se
daacute por satisfeito em compreender um posicionamento aparentemente simples e historial como
pueril revisatildeo da histoacuteria da filosofia aiacute mesmo se lhe eacute possiacutevel abrir uma brecha para absorver
a atitude fundamental de seu pensamento Heidegger sempre foi um historiador da filosofia e
natildeo renegou em momento algum o peso de um ofiacutecio como este pelo contraacuterio coube-lhe fazecirc-
lo por diversas vezes e em distintos modos Mesmo quando seus ensaios e conferecircncias se
projetavam a um tema especiacutefico e natildeo a um autor a forte presenccedila de suas interpretaccedilotildees da
histoacuteria da filosofia eacute inegaacutevel Cabe ao propoacutesito desta tese realccedilar um exemplo que torne liacutecito
ilustrar uma fissura por onde seja possiacutevel se esgueirar ateacute a fonte da emanaccedilatildeo especulativa
acerca do sentido da histoacuteria da filosofia e do desenvolvimento do pensamento ocidental
sinocircnimos para o que conveacutem nomear metafiacutesica
36
Aos 13 de novembro de 1935 como sabem os leitores assiacuteduos de Heidegger foi
pronunciada uma conferecircncia preparada para a Kunstwissenschaftlichen Gesellschaft de
Freiburg im Breisgau7 Der Ursprung des Kunstwerkes se tornou de forma veloz e viral um
trabalho amplamente comentado no circuito acadecircmico em geral principalmente no campo da
esteacutetica filosoacutefica e teorias da arte O ponto de vista quase unacircnime dos receptores do trabalho
assentou na interpretaccedilatildeo do texto como uma tese a respeito da arte como ldquoposta em marcha da
verdade enquanto desvelamentordquo uma frase natildeo tatildeo simples de ser decifrada mas repetida
quase como uma foacutermula automaacutetica que se tornou rapidamente um emblemaacutetico clichecirc e uma
resposta imediata agrave pergunta pelo sentido da arte em Heidegger
A popular obra de Michael Inwood A Heidegger Dictionary (1999) destaca
enfaticamente o caraacuteter essencial da proposiccedilatildeo-chave quando pontua no mesmo sentido que
ldquoA obra de arte eacute mais bem um projeto que abre um mundo no qual escolhas podem ser feitas
A verdade a revelaccedilatildeo do lsquoserrsquo eacute o configurar em uma obra e configurar para obra iluminando
o mundo e a terra naquilo que neles perdurardquo (INWOOD 1999 18) Inwood ressalta a
proximidade encontrada por Heidegger entre o termo alematildeo ldquoproteger manterrdquo (bewahren) e
a proacutepria palavra ldquoverdaderdquo (Wahrheit) embora os termos natildeo necessariamente estejam
etimologicamente conectados Ele aponta para a ldquopreservaccedilatildeordquo como elemento pelo qual ldquoA
arte eacute o deixar-acontecer da chegada da verdade do ser enquanto talrdquo (IDEM IBIDEM) com especial
atenccedilatildeo para o proacuteprio fazer (ποίησις) da arte e particularmente da poesia Haacute contudo uma
seacuterie de consideraccedilotildees mais sutis a serem levadas em consideraccedilatildeo nas conferecircncias de
Heidegger proporcionando uma anaacutelise um pouco mais cuidadosa do que estaacute propriamente
em jogo quando Heidegger sobreleva a questatildeo da obra de arte
7 O mesmo trabalho sofreu novas releituras durante todo o ano de 1936 sendo reapresentado respectivamente na
Einladung der Studentenschaft der Universitaumlt em Zuumlrich durante o mecircs de janeiro e na Deutschen Hochstift em
Frankfurt am Main entre novembro e dezembro O ciclo de conferecircncias recebeu ediccedilotildees retrabalhadas em 1956 e
1960 publicadas pela Reclam de Stuttgart e sendo incluiacutedo em 1977 no tomo Holzwege da Gesamtausgabe
37
O editor do volume Holzwege Friedrich-Wilhelm von Hermann dedicou toda uma obra
agrave anaacutelise temaacutetica envolta naquele escrito publicando em 1980 o livro Heideggers Philosophie
der Kunst Em algumas de suas consideraccedilotildees mais amplas sobre as conferecircncias de Heidegger
Hermann atenta para o fato da questatildeo da obra de arte ser levantada a partir de um problema
desdobrado pela ontologia fundamental Hermann observa a problemaacutetica geral do escrito
desde o estabelecimento do ldquoserrdquo como ldquoacontecimentordquo (Ereignis) Conforme ele pondera
trata-se de um trabalho contemporacircneo aos Beitraumlge zur Philosophie (1936-38) Para Hermann
a questatildeo em torno ao ldquoserrdquo como ldquoacontecimentordquo (Ereignis) estende-se em Der Ursprung des
Kunstwerkes por meio de quatro outros problemas (1) o estabelecimento constitutivo da arte
(2) da obra de arte (3) da criaccedilatildeo artiacutestica e (4) da compreensatildeo da arte (cf HERMANN 2001 7)
Contudo circunscrita agrave conferecircncia sobre a arte estaacute a elaboraccedilatildeo da passagem da discussatildeo em
torno agrave verdade do ser para o ldquopensamento da histoacuteria do serrdquo (seinsgeschichtliches Denken)
Trata-se especificamente do momento de transiccedilatildeo do pensamento de Heidegger8 Em
linhas gerais Der Ursprung des Kunstwerkes ressalta uma preocupaccedilatildeo da lida do homem para
com a essecircncia da verdade mediante a obra de arte enquanto coisa Haacute toda uma histoacuteria dos
efeitos pertinentes agraves anaacutelises de Heidegger da obra de Vincent van Gogh9 aleacutem de inuacutemeras
teorizaccedilotildees em torno ao poder salvador da obra de arte Todavia salta aos olhos uma passagem
muito mais peculiar (para qual gostaria de chamar a atenccedilatildeo agora mesmo) qual seja aquela
na qual Heidegger aborda o problema da transposiccedilatildeo da experiecircncia fundamental grega para a
intepretaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo do pensamento romano-latino (cf HEIDEGGER 1977 7)
8 A perspectiva da ontologia fundamental de Sein und Zeit (1927) continuada no curso Grundprobleme der
Phaumlnomenologie ministrado em Marburg durante o semestre de veratildeo de 1927 receberia seu desenvolvimento
desde uma visatildeo historial-reflexiva jaacute na primavera de 1932 ocasiatildeo na qual conforme Hermann satildeo elaboradas
as primeiras linhas de Beitraumlge zur Philosophie redigido entre 1936 e 1938 mas publicado postumamente somente
em 1989 9 Em uma das mais famosas passagens de Der Ursprung des Kunstwerkes Heidegger interpreta os sapatos de um
dos quadros de Vincent van Gogh (natildeo identifica qual todavia) descortinando com isto o cotidiano campesino e
oferecendo uma leitura da realidade a partir de aiacute Uma criacutetica direta foi apresentada por Meyer Shapiro (em The
Still Life as a Personal Object ndash A Note on Heidegger and van Gogh 1968 e ainda em Further Notes on Heidegger
and van Gogh 1994) onde ele sustenta que os sapatos retratados por van Gogh natildeo satildeo de uma pessoa do campo
mas as botas do proacuteprio artista apontando com isto graves mal entendidos na interpretaccedilatildeo de Heidegger
38
Ainda no iniacutecio do escrito Heidegger busca a compreensatildeo mais geral da ldquocoisardquo
abordando como exemplo um bloco de granito A despeito de suas muacuteltiplas caracteriacutesticas ele
enfatiza o ldquoao redorrdquo (das herum sich) pelo qual suas propriedades se agrupam podendo entatildeo
falar de algo como um ldquonuacutecleordquo (Kern) da coisa Esse nuacutecleo de acordo com Heidegger
chamaram-lhe os gregos claacutessicos de ὑποκείμενον Embora ilustrativa a descriccedilatildeo eacute decerto
passiacutevel de baixo niacutevel de representaccedilatildeo posta sua exposiccedilatildeo pouco objetiva O termo eacute mesmo
tatildeo controverso quanto as proacuteprias ideias de ser e ente dentro da perspectiva grega Ela possui
uma carga conceitual talvez natildeo tatildeo difiacutecil de ser desvelada mas que tampouco garante exatidatildeo
e lucidez em sua abordagem variando de eacutepoca para eacutepoca de filoacutesofo para filoacutesofo de
interpretaccedilatildeo para interpretaccedilatildeo Ademais vaacuterias histoacuterias metaforizam o sentido do termo
ὑποκείμενον Uma das mais conhecidas (conto-a sem embasamento ou referecircncias quiccedilaacute
mesmo de maneira inapropriada) relata que certa vez um rei se espantara ao conhecer a obra de
um escultor haacutebil em reproduzir as formas da natureza em blocos de maacutermore Tamanha era a
destreza do artista que se postas lado a lado a escultura e a coisa mesma confundiam-se os
espectadores exceto pelo caraacuteter inanimado da escultura Intrigado o rei mandou chamar o
escultor e perguntou-lhe como fazia para reproduzir com tanta fidelidade o mundo em torno
Natildeo sabendo explicar senatildeo por meio da praacutetica pediu um bloco de maacutermore e agraves vistas do rei
reproduziu perfeitamente um cavalo em tamanho real faltando-lhe apenas galopar O rei lhe
questionou ldquoComo o fizesterdquo e respondeu o escultor ldquofaacutecil apenas retirei do bloco de
maacutermore o que natildeo era cavalordquo O ὑποκείμενον seria portanto aquele elemento sem o qual o
cavalo natildeo seria cavalo ou sem o qual uma coisa natildeo eacute uma coisa Contudo o grande problema
envolto nas tentativas de atingir um entendimento deste sentido por meio de um silogismo uma
loacutegica racional ou uma explicaccedilatildeo conceitual (e natildeo por uma metaacutefora ou estoacuteria) consiste na
dificuldade em elaborar uma equaccedilatildeo que exija menos esforccedilo do ouvinte capacitando uma
lucidez mais ampla e geral que a todos possa atingir
39
Toda definiccedilatildeo a partir de uma predicaccedilatildeo direta pode se configurar ainda mais obscura
e lanccedilar aquele que se propotildee a entender o conceito para um mero encadeamento e conexatildeo de
termos sem contudo realmente promover a experiecircncia do sentido da palavra Sem embargo o
Impeacuterio Romano foi a eacutegide da popularizaccedilatildeo e introspecccedilatildeo do mundo grego competindo-lhes
a tarefa de transpor ao modo latino de pensar os sentidos das meditaccedilotildees gregas Sobre isto
Heidegger ostenta uma posiccedilatildeo bastante firme e vale a pena destacar por completo o trecho no
qual se lhe pode observar sua atitude
Estas denominaccedilotildees natildeo eram meros nomes Em sua fala a experiecircncia fundamental
grega do ser do ente no sentido de sua presenccedila mostrava o que natildeo se podia mostrar
Por meio dessa disposiccedilatildeo instaura-se a interpretaccedilatildeo oficial da coisidade da coisa e
a interpretaccedilatildeo ocidental do ser do ente Comeccedila com a traduccedilatildeo das palavras gregas
para o pensamento romano-latino ὑποκείμενον torna-se subjectum ὑπόστασις torna-
se substantia συνβεβηκός torna-se accidens O processo desta traduccedilatildeo dos nomes
gregos para a liacutengua latina natildeo se daacute sem consequecircncias e nos dias de hoje toma-se
ainda a mesma compreensatildeo Antes pelo contraacuterio por detraacutes da traduccedilatildeo
aparentemente literal haacute um traslado da experiecircncia grega para outro modo de pensar
O pensamento romano assume para si as palavras gregas sem a devida
correspondecircncia com a experiecircncia originaacuteria do que dizem sem a palavra grega A
falta de fundamento do pensamento ocidental comeccedila com essas traduccedilotildees (IDEM
IBIDEM 7-8)
Responsabilizar o pensamento romano-latino pela queda do Ocidente no abismo da falta de
fundamento delega a Heidegger um encargo de peso formidaacutevel cujo maior perigo talvez seja
o de natildeo se ambientar aqui ou ali dentro deste ou daquele territoacuterio neste ou naquele lugar
mas na posiccedilatildeo do meio na esfera do entre no desenho do limite da linha da fronteira
40
A direccedilatildeo do pensamento de Heidegger a partir desta passagem claramente se constitui
desde uma divisatildeo da metafiacutesica ocidental em dois momentos muito distintos embora
interligados A emboscada se encontra na percepccedilatildeo de que todo e qualquer ocidental eacute jaacute
sempre forccedilado a se movimentar na esfera da ontologia latina ao passo que o retorno aos
fundamentos da ontologia grega eacute antes de tudo calcar terreno em solo incerto e regiatildeo
desconhecida Estabelecer uma ponte que permita ao ser humano contemporacircneo entender a
proveniecircncia de sua apreensatildeo da existecircncia eacute um roteiro deveras ousado Resta saber como eacute
possiacutevel ainda pensar os conceitos fundamentais da metafiacutesica dentro de sua propriedade sem
causaacute-los algum tipo de dano que faccedila seu sentido se perder ser obscurecido ou transviado
A partir da colocaccedilatildeo do problema da obra de arte enquanto coisa Heidegger questiona
o que enfim se compreende pelo termo mesmo ldquocoisardquo quando se compromete com a ideia de
tentar envolvecirc-lo conceitualmente (a partir de ὑποκείμενον ὑπόστασις e συνβεβηκός) e desde
aiacute extrair uma explicaccedilatildeo Sobre isto Hermann comenta ldquoComo podemos ver ainda mais e
melhor resolver o problema da obra de arte se torna um problema ontoloacutegico ndash isto eacute em
primeira instacircncia o problema ontoloacutegico do ser-res da resrdquo (HERMANN OP CIT 87) entenda-se
ainda o problema da coisidade da coisa Ele ainda complementa deixando ver a postura exigida
pela tarefa de entender a ontologia grega ldquoPortanto explicar o pensamento grego significa
antes de tudo revelar novamente a experiecircncia de estar no lugar em que se encontra a expressatildeo
de acordo com o fio condutor da palavra filosoacutefica gregardquo (IDEM IBIDEM 93-94) Sem embargo
conforme aponta Hermann (em coerecircncia com Heidegger) o ofiacutecio de introduzir a filosofia
grega (ou se introduzir na filosofia grega sua ontologia e berccedilo da metafiacutesica) constitui-se
desde o caminhar ao lado do fio condutor de sua expressatildeo e manifestaccedilatildeo A caminhada talvez
seja ela mesma o ldquoestar no lugar em que se encontra a expressatildeordquo ou o espaccedilo do ldquoentrerdquo a
ldquolinha de fronteirardquo
41
Algumas dezenas de leituras podem ser desdobradas desde a interpretaccedilatildeo de Heidegger
do lugar de transiccedilatildeo da histoacuteria do ser O itineraacuterio do pensamento de Heidegger legou aos
fieacuteis depositaacuterios de sua vasta caminhada a tarefa ingloacuteria de dar uma passo aleacutem Gostaria de
destacar aqui um direcionamento um pouco menos ousado nem por isto ingecircnuo Considerar
uma histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica em Heidegger eacute procurar pela fenda cuja passagem
encaminha diretamente ao salto no abismo da superaccedilatildeo da metafiacutesica embora natildeo fique ainda
claro o significado destes termos Ademais a intenccedilatildeo aqui eacute justamente esta esclarecer os
enlaces desse percurso histoacuterico nomeado sob o signo da metafiacutesica agrave luz da trajetoacuteria
interpretativa de Heidegger
Justamente sob o tiacutetulo Itineraacuterio do Pensamento de Heidegger (1965) Emmanuel
Carneiro Leatildeo apresenta sua traduccedilatildeo para o portuguecircs da Einfuumlhrung in die Metaphysik (1935)
de Heidegger ndash segundo ele nem de perto uma obra de faacutecil acesso Em primeiro lugar pela
impossibilidade geral de uma introduccedilatildeo em filosofia no sentido amplo Em outras palavras
natildeo haacute caminho de iniciaccedilatildeo agrave filosofia como se houvesse ainda um siacutetio no qual se a conquista
Haacute na verdade o puro levantar de questotildees responsaacuteveis por conduzir o pensamento para dentro
da proacutepria filosofia Carneiro Leatildeo elucida tal dificuldade quando especifica o tiacutetulo da obra
Introduzir agrave metafiacutesica eacute movimentar-lhe a questatildeo fundamental de maneira a
conduzi-la (-ducere) para dentro (-intro) das origens donde a metafiacutesica procede Um
esforccedilo de pensamento que nada tem de horizontal e progressivo Cujo movimento
se processa antes no sentido vertical e regressivo (CARNEIRO LEAtildeO 1999 10)
A filosofia busca o movimento imputado para originaacute-la para com isto retornar agraves suas origens
proacuteprias Em segundo lugar e natildeo menos importante a obra ainda guarda certa inacessibilidade
devido agrave intencional ambiguidade de um periacuteodo conturbado de transiccedilatildeo do pensamento de
Heidegger (tambeacutem evidenciado por Hermann)
42
Eacute preciso movimentar a questatildeo fundamental da metafiacutesica para conduzi-la para dentro
de suas origens Agora bem destacar a questatildeo fundamental eacute o primeiro passo de Heidegger
na obra quando questiona ldquoPorque haacute em geral o ente e natildeo antes nadardquo (HEIDEGGER 1983b
3) Um adendo eacute necessaacuterio ao leitor lusoacutefono Carneiro Leatildeo em sua traduccedilatildeo explica o
emprego do termo ldquoenterdquo para traduzir o alematildeo Seiendes justificando o uso da forma erudita
referida ao latim ens entis para salvaguardar o caraacuteter de tudo que eacute independentemente de
seu modo de ser (cf CARNEIRO LEAtildeO OP CIT 77 nota) Ponderando isto a leitura de Carneiro
Leatildeo segue um rumo bastante simples e esclarecedor ele afirma
O homem natildeo pode existir senatildeo em comeacutercio e comunhatildeo com o mundo dos entes
Ente significa tudo que de algum modo eacute o homem as coisas os acontecimentos ateacute
mesmo o Nada enquanto eacute um Nada ieacute enquanto tem um significado () (IDEM IBIDEM
11)
A forccedila responsaacutevel por manter a decisatildeo a respeito dos entes depende diretamente da
capacidade de enxergar suas distinccedilotildees Em um compecircndio unitaacuterio a base de sustentaccedilatildeo no
comeacutercio com os entes se daacute na e pela linguagem mediante a qual o homem simplesmente
afirma eacute Uma afirmaccedilatildeo aparentemente simples guarda contudo uma relaccedilatildeo complexa e
ambiacutegua talvez mesmo em decorrecircncia de sua extrema simplicidade
A existecircncia humana se agita dentro da tensatildeo entre imanecircncia e transcendecircncia
porque o homem existe enquanto in-siste no domiacutenio da Verdade do Ser ieacute a
vicissitude instaurada pela diferenccedila irredutiacutevel e referecircncia necessaacuteria entre ente e
ser A tarefa do pensamento natildeo eacute procurar sair decircsse ciacuterculo de diferenccedila e referecircncia
e sim necircle ingressar de maneira a poder regressar ateacute a fonte originaacuteria de sua tensatildeo
e unidade (ID IBID 15)
43
O atino para o ingresso ao interior da tarefa do pensamento deixa bastante evidente a intitulaccedilatildeo
da obra Eacute possiacutevel conceber a empreitada em regressar ao fundamento desde o qual a metafiacutesica
eacute ela mesma a proveniecircncia da tensatildeo em torno agrave unidade da existecircncia perante a multiplicidade
Eacute preciso destarte compreender que ldquoSoacute poderemos entender os pensamentos os conceitos
ou as explicaccedilotildees dados na medida em que nos ex-pusermos e dis-pusermos aquilo que se pensa
que se concebe ou que se explicardquo (ID IBID 29) acompanhando assim os passos de Heidegger
e verificando sua coerecircncia teoacuterica de levar colocar e se pocircr no estado da questatildeo
Esta mesma ambivalecircncia eacute tambeacutem destacada por Heidegger quando ele se refere ao
ambiacuteguo das formas essenciais do espiacuterito Natildeo se trata portanto de uma dedicaccedilatildeo integral agraves
possibilidades de captar de maneira exclusivamente formal os procedimentos que envolvem os
estudos mas de perceber (αἴσθησις) e experienciar os fenocircmenos Heidegger adverte ainda
Tomada na totalidade de seu sentido mais cru a filosofia sempre lida com o
fundamento do ente de tal maneira que o proacuteprio ser humano tem enfaticamente a
experiecircncia de seu significado e propoacutesito Por isto agora se vislumbra facilmente a
amplitude da filosofia que poderia e deveria proporcionar o fundamento da existecircncia
da eacutepoca histoacuterica atual e futura pela qual se estabelece a cultura Com tais
espectativas e demandas o estado e a essecircncia da filosofia satildeo sobrecarregadas Na
maior parte das vezes essa demanda excessiva se mostra pela forma de uma censura
da filosofia Diz-se por exemplo porque a metafiacutesica natildeo participou na preparaccedilatildeo
para a revoluccedilatildeo ela deve ser rejeitada Isto eacute tatildeo espirituoso quanto dizer que porque
vocecirc natildeo pode voar com um tocircrno portanto este deve ser abandonado A filosofia
natildeo provecirc diretamente forccedilas nem modos de accedilatildeo e criaccedilatildeo para ajeitar a condiccedilatildeo
histoacuterica simplesmente pelo motivo de dizer respeito apenas a poucos Quais poucos
Aqueles que transformam criativamente convertendo os fins Afetando uma vastidatildeo
apenas indiretamente e nunca fazendo rodeios ateacute certo ponto onde finalmente desde
o longo esquecimento da filosofia degenera-se como autocompreensatildeo da existecircncia
(HEIDEGGER OP CIT 12)
44
Heidegger aponta certa responsabilidade da filosofia na formaccedilatildeo da cultura e direcionamento
da eacutepoca presente e futura A chamada ldquoessencializaccedilatildeo da filosofiardquo eacute em grande parte
responsaacutevel pela tomada de rumo e pela constituiccedilatildeo da histoacuteria ateacute mesmo por seu abandono
Agrave ela estaacute diretamente conectada a ldquoessencializaccedilatildeo do serrdquo e maneira pela qual a filosofia se
apresenta como contemplaccedilatildeo dos fundamentos do ente
Heidegger explica em pormenores a diferenccedila entre ser e ente quando expotildee a gramaacutetica
e etimologia da palavra Certa advertecircncia contudo clama a petrificaccedilatildeo das normas
gramaticais ocas e vazias destituindo a Escola do Mundo do Espiacuterito que circunda a
morfologia dos termos e se restringindo tatildeo somente agrave transmissatildeo de regras do uso da palavra
Neste sentido a maneira pela qual se ostenta a ldquogrande gramaacuteticardquo eacute em si mesma o processo
de substantivaccedilatildeo do Ocidente visto como o cerrar das fronteiras como delimitaccedilatildeo
Tambeacutem em Einfuumlhrung in die Metaphysik Heidegger insiste no argumento exprimido
em Der Ursprung des Kunstwerkes seguindo o fluxo comentado acima quando afirma outra
vez ldquoQue essas formas gramaticais natildeo dissecaram desde toda eternidade uma linguagem
absoluta enquanto controle elas satildeo de fato erigidas de uma particular interpretaccedilatildeo da liacutengua
grega pela liacutengua latinardquo (ID IBID 56) Em outras palavras a linguagem possibilita sendo ela
tambeacutem um ente manipulaccedilatildeo e controle por sobre suas formas Por este motivo eacute possiacutevel
transmitir o conhecimento de uma liacutengua estrangeira somente com o ensino da gramaacutetica
mesmo para pessoas que nunca realmente entraram em contato com essa determinada liacutengua
Ou ainda aprender um idioma antigo natildeo mais utilizado ou cujo vigor ou esplendor se apagou
como o latim o grego claacutessico ou o sacircnscrito antigo sem ter a possibilidade de experenciaacute-los
no cotidiano O domiacutenio teoacuterico de uma liacutengua pode permitir ainda intuiccedilotildees e analogias a
respeito da experiecircncia que esta liacutengua provocava em seus falantes originais sem contudo
garantir exatidatildeo das disposiccedilotildees ou estados de acircnimo referidos pelos termos
45
Dentro da gramaacutetica e morfologia do ser Heidegger evidencia que existe um duplo
sentido para a palavra dentro de seu entendimento como consistecircncia (Staumlndigkeit) qual seja
a) o estar em si mesmo enquanto proveniente de si mesmo e b) o que perdura constantemente
enquanto tal Consistecircncia eacute a palavra-chave de sua leitura do termo ser dentro da circunvisatildeo
grega claacutessica Heidegger aponta que justamente por isso o natildeo-ser denota a desistecircncia ou a
saiacuteda da existecircncia ou ainda o abrir matildeo do ldquosalto para aleacutemrdquo Jaacute a etimologia da palavra ser
revela como os sentidos manifestos pela gramaacutetica e morfologia foram confundidos
historicamente Heidegger expotildee trecircs raiacutezes do termo uma sacircnscrita (es asus) outra indo-
germacircnica (bhuuml) e uma apenas germacircnica (sein) Conforme suas interpretaccedilotildees elas se
desdobram respectivamente em um sentido de ldquoviverrdquo ldquosurgirrdquo e ldquopermanecerrdquo Tratam-se de
verbos distintos todavia Heidegger natildeo citas as fontes das quais ele extrai tais etimologias
Ateacute onde eacute possiacutevel investigar o termo sacircnscrito mais proacuteximo ao que ele considera es
asus seria asti (अनतत) cuja raiz ās (आस) possui incontaacuteveis significados dentre os quais ldquoexistirrdquo
ldquoestar presenterdquo ldquopermanecerrdquo entre vaacuterios outros Aparentemente eacute a origem do indo-europeu
es cujo similar em grego seria o morfema ἐστί e em latim esse (sobremaneira visiacutevel no
portuguecircs estar) Jaacute a palavra bhuuml provavelmente indicada por Heidegger como ldquoindo-
germacircnicardquo em consequecircncia da formataccedilatildeo do verbo ser como ldquobinrdquo ldquobistrdquo (ou ainda ist e em
inglecircs ldquoisrdquo) eacute tambeacutem ela sacircnscrita (bhū भ) e estaacute presente em vaacuterias outras liacutenguas indo-
europeias (como no inglecircs being) Seu significado mais geral seria ldquoserrdquo ou ldquoexistirrdquo embora
aponte tambeacutem para ldquoacontecerrdquo ou ldquoperceberrdquo aleacutem de outros sentidos Sein tambeacutem pode ser
rastreado ateacute certo ponto em sua origem germacircnica no mittelhochdeutsch sīn e no
althochdeutsch wesan derivado da raiz sacircnscrita ves (वस) que daria as formas de Wesen
(essecircncia) ou (war o preteacuterito de Sein ser) em alematildeo De qualquer forma a questatildeo leva
imediatamente ao que Heidegger chama de ldquoessencializaccedilatildeo do serrdquo O motivo eacute simples viver
surgir e permanecer satildeo manifestaccedilotildees que interpelam o ser humano inevitavelmente
46
Contudo o ser ao interpelar o humano natildeo se manifesta antes se oculta esconde sua
proveniecircncia mostra-se ambiacuteguo e pela metade A forma de manifestaccedilatildeo do ser passiacutevel de
ser apreendida como uma realidade existente daacute-se por meio de sua participaccedilatildeo na realidade
presente qual seja ente (seu particiacutepio presente) A predileccedilatildeo pelo ente nasceria justamente
de seu caraacuteter manipulaacutevel embora haja uma conclusatildeo que clama as variaccedilotildees da palavra ser
e seu comportamento com respeito ao ldquoser em si mesmordquo evocado de modo distinto de outros
substantivos e verbos com relaccedilatildeo aos seus respectivos entes A eleiccedilatildeo de uma manifestaccedilatildeo
do ser diz muito sobre o modo relacional do humano com a conduccedilatildeo de sua existecircncia10
Alguns anos antes da composiccedilatildeo da Einfuumlhrung em um compecircndio posteriormente
publicado sob o tiacutetulo Sein und Wahrheit (1933-34) Heidegger se aproximou sistematicamente
da constituiccedilatildeo histoacuterica da metafiacutesica A obra eacute todavia pouco comentada O motivo eacute simples
haacute certo complexo ou trauma envolto na abordagem de um texto do periacuteodo da ascensatildeo do
Partido Nazi e do consentimento ao seu propoacutesito inicial Embora haja certos traccedilos de sintonia
com o discurso do momento pelo qual o povo alematildeo atravessava natildeo haacute nenhum resquiacutecio em
Heidegger dos preconceitos intriacutensecos ao desenrolar do totalitarismo Dentro do ambiente
promissoramente inovador Heidegger escreve ldquoToda gestatildeo essencial se vivifica desde uma
grande determinaccedilatildeo oculta no fundamentordquo (ID 2001 3) As palavras de Heidegger parecem
indicar antes de uma referecircncia ao destino da Alemanha o fato de que a questatildeo fundamental
estaacute contida no proacuteprio fundamento Por este motivo Heidegger ainda sugere um ldquo() caminho
histoacuterico na essecircncia da filosofia ndash e natildeo se poderia ter outro e isto justamente porque a filosofia
eacute ela mesma o acontecimento fundamental da histoacuteria da existecircnciardquo (ID IBIDEM 17) Resta
saber portanto como esse acontecimento fundamental se constitui como metafiacutesica
10 Heidegger justifica este ponto na sua apresentaccedilatildeo do conceito de Cura Sorgen em Sein und Zeit que embora
seja de suma importacircncia uma explanaccedilatildeo mais cuidadosa tomaria aqui e agora demasiado tempo mas que
precisa ao menos ser mencionada Seria esta caracteriacutestica originaacuteria do ser humano Cura Cuidado (Sorgen)
aquilo que o impulsionaria a preservar sua condiccedilatildeo evitando a queda nos abismos existenciais e a confusatildeo
generalizada (cf HEIDEGGER OP CIT 196-200)
47
Quando a tarefa eacute compreender a histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica realizada por Heidegger
insisto nunca eacute demasiada repeticcedilatildeo retomar as primeiras linhas de Sein und Zeit Vale lembrar
uma vez mais a disputa titacircnica a respeito da essecircncia (γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας) que
envolve os questionamentos aparentemente desprestigiados da metafiacutesica Conforme Heidegger
a maneira pela qual o problema perdurou sofreu alteraccedilotildees de Platatildeo e Aristoacuteteles ateacute sua
formulaccedilatildeo mais sofisticada na Wissenschaft der Logik (1812-16) de Georg W F Hegel Em
Sein und Wahrheit eacute tambeacutem a discussatildeo com Hegel que orienta a anaacutelise da metafiacutesica
tradicional Ateacute alcanccedilar Hegel entretanto Heidegger se preocupa em delinear as feiccedilotildees da
perda de sentido da μετὰ τὰ φυσικά aristoteacutelica na recepccedilatildeo tardia de seus escritos onde
ldquoGrandeza e iacutempeto desaparecem tanto na singularidade do questionamento criativo quanto na
designaccedilatildeo conceitual a praccedila desocupada daacute lugar agrave atividade de uma escola ndash somente
sobraram palavras e conceitos mas natildeo o poder estimulante da coisardquo (ID IBID 21)
Para Heidegger a unificaccedilatildeo do termo grego na palavra latina metaphysica natildeo eacute
acompanhada somente de uma correspondecircncia senatildeo ao mesmo tempo de uma mudanccedila em
seu significado Inerente agrave transformaccedilatildeo de seu sentido estaacute a apropriaccedilatildeo cristatilde do conceito
imputando um conhecimento suprassensiacutevel (trans physicam) de maior grau de importacircncia e
relevacircncia e diretamente relacionado ao divino Onde antes havia perplexidade na aspiraccedilatildeo agrave
sapiecircncia e observaccedilatildeo da realidade haacute agora um conhecimento humano elevado e suscetiacutevel agrave
confirmaccedilatildeo pela ciecircncia superior Heidegger visa e cita textualmente a formulaccedilatildeo de
Immanuel Kant da metafiacutesica como a ultrapassagem de todos os objetos empiacutericos a fim de
alcanccedilar um conhecimento viaacutevel e puro ou a superaccedilatildeo do conhecimento sensiacutevel pelo
conhecimento suprassensiacutevel11
11 Embora esta premissa esteja presente jaacute na Kritik der reinen Vernunft e em certa medida em suas especulaccedilotildees
preacute-criacuteticas atingindo ainda todos os escritos intercalados agraves duas outras criacuteticas e ainda os posteriores ele parece
se referir agraves conferecircncias de Kant reunidas por Karl Heinrich Ludwig Poumllitz publicadas em Vorlesungen Kants
uumlber Metaphysik aus drei Semestern Max Heine (org) Leipzig Hirzel 1984 (natildeo tenho certeza disto entretanto)
48
Haacute ainda a absorccedilatildeo do direito agrave verdade metafiacutesica pela ontologia claacutessica e neste
sentido Heidegger cita Alexander Baumgarten onde a verdade metafiacutesica eacute o princiacutepio
universal e fundamental em conveniecircncia agrave determinaccedilatildeo do ente enquanto tal Deste modo
conclui que a metafiacutesica se constitui como uma determinaccedilatildeo cristatilde e ideia matemaacutetico-
metoacutedica de fundamentaccedilatildeo nos sistemas metafiacutesicos da modernidade onde ela se apresenta
como conhecimento do ente em seu todo Hegel ocuparia neste sentido o lugar da consumaccedilatildeo
da plenitude da filosofia ocidental na metafiacutesica destacado o caraacuteter teoloacutegico no qual a medida
do saber eacute o ldquoinfinitordquo (perfectum) manifesto enquanto identidade absoluta (perfectissimus)
ou espiacuterito absoluto Por este motivo ao que parece quando se refere agrave histoacuteria da disputa
titacircnica sobre a essecircncia em Sein und Zeit Heidegger aponta a Wissenschaft der Logik de Hegel
como ponto de chegada Ali a loacutegica eacute entendida como ciecircncia do pensamento todavia natildeo
como ciecircncia responsaacutevel por regular o pensamento mas como fundamento do conceito e em
uacuteltima instacircncia fundamento do ente em si mesmo Heidegger explica dizendo que em Hegel
ldquoA metafiacutesica como ciecircncia do ser do ente eacute lsquoLoacutegicarsquo e esta Loacutegica eacute Loacutegica lsquodorsquo Absoluto isto
eacute de Deus Genitivo deliberadamente ambiacuteguo Natildeo apenas um genitivus objectivus Deus
representado mas sim genitivus subjectivus a essecircncia de deus como presenccedila do Espiacuterito
Absolutordquo (ID IBID 76) Em um momento final da exposiccedilatildeo da questatildeo fundamental da
filosofia Heidegger faz uma divisatildeo entre a filosofia ocidental em seu princiacutepio e em seu fim
escrevendo que
No princiacutepio a mais profunda necessidade era o questionamento na luta com os
poderes incontrolaacuteveis da verdade e da decepccedilatildeo A filosofia causava o mais alto
poder clarificante da naccedilatildeo e de sua existecircncia Riqueza de decisatildeo momento de
decisatildeo No fim alta bem-aventuranccedila na suspensatildeo das contradiccedilotildees fraqueza de
meros conceitos opostos fracasso e morte de todo questionamento Eternidade vazia
cheia de indecisotildees (ID IBID 77)
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A eternidade vazia cheia de indecisotildees todavia natildeo soa aqui como algo proveniente de um
descontentamento Pelo contraacuterio emerge desde a simples oposiccedilatildeo de conceitos com o fito de
suspender contradiccedilotildees e evidenciar uma maacutexima clareza e nitidez com o intuito de um suposto
pleno contentamento como se a profunda necessidade de questionamento houvesse sido calada
pela extrema emergecircncia de soluccedilatildeo Um abismo entre a filosofia ocidental em seu princiacutepio e
em seu fim eacute diagnosticado de maneira direta e evidente Longe de apontar culpados ou
referendar uma condenaccedilatildeo agrave metafiacutesica claacutessica Heidegger explica o processo intriacutenseco de
explicaccedilatildeo e complicaccedilatildeo da metafiacutesica evidenciando fatualmente a transiccedilatildeo do pensamento
da histoacuteria do ser da ontologia grega agrave latina A distacircncia que provecirc de clareza a anaacutelise eacute todavia
bastante tendenciosa aos propoacutesitos da ontologia fundamental A maneira pela qual a proacutepria
ontologia se protege com uma complexidade de conceitos dificulta a visualizaccedilatildeo do percurso
histoacuterico e da explanaccedilatildeo esclarecedora
Vale portanto retomar alguns aspectos relevantes embora por vezes sutis da pesquisa
acerca da ontologia na metafiacutesica claacutessica Gostaria de propor um breve desvio que agrave primeira
vista pareceraacute desnecessaacuterio contudo configura-se como extremamente pertinente ao
propoacutesito do capiacutetulo Atualmente as pesquisas voltadas ao estudo da ontologia se restringem
ou bem ao estudo histoacuterico ou bem agraves repercussotildees da metafiacutesica na filosofia contemporacircnea
Via de regra servem de embasamento para questotildees projetadas aos assuntos pertinentes da
eacutepoca vigente A ontologia se torna assim uma ldquoaacuterea da filosofiardquo uma ldquodisciplinardquo ou mesmo
um tronco braccedilo ou ramificaccedilatildeo dos estudos filosoacuteficos Os pesquisadores responsaacuteveis por
esta aacuterea da filosofia desdobram prolegocircmenos e comentaacuterios explicativos aos textos claacutessicos
fundamentando muacuteltiplas outras aacutereas Poucas vezes eacute possiacutevel observar um trabalho sobre
ontologia que realmente conecte seu sentido primaacuterio aos problemas apresentados nos dias de
hoje todavia escavando com devoccedilatildeo algumas pesquisas emergem sobremaneira conexas
50
A ontologia parece ser mesmo ldquoutilizadardquo como ponte para abrir novos caminhos como
por exemplo as discussotildees histoacutericas na anaacutelise do desenvolvimento da cultura as
investigaccedilotildees epistemoloacutegicas na confrontaccedilatildeo das possibilidades de conhecimento as
consideraccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas na constituiccedilatildeo dos haacutebitos e costumes da relaccedilatildeo do ser humano
com as virtudes deveres e utilidades os juiacutezos esteacuteticos na relaccedilatildeo com a obra de arte ou
mesmo as bases psicanaliacuteticas do entendimento do proacuteprio humano e sua relaccedilatildeo com as coisas
e o mundo entorno
Um dos exemplos mais niacutetidos de um pensamento comprometido em discutir a
ontologia por si mesma observando a maneira pela qual as categorias ontoloacutegicas dispotildeem
ainda hoje os modos de estruturar a realidade talvez se apresente nas recentes discussotildees em
torno ao ldquodigitalrdquo e ao ldquovirtualrdquo ou as propostas de uma ldquoontologia digitalrdquo Ouvi falar pela
primeira vez sobre ldquoontologia digitalrdquo por meio de Rafael Capurro em 2009 durante o III
Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica realizado em Natal na Universidade Federal do Rio
Grande do Norte12 Ateacute entatildeo possuiacutea minhas proacuteprias teorias acerca do mundo digital e da
esfera virtual da internet todavia natildeo tinha sequer noccedilatildeo da envergadura do problema e da
maneira pela qual o assunto podia ser pensado desde uma perspectiva ontoloacutegica e natildeo
meramente poliacutetico-ativista ou mesmo teoacuterico-juriacutedica Embora este natildeo seja propriamente o
assunto do capiacutetulo gostaria de abordar o tema como forma de justificar o questionamento pela
ontologia claacutessica para aleacutem da mera constataccedilatildeo historiograacutefica Conforme pude acompanhar
a inquietaccedilatildeo que move os trabalhos se concentra na crenccedila segundo a qual todos os fenocircmenos
podem ser analisados construiacutedos e manipulados sob a condiccedilatildeo de poderem ser digitalizados
12 A discussatildeo de Capurro havia comeccedilado com uma troca de e-mails com Michael Eldred A conversa redundou
em primeira matildeo nos trabalhos de Capurro intitulados Entwurf einer digitalen Ontologie (1999) e Beitraumlge zu
einer digitalen Ontologie (1999) sendo estendida em ulteriores escritos como Interpreting the digital human
(2008) e Einfuumlhrung in die digitale Ontologie (2009) aleacutem do livro publicado por Eldred The Digital Cast of
Being (2009) Provavelmente a discussatildeo ainda prossegue e outros trabalhos foram ou estatildeo sendo publicados
51
Talvez como um chiste mas bastante pertinente e veriacutedico Capurro afirma que
atualmente se algueacutem natildeo estaacute na rede eacute como se natildeo existisse Dando impulso para uma
formulaccedilatildeo inusitada esse est computari em analogia agrave famosa foacutermula de George Berkeley
(esse est percipi) A conclusatildeo bastante perspicaz extraiacuteda por Capurro eacute a de que seria correto
dizer que hoje vemos a realidade no horizonte de sua digitabilidade Uma seacuterie de outros termos
e expressotildees natildeo-convencionais emergem do texto de Capurro como ldquoem tudo que eacute puramente
virtual as coisas consistem essencialmente em bitsrdquo ou a denominaccedilatildeo ldquopitagorismo digitalrdquo
Entretanto todas as definiccedilotildees e determinaccedilotildees estatildeo conectadas ao arcano questionamento em
torno ao ente
O que eacute o ente Esta pergunta fundamental da metafiacutesica natildeo pode ter uma resposta
definitiva a partir da perspectiva de um conhecimento finito sem cair na ilusatildeo
essencialista Isto tem consequecircncias para a problemaacutetica de como pensar uma cultura
digital Uma ontologia digital eacute uma interpretaccedilatildeo possiacutevel do ser dos entes vistos
desde sua digitabilidade No entanto tal ontologia corre sempre o perigo de
transformar-se em uma metafiacutesica digital no momento em que acredita ser a
verdadeira ou uacutenica resposta agrave pergunta pelo ser A ontologia digital eacute uma possiacutevel
compreensatildeo do ser por parte do conhecimento humano finito Todas as regiotildees ou
esferas dos entes satildeo concebidas entatildeo como digitais (CAPURRO 2009 322)
A introduccedilatildeo da digitabilidade para aleacutem da anaacutelise do ldquoserrdquo quantificado pela ciecircncia moderna
confere uma perspectiva nova de experimentaccedilatildeo do ente em sua totalidade Chama atenccedilatildeo o
perigo envolto na transformaccedilatildeo em uma ldquometafiacutesica digitalrdquo na qual uma virada ontocecircntrica
concentraria o poder da verdade enquanto julgamento como oriente agrave pergunta pelo ldquoserrdquo
Talvez o mais importante da anaacutelise de Capurro consista justamente na renovaccedilatildeo desta criacutetica
na qual se chama atenccedilatildeo para a imprecisatildeo especulativa por meio da indefiniccedilatildeo do virtual
52
Natildeo eacute difiacutecil perceber que o mundo digital oferece uma vasta gama de temas e
possibilidades de se pensar filosoficamente sob as mais diversas perspectivas Natildeo haacute grande
espanto na busca dos filoacutesofos por reflexotildees em torno aos acontecimentos revolucionaacuterios dos
veiacuteculos de informaccedilatildeo e tecnologias em geral no seacuteculo vinte-e-um Contudo admiraacutevel eacute
encontrar o caminho oposto o momento no qual desenvolvedores da ciecircncia e da teacutecnica
buscam a filosofia para fundamentar seus trabalhos Eacute caso dos estudos realizados por Peter
Oslashhrstroslashm Henrik Schaumlrfe e Sara L Uckelman cujos resultados foram publicados nos anais da
International Conference on Conceptual Structures um evento dedicado agrave ciecircncia da
computaccedilatildeo Os trecircs investigadores fundamentam desde a ontologia moderna claacutessica a
concepccedilatildeo de hipertexto um conceito fundamental da computaccedilatildeo13 Para Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e
Uckelman o nascimento do termo ldquoontologiardquo representa o estabelecimento de um hipertexto
sobre a realidade e a temporalidade em pleno seacuteculo dezessete Os pesquisadores se referem
especificamente a Jacob Lorhard autor dos oito volumes intitulados Ogdoas Scholastica (1606)
responsaacutevel por cunhar o termo ldquoontologiardquo pela primeira vez na histoacuteria
Lorhard compocircs sua Ogdoas como uma gramaacutetica para o ensino escolar por meio de
aacutervores diagramaticais A teacutecnica utilizada por Lorhard foi profundamente influenciada por
Petrus Ramus (Pierre de la Rameacutee) cujo objetivo era transformar a razatildeo dialeacutetica em um
meacutetodo de loacutegica pedagoacutegica Petrus Ramus foi uma figura controversa e polecircmica Aleacutem de
suas interpretaccedilotildees pouco ortodoxas de Aristoacuteteles Ramus defendia uma completa reforma no
sistema educacional Ele fomentava o espiacuterito humanista pelo qual procurava devolver agrave
retoacuterica sua posiccedilatildeo proeminente visando desautorizar o peso da loacutegica escolaacutestica14
13 A ideia de hipertexto eacute bastante antiga todavia o termo no sentido moderno foi cunhado por Ted Nelson em
1965 para descrever o sistema de escrita natildeo-sequencial que envolvia o ligamento entre textos distintos em uma
mesma interface na internet O sistema de hyperlinks em um siacutetio da internet eacute um exemplo bastante simples de
um hipertexto 14 Cf Petrus Ramus Sa Vie Ses Eacutecrits et Ses Opinions Charles Waddington (ed) Paris Librairie de Ch Meyrteis
1855 Acerca das singularidades de Petrus Ramus confira Laura Adriaacuten Lara ldquoPetrus Ramus y el ocaso de la
retoacuterica ciacutevicardquo Utopiacutea y Praxis Latinoamericana v 13 n 43 (out-dez 2008) 11-31 e ainda Frank P Graves
Petrus Ramus and the Educational Reformation of Sixteenth Century New York Macmillan 1912
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Havia um profundo espiacuterito anti-escolaacutestico que movia os interesses de Ramus
enfatizando uma postura radical na qual a filosofia ramista considerava falsa todas as
afirmaccedilotildees de Aristoacuteteles Para facilitar o processo de aprendizagem pelo qual o domiacutenio das
ciecircncias e artes liberais pode ser alcanccedilado Ramus emprega seus ldquoesquemas visuais abstratosrdquo
Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman se referem aos esquemas de Ramus como base para a aacutervore
diagramatical de Jacob Lorhard ndash para os pesquisadores este tipo de diagrama eacute o berccedilo de
todo futuro hipertexto
Eacute faacutecil observar que a estrutura da Ogdoas Scholastica de Jacob Lorhard permite ao
leitor localizar conceitos especiacuteficos e suas respectivas definiccedilotildees por meio de uma rede de
interconexotildees na forma de diagramas A ldquoaacutervorerdquo facilita natildeo soacute a compreensatildeo dos conceitos
como tambeacutem a maneira pela qual eles se relacionam uns com os outros Sem embargo trata-
se de uma gramaacutetica pela qual o domiacutenio de conceitos fundamentais da metafiacutesica se torna
bastante simples concordando em absoluto com a demanda da eacutepoca em introduzir este tipo de
estudo nos niacuteveis baacutesicos de ensino Com obras como as de Lorhard a exigecircncia do estudo da
ontologia foi difundida durante o seacuteculo dezoito como parte essencial da formaccedilatildeo acadecircmica
baacutesica15 Aleacutem disto a Ogdoas ainda sustentava a eacutegide da clarificaccedilatildeo da ontologia como base
para todo ulterior desenvolvimento intelectual Em outros termos Lorhard (assim como Ramus)
acreditava que natildeo era possiacutevel esclarecer nenhuma ciecircncia se natildeo houvesse de antematildeo uma
lucidez absoluta a respeito dos fundamentos do ente que poderia ser proporcionada apenas pelo
estudo por ele nomeado ldquoontologiardquo um discurso que buscava um pleno esclarecimento dos
termos empregados para definir todo e qualquer ulterior passo tomado tanto nas ciecircncias do
espiacuterito quanto nas ciecircncias da natureza
15 Muito disto deve-se ao filoacutesofo norueguecircs Jens Kraft cuja obra (influenciada em larga escala pela Metaphysica
sive Ontologia de Christian Wolff) reforccedilou o peso dos estudos em ontologia Dentro da compreensatildeo de Kraft
compartilhada tambeacutem por Lorhard e outros a ontologia ganha um lugar privilegiado como unificaccedilatildeo sistemaacutetica
das estruturas do pensamento como um todo
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O oitavo livro da Ogdoas de Lorhard que encerra o compecircndio e eacute dedicado agrave ontologia
no sentido de unificar todos os escritos anteriores define a metafiacutesica como ldquo() o
conhecimento de um inteligiacutevel enquanto inteligiacutevel ()rdquo (LORHARD sd 3) Este conhecimento
eacute divido entre conhecimento dos particulares e dos universais Para Lorhard a parte da
metafiacutesica responsaacutevel pelo conhecimento dos particulares ou bem se refere acirc substacircncia
pertinente aos seres natildeo-complexos que subsistem em si mesmos (sejam eles criados ou natildeo)
ou bem aos acidentes
Jaacute o conhecimento dos universais se refere a tudo o que eacute inteligiacutevel redundando nos
atributos gerais ou nas distribuiccedilotildees conforme as quais o λόγος eacute entendido como um inteligiacutevel
As distribuiccedilotildees dizem respeito ao nada por um lado ou a algo por outro sendo este uacuteltimo
em seu aspecto positivo o que envolve as ideias de ldquoessecircnciardquo e ldquoenterdquo As noccedilotildees de ldquoessecircnciardquo
e ldquoenterdquo satildeo centrais natildeo apenas para o sistema de Lorhard mas tambeacutem para todas as
subsequentes compreensotildees da ontologia Em uma primeira definiccedilatildeo Lorhard observa a
ldquoessecircnciardquo em sua relaccedilatildeo com o λόγος definindo que ldquoEssecircncia eacute algo produtivo pelo qual o
Ser eacute o que eacute Esta palavra estrangeira eacute chamada pelos Escolaacutesticos de Entidade ou quidditasrdquo
(IDEM IBIDEM 4) Em segundo lugar considera a ldquoessecircnciardquo em relaccedilatildeo a sua distribuiccedilatildeo na
qual ela eacute ou bem ldquorealrdquo (ou seja uma atualizaccedilatildeorealizaccedilatildeo do ser) ou bem ldquoimaginaacuteriardquo (no
caso de um ser puramente racional) Ambas podem ser ldquosimplesrdquo ou ldquocompostasrdquo ldquoabsolutasrdquo
ou ldquorespectivasrdquo ldquouniversaisrdquo ou ldquosingularesrdquo Dentro do uacuteltimo destes casos a ldquoessecircnciardquo
pode ser ainda ldquogeneacutericardquo (ou um gecircnero compartilhado por outras espeacutecies) ou ldquoespeciacuteficardquo
(relativa a uma uacutenica espeacutecie) Natildeo haacute grande espanto nos pontos apresentados ateacute entatildeo por
Lorhard O que haacute na verdade eacute uma constituiccedilatildeo sistemaacutetica de um diaacutelogo que estava sendo
travado jaacute haacute muito tempo e sobremaneira evidente no periacuteodo no qual ele compocircs sua obra
Suas contribuiccedilotildees mais significantes talvez se deem na seccedilatildeo seguinte quando aborda a
questatildeo do ldquoenterdquo
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Lorhard tambeacutem considera o ldquoenterdquo no discurso unificador bem como na questatildeo da
ldquoessecircnciardquo afirmando dele algo produtivo ldquodotado de certa essecircnciardquo Em seu caraacuteter
distributivo o ldquoenterdquo (assim como a ldquoessecircnciardquo) eacute ou bem ldquorealrdquo ou bem ldquoracionalrdquo Ele define
o ldquoente de razatildeo ou racionalrdquo afirmando que ldquoEacute um ente de razatildeo que eacute tocado pela cogitaccedilatildeo
de uma mente singular de acordo com o modo real do ente agrave parte disto eacute nada Eacute tambeacutem
chamado ente fictiacutecio e imaginaacuteriordquo (ID IBID 5) Jaacute o ldquoente realrdquo pode se dar por meio do
discurso (λόγος) de sua proacutepria essecircncia ou ainda ser distribuiacutedo em entes primaacuterios e
secundaacuterios (estes uacuteltimos decorrentes dos primeiros) sendo ambos ldquosimplesrdquo ou ldquocomplexosrdquo
ldquoabsolutosrdquo ou ldquorespectivosrdquo ldquouniversaisrdquo ou ldquoparticularesrdquo ldquoimateriaisrdquo ou ldquomateriaisrdquo
ldquopermanentesrdquo ou ldquosucessivosrdquo
Toda a divisatildeo da ontologia de Lorhard acompanha em muitos aspectos a ontologia
derivada da filosofia grega claacutessica desde o processo dialeacutetico de questionamento da realidade
conforme a doutrina platocircnica e a divisatildeo das Categorias de Aristoacuteteles A principal distinccedilatildeo
do emprego do termo ontologia como expressatildeo e manifestaccedilatildeo das doutrinas metafiacutesicas em
Lorhard eacute o foco especiacutefico de uma ldquodoutrina dos inteligiacuteveisrdquo Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman
comentam que
Conforme Lorhard haacute uma importante dualidade entre os entes e nossa discussatildeo
racional a respeito deles Parece que ele insistiu na necessidade dessa dualidade no
sentido de que cada vez que noacutes discutimos os entes no mundo tentando classificaacute-
los tambeacutem temos que refletir sobre os conceitos usados para fazecirc-los (OslashHRSTOslashM
SCHAumlRFE E UCKELMAN OP CIT 4)
Em termos mais simples apoacutes um longo periacuteodo de aristotelismo escolaacutestico talvez tenha sido
Lorhard o primeiro a atentar para o fato de certa confusatildeo gerada dentro da metafiacutesica a respeito
da maneira pela qual se predica o ser do ente em sua participaccedilatildeo presente na realidade
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Seria liacutecito portanto argumentar que a evidecircncia da confusatildeo de termos se deve ao fato
de Lorhard ter deslocado o ontocentrismo metafiacutesico para uma teoria dos intiligiacuteveis Ainda
conforme Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman a postura de Lorhard eacute diretamente influenciada pela
obra de Clemens Timpler que sustentava a mesma posiccedilatildeo a respeito da metafiacutesica desde uma
confrontaccedilatildeo direta com a filosofia de Francisco Suaacuterez Esta seria a contenda principal do
iniacutecio da modernidade responsaacutevel por conformar e enformar a metafiacutesica como ontologia tal
qual hoje ainda se a concebe Joseph S Freedman desenvolve uma anaacutelise bastante precisa da
maneira pela qual Timpler fundamentou sua postura e as consequecircncias de seu trabalho
sobretudo no que tange agrave disputa com Francisco Suaacuterez A respeito da proposiccedilatildeo ldquotudo que eacute
inteligiacutevelrdquo (omne intelligibile) o tema constitutivo da metafiacutesica Freedman (cf 2009 10-11)
comenta que Timpler provecirc uma moldura conceitual dentro da qual alguns conceitos
ontologicamente baacutesicos satildeo englobados quais sejam ldquoalgordquo (aliquid) ldquoprivaccedilatildeordquo (privatio)
ldquoessecircnciardquo (essentia) e ldquoentidaderdquo (ens) Dentro da dissoluccedilatildeo dos conceitos na obra central de
Timpler Metaphysicae systema methodicum (1604) Freedman comenta
Conforme Timpler ldquotudo aquilo que eacute Inteligiacutevelrdquo eacute dividido entre nihil (ie ldquonadardquo
ou ldquonatildeo-serrdquo) e aliquid aut est (ldquoalgordquo ou ldquoenterdquo) esta eacute basicamente a mesma
dicotomia que William Shakespeare aludiu quando ele coloca no Ato 3 Cena 1 de
Hamlet ndash alguns anos antes (c 1600) da publicaccedilatildeo do texto de Timpler sobre
metafiacutesica ndash que ldquoser ou natildeo ser estaacute eacute a questatildeo []rdquo Mas esta foi a questatildeo que
Timpler e todos os seus (conhecidos) contemporacircneos acadecircmicos aparentemente
desejaram evitar de discutir A discussatildeo da questatildeo de Shakespeare ndash e da dicotomia
de Timpler ndash poderia ter provido as bases para o levantamento de toacutepicos altamente
sensiacuteveis por exemplo 1) a relaccedilatildeo entre Deus e Nada (nihil) 2) a relaccedilatildeo entre Deus
entidade e privaccedilatildeo (ie mal) e 3) a relaccedilatildeo entre Deus e o princiacutepio de contradiccedilatildeo
(FREEDMAN op cit 12)
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Embora estas questotildees estivessem jaacute sempre presentes dentro dos questionamentos de Timpler
e de seus contemporacircneos elas eram todavia caladas de acordo com Freedman (IDEM IBIDEM)
pela imposiccedilatildeo das instituiccedilotildees cristatildes das coisas sobre as quais se era proibido falar ou acreditar
O que perdura das apresentaccedilotildees filosoacuteficas da metafiacutesica como ontologia em Timpler
ponderando seu princiacutepio do inteligiacutevel concentra-se em primeiro lugar como o mateacuteria de
todas as disciplinas e subdisciplinas acadecircmicas e em segundo lugar como foco de disciplinas
separadas como a archeologia gnostologia hexiologia intelligentia pansophia e tecnologia
(cf ID IBID 14)
O motivo da predileccedilatildeo da questatildeo dos intiligiacuteveis como foco principal de todos os
temas concernentes ao pensamento aparece dentro da possibilidade de envolver todos os
aspectos responsaacuteveis pelos modos operativos de pensar 16 Desta forma por exemplo as
disciplinas separadas como a ldquotecnologiardquo seriam desenvolvidas para as consideraccedilotildees gerais
e universais da estrutura das disciplinas liberais (cf ID IBID 16) Embora discrimine em parte
o princiacutepio da cogniccedilatildeo a metafiacutesica tampouco envolve a loacutegica por levar em consideraccedilatildeo
apenas os princiacutepios excluindo entidades complexas que redundem no princiacutepio de contradiccedilatildeo
Em contrapartida ao sistema metoacutedico de Timpler vecirc-se em Francisco Suaacuterez um
caraacuteter muito mais ontocecircntrico As Disputationes Metaphysicae (1597) de Francisco Suaacuterez
satildeo publicadas dentro de um contexto de desarmonia e conflitos entre a teologia e a filosofia
onde os conceitos fundamentais na discussatildeo sobre o divino estavam sendo postos em questatildeo
A despeito das influecircncias de Suaacuterez e dos necessaacuterios posicionamentos poliacuteticos sua obra
parece instaurar um regulamento por meio do qual nada poderia ser legado agrave mera
inteligibilidade
16 Freedman (ID IBID 15) cita o teoacutelogo calvinista Matthias Martinius contemporacircneo de Timpler que evidencia
de maneira mais clara os motivos das proposiccedilotildees fundamentais Ele atesta que conforme esta designaccedilatildeo agrave
metafiacutesica ldquopertence tudo aquilo que eacute cognosciacutevelrdquo (de omni cogitabili) mas com certas restriccedilotildees englobando
a ldquouniversalidade das coisasrdquo (rerum universitatem) mas natildeo envolvendo disciplinas acadecircmicas especializadas
singulares ou particulares
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As Disputationes de Suaacuterez podem ser entendidas desde uma divisatildeo da obra na qual a
primeira parte (as primeiras vinte-e-sete questotildees) se refere ao ente no sentido geral enquanto
a segunda parte (as vinte-e-sete uacuteltimas questotildees) lida com o ente particular redundando em
uma dupla divisatildeo da proacutepria metafiacutesica entre ldquometafiacutesica geralrdquo e ldquometafiacutesica especialrdquo (cf
SUAacuteREZ 2004 DOYLE 2004) Ao comentar o desenvolvimento deste aspecto da filosofia de
Suaacuterez Ludger Honnefelder ainda acrescenta
Conforme Suaacuterez a metafiacutesica lida com o conceito de ente tanto ldquoformalrdquo quanto
ldquoobjetivordquo Pelo conceito formal Suaacuterez entende o ato de conhecer do qual ldquoex unica
et prima impositionerdquo que rende uma representaccedilatildeo intencional do objeto pelo
conceito objetivo ele designa aquilo que representa intencionalmente o ato Em outras
palavras Suaacuterez natildeo assume a teoria dos conceitos caracterizada pelo paralelismo
noeacutetico-noemaacutetico de res e conceptus antes ele aceita a abordagem criacutetica de Ockham
em direccedilatildeo a interpretaccedilatildeo realiacutestica dos conceitos universais Desde que Scottus ele
mesmo natildeo depende desse paralelismo quando isto vem a dizer respeito sobre o ente
Suaacuterez substancialmente segue Scottus e aplica ldquoenterdquo para um conceito formal
primaacuterio e unificado que em virtude de sua imposiccedilatildeo representa um objetivo
primaacuterio e unificado do conteuacutedo absolutamente simples que envolve todos os entes
distintos de uma maneira indeterminada ie como ente (HONNEFELDER 2003)
Segundo a exposiccedilatildeo de Honnefelder o direcionamento da metafiacutesica de Suaacuterez iraacute redundar
em alguns pontos baacutesicos em primeiro lugar o fato de que a determinaccedilatildeo do ente transcende
a generalidade dos gecircneros em segundo que a determinaccedilatildeo natildeo pode ela mesma ser definida
podendo apenas ser explicada em relaccedilatildeo agrave existecircncia real em terceiro que toda existecircncia estaacute
sujeita agrave fundamentaccedilatildeo de disposiccedilatildeo ontoloacutegica em uacuteltimo lugar que o ente finito perdura
em um modo indeterminaacutevel de quantidade sendo o ente infinito eacute aquilo que eacute perfeito e
totalmente indivisiacutevel em si mesmo e mais real e completo (cf IDEM IBIDEM)
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Agora bem com o fito de retomar a linha de raciociacutenio desenvolvida no capiacutetulo eacute
preciso retomar a ideia de substantivaccedilatildeo do Ocidente e a maneira pela qual esse processo se
deixar ver ao longo da histoacuteria da ontologia Martin Heidegger indica em primeiro lugar o que
ele considera como o problema fundamental pelo qual a metafiacutesica se desdobra no Ocidente
qual seja o fato de que o ldquoserrdquo natildeo eacute um ldquoenterdquo mas que todavia um foi tomado pelo outro Ele
apresenta ainda o argumento de que a transposiccedilatildeo da experiecircncia fundamental grega (conforme
apresentada tambeacutem por Charles H Kahn) sofre uma violaccedilatildeo na absorccedilatildeo latina e na
transferecircncia de conceitos de um modo de pensar para o outro Eacute dentro deste ambiente latino
que eacute possiacutevel rastrear a maneira pela qual a metafiacutesica se forma e transforma em ontologia ou
bem dentro de uma filosofia do inteligiacutevel (como em Lorhard e Timpler) ou bem como um
ontocentrismo filosoacutefico (como em Suaacuterez) Sem embargo trata-se de uma disputa em torno agraves
formas primaacuterias da discussatildeo em torno ao ldquoserrdquo e ao ldquoenterdquo Eacute possiacutevel concluir desde a
constataccedilatildeo da entificaccedilatildeo do ser ou substantivaccedilatildeo do Ocidente que a demanda pela resposta
ao problema primeiro da filosofia necessariamente a encaminha para um percurso que natildeo
poderia ser outro Mas qual eacute propriamente este problema primeiro e como se constroacutei esse
caminho Natildeo haveria outra indicaccedilatildeo senatildeo a da ciecircncia dos primeiros princiacutepios e causas de
Aristoacuteteles Jaacute na doutrina das Categorias de Aristoacuteteles eacute possiacutevel observar a confusatildeo entre
ldquoserrdquo e ldquoenterdquo A questatildeo pode ser melhor observada na proposiccedilatildeo baacutesica e amplamente
difundida da Metafiacutesica ldquoO ente se diz em muacuteltiplos significados mas sempre em referecircncia a
uma unidade e a uma realidade determinadardquo (ARISTOacuteTELES 2002 131)17 A referecircncia a uma
unidade e uma realidade determinada eacute a chave para compreender a maneira pela qual a
ontologia se torna a ciecircncia responsaacutevel por esse tema (conforme Aristoacuteteles ldquoHaacute uma ciecircncia
que considera o ente enquanto ente e as propriedades que lhe competem enquanto talrdquo ID IBID)18
17 Τὸ δὲ λέγεται μὲν πολλαχῶς ἀλλὰ πρὸς ἓν καὶ μίαν τινὰ φύσις καὶ οὐχ ὁμωνύμως ἀλλrsquo (Metafiacutesica 1003a 30-
35) 18 Ἔστιν ἐπιστήμη τις ἧ τὸ ὄν ᾗ ὄν καὶ τὰ τούτῳ ὑπάρχοντα καθ αὑτό (Metafiacutesica 1003a 20)
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Dentro desta ciecircncia o conceito central que unifica e determina ldquoenterdquo e ldquoserrdquo eacute
apresentado como οὐσία O conceito de οὐσία (substantia substacircncia) eacute bem desenvolvido nas
Categorias entre as expressotildees que natildeo satildeo compostas quais sejam a substacircncia mesma
quantidade qualidade relaccedilatildeo lugar tempo posiccedilatildeo estado accedilatildeo ou afecccedilatildeo Ela eacute
apresentada desde duas perspectivas uma primaacuteria outra secundaacuteria A substacircncia primeira
natildeo se afirma de um sujeito nem em um sujeito mas comporta as substacircncias segundas nas
quais a forma afirma a espeacutecie e o gecircnero (ldquoserrdquo do sujeito) comportando tambeacutem os acidentes
(ldquoserrdquo no sujeito) que a eles se atribui Embora o conceito em sua primeira formulaccedilatildeo
contemple o aspecto formal bem como o elemento inteligiacutevel envolve ainda o aspecto material
em seu segundo modo natildeo podendo ser um sem o outro
As consequecircncias do desenvolvimento de uma ciecircncia responsaacutevel pelo ente enquanto
ente centralizando o conceito de substacircncia e substantivando a ideia de ldquoserrdquo por meio de seu
particiacutepio presente ldquoenterdquo satildeo o que se pode considerar como o desenvolvimento da histoacuteria do
ldquoserrdquo ou a histoacuteria da maneira pela qual o Ocidente compreende o ldquoserrdquo e a si mesmo Por meio
desta postulaccedilatildeo o ldquoτὰ ὄνταrdquo eacute posicionado no centro do pensamento ocidental Mais ainda do
que uma simples constataccedilatildeo da maneira pelo qual coube ao Ocidente pensar curioso eacute
especular o fato de que se natildeo fosse possiacutevel pensar fora da delimitaccedilatildeo do ente natildeo haveria
sequer indagaccedilatildeo alguma sobre as limitaccedilotildees ou prejuiacutezos imbuiacutedos nesta formulaccedilatildeo Sem
embargo eacute possiacutevel constatar desde os recursos apresentados (e ainda por muitos outros
caminhos que natildeo este) a necessidade incontida do ser humano ocidental eacute desenhar de maneira
niacutetida as fronteiras do pensamento e da maneira pela qual esse pensamento deve e pode ser
aplicado Resta saber apoacutes esta delimitaccedilatildeo o que haacute para aleacutem da fronteira
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2 O CAMINHO DA NEGATIVIDADE HENEOLOGIA E MEONTOLOGIA E A
ULTRAPASSAGEM DOS LIMITES DA METAFIacuteSICA
O discurso ontoloacutegico tanto grego quanto latino personificou a atividade filosoacutefica ocidental
em larga escala A maneira pela qual a ontologia habilitava ao raciociacutenio uma seacuterie de
procedimentos facilmente verificaacuteveis nutriu seguranccedila metodoloacutegica aos assuntos
concernentes aos problemas intelectuais com os quais o ser humano fatalmente se deparava ao
longo de suas especulaccedilotildees e que reverberavam ainda na conjuntura soacutecio-pragmaacutetica Eacute neste
sentido que teria afirmado Immanuel Kant de maneira perspicaz que a razatildeo humana se
defronta com inevitaacuteveis questotildees impostas por sua proacutepria natureza19 Tanto para Aristoacuteteles
quanto para Francisco Suaacuterez aleacutem de tantos outros entrementes a importacircncia de assegurar
uma linha de raciociacutenio vaacutelida natildeo somente atribuiacutea autoridade ao argumento como tambeacutem
provia de suficiente clareza a linguagem que advogava suas doutrinas Em outras palavras
tornava-se faacutecil convencer outrem de seus pressupostos dada a indefectiacutevel loacutegica empregada
para encadear as sentenccedilas e alcanccedilar uma conclusatildeo A ontologia por meio de suas loacutegicas de
identidade e natildeo-contradiccedilatildeo (e ateacute certo ponto tambeacutem via argumento do terceiro excluiacutedo)
visava alcanccedilar tanto para afirmaccedilatildeo quanto para negaccedilatildeo a dissoluccedilatildeo de todo e qualquer
paradoxo que colocasse a mente em estado de confusatildeo e discoacuterdia Independente daquilo que
estava sendo afirmado ou negado da linha de raciociacutenio ou doutrina em jogo os procedimentos
discursivos e intelectuais eram basicamente os mesmos com variaccedilotildees conceituais maiores ou
menores dependendo da vertente Todavia prosseguia-se sempre da mesma maneira
19 Kant afirma ldquoA razatildeo humana no seu gecircnio de seu conhecimento possui o peculiar destino de ser incomodada
por questotildees que natildeo pode evitar porque elas satildeo dadas pela natureza da razatildeo mesma mas tambeacutem natildeo possuem
respostas porque elas excedem a capacidade da razatildeo humanardquo (KANT 1956 5 Criacutetica da razatildeo pura AVII-
AVIII)
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Contudo a despeito da supremacia ontoloacutegica outras formas de pensamento foram
desenvolvidas no decorrer da histoacuteria da filosofia fossem elas similares ou totalmente opostas
Alguns pensadores especialmente radicais se dedicaram a um modo reflexivo que se distanciava
consideravelmente da estrutura ontoloacutegica Suas bases seus pressupostos e seus meacutetodos pelos
quais prosseguiam no caminho especulativo dos temas propostos (muitas vezes os mesmos dos
formuladores da ontologia claacutessica) projetavam-se de maneira consideravelmente diversa Para
eles havia uma necessidade imperativa de incluir todos os elementos presentes na estrutura da
realidade pensada em sua maacutexima possibilidade de concepccedilatildeo tanto os que satildeo quanto os que
natildeo satildeo Ao que parece por este motivo Werner Beierwaltes considera que as caracteriacutesticas
pelas quais se configuram a ontologia claacutessica satildeo sobretudo frutos da interrogaccedilatildeo pelo nexo
da identidade e da diferenccedila quer seja na afirmaccedilatildeo parmeniacutedica da natildeo legitimaccedilatildeo filosoacutefica
da alteridade quer seja na resposta platocircnica do necessaacuterio estabelecimento da diferenccedila na
constituiccedilatildeo do ldquoserrdquo em seu inteiro (cf BEIERWALTES 1989 25) Para Beierwaltes o rigoroso
conceito de unidade demandado por Platatildeo em reposta agrave univocidade do ser de Parmecircnides
resultou na possibilidade de inclusatildeo do ldquonatildeo-serrdquo relativo ao ldquoserrdquo para afirmar sua totalidade
Disto derivaria a altercaccedilatildeo originaacuteria entre identidade e diferenccedila e nisto consiste a
possibilidade de desvio do pensamento ontoloacutegico20 Sem embargo precisamente neste ponto
que acredito poder encontrar o que chamo aqui de caminho da negatividade ou a possibilidade
de inclusatildeo do oxiacutemoro no caminho de pensamento delineado pela ontologia considerando que
ele se desdobra na tradiccedilatildeo do chamado neoplatonismo e ainda na miacutestica medieval
20 Trata-se da definiccedilatildeo do natildeo-ser como alteridade apresentada no Sofista Apoacutes a discussatildeo acerca da comunidade
de gecircneros e a questatildeo do ldquomesmordquo e do ldquooutrordquo que configuram o problema da identidade e da diferenccedila Platatildeo
apresenta a hipoacutetese de compreender o ldquomovimentordquo como ldquooutrordquo do ldquoserrdquo questionando a tese parmeniacutedica a
respeito da ldquoestaticidade do serrdquo Assim Platatildeo coloca a questatildeo ldquoDevemos trabalhar nossa coragem agora para
dizer que aquilo que lsquonatildeo eacutersquo definitivamente eacute algo que possui natureza proacutepria Devemos dizer que assim como
o grande era grande o belo era belo o natildeo grande eacute natildeo grande e o natildeo belo eacute natildeo belo da mesma maneira pela
qual natildeo eacute tambeacutem foi e eacute natildeo-ser e eacute uma das formas dentre as quais satildeordquo (PLATO 1997 282 Sofista 258 c-d)
A sequecircncia do diaacutelogo questionaraacute a realidade deste natildeo-ser relativo culminando na identidade entre pensamento
e discurso abrindo a possibilidade para o discurso falso (o do sofista) e introduzindo a assunccedilatildeo do paradoxo no
seio do pensamento representando o chamado parriciacutedio aos eleatas
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Ateacute onde eacute possiacutevel investigar o termo neoplatonismo teria sido cunhado pela primeira
vez pelo helenista e medievalista Thomas Gale nos idos de 1670 Gale foi responsaacutevel por uma
seacuterie de estudos sobre o neoplatonismo pagatildeo e cristatildeo escrevendo sobre Plotino Jacircmblico
Joatildeo Escoto Eriuacutegena Maacuteximo Confessor entre outros21 Definiccedilotildees agrave parte os primeiros
elementos responsaacuteveis por delinearem um ldquoneoplatonismo originaacuteriordquo apenas tardiamente
nomeado satildeo atribuiacutedos a Amocircnio Sacas Contudo como a figura histoacuterica de Amocircnio Sacas
eacute tatildeo envolta em controveacutersias e misteacuterios quanto a vida de Pitaacutegoras ou Soacutecrates atribui-se
diretamente a fundaccedilatildeo de uma ldquoescola neoplatocircnicardquo a Plotino disciacutepulo de Amocircnio
Muacuteltiplos debates mais ou menos coerentes envolvem os relatos sobre a relaccedilatildeo entre Plotino e
Amocircnio aleacutem de polecircmicas acerca do proacuteprio Amocircnio22 Destaca-se apenas a autoridade dos
relatos de Porfiacuterio (em sua Vida de Plotino) nos quais se considera que o meacutetodo de pesquisa
aplicado por Plotino estava profundamente ligado ao de seu mestre O conteuacutedo dos discursos
de Plotino tambeacutem teria uma iacutentima relaccedilatildeo com as tentativas de Amocircnio de unificar os diversos
planos do ser e estabelecer a derivaccedilatildeo de todas as coisas a partir do uno23 Sem embargo
Plotino teria absorvido e desenvolvido a doutrina de Amocircnio e necessariamente de Platatildeo em
suas Eneacuteadas em um movimento de exegese ao discurso platocircnico Exegese esta suscetiacutevel de
diversas interpretaccedilotildees dos caminhos por Plotino tomados e mesmo natildeo muito consensual entre
os estudiosos da obra24
21 Extraiacute estes dados de Aaron W Huges em um trabalho intitulado ldquoMedievalrdquo and the Politics of Nostalgia
Ideology Scholarship and the Creation of the Rational Jew (2012) Huges natildeo apenas investiga as origens das
designaccedilotildees do neoplatonismo mas ainda constata que a alcunha de ldquoneoplatocircnicosrdquo continuou sendo utilizada
por eruditos alematildees no seacuteculo dezenove como uma menccedilatildeo pejorativa aos ldquofalsificadoresrdquo das doutrinas de Platatildeo
e Aristoacuteteles (cf HUGES 2012) 22 Conforme Giovanni Reale em sua Storia della filosofia antica (1975-1980) Sobre este ponto especificamente
acerca das incertezas em torno agrave figura de Amocircnio confira REALE 2008 5-13 23 Esta consideraccedilatildeo eacute apresentada por Giovanni Reale com base nos relatos de Nemeacutesio em De natura hominis
(cf REALE 2008 11) Conforme Francisco B Harriet a questatildeo fundamental se encontraria na foacutermula ldquoestaacute mais
aleacutem do intelecto e da essecircnciardquo (ἐπέκεινα νοῦϛ καὶ οὐσίας) conforme a formulaccedilatildeo de Oriacutegenes de Alexandria
em Contra Celsum (fons ex quo initium totius intellectualis naturae uel mentir est) presente em Plotino (Eneacuteadas
V 1 8 e VI 8 16) e derivada do ciacuterculo de Amocircnio (cf HARRIET 2012 153) 24 Sobre a questatildeo da exegese Marcus Reis Pinheiro (em Plotino exegeta de Platatildeo e Parmecircnides 2007)
argumenta que natildeo se pode reduzir a exegeacutetica agrave mera interpretaccedilatildeo dos diaacutelogos de Platatildeo e outros escritos Trata-
se antes do desdobramento de um discurso muito antigo onde ldquo() fazer exegese () natildeo eacute interpretar
objetivamente os textos mas caminhar rumo aos niacuteveis superiores junto com os antigosrdquo (P INHEIRO 2007 80)
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Neste fluxo talvez o mais cabiacutevel usual e conhecido de todos os estabelecimentos de
um ldquoponto de partidardquo seja o do claacutessico artigo Jean Trouillard Le Parmeacutenide de Platon et son
interpretation neacuteoplatonicienne (1973) onde o neoplatonismo eacute pensado desde a busca da
doutrina originaacuteria de Platatildeo principalmente a partir de uma releitura de seu diaacutelogo
Parmecircnides Todavia a maneira pela qual eacute possiacutevel explanar esta releitura levanta suspeitas
sendo necessaacuterio ponderar em quais formas a exegese plotiniana converge ou diverge das
tentativas de uma interpretaccedilatildeo das doutrinas originaacuterias de Platatildeo Mais ainda estaacute tambeacutem
em jogo a autoridade de apontar que existam de fato doutrinas originaacuterias havendo ainda
abertura para questionar a fiabilidade e o suposto peso das chamadas ldquodoutrinas natildeo-escritasrdquo25
Seja como for interessa sobretudo destacar como com as Eneacuteadas de Plotino o pensamento
filosoacutefico experimenta um movimento iacutempar em relaccedilatildeo agravequilo que vinha sendo apresentado
Para Ciacutecero Cunha Bezerra eacute possiacutevel elencar alguns pontos que evidenciam de maneira
clara a renovaccedilatildeo do neoplatonismo Destaca-se em primeiro lugar a junccedilatildeo entre os elementos
aristoteacutelicos e pitagoacutericos em siacutentese com uma perfeita sintonia entre o platonismo acadecircmico
e as ldquodoutrinas natildeo-escritasrdquo Ademais a ldquohierarquizaccedilatildeordquo do real a partir da qual todos os
graus satildeo derivados desde o uno permite uma sistematizaccedilatildeo do platonismo anterior Por este
motivo tende-se agrave leitura conforme a qual o neoplatonismo possuiria um sistema ldquomonopolarrdquo
frente a um suposto ldquobipolarismordquo platocircnico Por fim haacute ldquo() o fim uacuteltimo do processo de
conhecimento que para o neoplatocircnico eacute a uniatildeo plena com Deus (fugir soacute ao soacute) uma uniatildeo
que tem como marca a supressatildeo (aphaiacuteresis) de todo saber e dizerrdquo (BEZERRA 2006 57)
Dentre os pontos apresentados interessa-me particularmente o uacuteltimo (evidente consequecircncia
dos trecircs primeiros) no qual o neoplatonismo aparece como uma ldquosupressatildeo de todo saber e
dizerrdquo
25 Haacute uma interessante e profunda discussatildeo acerca do tema na tradiccedilatildeo de leitores e inteacuterpretes do platonismo e
do neoplatonismo a respeito deste toacutepico Ciacutecero Cunha Bezerra (em Compreender Plotino e Proclo 2006) aborda
o tema abrindo uma interlocuccedilatildeo com a obra Platone alla ricerca della spienza segreta de Giovanni Reale e ainda
com as investigaccedilotildees de W K C Guthrie e a chamada Escola de Tuumlbingen (cf BEZERRA 200617-24)
65
O senso comum ocidental regula a atividade filosoacutefica como um progresso ininterrupto
rumo ao acuacutemulo de conhecimento e dissoluccedilatildeo dos problemas Curioso agora eacute pensar a
maneira pela qual uma doutrina filosoacutefica pode suprimir o saber e o dizer ao inveacutes de
acrescentar Mas eacute apenas possiacutevel atingir a compreensatildeo necessaacuteria desta supressatildeo uma vez
esclarecido o que eacute propriamente o princiacutepio negativo do pensamento de Plotino Para isto natildeo
se pode perder de vista as duas questotildees que levariam agrave construccedilatildeo do pensamento de Plotino
quais sejam ldquo() o problema religioso (que corresponde agrave busca de compreensatildeo do destino
da alma assim como sua restauraccedilatildeo) e o problema filosoacutefico relativo agrave explicaccedilatildeo racional da
realidade ()rdquo (IDEM IBIDEM 66)26 ponderando ainda que em Plotino ambas estatildeo perfeitamente
inter-relacionadas Para atingir este entendimento todavia eacute necessaacuterio analisar as chamadas
trecircs hipoacutestases de Plotino presentes em suas Eneacuteadas
O conjunto de circunstacircncia que acompanham a formulaccedilatildeo do pensamento de Plotino
eacute todavia aquele anteriormente citado apresentado por Werner Beierwaltes que remete agrave
contenda entre Parmecircnides e Platatildeo Contextualizar a disputa Parmecircnides-Platatildeo da qual
derivam centralmente as hipoacutestases de Plotino natildeo eacute necessariamente complicado embora
interpretaacute-la e desde aiacute desdobrar um novo caminho reflexivo seja uma tarefa bastante
trabalhosa A demanda especulativa eacute altiacutessima e envolve uma bibliografia excessivamente
extensa e complexa Contudo como o interesse aqui eacute a apresentaccedilatildeo dos aspectos centrais do
pensamento de Plotino e como deles redunda uma nova postura e atitude filosoacuteficas o trabalho
fica menos penoso Portanto para colocar em relevo as hipoacutestases de Plotino eacute importante ao
menos demonstrar de forma simples os pontos originais dos quais elas derivam seja em
Parmecircnides seja em Platatildeo (e ateacute certo ponto tambeacutem no neopitagorismo e em Aristoacuteteles
embora esta tarefa exija um pouco mais e seja um pouco mais complicada de rastrear) Para
alcanccedilar este objetivo torna-se imperioso retornar brevemente a Parmecircnides
26 Esta hipoacutetese eacute destacada por Bezerra diretamente da obra de Eacutemile Breacutehier La Philosophie de Plotin (1928)
66
O segundo fragmento do poema Sobre a Natureza de Parmecircnides catalisa os principais
argumentos do conflito permitindo compreender quais satildeo os pontos mais problemaacuteticos do
estabelecimento de sua doutrina na tradiccedilatildeo Aleacutem da Fiacutesica de Simpliacutecio as fontes pelas quais
se estruturou esse fragmento adveacutem dos Comentaacuterios ao Timeu e Comentaacuterios ao Parmecircnides
de Proclo Os oito versos contidos no fragmento centralizam a doutrina de Parmecircnides como
foi herdada pela tradiccedilatildeo a partir da manifestaccedilatildeo das duas uacutenicas vias possiacuteveis para o
pensamento quais sejam a via da verdade e a via da aparecircncia O fragmento diz
εἰ δ᾽ ἄγ᾽ ἐρὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας
αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι
ἡ μέν ὄπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι
πειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ)
ἡ δ᾽ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι
τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν
οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐόν (οὐ γὰρ ἀνυστόν)
οὔτε φράσαις
(KIRK E RAVEN 1957 269)
Pois bem agora vou eu falar e tu presta atenccedilatildeo ouvindo a palavra
acerca das uacutenicas vias de questionamento que satildeo a pensar
uma para o que eacute e como tal natildeo eacute para natildeo ser
eacute o caminho de persuasatildeo ndash pois Verdade o segue ndash
outra para o que natildeo eacute e como tal eacute preciso natildeo ser
esta via indico-te que eacute uma trilha inteiramente inviaacutevel
pois nem ao menos se reconheceria o natildeo ente pois natildeo eacute realizaacutevel
nem tampouco se mostraria
(Traduccedilatildeo de Fernando Santoro cf PARMEcircNIDES 200612)
67
O caminho da verdade que eacute e natildeo eacute para natildeo ser (ἡ μέν ὄπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ
εἶναι) e o caminho da aparecircncia que natildeo eacute e natildeo pode ser (ἡ δ᾽ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών
ἐστι μὴ εἶναι) satildeo via de regra estabelecidos como a manifestaccedilatildeo maacutexima da loacutegica ocidental
e berccedilo dos princiacutepios de identidade e natildeo-contradiccedilatildeo A partir deles eacute possiacutevel natildeo soacute
estabelecer uma identidade (o ser eacute representada pela claacutessica foacutermula A=A) como ainda
verificar a veracidade dessa mesma identidade ndash natildeo eacute possiacutevel que o ser sendo natildeo seja
ilustrado pela foacutermula not (A ˄ notA) um tanto esdruacutexula sem duacutevidas27
O legado de Parmecircnides eacute marcado em sua difusatildeo pelos chamados ldquofiloacutesofos eleatasrdquo
sobretudo por Zenatildeo de Eleacuteia Seus argumentos contra a pluralidade (cf KIRK E RAVEN OP CIT
288-291) e contra o movimento (cf IDEM IBIDEM 291-297) se tornaram assaz populares
sobretudo no que concerne aos paradoxos da flecha no estaacutedio e de Aquiles e a tartaruga Aleacutem
da constataccedilatildeo da univocidade do ser presente em toda linha de pensamento parmeniacutedica28 O
resultado imediato dos exerciacutecios de raciociacutenio de Zenatildeo demonstraram a formataccedilatildeo de uma
estaticidade do ser e da realidade em torno alertando para a ilusatildeo do movimento e alteraccedilotildees
na substacircncia do real O momento no qual Platatildeo compotildee seu diaacutelogo Parmecircnides retrata
justamente o evento no qual tanto Parmecircnides quanto Zenatildeo estatildeo no aacutepice da divulgaccedilatildeo de
sua doutrina dialogando com um ainda jovem Soacutecrates Trata-se de um dos momentos mais
emblemaacuteticos da histoacuteria da filosofia ocidental
27 Haacute uma discussatildeo em torno a uma suposta terceira via aquela na qual o que ldquoeacuterdquo eacute e natildeo eacute ao mesmo tempo
baseada no sexto fragmento onde se lecirc ldquoοἶς τὸ πέλειν τε καὶ οὐκ ταῦτὸν νενόμισταιrdquo (KIRK E RAVEN OP CIT 271)
Embora ainda em um sentido pejorativo de uma via do engano emerge a possibilidade de que algo seja e natildeo seja
Mesmo que natildeo seja profiacutecuo para o andamento da tese se fixar na discussatildeo vale ao menos citaacute-la sobretudo
ponderando os apontamentos feitos por Jean Beaufret acerca da interpretaccedilatildeo de Martin Heidegger da terceira via
como a via dos entes Ao que cabe no propoacutesito do trabalho basta apenas atentar para como a tensatildeo entre as duas
primeiras vias jaacute foram suficientes para levantar controveacutersias Eacute possiacutevel especular ainda que jaacute na primeira via
aparece tambeacutem uma possibilidade de que o ser seja e natildeo seja quando se afirma que ele ldquoeacute e natildeo eacute para natildeo serrdquo
Seria possiacutevel conectar o ldquonatildeo eacuterdquo da sentenccedila como o natildeo-ser relativo necessaacuterio agrave constituiccedilatildeo da inteireza do
ser como argumentado no Sofista de Platatildeo 28 O que significa afirmar que natildeo existem ldquograusrdquo do ser uma coisa ou eacute real (ser) ou irreal (nada) (cf BEZERRA
2003 47)
68
As chamadas ldquotrecircs hipoacutetesesrdquo do Parmecircnides de Platatildeo satildeo apresentadas
respectivamente nas passagens 137c-142a 142b-157a e 157b-159a Elas constituem a mateacuteria
bruta para a elaboraccedilatildeo das trecircs hipoacutestases de Plotino Todas as trecircs hipoacuteteses de Platatildeo satildeo
apresentadas pela personagem do entatildeo velho Parmecircnides arguindo Soacutecrates a respeito da
viabilidade de cada argumento Elas se apresentam ainda a partir do problema constituiacutedo pela
questatildeo da unidade e da multiplicidade A pulsatildeo do jovem Soacutecrates ao inquirir Parmecircnides a
respeito de sua teoria fazendo-o apresentar as trecircs hipoacuteteses parte da colocaccedilatildeo de Parmecircnides
a respeito da assunccedilatildeo da multiplicidade por um lado e da impossibilidade do muacuteltiplo por
outro Parmecircnides eacute levado pelo jovem Soacutecrates a confirmar natildeo apenas sua teoria mas sua
metodologia e plano doutrinaacuterio
Para confrontar a teoria parmeniacutedica Platatildeo desenvolve a primeira hipoacutetese Ela
consiste basicamente na afirmaccedilatildeo de o que o ldquouno eacute unordquo ou seja se haacute uno natildeo eacute possiacutevel
que o uno seja muacuteltiplo Por este motivo ele natildeo pode conter partes nem tampouco ser um
inteiro (composto por partes) Tambeacutem natildeo pode ter um comeccedilo nem um meio nem um fim
natildeo possuindo nada que o limite ou delimite Tampouco pode possuir um formato nem se
encontrar em lugar algum nem estar se movimentando de um lugar para outro (porque entatildeo
assumir-se-ia algo outro que natildeo o uno pelo qual ele se movimenta) e nem em si mesmo
(porque com isto se movimentaria entre suas partes que por definiccedilatildeo natildeo pode conter) Natildeo
pode ainda ser diferente de si mesmo nem o mesmo que si mesmo porque assumindo sua
diferenccedila se assumiria algo outro que natildeo o uno ndash e assumindo sua identidade se assumiria que
haacute algo a saber a proacutepria identidade predicada do uno e que natildeo eacute o uno Natildeo pode tambeacutem
estar no tempo nem ter surgido em momento algum Por fim o uno natildeo pode possuir um nome
ou seja eacute inominaacutevel natildeo podendo ser objeto de opiniatildeo nem conhecimento nem percepccedilatildeo
caso contraacuterio assumir-se-ia um ser ou essecircncia distintos do uno pelo qual se alcanccedila seu
entendimento
69
Necessariamente a primeira hipoacutetese leva a uma outra questatildeo ou ao levantamento de
uma segunda hipoacutetese qual seja o uno eacute e quais satildeo as consequecircncias disto para ele mesmo
Essa hipoacutetese eacute consideravelmente mais complicada e envolve algumas nuances bastante
delicadas O argumento geral se concentra na ideia de que a proposiccedilatildeo uno eacute envolve
necessariamente a ideia de essecircncia do uno O grande problema em afirmar que o uno participa
da essecircncia de uno eacute justamente estabelecer a diferenccedila entre uma coisa e outra ou seja torna-
se inevitaacutevel afirmar que existem duas coisas a saber o uno e a essecircncia do uno O embargo
consiste na simples afirmaccedilatildeo uno eacute em contraposiccedilatildeo agrave afirmaccedilatildeo uno uno Logo desdobram-
se dois unos um uno que eacute e um uno e o ser O primeiro como afirmaccedilatildeo do proacuteprio uno o
segundo como assunccedilatildeo da participaccedilatildeo dele mesmo em sua essecircncia A reaccedilatildeo imediata agrave
afirmaccedilatildeo de que o uno eacute caminha em sentido contraacuterio das negaccedilotildees da primeira hipoacutetese
Sem embargo jaacute neste momento mesmo antes da apresentaccedilatildeo da terceira hipoacutetese
torna-se possiacutevel fazer algumas consideraccedilotildees Em primeiro lugar a hipoacutetese de que o ldquouno eacute
unordquo a despeito da aplicaccedilatildeo da categoria do ser para a predicaccedilatildeo da sentenccedila direciona o
pensamento para um caminho no qual natildeo haacute outra possibilidade senatildeo a completa negaccedilatildeo de
tudo que possivelmente competiria ao uno levando mesmo agrave dissoluccedilatildeo do eacute presente na frase
Em segundo lugar a hipoacutetese de que o ldquouno eacuterdquo desta vez com ecircnfase no eacute gera o movimento
oposto de afirmaccedilatildeo de tudo o que porventura poderia ser predicado de qualquer elemento
Estas duas hipoacuteteses (como se veraacute na apresentaccedilatildeo das hipoacutestases de Plotino)
discriminam perfeitamente as duas vias aqui cogitadas quais sejam uma via afirmativa da
ontologia claacutessica na afirmaccedilatildeo das coisas por meio da qual percebe-se compreende-se e se
faz ciecircncia e uma via negativa do que seraacute ulteriormente nomeada henologia na qual a maacutexima
especulaccedilatildeo acerca da natureza do uno natildeo leva senatildeo agrave negaccedilatildeo absoluta ndash as caracteriacutesticas
desta negaccedilatildeo ou negatividade ver-se-aacute mais claramente nas Eneacuteadas
70
A terceira hipoacutetese do Parmecircnides de Platatildeo eacute apresentada no diaacutelogo muito brevemente
Ela abarca ambos os aspectos centrais das duas primeiras hipoacuteteses sugerindo que o uno eacute e
natildeo eacute imputando a categoria de mudanccedila em sua natureza Trata-se de diagnosticar o fato de
que sendo o uno uno por um lado e muacuteltiplo por outro participa e natildeo participa de sua
essecircncia vem a ser e deixa de ser ponderando ainda que esta mudanccedila se daacute no instante Sendo
assim tanto o movimento de retorno ao uno quanto o movimento de procedecircncia a partir do
uno daacute-se ao mesmo tempo em uma reciprocidade na qual tanto a geraccedilatildeo da multiplicidade
configura o uno nem como uno nem como muacuteltiplo quanto a reuniatildeo da multiplicidade ao
uno tampouco configura o uno nem como uno nem como muacuteltiplo ndash como se a proacutepria ideia
de uno flutuasse em um ldquoinstante incapturaacutevelrdquo
Natildeo haacute duacutevida que o raciociacutenio apresentado por Platatildeo constitui um dos maiores
desafios especulativos da histoacuteria do pensamento ocidental seja nos esforccedilos empreendidos
pela loacutegica de compreensatildeo seja pelo desafio meditativo aflorado da temaacutetica proposta Neste
contexto Marcus Reis Pinheiro indica a interpretaccedilatildeo de Jean-Luc Brisson (Annexe I Les
interpretation du Parmeacutenide dans lrsquoAntiquiteacute presente na ediccedilatildeo Parmenide Paris Flamarion
1999) conforme a qual ldquo() Plotino estaacute no grupo dos inteacuterpretes do diaacutelogo que natildeo o vecirc
apenas como um exerciacutecio loacutegico mas que procura determinar a que tipo de objeto se refere o
diaacutelogordquo (PINHEIRO 2006 3) Seguindo esta linha de raciociacutenio o importante seria portanto
compreender como Plotino absorve a temaacutetica Considerar uma interpretaccedilatildeo para aleacutem da mera
concatenaccedilatildeo loacutegica de conceitos eacute basicamente absorver o sentido de cada termo Isto significa
natildeo apenas expor as formataccedilotildees daquilo que foi introduzido no discurso como ldquounordquo mas
ainda entender de que forma a simples possibilidade de concebecirc-lo no raciociacutenio implica em
uma reduccedilatildeo draacutestica das estruturas hieraacuterquicas do real ou seja constitui uma compreensatildeo
da realidade que possui como primeiro princiacutepio algo que coloca o pensamento em um niacutevel de
paradoxo que necessariamente denota a assunccedilatildeo de uma impossibilidade loacutegica
71
As trecircs hipoacutestases de Plotino seratildeo teoricamente encadeadas de maneira semelhante agraves
hipoacuteteses de Platatildeo embora natildeo sequencialmente Contudo a primeira (e talvez a mais
complexa) jaacute iniciaraacute o movimento de negatividade em direccedilatildeo agraves seguintes estabelecendo os
conflitos presentes na ideia de uno (τὸ ἑν) Plotino considera que ldquoO Uno eacute todas as coisas e
nenhuma delas a fonte para todas as coisas eacute nenhuma das coisas e ainda eacute todas as coisas em
um sentido transcendental ndash todas as coisas para assim dizer tendo seu retorno agrave isto ()rdquo
(PLOTINUS 1969 380 Eneacuteadas V 2 1) Ele ainda assevera a inefabilidade inerente ao uno
conforme a qual todo discurso eacute jaacute sempre indireto e impreciso Apenas mediante referecircncias
como ldquotodas as coisas e nenhuma delasrdquo torna-se possiacutevel acenar para o uno ndash e apenas isto
acenar Entretanto esta eacute para Plotino a uacutenica maneira de compreender a estrutura da realidade
como tal pelo simples motivo de que ldquoEacute precisamente porque haacute nada no Uno que todas as
coisas derivam dele para que o Ser possa ser trazido a fonte natildeo pode ser o Ser mesmo mas o
gerador do Ser ()rdquo (IDEM IBIDEM) que natildeo pode possuir a natureza do ser mas deve se constituir
como outro dele qual seja natildeo-ser ou mesmo nada Plotino prossegue ainda dizendo
ldquoBuscando nada possuindo nada faltando nada o Uno eacute perfeito e em nossa metaacutefora
transborda e sua exuberacircncia produz o novo este produto torna-se novamente seu progenitor
e eacute preenchido e se torna seu contemplador e Princiacutepio-Intelectualrdquo (ID IBID) A passagem
altamente especulativa denota que tudo eacute contemplaccedilatildeo dotada de uma atividade suprema que
comeccedila pelo uno e retorna a ele no simples olhar que natildeo implica nem em complexidade nem
em necessidade29 Mediante uma reflexatildeo propriamente loacutegica a contemplaccedilatildeo por meio da
qual o uno se desdobra e gera todas as coisas se daacute devido a sua proacutepria perfeiccedilatildeo ou seja o
uno natildeo eacute coisa nenhuma e necessariamente engendra todas as coisas porque eacute completo
porque eacute a totalidade de tudo e para isto eacute necessaacuterio que seja ele mesmo e ainda outro de si
29 Estes apontamentos satildeo de John Bussanich que ainda explica que ldquo() a doutrina plotiniana da derivaccedilatildeo do
Uno eacute lsquoprocessatildeorsquo o adjetivo que melhor qualifica isto eacute lsquocontemplativorsquo o movimento no qual a hipoacutestase eacute
gerada coincide com a contemplaccedilatildeo De fato o ponto cardial a chave para a estrutura da processatildeo da metafiacutesica
plotiniana era contemplaccedilatildeo ou theocircriardquo (BUSSANICH 1999 32)
72
Ciacutecero Cunha Bezerra apresenta a organizaccedilatildeo feita por Pierre Aubenque30 conforme a
qual haveriam trecircs esferas argumentativas no desenvolvimento da primeira hipoacutestase uma
loacutegica outra epistemoloacutegica e uma metafiacutesica Bezerra cita uma das passagens mais conhecidas
de Plotino que diz ldquoPrivado de unidade uma coisa cessa de ser aquilo pelo qual eacute chamada
um exeacutercito natildeo eacute um exeacutercito se natildeo eacute uno um coro um rebanho devem ser uma coisa soacuterdquo
(ID IBID 612 VI 9 1) sobretudo para enfatizar o aspecto loacutegico pelo qual Plotino ldquosubverterdquo
a resposta aristoteacutelica da entidade da coisa pela definiccedilatildeo substancial Bezerra argumenta
dizendo que ldquo() Plotino por uma exigecircncia loacutegica jaacute que o princiacutepio originaacuterio natildeo pode
possuir qualquer caraacuteter dos seres relativiza a ontologia e estabelece a henologia como
fundamento de todo serrdquo (BEZERRA OP CIT 67) O problema epistemoloacutegico sobressalta a
ultrapassagem necessaacuteria de todo conhecimento para alcanccedilar tal niacutevel de especulaccedilatildeo ao passo
que a questatildeo metafiacutesica retorna aos trechos anteriormente citados no qual a geraccedilatildeo de todas
as coisas soacute pode derivar de coisa nenhuma
O emprego do termo henologia define aqui o primeiro passo para o caminho da
negatividade Institui-se como negativo o princiacutepio que jaacute natildeo mais decorre de um rendimento
ldquopositivordquo por meio do qual se pode construir um conhecimento soacutelido e confiaacutevel mas uma
base que possui caracteriacutesticas muito diversas e que desafiam a capacidade loacutegica Por este
motivo a primeira demanda eacute jaacute a superaccedilatildeo intelectual (ἐπέκεινα νοῦϛ καὶ οὐσίας) que deve
assumir que o comeccedilo de todas as coisas eacute incoacutegnito O discurso eacute indireto e metafoacuterico porque
somente assim eacute possiacutevel indicar sua possibilidade de ser pensado ndash entendendo principalmente
que o ldquoser pensadordquo natildeo indica nem conota existecircncia porque o ser e a existecircncia mesmo satildeo
ainda posteriores agrave ideia de uno As segunda e terceira hipoacutestases portanto natildeo podem ser
concebidas se de antematildeo natildeo for assumida a negatividade do primeiro princiacutepio
30 Pierre Aubenque ldquoPlotin et le deacutepassement de lrsquoontologie grecque classiquerdquo Colloque des Royaumont Le
Neacuteoplatonisme Paris Centre National de Recherche Scientifique 1971 101-110
73
Somente por meio da completude da pensamento henoloacutegico de Plotino fica possiacutevel
deixar claro os termos pelos quais se destaca a negatividade como ldquosupressatildeo de todo saber e
dizerrdquo Os motivos contudo jaacute satildeo bastante evidentes se levado em consideraccedilatildeo que a
inefabilidade do uno indica que sobre ele natildeo se pode falar e ele natildeo se pode conhecer Portanto
o neoplatonismo necessariamente parte do pressuposto de que o ponto de partida e o ponto de
chegada do pensamento satildeo ambos uma caminhada rumo agrave supressatildeo Ao explicar a processatildeo
por meio da qual o uno engendra todas as coisas destaca-se uma consideraccedilatildeo importante se
os seres engendram o eternamente perfeito engendra eternamente algo inferior a si mesmo por
isto mesmo ldquoEacute preciso observar que a processatildeo plotiniana implica necessariamente uma
negaccedilatildeo A negaccedilatildeo eacute uma condiccedilatildeo a priori no sentido de que o engendrado deve assimilar-se
ao seu gerador mas mantendo uma resistecircncia que diferencia um do outrordquo (IDEM IBIDEM 74)
Em outras palavras a geraccedilatildeo do uno e a abertura da segunda hipoacutestase soacute eacute possiacutevel por meio
da introduccedilatildeo da diferenccedila A diferenccedila eacute o que aqui constitui o passo fundamental da sequecircncia
do pensamento neoplatocircnico O ser eacute na medida em que eacute diferente do uno e por ele eacute
engendrado justamente porque apenas a diferenccedila pode advir do eternamente perfeito
Assim sendo resta saber como o uno engendra e o quecirc ele engendra O que significa
ainda resgatar a pergunta anteriormente colocada por Parmecircnides e Platatildeo como do uno
provem o muacuteltiplo Esta questatildeo eacute sem sombra de duacutevidas uma das mais complexas do sistema
neoplatocircnico em geral A ideia de processatildeo (πρόοδος) pressupotildee uma emanaccedilatildeo a partir do
uno na qual todas as outras coisas satildeo engendradas o que significa dizer que se trata de um
movimento que abarca a realidade em toda sua estrutura na qual ldquo() difere completamente de
um mecanicismo dado que estaacute mais aleacutem de toda contingecircncia e necessidade Nesse sentido
natildeo se pode dizer que se trata de algo que implique um livre-arbiacutetrio ou uma produccedilatildeo artesanalrdquo
(ID IBID 76) Ou seja o uno natildeo necessita de nada e por isto mesmo daacute origem a tudo A
espontaneidade (se eacute que se pode utilizar tal termo) eacute natural e natildeo possui um motor
74
Ao mesmo tempo tudo aquilo que eacute gerado pelo uno possui um poder de conversatildeo
(επιστροφή) um voltar-se sobre si mesmo e voltar-se em direccedilatildeo ao uno (cf ID IBID 76)
movimentada pelo autoconhecimento daquilo que eacute Este autoconhecimento soacute eacute possiacutevel
todavia pelo proacuteprio movimento de emanaccedilatildeo conforme o qual se identifica ldquoserrdquo e
ldquopensamentordquo como havia postulado Parmecircnides e eacute justamente este o momento no qual
emerge a segunda hipoacutestase qual seja a inteligecircncia (νοῦϛ)
As caracteriacutesticas pelas quais a inteligecircncia se mostra desde a compreensatildeo da processatildeo
satildeo a chave para o sentido da filosofia de Plotino Sobre isto Thomas Alexander Szlezaacutek
escreve ldquoNatildeo persegue o Uno com esforccedilo deliberado mas espera tranquilamente ateacute que ele
apreccedila Assim a alma soacute recebe unicamente o Uno eacute uma volta do lsquosolitaacuterio para o solitaacuteriorsquordquo
(SZLEZAacuteK 2010 11) acrescentando ainda que ldquoO caminho que conduz ao Uno natildeo passa poreacutem
pela praacutetica asceacutetica de um anacoreta mas pela apropriaccedilatildeo conceitual do mundo inteligiacutevel
()rdquo (IDEM IBIDEM) Os termos inteligecircncia e inteligiacutevel referem-se aqui a uma definiccedilatildeo
particular que compreende o nuacutecleo da segunda hipoacutestase Bezerra escreve acerca deste ponto
ldquoPlotino no tratado oitavo da terceira Eneacuteada define a Inteligecircncia natildeo como uma coisa
particular mas como algo universal e muacuteltiplordquo (BEZERRA OP CIT 78) explicando que eacute
ldquoUniversal porque abarca todos os seres e muacuteltiplo porque coexistem em sua natureza
simultaneamente o inteligente (Inteligecircncia) e o inteligiacutevel (ser) ()rdquo (IDEM IBIDEM) Plotino
encadeia seu raciociacutenio elucidando como o Princiacutepio-Intelectual eacute universal e iniacutecio de todas as
coisas de maneira que ldquo() assim todas as coisas e o Princiacutepio de tudo deve ser tal que cada
parte dele seja universal eacute todas coisas do contraacuterio conteria partes que natildeo satildeo o Princiacutepio-
Intelectualrdquo (PLOTINUS OP CIT 246 Eneadas III 8 8) Conclui a partir de entatildeo que ldquo() este
Ser eacute ilimitado e que em tudo que flui dele natildeo haacute reduccedilatildeo nem em sua emanaccedilatildeo desde que eacute
o universo inteiro nem em si mesmo o ponto de partida desde que natildeo haacute reuniatildeo de partes
()rdquo (IDEM IBIDEM 246-247) Fica claro o caraacuteter ascendente e natildeo descendente da processatildeo
75
Plotino explica que ldquo() um ser desta natureza natildeo eacute existecircncia primaacuteria deve existir a
partir daquilo do qual transcende o Ser (o Absoluto) ()rdquo (ID IBID 247) e prossegue dizendo
que ldquo() Pluralidade eacute mais tardia que Unidade O Princiacutepio-Intelectual eacute um nuacutemero (=a
expressatildeo de uma pluralidade) e o nuacutemero deriva da unidade a fonte de um nuacutemero como este
deve ser o autecircntico Unordquo (ID IBID) A transcendecircncia que evidencia o caraacuteter progressivo
pode ainda ser entendida desde a ideia de que ldquo() ao contemplar-se a si mesmo a Inteligecircncia
se une ao objeto contemplando uma unidade entre o eu e o ser universal que supera toda
alteridade ()rdquo (BEZERRA OP CIT 79) Com isto eacute possiacutevel resgatar ainda o sentido pelo qual
Beierwaltes destaca a diferenccedila como princiacutepio pelo qual haacute um desvio de Plotino em relaccedilatildeo
agrave ontologia claacutessica (cf BEIERWALTES OP CIT 58) Contudo como se compreende esta
contemplaccedilatildeo eacute o que levaraacute agrave terceira hipoacutestase a alma (ψυχή) Bezerra explica recapitulando
os passos anteriores ldquoVimos anteriormente que o Uno e o Muacuteltiplo apresentam-se sob duas
maneiras distintas a) Uno e natildeo muacuteltiplo (I hipoacutetese) b) Uno-Muacuteltiplo (II hipoacutetese) A alma eacute
portanto ao mesmo tempo uno e muacuteltiplordquo (BEZERRA OP CIT 82) o que significa evidenciar
que ela representa uma distinccedilatildeo radical e afastamento do primeiro princiacutepio o uno
Ainda no oitavo tratado da terceira Eneacuteada Plotino aborda a natureza enquanto ato
criador compreendendo o fenocircmeno a partir de uma tensatildeo entre um Princiacutepio-Racional inerte
e um Princiacutepio-Natural em movimento (cf PLOTINUS OP CIT 239-240 Eneadas III 8 2) que
responderia ainda ao conflito entre unidade e multiplicidade e ainda agrave questatildeo entre tempo e
eternidade Plotino indaga como a natureza responderia ao questionamento colocando
literalmente o argumento na fala da natureza que diria que ldquoOs matemaacuteticos desde suas visotildees
desenham suas figuras mas eu desenho nada eu contemplo as figuras do material do mundo
tomando os seres como eu os sinto desde minha contemplaccedilatildeordquo (IDEM IBDEM 241) chegando a
conclusatildeo de que ldquo() o que noacutes conhecemos por Natureza eacute uma Alma cria de uma Alma
ainda anterior () uma visatildeo interna de si mesmardquo (ID IBID)
76
A visatildeo interna de si mesma mencionada por Plotino prove o entendimento de que ldquoA
alma portanto autodetermina-se e ao mesmo tempo autofragmenta-se pois ao separar-se do
todo volta-se maravilhada para o particularrdquo (BEZERRA OP CIT 84) Disto adveacutem a geraccedilatildeo do
tempo como desordem introduzida no equiliacutebrio primordial e ao mesmo tempo a introduccedilatildeo
de uma ordenaccedilatildeo mediada pela conversatildeo (επιστροφή) ndash pelo retorno maravilhado ao uno ou
uniatildeo ao fundamento por meio da contemplaccedilatildeo
Agora bem toda esta inevitaacutevel breve introduccedilatildeo ao pensamento de Plotino deve
direcionar para uma postura distinta daquela antes observada com a ontologia claacutessica e o
pensamento metafiacutesico Que postura eacute esta Ou melhor qual o caminho que se abre a partir das
trecircs hipoacutestases plotinianas Este eacute o momento no qual o caminho da negatividade comeccedila a se
encorpar e mostrar seu caraacuteter decisivo na constituiccedilatildeo do desvio intelectual do neoplatonismo
Gostaria de fazer um recorte especiacutefico do nono tratado da sexta Eneacuteada para alcanccedilar este
esclarecimento
Plotino reconstitui seu caminho a partir da afirmaccedilatildeo ldquoEacute em virtude da unidade que os
seres satildeo seresrdquo (PLOTINUS OP CIT 614 Eneadas VI 9 1) O que significa afirmar que sem a
unidade natildeo se pode considera que algo seja o que seja Em termos mais simples se nomeio
braccedilo pernas cabeccedila razatildeo sensibilidade entre outras muacuteltiplas singularidades presentes em
um ser humano mas natildeo as congrego em uma unidade pela qual afirmo ldquoser humanordquo que
compreende todas as particulares em questatildeo inexoravelmente perco de vista seu sentido Por
isto ldquoQualquer coisa que possa ser descrita como uma unidade o eacute no preciso grau pelo qual
sustenta um ser caracteriacutestico quanto menor ou maior o niacutevel do ser menor ou maior seraacute a
unidaderdquo (IDEM IBIDEM) Portanto alma seria (em razatildeo de sua distinccedilatildeo da unidade mesma)
uma grande unidade em proporccedilatildeo e na autenticidade do ser e assim ldquoUnidade absoluta natildeo eacute
eacute a alma e a primeira alma a unidade em algum sentido concomitante ()rdquo (ID IBID) deixando
ver como a unidade natildeo eacute e eacute
77
Desta forma pode-se compreender que o uno natildeo pode ser a totalidade dos seres que
anularia sua unidade nem tampouco o ldquoPrinciacutepio-Intelectualrdquo pelo qual as coisas satildeo nem o
ldquoser mesmordquo no sentido da totalidade das coisas Plotino prossegue dizendo ldquoA alma ou mente
movimentando-se rumo ao que eacute sem forma encontra-se em estado de incompetecircncia para
apreender ali onde nada se limita ou onde a se impinge a realidade difusardquo (ID IBID 615 VI
9 3) Assim ldquo(hellip) ante o puro pavor de se sustentar no nada esvai-se O estado eacute doloroso
geralmente busca aliacutevio ao se retratar de sua vagueza na regiatildeo do sentido para ali repousar em
um fundamento soacutelido bem como a visatildeo aflige-se com o minuto no qual repousa na escuridatildeordquo
(ID IBID) Mas para onde olhar frente ao desconforto de natildeo se ter onde repousar Quando se
percebe o quatildeo vago eacute todo e qualquer presumido fundamento ou sentido quando a escuridatildeo
natildeo reflete senatildeo a angustia de uma contemplaccedilatildeo exausta pelo esvair de todo sustento o que
resta para aleacutem discoacuterdia que atinge o intelecto Plotino sintetiza a afliccedilatildeo
A alma deve ver em sua proacutepria maneira isto se daacute por coalescecircncia a unificaccedilatildeo
mas buscando assim conhecer a unidade eacute impedida por esta mesma unificaccedilatildeo de
reconhecer o que foi encontrado natildeo se pode distinguir a si mesmo do objeto de sua
intuiccedilatildeo No entanto este eacute nosso uacutenico recurso caso nossa filosofia busque o
conhecimento da Unidade (ID IBID)
O uacutenico caminho rumo ao conhecimento da unidade eacute um caminho impossiacutevel em si mesmo
uma via cerrada pela proacutepria natureza do questionamento proposto Intuir as trecircs hipoacutestases ou
encadeaacute-las conforme uma loacutegica sistemaacutetica portanto elucida o caminho mas natildeo
necessariamente introspecta e absorve a pureza da experiecircncia Para isto eacute necessaacuterio mais ou
melhor menos ndash muito menos O uacutenico ponto de apoio aqui seraacute a identificaccedilatildeo entre o uno e
bem ou a compreensatildeo da primeira hipoacutestase como uno-bem (τὸ ἑν καὶ αγαθον) cujo sentido
eacute por um lado extrema e pura simplicidade e por outro inefabilidade total devido agrave perfeiccedilatildeo
78
Reivindicar este caminho soacute pode portanto levar a uma supressatildeo absoluta onde
ldquoAinda esta abstenccedilatildeo de autoconhecimento natildeo comporta ignoracircncia ignoracircncia eacute algo de fora
ndash um conhecedor ignorante de um cognosciacutevel ndash mas no solitaacuterio natildeo haacute nem conhecimento
nem nada desconhecidordquo (ID IBID 620 VI 9 6) Plotino entatildeo apresenta uma formulaccedilatildeo
nada usual conforme a qual certo direcionamento de suas intenccedilotildees pode ser entendido em
uma passagem tatildeo emblemaacutetica quanto enigmaacutetica ele escreve
Neste coro a alma olha para a nascente da Vida tambeacutem nascente do Intelecto iniacutecio
do Ser fonte do Bem raiz da Alma Natildeo que eles tenham sido despejados do Supremo
menosprezando-os como se fosse uma massa Nisto aquilo que emana seria pereciacutevel
mas eles satildeo eternos eles nasce de um princiacutepio eterno que produz deles sua
fragmentaccedilatildeo mas em virtude de sua identidade inata portanto eles se manteacutem muito
firmes conto o sol brilhe contanto haveraacute luz
()
Aqueles para os quais toda esta experiecircncia eacute estranha podem entende-la como nossos
anseios terrenos e a alegria que temos ao ganhar o que mais desejamos ndash lembrando
sempre que aqui o que noacutes amamos eacute pereciacutevel doloroso que nosso amor eacute mimeacutetico
e se afasta porque foi tudo um engano nosso bem natildeo estava laacute isto natildeo era o que
procuraacutevamos Haacute apenas o verdadeiro amor onde haacute uniatildeo natildeo segurando isto com
algum tipo de abraccedilo carnal mas possuindo na totalidade sua veracidade Todos
aqueles que viram sabem o que tenho em mente a alma toma outra vida quando se
aproxima de Deus assim restaurada sente que o distribuidor da verdadeira vida estaacute
laacute para ver que agora natildeo temos nada para procurar senatildeo aquilo que precisamos
deixar de lado e deixar assim sozinho assim vindouro assim soacute tudo o que o ambiente
terreno aniquilou na pressa de ser livre impaciente em relaccedilatildeo a qualquer laccedilo que
nos sustenta na base para que com todo nosso ser possamos agarrar-nos sobre isto
quando natildeo sobra nada em noacutes senatildeo aquilo pelo qual tocamos em Deus (ID IBID
623 VI 9 9)
79
As palavras de Plotino ressoam como uma conduta que eacute antes como postura que doutrina O
uso termo ldquoamorrdquo denota claramente uma experiecircncia irregulaacutevel uma tensatildeo entre ausecircncia e
presenccedila preenchimento e falta ndash sem embargo um misteacuterio
O misteacuterio que indicado por Plotino se configura como o guia para a visatildeo que permite
descortinar o sentido pensamento filosoacutefico Um misteacuterio que segue a mesma regra de Platatildeo e
do platonismo onde ldquoNada eacute divulgado para os natildeo-iniciadosrdquo (ID IBID 624 VI 9 11) e do
qual natildeo se pode simplesmente exibir uma estoacuteria ordinaacuteria ldquoCoisas aqui satildeo sinaisrdquo (ID IBID)
adverte Plotino Sinais para aqueles que entram em solo sagrado e tornam real a visatildeo do
inacessiacutevel Ele esclarece ainda ldquoQuando a alma comeccedila novamente a se colocar natildeo se torna
outra mas si mesma assim desprendida natildeo eacute nada senatildeo si mesma auto-reunida natildeo eacute mais
da ordem do ser estaacute no Supremordquo (ID IBID) O desprendimento e a supressatildeo a visatildeo do uno
e o movimento de uniatildeo encaminham para o ldquotodo-transcendenterdquo que jaacute natildeo mais estaacute no niacutevel
daquilo que eacute do ente mesmo do ser mas em uma esfera para aleacutem de todas as coisas que satildeo
e que natildeo satildeo A culminaccedilatildeo do pensamento henoloacutegico de Plotino como uma ldquomiacutestica da
unidaderdquo eacute o berccedilo do neoplatonismo e necessariamente o iniacutecio de sua radicalizaccedilatildeo
Neste fluxo considera-se que existam dois momentos fundamentais do desdobramento
do neoplatonismo a partir da henologia plotiniana quais sejam a teologizaccedilatildeo da henologia
desenvolvida por Proclo e a teologia negativa do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita Em ambos eacute
possiacutevel observar como o caminho da negatividade se configura partir de uma profunda
introspecccedilatildeo de temas que tendem agrave dissoluccedilatildeo do conhecimento ateacute entatildeo concebido
estruturado e instaurado ndash e ainda agrave subversatildeo completa de seus meios de expressatildeo e
significaccedilatildeo isto eacute agrave supressatildeo do saber e do dizer Eles natildeo representam meramente o ldquopasso
adianterdquo como se houvessem ainda superado o discurso antecessor mas antes o ldquopasso atraacutesrdquo
enquanto retorno agraves bases e aos princiacutepios por meio da reivindicaccedilatildeo da atitude desvelada pela
miacutestica onde o misteacuterio natildeo eacute o problema a ser desvendado mas o elemento a ser incorporado
80
O obra de Proclo eacute composta por diversos comentaacuterios aos diaacutelogos de Platatildeo dentre os
quais ao Timeu ao Parmecircnides ao Alcebiacuteades agrave Repuacuteblica entre outros aleacutem de escritos
sistemaacuteticos como os Elementos de Teologia e a Teologia Platocircnica Existem ainda obras que
abordam temas de matemaacutetica astronomia arte magia e tratados propedecircuticos sobre doutrinas
filosoacuteficas Especialmente em relaccedilatildeo agraves contribuiccedilatildeo em torno agrave henologia duas obras satildeo de
suma importacircncia o Comentaacuterio ao Parmecircnides de Platatildeo e os Elementos de Teologia
A leitura de Proclo do Parmecircnides de Platatildeo eacute considerada uma das mais sistemaacuteticas e
originais que teria sobrevivido agraves vicissitudes dos tempos Ademais guardaria ainda um apelo
ao resguardo da filosofia de Platatildeo bem como uma preparaccedilatildeo para um projeto de resgate da
vitalidade do paganismo por meio de um platonismo revigorado 31 Decorreria disto uma
profunda incursatildeo na filosofia como teologia que culminaria em seus Elementos Ainda no
Comentaacuterio Proclo descreve o percurso de Platatildeo em relaccedilatildeo agrave Parmecircnides e manifesta uma
linha argumentativa similar a Plotino
Mas caso se queira chegar o mais proacuteximo da verdade deve-se seguir a linha de nosso
Mestre que Parmecircnides inicia desde o Uno (Ser) (para a proposiccedilatildeo ldquose haacute um unordquo
jaacute que conteacutem aleacutem do ldquoUnordquo o conceito de existecircncia pertence a este tipo de coisas)
ascendendo do Uno Ser para o Uno assim demonstrando que o Uno em sentido estrito
deseja apenas isto ser One e ldquoarrebatar-se para longerdquo do Ser e o Uno Ser eacute
secundaacuterio a este pela razatildeo de sua descendecircncia em direccedilatildeo ao Ser ao passo que o
Uno mesmo eacute superior mesmo agrave designaccedilatildeo ldquoeacuterdquo e a hipoacutetese ldquose haacuterdquo assim que
adicionamos eacute o Uno no sentido estrito natildeo mais permanece (PROCLUS 1987 379-380
In Parm 1033)
31 Estas consideraccedilotildees satildeo de Ciacutecero Cunha Bezerra em Algumas consideraccedilotildees sobre leitura procleana do
Parmecircnides de Platatildeo (2004) Neste artigo ele ainda sustenta em consonacircncia com H D Saffrey (Proclus
diadoque de Platon 1990) que Proclo entra na linha de inteacuterpretes de Platatildeo que entendem sua filosofia como
revelaccedilatildeo de uma verdade divina estruturada a partir do uno filiando Platatildeo aos teoacutelogos gregos (cf BEZERRA 2004
99-100)
81
Proclo apresentaraacute na sequecircncia a impossibilidade de ldquohipotetizarrdquo o uno cindindo de um lado
hipoacutetese-condicionada e de outro anti-hipoacutetese-incondicionada O problema que estaacute sendo
colocado parte da ideia de que natildeo se pode pensar a multiplicidade isolada senatildeo somente por
meio da concepccedilatildeo de uma unificaccedilatildeo Para aleacutem da estrutura binaacuteria uno-muacuteltiplo deve-se
considerar a unificaccedilatildeo como consequecircncia necessaacuteria dando origem agrave formulaccedilatildeo ldquouno-
unificado-muacuteltiplordquo para explicar como eacute simplesmente possiacutevel que hajam elementos pelos
quais outros se unificam32
O resultado da formulaccedilatildeo de Proclo parece ser a absolutizaccedilatildeo do uno e sua
identificaccedilatildeo com Deus algo sobremaneira evidente na proposiccedilatildeo de seus Elementos que diz
ldquoTodo intelecto divino eacute uniforme ou possui a forma do Uno e eacute perfeito E o primeiro intelecto
subsiste por si mesmo e produz outros intelectosrdquo (IDEM 1998 86 Elem Theo Prop CLX)
Proclo argumenta ainda que se haacute um Deus ele eacute preenchido de unidades divinas e eacute uniforme
sendo ainda perfeito e cheio da bondade divina havendo um Deus primeiro que provecirc as
hipoacutestases para outros intelectos
Este eacute precisamente o ponto que seraacute aprofundado pelo Pseudo-Dioniacutesio Areopagita em
sua teologia negativa Tanto em Proclo quanto no Pseudo-Dioniacutesio o divino habita a
compreensatildeo filosoacutefica da realidade como incorporaccedilatildeo do misteacuterio seguindo ainda a esteira
da muacutetua reciprocidade entre filosofia e religiatildeo demanda por Plotino desde o iniacutecio Pseudo-
Dioniacutesio coroa a radicalizaccedilatildeo do uno e sua identidade com o Deus primeiro apresentado como
supraessencial (ὑπερούσιε) suprabondoso (ὑπεράγαθε) e mesmo supradivino (ὑπερθεε) razatildeo
pela qual ele demanda que ldquo() em absoluta renuacutencia de si mesmo e de todas as coisas deveraacutes
na pureza deixar todas as coisas de lado liberando-se de tudo e sendo assim levado para cima
para o Raio da Divina Treva que excede toda existecircnciardquo (DIONYSIUS THE AREOPAGITE 1920 192)
32 Esta passagem eacute cuidadosamente explicada por Giuseppe Girgenti que esclarece que ldquoO ponto culminante do
primeiro grupo de teoremas eacute o alargamento da hierarquia de quatro termos uma vez que o raciociacutenio de Proclo
levou a distinguir o intermediaacuterio entre o proacuteprio Uno e o unificado ou seja elementos que compotildeem o unificada
as primeiras unidades do natildeo-unificado ou a henadirdquo (GIRGENTI 2009 113-114)
82
Discursar acerca da inefabilidade impotildee no Pseudo-Dioniacutesio uma superaccedilatildeo da proacutepria
linguagem que se revela agora como uma construccedilatildeo liberta de qualquer fronteira e acima de
qualquer paradoxo onde negaccedilatildeo (ἀπόφασις) e afirmaccedilatildeo (κατσφάσις) comungam de igual
valor e sentido em uma mesma e uacutenica esfera A primazia propriamente apofaacutetica que toma
conta da fala do Pseudo-Dioniacutesio ganha forccedila quando supera toda definiccedilatildeo conceitual e
identifica Deus como nada daquilo que eacute
Uma vez mais indo ainda mais alto mantemos que Ele natildeo eacute alma ou mente ou
concebido pela faculdade da imaginaccedilatildeo conjuntura razatildeo ou entendimento nem eacute
nenhum ato de razatildeo ou compreensatildeo nem pode ser descrito pela razatildeo ou percebido
pelo entendimento jaacute que natildeo eacute nuacutemero ou ordem ou magnificecircncia ou pequenez
ou igualdade ou desigualdade e jaacute que natildeo estaacute inerte nem em movimento ou em
descanso e natildeo possui poder e natildeo eacute poder nem luz e natildeo vive e natildeo eacute vida nem eacute
essecircncia pessoal ou eternidade ou tempo nem pode ser apreendido pelo
entendimento jaacute que natildeo eacute nem conhecimento nem verdade nem eacute reinado ou
sabedoria nem eacute uno nem unidade nem deidade ou bondade natildeo eacute um espiacuterito como
se entende o termo jaacute que natildeo eacute Filho nem Pai nem eacute nenhuma outra coisa tal como
noacutes ou qualquer outro ente do qual se possa ter conhecimento nem pertence a
categoria de natildeo-existecircncia ou de existecircncia nem os entes existentes o conhecem
como realmente eacute nem Ele os conhece como realmente satildeo nem a razatildeo pode o
atingir nomear ou conhecer nem eacute escuridatildeo nem eacute luz ou erro ou verdade nem
nenhuma afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo pode ser aplicada porquanto aplicar afirmaccedilotildees e
negaccedilotildees natildeo se aproximam Dele noacutes natildeo aplicamos nem negaccedilatildeo nem afirmaccedilatildeo
enquanto transcende toda afirmaccedilatildeo por ser perfeita e uacutenica Causa dos seres e
transcende toda negaccedilatildeo pela preeminecircncia de sua livre natureza simples e absoluta
de qualquer limitaccedilatildeo e para aleacutem de tudo (DIONYSIUS THE AREOPAGITE 1920 200-201)
83
Seria justo afirmar que esta densa passagem da Teologia Miacutestica eacute muito mais proacutexima de uma
declaraccedilatildeo de amor do que uma articulaccedilatildeo filosoacutefica (e caberia aiacute perguntar se haacute enfim
alguma diferenccedila entre uma coisa e outra) Pseudo-Dioniacutesio natildeo apenas promove um
movimento de negaccedilatildeo em direccedilatildeo agrave toda afirmaccedilatildeo mas ainda rumo agrave proacutepria negaccedilatildeo Neste
sentido a definiccedilatildeo mais justa conforme a qual se utiliza aqui o termo negatividade seguiria
com precisatildeo os termos do Pseudo-Dioniacutesio entendendo que o caminho negativo estaacute mais
aleacutem de toda afirmaccedilatildeo e mesmo de toda negaccedilatildeo Esta eacute ainda a via para entender o que pode
ser nomeado como meontologia um percurso intelectual que apoiado pela henologia
neoplatocircnica natildeo se fundamenta mais no ente mas antes no natildeo-ente (μή ὄν) ou mesmo no
nada
As consequecircncias da henologia neoplatocircnica de Plotino e Proclo e da meontologia
miacutestica do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita natildeo passaratildeo incoacutelumes pelos seacuteculos que se seguiriam
agrave composiccedilatildeo dos escritos aqui conjurados Contudo algumas recepccedilotildees bastante acuradas e
inspiradas criativas e bem desenvolvidas ocupar-se-iam de resgatar o sentido do pensamento
negativo e desdobrar a profundidade do problema Eacute possiacutevel citar algumas dezenas de filoacutesofos
que se dedicaram ao diaacutelogo com o neoplatonismo e a teologia negativa Aqui gostaria de
encerrar este capiacutetulo direcionando-o para uma interlocuccedilatildeo especial e ao meu ver central para
a difusatildeo da negatividade na filosofia medieval moderna e contemporacircnea Tenho em mente
Joatildeo o Escoto chamado Eriuacutegena
Eriuacutegena ocupou um lugar de destaque nas altercaccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas durante
o chamado Renascimento Caroliacutengio sendo-lhe atribuiacutedas tarefas como a traduccedilatildeo do grego
para o latim das obras do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita bem como explanaccedilotildees em torno agrave
contenda da divina predestinaccedilatildeo e agraves interpretaccedilotildees e exegeses suscitadas pela disputa erguida
pela cultura biacuteblica do periacuteodo33
33 Para especificaccedilotildees em torno a Eriuacutegena e seu tempo confira CONTRENI 1996 e MCNAMARA 1996
84
A presenccedila do neoplatonismo em Eriuacutegena parece se posicionar de maneira estrateacutegica
ao longo dos movimentos por ele realizados em sua magna obra o Periphyseon Natildeo se pode
perder de vista as possiacuteveis definiccedilotildees do neoplatonismo natildeo apenas dentro de suas esferas
relacionais e a partir das tendecircncias de leitura mas ainda por meio da questatildeo fundamental que
problematiza todo conteuacutedo qual seja como o uno se relaciona com o muacuteltiplo ou ainda como
o que eacute primeiro se relaciona com o que eacute posterior Oscar Federico Bauchwitz sustenta que
ldquo() a questatildeo pela antonomaacutesia do neoplatonismo enquanto uma reflexatildeo acerca da relaccedilatildeo
entre o Criador e a criatura entre o Uno e a multiplicidade pode ser enfocada na obra de
Eriuacutegena no que diz respeito a creatio ex nihilo e ao sentido original que eacute determinado ao
termo nihilrdquo (BAUCHWITZ 2001 11) Assumindo esta hipoacutetese como vaacutelida torna-se
imprescindiacutevel compreender o lugar que tal questatildeo ocupa na obra eriugeneana e como ela se
desenvolve
Conforme os apontamentos de Bauchwitz o ldquonadardquo se apresenta pela primeira vez jaacute
no iniacutecio do Periphyseon ao serem articulados os modos da diferenccedila fundamental da divisatildeo
da natureza (φύσις natura) definida como tudo aquilo que eacute e que natildeo eacute (quae sunt et quae non
sunt) sendo dividida em quatro espeacutecies ldquo() primeiro naquilo que cria e natildeo eacute criado segundo
naquilo que eacute criado e tambeacutem cria terceiro naquilo que eacute criado e natildeo cria enquanto o quarto
nem cria nem eacute criadordquo (ERIVGENAE 1999 37 441ordf) O que eacute pode ser percebido apreendido e
conhecido O que natildeo eacute todavia natildeo se pode perceber apreender ou conhecer (cognoscitur non
quid est sed quia est) De acordo com Bauchwitz o termo quid est (ldquoo que eacuterdquo) diz respeito agrave
essecircncia de tudo que permanece incompreensiacutevel e infinito ao passo que quia est (ldquoque eacuterdquo)
indica a existecircncia da essecircncia divina ou seja seus efeitos como algo determinado e que eacute O
incompreensiacutevel da natureza divina Eriuacutegena deixa ver quando escreve ldquoPortanto se eacute por
causa de sua excelecircncia inefaacutevel e incompreensiacutevel infinitude que a Natureza Divina eacute dita natildeo
ser disto se segue que ela eacute nada ()rdquo (IDEM 2005 61 634C)
85
A impossibilidade de compreender a natureza divina eacute o que permite a Eriuacutegena
descortinar seu entendimento acerca da creatio ex nihilo Bauchwitz escreve sobre este ponto
ldquoA questatildeo se origina eacute que se a diferenccedila fundamental abarca a totalidade da natureza o que
se poderia predicar de Deus Isto eacute o que haacute para mais aleacutem do ser e do natildeo ser senatildeo o Nada
desde o qual Deus cria todas as coisasrdquo (BAUCHWITZ OP CIT 12) O problema eacute apresentado por
Eriuacutegena a partir da busca pelo sentido conforme o qual se questiona de que maneira eacute possiacutevel
compreender como todas as coisas que satildeo se originam do nada (ou nos termos do
neoplatonismo pagatildeo a mesma questatildeo de ldquocomo do uno se origina a multiplicidade) Eacute
possiacutevel interpretar esta passagem alegando que Eriuacutegena se refere ao nihilo em perfeita
sintonia com toda doutrina Cristatilde da criaccedilatildeo como de fato faz sentido afirmar Contudo
Eriuacutegena vislumbra o que considera ldquoa verdadeira essecircncia da natureza divinardquo O Criador que
cria todas as coisas que satildeo criadas insere-se naquela parte da divisatildeo da natureza na qual ldquocria
mas natildeo eacute criadordquo enquanto sua ldquoessecircnciardquo reflete aquilo que ldquonatildeo eacute nem criado nem criardquo
Em outros temos indica-se que nada eacute a natureza divina de Deus ou ainda que natildeo-ser
corresponde agrave divindade
Resta ainda resolver o mesmo problema ante ao qual se encontraram Plotino Proclo o
Pseudo-Dioniacutesio entre outros a saber como eacute possiacutevel para Deus desarraigar-se de seu nada
ou desdobrar-se desde si mesmo Bauchwitz oferece uma explicaccedilatildeo quando potildee em relevo o
problema da expressatildeo do paradoxo
() por meio da criatura eacute Deus quem se manifesta e portanto todas as criaturas
podem ser entendidas como certas apariccedilotildees divinas isto eacute teofania Neste sentido a
teofania nomeia o paradoxo da ineffabilis difusio que diz que o infinito devem finito
que o incompreensiacutevel devem compreensiacutevel que o silecircncio clama (BAUCHWITZ 2003ordf
57)
86
Em Eriuacutegena eacute possiacutevel acompanhar o sentido da explicaccedilatildeo de Bauchwitz na passagem que
diz
Tudo o que eacute entendido e sentido nada mais eacute senatildeo apariccedilatildeo do que natildeo eacute aparente
a manifestaccedilatildeo do oculto afirmaccedilatildeo da negaccedilatildeo compreensatildeo do incompreensiacutevel [a
expressatildeo do inexpressiacutevel o acesso ao inacessiacutevel] o intelecccedilatildeo do ininteligiacutevel o
corpo do incorpoacutereo a essecircncia do supraessencial a forma do informado a medida
do incomensuraacutevel o nuacutemero do inumeraacutevel o peso do impensaacutevel a materializaccedilatildeo
do espiritual a visibilidade do invisiacutevel o lugar do natildeo-lugar o tempo do natildeo-tempo
a definiccedilatildeo do infinito a circunscriccedilatildeo do incircunscrito e as outras coisas que satildeo
ambas consideradas e percebidas pelo intelecto sozinho e natildeo podem se restringir
dentro de recessos da memoacuteria e nas quais escapa agrave destreza da mente (ERIVGENAE OP
CIT 59 633BC)
A despeito da possibilidade de sintonia com a doutrina Cristatilde da criaccedilatildeo (especificamente o
sentido moralizante da gecircnese) natildeo haacute forccedila catequeacutetica senatildeo puramente especulativa na
maneira pela qual Eriuacutegena aborda a questatildeo O acesso ao sagrado aparece antes como uma
atitude fundamental na qual se insiste no misteacuterio da nadidade do divino
O resultado do caminho meditativo de Eriuacutegena eacute uma postura na qual o pensamento
natildeo responde apenas agraves demandas imediatas agraves preocupaccedilotildees que sanem os conflitos
existenciais e sociais mas uma intelecccedilatildeo cujo grau de alcance atinge toda mensurabilidade e
incomensurabilidade da estruturaccedilatildeo do real como internalizaccedilatildeo do segredo oculto e dos
misteacuterios da natureza Parece ser neste sentido que Bauchwitz sugere uma eacutetica do silecircncio
onde ldquo() natildeo basta enunciar o princiacutepio que deve reger as accedilotildees do ser humano () O silecircncio
como destino a ser alcanccedilado soacute tem sentido na medida em que nomeia a incessante e natural
disposiccedilatildeo do proacuteprio homem em dirigir-se a elerdquo (BAUCHWTZ OP CIT 12) Antes de resolver
qualquer problema assume-se o respeito para com a profundeza do incocircndito
87
Durante a introduccedilatildeo desta tese referi-me a um outro escrito de Bauchwitz Nihilismo
e Neoplatonismo assumindo que aquele artigo havia sido responsaacutevel por traccedilar uma direccedilatildeo
ou mesmo proporcionar um estiacutemulo ao desenvolvimento deste trabalho Gostaria de retornar
agravequele artigo uma vez mais para encerrar esta seccedilatildeo com definiccedilotildees mais precisas a respeito da
henologia e da meontologia como ultrapassagem dos limites da metafiacutesica
O capiacutetulo anterior evidenciou que com a ontologia ou a substantivaccedilatildeo do pensamento
ocidental por meio da confusatildeo entre ser e ente perdeu-se natildeo a capacidade intelectual do ser
humano mas o atino para o seu fundamento Em razatildeo da urgecircncia de respostas abandonou-se
tudo aquilo que era por princiacutepio incoacutegnito inefaacutevel inexprimiacutevel Como havia dito na
introduccedilatildeo com o apoio do trabalho de Bauchwitz a consumaccedilatildeo deste movimento eacute anunciado
por meio de um diagnoacutestico do niilismo Neste sentido Bauchwitz escreve
A relaccedilatildeo entre Nihilismo e Neoplatonismo que aponta para uma eacutetica aleacutem dos
limites da temporalidade e de crenccedilas religiosas ainda estaacute para ser esclarecida Uma
tal eacutetica somente poderaacute ser realmente quando cumpridas umas exigecircncias que neste
trabalho foram apenas assinaladas a superaccedilatildeo da vontade e em consequecircncia da
proacutepria liberdade soacute pode ser interpretada em uma perspectiva que jaacute natildeo se encontra
nos limites da ontologia tradicional ou no dizer de Heidegger no acircmbito da metafiacutesica
O sem-propoacutesito de uma tal eacutetica que abnega qualquer visatildeo utilitarista e
simplesmente dada do mundo exige pensar a partir de novas fundamentaccedilotildees e
valores o retorno do divino eacute uma metaacutefora que atende a tais exigecircncias na medida
em que ao tempo que nos abre uma concepccedilatildeo totalmente outra daquele que ancora
os principais valores vigentes questiona pelos conceitos fundamentais que
homologaram esses valores como superiores porque quantificaacuteveis A ausecircncia de
referecircncias fixadas pelos padrotildees contemporacircneos que mensuram o bem-estar de cada
indiviacuteduo e o resgate de uma vivecircncia que se justifica nela mesma e natildeo pelas suas
finalidades devem servir de origem para superar a ldquonoite do mundordquo (BAUCHWITZ OP
CIT 179-180)
88
Em primeiro lugar eacute importante destacar que a falta de esclarecimento da ldquoeacutetica aleacutem dos
limitesrdquo ou como prefiro colocar aqui ldquopara aleacutem das fronteirasrdquo natildeo soacute natildeo estaacute clara como
assim deve permanecer caso queira responder agrave exigecircncia de absorver a negatividade que
tambeacutem faz parte da humanidade do humano mas que foi todavia afasta de sua visatildeo da
realidade Por este motivo utiliza-se aqui o termo conflito das fronteiras para indicar natildeo uma
resoluccedilatildeo de problemas mas a assunccedilatildeo de um confronto Sendo assim a ultrapassagem de
limites deve se dar apenas no que tange agrave possibilidade de abrir o pensamento para aleacutem da
metafiacutesica tradicional Explorar o que haacute de propriamente fraco o que natildeo se sustenta o que
natildeo pode ser
A temaacutetica poderia ser encerrada aqui Seria possiacutevel retornar ao neoplatonismo com
ainda mais cautela e extrair de laacute mesmo os elementos para subverter toda sorte de ordenamento
que lanccedila o ser humano na ldquonoite do mundordquo Contudo meu interesse aqui eacute explorar mais um
momento da histoacuteria da filosofia e se possiacutevel encontrar um ponto de apoio para reunir a
tradiccedilatildeo metafiacutesica e o neoplatonismo em um uacutenico problema Minhas hipoacutetese conforme seraacute
desenvolvida no terceiro e uacuteltimo capiacutetulo eacute encontrar uma orientaccedilatildeo Orientaccedilatildeo extrema
Ali no Extremo Oriente
89
3 O EXTREMO ORIENTE E O CONFLITO DAS FRONTEIRAS A FILOSOFIA COMPARADA INTERCULTURAL
COMO CHAVE DE LEITURA PARA ALGUNS PROBLEMAS DO PENSAMENTO CONTEMPORAcircNEO
O ambiente acadecircmico britacircnico do final da deacutecada de 1970 foi palco de uma fervorosa disputa
acerca das interpretaccedilotildees e definiccedilotildees culturais entre Ocidente e Oriente A publicaccedilatildeo do livro
Orientalism (1978) de Edward Wadie Said (ع إدوارد Idwārd Wadīʿ Saʿīd) fomentou ديعس ودي
uma inesgotaacutevel discussatildeo acerca de qualquer suposta correspondecircncia deste ou daquele
elemento nos princiacutepios da tradiccedilatildeo oriental sustentando em termos bem simples que o
Oriente era antes uma invenccedilatildeo convencional Said sofreu diversas criacuteticas algumas mais
significativas outras menos Uma de suas consideraccedilotildees mais discutidas afirma que ldquo() o
Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente) como sua imagem ideacuteia personalidade e
experiecircncia de contraste Contudo nada desse Oriente eacute meramente imaginativordquo (SAID 1990
13-14) acrescentando ainda de forma incisiva que ldquoO Oriente expressa e representa esse
papel cultural e ateacute mesmo ideologicamente como um modo de discurso com o apoio de
instituiccedilotildees vocabulaacuterio erudiccedilatildeo imagiacutestica doutrina e ateacute burocracias e estilos coloniaisrdquo
(IDEM IBIDEM 14) Said defendeu que o Oriente tal qual eacute conhecido pelo mundo ocidental natildeo
corresponde agrave proveniecircncia originaacuteria de suas tradiccedilotildees mas eacute antes uma estrateacutegia (poliacutetica e
econocircmica) de manutenccedilatildeo geograacutefica Toda designaccedilatildeo acadecircmica de qualquer orientalismo
ateacute entatildeo desenvolvido estaria entatildeo equivocada apoiada em pressupostos que natildeo condizem
com a tradiccedilatildeo oriental Sem embargo o mesmo poderia ser dito a respeito da introspecccedilatildeo do
mundo grego pelo mundo romano-latino e no decorrer da histoacuteria da humanidade eacute possiacutevel
ainda identificar outras centenas de casos semelhantes ateacute o ponto no qual se afirma a
globalizaccedilatildeo por meio da modernizaccedilatildeo de todos os recantos do planeta dentro do iacutempeto de
igualar todas as culturas em um niacutevel comum
90
Entretanto apesar de ser possiacutevel interpretar as assertivas de Said de forma mais
ponderada aproveitando com isto certo direcionamento fatalista embora natildeo necessariamente
inveriacutedico de sua investigaccedilatildeo algumas gafes de sua compreensatildeo da histoacuteria se revelam
bastante perturbadoras Um dos principais criacuteticos de Said Robert Irwin publicou uma obra
onde ampla parte eacute dedicada agrave refutaccedilatildeo direta dos principais argumentos de Said Em For the
Lust of Knowning (2006) Irwin destaca algumas inverdades de Said e contrargumenta de
maneira precisa certas falaacutecias Contudo Irwin eacute tambeacutem bastante emotivo em sua abordagem
ele escreve ldquoPara pocircr minhas cartas na mesa jaacute de iniacutecio a meu ver aquele livro [Orientalism]
eacute uma obra de uma impostura maleacutevola na qual eacute difiacutecil distinguir erros verdadeiros de
falsidades propositadasrdquo (IRWIN 2006 11) Irwin ataca principalmente os erros fatuais de Said
apontando para lacunas na fundamentaccedilatildeo da obra Orientalism34 destacando vaacuterios enganos e
afirmando em siacutentese ldquoPois se eacute possiacutevel apresentar uma imagem falsa do orientalismo do
cristianismo e do imperialismo britacircnico natildeo seria tatildeo obviamente errado apresentar de modo
semelhante uma falsa imagem do islatilde da histoacuteria aacuterabe ou da difiacutecil situaccedilatildeo dos palestinosrdquo
(IDEM IBIDEM 330-331) fazendo referecircncia agraves posiccedilotildees por Said defendidas Em suma Irwin daacute
a entender nas entrelinhas que a politizaccedilatildeo de um criacutetico literaacuterio no caso Said tornou a obra
Orientalism um intento mal construiacutedo como ferramenta para sustentaccedilatildeo de posiccedilotildees poliacuteticas
condenando todo seacuterio estudo que envolve o orientalismo Ateacute entatildeo muitos outros
pesquisadores e eruditos atacaram Said bem como tantos outros o admiravam e o defenderam
Todavia com a apresentaccedilatildeo desta disputa quero aqui destacar um fator iacutempar que natildeo
necessariamente se prende agrave contenda mas que encobre o toacutepico de modo geral
34 Irwin destaca alguns erros ldquoOrientalismo daacute a impressatildeo de um livro escrito agraves pressas Eacute repetitivo e conteacutem
muitos erros factuais Said menciona lsquoPedro o Veneraacutevel e outros orientalistas cluniacensesrsquo Que outros
orientalistas cluniacenses Seria interessante conhecer seus nomes (Mas naturalmente a ideia de que houvesse toda
uma escola de orientalistas cluniacenses eacute absurda Pedro o Veneraacutevel trabalhou sozinho) Como Bernard Lewis
ressaltou Said faz com que exeacutercitos muccedilulmanos conquistem a Turquia antes de conquistarem o norte da Aacutefrica
Isso realmente sugere uma ignoracircncia espantosa da histoacuteria do Oriente Meacutedio da mesma forma que sua crenccedila
quanto a terem a Gratilde-Bretanha e a Franccedila dominado a regiatildeo oriental do Mediterracircneo a partir do final do seacuteculo
XVIIrdquo (IRWIN 2006 329)
91
Com a discussatildeo entre os orientalistas e seus inimigos o importante eacute destacar natildeo
apenas as dificuldades que envolvem todo e qualquer estudo comparado entre Ocidente e
Oriente mas o fato de que eacute da natureza do proacuteprio estudo comparado que haja divergecircncias
A divergecircncia e o erro satildeo de fato disposiccedilotildees naturais dos estudos comparados sem os quais
natildeo seria possiacutevel sequer dar iniacutecio agrave discussatildeo ou desenvolver qualquer linha de raciociacutenio
preparatoacuteria Soacute eacute possiacutevel falar em estudos comparados porque houve de antematildeo a percepccedilatildeo
de uma divergecircncia Mais ainda a necessidade do momento e os acasos eventuais direcionam
os estudiosos para um ou para outro lado Assim como Said saiu em defesa da Palestina durante
um periacuteodo no qual os conflitos haviam se asseverado em decorrecircncia da expulsatildeo das forccedilas
de paz das Naccedilotildees Unidas em 1967 tambeacutem outros pensadores em outros momentos da histoacuteria
foram motivados por acontecimentos histoacutericos sejam eles de guerra ou de paz poliacuteticos
econocircmicos ou religiosos Como por exemplo as diversas manifestaccedilotildees de revolta e
indignaccedilatildeo de Theodor Wiesengrund Adorno e Gershom Scholem apoacutes Auschwitz ou as
anaacutelises polecircmicas de Slavoj Žižek das revoltas do subuacuterbio de Londres e da Primavera Aacuterabe
Contudo algumas deacutecadas antes da publicaccedilatildeo da obra de Said precisamente durante a
deacutecada de 1950 o Departamento de Filosofia da University of Hawairsquoi at Mānoa havia
alavancado uma seacuterie de trabalhos a respeito dos fundamentos e procedimentos dos estudos
comparados Eacute preciso considerar que proacuteprio departamento jaacute havia sido estruturado entre
1930 e 1940 com o objetivo de suprir a lacuna que havia a respeito dos estudos comparados na
filosofia A primeira East-West Philosophers Conferece em 1939 ditou o tom pelo qual se
tornaria possiacutevel falar abertamente alguns anos mais tarde de uma filosofia comparada
intercultural Ali natildeo escapou a ideia de que foi justamente por meio do ldquoerrordquo que se
estabelecia o diaacutelogo entre fronteiras Em outras palavras este diaacutelogo nascia jaacute sempre de um
conflito das fronteiras A hipoacutetese de consenso eacute explorada neste sentido apenas mediante a
assunccedilatildeo de certa ignoracircncia parcial e sopesando ainda as variaccedilotildees de interpretaccedilatildeo
92
O rigor filosoacutefico que direcionou as primeiras tentativas da filosofia comparada em
confrontar as tradiccedilotildees sapienciais ocidentais e orientais permitiu a instauraccedilatildeo de uma postura
cuidadosa e quase mesmo analiacutetica do problema35 Com isto foi possiacutevel comeccedilar a pensar de
que forma elementos do pensamento oriental e da filosofia ocidental poderiam convergir ou
divergir e quais as contribuiccedilotildees que este tipo de comparaccedilatildeo pode trazer aos problemas da
contemporaneidade Todavia como anos mais tarde discutiriam Said Irwin e outros natildeo se
pode desprezar o fato de que nada escapa aos entrelaccedilamentos ldquoirrastreaacuteveisrdquo das relaccedilotildees entre
Ocidente e Oriente Neste sentido embora qualquer comprovaccedilatildeo cientiacutefica empaque frente aos
desafios historiograacuteficos natildeo eacute de todo ingecircnuo especular as influecircncias que por exemplo
Platatildeo teria sofrido da sabedoria primitiva de hinduiacutesta e budistas como sustentam diversos
especialistas36 Ou ainda da indagaccedilatildeo acerca de ateacute que ponto o Aristoacuteteles que conhecemos
natildeo foi orientalizado por Al-Farabi (صر ون ن محمس اب ی محمس ب اراب Abū Naṣr Muḥammad ibn ف
Muḥammad Fārābī) Avicena (ن نا اب ع د ou و لی اب نا ع ع د Pūr Sinɑʼ ou ainda ور نا پ ع د Pur-
e Sina em aacuterabe و لي أب عن ع س ح ن ال بس ب الله ع ن نا ب ع د Abū ʿAlī al-Ḥusayn ibn ʿAbd Allāh
ibn Al-Hasan ibn Ali ibn Sīnā) entre outros filoacutesofos da tradiccedilatildeo aacuterabe Sem contar os
sincretismos que permearam a filosofia do helenismo tardio em Alexandria onde pagatildeos
judeus cristatildeo e mulccedilumanos travavam interminaacuteveis disputas teoacutericas (e natildeo apenas teoacutericas)
a respeitos dos fundamento filosoacuteficos e teoloacutegicos religiosidade momento no qual fica difiacutecil
empreender uma anaacutelise pormenorizada de quem influenciou quem quando o quanto e como37
35 Charles A Moore ponderou no trabalho Some Problems of Comparative Philosophy (1951) a dificuldade em
posicionar as doutrinas orientais em um grupo homogecircneo como podia ser feito com a ocidentais apontando ainda
para o cuidado em evitar as caracterizaccedilotildees e comparaccedilotildees a partir de tendecircncias mais gerais (cf MOORE 1951 67)
Kwee Swan Liat escreveu ainda em Methods of Comparative Philosophy (1951) que ao menos sete esferas de
aplicaccedilatildeo metodoloacutegica devem ser previamente levadas em consideraccedilatildeo (aproximaccedilatildeo filoloacutegica histoacuterica
comparativa formal-valorativa psicoloacutegica fenomenoloacutegica e socioloacutegica-antropoloacutegica) avaliando uma por
uma e propondo por conseguinte uma oitava aproximaccedilatildeo total-integrativa (cf KWEE SWAN LIAT 1951 10ss) 36 Estas hipoacuteteses satildeo levantadas por Graham Parkes na introduccedilatildeo de Heidegger and Asian Thought (1987) (cf
PARKES 1987 1) 37 Este ponto especiacutefico acerca das contendas do periacuteodo heleniacutestico foram sobremaneira bem expostas por Jean
Pepiacuten no escrito intitulado Heacutelleacutenisme et christianisme no volume de Franccedilois Chacirctelet La Philosophie v 1 De
Platon agrave Saint Thomas Paris Marabout 1995
93
Falar efetivamente de uma filosofia comparada intercultural todavia pressupotildee outra
perspectiva aquela na qual ambas as tradiccedilotildees estatildeo culturalmente niacutetidas e bem delineadas
(ainda que por meio de caracterizaccedilotildees vulgares pouco precisas ou mesmo caricatas) e satildeo
entendidas como exponencialmente distintas Entretanto as mesmas dificuldades permanecem
Com isto quero dizer fica difiacutecil afirmar ateacute que ponto um lado compreendeu o outro de modo
suficiente e satisfatoacuterio sendo possiacutevel indagar ainda se as apropriaccedilotildees natildeo se deram mediante
interpretaccedilotildees equivocadas ou leituras transviadas sobretudo quando natildeo haacute domiacutenio pleno dos
idiomas envolvidos
Estas asseveraccedilotildees tomaram conta de muitos pensadores no decorrer da histoacuteria da
humanidade Ateacute onde eacute possiacutevel investigar dois momentos marcam o iniacutecio da relaccedilatildeo
expliacutecita (e natildeo meramente impliacutecita como no caso dos primeiros filoacutesofos gregos de Platatildeo e
de Aristoacuteteles) entre Ocidente e Oriente na filosofia a apropriaccedilatildeo latina durante a Idade Meacutedia
dos escritos aacuterabes do Oriente Meacutedio38 e a interlocuccedilatildeo e introspecccedilatildeo da tradiccedilatildeo do Extremo
Oriente (sobretudo chinesa em um primeiro momento) na filosofia alematilde dos seacuteculos dezessete
e dezoito Aqui interessa especialmente o diaacutelogo com o Extremo Oriente e como ele natildeo se
encerrou no mero intercacircmbio de tradiccedilotildees fomentando um movimento de reversatildeo no qual os
orientais por sua vez tambeacutem abriram interlocuccedilatildeo direta com o pensamento ocidental
introspectando a filosofia e desenvolvendo ao seu modo formas de reflexatildeo nos mesmos
moldes da estrutura categoacuterica ocidental mas partindo dos princiacutepios orientais ainda que em
certa medida (como se veraacute) tais princiacutepios por vezes comunguem em muitos aspectos de
elementos e direcionamentos comuns aos ocidentais e por vezes natildeo Para isto eacute preciso
investigar brevemente a gecircnese desta relaccedilatildeo e como ela tem iniacutecio
38 Sobre este toacutepico que natildeo seraacute abordado aqui confira W Raven e A Akasoy (eds) Islamic Thought in the
Middle Ages Studies in Text Transmissions and Translations in Honour of Hand Daiber Leiden Brill 2008 D
Calma Eacutetudes sur le premier siegravecle de lrsquoaverroisme latin approches et textes ineacutedits Turnhout Brepols 2010
entre outros
94
A despeito da culminaccedilatildeo das luzes no periacuteodo moderno diversos temas obscuros
perpassaram o seacuteculo dezessete sobretudo aqueles motivados pelas missotildees catequeacuteticas
jesuiacutetas na China que inevitavelmente influenciaram o ambiente intelectual da eacutepoca 39
Independente dos transtornos causados pelos europeus em suas incursotildees tambeacutem na Europa
os problemas apareceram Quando os documentos acerca das tradiccedilotildees chinesas de pensamento
desembarcaram no continente europeu despertaram imediato interesse em diversos estudiosos
Contudo tampouco foi ameno o iniacutecio deste diaacutelogo O caso mais draacutestico se deu em
1723 quando Christian Wolff fugiu de Halle an der Saale em Sachsen-Anhalt na Alemanha
em decorrecircncia de uma seacuterie de perseguiccedilotildees despertadas por um discurso por ele pronunciado
dois anos antes sob o tiacutetulo Oratio de Sinarum philosophia practica (1721) O motivo era
polecircmico e suscetiacutevel de distintas interpretaccedilotildees Wolff afirmara que ldquoA mesma autoridade que
possui os ditos e feitos de Cristo possui tambeacutem Confuacutecio para os chineses Moiseacutes para os
judeus e Mohammed para os turcosrdquo (WOLFF 1985 117) Embora Wolff tenha impressionado
grande parte de seus ouvintes com o teor apaixonado de sua preleccedilatildeo tal comparaccedilatildeo redundou
em acirradas criacuteticas por diversos professores e eruditos que acompanhavam a fala e a
interpretaram como uma espeacutecie de ateiacutesmo mais ou menos mitigado Estas acusaccedilotildees todavia
natildeo eram fruto apenas da sinofilia de Wolff mas advinham jaacute de seu confronto com colegas
pietistas da Universidade de Halle devido agrave inclinaccedilatildeo bastante evidente para um pensamento
racionalista e secular40
39 Sobre as missotildees jesuiacutetas confira Wenzhao Li Die christliche China-Mission im 17 Jahrhundert Stuttgart
Franz Steiner 2000 Acerca do caso especiacutefico do diaacutelogo com a filosofia alematilde confira ainda Antonio Florentino
Neto Von der Interpretation zum Gespraumlch Das chinesische Denken in deutschen Philosophie Saarbruumlcken
SVH 2013 Florentino Neto ainda comenta que as missotildees tiveram iniacutecio ainda no seacuteculo dezesseis tendo
comeccedilado no Japatildeo e soacute entatildeo atingido a China no seacuteculo dezessete (cf FLORENTINO NETO 2009 41) 40 Os interesses de Wolff pela China bem como pelo racionalismo paulatinamente aparecem em seus escritos
desde a influecircncia direta de Leibniz ateacute a leitura dos tratados dos jesuiacutetas a respeito da China Menccedilotildees ao
pensamento chinecircs e o peso da admiraccedilatildeo que nutria por Reneacute Descartes satildeo evidentes em seus trabalhos a partir
de 1721 (cf LACH 1953) A despeito dos interesses de Wolff pelo pensamento chinecircs sobretudo acerca dos temas
morais constata-se que ele considerava o cristianismo moralmente superior e mais bem desenvolvido (cf KANAMORI
1997 302-303)
95
A hipoacutetese de que a natureza comum do ser humano possibilita o discurso intercultural
nasce sobretudo da comunhatildeo entre uma radicalizaccedilatildeo quase miacutestica do racionalismo moderno
e o impacto causado por escritos de ordem semelhante embora com princiacutepios e fundamentos
distintos Aleacutem de Wolff tambeacutem Nicolas Malebranche e Gottfried Leibniz se dedicaram agraves
leituras do material trazido pelos jesuiacutetas no mesmo periacuteodo Malebranche compocircs em 1707 o
escrito Entretien drsquoun Philosophe Chreacutetien et drsquoun Philosophe chinois sur lrsquoexistence et la
nature de Dieu por meio do qual mais tarde aproveitou para se livrar das acusaccedilotildees de ser um
ldquospinozistardquo Malebranche ainda encarou uma acirrada disputa acerca da condenaccedilatildeo do Papa
Clemente XI agraves missotildees jesuiacutetas sustentando posiccedilotildees bastante polecircmicas em seu diaacutelogo
Malebranche levanta em sua obra a questatildeo fundamental acerca da entificaccedilatildeo do deus
cristatildeo instigando a pergunta acerca do infinito que eacute respondida pelo filoacutesofo chinecircs da
seguinte maneira ldquoEstou convencido de que quando penso sobre o infinito estou muito longe
de pensar qualquer coisa Mas entatildeo eu penso em um tal ser individual e determinado Agora
o Deus que vocecircs adoram natildeo eacute assim um ser individual e particularrdquo (MALEBRANCHE 1708
17) As preocupaccedilotildees de Malebranche caminham no sentido de articular ser e ente no problema
da ontologia do cristianismo Quando Leibniz escreve seu Discours sur la theacuteologie naturelle
des Chinois (1716) ele o faz justamente tendo em vista repetidos pedidos de esclarecer pontos
levantados por Malebranche apoacutes o escrito ter sido enviado a ele por Nicholas Reacutemond41
Eacute possiacutevel considerar que Leibniz foi o que se devotou com mais afinco agrave tradiccedilatildeo
chinesa Ele teria se envolvido principalmente com o direcionamento praacutetico da sabedoria
chinesa profundamente norteada pelo propoacutesito de melhorar a si mesmo e agrave sociedade por meio
da noccedilatildeo confucionista de cultivo de si (修身 xiushen) no sentido propriamente moral42
41 Leibniz trocou extensa correspondecircncia com os missionaacuterios jesuiacutetas a respeito da filosofia chinesa aleacutem de
apresentar comentaacuterios pontuais em sua Novissima Sinica (1697) Contudo eacute no Discours que suas ponderaccedilotildees
mais seacuterias e cuidadosas satildeo delineadas e manifestas (cf KANG 2009 6-8) 42 Mais especificaccedilotildees sobre este tema podem ser encontrados em Karyn T Lay Introduccedilatildeo agrave filosofia chinesa
Trad Saulo Alencastre Satildeo Paulo Madras 2009
96
Leibniz escreve em seu discurso ldquoMas quem poderia pensar que houvesse na terra um
povo que superasse os nossos aspectos da vida cultural Se formos iguais nos modos de
produccedilatildeo somo superiores nas ciecircncias teoacutericas mas inferiores na filosofia praacuteticardquo (LEIBNIZ
1979 11) concluindo que ldquo() somos inferiores na aacuterea da eacutetica na poliacutetica e na vida dos
haacutebitos cotidianosrdquo (IDEM IBIDEM) A interpretaccedilatildeo de Leibniz exalta a capacidade dos chineses
em se organizarem e valorarem as tensotildees promovidas pelo campo social com base no cultivo
de si e ainda identificando o ldquosirdquo ao povo em geral Importante eacute ressaltar natildeo apenas desta
breve sentenccedila ilustrativa mas a partir de uma visatildeo mais ampla de suas reflexotildees o profundo
interesse em preencher lacunas a respeito da proveniecircncia intelectual de certos problemas
filosoacuteficos
Anos depois tambeacutem Georg W F Hegel Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche
nutririam interesses pelo Oriente43 Contudo a resposta propriamente oriental a respeito do
intercacircmbio filosoacutefico se daria apenas na virada do seacuteculo dezenove para o seacuteculo vinte Este eacute
o momento no qual a filosofia comparada intercultural comeccedila a ganhar corpo precisamente
com a abertura poliacutetica e intelectual do Japatildeo e o desenvolvimento da chamada Escola de
Filosofia de Kyōto44 Embora natildeo haja tempo nem espaccedilo para abordar de maneira mais
cuidadosa os enlaces teoacutericos e praacuteticos da Escola de Kyōto escrutinando as estruturas de
pensamento de cada um de seus primeiros membros (e ainda de seus membros tardios) gostaria
aqui de destacar alguns aspectos fundamentais direcionados por duas questotildees a primeira
sustentando o porquecirc a filosofia tem iniacutecio propriamente acadecircmico no Extremo Oriente e
precisamente no Japatildeo e a segunda indagando como (ou de que modo) isto acontece Uma
hipoacutetese necessariamente leva agrave outra e isto pode ser facilmente observado
43 Um panorama mais especiacutefico das aproximaccedilotildees pode ser visto em Florentino Neto 2009 44 Em minha dissertaccedilatildeo de mestrado jaacute havia explanado os movimentos histoacutericos que levaram agrave abertura do Japatildeo
e ao surgimento da filosofia japonesa moderna ou contemporacircnea Uma bibliografia mais completa acerca do tema
pode ser extraiacuteda das obras de referecircncia William Beasley The Meiji Restoration (Stanford Stanford UP 1972) e
The Rise of Modern Japan (New York St Matinrsquos Press 1995)
97
Em primeira matildeo sustento que os motivos que proporcionaram o surgimento de uma
ldquoescola filosoacuteficardquo no Japatildeo modernizado estatildeo intimamente ligadas com sua introspecccedilatildeo da
tradiccedilatildeo oriental precedente Em palavras mais simples a maneira pela qual os japoneses
compreenderam e sintetizaram as principais linhas de pensamento orientais (hinduiacutesmo
budismo confucionismo e daoiacutesmo) culminando no chamado budismo zen foi sem embargo
a chave para absorver a filosofia ocidental Em segunda matildeo sustento ainda que a filosofia
japonesa nasce cresce e se estabelece mediante duas perspectivas (justamente os ldquoparadigmasrdquo
anteriormente abordados na tese) metafiacutesica e negatividade em decorrecircncia do florescimento
do zen no Japatildeo Por fim argumento que justamente pelo entrelaccedilamento de metafiacutesica
negatividade e o pensamento do Extremo Oriente que nasce a uacutenica filosofia possiacutevel para o
momento histoacuterico pelo qual passava o Japatildeo e com isto abre-se uma pertinente chave de
leitura para o momento que agora mesmo atravessa a filosofia contemporacircnea
Portanto inicialmente eacute essencial destacar a singularidade do budismo zen em relaccedilatildeo
agraves tradiccedilotildees precedentes Existem muacuteltiplas maneiras pelas quais eacute possiacutevel empreender esta
tarefa Acredito ser plausiacutevel direcionar este toacutepico mediante um problema especiacutefico qual seja
da fundamentaccedilatildeo uacuteltima da realidade a partir da meditaccedilatildeo a respeito da questatildeo da vacuidade
entendida como śūnyatā (शनयता)
A ideia de śūnyatā deriva do budismo indiano primitivo Relatos de reflexotildees em torno
ao problema do fundamento da realidade aparecem (como jaacute havia exposto na introduccedilatildeo desta
tese) desde os cacircnones Pāḷi e satildeo expressos de maneira mais clara e niacutetida no budismo mahāyāna
principalmente no Sūtra do Coraccedilatildeo (Prajntildeāpāramitā Hṛdaya परझञापारनमताहरदय) passando pela escola
mādhyamaka de budismo indiano e ainda nos Versos Fundamentais sobre o Caminho do Meio
(Mūlamadhyamaka-kārikā मलमधयमककाररका) de Nāgārjuna (िागारि) onde foi apresentada de maneira
mais profunda e sistemaacutetica
98
Algumas interpretaccedilotildees do escrito de Nāgārjuna destacam o śūnyatā como constituiccedilatildeo
da totalidade da realidade enfatizando que isto significa uma muacutetua dependecircncia (pratītya-
samutpāda परतीतयसमतपाद) de todas as coisas de todas aquelas que possuiriam existecircncia individual
ou substancial e ateacute da proacutepria ideia de nada o que significa propriamente uma anulaccedilatildeo de
qualquer Ente Supremo ou mesmo qualquer verdade absoluta45
Quando os ensinamentos do budismo indiano chegam agrave China e no Japatildeo alguns
princiacutepios fundamentais satildeo radicalizados por ambas as naccedilotildees Existem vaacuterias hipoacuteteses
conforme as quais eacute possiacutevel indagar os motivos desta radicalizaccedilatildeo Alguns consideram que a
doutrina radical do budismo se deve ao gecircnio do monge Boddidharma embora outros
argumentem que o motivo foi o encontro com o daoiacutesmo e o neoconfucionismo A questatildeo pode
permanecer suspensa sem que isto afete a compreensatildeo das bases e dos caminhos do budismo
zen Ao que concerne propriamente agrave introspecccedilatildeo deste conceito fundamental na filosofia
japonesa contemporacircnea (sem embargo o ponto ao qual quero chegar) existem tambeacutem
inuacutemeras controveacutersias embora haja ainda certos pontos solidamente estabelecidos e
mutuamente consentidos que se pode explorar com o intuito de apresentar o problema
O expoente da Escola de Kyōto que pela primeira vez explorou de maneira sistemaacutetica
a questatildeo e a colocou via uma formulaccedilatildeo filosoacutefica foi Kitarō Nishida (西田 幾多郎) Sua
biografia eacute repleta de elementos que o fariam parecer ou bem um rebelde visionaacuterio ou bem
um precoce e intempestivo intelectual permeado por desacordos com o sistema Sem embargo
muitos pesquisadores descreveram com minuacutecia os percalccedilos de sua biografia Por isto natildeo eacute
de todo liacutecito perder muito tempo aqui descrevendo seu percurso pessoal Gostaria apenas de
atentar para alguns pontos sobremaneira importantes no que tange agrave formaccedilatildeo intelectual de
Nishida
45 Este ponto eacute melhor analisado por Michael Barnhart que considera que de acordo com Nāgārjuna ldquo() natildeo se
pode sustentar nenhuma feacute na realidade ou princiacutepio transcendente nem nenhuma razatildeo humana pode pretender
independecircncia de nenhum tipo ()rdquo (BARNHART 1994 649)
99
Em primeiro lugar Nishida viveu em meio agrave restauraccedilatildeo Meiji (1868-1912) um periacuteodo
que divide a histoacuteria do Japatildeo entre preacute-moderna e moderna no qual a sociedade feudal entra
em decliacutenio e a naccedilatildeo eacute ocidentalizada pela forccedila maior da pressatildeo do Departamento de Estado
Norte-Americano A evidecircncia de que o ensino japonecircs estava defasado frente aos desafios do
novo mundo levou seus governantes a implementarem um sistema educacional semelhante ao
ocidental sendo neste periacuteodo fundadas as primeiras universidades japonesas Nishida
frequentou tais universidades embora tivesse seu proacuteprio percurso intelectual independente
tendo a oportunidade de estudar com Raphael von Koumlber professor russo-alematildeo convidado
para ministrar aulas de filosofia no Japatildeo Com Koumlber Nishida estudou a histoacuteria do
cristianismo (com ecircnfase nas influecircncias do paganismo de Plotino) aleacutem da filosofia criacutetica de
Immanuel Kant e da esteacutetica claacutessica Eacute preciso ponderar ainda que Nishida lia com fluecircncia o
francecircs o alematildeo e o inglecircs tendo acesso integral agraves principais obras da filosofia ocidental Por
outro lado o mesmo estudante dedicado era ainda um pensador radical que encontrou na
tradiccedilatildeo do zen budismo um rumo para suas inquietaccedilotildees
Quando Nishida se aproxima do zen budismo e comeccedila a praticar mediaccedilatildeo o impacto
da destruiccedilatildeo dos meacutetodos convencionais de ensino o afeta largamente ponderando sobretudo
que ele jaacute havia abandonado a escola primaacuteria por desentendimentos com o regime educacional
Um artigo de Lothar Knauth intitulado Life is Tragic The Diary of Nishida Kitaro (1965)
destaca uma passagem do diaacuterio de Nishida onde eacute possiacutevel observar sua postura conforme suas
proacutepria palavras
Faccedila sua proacutepria mente e depois disto natildeo dependa dos outros
Natildeo acredite indiscriminadamente nas palavras das pessoas
Natildeo fale de assuntos que ainda natildeo foram amadurecidos
Natildeo desperdice tempo precioso com fofocas ociosas
A lei da mateacuteria de leitura ler pensar escrever
100
Se vocecirc ainda natildeo terminou de pensar sobre um assunto
natildeo mude para outro
Se vocecirc natildeo terminou de ler um livro ateacute o fim
natildeo pegue outro
Non multa sed multum
Diaacuterio Ano Novo 1897 (NISHIDA apud KNAUTH 1965 337)
O trecho do diaacuterio aponta para um jovem estudioso preocupado com o rigor a tensatildeo
proveniente do impacto surtido pelas leituras Knauth expotildee consecutivamente um outro trecho
do diaacuterio este datado de 1 de julho de 1945 jaacute no final da vida de Nishida que diz
simplesmente ldquoEscurecendo nublado vinte grausrdquo (IDEM IBIDEM) A intenccedilatildeo de Knauth com
isto eacute mostrar a profunda introspecccedilatildeo redundante de um amadurecimento especulativo
proveniente de anos de meditaccedilatildeo Contudo ao que interessa ao propoacutesito do toacutepico vale
salientar que mesmo em um conturbado espiacuterito jovem havia jaacute sempre a necessidade de forccedilar
uma ldquoaquietamentordquo da mente uma busca por um lugar silencioso no qual prevalece a maacutexima
non multa sed multum natildeo muito mas bastante
Entre 1891 e 1897 (a ano da primeira citaccedilatildeo) Nishida praticou incessantemente a
meditaccedilatildeo zen havendo tambeacutem contribuiacutedo para uma revista do secto do Budismo da Terra
Pura Sua transformaccedilatildeo efetiva se daria em 1903 onde uma draacutestica revoluccedilatildeo de seu
entendimento abriria caminho para dar iniacutecio ao seu pensamento efetivo
O homens natildeo podem pensar em morrer natildeo podem ter grandes pensamentos ambos
Kawai e Gordon jaacute disseram isto Tentei pensar em mim mesmo morto aos trinta e um
de dezembro de meu trigeacutesimo quinto ano mas entretanto por mais que tentasse natildeo
podia pensar sobre isto seriamente Natildeo importa o quanto eu pense na morte eu natildeo
consigo me fazer esquecer o mundo (ID IBID 341)
101
Para Knauth este trecho evidencia uma iluminaccedilatildeo por meio da ideia de morte miacutestica e
renascimento O resultado imediato da iluminaccedilatildeo ao contraacuterio do que poderia parecer coerente
aos olhos ocidentais daacute-se na publicaccedilatildeo imediata de um artigo onde Nishida afirma ldquoEu
estava errado em usar o Zen em consideraccedilatildeo ao conhecimento Eu deveria tecirc-lo usado para o
espiacuterito e alma Ateacute eu comeccedilar a sentir pela visatildeo eu natildeo pensarei nem em filosofia nem em
religiatildeordquo (ID IBID 342) Este momento representa uma iluminaccedilatildeo justamente pelo fato de que
haacute sem embargo a assunccedilatildeo de uma correta postura mas com um propoacutesito enganoso ndash a busca
pelo conhecimento havia posto em xeque absolutamente todos os anos dedicados agrave meditaccedilatildeo
era necessaacuterio portanto comeccedilar novamente
Conforme Knauth Nishida iraacute se preparar nos proacuteximos anos para exprimir o potencial
introspectado durante sua iluminaccedilatildeo Trecircs pontos satildeo neste momento fundamentais O
primeiro eacute a leitura profundamente marcante para Nishida de Mestre Eckhart46 O segundo eacute
o falecimento de sua filha Yūko viacutetima de um ataque de bronquite O terceiro (diretamente
ligado ao segundo) eacute sua luta contra o cigarro Em 1923 Nishida escreve ldquoDeste dia em diante
eu morri para mundo Eu vivo em minha proacutepria filosofia Tudo sacrificado tudo sacrificado
Profunda impressionante experiecircnciardquo (ID IBID 344) e em 1927 ldquoAgrave tarde eu estava sozinho
na casa Pensamento quietos Quietamente eu passei metade do dia Eu natildeo fumei nem sequer
um cigarro Renascimento despertado de um sonho ruim De uma aacutervore podre de alguma
maneira um novo broto de vida pode florescer Hoje eu estava quase felizrdquo (ID IBID) O motivo
pelo qual Knauth intitula seu artigo com a expressatildeo Life is Tragic adveacutem justamente desta
postura de Nishida conforme a qual a vida humana natildeo passaria de preocupaccedilotildees e problemas
46 Nishida inicia a leitura de Eckhart em 1907 Seria interessante ao propoacutesito da tese que houvesse uma explanaccedilatildeo
maior e mais cuidadosa do pensamento de Eckhart sobretudo no segundo capiacutetulo onde seu posicionamento eacute
fundamental para o desenvolvimento do neoplatonismo e da miacutestica Contudo esta difiacutecil tarefa tornaria o percurso
da tese demasiado longo e cansativo podendo desviar a atenccedilatildeo primordial do trabalho Todavia possuo a intenccedilatildeo
de desdobrar este toacutepico em um trabalho futuro
102
A despeito de um aparente pessimismo o que pode ser destacado do percurso intelectual
e pessoal de Nishida eacute a profundidade com qual ele sentiu o peso da vida A doutrina buacutedica do
sofrimento eacute por ele absorvida de maneira natildeo soacute transcendente mas ainda imanente Os
escritos de Nishida revelaratildeo natildeo apenas um caminho filosoacutefico no qual se imbricam a tradiccedilatildeo
sapiencial oriental e a filosofia ocidental mas a descriccedilatildeo de uma experiecircncia vital na qual pulsa
a forccedila do pensamento especulativo Por esta e outras razotildees Nishida havia sido nomeado com
o nome laico-budista ldquosunshinrdquo uma polegada de mente
A produccedilatildeo propriamente filosoacutefica de Nishida eacute tanto mais densa quando suas reflexotildees
pessoais anotadas em seu diaacuterio contudo relativamente mais faacuteceis de serem abordadas devido
agrave sistematicidade que permeia os escritos A despeito de suas incompatibilidades com o sistema
de ensino sua carreira acadecircmica foi coroada em 1894 quando recebeu o tiacutetulo de licenciado
em filosofia com uma tese acerca da causalidade em David Hume culminando no professorado
junto agrave Universidade Imperial de Kyōto em 1913 Neste iacutenterim dedicou-se ao desdobramento
das bases de sua filosofia que teria sido divulgada de maneira mais consistente na obra que
havia publicado em 1911 sob o tiacutetulo Zen no kenkyū (善の研究 Investigaccedilatildeo sobre o bem) A
obra mais conhecida de Nishida busca o autodespertar o que significa uma visatildeo dos
fenocircmenos que compreendem a experiecircncia pura evidente desde a movimentaccedilatildeo de uma
loacutegica toacutepica O termo ldquoloacutegica toacutepicardquo eacute propositalmente ambivalente Por um lado indica uma
loacutegica do espaccedilo do lugar por outro denuncia como esse lugar (locus) revela uma locuccedilatildeo um
discurso Eacute neste lugar que se desenvolvem os limites do pensamento Relatos de alunos de
Nishida comentam que ele costumava desenhar no quadro negro trecircs esferas uma sobre a outra
na qual a primeira representaria os acidentes circundaacuteveis ao sujeito a segunda os elementos
incapturaacuteveis pela percepccedilatildeo e a terceira (com linhas tracejadas) a impossibilidade final de
limitaccedilatildeo e a esfera do absoluto insuperaacutevel e infinitamente expansiacutevel nomeado com o signo
do nada absoluto (絶対無 Zettaina) sua interpretaccedilatildeo para a noccedilatildeo budista de śūnyatā
103
Com isto Nishida arrancaria da tradiccedilatildeo zen budista uma negatividade total para
fundamentar sua ideia de experiecircncia pura (純粋経験 Junsui keiken) que segundo ele ldquo() se
entende conhecer os fatos como eles simplesmente satildeo (hellip)rdquo (NISHIDA 1990 3) Estaacute presente
nesta formulaccedilatildeo a absorccedilatildeo de Nishida da psicologia funcional de William James onde se
depura a correspondecircncia da percepccedilatildeo com a teoria da verdade Nishida ainda afirma ldquo() o
que usualmente se refere como experiecircncia eacute via de regra adulterado por algum tipo de
pensamento portanto por experiecircncia pura se entende aquele estado no qual se tem experiecircncia
sem qualquer discriminaccedilatildeo deliberativardquo (IDEM IBIDEM) O claacutessico exemplo pelo qual se ilustra
a condiccedilatildeo primaacuteria da pureza da experiecircncia sugere que em uma expressatildeo como ldquoouvi uma
moscardquo haacute um momento no qual o sujeito que ouve a mosca e seu barulho e o ato mesmo de
ouvir ainda natildeo foram distinguidos O fundamento da realidade enquanto nada absoluto para
Nishida encontra-se neste preciso momento neste instante incapturaacutevel na inefabilidade do
indescritiacutevel Entretanto embora a erudiccedilatildeo filosoacutefica de Nishida fosse sobremaneira evidente
bem como sua dedicaccedilatildeo ao zen budismo suas ideias natildeo estavam livres de criacuteticas em ambas
as esferas
Uma das criacuteticas mais ferrenhas a Nishida foi apresentada por Hajime Tanabe (田辺 元)
seu sucessor na caacutetedra de filosofia da Universidade Imperial de Kyōto (em 1928) Ao contraacuterio
de Nishida que nunca havia saiacutedo do Japatildeo Tanabe foi contemplado com um intercacircmbio pelo
governo japonecircs e teve a oportunidade de estudar ao lado de Husserl e Heidegger Sua maior
obra Zangedo to shite no tetsugaku (懺悔道としての哲學 A filosofia como caminho metanoeacutetico
1946) ocupava-se da superaccedilatildeo do inevitaacutevel problema epistemoloacutegico que envolvia a questatildeo
do nada absoluto propondo o termo metanoeacutetica derivado do grego μετανόησις e vertido ao
japonecircs como zangedo (懺悔道) cuja definiccedilatildeo seria nas palavras de Tanabe ldquoum baacutelsamo para
a dor do pesar e ao mesmo tempo o recurso para uma luz absoluta que paradoxalmente torna
vigente a escuridatildeo sem expulsaacute-lardquo (TANABE 1986 2)
104
Em decorrecircncia da necessidade de superaccedilatildeo do proacuteprio pensamento a criacutetica de Tanabe
emerge no sentido de questionar se a filosofia possui condiccedilotildees de enquadrar o autodespertar
religioso conforme exposto por Nishida de maneira sistemaacutetica Conforme Agustiacuten Jacinto
Zavala ldquoResumidamente ao tomar como base o ponto de vista da religiatildeo a filosofia de
Nishida lsquoconverte o trans-histoacuterico absoluto em principium [princiacutepio fundamental] do sistema
e mediante esta determinaccedilatildeo vem [finalmente] ordenar e organizar o histoacuterico relativordquo
(ZAVALA 2013 106) ao passo que ldquoPor isto Tanabe diz lsquoa duacutevida fundamental que albergo
frente a filosofia mestre Nishida se relaciona com este ponto () se a filosofia trata de tomar o
ponto de vista religioso como seu proacuteprio ponto de vista necessariamente deixa de ser si mesmardquo
(IDEM IBIDEM) sintetizando a preocupaccedilatildeo de Tanabe
Os conflitos entre a filosofia a auto-percepccedilatildeo religiosa a partir do estabelecimento do
nada absoluto como fundamento da realidade passaratildeo ainda prelo crivo de diversos
interlocutores sofrendo alteraccedilotildees e recebendo criacuteticas diretas e indiretas Em linhas gerais o
problema de Tanabe estaacute diretamente relacionado com suas compreensotildees estritas da religiatildeo e
da filosofia Em primeiro lugar porque ao contraacuterio de Nishida (que era praticante do zen
budismo) Tanabe partia antes do budismo Jōdo Shinshū (浄土真宗 A Escola da Terra Pura) do
monge Shinran (親鸞)47 Em segundo lugar devido aos interesses de Tanabe pela filosofia da
histoacuteria de Wilhelm Wundt e Heinrich Rickert aleacutem da influecircncia da Lebensphilosophie e o
compromisso histoacuterico que ele alimentou a partir de tais influecircncias Por este motivo era
necessaacuterio tanto para resolver a disputa entre Nishida e Tanabe quanto para superar os estaacutegios
preliminares das discussotildees da Escola de Kyōto reformular as compreensotildees de filosofia e
religiatildeo algo que acontece de maneira somente com Keiji Nishitani (西谷 啓治)
47 Sobre a fundamentaccedilatildeo budista de Tanabe confira Joaquim Antonio Bernardes Carneiro Monteiro ldquoO lsquoNada
Absolutorsquo em Hajime Tanabe uma avaliaccedilatildeo criacuteticardquo In Antonio Florentino Neto e Oswaldo Giacoia Jr (orgs)
O Nada absoluto e a superaccedilatildeo do niilismo Os fundamentos filosoacuteficos da Escola de Kyoto Campinas Phi 2013
155-188
105
Keiji Nishitani eacute talvez o filoacutesofo japonecircs contemporacircneo mais popular entre os
ocidentais O motivo eacute provavelmente o estilo bastante solto e livre de seus ensaios
principalmente os que chegaram traduzidos ao Ocidente ndash precisamente os mais maduros
compostos apoacutes a deacutecada de 1960 como Shūkyo to wa Nanika (宗敎とは何か O que eacute religiatildeo
1961) e Nihirizumu (ニヒリズム Niilismo 1986) Estes mesmos trabalhos sofreram diversas
criacuteticas por parte de colegas japoneses que o acusaram de se afastar dos modos propriamente
orientais de expressatildeo supostamente sugerindo uma indiferenccedila ao idioma vernaacuteculo agraves
tradiccedilotildees e aos projetos de seus antecessores Sobre isto Nishitani teria argumentado que as
lacunas do pensamento japonecircs tradicional sobretudo as idiomaacuteticas impossibilitariam o
alcance do sentido de alguns problemas colocados pela filosofia ocidental motivo pelo qual a
criaccedilatildeo de novas palavras em japonecircs se mostrava absolutamente necessaacuterios48 Sem embargo
os questionamentos impostos pelos novos tempos natildeo se prendiam agraves fronteiras linguiacutesticas e
invadiam o Japatildeo modernizado e ocidentalizado com especial forccedila razatildeo pela qual a
aproximaccedilatildeo com a filosofia sua interiorizaccedilatildeo e reflexatildeo era simplesmente inevitaacutevel
Todavia embora Nishitani tenha realmente pendido para o pensamento filosoacutefico ou para a
maneira pela qual os pensadores ocidentais liam as questotildees conflituosas da contemporaneidade
ao mesmo tempo ele se voltava com ainda maior introspecccedilatildeo para o budismo sobretudo para
o zen Esta ambiguidade intencional do pensamento de Nishitani se revela nas inquiriccedilotildees por
ele levantadas e pelo teor de suas investigaccedilotildees deixando ver claramente sua preocupaccedilatildeo a
respeito do direcionamento reflexivo da filosofia contemporacircnea
48 James Heisig discute esta questatildeo pormenorizadamente quando apresenta o estilo filosoacutefico de Nishitani
Conforme Heisig a influecircncia ocidental absorvida por Nishitani cujas maiores expressotildees foram a esteacutetica de
Immanuel Kant o idealismo alematildeo (especialmente Friedrich W J Schelling) Plotino e o neoplatonismo a
miacutestica de Mestre Eckhart e Francisco de Assis e ainda a hermenecircutica existencial de Wilhelm Dilthey e Martin
Heidegger deixam bastante claro o porquecirc ele subverte e converte os limites e alcances da linguagem Heisig
ainda destaca o momento no qual Nishitani afirma que nos miacutesticos a confluecircncia e a uniatildeo entre religiatildeo e
filosofia alcanccedilaram um ponto elevado despertando seu profundo interesse por tais autores A despeito dos temas
eleitos Heisig considera ainda que por este mesmo motivo o estilo de Nishitani se mostra superior ao de Tanabe
e ao de Nishida (cf HEISIG 2002 233-242)
106
Eacute possiacutevel considerar que o problema com o qual Nishitani se defrontou e que norteou
o andamento geral de seu pensamento mais cuidadosamente desenvolvido possui um ponto de
partido muito bem estabelecido qual seja o problema do niilismo denunciado na virada do
seacuteculo por autores como Friedrich Nietzsche Ernst Juumlnger Fioacutedor Dostoievsky Ivan
Turgeniev entre outros Em Shūkyo to wa Nanika longe de tentar elucidar o sentido da religiatildeo
em termos sistemaacuteticos a despeito do tiacutetulo do escrito Nishitani parece buscar uma imersatildeo na
tensatildeo contraditoacuteria que os seres humanos possuem com a experiecircncia religiosa segundo ele
ldquo() para quem a religiatildeo natildeo eacute uma necessidade precisamente por esta razatildeo ela eacute uma
necessidade Natildeo haacute nenhuma outra coisa sobre a qual se possa dizer o mesmordquo (NISHITANI
1983 1) Sua definiccedilatildeo de religiatildeo se abre a partir da compreensatildeo de uma ldquoauto-despertar da
realidaderdquo cuja explicaccedilatildeo se apoia no termo inglecircs realize segundo ele um termo polissecircmico
que possuem tanto o sentido de actualize (atualizar mas tambeacutem trazer o sentido real como na
expressatildeo actually cujo significado seria na verdade) quanto de understand (compreender)
Nishitani explica ldquo() estou utilizando esta palavra para indicar que nossa habilidade para
perceber a realidade significa realizar (atualizar) a realidade por si mesma em noacutesrdquo (IDEM IBIDEM
5) Esta explicaccedilatildeo apareceria para confrontar o sentido do niilismo que segundo Nishitani
ldquo() se refere agravequilo que torna sem sentido o sentido da vida () sinalizando nada menos do
que fato de que o despertar da nossa existecircncia penetrou em uma profundidade extraordinaacuteriardquo
(ID IBID 4) Em suma Nishitani possui um alvo muito claro lidar com o abismo existencial
que se deixa ver sobremaneira angustiante nos novos tempos aqueles mesmos ldquotempos de
penuacuteriardquo da ldquonoite do mundordquo anunciados por Nietzsche denunciados por Heidegger e que
assombravam os filoacutesofos que se deparavam com a instituiccedilatildeo da morte do pensamento
reflexivo mediante a Era Atocircmica dos desastres ambientais e dos deliacuterios da modernizaccedilatildeo
industrializaccedilatildeo e tecnologizaccedilatildeo do mundo Fatos inegaacuteveis cuja profunda relaccedilatildeo com a
histoacuteria do pensamento torna seu sentido cada vez mais obscuro
107
A forccedila interpretativa que moveraacute o pensamento de Nishitani rumo agraves tentativas de
resoluccedilatildeo dos conflitos passaraacute em primeiro lugar por sua leitura a respeito do problema do
niilismo e sua relaccedilatildeo com a ideia de śūnyatā Quando Nishitani alcanccedila esta abordagem ele
frisa de iniacutecio que ldquo() um dos maiores e mais fundamentais problemas que todas as religiotildees
encaram em nossos tempos eacute sua relaccedilatildeo com a ciecircnciardquo (IDEM IBIDEM 77) O motivo aparenta
ser a incompatibilidade entre o pensamento cientiacutefico e o sentido essencial da vida religiosa
Nishitani entatildeo argumenta de maneira incisiva (e que sintetiza o propoacutesito desta tese no final
das contas)
Uma em cada dez pessoas escuta que a religiatildeo e a ciecircncia tem cada uma seu proacuteprio
domiacutenio e tarefa e que as duas nunca precisaratildeo entrar em conflito caso permaneccedilam
confinadas em suas fronteiras originais Isto eacute inadequado Uma fronteira separa uma
aacuterea da outra e ao mesmo tempo pertence a ambas as aacutereas Os fundamentos do
conflito entre religiatildeo e ciecircncia repousam certamente em tais fronteiras De fato desde
os tempos mais antigos metafiacutesica e filosofia consistiram na exploraccedilatildeo destas
fronteiras entre ciecircncia e religiatildeo (IDEM IBIDEM 77-78)
Nishitani ainda questiona se tais fronteiras podem ser consideradas realmente fronteiras ou natildeo
admitindo que a ciecircncia contemporacircnea natildeo parece se preocupar com a questatildeo A criteacuterio de
verdade objetiva da ciecircncia com o apoio das leis da natureza seria responsaacutevel por de certo
modo menosprezar o conhecimento religioso e mesmo o conhecimento filosoacutefico em
decorrecircncia da verdade cientiacutefica absoluta Mas Nishitani contesta no contrafluxo da tendecircncia
mais geral ldquoMas eacute realmente tatildeo evidente Uma nova maneira de olhar para o absoluto e o
relativo conforme a qual dois absolutos podem se tornar conjuntos impensaacutevel em uacuteltima
instacircnciardquo (ID IBID 78) Para Nishitani o problema vige no fechamento das possibilidades
108
Natildeo haacute aqui uma criacutetica ldquocientofoacutebicardquo mas o levantamento de uma questatildeo qual seja
ldquoNatildeo possuiacutemos uma outra maneira de conceber o relativo senatildeo em termos de estabelecimento
de limites ndash como fazemos por exemplo quando dividimos uma folha de papel em duas ao
traccedilar uma linha nelardquo (ID IBID 79) Nishitani mostraraacute esta possibilidade por meio de sua
interpretaccedilatildeo da ideia de śūnyatā e como ela desvela uma perspectiva que explora os elementos
abandonados pela objetividade cientiacutefica Seja como for eacute possiacutevel considerar jaacute de iniacutecio que
se concentra aiacute toda a potecircncia do diaacutelogo entre metafiacutesica e negatividade apresentado ao longo
desta tese sendo possiacutevel acompanhar Nishitani em uma definiccedilatildeo do conflito das fronteiras
Agora bem quais as saiacutedas ou quais as possiacuteveis chaves de leitura para o problema que
se apresenta a saber a questatildeo do niilismo contemporacircneo Quando emprego aqui o termo
filosofia comparada intercultural tenho em vista a maneira pela Nishitani (entre outros)
exploram as muacuteltiplas significaccedilotildees de distintas tradiccedilotildees culturais em suas convergecircncias e
divergecircncias para se aproximar do problema e propor novos pontos de vista A respeito
especificamente da questatildeo levantada Nishitani utiliza a proacutepria ambivalecircncia do niilismo para
propor uma soluccedilatildeo Seu caminho seraacute resgatar o sentido pelo qual a ciecircncia se apropria das
leis da natureza e desenvolve a tecnologia argumento que eacute precisamente por meio desta
apropriaccedilatildeo que se revelam a medida da liberdade do homem em relaccedilatildeo agraves fronteiras impostas
pelas leis naturais Contudo haacute uma inversatildeo pela qual o controlador se torna o controlado
Conforme Graham Parkes ldquo() a vida humana e o trabalho como um todo se tornam
progressivamente mecanizados e impessoais (nos termos de Heidegger perdemos nossa lsquolivre
relaccedilatildeorsquo com a teacutecnica e estamos lsquoacorrentadosrsquo agrave ela)rdquo explicando ademais que para Nishitani
ldquoA liberdade advinda das leis da natureza que a tecnologia mecanizada nos concede aleacutem do
sentimento concomitante de distacircncia ou separaccedilatildeo do mundo natural levam os seres humanos
a lsquose comportarem como se eles estivessem completamente fora das leis da naturezarsquordquo (PARKES
2013a 103) Sendo assim a uacutenica via possiacutevel eacute restabelecer esta relaccedilatildeo humano-natureza
109
O ponto de apoio de Nishitani para colocar o problema parte da compreensatildeo que
oferece o neoplatonismo e a miacutestica medieval de Deus como nada absoluto (ele cita
especificamente Mestre Eckhart neste ponto) para trazer agrave tona a questatildeo morte-sive-vida
Nishitani evidencia portanto que ldquoEste ponto natildeo pode repousar em um lado mais distante
aleacutem deste mundo e desta vida terrena que possuiacutemos Deve repousar no lado mais proacuteximo
tanto mais proacuteximo quanto nossas vidas ordinariamente devem serrdquo (ID IBID 90) Aproveitando
a perspectiva budista para elucidar este caminho Nishitani esclarece de maneira precisa que
ldquoŚūnyatā eacute o ponto no qual noacutes nos tornamos manifestos de nossa proacutepria talidade (suchness)
como seres humanos concretos como indiviacuteduos com alma e personalidade Ao mesmo tempo
eacute o ponto no qual tudo ao redor se manifesta para noacutes em sua proacutepria talidade (suchness)rdquo (ID
IBID 90)49 Śūnyatā envolve inevitaacutevel e necessariamente este complexo conceito de talidade
(真如 Shinrsquonyo ndash Tathatā तथता) que eacute sem embargo o berccedilo da meditaccedilatildeo oriental
A talidade eacute a via pela qual se extrai a conduccedilatildeo do sistema eacutetico e moral da sociedade
hinduiacutesta primitiva Sua disseminaccedilatildeo no Extremo Oriente eacute carregada por duas tradiccedilotildees quais
sejam o daoiacutesmo e o budismo Os daoiacutestas centram sua noccedilatildeo de ldquoprinciacutepiordquo por meio da noccedilatildeo
de dao (道) e sua relaccedilatildeo com de (德) O famoso Dao De Jing (道德经) bem como a obra do
mestre Zhuangzi (莊子) satildeo os principais responsaacuteveis por colocarem ambos os princiacutepios (dao
e de) e movimento dinacircmico conforme o qual a relaccedilatildeo com natureza natildeo seria entendida nem
como celestial nem como humana mas como ambas sem que uma tenha privileacutegio sobre a
outra ndash e este seria enfim o caminho (dao) da virtude (de) (cf ZHUANGZI 2009 42)
49 Traduzo aqui suchness por talidade com base na ideia de que Nishitani se refere ao conceito budista de Tathatā
(तथता) que em japonecircs se ilustra com o kanji 真如 (Shinnyo) cuja traduccedilatildeo seria ldquorealidade absolutardquo mas natildeo
corresponde ao peso do termo Sobre isto Antonio Morillas escreve que ldquoO termo tathata eacute de difiacutecil traduccedilatildeo
em castelhano Em inglecircs se verte com as expressotildees suchness (a condiccedilatildeo de ser ldquotalrdquo e como se eacute) thatness (o
fato de ser ldquoissordquo que se eacute) e isness (a qualidade de algo que ldquoeacuterdquo sem mais o que eacute e como eacute) () A talidade
[traduccedilatildeo castelhana de tathata] eacute a noccedilatildeo do fato de que a realidade e as coisas e fenocircmenos que a compotildeem satildeo
ldquoassimrdquo ldquotalrdquo e como satildeo que satildeo ldquoissordquo ldquoo que satildeordquo em seu caraacuteter plenamente desnudo na existecircncia luminosardquo
(MORILLAS 2006 167) Pela proximidade com o idioma castelhano opto aqui por adotar a sugestatildeo de Morillas
110
O budismo especialmente o budismo zen absorveria tais ideias com especial forma nos
pensamentos de Kūkai (空海) e Dōgen Zenji (道元禅師) Graham Parkes explica que para Kūkai
duas ideias se configuram essenciais Sokushinjobutsu (即身成仏) a possibilidade de atingir a
iluminaccedilatildeo na vida presente (em contraste ao princiacutepio budista tradicional conforme o qual
seriam necessaacuterias muitas vidas) e Hosshin seppo (発疹 説法 ) o entendimento de que a
personificaccedilatildeo buacutedica eacute desprovida de forma e imagem natildeo permitindo conceitualizaccedilatildeo nem
verbalizaccedilatildeo (cf PARKES 2003 81) A despeito da uniatildeo suscitada pelo daoiacutesmo o budismo
chinecircs do oitavo seacuteculo estava imerso em uma profunda discussatildeo acerca da questatildeo se a
natureza buacutedica podia ser atribuiacuteda somente aos seres sencientes ou tambeacutem agraves miacutenimas
partiacuteculas de poeira Kūkai articula as duas ideias acima mencionadas e interpretas as chamadas
ldquotrecircs intimidadesrdquo (corpo fala mente) do Dainichi Nyorai (木造大日如来坐像) que representa a
revelaccedilatildeo esoteacuterica dos ensinamentos no Budismo para sustentar o muacutetuo pertencimento da
relaccedilatildeo do todo com suas partes assumindo a natureza buacutedica para absolutamente tudo Ele
escreve neste sentido ldquoEssa existecircncia estaacute naquela e aquela estaacute nessa A Existecircncia do Buda
(Mahāvairocana) eacute a existecircncia dos seres sencientes e vice e versa Eles natildeo satildeo idecircnticos mas
satildeo todavia idecircnticos eles natildeo satildeo diferentes mas satildeo todavia diferentesrdquo (KŪKAI 1972 93)
Jaacute para Dōgen a evocaccedilatildeo da conduta zen se daria por meio de uma miacutestica cotidiana
alimentando a noccedilatildeo de que toda atividade eacute expressatildeo da natureza buacutedica Parkes argumenta
que algumas atividades satildeo especialmente ilustrativas como por exemplo preparar a comida
servi-la e come-la Dōgen citaria um trecho do Vimalakīrti Nirdeśa Sūtra (नवमलकीनत निदश सतर) que
diria ldquoQuando somos unos com a comida que comemos somos unos com todo o universordquo
evocando o uso do silecircncio como veiacuteculo para o esclarecimento do śūnyatā como fundamento
absoluto da realidade (cf PARKES OP CIT 84) As praacuteticas rituais natildeo possuiriam todavia
conotaccedilatildeo lituacutergica pontual e direcionada mas antes a totalidade de uma experiecircncia de vida
religiosa
111
Tanto Kūkai quanto Dōgen influenciaram amplamente o pensamento de Nishitani e o
ponto de vista conforme o qual o śūnyatā direciona uma atitude por meio da qual se mostra a
talidade Tanto no daoiacutesmo de Zhuangzi quando no zen budismo de Kūkai e Dōgen estatildeo em
jogo o aspecto formal a aparecircncia (rūpa shiki) da realidade em torno por um lado e a assunccedilatildeo
da dissoluccedilatildeo do fundamento dessa realidade por outro (sua vacuidade śūnyatā kū) Por este
motivo haacute uma muacutetua reciprocidade entre a totalidade e as coisas entre uno e muacuteltiplo Isto eacute
o que permite a participaccedilatildeo e ao mesmo tempo incorporaccedilatildeo da realidade (dharmakāya)
Contudo natildeo seraacute o mero resgate das tradiccedilotildees orientais que forneceraacute a Nishitani a resposta
ao problema no que concerne ao impacto da questatildeo frente aos tempos de niilismo mas sim o
resultado da confrontaccedilatildeo desta tradiccedilatildeo com a filosofia contemporacircnea ocidental ou sem
embargo o confronto entre as fronteiras
Graham Parkes atenta para uma reivindicaccedilatildeo de Nishitani de haver superado em certa
medida o desenvolvimento das filosofias de pensadores como Hegel Nietzsche e Heidegger
(cf PARKES 2013b 189-190) Contudo no cerne desta proposiccedilatildeo estaacute a ideia de que o que foi
superado natildeo foi propriamente o conteuacutedo da meditaccedilatildeo mas a forma da abordagem ou seja
a perspectiva intercultural privilegiada da comparaccedilatildeo filosoacutefica de Nishitani Com o anuacutencio
da morte de Deus e dos tempos de niilismo em Nietzsche ficou evidente um diagnoacutestico da
atividade humana inerente aos valores que a guiam por um lado e a induccedilatildeo ao desespero
suscitado pela projeccedilatildeo cognoscitiva ao ente por outro A saiacuteda de Nietzsche por meio do
ldquogrande antiacutedotordquo da transvaloraccedilatildeo de todos os valores eacute recebida em Nishitani considerando
trecircs ideias chave de sua leitura budista (1) a constituiccedilatildeo do fundamento da existecircncia como
uma experiecircncia aleacutem da relaccedilatildeo entre sujeito objeto por meio do conceito de (referente agrave noccedilatildeo
de dharma धम) (2) a reaccedilatildeo de retorno ao mesmo de toda atividade (a partir do conceito de
karma कम) e a noccedilatildeo de que natildeo haacute nada que exista independente de circunstacircncias e
condicionamento ou a chamada ldquoco-originaccedilatildeo dependenterdquo (o pratītya-samutpāda परतीतयसमतपाद)
112
Portanto o que em Nietzsche seria postulado como destino enquanto o ldquomesmordquo (o ego
fatum nietzscheano) engendrando um ponto de vista criativo em Nishitani seria entendido
desde a ideia do karma Em Nihirizumu Nishitani escreve acerca deste ponto especiacutefico que
ldquoNeste niacutevel fundamental o mundo se move na esfera do mesmo e o mesmo na esfera do
mundo Esta ideia estaacute proacutexima da ideia budista de karma embora em Nietzsche o ponto de
vista do mesmo como destino eacute fundamentalmente criativordquo (NISHITANI 1990 50) Em termos
mais simples de acordo com Parkes ldquo() o que parece um golpe do destino pode ser entendido
antes como uma parte de nossa proacutepria atividaderdquo (PARKES OP CIT 196) O florescimento desta
consideraccedilatildeo se daacute na afirmaccedilatildeo niezscheana do amor fati e da superaccedilatildeo do abismo da grande
suspeita niilista por meio da grande dor pela qual se renasce o que seraacute entendido em Nishitani
a partir do retorno ao abismo onde ldquo() uma vez que algueacutem eacute libertado do abismo a
necessidade se torna um elemento desta vida de liberdade Neste caso necessidade se torna
uma com a criatividaderdquo (NISHITANI OP CIT 52) Entretanto a ressalva de Nishitani consiste que
a afirmaccedilatildeo resultante da superaccedilatildeo do abismo niilista pode ainda ser superar e que a vontade
de poder eacute ainda uma ldquocoisardquo chamada ldquovontaderdquo (cf IDEM OP CIT 234) cuja uacutenica possibilidade
de ser pensada para aleacutem dos fundamentos que redundam no destino como mesmo seria
justamente o ponto de vista do śūnyatā Uma ilustraccedilatildeo possiacutevel de ldquopara onderdquo este ponto de
vista levaria pode ser encontrada quando Nishitani comenta a arte japonesa de arranjo de flores
a chamada Ikebana (生け花) Ali fica niacutetido qual a postura que se assume quando se daacute conda
da vacuidade da realidade uacuteltima e absoluta Nishitani escreve
Desde a perspectiva de sua natureza fundamental todas as coisas no mundo satildeo
lacircminas de grama sem raiacutezes Tal grama entretanto tenho fincado suas raiacutezes no solo
esconde a si mesma em sua fundamental ausecircncia de raiacutezes () sendo cortadas de suas
raiacutezes as flores satildeo feitas pela primeira vez pela manifestaccedilatildeo minuciosa de sua
natureza fundamenta ndash sua falta de raiacutezes (IDEM 2011 1199)
113
Ao fim e ao cabo Nishitani estaacute chamando atenccedilatildeo para uma aprendizagem decorrente da ldquoco-
originaccedilatildeo dependenterdquo a partir da natureza Sobre este ponto e sua relaccedilatildeo com o niilismo
Parkes escreve ldquo() noacutes humanos diferimos de outros entes por meio da possibilidade de nos
tornamos conscientes de nossa proacutepria finitude no estado da niilidade (kyomu) um tipo de
ldquovacuidade ocardquo que eacute uma antecacircmara para a vacuidade criativa (śūnyatā kū)rdquo (PARKES OP
CIT 112) Resumidamente o ponto de vista do śūnyatā se configura para Nishitani a partir da
tradiccedilatildeo do zen budismo oriental e de sua leitura da filosofia ocidental como uma iluminaccedilatildeo
a respeito do fundamento da realidade enquanto vacuidade evidenciado sobremaneira pelo
abismo do niilismo contemporacircneo e que direciona o ser humano para uma vacuidade criativa
na qual sua relaccedilatildeo com as coisas congrega tudo em uma mesma natureza buacutedica ou seja o
lugar onde as flores o arranjo o florista e o ato de fazer o arranjo satildeo a mesma coisa ou o lugar
onde a mosca o anjo Deus e o eu satildeo o mesmo
114
CONCLUSAtildeO
Durante o primeiro semestre de 2011 estava profundamente motivado com a preparaccedilatildeo do
texto final desta tese doutoral Ocupava-me ao mesmo tempo das pesquisas leituras
sistematizaccedilatildeo dos esquemas defesa da versatildeo do final do projeto e dos cursos que iria ministrar
na Universidade Federal do Rio Grande do Norte nos meses seguintes A abordagem agrave histoacuteria
da metafiacutesica agrave tradiccedilatildeo do neoplatonismo e agrave filosofia japonesa contemporacircnea atingiam-me
simultaneamente por meio de muacuteltiplas construccedilotildees conceituais interligadas pela lucidez
provocada mediante a histoacuteria dos efeitos de cada ambiente temaacutetica Contudo ao 11 de marccedilo
daquele ano foi transmitida uma notiacutecia que imediatamente cessou minha produccedilatildeo e
empolgaccedilatildeo com todo e qualquer toacutepico Os jornais incessantemente transmitiam as uacuteltimas
notiacutecias a respeito de um terremoto seguido por um tsunami que havia atingido o Japatildeo e
danificado a estrutura da usina nuclear de Fukushima na cidade de Ōkuma expondo a
comunidade da regiatildeo agrave alarmantes niacuteveis de radioatividade O desastre ambiental seria
considerado algum tempo mais tarde a maior cataacutestrofe nuclear desde Chernobyl em 1986
Evidentemente como havia ocorrido tambeacutem em 2001 durante o ataque terrorista ao
World Trade Center em Nova Iorque as reportagens que chocavam o mundo se tornariam
rapidamente repetitivas e esgotariam o puacuteblico O motivo pelo qual se daria tal neutralizaccedilatildeo e
letargia frente aos fatos foi denunciado por Slavoj Žižek na obra The Year of Dreaming
Dangerously (2012) Ele pondera os eventos destrutivos de 2011 tais quais a Primavera Aacuterabe
e o Occupy Wall Street desde a neutralizaccedilatildeo ideoloacutegica promovida pela miacutedia dando margem
agrave interpretaccedilatildeo conforme a qual os veiacuteculos de comunicaccedilatildeo vigentes aniquilam o potencial
emancipatoacuterio dos eventos por meio da pasteurizaccedilatildeo de sua difusatildeo
115
Žižek destaca o termo da liacutengua persa ldquowar nam nihadanrdquo cujo abstruso significado
seria em linhas gerais ldquomatar algueacutem enterrar seu corpo e plantar flores sobre sua cova para
esconder o cadaacuteverrdquo Para Žižek os meios de comunicaccedilatildeo do capitalismo global destroem a
absorccedilatildeo propriamente humana dos eventos do mundo contemporacircneo exatamente neste
mesmo sentido (cf ŽIŽEK 2012 9) Sem sombra de duacutevidas o mesmo se daria em relaccedilatildeo ao
desastre de Fukushima e hoje trecircs anos depois uma pedra foi posta por sobre o assunto e poucas
pessoas sequer se lembram do ocorrido
Entretanto meu denso envolvimento com a filosofia japonesa natildeo permitiu que os
acontecimentos fossem dissolvidos assim tatildeo facilmente Passei um bom tempo tocado pela
calamidade e mesmo ateacute agora ainda tenho dificuldades em lidar com o assunto As
adversidades emotivas todavia natildeo me impediram de pensar com devoccedilatildeo sobre a questatildeo
pelo contraacuterio estimularam ainda mais o rumo da reflexatildeo filosoacutefica
O ano seguinte seria marcado em meu percurso pessoal pela saiacuteda do paiacutes e realizaccedilatildeo
de estaacutegio sanduiacuteche junto agrave University College Cork (Colaacuteiste na hOllscoile Corcaigh) para
realizar minhas pesquisas sob a supervisatildeo do professor Graham Parkes na Irlanda Parkes
havia publicado no iniacutecio daquele ano um breve artigo intitulado Nuclear Power after
Fukushima 2011 Buddhist and Promethean Perspectives (2012) no qual natildeo apenas analisava
os fatos mas ainda apresentava uma meditaccedilatildeo a respeito de uma filosofia da natureza para
aleacutem das ecologias profundas ou natildeo
Simplificando o assunto o estiacutemulo para o fornecimento de energia nuclear eacute
alimentado pela conclusatildeo de que se trata de uma fonte limpa e autossustentaacutevel em contraste
agrave queima do combustiacutevel e exploraccedilatildeo de recursos foacutesseis ou mesmo aos impactos ambientais
causados pela obstruccedilatildeo de fluxos de aacutegua Aparentemente trata-se de uma soluccedilatildeo emergente
frente ao ainda ineficaz suporte das energias ecologicamente viaacuteveis como a eoacutelica e a solar
116
Parkes pontua sobre isto que ldquoA questatildeo crucial natildeo diz respeito aos meacuteritos relativos
e agraves desvantagens do poder nuclear versus a energia dos combustiacuteveis foacutesseis Antes trata-se
de pensar o que norteia nosso desejo de consumir tanta energia em primeiro lugarrdquo (PARKES
2012 103) O posicionamento diz respeito a um ldquopasso atraacutesrdquo A pergunta eacute o que move no
final das contas o irredutiacutevel e irrefreaacutevel iacutempeto de explorar todos os recursos naturais para
fomentar a manutenccedilatildeo da vida humana na Terra Mesmo com a leitura do escrito eu
particularmente soacute conseguiria compreender o direcionamento proposto por Parkes apoacutes
acompanhar seus seminaacuterios sobre filosofias da natureza entre Ocidente e Oriente no qual
ficariam claras as bases pelas quais ele questionava a conduta contemporacircnea face agrave crise
ambiental
Entretanto quando me deparei com as primeiras leituras oferecidas por Parkes (muitas
das quais constam na bibliografia desta tese) natildeo fui acometido pelo espanto da novidade mas
pela pulsatildeo da comparaccedilatildeo A experiecircncia que jaacute havia acumulado sob a orientaccedilatildeo do
professor Oscar Federico Bauchwitz durante meus anos de pesquisa acadecircmica dedicado agrave
leitura de Nietzsche Heidegger e da tradiccedilatildeo do neoplatonismo e da miacutestica medieval proveu-
me de uma arquitetocircnica meditativa que com a aproximaccedilatildeo com a filosofia oriental apenas
nutriu imediata empatia e introspecccedilatildeo Sendo assim quando congreguei o focirclego e as forccedilas
necessaacuterias para encerrar este trabalho natildeo tinha em mente uma tese levantada de um mero
problema particular mas um longo percurso especulativo que ao longo das paacuteginas aqui
apresentadas tentei descrever da melhor maneira possiacutevel
Sobreveio-me durante os termos finais uma intensa obrigaccedilatildeo de sustentar que a uacutenica
via possiacutevel para enfrentar os problemas filosoacutefico contemporacircneos era a instauraccedilatildeo de um
retorno aos fundamentos por meio da interculturalidade Portanto a conclusatildeo desta tese soacute
pode caminhar rumo agrave elucidaccedilatildeo de quais fundamentos no final das contas satildeo estes que estatildeo
aqui e ali indicados no interior do trabalho
117
Em 1953 Martin Heidegger pronunciou a conferecircncia intitulada Die Frage nach
Technik O escrito eacute talvez uma de suas mais claras expressotildees acerca de sua anaacutelise da
consumaccedilatildeo da histoacuteria da metafiacutesica a instauraccedilatildeo do niilismo europeu e o advento da Era
Teacutecnica Paralelamente durante o mesmo periacuteodo (na verdade em 1954) Nishitani finalizava
a composiccedilatildeo de seu ensaio sobre ldquoNiilismo e Śūnyatārdquo mais tarde incluiacutedo no volume Shūkyo
to wa Nanika abordado aqui ao longo do terceiro capiacutetulo Como foi possiacutevel observar em
Nishitani a saiacuteda do ponto de vista da vacuidade ou nada absoluto demandava a busca por
uma postura interior do ser humano na qual se tornava evidente nada mais senatildeo o elemento
inexplicaacutevel e inexprimiacutevel do fundamento uacuteltimo da realidade que era assumido agora como
oriente para o comportamento humano frente ao colapso do novo mundo A dificuldade inerente
de absorver a proposta de Nishitani todavia eacute ilustrada de maneira praacutetica quando ele aborda
uma questatildeo particular qual seja a relaccedilatildeo entre ser humano e natureza na imagem do jardim
zen Noacutes estamos dentro do jardim e natildeo somos apenas espectadores porque noacutes nos tornamos
parte da real manifestaccedilatildeo da expressatildeo da proacutepria experiecircncia iluminadora do arquiteto do
jardim O jardim eacute meu mestre Zen agora e eacute seu mestre Zen tambeacutem (NISHITANI 1992 55)
Quando Heidegger indica em sua conferecircncia que a essecircncia da teacutecnica natildeo eacute ela mesma nada
teacutecnico ele estaacute em um movimento similar ao de Nishitani chamando atenccedilatildeo para o fato de
que eacute necessaacuterio tambeacutem retornar a algo que natildeo pode ser submetido agrave objetividade cientiacutefica
da relaccedilatildeo sujeito-objeto que sustenta a tecnicizaccedilatildeo do mundo Neste sentido a saiacuteda de
Heidegger eacute ilustrada por meio de um dos conceitos mais enigmaacuteticos de toda sua obra
Gelassenheit Heidegger escreve ldquoTalvez se oculte na Gelassenheit uma accedilatildeo mais elevada do
que em todos os atos do mundo e do que nas maquinaccedilotildees das reliacutequias humanasrdquo (HEIDEGGER
1983a 41) O sentido contudo permanece oculto Resta apenas a ideia de que esta postura
evocada por Heidegger demanda um ldquodeixarrdquo (lassen) que atina para um recolhimento da
paradoxal ambiguidade do que se revela na essecircncia do humano
118
Ressoa tanto em Heidegger quanto em Nishitani uma raiz comum aquela na qual se
ldquoRenuncia aos sentidos agraves operaccedilotildees intelectuais a todo sensiacutevel e ao inteligiacutevelrdquo ainda mais
aquela onde se pede ldquoDespoja-te de todas as coisas que satildeo e ainda das que natildeo satildeo Deixa de
lado teu entender e esforccedila-te por subir o mais que possa ateacute unir-se com aquele que estaacute mais
aleacutem de todo ser e todo saberrdquo Estas palavras aqui propositalmente citadas sem a indicaccedilatildeo
bibliograacutefica satildeo do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita onde neoplatonismo e miacutestica se encontram
no caminho da negatividade Tanto o ldquoprestar atenccedilatildeo aos misteacuterios da naturezardquo em Nishitani
quando a ldquoabstenccedilatildeo da vontade por meio da natildeo-vontaderdquo o ldquoquerer o natildeo-quererrdquo em
Heidegger estatildeo depositados nas sentenccedilas do miacutestico siacuterio
Agora qual eacute este lugar ou natildeo-lugar aleacutem de todo ser e todo saber O que se revela
por meio do despojo e da supressatildeo de todo saber e todo o dizer Esta pergunta natildeo eacute respondida
Natildeo pode ser respondida O que se desvela aiacute eacute justamente o incoacutegnito o misteacuterio Como reagir
portanto frente a tal proposta de em meio a existecircncia contemporacircnea remar no contrafluxo
do sentido do mundo e buscar uma quietude absoluta no silecircncio que adveacutem do misteacuterio da
existecircncia Agrave esta pergunta tampouco se ofereceraacute resposta mas desta vez porque ela jaacute estaacute
respondida A reaccedilatildeo foi nomeada com diversos termos ao longo da histoacuteria recebendo distintas
designaccedilotildees Algumas tradiccedilotildees orientais optam por chama-la ldquoiluminaccedilatildeordquo
Por fim o conflito das fronteiras aqui abordado natildeo eacute um evento especiacutefico um
momento ou instante captaacutevel uma situaccedilatildeo ou circunstacircncia particular O conflito das
fronteiras eacute um caminho ou melhor uma caminhada Uma caminhada rumo ao desconhecido
cujo uacutenico sinal evidente acena para o clamor de um silecircncio ensurdecedor indicando que jaacute eacute
hora de se recolher
119
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ZAVALA Agustiacuten Jacinto (2013) ldquoTres criacuteticas a la Nada absoluta de Nishida Kitarocirc 1926-
1935 Socircda Kiichirocirc Tanabe Hajime y Tosaka Junrdquo IN Antonio Florentino Neto e Oswaldo
Giacoia Jr (orgs) O Nada absoluto e a superaccedilatildeo do niilismo Os fundamentos filosoacuteficos
da Escola de Kyoto Campinas Phi 95-154
ŽIŽEK Slavoj (2012) O ano em que sonhamos perigosamente Trad Rogeacuterio Bettoni Satildeo
Paulo Boitempo
6
Eacute preciso ainda ter caos dentro de si para dar
luz a uma estrela danccedilante
Friedrich Nietzsche Assim falou Zaratustra
7
RESUMO
O conflito das fronteiras se desdobra como um percurso natural da histoacuteria do pensamento
humano Torna-se manifesto todavia apenas mediante um expliacutecito choque cultural que
evidencia distintas formataccedilotildees conceituais Pensar este conflito pode esclarecer os enlaces
responsaacuteveis pelo desenvolvimento do pensamento contemporacircneo Esta tese pretende analisar
em um primeiro momento a histoacuteria do pensamento enquanto metafiacutesica apresentando um
diagnoacutestico da maneira pela qual o Ocidente impinge sua loacutegica categoacuterica Por conseguinte
apresenta a tradiccedilatildeo da negatividade evidenciando um pensamento para aleacutem da ontologia
claacutessica mediante uma henologia e uma meontologia no neoplatonismo e na miacutestica medieval
Por fim expotildee o pensamento do Extremo Oriente como possiblidade de recepccedilatildeo
contemporacircnea da negatividade e escapatoacuteria para a formataccedilatildeo ocidentalizante da filosofia
vigente
Palavras-chave Fronteiras Metafiacutesica Negatividade Extremo Oriente
8
ABSTRACT
The conflict of borderlines unfolds itself as a natural path in history of human thought It
becomes clear only through an explicit cultural clash which conveys distinct conceptual
formatting Thinking this conflict might enlighten the bindings responsible for development of
contemporary way of thought This thesis intent to analyse in a first moment the history of
thought as Metaphysics presenting a diagnostic towards the way through which the West
impinges its categorical logic Thereafter presents the tradition of Negativity showing a
thinking beyond Classic Ontology through a Henology and a Meontology in Neoplatonism and
Medieval Mysticism At the end exposes the Far Eastern thought as possibility of contemporary
reception of Negativity and escape from the Westernizer formatting of contemporary
philosophy
Key words Frontiers Metaphysics Negativity Far East
9
ZUSAMMENFASSUNG
Der Konflikt der Grenzen entfaltet sich als einen natuumlrlichen Weg in der Geschichte des
menschlichen Denkens Es wird nur klar durch eine explizite Kulturkampf die unterschiedliche
konzeptionelle Formatierung vermittelt Denken dieses Konflikts koumlnnte die Bindungen fuumlr die
Entwicklung der zeitgenoumlssischen Denkweise verantwortlich zu erleuchten Diese These
versuchen zu analysieren in einem ersten Moment die Geschichte des Denkens als Metaphysik
praumlsentiert eine Diagnose auf die Moumlglichkeit durch die der Westen trifft seine kategorische
Logik Danach praumlsentiert die Tradition der Negativitaumlt zeigt ein Denken jenseits Klassische
Ontologie durch eine Henologie und Meontologie im Neuplatonismus und mittelalterliche
Mystik Am Ende macht der Fernost gedacht als Moumlglichkeit der zeitgenoumlssischen Rezeption
von Negativitaumlt und Flucht aus der Westler Formatierung der zeitgenoumlssischen Philosophie
Schuumlsselwoumlrter Frontiers Metaphysik Negativitaumlt Fernost
10
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 11
1 ONTOLOGIA A SUBSTANTIVACcedilAtildeO DO OCIDENTE E O PROBLEMA DA METAFIacuteSICA 28
ENQUANTO DELIMITACcedilAtildeO DAS FRONTEIRAS DO PENSAMENTO
2 O CAMINHO DA NEGATIVIDADE HENOLOGIA E MEONTOLOGIA E A ULTRAPASSAGEM 61
DOS LIMITES DA METAFIacuteSICA
3 O EXTREMO ORIENTE E O CONFLITO DAS FRONTEIRAS A FILOSOFIA COMPARADA 89
INTERCULTURAL COMO CHAVE DE LEITURA PARA ALGUNS PROBLEMAS DO
PENSAMENTO CONTEMPORAcircNEO
CONCLUSAtildeO 113
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 119
11
INTRODUCcedilAtildeO
Aos 16 de abril de 2010 sob a avaliaccedilatildeo de uma banca composta pelos professores Oscar
Federico Bauchwitz Gisele Amaral dos Santos e Acylene Maria Cabral Ferreira defendi a
dissertaccedilatildeo de mestrado intitulada A caminho da fronteira Embora possa ainda dedicar mais
dez anos agrave correta composiccedilatildeo estiliacutestica daquele texto aleacutem da estruturaccedilatildeo dos argumentos
laacute natildeo tatildeo bem encadeados imagino ter alcanccedilado o objetivo de tornar claro natildeo apenas o intuito
do trabalho mas o problema movimentado pela questatildeo do conflito fronteiriccedilo de uma filosofia
comparada intercultural por meio de uma histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica
A questatildeo ldquoentre Heidegger e os japonesesrdquo (subtiacutetulo da dissertaccedilatildeo) abordada ao longo
dos dois anos de mestrado acadecircmico referia-se a uma virada de pontos de vista se em um
primeiro momento os orientais se perguntavam o quecirc a filosofia ocidental podia oferecer ao
pensamento e desenvolvimento do Extremo Oriente em um segundo momento os ocidentais
passaram a se perguntar de que forma os japoneses podiam acrescentar agrave filosofia um elemento
meditativo perdido no periacuteodo da consumaccedilatildeo da teacutecnica moderna e do cientificismo desde
suas perspectivas milenares de pensamento reflexivo
Ao passo em que a pesquisa ia se desenvolvendo o trabalho caminhou paulatinamente
rumo ao impacto violento surtido pelo diaacutelogo entre limites bem delineados de um Ocidente
estruturalmente metafiacutesico e um Oriente especulativo quase inefaacutevel para um leitor ocidental
A conclusatildeo extraiacuteda do caminho percorrido entre os anos de 2008 e 2010 apresentou antes de
qualquer soluccedilatildeo a constataccedilatildeo da instalaccedilatildeo de uma impertinecircncia petrificada no seio da
filosofia contemporacircnea sobre a qual pouco se pode acrescentar na dissoluccedilatildeo de problemas
mas muito se pode desdobrar no que tange ao entrelaccedilamento do alcance de um grau distinto
de movimentaccedilatildeo das arquitetocircnicas conceituais
12
Embora tais palavras pareccedilam abstratas em demasia (e de fato satildeo) o foco atingido se
concentrou em uma inquiriccedilatildeo a respeito do pensamento da linguagem e da verdade a partir
de um inusitado enigma sobre a negatividade do impensaacutevel ou seja sobre o silecircncio que
emerge no preciso momento no qual o pensamento eacute estarrecido e a liacutengua cala
A armadilha construiacuteda a partir das muacuteltiplas tentativas de elaboraccedilatildeo de conceitos afeta
natildeo somente a formataccedilatildeo silogiacutestica do intelecto humano comum mas ainda as
particularidades dos diversos modos de expressatildeo geograficamente distintos Correndo o risco
de se tornar antes uma antropologia filosoacutefica do que propriamente uma histoacuteria e criacutetica da
metafiacutesica o trabalhou refletiu uma anaacutelise agrave proacutepria concepccedilatildeo pela qual se distingue uma
filosofia da outra execrando qualquer nacionalismo filosoacutefico e investigando as questotildees que
envolvem a existecircncia humana dentro de seu modo relacional com o ser e com o ambiente que
a cerca O resultado foi a apresentaccedilatildeo de uma filosofia comparada intercultural que aparece
natildeo simplesmente como um campo disciplina ou subaacuterea da filosofia mas antes como uma
maneira pela qual eacute possiacutevel pensar filosoficamente para aleacutem das fronteiras de uma mera
linguagem de primeira ordem Dentro deste contexto nasce a hipoacutetese do tema o conflito das
fronteiras a partir do pressuposto de uma abordagem aos temas centrais do pensamento
contemporacircneo sustentando a interculturalidade filosoacutefica como aporte central
A proposiccedilatildeo fundamental desta tese adveacutem de alguns questionamentos particulares e
pontuais em um fluxo semelhante ao da dissertaccedilatildeo de 2010 Em abril de 2009 enquanto ainda
trabalhava no texto do mestrado teve lugar no campus da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte o III Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica comissionado pelos professores Oscar
Federico Bauchwitz Jaimir Conte Maria da Paz Nunes de Medeiros e Markus Figueira da Silva
O evento marcava a consolidaccedilatildeo da linha de pesquisa em Metafiacutesica do Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Filosofia da universidade trazendo em sua terceira ediccedilatildeo o tema O que eacute
metafiacutesica Em homenagem aos oitenta anos da preleccedilatildeo homocircnima de Martin Heidegger
13
A conferecircncia pronunciada por Heidegger aos 24 de julho de 1929 foi preparada como
aula inaugural para a assunccedilatildeo da caacutetedra de filosofia que antes pertencera a Edmund Husserl
na Albert-Luumldwigs Universitaumlt Freiburg im Breisgau O escrito se tornou um dos mais
emblemaacuteticos conhecidos e discutidos textos de Heidegger Talvez o fator mais impactante da
preleccedilatildeo seja antes mesmo da abordagem temaacutetica o meacutetodo pouco usual conforme o qual o
questionamento eacute elaborado Heidegger inicia a aula dizendo que embora a questatildeo suscite a
expectativa de que se falaraacute sobre a metafiacutesica ele iraacute na verdade discutir uma questatildeo
metafiacutesica particular proporcionando uma movimentaccedilatildeo em seu interior e habilitando a
oportunidade para que a ela apareccedila por si soacute a partir do problema levantado (cf HEIDEGGER
1976 103) Deixar a metafiacutesica se apresentar por si soacute antes do que sobre ela discorrer
evidencia uma feiccedilatildeo um tanto distinta da abordagem de Heidegger ao problema uma de suas
marcas registradas todavia
Raras vezes a tradiccedilatildeo ocidental se deparou com tal niacutevel de heterodoxia no que tange
agrave instruccedilatildeo filosoacutefica (talvez apenas Platatildeo tenha cunhado semelhante meacutetodo ao perseguir o
pescador com o anzol antes de se aproximar da figura do sofista por exemplo ndash natildeo consigo
pensar em outras ilustraccedilotildees agora mesmo embora certamente elas existam) Uma linha de
raciociacutenio como esta aproxima-se muito mais de uma postura oriental
Durante o Coloacutequio aleacutem de retomar pela eneacutesima vez a leitura da preleccedilatildeo de
Heidegger lembro-me de me dedicar agrave leitura da claacutessica obra propedecircutica de Kaiten Nukariya
The Religion of Samurai (1913) a primeira obra sobre zen budismo publicada no Ocidente (em
liacutengua ocidental) Apoacutes uma breve introduccedilatildeo sobre a origem do budismo na Iacutendia e o percurso
de Śākyamuni Siddhārta Gautama (o Buddha Śākyamuni शाकयमनि) Nukariya relata a maneira
pela qual o monge Bodhidharma introduz o budismo na China destacando que seu meacutetodo era
inteiramente diferente dos outros instrutores de ensino ordinaacuterios
14
Sobre Bodhidharma Nukariya relata ldquoEle natildeo explicaria nenhum problema ao
estudante mas simplesmente ajudaacute-lo-ia a ser iluminado colocando-o um abrupto poreacutem eficaz
questionamentordquo (NUKARIYA 2006 10) Com esta metodologia tem iniacutecio a tradiccedilatildeo de
budismo chinecircs nomeada chrsquoan (dʑjen 禪) uma traduccedilatildeo do termo sacircnscrito dhyāna (धयाि) cujo
significado mais geral seria ldquomeditaccedilatildeordquo ou ldquopensamentordquo que futuramente seria lido na
pronuacutencia japonesa (くんよみ kun-yomi) do ideograma como zen (禅 ) Apoacutes expor esta
caracteriacutestica iacutempar do ensino de Bodhidharma Nukariya ainda relata uma breve histoacuteria na
qual um tal Shang Kwang havia requisitado ao mestre que ldquolhe pacificasse a menterdquo
Prontamente Bodhidharma teria respondido ldquoTraga-me aqui sua mente ante mim para que eu
a pacifiquerdquo e Shang Kwang teria replicado ldquomas isto eacute impossiacutevelrdquo recebendo em seguida
a resposta ldquoentatildeo jaacute pacifiquei sua menterdquo Shang Kwang foi instantaneamente iluminado
Certamente Martin Heidegger natildeo exige de seus ouvintes leitores e interlocutores uma
iluminaccedilatildeo tatildeo abrupta e desprovida de raciociacutenio loacutegico mas nem por isto suas reivindicaccedilotildees
satildeo menos ousadas e intensas ou sua meditaccedilatildeo menos profunda Heidegger propocircs diversas
reflexotildees que extraiacutedas de seu contexto especiacutefico configuram-se tatildeo inusitadas quanto as
passagens da tradiccedilatildeo chrsquoan ou zen sendo por vezes consideradas mesmo impertinentes Eacute o
caso de uma de suas mais arrojadas e emblemaacuteticas afirmaccedilotildees ldquoO mais grave eacute que natildeo
pensamosrdquo (HEIDEGGER 2002 6) Desconsiderando o sentido ao qual a sentenccedila pertence
certamente as palavras de Heidegger parecem uma afronta Todavia o leitor atento sabe que
Heidegger se refere agrave distinccedilatildeo entre um pensamento calculador (rechnende Denken) e um
pensamento meditativo (Besinnung) reportando-se ao velamento deste uacuteltimo e da supremacia
exclusiva do primeiro por meio do qual se faz ciecircncia e se daacute o desenvolvimento estrutural da
condiccedilatildeo tecnoloacutegica imperiosa Eacute justamente dentro deste fluxo que Heidegger afirma a
predominacircncia do pensamento cientiacutefico tambeacutem em Was ist Metaphysik
15
Para ingressar no interior da metafiacutesica Heidegger chama atenccedilatildeo ao fato de que a
existecircncia humana eacute hoje sobremaneira norteada pela ciecircncia Embora alguns opositores ainda
resistam agrave tal afirmaccedilatildeo natildeo eacute todavia difiacutecil convencecirc-los do contraacuterio argumentando em
favor da tese de Heidegger Natildeo se trata apenas de afirmar que o ser humano se apoia e confia
uacutenica e exclusivamente (quiccedilaacute mesmo cegamente) na ciecircncia como modo de desenvolvimento
e sustentaccedilatildeo da vida humana na Terra Antes disto e mais grave ainda trata-se de constatar
que a maneira pela qual o ser humano hoje pensa eacute tatildeo somente cientiacutefica mesmo em casos nos
quais o discurso supostamente se volta para um tema espiritual ou de feacute (ou qualquer outro
assunto) ndash a despeito de qualquer pretensa e torta teosofia eacute ainda a teologia a ciecircncia reinante
dos seminaacuterios sem embargo Independente do tema ou assunto da circunstacircncia ou
necessidade a maneira de proceder eacute jaacute sempre cientiacutefica sustentada por uma loacutegica inflexiacutevel
que imputa sua norma de que ldquosendo algo aquilo mesmo isto ou bem eacute ou bem natildeo eacute natildeo
havendo uma terceira opccedilatildeordquo
Em outras palavras parece ter se ocultado na mente humana qualquer outro modo de
pensar que natildeo seja o propriamente cientiacutefico Este modo cientiacutefico de pensar possui algumas
caracteriacutestica pelas quais se pode evidenciaacute-lo estritamente desde um triacuteplice entendimento que
compreende ldquoreferecircncia ao mundordquo ldquoposturardquo e ldquoirrupccedilatildeordquo Heidegger explica estes pontos
ldquoAquilo que na referecircncia ao mundo permanece eacute o ente em si mesmo ndash e mais nada Aquilo
que lidera toda postura eacute o ente em si mesmo ndash e nada mais Aquilo que faz acontecer a
discussatildeo investigativa da irrupccedilatildeo eacute o ente em si mesmo ndash e aleacutem disto nadardquo (IDEM OP CIT
105) A cientificidade da existecircncia humana se expressa mediante uma projeccedilatildeo ao ente e nada
mais Ao afirmar a determinaccedilatildeo da ciecircncia na vida e conduta humanas Heidegger quer deixar
ver sobretudo isto o fato de que hoje soacute eacute validado o discurso de um sujeito cujo objeto
cognosciacutevel eacute um ente este mesmo que subjacente obsta-lhe Dentro da relaccedilatildeo entre sujeito
e objeto toda uma tradiccedilatildeo se fundamenta e doravante prossegue da mesma maneira
16
Fazendo uma revisatildeo dos passos da histoacuteria do pensamento humano seria mais ou menos
faacutecil portanto imaginar como a partir da metafiacutesica claacutessica se desdobra o cientificismo
sobretudo tendo em vista a doutrina das Categorias de Aristoacuteteles aleacutem da tatildeo aclamada
ldquociecircncia do ente enquanto enterdquo Contudo natildeo eacute este o alvo de Heidegger Deixar a metafiacutesica
aparecer por si soacute deve contemplar a totalidade do questionamento proposto e natildeo um
historicismo vulgar Que todo raciociacutenio eacute regulado e direcionado pelo ente facilmente
constata-se Agora bem o que se passa com a outra parte da inquiriccedilatildeo qual seja o ldquonada
maisrdquo Heidegger formula a questatildeo ldquoA ciecircncia natildeo quer saber do nada Mas certamente em
sua permanecircncia ao manifestar sua proacutepria natureza chama o nada para ajudar O que ela
rejeita eacute necessaacuterio para classificaacute-la Que ambiacutegua essecircncia se revela aiacuterdquo (ID IBIDEM 106) Ao
perquirir o ente e aleacutem disto nada o elemento que confere a exatidatildeo de sua pesquisa eacute
auxiliado pelo ldquonadardquo ou seja trata-se disto e nada mais (por mais redundante e ambivalente
que soe ateacute mesmo um pouco non sense) Heidegger pergunta ldquoO que acontece com o nadardquo
(ID IBID) ou ainda para onde vai esse nada em meio agrave existecircncia cientiacutefica
Eacute justamente a inusitada apariccedilatildeo deste nada que revela o incocircmodo de um elemento
impensaacutevel e inexprimiacutevel que natildeo se dobra ante agrave relaccedilatildeo sujeito-objeto Natildeo eacute preciso aqui
destrinchar todo o caminho percorrido por Heidegger em Was ist Metaphysik Trata-se de um
texto bastante lido e amplamente comentado Basta apenas pontuar a sentenccedila central da
conferecircncia (ou a pergunta-condutora a Leitfrage) por meio da qual emerge a resposta agrave
questatildeo ldquoo que eacute metafiacutesicardquo ldquoPor que haacute absolutamente o ente e natildeo antes nadardquo (ID IBID
122) O extraordinaacuterio da questatildeo eacute justamente a capacidade do ser humano em por ela
perguntar A capacidade de questionar ldquopor que natildeo nadardquo define uma disposiccedilatildeo fundamental
da existecircncia quiccedilaacute mesmo aquela ocultada pelo modo cientiacutefico de existir (ou seja
paradoxalmente este mesmo modo eacute responsaacutevel por evidenciar o que nele se perde)
17
A disposiccedilatildeo que regula a eleiccedilatildeo do modo cientiacutefico de pensar tem em vista
salvaguardar o humano do abismo (da falta de fundamento) que se abre quando o nada emerge
silencia o discurso e joga o ser humano em uma situaccedilatildeo incocircmoda uma anguacutestia profunda
Quase como um mestre zen Heidegger deixa a metafiacutesica se abrir natildeo pela pergunta nem
sequer pela acircnsia de prover ao interlocutor (ou a si mesmo) uma resposta mas pela simples
possibilidade e capacidade de perguntar A metafiacutesica neste sentido perdura antes como uma
decisatildeo Ao que parece por este motivo Heidegger cita um trecho de Eacutedipo em Colonos de
Soacutefocles no posfaacutecio agrave preleccedilatildeo (em 1943) destacando os versos (em sua traduccedilatildeo particular
por mim aqui pobremente e quiccedilaacute mesmo irresponsavelmente adaptada) que dizem
ἀλλ᾽ ἀποπαύετε μηδ᾽ ἐπὶ πλείω
θρῆνον ἐγείρετε˙
πάντως γὰρ ἔχει τάδε κῡρος
Mas paremos e nunca mais a partir de agora
despertaremos o lamento
Em todos os lugares se deteacutem o evento
assegurando-lhe uma decisatildeo pela conclusatildeo (ID IBID 312)
A ldquodecisatildeo pela conclusatildeordquo coloniza todos os lugares e se deteacutem a partir de agora em uma
posiccedilatildeo da qual natildeo mais se sairaacute A anguacutestia revelada a partir do pensamento em torno ao
nada manifesta os limites da linguagem e vislumbra o destino do ente no ser em sua plenitude
e predominacircncia Mas para aleacutem da constataccedilatildeo da indigecircncia da linguagem haacute todavia uma
possibilidade de abordar efetivamente esse nada Como eacute possiacutevel pensar para aleacutem da
delimitaccedilatildeo entificante da referecircncia ao mundo da postura e da irrupccedilatildeo Haacute um caminho de
ultrapassagem e superaccedilatildeo possiacutevel ainda nos dias de hoje
18
Ao passo em que avanccedilava nas leituras e Heidegger e em algumas outras esta se tornou
a pergunta-chave pela qual imaginava atingir certo direcionamento temaacutetico A despeito da
disposiccedilatildeo de humor apresentada na conferecircncia bem como das consideraccedilotildees do posfaacutecio de
1943 os trabalhos de Heidegger dos anos de 1930 em diante datildeo a entender um claro
direcionamento pelo qual os elementos abandonados pela entificaccedilatildeo do pensamento podem ser
evidenciados qual seja a partir da poesia Os versos de Soacutefocles segundo o proacuteprio Heidegger
ldquoa uacuteltima poesia do uacuteltimo poeta gregordquo natildeo estatildeo ali dispostos sem motivo Tambeacutem natildeo eacute
sem razatildeo que a partir de aiacute haacute uma incansaacutevel busca pela poesia de Friedrich Houmllderlin (aleacutem
de Georg Trakl Stephan George Rainer Maria Rilke e de outros poetas escolhidos por
Heidegger) Ateacute certo ponto eacute possiacutevel afirmar que Heidegger encontra na poesia a
possibilidade de superar a linguagem por meio da proacutepria linguagem Em alguns outros
momentos uma meditaccedilatildeo de teor semelhante aparece como no encontro entre Heidegger e os
japoneses (como apresentei na dissertaccedilatildeo de 2010) Contudo restava ainda buscar os modos
de reflexatildeo que natildeo simplesmente podiam ir aleacutem da expressatildeo da ciecircncia do ente enquanto
ente mas ainda colocaacute-la em questionamento mediante outros meacutetodos
Foi na abertura do III Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica que minhas inquietaccedilotildees
comeccedilaram a se asseverar e ganhar corpo para o que viria a ser esta tese A conferecircncia
inaugural do evento foi sobremaneira marcante neste processo O professor Gilvan Fogel da
Universidade Federal do Rio Janeiro havia sido convidado para encerrar o primeiro dia de
evento Ele apresentou naquela noite a conferecircncia O que eacute metafiacutesica Como ele mesmo frisou
ldquonatildeo a pergunta mas a respostardquo Havia sem embargo a intenccedilatildeo de responder a pergunta
em um certo direcionamento eacute claro O texto vinha ainda acompanhado de um subtiacutetulo (com
o qual foi publicado como tiacutetulo oficial alguns anos depois diga-se de passagem) Sobre a
metafiacutesica ou a respeito do jejum O mote para o subtiacutetulo o proacuteprio professor o explica na
passagem inicial do texto que gostaria de citar por completo agora mesmo
19
O subtiacutetulo pode soar estranho insoacutelito e natildeo muito seacuterio Mas pelo que ele insinua
pretende anunciar algo seacuterio mesmo muito seacuterio a saber a metafiacutesica E a inspiraccedilatildeo
ou a motivaccedilatildeo que propicia o encaminhamento para a questatildeo anunciada a
metafiacutesica vem de uma obra igualmente seacuteria muito seacuteria ainda que se possa melhor
que se deva dela se ocupar tambeacutem com grandes e gostosas gargalhadas ndash aquelas que
no destampar do riso sacudindo a barriga bem solta e largada deixam escorrer
viacutesceras pela boca afora Estou me referindo ao Dom Quixote o Engenhoso Fidalgo
Dom Quixote lsquode la Mancharsquo ndash o ldquoda Triste Figurardquo
Entre as poesias que preludiam a primeira parte e que homenageiam seus personagens
maiores temos o uacuteltimo que eacute um diaacutelogo em forma de soneto entre Babieca o
cavalo de El Cid e Rocinante o grande rocim o pangareacute erado de Dom Quixote A
certa altura do diaacutelogo-soneto Babieca pergunta ldquoSeraacute tolice amarrdquo e Rocinante
responde ldquoNatildeo eacute muito prudenterdquo Babieca retruca ldquoEstaacutes metafiacutesicordquo E Rocinante
contesta enfaacutetico ldquoEacute que natildeo comordquo (FOGEL 2011 101)
A passagem sugere que a metafiacutesica eacute antes de tudo coisa de fome Por isto ldquoa respeito do jejumrdquo
denuncia a indisposiccedilatildeo que envolve a metafiacutesica A metafiacutesica eacute portanto certo incocircmodo que
eacute tambeacutem necessidade premente decorrente de certa privaccedilatildeo A partir disto Fogel delineia o
tipo de jejum ao qual se refere natildeo se trata de um jejum nutricional alimentiacutecio mas jejum de
vida conforme ele mesmo diz ldquo() natildeo vida no sentido bioloacutegico mas no sentido banal e
corriqueiro como falamos da vida de ldquonossa vidardquo ndash que ela eacute boa ou ruim ou um buracordquo
(IDEM IBIDEM 102) Esta vida a vida imanente a vida do cotidiano do dia-a-dia esta mesma
que ocupa o tempo e o espaccedilo sofre priva-se absteacutem-se Esta abstenccedilatildeo e privaccedilatildeo satildeo a
condiccedilatildeo pela qual reverbera sua constituiccedilatildeo enquanto sujeito ndash e nasce aiacute uma interpretaccedilatildeo
do que eacute enfim metafiacutesica A partir da conferecircncia de Fogel aleacutem de algumas outras
consideraccedilotildees comecei a ponderar a maneira pela qual abordaria o problema
20
Natildeo por meio de uma definiccedilatildeo conceitual acontecimento histoacuterico ou muacutetuo
consentimento temaacutetico mas por meio de uma experiecircncia de pensamento que sem deixar de
lado nenhum dos elementos supracitados configura-se antes como algo intriacutenseco agrave proacutepria
natureza do pensar Ponderando as consideraccedilotildees da conferecircncia de Heidegger a metafiacutesica se
deixa mostrar como uma decisatildeo pela conclusatildeo Um iacutempeto maior do ser humano em
resguardar sua condiccedilatildeo de pacificidade A humanidade teme o caos teme o desalinho receia
o incoacutegnito e inexprimiacutevel Elege por isto seu caminho de seguranccedila com aquilo que lhe eacute
papaacutevel o ente enquanto ente e nada mais Nada quer saber do nada que nada lhe oferece aleacutem
de um indisposto silecircncio um insoacutelito vazio Mediante esta postura embora sob o risco de
ocultar algo em si mesmo que talvez lhe sirva para alcanccedilar siacutetios recocircnditos do misteacuterio de
sua proacutepria existecircncia constitui-se o ser humano um metafiacutesico Sem embargo eacute preciso abster-
se de algo em prol disto ou daquilo que se lhe afigura mais propiacutecio ao momento Fogel enxerga
isto como privaccedilatildeo como jejum como fome Fica muito claro em sua interpretaccedilatildeo o caraacuteter
inflexiacutevel da decisatildeo pela conclusatildeo sobretudo quando traz agrave luz o curioso caso de Vicent van
Gogh
Fogel cita uma carta que van Gogh teria enviado em maio de 1888 a seu irmatildeo Theacuteo
onde descreve sua nova moradia e ao mesmo tempo atelier afirmando que o local eacute pouco
atraente para desenvolver qualquer tipo de flerte ou paquera acrescentando que dificilmente
enxerga como compatiacuteveis o trabalhar e o farrear (faire la noce) A verdade eacute que van Gogh
natildeo possui outra opccedilatildeo senatildeo se privar da diversatildeo do faire la noce natildeo porque eacute asceta ou
abstecircmio nem porque precisa dedicar mais tempo ao seu trabalho ou pagar suas contas (todos
sabem da condiccedilatildeo por vezes paupeacuterrima na qual ele se encontrou ao longo de seu percurso)
mas por ser artista por ser pintor por pintar Urge no artista uma realidade que parece muito
mais real que a vida comum na qual o farrear remete ao contentamento agrave felicidade Natildeo viver
a vida para van Gogh seria natildeo pintar
21
Se viver a vida eacute buscar este contentamento esta felicidade entatildeo van Gogh vive para
natildeo-viver Natildeo-viver se torna paradoxalmente a expressatildeo maacutexima da vida metafisicamente
entendida Fogel completa ldquoE por que natildeo viver este natildeo-viver seria ingratidatildeo Seria isso a
saber a distacircncia o agrave parte um dom um presente uma graccedilardquo (IDEM IBIDEM 105)
acrescentando ainda ldquoA metafiacutesica desde que jejum abstinecircncia de vida de viver seria
igualmente muita vida e natildeo cumpri-la natildeo realizaacute-la isto eacute natildeo pensar uma grande
ingratidatildeordquo (ID IBID) e por fim sugerindo ldquoAqui precisa-se confessar viver natildeo eacute preciso
Pintar pensar fazer quadros fazer metafiacutesica ndash isso eacute precisordquo (ID IBID) Ressalte-se o tom das
inquiriccedilotildees da interrogaccedilatildeo acompanhada pela exclamaccedilatildeo A precisatildeo da qual fala fazendo
menccedilatildeo a Fernando Pessoa eacute a necessidade de justeza de ser preciso e acurado destro
rigorosamente alinhado ao fazer metafiacutesica Assim se configura algo muito iacutentimo e sem
embargo inevitaacutevel na natureza humana
Fogel prossegue sua exposiccedilatildeo chamando ao diaacutelogo o Zaratustra de Friedrich
Nietzsche especificamente a seccedilatildeo intitulada Da Visatildeo e do Enigma na qual reincide o anuacutencio
da famosa doutrina do Eterno Retorno citando o trecho que diz
O homem eacute todavia o mais corajoso animal assim ele supera todo e cada animal Com
o jogo sonoro supera ele tambeacutem a dor Mas a dor humana eacute a dor mais profunda A
coragem tambeacutem indica a tontura morte em abismos e onde estaria o homem senatildeo
em abismos Ele natildeo vecirc a si mesmo ndash vecirc abismos (NIETZSCHE 2005 119)
Para Fogel o ldquoverrdquo natildeo denuncia uma observaccedilatildeo circunvisatildeo ou vislumbre mas antes um
acontecimento uma iluminaccedilatildeo um tornar visiacutevel Torna-se visiacutevel o abismo o sem fundo
sem fundamento Ao que parece quanto mais o ser humano contempla sua proacutepria existecircncia
mais sem chatildeo fica maior eacute a falta de fundamento e com maior radicalidade se abre um abismo
frente aos seus peacutes
22
Eacute possiacutevel todavia prosseguir caminhando ao lado de Nietzsche e Heidegger bem como
por meio das reflexotildees e interpretaccedilotildees oferecidas por Fogel buscando alcanccedilar uma feiccedilatildeo da
vida humana que permita descortinar a proveniecircncia metafiacutesica de seu percurso e ateacute mesmo
suscitando uma ultrapassagem deste fenocircmeno Contudo eacute necessaacuterio ainda precisar com maior
cuidado os termos contidos na questatildeo Faz parte do labor filosoacutefico se afundar mais e mais em
algo que por si soacute jaacute eacute bastante fundo
Natildeo apenas os pensamentos de Nietzsche e Heidegger oferecem uma especulaccedilatildeo de
formidaacutevel profundidade difiacutecil de ser absorvida em primeira matildeo como tambeacutem por vezes
pode se mostrar demasiado complexo empreender um rastreamento do sentido originaacuterio das
palavras e sentenccedilas salvo mediante uma anaacutelise completa (empresa complicadiacutessima
provavelmente impossiacutevel) de suas obras Mesmo assim talvez ainda natildeo se mostre com
suficiente nitidez se natildeo houver de antematildeo uma explanaccedilatildeo das fontes e referecircncias cruzadas
Com estas ideias em mente buscando avanccedilar cada vez mais no tema e sobre ele meditar
com cada vez mais dedicada atenccedilatildeo e profundidade tentando ampliar com ferocidade o
vocabulaacuterio (para fazer minhas as palavras de Marco Lucchesi) outro escrito me sobreveio
durante o processo de composiccedilatildeo das hipoacuteteses contidas neste trabalho Em Nihilismo e
Neoplatonismo (2003) Oscar Federico Bauchwitz traccedila algumas linhas que especificam a
condiccedilatildeo por meio da qual o problema efetivamente se apresenta
Haacute no texto de Bauchwitz tambeacutem um necessaacuterio retorno a Nietzsche e Heidegger Natildeo
apenas dentro do contexto de um estudo da metafiacutesica enquanto histoacuteria intelectual mas ainda
constatando os tempos onde ela se apresenta como formataccedilatildeo do modo de ldquoagir-pensarrdquo torna-
se imprescindiacutevel resgatar a lembranccedila de que ldquo() com Nietzsche se estabelece uma criacutetica da
metafiacutesica que acaba por homologar o seu oacutebitordquo (BAUCHWTIZ 2003b 169) Como explica
Bauchwitz a declaraccedilatildeo da morte da metafiacutesica eacute aquela mesma da morte do platonismo
cristianismo niilismo e outros sinocircnimos para o mesmo fenocircmeno
23
Esta morte natildeo eacute todavia apenas uma declaraccedilatildeo da inexistecircncia corrente do pensamento
metafiacutesico senatildeo sua consumaccedilatildeo total e absoluta A ldquociecircncia do ente enquanto enterdquo entifica
tudo aquilo que outrora foi nomeado vida (φύσις) pelos gregos dos periacuteodos arcaico e claacutessico
ndash das coisas ao redor aos pensamentos e aos deuses A entificaccedilatildeo do mundo em torno eacute sem
sombra de duacutevidas a maneira pela qual a ciecircncia vigente concebe o mundo configurando o que
Heidegger havia chamado de ldquoreferecircncia ao mundordquo A entificaccedilatildeo do pensamento por sua vez
denota a ldquoposturardquo tambeacutem mencionada por Heidegger aquela mesma segundo a qual haacute uma
maneira ldquocorretardquo de pensar Ao passo que a entificaccedilatildeo dos deuses um pouco mais complicada
apresenta-se como ldquoirrupccedilatildeordquo na qual a circunvisatildeo resultante dos dois elementos acima
mencionados denuncia a morte de deus a fuga dos deuses o viver sem o divino sem o
iluminado sem o deslumbre Desatados os laccedilos entre ser humano e divindade Bauchwitz
questiona ldquoO que natildeo pode o homem modernordquo (IDEM IBIDEM 170) questionamento que
poderia ainda ser vertido nos termos (mais ou menos) de Dostoievsky ldquose deus morreu entatildeo
tudo eacute permitidordquo ou ainda nos (mais ou menos novamente) de Heidegger ldquose apagou da
histoacuteria universal o esplendor da divindade Essa eacute a eacutepoca da noite do mundordquo Contudo para
Bauchwitz perdura algo no labor filosoacutefico que torna liacutecito novamente regressar agrave questatildeo Ele
explica que ldquoResgatar a forccedila mais originaacuteria das palavras eacute o ofiacutecio do filoacutesofo Por isso
dizemos que a miacutestica se mostra no fechar de olhos no fechar da bocardquo (ID IBID 173) Recordo-
me acompanhando os seminaacuterios matinais do professor Bauchwitz de ouvir certa vez a
sentenccedila ldquoo miacutestico estaacute sempre em conflito com a linguagemrdquo Conflito ou confronto natildeo me
lembro muito bem Havia de fato escrito a frase literalmente ao peacute da paacutegina de algum livro
(ou alguma fotocoacutepia) que agora mesmo esqueccedilo qual era e natildeo consigo encontrar
Independente das palavras exatas o que se apresenta no texto de Bauchwitz eacute a sugestatildeo de um
caminho para este resgate por meio de um conflito o confronto suscitado pela miacutestica
24
Bauchwitz escreve ldquoO miacutestico eacute em primeiro lugar aquele que acolhe o misteacuterio dentro
de si recolhendo em silecircncio o sentido oculto da realidade soacute depois eacute que o silecircncio rompe a
barreira dos dentes para mostrar-se linguagemrdquo (ID IBID) E ainda prossegue especificando que
ldquoPor isso a miacutestica eacute uma experiecircncia radical da liberdade proacutepria Abrindo matildeo de um mundo
que clama sua atenccedilatildeo o miacutestico encontra-se com o que nele eacute totalmente incoacutegnito e
incognosciacutevel um eu que se mostra como puro nadardquo (ID IBID) A maneira pela qual Bauchwitz
iraacute desdobrar a explicaccedilatildeo destas sentenccedilas sobremaneira enigmaacuteticas percorreraacute trecircs
pensadores que marcam a tradiccedilatildeo do neoplatonismo e da chamada miacutestica medieval quais
sejam Pseudo-Dioniacutesio Areopagita Joatildeo Escoto Eriuacutegena e Mestre Eckhart Contudo o que
havia me saltado aos olhos antes da eleiccedilatildeo temaacutetica autoral ou metodoloacutegica havia sido a
sentenccedila ldquoum eu que se mostra como puro nadardquo Jaacute havia encontrado semelhante formulaccedilatildeo
todavia nunca em autores ocidentais Remeti diretamente a maneira pela qual a tradiccedilatildeo
mahāyāna do budismo do leste asiaacutetico havia compreendido a noccedilatildeo do natildeo-si-mesmo ou natildeo-
ego (anātman अितमि) como dissoluccedilatildeo do eu por meio da tensatildeo entre forma (ou fenocircmeno ou
ainda aparecircncia rūpa रप) e nada (ou vacuidade śūnyatā शनयता) Estas ideias derivam
diretamente do chamado Cacircnone Pāḷi tendo sido transmitidas em sacircnscrito pelo Sūtra do
Coraccedilatildeo (Prajntildeāpāramitā Hṛdaya परझञापारनमताहरदय) ateacute alcanccedilarem formas mais refinadas no
budismo chrsquoan e no zen budismo japonecircs assumindo as configuraccedilotildees de ldquoformardquo ou
ldquoaparecircnciardquo enquanto shiki (色) e ldquonadardquo ou ldquovacuidaderdquo enquanto kū (空) elementos centrais
do pensamento da filosofia japonesa contemporacircnea da Escola de Kyōto (e que tambeacutem havia
abordado brevemente em minha dissertaccedilatildeo de mestrado) Tornou-se imperioso investigar ateacute
que ponto tais ideias se aproximam ou comungam de princiacutepios convergentes aleacutem da maneira
como elas repercutem em suas tradiccedilotildees e particularidades Mais uma vez encontrava-me frente
ao sem-fim nuacutemero de possibilidades comparativas e complementares
25
Contudo temia o risco de cair no engodo certa vez denunciado por Immanuel Kant
quando afirmou em seus Prolegomena zu einer jeden kuumlnftigen Metaphyysik (1783) que ldquo()
dificilmente se espera que natildeo seja possiacutevel descobrir analogias para cada nova ideia entre ditos
de eras passadasrdquo (KANT 1911 7) natildeo havendo grande meacuterito nisto e sendo necessaacuterio admitir
que estes historiadores da filosofia ocupados com tal empreendimento devam antes aguardar
que os ldquoverdadeiros filoacutesofosrdquo esgotem as fontes da razatildeo Sob pena de realizar uma mera
comparaccedilatildeo friacutevola (embora com a consciecircncia de que passo longe de ser um ldquoverdadeiro
filoacutesofordquo ao menos no sentido Kantiano ndash talvez o seja em outro digamos mais Ginsbergiano
de pura pretensatildeo mas certamente natildeo muito talento) ocupei-me em corretamente designar o
problema que me afligia de modo que fosse possiacutevel corretamente endireitar o roteiro da tese
Era preciso encontrar um mote mesmo que ele natildeo deixasse ver claramente os passos a serem
percorridos mas que provessem alguma direccedilatildeo
Tendo isto em vista natildeo podia negar que o interesse pelo que ousei chamar de ldquoconflito
das fronteirasrdquo crescia a partir de um ldquopar de viacutergulasrdquo que aparentemente haviam escapado agrave
anaacutelise da histoacuteria do pensamento Em outras palavras um determinado momento no qual o
transcurso metafiacutesico foi levemente desviado em uma guinada espontacircnea e natural como um
marinheiro que sutilmente move o leme para a esquerda ou para direita ao perceber o advento
de uma portentosa onda logo atraacutes de si soltando o motor e deixando o barco ser levado pelo
mar ndash saacutebia decisatildeo em momentos de tormenta (passei por esta situaccedilatildeo certa vez em mar
aberto transitando entre Paraty e uma praia recocircndita Pouso do Cajaiacuteba se natildeo me falha a
memoacuteria gostaria de poder descrever em pormenores a experiecircncia que seria proveitosa ao
leitor em termos ilustrativos mas estava muito enjoado no barco para congregar detalhes
miacutesticos em minha massa cinzenta) E eram momentos de tormenta Como poderiam natildeo ser
Sendo assim estabeleci um conveniente itineraacuterio (ao menos sob meu ponto de vista) que
compartilho antes de iniciar o trabalho
26
O primeiro passo importante eacute estabelecer dentro de quais termos se apresenta a
metafiacutesica pela qual se nomeia a histoacuteria do pensamento ocidental O primeiro capiacutetulo da tese
intitulado Ontologia a substantivaccedilatildeo do Ocidente e a delimitaccedilatildeo das fronteiras do
pensamento ocupa-se de tal apresentaccedilatildeo e eacute na verdade bastante simples apesar do tiacutetulo
pomposo A despeito da abordagem histoacuterico-conceitual desdobrada em um primeiro momento
o capiacutetulo segue em consonacircncia com a avaliaccedilatildeo de Martin Heidegger assumindo-o como
interlocutor e inteacuterprete da histoacuteria e criacutetica da metafiacutesic Haacute aqui uma ecircnfase nas leituras por
meio das quais Heidegger caracterizou de maneira direta a passagem de uma fisiologia grega
claacutessica (por ele nomeada ldquopensamento originaacuteriordquo) para o acircmbito da ontologia latina e o modo
conforme o qual a proacutepria ideia de ldquoserrdquo eacute compreendida de maneira tatildeo somente substantivada
a partir de seu particiacutepio presente ldquoenterdquo Um necessaacuterio retorno cronoloacutegico-regressivo eacute
estabelecido do fim ao iniacutecio da modernidade pontuando autores como Jacob Lorhard e
Francisco Suaacuterez Todavia o objetivo principal do capiacutetulo eacute compreender este modo de
substantivaccedilatildeo e quais as consequecircncias disto para o pensamento em um sentido geral (a
delimitaccedilatildeo de suas fronteiras no final das contas) sem nunca perder de vista o peso aristoteacutelico
da designaccedilatildeo e realizando algumas especificaccedilotildees sobre isto
O segundo capiacutetulo intitulado O caminho da negatividade henologia e meontologia e
a ultrapassagem dos limites da metafiacutesica pretende caracterizar efetivamente essa nomeada
ldquonegatividaderdquo Negatividade que natildeo eacute simplesmente predominacircncia de um ldquonatildeordquo ou partiacutecula
de privaccedilatildeo mas antes assunccedilatildeo de um oxiacutemoro o auscultar de um inaudito Desenvolve-se
como argumento central por meio do qual se evidencia as estruturas baacutesicas de um pensamento
radical a evidenciaccedilatildeo de uma meditaccedilatildeo que jaacute natildeo eacute mais norteada pelo ldquoenterdquo mas sim pelo
ldquounordquo (henologia) neoplatocircnico ou mesmo por uma profunda meditaccedilatildeo em torno ao ldquonadardquo
(meontologia) presentes no neoplatonismo e sobremaneira evidentes no pensamento miacutestico
27
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo nomeado O Extremo Oriente e o conflito das fronteiras a
filosofia comparada intercultural como chave de leitura para alguns problemas do pensamento
contemporacircneo pretende conectar os pontos e resgatar o sentido da tese O capiacutetulo traz uma
breve apresentaccedilatildeo da chamada Escola de Kyōto e a constituiccedilatildeo da filosofia japonesa
contemporacircnea Este eacute o momento no qual eacute possiacutevel observar a recepccedilatildeo contemporacircnea da
filosofia ocidental (tanto dentro da tradiccedilatildeo metafiacutesica quanto ldquoforardquo dela na dita negatividade)
e o diaacutelogo (e siacutentese) com o mundo do Extremo Oriente O objetivo eacute portanto pensar em
comunhatildeo com os pensadores da Escola de Kyōto com especial atenccedilatildeo para Keiji Nishitani
(西谷 啓治) observando suas propostas para anaacutelise e resoluccedilatildeo dos problemas de filosofia
contemporacircnea e buscando um esclarecimento a respeito dos termos indicados
Ao fim e ao cabo a intenccedilatildeo aqui eacute convidar os leitores ao diaacutelogo intercultural
apresentando em um diaacuterio de minhas leituras diferentes nuances e pontos de vista a respeito
de algumas questotildees especiacuteficas e ousando um diagnoacutestico da filosofia contemporacircnea bem
como uma vaacutelvula de escape para a atual condiccedilatildeo do pensamento filosoacutefico Caso a empreitada
logre ecircxito acredito que uma nova conversa se abra e novas ideias venham agrave mente Sem
embargo trata-se de uma composiccedilatildeo acerca de um conflito o conflito das fronteiras
28
ONTOLOGIA A SUBSTANTIVACcedilAtildeO DO OCIDENTE E O PROBLEMA DA METAFIacuteSICA
ENQUANTO DELIMITACcedilAtildeO DAS FRONTEIRAS DO PENSAMENTO
Embora ontologia tenha um sentido bastante amplo (que seraacute melhor explorado ao longo do
capiacutetulo) aleacutem de uma sem-fim variedade de definiccedilotildees distintas de autor para autor (algumas
das quais seratildeo eleitas e apresentadas aqui) entende-se o conceito (de forma simplificada) como
um discurso capaz de reunir em uma unidade a polissemia do verbo ser O resultado eacute a
centralizaccedilatildeo conceitual de qualquer ulterior doutrina a partir da definiccedilatildeo desenrolada desde
sua compreensatildeo Por substantivaccedilatildeo do Ocidente refiro-me aqui agrave corrente historial
responsaacutevel por compreender o verbo ser de modo substantivado a partir de seu particiacutepio
presente ldquoenterdquo A intenccedilatildeo do capiacutetulo portanto concentra-se na investigaccedilatildeo do processo
decorrido dessa substantivaccedilatildeo e quais as consequecircncias disto para o pensamento ocidental e
contemporacircneo em uma concepccedilatildeo geral no que diz respeito agrave delimitaccedilatildeo das fronteiras do
pensamento
Em primeiro lugar gostaria de abrir uma interlocuccedilatildeo com o professor Charles H Kahn
da University of Pennsylvania dada a relevacircncia e pertinecircncia de sua obra The Verb lsquoBersquo in
Ancient Greek (1973) para o desenvolvimento do capiacutetulo Antes de desdobrar em pormenores
seu estudo bastante extenso e detalhado Kahn sustenta a tese de que haacute uma relatividade
linguiacutestica referente ao verbo ser (cf KAHN 2003 1-3) Em sua introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo de 2003 (cf
IDEM IBIDEM vii) Kahn se reposiciona em relaccedilatildeo ao argumento expresso em sua obra clamando
ser uma posiccedilatildeo bastante defensiva e ldquofora de modardquo para os tempos atuais Ainda assim trata-
se de uma hipoacutetese bastante interessante
29
A posiccedilatildeo de Kahn (cf IBID 1-3) se apoia na afirmaccedilatildeo de Angus C Graham1 acerca
do mesmo verbo dentro do chinecircs claacutessico onde o sinoacutelogo posiciona o ser relativamente agrave
regra gramatical inerente agrave formulaccedilatildeo de uma determinada sentenccedila significando portanto a
impossibilidade de uma doutrina universal acerca do ser compatiacutevel com liacutenguas distintas
(como o grego o aacuterabe ou o chinecircs) Isto concorda em absoluto com a ideia de que no proacuteprio
grego claacutessico e nas liacutenguas indo-europeias em geral conforme a menccedilatildeo feita por Kahn a
Eacutemile Benveniste2 natildeo haacute em hipoacutetese alguma a implementaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo universal ou
condiccedilatildeo necessaacuteria envolta na distribuiccedilatildeo dos significados do verbo ser Haacute sim e Benveniste
endossa a ideia uma predisposiccedilatildeo da linguiacutestica grega agrave ldquovocaccedilatildeo filosoacutefica da noccedilatildeo de serrdquo
Vocaccedilatildeo esta segundo Kahn muito geral e diversificada no desenvolvimento sistemaacutetico de
seu conceito desde Parmecircnides ateacute Aristoacuteteles e de uma maneira mais sistemaacutetica dos Estoicos
ateacute Plotino Em siacutentese Kahn sustenta que a tese de um determinismo linguiacutestico do ser eacute
claramente falsa ou seja mesmo em falantes de uma mesma liacutengua natildeo eacute possiacutevel encontrar
uma mesma doutrina em torno ao ser como eacute possiacutevel ver nos pensamentos distintos de Platatildeo
e Aristoacuteteles Epicuro e Plotino
Todavia natildeo haacute duacutevidas para Kahn a respeito das condiccedilotildees intriacutensecas da liacutengua de um
autor em sua atividade intelectual seus recursos e suas tendecircncias Ele afirma que natildeo haveria
possibilidade de especificar a determinaccedilatildeo ontoloacutegica se o verbo grego εἰμί natildeo fosse provido
do particiacutepio presente τὸ ὄν ou se natildeo houvesse a derivaccedilatildeo nominal ndashία da qual redunda a
noccedilatildeo de οὐσία Ou ainda a classe de morfemas que compreende ἐστί εἶναι e ἐών derivadas
do indo-europeu ndashes Satildeo as formas nominais do verbo que permitem segundo Kahn (cf IBID
451) natildeo soacute uma clara expressatildeo senatildeo tambeacutem a tematizaccedilatildeo do conceito como um toacutepico
distinto para a reflexatildeo filosoacutefica
1 Angus C Graham ldquoBeing in Classical Chineserdquo In The Verb lsquoBersquo and its Synonyms John W M Verhaar (ed)
Dordrecht Holland D Reidel 1967 1-39 2 Eacutemile Benveniste ldquoCateacutegories de penseacutee et cateacutegories de languerdquo Les Eacutetudes philosophiques n 4 (out-dez
1958) PUF Paris 419-429
30
Kahn fala dos primeiros usos do verbo εἰμί (em formas participiais) em sua
possibilidade de representar qualquer construccedilatildeo copulativa (natildeo muito diferente de qualquer
outro particiacutepio em grego) adaptando-se agraves construccedilotildees coordenadas ou subordinadas (em
nuacutemero gecircnero e causa) e expressando diferentes nuances (concessiva causal adversativa)
Contudo frisa haver ainda outras expressotildees para aleacutem do caso copulativo como nos casos
vital veriacutedico ou existencial Quando o verbo aparece dentro da expressatildeo existencial e emerge
a necessidade de indicar uma referecircncia ou seja um caso gramatical locativo surgem as formas
do uso filosoacutefico do ser como τὰ ὄντα o berccedilo para o desenvolvimento da ontologia O sentido
de τὰ ὄντα apareceria em Aristoacuteteles de acordo com Kahn (cf ID IBID 457) em primeira matildeo
como ldquoo que eacuterdquo (o caso os fatos ou eventos) e em segunda matildeo existencialmente como ldquocoisas
que existemrdquo ldquocoisas que estatildeo presentesrdquo ldquocoisas que podem ser encontradas em algum lugarrdquo
Em ambos os casos o verbo ser eacute entificado Como neste sentido haacute uma conotaccedilatildeo ldquodo que
eacuterdquo algo Aristoacuteteles considerou a referecircncia aos atributos de um determinado ente para expressar
a muacuteltipla significaccedilatildeo de τὸ ὄν partindo em seguida para a definiccedilatildeo do ser no sentido primaacuterio
e fazendo uso de seu derivado nominal οὐσία
A manifestaccedilatildeo de οὐσία surge como uma nominalizaccedilatildeo abstrata ou substantivo de
accedilatildeo Kahn enumera trecircs aspectos distintos do uso de οὐσία em uma concepccedilatildeo filosoacutefica o
primeiro uso refere-se agrave nominalizaccedilatildeo do verbo na qual οὐσία representaria ldquoo que algo eacuterdquo
dando abertura para as formas platocircnicas e essecircncias aristoteacutelicas (τὸ τί ἐστι τὸ τί ἦν εἶναι) o
segundo uso eacute todavia menos teacutecnico e predica οὐσία como ldquoserrdquo ldquoexistecircnciardquo ou ldquorealidade
verdadeirardquo o terceiro uso enuncia uma equivalecircncia entre οὐσία e τὸ ὄν referindo ldquoas coisas
que satildeo (neste mundo)rdquo τὰ ὄντα (cf ID IBID 461) Aristoacuteteles pontua precisamente a intenccedilatildeo
socraacutetica primaacuteria de buscar a essecircncia das coisas (τὸ τί ἐστι) por meio do procedimento
silogiacutestico cujo princiacutepio eacute justamente a quididade (ἀρχὴ δὲ τῶν συλλογισμῶν τὸ τί ἐστι)
(ARISTOacuteTELES 2002 604-605 Metafiacutesica 1078b 24-25)
31
O que em Soacutecrates apareceria de fato como τί ἐστι e em Platatildeo como (τὸ) ὅ ἐστι em
Aristoacuteteles seria simplificado como τὸ τί ἐστι e τὸ τί ἦν εἶναι em um uso que expressa a essecircncia
ou natureza das coisas pela definiccedilatildeo ao passo que a definiccedilatildeo propriamente existencial caberia
ao termo οὐσία 3 Kahn ilustra as distinccedilotildees dizendo que
Enquanto o substantivo no primeiro e no segundo usos serve como uma
nominalizaccedilatildeo ldquoabstratardquo para o verbo finito como predicado isto eacute para o ldquoser aquilo
que eacuterdquo (e eacute assim sintaticamente paralelo ao infinitivo articular τὸ εἶναι) οὐσία no
terceiro sentido eacute utilizado ndash como em muitos outros substantivos abstratos ndash para o
sujeito caracterizado (isto eacute o que eu chamo de concreto ou agente de nominalizaccedilatildeo
como tipicamente ilustrado pelo particiacutepio articular τὸ ὄν ou como por exemplo ὁ
τρέχων ldquoo corredorrdquo em contraste agrave accedilatildeo de nominalizaccedilatildeo abstrata τὸ τρέχειν
ldquocorrerrdquo Esta distinccedilatildeo sintaacutetica corresponde em parte ao contraste de Heidegger
entre das Seiende e das Sein der Seienden) (ID IBID)
Embora haja tal distinccedilatildeo Kahn prossegue afirmando que em seu uso tardio (poacutes-platocircnico)
οὐσία e τὸ ὄν satildeo claramente sinocircnimos sendo um utilizado para enfatizar o outro como na
doutrina das Categorias de Aristoacuteteles4 O resultado eacute a inexistecircncia de uma diferenccedila entre o
agente concreto e a accedilatildeo abstrata de nominalizaccedilatildeo do εἰμί onde natildeo haacute distinccedilatildeo conceitual
entre οὐσία e τὸ ὄν ou seja entre a entidade e o que ela eacute Em outras palavras ser e ente se
tornam o mesmo confundem-se em sua aplicaccedilatildeo a despeito das distinccedilotildees conceituais que
definem substacircncia (οὐσία) e essecircncia (τὸ τί ἦν εἶναι)
3 Um comentaacuterio mais preciso foi apresentado em Luiacutes Andreacutes Berdlow ldquoParmenides and the Grammar of Beingrdquo
Classical Philology v 106 (2011) 283-298 4 As Categorias de Aristoacuteteles apresentam a classificaccedilatildeo das coisas que satildeo (τὰ ὄντα) dentre as quais encontra-
se a substacircncia (οὐσία) (cf ARISTOTLE 1952 5-6 Categorias 1a-2b) Na Metafiacutesica Aristoacuteteles deixa isto mais
claro quando diz ldquoMas em primeiro lugar se o ldquoenterdquo (τὸ ὂν) se diz de muitas maneiras ndash dentre as quais algumas
vezes substacircncia (οὐσία) em outras qualidade ou mesmo quantidade aleacutem de todas as outras categorias ndash qual
deles portanto eacute aquele pelo qual as coisas satildeo ()rdquo (ARISTOacuteTELES 2002 669 Metafiacutesica 1089a 5-15) A diferenccedila
conceitual ou mesmo hieraacuterquica eacute paulatinamente abandonada pela necessidade de exprimir um niacutevel de
realidade no qual jaacute natildeo eacute mais possiacutevel discorrer acerca do ente se redundar a palavra definida na proacutepria definiccedilatildeo
32
Essa indistinccedilatildeo entre ser e ente eacute sabido foi o que chamou a atenccedilatildeo de Martin
Heidegger no processo ldquodestrutivordquo de histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica realizado em seu projeto
Sein und Zeit (1927) Conforme Heidegger haacute uma γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας de haacute muito
abandonada O motivo aparente se concentra nas caracteriacutesticas emergentes do proacuteprio ser
quais sejam sua maacutexima universalidade sua vacuidade sua obscuridade sua maacutexima
evidecircncia Neste sentido Heidegger diz
O conceito de ldquoserrdquo eacute indefiniacutevel Isto pode ser concluiacutedo desde sua maacutexima
universalidade E isto com razatildeo ndash se definitio fit per genus proximum et differentiam
specificam De fato ldquoserrdquo natildeo pode ser entendido conceitualmente como ente enti
non additur aliqua natura ldquoserrdquo natildeo pode estar em uma determinaccedilatildeo concebendo
dele um ente O ser por definiccedilatildeo natildeo pode ser derivado de conceitos superiores e
nem dado por nenhuma ilustraccedilatildeo Contudo disto se segue que do ser natildeo se pode
derivar nenhum problema Pode-se concluir em absoluto apenas que o ldquoserrdquo natildeo eacute
algo como um ente Portanto o legiacutetimo dentro de certos limites de determinaccedilatildeo dos
entes ndash a ldquodefiniccedilatildeordquo da loacutegica tradicional que em si tem suas bases na antiga
ontologia ndash natildeo eacute aplicaacutevel ao ser A indefiniccedilatildeo do ser natildeo dispensa a pergunta por
seu significado senatildeo que justamente a intima isto (HEIDEGGER 1967 4)
As observaccedilotildees de Heidegger concordam com a conclusatildeo de Kahn a respeito da tomada de
rumo do verbo ser dentro da filosofia grega claacutessica sobretudo na concepccedilatildeo das bases da antiga
ontologia acerca da indistinccedilatildeo entre ser e ente A γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας agrave qual se refere
Heidegger parece ser a natureza inevitaacutevel da proacutepria metafiacutesica em fechar a porta aberta por
ela mesma para o modo de se relacionar com o ser uma espeacutecie de destinaccedilatildeo forccedilosa da qual
natildeo se poderia de maneira alguma escapar ponderando a projeccedilatildeo que reverbera em cada um
dos sentidos
33
O conflito acerca do entendimento e expressatildeo da φύσις revela em boa parte a maneira
pela qual o conjunto do ser se tornou alvo de disputas A contenda eacute ilustrada na histoacuteria
primaacuteria da filosofia grega enquanto fisiologia e na ldquocontroveacutersiardquo paradigmaacutetica entre
Heraacuteclito e Parmecircnides Uma realidade em constante movimento e mutaccedilatildeo absorvida desde a
observaccedilatildeo teoreacutetica do mundo entorno ou simplesmente o ponto de vista do ldquodevirrdquo parece
compatiacutevel com a natureza infinitiva e inapreensiacutevel do verbo ser como eacute possiacutevel rastrear no
πάντα ῥεῖ heracliacutetico 5 Heraacuteclito expressa o movimento intriacutenseco de abertura do modo
relacional do ser Todavia tal entendimento natildeo eacute compatiacutevel com qualquer tipo de silogismo
loacutegico onde eacute possiacutevel desenhar um conhecimento comum Para assumir a cogniccedilatildeo e percepccedilatildeo
vaacutelidas seria necessaacuterio assumir a permanecircncia de algo como eacute possiacutevel acompanhar na
elaboraccedilatildeo da univocidade do ser em Parmecircnides6
O primeiro ponto de vista paradoxalmente leva agrave evidecircncia da diferenccedila e a posiccedilatildeo do
oxiacutemoro enquanto o segundo permite a identificaccedilatildeo e a possibilidade de conclusatildeo por meio
das loacutegicas da identidade e natildeo-contradiccedilatildeo Aparentemente o primeiro natildeo resulta em nenhum
avanccedilo imediato a respeito de assuntos praacuteticos ou na dissoluccedilatildeo de questotildees teoacutericas enquanto
o segundo iraacute provavelmente resolver problemas de quase todos os tipos no campo pragmaacutetico
e em toda sorte de adversidades naturais e sociais Por meio da loacutegica natural do ser humano
social eacute bastante evidente qual ponto de vista deve ser eleito no intuito de estabelecer a
coexistecircncia mais faacutecil e paciacutefica aquela que afasta o homem da falta de fundamento da
existecircncia ou seja do abismo existencial da afliccedilatildeo que eacute existir
5 Conforme cita Platatildeo no Craacutetilo ldquotodas as coisas estatildeo em processo e nada permanece paradordquo (τά ὄντα ἱέναι
τε πάντα καὶ μένειν οὑδέν) (PLATO 1997 119-120 Craacutetilo 401d-402a) (KIRK E RAVEN 1957 197) Kirk e Raven
ponderam ainda que se trata de um momento ldquoOnde φύσις provavelmente natildeo significa lsquonaturezarsquo mas lsquoas coisas
em sua verdadeira constituiccedilatildeorsquordquo (IDEM IBIDEM 184) 6 ldquoO uacutenico caminho de inquiriccedilatildeo que pode ser pensadordquo (αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι) (KIRK E RAVEN
1957 269) Haacute uma anaacutelise mais detalhada acerca do toacutepico em Ciacutecero Cunha Bezerra ldquoParmeacutenides y la
univocidad del serrdquo Caacutetedra v 1 (2003) 33-48
34
Eacute possiacutevel especular que com a ausecircncia de um princiacutepio solidamente identificado e
natildeo-contraditoacuterio quiccedilaacute nem mesmo uma regra gramatical linguiacutestica poderia ser estabelecida
dando margem mesmo agrave impossibilidade de comunicaccedilatildeo Igualmente tampouco se poderia
delinear uma corrente de haacutebitos pessoais compatiacuteveis aos costumes sociais desabilitando toda
e qualquer eacutetica ou ciecircncia poliacutetica pela qual se pode regulamentar a conduta humana Com a
perspectiva de um devir total e assunccedilatildeo da diferenccedila a presenccedila de certo caos eacute inegaacutevel Com
a fundaccedilatildeo de uma estrutura loacutegica todavia eacute possiacutevel organizar e controlar os pensamentos e
accedilotildees do ser humano e sua convivecircncia social Contudo natildeo necessariamente esta postura iraacute
levar a humanidade para as escolhas mais coerentes ndash e a histoacuteria pode comprovar isto inuacutemeras
vezes O abandono da multiplicidade de perspectivas sobretudo as supracitadas (uma em
detrimento de outra) parece ter dirigido a histoacuteria por vias pouco luacutecidas e por vezes mesmo
autodestrutivas
Mas a anaacutelise da histoacuteria fatual natildeo eacute o que realmente interessa aqui tampouco a
atribuiccedilatildeo de uma culpa ou indicaccedilatildeo de um erro neste ou naquele ponto de vista O que
interessa aqui eacute como identificar a predileccedilatildeo loacutegica do pensamento ocidental com o cerne de
sua postura contemporacircnea e inquirir se eacute possiacutevel (ou se jaacute foi tomado) um caminho de
pensamento distinto e quais os resultados da confrontaccedilatildeo de um ponto de vista com o outro
Para isto eacute preciso retomar uma anaacutelise da histoacuteria da ontologia observando a maneira pela
qual ela se movimenta intriacutenseca e extrinsecamente Dentro das possibilidades de eleiccedilatildeo de um
caminho interpretativo opto aqui em um primeiro momento por absorver a histoacuteria e criacutetica
da metafiacutesica feita por Heidegger durante o seacuteculo vinte com o fito de deixar um pouco mais
evidente o problema fundamental da indistinccedilatildeo entre ser e ente que eacute sem embargo o pontapeacute
inicial de toda a contenda Muito embora seja possiacutevel descortinar a histoacuteria do pensamento
ocidental mediante distintos autores a ecircnfase na nomeada questatildeo do ldquoesquecimento do serrdquo
serve sobremaneira bem ao propoacutesito desta tese
35
Portanto em primeiro lugar eacute preciso considerar que embora ilustrativo Martin
Heidegger passou ao largo de resolver os problemas suscitados pela histoacuteria das ideias Antes
ele desenvolveu problemaacuteticas ainda mais insoluacuteveis e como se natildeo bastasse propocircs novos
enigmas A maior dentre todas as dificuldades talvez ainda precise aguardar muito tempo para
ser descortinada Durante um longo periacuteodo o entretenimento geral dos eruditos se contentou
em traccedilar um denominador comum dentre as vaacuterias questotildees pertinentes aos problemas de sua
filosofia em um movimento enciclopeacutedico quiccedilaacute tatildeo importuno quanto improfiacutecuo de decifrar
seu pensamento Mais conveniente talvez seja simplesmente resguardar o segredo de certas
passagens e aguardar a maturaccedilatildeo necessaacuteria para interpelaacute-las independentemente da espera
suscitada por tal postura
Ainda assim alguns pontos merecem ser postos em relevo e sobre eles decerto vale
despender alguma energia no esforccedilo de meditar acerca de seu sentido Certos trabalhos
compostos por Heidegger guardam de uma soacute vez todo o peso de sua leitura da realidade
notadamente em trechos sutis e aparentemente inofensivos Em momentos nos quais o leitor se
daacute por satisfeito em compreender um posicionamento aparentemente simples e historial como
pueril revisatildeo da histoacuteria da filosofia aiacute mesmo se lhe eacute possiacutevel abrir uma brecha para absorver
a atitude fundamental de seu pensamento Heidegger sempre foi um historiador da filosofia e
natildeo renegou em momento algum o peso de um ofiacutecio como este pelo contraacuterio coube-lhe fazecirc-
lo por diversas vezes e em distintos modos Mesmo quando seus ensaios e conferecircncias se
projetavam a um tema especiacutefico e natildeo a um autor a forte presenccedila de suas interpretaccedilotildees da
histoacuteria da filosofia eacute inegaacutevel Cabe ao propoacutesito desta tese realccedilar um exemplo que torne liacutecito
ilustrar uma fissura por onde seja possiacutevel se esgueirar ateacute a fonte da emanaccedilatildeo especulativa
acerca do sentido da histoacuteria da filosofia e do desenvolvimento do pensamento ocidental
sinocircnimos para o que conveacutem nomear metafiacutesica
36
Aos 13 de novembro de 1935 como sabem os leitores assiacuteduos de Heidegger foi
pronunciada uma conferecircncia preparada para a Kunstwissenschaftlichen Gesellschaft de
Freiburg im Breisgau7 Der Ursprung des Kunstwerkes se tornou de forma veloz e viral um
trabalho amplamente comentado no circuito acadecircmico em geral principalmente no campo da
esteacutetica filosoacutefica e teorias da arte O ponto de vista quase unacircnime dos receptores do trabalho
assentou na interpretaccedilatildeo do texto como uma tese a respeito da arte como ldquoposta em marcha da
verdade enquanto desvelamentordquo uma frase natildeo tatildeo simples de ser decifrada mas repetida
quase como uma foacutermula automaacutetica que se tornou rapidamente um emblemaacutetico clichecirc e uma
resposta imediata agrave pergunta pelo sentido da arte em Heidegger
A popular obra de Michael Inwood A Heidegger Dictionary (1999) destaca
enfaticamente o caraacuteter essencial da proposiccedilatildeo-chave quando pontua no mesmo sentido que
ldquoA obra de arte eacute mais bem um projeto que abre um mundo no qual escolhas podem ser feitas
A verdade a revelaccedilatildeo do lsquoserrsquo eacute o configurar em uma obra e configurar para obra iluminando
o mundo e a terra naquilo que neles perdurardquo (INWOOD 1999 18) Inwood ressalta a
proximidade encontrada por Heidegger entre o termo alematildeo ldquoproteger manterrdquo (bewahren) e
a proacutepria palavra ldquoverdaderdquo (Wahrheit) embora os termos natildeo necessariamente estejam
etimologicamente conectados Ele aponta para a ldquopreservaccedilatildeordquo como elemento pelo qual ldquoA
arte eacute o deixar-acontecer da chegada da verdade do ser enquanto talrdquo (IDEM IBIDEM) com especial
atenccedilatildeo para o proacuteprio fazer (ποίησις) da arte e particularmente da poesia Haacute contudo uma
seacuterie de consideraccedilotildees mais sutis a serem levadas em consideraccedilatildeo nas conferecircncias de
Heidegger proporcionando uma anaacutelise um pouco mais cuidadosa do que estaacute propriamente
em jogo quando Heidegger sobreleva a questatildeo da obra de arte
7 O mesmo trabalho sofreu novas releituras durante todo o ano de 1936 sendo reapresentado respectivamente na
Einladung der Studentenschaft der Universitaumlt em Zuumlrich durante o mecircs de janeiro e na Deutschen Hochstift em
Frankfurt am Main entre novembro e dezembro O ciclo de conferecircncias recebeu ediccedilotildees retrabalhadas em 1956 e
1960 publicadas pela Reclam de Stuttgart e sendo incluiacutedo em 1977 no tomo Holzwege da Gesamtausgabe
37
O editor do volume Holzwege Friedrich-Wilhelm von Hermann dedicou toda uma obra
agrave anaacutelise temaacutetica envolta naquele escrito publicando em 1980 o livro Heideggers Philosophie
der Kunst Em algumas de suas consideraccedilotildees mais amplas sobre as conferecircncias de Heidegger
Hermann atenta para o fato da questatildeo da obra de arte ser levantada a partir de um problema
desdobrado pela ontologia fundamental Hermann observa a problemaacutetica geral do escrito
desde o estabelecimento do ldquoserrdquo como ldquoacontecimentordquo (Ereignis) Conforme ele pondera
trata-se de um trabalho contemporacircneo aos Beitraumlge zur Philosophie (1936-38) Para Hermann
a questatildeo em torno ao ldquoserrdquo como ldquoacontecimentordquo (Ereignis) estende-se em Der Ursprung des
Kunstwerkes por meio de quatro outros problemas (1) o estabelecimento constitutivo da arte
(2) da obra de arte (3) da criaccedilatildeo artiacutestica e (4) da compreensatildeo da arte (cf HERMANN 2001 7)
Contudo circunscrita agrave conferecircncia sobre a arte estaacute a elaboraccedilatildeo da passagem da discussatildeo em
torno agrave verdade do ser para o ldquopensamento da histoacuteria do serrdquo (seinsgeschichtliches Denken)
Trata-se especificamente do momento de transiccedilatildeo do pensamento de Heidegger8 Em
linhas gerais Der Ursprung des Kunstwerkes ressalta uma preocupaccedilatildeo da lida do homem para
com a essecircncia da verdade mediante a obra de arte enquanto coisa Haacute toda uma histoacuteria dos
efeitos pertinentes agraves anaacutelises de Heidegger da obra de Vincent van Gogh9 aleacutem de inuacutemeras
teorizaccedilotildees em torno ao poder salvador da obra de arte Todavia salta aos olhos uma passagem
muito mais peculiar (para qual gostaria de chamar a atenccedilatildeo agora mesmo) qual seja aquela
na qual Heidegger aborda o problema da transposiccedilatildeo da experiecircncia fundamental grega para a
intepretaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo do pensamento romano-latino (cf HEIDEGGER 1977 7)
8 A perspectiva da ontologia fundamental de Sein und Zeit (1927) continuada no curso Grundprobleme der
Phaumlnomenologie ministrado em Marburg durante o semestre de veratildeo de 1927 receberia seu desenvolvimento
desde uma visatildeo historial-reflexiva jaacute na primavera de 1932 ocasiatildeo na qual conforme Hermann satildeo elaboradas
as primeiras linhas de Beitraumlge zur Philosophie redigido entre 1936 e 1938 mas publicado postumamente somente
em 1989 9 Em uma das mais famosas passagens de Der Ursprung des Kunstwerkes Heidegger interpreta os sapatos de um
dos quadros de Vincent van Gogh (natildeo identifica qual todavia) descortinando com isto o cotidiano campesino e
oferecendo uma leitura da realidade a partir de aiacute Uma criacutetica direta foi apresentada por Meyer Shapiro (em The
Still Life as a Personal Object ndash A Note on Heidegger and van Gogh 1968 e ainda em Further Notes on Heidegger
and van Gogh 1994) onde ele sustenta que os sapatos retratados por van Gogh natildeo satildeo de uma pessoa do campo
mas as botas do proacuteprio artista apontando com isto graves mal entendidos na interpretaccedilatildeo de Heidegger
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Ainda no iniacutecio do escrito Heidegger busca a compreensatildeo mais geral da ldquocoisardquo
abordando como exemplo um bloco de granito A despeito de suas muacuteltiplas caracteriacutesticas ele
enfatiza o ldquoao redorrdquo (das herum sich) pelo qual suas propriedades se agrupam podendo entatildeo
falar de algo como um ldquonuacutecleordquo (Kern) da coisa Esse nuacutecleo de acordo com Heidegger
chamaram-lhe os gregos claacutessicos de ὑποκείμενον Embora ilustrativa a descriccedilatildeo eacute decerto
passiacutevel de baixo niacutevel de representaccedilatildeo posta sua exposiccedilatildeo pouco objetiva O termo eacute mesmo
tatildeo controverso quanto as proacuteprias ideias de ser e ente dentro da perspectiva grega Ela possui
uma carga conceitual talvez natildeo tatildeo difiacutecil de ser desvelada mas que tampouco garante exatidatildeo
e lucidez em sua abordagem variando de eacutepoca para eacutepoca de filoacutesofo para filoacutesofo de
interpretaccedilatildeo para interpretaccedilatildeo Ademais vaacuterias histoacuterias metaforizam o sentido do termo
ὑποκείμενον Uma das mais conhecidas (conto-a sem embasamento ou referecircncias quiccedilaacute
mesmo de maneira inapropriada) relata que certa vez um rei se espantara ao conhecer a obra de
um escultor haacutebil em reproduzir as formas da natureza em blocos de maacutermore Tamanha era a
destreza do artista que se postas lado a lado a escultura e a coisa mesma confundiam-se os
espectadores exceto pelo caraacuteter inanimado da escultura Intrigado o rei mandou chamar o
escultor e perguntou-lhe como fazia para reproduzir com tanta fidelidade o mundo em torno
Natildeo sabendo explicar senatildeo por meio da praacutetica pediu um bloco de maacutermore e agraves vistas do rei
reproduziu perfeitamente um cavalo em tamanho real faltando-lhe apenas galopar O rei lhe
questionou ldquoComo o fizesterdquo e respondeu o escultor ldquofaacutecil apenas retirei do bloco de
maacutermore o que natildeo era cavalordquo O ὑποκείμενον seria portanto aquele elemento sem o qual o
cavalo natildeo seria cavalo ou sem o qual uma coisa natildeo eacute uma coisa Contudo o grande problema
envolto nas tentativas de atingir um entendimento deste sentido por meio de um silogismo uma
loacutegica racional ou uma explicaccedilatildeo conceitual (e natildeo por uma metaacutefora ou estoacuteria) consiste na
dificuldade em elaborar uma equaccedilatildeo que exija menos esforccedilo do ouvinte capacitando uma
lucidez mais ampla e geral que a todos possa atingir
39
Toda definiccedilatildeo a partir de uma predicaccedilatildeo direta pode se configurar ainda mais obscura
e lanccedilar aquele que se propotildee a entender o conceito para um mero encadeamento e conexatildeo de
termos sem contudo realmente promover a experiecircncia do sentido da palavra Sem embargo o
Impeacuterio Romano foi a eacutegide da popularizaccedilatildeo e introspecccedilatildeo do mundo grego competindo-lhes
a tarefa de transpor ao modo latino de pensar os sentidos das meditaccedilotildees gregas Sobre isto
Heidegger ostenta uma posiccedilatildeo bastante firme e vale a pena destacar por completo o trecho no
qual se lhe pode observar sua atitude
Estas denominaccedilotildees natildeo eram meros nomes Em sua fala a experiecircncia fundamental
grega do ser do ente no sentido de sua presenccedila mostrava o que natildeo se podia mostrar
Por meio dessa disposiccedilatildeo instaura-se a interpretaccedilatildeo oficial da coisidade da coisa e
a interpretaccedilatildeo ocidental do ser do ente Comeccedila com a traduccedilatildeo das palavras gregas
para o pensamento romano-latino ὑποκείμενον torna-se subjectum ὑπόστασις torna-
se substantia συνβεβηκός torna-se accidens O processo desta traduccedilatildeo dos nomes
gregos para a liacutengua latina natildeo se daacute sem consequecircncias e nos dias de hoje toma-se
ainda a mesma compreensatildeo Antes pelo contraacuterio por detraacutes da traduccedilatildeo
aparentemente literal haacute um traslado da experiecircncia grega para outro modo de pensar
O pensamento romano assume para si as palavras gregas sem a devida
correspondecircncia com a experiecircncia originaacuteria do que dizem sem a palavra grega A
falta de fundamento do pensamento ocidental comeccedila com essas traduccedilotildees (IDEM
IBIDEM 7-8)
Responsabilizar o pensamento romano-latino pela queda do Ocidente no abismo da falta de
fundamento delega a Heidegger um encargo de peso formidaacutevel cujo maior perigo talvez seja
o de natildeo se ambientar aqui ou ali dentro deste ou daquele territoacuterio neste ou naquele lugar
mas na posiccedilatildeo do meio na esfera do entre no desenho do limite da linha da fronteira
40
A direccedilatildeo do pensamento de Heidegger a partir desta passagem claramente se constitui
desde uma divisatildeo da metafiacutesica ocidental em dois momentos muito distintos embora
interligados A emboscada se encontra na percepccedilatildeo de que todo e qualquer ocidental eacute jaacute
sempre forccedilado a se movimentar na esfera da ontologia latina ao passo que o retorno aos
fundamentos da ontologia grega eacute antes de tudo calcar terreno em solo incerto e regiatildeo
desconhecida Estabelecer uma ponte que permita ao ser humano contemporacircneo entender a
proveniecircncia de sua apreensatildeo da existecircncia eacute um roteiro deveras ousado Resta saber como eacute
possiacutevel ainda pensar os conceitos fundamentais da metafiacutesica dentro de sua propriedade sem
causaacute-los algum tipo de dano que faccedila seu sentido se perder ser obscurecido ou transviado
A partir da colocaccedilatildeo do problema da obra de arte enquanto coisa Heidegger questiona
o que enfim se compreende pelo termo mesmo ldquocoisardquo quando se compromete com a ideia de
tentar envolvecirc-lo conceitualmente (a partir de ὑποκείμενον ὑπόστασις e συνβεβηκός) e desde
aiacute extrair uma explicaccedilatildeo Sobre isto Hermann comenta ldquoComo podemos ver ainda mais e
melhor resolver o problema da obra de arte se torna um problema ontoloacutegico ndash isto eacute em
primeira instacircncia o problema ontoloacutegico do ser-res da resrdquo (HERMANN OP CIT 87) entenda-se
ainda o problema da coisidade da coisa Ele ainda complementa deixando ver a postura exigida
pela tarefa de entender a ontologia grega ldquoPortanto explicar o pensamento grego significa
antes de tudo revelar novamente a experiecircncia de estar no lugar em que se encontra a expressatildeo
de acordo com o fio condutor da palavra filosoacutefica gregardquo (IDEM IBIDEM 93-94) Sem embargo
conforme aponta Hermann (em coerecircncia com Heidegger) o ofiacutecio de introduzir a filosofia
grega (ou se introduzir na filosofia grega sua ontologia e berccedilo da metafiacutesica) constitui-se
desde o caminhar ao lado do fio condutor de sua expressatildeo e manifestaccedilatildeo A caminhada talvez
seja ela mesma o ldquoestar no lugar em que se encontra a expressatildeordquo ou o espaccedilo do ldquoentrerdquo a
ldquolinha de fronteirardquo
41
Algumas dezenas de leituras podem ser desdobradas desde a interpretaccedilatildeo de Heidegger
do lugar de transiccedilatildeo da histoacuteria do ser O itineraacuterio do pensamento de Heidegger legou aos
fieacuteis depositaacuterios de sua vasta caminhada a tarefa ingloacuteria de dar uma passo aleacutem Gostaria de
destacar aqui um direcionamento um pouco menos ousado nem por isto ingecircnuo Considerar
uma histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica em Heidegger eacute procurar pela fenda cuja passagem
encaminha diretamente ao salto no abismo da superaccedilatildeo da metafiacutesica embora natildeo fique ainda
claro o significado destes termos Ademais a intenccedilatildeo aqui eacute justamente esta esclarecer os
enlaces desse percurso histoacuterico nomeado sob o signo da metafiacutesica agrave luz da trajetoacuteria
interpretativa de Heidegger
Justamente sob o tiacutetulo Itineraacuterio do Pensamento de Heidegger (1965) Emmanuel
Carneiro Leatildeo apresenta sua traduccedilatildeo para o portuguecircs da Einfuumlhrung in die Metaphysik (1935)
de Heidegger ndash segundo ele nem de perto uma obra de faacutecil acesso Em primeiro lugar pela
impossibilidade geral de uma introduccedilatildeo em filosofia no sentido amplo Em outras palavras
natildeo haacute caminho de iniciaccedilatildeo agrave filosofia como se houvesse ainda um siacutetio no qual se a conquista
Haacute na verdade o puro levantar de questotildees responsaacuteveis por conduzir o pensamento para dentro
da proacutepria filosofia Carneiro Leatildeo elucida tal dificuldade quando especifica o tiacutetulo da obra
Introduzir agrave metafiacutesica eacute movimentar-lhe a questatildeo fundamental de maneira a
conduzi-la (-ducere) para dentro (-intro) das origens donde a metafiacutesica procede Um
esforccedilo de pensamento que nada tem de horizontal e progressivo Cujo movimento
se processa antes no sentido vertical e regressivo (CARNEIRO LEAtildeO 1999 10)
A filosofia busca o movimento imputado para originaacute-la para com isto retornar agraves suas origens
proacuteprias Em segundo lugar e natildeo menos importante a obra ainda guarda certa inacessibilidade
devido agrave intencional ambiguidade de um periacuteodo conturbado de transiccedilatildeo do pensamento de
Heidegger (tambeacutem evidenciado por Hermann)
42
Eacute preciso movimentar a questatildeo fundamental da metafiacutesica para conduzi-la para dentro
de suas origens Agora bem destacar a questatildeo fundamental eacute o primeiro passo de Heidegger
na obra quando questiona ldquoPorque haacute em geral o ente e natildeo antes nadardquo (HEIDEGGER 1983b
3) Um adendo eacute necessaacuterio ao leitor lusoacutefono Carneiro Leatildeo em sua traduccedilatildeo explica o
emprego do termo ldquoenterdquo para traduzir o alematildeo Seiendes justificando o uso da forma erudita
referida ao latim ens entis para salvaguardar o caraacuteter de tudo que eacute independentemente de
seu modo de ser (cf CARNEIRO LEAtildeO OP CIT 77 nota) Ponderando isto a leitura de Carneiro
Leatildeo segue um rumo bastante simples e esclarecedor ele afirma
O homem natildeo pode existir senatildeo em comeacutercio e comunhatildeo com o mundo dos entes
Ente significa tudo que de algum modo eacute o homem as coisas os acontecimentos ateacute
mesmo o Nada enquanto eacute um Nada ieacute enquanto tem um significado () (IDEM IBIDEM
11)
A forccedila responsaacutevel por manter a decisatildeo a respeito dos entes depende diretamente da
capacidade de enxergar suas distinccedilotildees Em um compecircndio unitaacuterio a base de sustentaccedilatildeo no
comeacutercio com os entes se daacute na e pela linguagem mediante a qual o homem simplesmente
afirma eacute Uma afirmaccedilatildeo aparentemente simples guarda contudo uma relaccedilatildeo complexa e
ambiacutegua talvez mesmo em decorrecircncia de sua extrema simplicidade
A existecircncia humana se agita dentro da tensatildeo entre imanecircncia e transcendecircncia
porque o homem existe enquanto in-siste no domiacutenio da Verdade do Ser ieacute a
vicissitude instaurada pela diferenccedila irredutiacutevel e referecircncia necessaacuteria entre ente e
ser A tarefa do pensamento natildeo eacute procurar sair decircsse ciacuterculo de diferenccedila e referecircncia
e sim necircle ingressar de maneira a poder regressar ateacute a fonte originaacuteria de sua tensatildeo
e unidade (ID IBID 15)
43
O atino para o ingresso ao interior da tarefa do pensamento deixa bastante evidente a intitulaccedilatildeo
da obra Eacute possiacutevel conceber a empreitada em regressar ao fundamento desde o qual a metafiacutesica
eacute ela mesma a proveniecircncia da tensatildeo em torno agrave unidade da existecircncia perante a multiplicidade
Eacute preciso destarte compreender que ldquoSoacute poderemos entender os pensamentos os conceitos
ou as explicaccedilotildees dados na medida em que nos ex-pusermos e dis-pusermos aquilo que se pensa
que se concebe ou que se explicardquo (ID IBID 29) acompanhando assim os passos de Heidegger
e verificando sua coerecircncia teoacuterica de levar colocar e se pocircr no estado da questatildeo
Esta mesma ambivalecircncia eacute tambeacutem destacada por Heidegger quando ele se refere ao
ambiacuteguo das formas essenciais do espiacuterito Natildeo se trata portanto de uma dedicaccedilatildeo integral agraves
possibilidades de captar de maneira exclusivamente formal os procedimentos que envolvem os
estudos mas de perceber (αἴσθησις) e experienciar os fenocircmenos Heidegger adverte ainda
Tomada na totalidade de seu sentido mais cru a filosofia sempre lida com o
fundamento do ente de tal maneira que o proacuteprio ser humano tem enfaticamente a
experiecircncia de seu significado e propoacutesito Por isto agora se vislumbra facilmente a
amplitude da filosofia que poderia e deveria proporcionar o fundamento da existecircncia
da eacutepoca histoacuterica atual e futura pela qual se estabelece a cultura Com tais
espectativas e demandas o estado e a essecircncia da filosofia satildeo sobrecarregadas Na
maior parte das vezes essa demanda excessiva se mostra pela forma de uma censura
da filosofia Diz-se por exemplo porque a metafiacutesica natildeo participou na preparaccedilatildeo
para a revoluccedilatildeo ela deve ser rejeitada Isto eacute tatildeo espirituoso quanto dizer que porque
vocecirc natildeo pode voar com um tocircrno portanto este deve ser abandonado A filosofia
natildeo provecirc diretamente forccedilas nem modos de accedilatildeo e criaccedilatildeo para ajeitar a condiccedilatildeo
histoacuterica simplesmente pelo motivo de dizer respeito apenas a poucos Quais poucos
Aqueles que transformam criativamente convertendo os fins Afetando uma vastidatildeo
apenas indiretamente e nunca fazendo rodeios ateacute certo ponto onde finalmente desde
o longo esquecimento da filosofia degenera-se como autocompreensatildeo da existecircncia
(HEIDEGGER OP CIT 12)
44
Heidegger aponta certa responsabilidade da filosofia na formaccedilatildeo da cultura e direcionamento
da eacutepoca presente e futura A chamada ldquoessencializaccedilatildeo da filosofiardquo eacute em grande parte
responsaacutevel pela tomada de rumo e pela constituiccedilatildeo da histoacuteria ateacute mesmo por seu abandono
Agrave ela estaacute diretamente conectada a ldquoessencializaccedilatildeo do serrdquo e maneira pela qual a filosofia se
apresenta como contemplaccedilatildeo dos fundamentos do ente
Heidegger explica em pormenores a diferenccedila entre ser e ente quando expotildee a gramaacutetica
e etimologia da palavra Certa advertecircncia contudo clama a petrificaccedilatildeo das normas
gramaticais ocas e vazias destituindo a Escola do Mundo do Espiacuterito que circunda a
morfologia dos termos e se restringindo tatildeo somente agrave transmissatildeo de regras do uso da palavra
Neste sentido a maneira pela qual se ostenta a ldquogrande gramaacuteticardquo eacute em si mesma o processo
de substantivaccedilatildeo do Ocidente visto como o cerrar das fronteiras como delimitaccedilatildeo
Tambeacutem em Einfuumlhrung in die Metaphysik Heidegger insiste no argumento exprimido
em Der Ursprung des Kunstwerkes seguindo o fluxo comentado acima quando afirma outra
vez ldquoQue essas formas gramaticais natildeo dissecaram desde toda eternidade uma linguagem
absoluta enquanto controle elas satildeo de fato erigidas de uma particular interpretaccedilatildeo da liacutengua
grega pela liacutengua latinardquo (ID IBID 56) Em outras palavras a linguagem possibilita sendo ela
tambeacutem um ente manipulaccedilatildeo e controle por sobre suas formas Por este motivo eacute possiacutevel
transmitir o conhecimento de uma liacutengua estrangeira somente com o ensino da gramaacutetica
mesmo para pessoas que nunca realmente entraram em contato com essa determinada liacutengua
Ou ainda aprender um idioma antigo natildeo mais utilizado ou cujo vigor ou esplendor se apagou
como o latim o grego claacutessico ou o sacircnscrito antigo sem ter a possibilidade de experenciaacute-los
no cotidiano O domiacutenio teoacuterico de uma liacutengua pode permitir ainda intuiccedilotildees e analogias a
respeito da experiecircncia que esta liacutengua provocava em seus falantes originais sem contudo
garantir exatidatildeo das disposiccedilotildees ou estados de acircnimo referidos pelos termos
45
Dentro da gramaacutetica e morfologia do ser Heidegger evidencia que existe um duplo
sentido para a palavra dentro de seu entendimento como consistecircncia (Staumlndigkeit) qual seja
a) o estar em si mesmo enquanto proveniente de si mesmo e b) o que perdura constantemente
enquanto tal Consistecircncia eacute a palavra-chave de sua leitura do termo ser dentro da circunvisatildeo
grega claacutessica Heidegger aponta que justamente por isso o natildeo-ser denota a desistecircncia ou a
saiacuteda da existecircncia ou ainda o abrir matildeo do ldquosalto para aleacutemrdquo Jaacute a etimologia da palavra ser
revela como os sentidos manifestos pela gramaacutetica e morfologia foram confundidos
historicamente Heidegger expotildee trecircs raiacutezes do termo uma sacircnscrita (es asus) outra indo-
germacircnica (bhuuml) e uma apenas germacircnica (sein) Conforme suas interpretaccedilotildees elas se
desdobram respectivamente em um sentido de ldquoviverrdquo ldquosurgirrdquo e ldquopermanecerrdquo Tratam-se de
verbos distintos todavia Heidegger natildeo citas as fontes das quais ele extrai tais etimologias
Ateacute onde eacute possiacutevel investigar o termo sacircnscrito mais proacuteximo ao que ele considera es
asus seria asti (अनतत) cuja raiz ās (आस) possui incontaacuteveis significados dentre os quais ldquoexistirrdquo
ldquoestar presenterdquo ldquopermanecerrdquo entre vaacuterios outros Aparentemente eacute a origem do indo-europeu
es cujo similar em grego seria o morfema ἐστί e em latim esse (sobremaneira visiacutevel no
portuguecircs estar) Jaacute a palavra bhuuml provavelmente indicada por Heidegger como ldquoindo-
germacircnicardquo em consequecircncia da formataccedilatildeo do verbo ser como ldquobinrdquo ldquobistrdquo (ou ainda ist e em
inglecircs ldquoisrdquo) eacute tambeacutem ela sacircnscrita (bhū भ) e estaacute presente em vaacuterias outras liacutenguas indo-
europeias (como no inglecircs being) Seu significado mais geral seria ldquoserrdquo ou ldquoexistirrdquo embora
aponte tambeacutem para ldquoacontecerrdquo ou ldquoperceberrdquo aleacutem de outros sentidos Sein tambeacutem pode ser
rastreado ateacute certo ponto em sua origem germacircnica no mittelhochdeutsch sīn e no
althochdeutsch wesan derivado da raiz sacircnscrita ves (वस) que daria as formas de Wesen
(essecircncia) ou (war o preteacuterito de Sein ser) em alematildeo De qualquer forma a questatildeo leva
imediatamente ao que Heidegger chama de ldquoessencializaccedilatildeo do serrdquo O motivo eacute simples viver
surgir e permanecer satildeo manifestaccedilotildees que interpelam o ser humano inevitavelmente
46
Contudo o ser ao interpelar o humano natildeo se manifesta antes se oculta esconde sua
proveniecircncia mostra-se ambiacuteguo e pela metade A forma de manifestaccedilatildeo do ser passiacutevel de
ser apreendida como uma realidade existente daacute-se por meio de sua participaccedilatildeo na realidade
presente qual seja ente (seu particiacutepio presente) A predileccedilatildeo pelo ente nasceria justamente
de seu caraacuteter manipulaacutevel embora haja uma conclusatildeo que clama as variaccedilotildees da palavra ser
e seu comportamento com respeito ao ldquoser em si mesmordquo evocado de modo distinto de outros
substantivos e verbos com relaccedilatildeo aos seus respectivos entes A eleiccedilatildeo de uma manifestaccedilatildeo
do ser diz muito sobre o modo relacional do humano com a conduccedilatildeo de sua existecircncia10
Alguns anos antes da composiccedilatildeo da Einfuumlhrung em um compecircndio posteriormente
publicado sob o tiacutetulo Sein und Wahrheit (1933-34) Heidegger se aproximou sistematicamente
da constituiccedilatildeo histoacuterica da metafiacutesica A obra eacute todavia pouco comentada O motivo eacute simples
haacute certo complexo ou trauma envolto na abordagem de um texto do periacuteodo da ascensatildeo do
Partido Nazi e do consentimento ao seu propoacutesito inicial Embora haja certos traccedilos de sintonia
com o discurso do momento pelo qual o povo alematildeo atravessava natildeo haacute nenhum resquiacutecio em
Heidegger dos preconceitos intriacutensecos ao desenrolar do totalitarismo Dentro do ambiente
promissoramente inovador Heidegger escreve ldquoToda gestatildeo essencial se vivifica desde uma
grande determinaccedilatildeo oculta no fundamentordquo (ID 2001 3) As palavras de Heidegger parecem
indicar antes de uma referecircncia ao destino da Alemanha o fato de que a questatildeo fundamental
estaacute contida no proacuteprio fundamento Por este motivo Heidegger ainda sugere um ldquo() caminho
histoacuterico na essecircncia da filosofia ndash e natildeo se poderia ter outro e isto justamente porque a filosofia
eacute ela mesma o acontecimento fundamental da histoacuteria da existecircnciardquo (ID IBIDEM 17) Resta
saber portanto como esse acontecimento fundamental se constitui como metafiacutesica
10 Heidegger justifica este ponto na sua apresentaccedilatildeo do conceito de Cura Sorgen em Sein und Zeit que embora
seja de suma importacircncia uma explanaccedilatildeo mais cuidadosa tomaria aqui e agora demasiado tempo mas que
precisa ao menos ser mencionada Seria esta caracteriacutestica originaacuteria do ser humano Cura Cuidado (Sorgen)
aquilo que o impulsionaria a preservar sua condiccedilatildeo evitando a queda nos abismos existenciais e a confusatildeo
generalizada (cf HEIDEGGER OP CIT 196-200)
47
Quando a tarefa eacute compreender a histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica realizada por Heidegger
insisto nunca eacute demasiada repeticcedilatildeo retomar as primeiras linhas de Sein und Zeit Vale lembrar
uma vez mais a disputa titacircnica a respeito da essecircncia (γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας) que
envolve os questionamentos aparentemente desprestigiados da metafiacutesica Conforme Heidegger
a maneira pela qual o problema perdurou sofreu alteraccedilotildees de Platatildeo e Aristoacuteteles ateacute sua
formulaccedilatildeo mais sofisticada na Wissenschaft der Logik (1812-16) de Georg W F Hegel Em
Sein und Wahrheit eacute tambeacutem a discussatildeo com Hegel que orienta a anaacutelise da metafiacutesica
tradicional Ateacute alcanccedilar Hegel entretanto Heidegger se preocupa em delinear as feiccedilotildees da
perda de sentido da μετὰ τὰ φυσικά aristoteacutelica na recepccedilatildeo tardia de seus escritos onde
ldquoGrandeza e iacutempeto desaparecem tanto na singularidade do questionamento criativo quanto na
designaccedilatildeo conceitual a praccedila desocupada daacute lugar agrave atividade de uma escola ndash somente
sobraram palavras e conceitos mas natildeo o poder estimulante da coisardquo (ID IBID 21)
Para Heidegger a unificaccedilatildeo do termo grego na palavra latina metaphysica natildeo eacute
acompanhada somente de uma correspondecircncia senatildeo ao mesmo tempo de uma mudanccedila em
seu significado Inerente agrave transformaccedilatildeo de seu sentido estaacute a apropriaccedilatildeo cristatilde do conceito
imputando um conhecimento suprassensiacutevel (trans physicam) de maior grau de importacircncia e
relevacircncia e diretamente relacionado ao divino Onde antes havia perplexidade na aspiraccedilatildeo agrave
sapiecircncia e observaccedilatildeo da realidade haacute agora um conhecimento humano elevado e suscetiacutevel agrave
confirmaccedilatildeo pela ciecircncia superior Heidegger visa e cita textualmente a formulaccedilatildeo de
Immanuel Kant da metafiacutesica como a ultrapassagem de todos os objetos empiacutericos a fim de
alcanccedilar um conhecimento viaacutevel e puro ou a superaccedilatildeo do conhecimento sensiacutevel pelo
conhecimento suprassensiacutevel11
11 Embora esta premissa esteja presente jaacute na Kritik der reinen Vernunft e em certa medida em suas especulaccedilotildees
preacute-criacuteticas atingindo ainda todos os escritos intercalados agraves duas outras criacuteticas e ainda os posteriores ele parece
se referir agraves conferecircncias de Kant reunidas por Karl Heinrich Ludwig Poumllitz publicadas em Vorlesungen Kants
uumlber Metaphysik aus drei Semestern Max Heine (org) Leipzig Hirzel 1984 (natildeo tenho certeza disto entretanto)
48
Haacute ainda a absorccedilatildeo do direito agrave verdade metafiacutesica pela ontologia claacutessica e neste
sentido Heidegger cita Alexander Baumgarten onde a verdade metafiacutesica eacute o princiacutepio
universal e fundamental em conveniecircncia agrave determinaccedilatildeo do ente enquanto tal Deste modo
conclui que a metafiacutesica se constitui como uma determinaccedilatildeo cristatilde e ideia matemaacutetico-
metoacutedica de fundamentaccedilatildeo nos sistemas metafiacutesicos da modernidade onde ela se apresenta
como conhecimento do ente em seu todo Hegel ocuparia neste sentido o lugar da consumaccedilatildeo
da plenitude da filosofia ocidental na metafiacutesica destacado o caraacuteter teoloacutegico no qual a medida
do saber eacute o ldquoinfinitordquo (perfectum) manifesto enquanto identidade absoluta (perfectissimus)
ou espiacuterito absoluto Por este motivo ao que parece quando se refere agrave histoacuteria da disputa
titacircnica sobre a essecircncia em Sein und Zeit Heidegger aponta a Wissenschaft der Logik de Hegel
como ponto de chegada Ali a loacutegica eacute entendida como ciecircncia do pensamento todavia natildeo
como ciecircncia responsaacutevel por regular o pensamento mas como fundamento do conceito e em
uacuteltima instacircncia fundamento do ente em si mesmo Heidegger explica dizendo que em Hegel
ldquoA metafiacutesica como ciecircncia do ser do ente eacute lsquoLoacutegicarsquo e esta Loacutegica eacute Loacutegica lsquodorsquo Absoluto isto
eacute de Deus Genitivo deliberadamente ambiacuteguo Natildeo apenas um genitivus objectivus Deus
representado mas sim genitivus subjectivus a essecircncia de deus como presenccedila do Espiacuterito
Absolutordquo (ID IBID 76) Em um momento final da exposiccedilatildeo da questatildeo fundamental da
filosofia Heidegger faz uma divisatildeo entre a filosofia ocidental em seu princiacutepio e em seu fim
escrevendo que
No princiacutepio a mais profunda necessidade era o questionamento na luta com os
poderes incontrolaacuteveis da verdade e da decepccedilatildeo A filosofia causava o mais alto
poder clarificante da naccedilatildeo e de sua existecircncia Riqueza de decisatildeo momento de
decisatildeo No fim alta bem-aventuranccedila na suspensatildeo das contradiccedilotildees fraqueza de
meros conceitos opostos fracasso e morte de todo questionamento Eternidade vazia
cheia de indecisotildees (ID IBID 77)
49
A eternidade vazia cheia de indecisotildees todavia natildeo soa aqui como algo proveniente de um
descontentamento Pelo contraacuterio emerge desde a simples oposiccedilatildeo de conceitos com o fito de
suspender contradiccedilotildees e evidenciar uma maacutexima clareza e nitidez com o intuito de um suposto
pleno contentamento como se a profunda necessidade de questionamento houvesse sido calada
pela extrema emergecircncia de soluccedilatildeo Um abismo entre a filosofia ocidental em seu princiacutepio e
em seu fim eacute diagnosticado de maneira direta e evidente Longe de apontar culpados ou
referendar uma condenaccedilatildeo agrave metafiacutesica claacutessica Heidegger explica o processo intriacutenseco de
explicaccedilatildeo e complicaccedilatildeo da metafiacutesica evidenciando fatualmente a transiccedilatildeo do pensamento
da histoacuteria do ser da ontologia grega agrave latina A distacircncia que provecirc de clareza a anaacutelise eacute todavia
bastante tendenciosa aos propoacutesitos da ontologia fundamental A maneira pela qual a proacutepria
ontologia se protege com uma complexidade de conceitos dificulta a visualizaccedilatildeo do percurso
histoacuterico e da explanaccedilatildeo esclarecedora
Vale portanto retomar alguns aspectos relevantes embora por vezes sutis da pesquisa
acerca da ontologia na metafiacutesica claacutessica Gostaria de propor um breve desvio que agrave primeira
vista pareceraacute desnecessaacuterio contudo configura-se como extremamente pertinente ao
propoacutesito do capiacutetulo Atualmente as pesquisas voltadas ao estudo da ontologia se restringem
ou bem ao estudo histoacuterico ou bem agraves repercussotildees da metafiacutesica na filosofia contemporacircnea
Via de regra servem de embasamento para questotildees projetadas aos assuntos pertinentes da
eacutepoca vigente A ontologia se torna assim uma ldquoaacuterea da filosofiardquo uma ldquodisciplinardquo ou mesmo
um tronco braccedilo ou ramificaccedilatildeo dos estudos filosoacuteficos Os pesquisadores responsaacuteveis por
esta aacuterea da filosofia desdobram prolegocircmenos e comentaacuterios explicativos aos textos claacutessicos
fundamentando muacuteltiplas outras aacutereas Poucas vezes eacute possiacutevel observar um trabalho sobre
ontologia que realmente conecte seu sentido primaacuterio aos problemas apresentados nos dias de
hoje todavia escavando com devoccedilatildeo algumas pesquisas emergem sobremaneira conexas
50
A ontologia parece ser mesmo ldquoutilizadardquo como ponte para abrir novos caminhos como
por exemplo as discussotildees histoacutericas na anaacutelise do desenvolvimento da cultura as
investigaccedilotildees epistemoloacutegicas na confrontaccedilatildeo das possibilidades de conhecimento as
consideraccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas na constituiccedilatildeo dos haacutebitos e costumes da relaccedilatildeo do ser humano
com as virtudes deveres e utilidades os juiacutezos esteacuteticos na relaccedilatildeo com a obra de arte ou
mesmo as bases psicanaliacuteticas do entendimento do proacuteprio humano e sua relaccedilatildeo com as coisas
e o mundo entorno
Um dos exemplos mais niacutetidos de um pensamento comprometido em discutir a
ontologia por si mesma observando a maneira pela qual as categorias ontoloacutegicas dispotildeem
ainda hoje os modos de estruturar a realidade talvez se apresente nas recentes discussotildees em
torno ao ldquodigitalrdquo e ao ldquovirtualrdquo ou as propostas de uma ldquoontologia digitalrdquo Ouvi falar pela
primeira vez sobre ldquoontologia digitalrdquo por meio de Rafael Capurro em 2009 durante o III
Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica realizado em Natal na Universidade Federal do Rio
Grande do Norte12 Ateacute entatildeo possuiacutea minhas proacuteprias teorias acerca do mundo digital e da
esfera virtual da internet todavia natildeo tinha sequer noccedilatildeo da envergadura do problema e da
maneira pela qual o assunto podia ser pensado desde uma perspectiva ontoloacutegica e natildeo
meramente poliacutetico-ativista ou mesmo teoacuterico-juriacutedica Embora este natildeo seja propriamente o
assunto do capiacutetulo gostaria de abordar o tema como forma de justificar o questionamento pela
ontologia claacutessica para aleacutem da mera constataccedilatildeo historiograacutefica Conforme pude acompanhar
a inquietaccedilatildeo que move os trabalhos se concentra na crenccedila segundo a qual todos os fenocircmenos
podem ser analisados construiacutedos e manipulados sob a condiccedilatildeo de poderem ser digitalizados
12 A discussatildeo de Capurro havia comeccedilado com uma troca de e-mails com Michael Eldred A conversa redundou
em primeira matildeo nos trabalhos de Capurro intitulados Entwurf einer digitalen Ontologie (1999) e Beitraumlge zu
einer digitalen Ontologie (1999) sendo estendida em ulteriores escritos como Interpreting the digital human
(2008) e Einfuumlhrung in die digitale Ontologie (2009) aleacutem do livro publicado por Eldred The Digital Cast of
Being (2009) Provavelmente a discussatildeo ainda prossegue e outros trabalhos foram ou estatildeo sendo publicados
51
Talvez como um chiste mas bastante pertinente e veriacutedico Capurro afirma que
atualmente se algueacutem natildeo estaacute na rede eacute como se natildeo existisse Dando impulso para uma
formulaccedilatildeo inusitada esse est computari em analogia agrave famosa foacutermula de George Berkeley
(esse est percipi) A conclusatildeo bastante perspicaz extraiacuteda por Capurro eacute a de que seria correto
dizer que hoje vemos a realidade no horizonte de sua digitabilidade Uma seacuterie de outros termos
e expressotildees natildeo-convencionais emergem do texto de Capurro como ldquoem tudo que eacute puramente
virtual as coisas consistem essencialmente em bitsrdquo ou a denominaccedilatildeo ldquopitagorismo digitalrdquo
Entretanto todas as definiccedilotildees e determinaccedilotildees estatildeo conectadas ao arcano questionamento em
torno ao ente
O que eacute o ente Esta pergunta fundamental da metafiacutesica natildeo pode ter uma resposta
definitiva a partir da perspectiva de um conhecimento finito sem cair na ilusatildeo
essencialista Isto tem consequecircncias para a problemaacutetica de como pensar uma cultura
digital Uma ontologia digital eacute uma interpretaccedilatildeo possiacutevel do ser dos entes vistos
desde sua digitabilidade No entanto tal ontologia corre sempre o perigo de
transformar-se em uma metafiacutesica digital no momento em que acredita ser a
verdadeira ou uacutenica resposta agrave pergunta pelo ser A ontologia digital eacute uma possiacutevel
compreensatildeo do ser por parte do conhecimento humano finito Todas as regiotildees ou
esferas dos entes satildeo concebidas entatildeo como digitais (CAPURRO 2009 322)
A introduccedilatildeo da digitabilidade para aleacutem da anaacutelise do ldquoserrdquo quantificado pela ciecircncia moderna
confere uma perspectiva nova de experimentaccedilatildeo do ente em sua totalidade Chama atenccedilatildeo o
perigo envolto na transformaccedilatildeo em uma ldquometafiacutesica digitalrdquo na qual uma virada ontocecircntrica
concentraria o poder da verdade enquanto julgamento como oriente agrave pergunta pelo ldquoserrdquo
Talvez o mais importante da anaacutelise de Capurro consista justamente na renovaccedilatildeo desta criacutetica
na qual se chama atenccedilatildeo para a imprecisatildeo especulativa por meio da indefiniccedilatildeo do virtual
52
Natildeo eacute difiacutecil perceber que o mundo digital oferece uma vasta gama de temas e
possibilidades de se pensar filosoficamente sob as mais diversas perspectivas Natildeo haacute grande
espanto na busca dos filoacutesofos por reflexotildees em torno aos acontecimentos revolucionaacuterios dos
veiacuteculos de informaccedilatildeo e tecnologias em geral no seacuteculo vinte-e-um Contudo admiraacutevel eacute
encontrar o caminho oposto o momento no qual desenvolvedores da ciecircncia e da teacutecnica
buscam a filosofia para fundamentar seus trabalhos Eacute caso dos estudos realizados por Peter
Oslashhrstroslashm Henrik Schaumlrfe e Sara L Uckelman cujos resultados foram publicados nos anais da
International Conference on Conceptual Structures um evento dedicado agrave ciecircncia da
computaccedilatildeo Os trecircs investigadores fundamentam desde a ontologia moderna claacutessica a
concepccedilatildeo de hipertexto um conceito fundamental da computaccedilatildeo13 Para Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e
Uckelman o nascimento do termo ldquoontologiardquo representa o estabelecimento de um hipertexto
sobre a realidade e a temporalidade em pleno seacuteculo dezessete Os pesquisadores se referem
especificamente a Jacob Lorhard autor dos oito volumes intitulados Ogdoas Scholastica (1606)
responsaacutevel por cunhar o termo ldquoontologiardquo pela primeira vez na histoacuteria
Lorhard compocircs sua Ogdoas como uma gramaacutetica para o ensino escolar por meio de
aacutervores diagramaticais A teacutecnica utilizada por Lorhard foi profundamente influenciada por
Petrus Ramus (Pierre de la Rameacutee) cujo objetivo era transformar a razatildeo dialeacutetica em um
meacutetodo de loacutegica pedagoacutegica Petrus Ramus foi uma figura controversa e polecircmica Aleacutem de
suas interpretaccedilotildees pouco ortodoxas de Aristoacuteteles Ramus defendia uma completa reforma no
sistema educacional Ele fomentava o espiacuterito humanista pelo qual procurava devolver agrave
retoacuterica sua posiccedilatildeo proeminente visando desautorizar o peso da loacutegica escolaacutestica14
13 A ideia de hipertexto eacute bastante antiga todavia o termo no sentido moderno foi cunhado por Ted Nelson em
1965 para descrever o sistema de escrita natildeo-sequencial que envolvia o ligamento entre textos distintos em uma
mesma interface na internet O sistema de hyperlinks em um siacutetio da internet eacute um exemplo bastante simples de
um hipertexto 14 Cf Petrus Ramus Sa Vie Ses Eacutecrits et Ses Opinions Charles Waddington (ed) Paris Librairie de Ch Meyrteis
1855 Acerca das singularidades de Petrus Ramus confira Laura Adriaacuten Lara ldquoPetrus Ramus y el ocaso de la
retoacuterica ciacutevicardquo Utopiacutea y Praxis Latinoamericana v 13 n 43 (out-dez 2008) 11-31 e ainda Frank P Graves
Petrus Ramus and the Educational Reformation of Sixteenth Century New York Macmillan 1912
53
Havia um profundo espiacuterito anti-escolaacutestico que movia os interesses de Ramus
enfatizando uma postura radical na qual a filosofia ramista considerava falsa todas as
afirmaccedilotildees de Aristoacuteteles Para facilitar o processo de aprendizagem pelo qual o domiacutenio das
ciecircncias e artes liberais pode ser alcanccedilado Ramus emprega seus ldquoesquemas visuais abstratosrdquo
Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman se referem aos esquemas de Ramus como base para a aacutervore
diagramatical de Jacob Lorhard ndash para os pesquisadores este tipo de diagrama eacute o berccedilo de
todo futuro hipertexto
Eacute faacutecil observar que a estrutura da Ogdoas Scholastica de Jacob Lorhard permite ao
leitor localizar conceitos especiacuteficos e suas respectivas definiccedilotildees por meio de uma rede de
interconexotildees na forma de diagramas A ldquoaacutervorerdquo facilita natildeo soacute a compreensatildeo dos conceitos
como tambeacutem a maneira pela qual eles se relacionam uns com os outros Sem embargo trata-
se de uma gramaacutetica pela qual o domiacutenio de conceitos fundamentais da metafiacutesica se torna
bastante simples concordando em absoluto com a demanda da eacutepoca em introduzir este tipo de
estudo nos niacuteveis baacutesicos de ensino Com obras como as de Lorhard a exigecircncia do estudo da
ontologia foi difundida durante o seacuteculo dezoito como parte essencial da formaccedilatildeo acadecircmica
baacutesica15 Aleacutem disto a Ogdoas ainda sustentava a eacutegide da clarificaccedilatildeo da ontologia como base
para todo ulterior desenvolvimento intelectual Em outros termos Lorhard (assim como Ramus)
acreditava que natildeo era possiacutevel esclarecer nenhuma ciecircncia se natildeo houvesse de antematildeo uma
lucidez absoluta a respeito dos fundamentos do ente que poderia ser proporcionada apenas pelo
estudo por ele nomeado ldquoontologiardquo um discurso que buscava um pleno esclarecimento dos
termos empregados para definir todo e qualquer ulterior passo tomado tanto nas ciecircncias do
espiacuterito quanto nas ciecircncias da natureza
15 Muito disto deve-se ao filoacutesofo norueguecircs Jens Kraft cuja obra (influenciada em larga escala pela Metaphysica
sive Ontologia de Christian Wolff) reforccedilou o peso dos estudos em ontologia Dentro da compreensatildeo de Kraft
compartilhada tambeacutem por Lorhard e outros a ontologia ganha um lugar privilegiado como unificaccedilatildeo sistemaacutetica
das estruturas do pensamento como um todo
54
O oitavo livro da Ogdoas de Lorhard que encerra o compecircndio e eacute dedicado agrave ontologia
no sentido de unificar todos os escritos anteriores define a metafiacutesica como ldquo() o
conhecimento de um inteligiacutevel enquanto inteligiacutevel ()rdquo (LORHARD sd 3) Este conhecimento
eacute divido entre conhecimento dos particulares e dos universais Para Lorhard a parte da
metafiacutesica responsaacutevel pelo conhecimento dos particulares ou bem se refere acirc substacircncia
pertinente aos seres natildeo-complexos que subsistem em si mesmos (sejam eles criados ou natildeo)
ou bem aos acidentes
Jaacute o conhecimento dos universais se refere a tudo o que eacute inteligiacutevel redundando nos
atributos gerais ou nas distribuiccedilotildees conforme as quais o λόγος eacute entendido como um inteligiacutevel
As distribuiccedilotildees dizem respeito ao nada por um lado ou a algo por outro sendo este uacuteltimo
em seu aspecto positivo o que envolve as ideias de ldquoessecircnciardquo e ldquoenterdquo As noccedilotildees de ldquoessecircnciardquo
e ldquoenterdquo satildeo centrais natildeo apenas para o sistema de Lorhard mas tambeacutem para todas as
subsequentes compreensotildees da ontologia Em uma primeira definiccedilatildeo Lorhard observa a
ldquoessecircnciardquo em sua relaccedilatildeo com o λόγος definindo que ldquoEssecircncia eacute algo produtivo pelo qual o
Ser eacute o que eacute Esta palavra estrangeira eacute chamada pelos Escolaacutesticos de Entidade ou quidditasrdquo
(IDEM IBIDEM 4) Em segundo lugar considera a ldquoessecircnciardquo em relaccedilatildeo a sua distribuiccedilatildeo na
qual ela eacute ou bem ldquorealrdquo (ou seja uma atualizaccedilatildeorealizaccedilatildeo do ser) ou bem ldquoimaginaacuteriardquo (no
caso de um ser puramente racional) Ambas podem ser ldquosimplesrdquo ou ldquocompostasrdquo ldquoabsolutasrdquo
ou ldquorespectivasrdquo ldquouniversaisrdquo ou ldquosingularesrdquo Dentro do uacuteltimo destes casos a ldquoessecircnciardquo
pode ser ainda ldquogeneacutericardquo (ou um gecircnero compartilhado por outras espeacutecies) ou ldquoespeciacuteficardquo
(relativa a uma uacutenica espeacutecie) Natildeo haacute grande espanto nos pontos apresentados ateacute entatildeo por
Lorhard O que haacute na verdade eacute uma constituiccedilatildeo sistemaacutetica de um diaacutelogo que estava sendo
travado jaacute haacute muito tempo e sobremaneira evidente no periacuteodo no qual ele compocircs sua obra
Suas contribuiccedilotildees mais significantes talvez se deem na seccedilatildeo seguinte quando aborda a
questatildeo do ldquoenterdquo
55
Lorhard tambeacutem considera o ldquoenterdquo no discurso unificador bem como na questatildeo da
ldquoessecircnciardquo afirmando dele algo produtivo ldquodotado de certa essecircnciardquo Em seu caraacuteter
distributivo o ldquoenterdquo (assim como a ldquoessecircnciardquo) eacute ou bem ldquorealrdquo ou bem ldquoracionalrdquo Ele define
o ldquoente de razatildeo ou racionalrdquo afirmando que ldquoEacute um ente de razatildeo que eacute tocado pela cogitaccedilatildeo
de uma mente singular de acordo com o modo real do ente agrave parte disto eacute nada Eacute tambeacutem
chamado ente fictiacutecio e imaginaacuteriordquo (ID IBID 5) Jaacute o ldquoente realrdquo pode se dar por meio do
discurso (λόγος) de sua proacutepria essecircncia ou ainda ser distribuiacutedo em entes primaacuterios e
secundaacuterios (estes uacuteltimos decorrentes dos primeiros) sendo ambos ldquosimplesrdquo ou ldquocomplexosrdquo
ldquoabsolutosrdquo ou ldquorespectivosrdquo ldquouniversaisrdquo ou ldquoparticularesrdquo ldquoimateriaisrdquo ou ldquomateriaisrdquo
ldquopermanentesrdquo ou ldquosucessivosrdquo
Toda a divisatildeo da ontologia de Lorhard acompanha em muitos aspectos a ontologia
derivada da filosofia grega claacutessica desde o processo dialeacutetico de questionamento da realidade
conforme a doutrina platocircnica e a divisatildeo das Categorias de Aristoacuteteles A principal distinccedilatildeo
do emprego do termo ontologia como expressatildeo e manifestaccedilatildeo das doutrinas metafiacutesicas em
Lorhard eacute o foco especiacutefico de uma ldquodoutrina dos inteligiacuteveisrdquo Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman
comentam que
Conforme Lorhard haacute uma importante dualidade entre os entes e nossa discussatildeo
racional a respeito deles Parece que ele insistiu na necessidade dessa dualidade no
sentido de que cada vez que noacutes discutimos os entes no mundo tentando classificaacute-
los tambeacutem temos que refletir sobre os conceitos usados para fazecirc-los (OslashHRSTOslashM
SCHAumlRFE E UCKELMAN OP CIT 4)
Em termos mais simples apoacutes um longo periacuteodo de aristotelismo escolaacutestico talvez tenha sido
Lorhard o primeiro a atentar para o fato de certa confusatildeo gerada dentro da metafiacutesica a respeito
da maneira pela qual se predica o ser do ente em sua participaccedilatildeo presente na realidade
56
Seria liacutecito portanto argumentar que a evidecircncia da confusatildeo de termos se deve ao fato
de Lorhard ter deslocado o ontocentrismo metafiacutesico para uma teoria dos intiligiacuteveis Ainda
conforme Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman a postura de Lorhard eacute diretamente influenciada pela
obra de Clemens Timpler que sustentava a mesma posiccedilatildeo a respeito da metafiacutesica desde uma
confrontaccedilatildeo direta com a filosofia de Francisco Suaacuterez Esta seria a contenda principal do
iniacutecio da modernidade responsaacutevel por conformar e enformar a metafiacutesica como ontologia tal
qual hoje ainda se a concebe Joseph S Freedman desenvolve uma anaacutelise bastante precisa da
maneira pela qual Timpler fundamentou sua postura e as consequecircncias de seu trabalho
sobretudo no que tange agrave disputa com Francisco Suaacuterez A respeito da proposiccedilatildeo ldquotudo que eacute
inteligiacutevelrdquo (omne intelligibile) o tema constitutivo da metafiacutesica Freedman (cf 2009 10-11)
comenta que Timpler provecirc uma moldura conceitual dentro da qual alguns conceitos
ontologicamente baacutesicos satildeo englobados quais sejam ldquoalgordquo (aliquid) ldquoprivaccedilatildeordquo (privatio)
ldquoessecircnciardquo (essentia) e ldquoentidaderdquo (ens) Dentro da dissoluccedilatildeo dos conceitos na obra central de
Timpler Metaphysicae systema methodicum (1604) Freedman comenta
Conforme Timpler ldquotudo aquilo que eacute Inteligiacutevelrdquo eacute dividido entre nihil (ie ldquonadardquo
ou ldquonatildeo-serrdquo) e aliquid aut est (ldquoalgordquo ou ldquoenterdquo) esta eacute basicamente a mesma
dicotomia que William Shakespeare aludiu quando ele coloca no Ato 3 Cena 1 de
Hamlet ndash alguns anos antes (c 1600) da publicaccedilatildeo do texto de Timpler sobre
metafiacutesica ndash que ldquoser ou natildeo ser estaacute eacute a questatildeo []rdquo Mas esta foi a questatildeo que
Timpler e todos os seus (conhecidos) contemporacircneos acadecircmicos aparentemente
desejaram evitar de discutir A discussatildeo da questatildeo de Shakespeare ndash e da dicotomia
de Timpler ndash poderia ter provido as bases para o levantamento de toacutepicos altamente
sensiacuteveis por exemplo 1) a relaccedilatildeo entre Deus e Nada (nihil) 2) a relaccedilatildeo entre Deus
entidade e privaccedilatildeo (ie mal) e 3) a relaccedilatildeo entre Deus e o princiacutepio de contradiccedilatildeo
(FREEDMAN op cit 12)
57
Embora estas questotildees estivessem jaacute sempre presentes dentro dos questionamentos de Timpler
e de seus contemporacircneos elas eram todavia caladas de acordo com Freedman (IDEM IBIDEM)
pela imposiccedilatildeo das instituiccedilotildees cristatildes das coisas sobre as quais se era proibido falar ou acreditar
O que perdura das apresentaccedilotildees filosoacuteficas da metafiacutesica como ontologia em Timpler
ponderando seu princiacutepio do inteligiacutevel concentra-se em primeiro lugar como o mateacuteria de
todas as disciplinas e subdisciplinas acadecircmicas e em segundo lugar como foco de disciplinas
separadas como a archeologia gnostologia hexiologia intelligentia pansophia e tecnologia
(cf ID IBID 14)
O motivo da predileccedilatildeo da questatildeo dos intiligiacuteveis como foco principal de todos os
temas concernentes ao pensamento aparece dentro da possibilidade de envolver todos os
aspectos responsaacuteveis pelos modos operativos de pensar 16 Desta forma por exemplo as
disciplinas separadas como a ldquotecnologiardquo seriam desenvolvidas para as consideraccedilotildees gerais
e universais da estrutura das disciplinas liberais (cf ID IBID 16) Embora discrimine em parte
o princiacutepio da cogniccedilatildeo a metafiacutesica tampouco envolve a loacutegica por levar em consideraccedilatildeo
apenas os princiacutepios excluindo entidades complexas que redundem no princiacutepio de contradiccedilatildeo
Em contrapartida ao sistema metoacutedico de Timpler vecirc-se em Francisco Suaacuterez um
caraacuteter muito mais ontocecircntrico As Disputationes Metaphysicae (1597) de Francisco Suaacuterez
satildeo publicadas dentro de um contexto de desarmonia e conflitos entre a teologia e a filosofia
onde os conceitos fundamentais na discussatildeo sobre o divino estavam sendo postos em questatildeo
A despeito das influecircncias de Suaacuterez e dos necessaacuterios posicionamentos poliacuteticos sua obra
parece instaurar um regulamento por meio do qual nada poderia ser legado agrave mera
inteligibilidade
16 Freedman (ID IBID 15) cita o teoacutelogo calvinista Matthias Martinius contemporacircneo de Timpler que evidencia
de maneira mais clara os motivos das proposiccedilotildees fundamentais Ele atesta que conforme esta designaccedilatildeo agrave
metafiacutesica ldquopertence tudo aquilo que eacute cognosciacutevelrdquo (de omni cogitabili) mas com certas restriccedilotildees englobando
a ldquouniversalidade das coisasrdquo (rerum universitatem) mas natildeo envolvendo disciplinas acadecircmicas especializadas
singulares ou particulares
58
As Disputationes de Suaacuterez podem ser entendidas desde uma divisatildeo da obra na qual a
primeira parte (as primeiras vinte-e-sete questotildees) se refere ao ente no sentido geral enquanto
a segunda parte (as vinte-e-sete uacuteltimas questotildees) lida com o ente particular redundando em
uma dupla divisatildeo da proacutepria metafiacutesica entre ldquometafiacutesica geralrdquo e ldquometafiacutesica especialrdquo (cf
SUAacuteREZ 2004 DOYLE 2004) Ao comentar o desenvolvimento deste aspecto da filosofia de
Suaacuterez Ludger Honnefelder ainda acrescenta
Conforme Suaacuterez a metafiacutesica lida com o conceito de ente tanto ldquoformalrdquo quanto
ldquoobjetivordquo Pelo conceito formal Suaacuterez entende o ato de conhecer do qual ldquoex unica
et prima impositionerdquo que rende uma representaccedilatildeo intencional do objeto pelo
conceito objetivo ele designa aquilo que representa intencionalmente o ato Em outras
palavras Suaacuterez natildeo assume a teoria dos conceitos caracterizada pelo paralelismo
noeacutetico-noemaacutetico de res e conceptus antes ele aceita a abordagem criacutetica de Ockham
em direccedilatildeo a interpretaccedilatildeo realiacutestica dos conceitos universais Desde que Scottus ele
mesmo natildeo depende desse paralelismo quando isto vem a dizer respeito sobre o ente
Suaacuterez substancialmente segue Scottus e aplica ldquoenterdquo para um conceito formal
primaacuterio e unificado que em virtude de sua imposiccedilatildeo representa um objetivo
primaacuterio e unificado do conteuacutedo absolutamente simples que envolve todos os entes
distintos de uma maneira indeterminada ie como ente (HONNEFELDER 2003)
Segundo a exposiccedilatildeo de Honnefelder o direcionamento da metafiacutesica de Suaacuterez iraacute redundar
em alguns pontos baacutesicos em primeiro lugar o fato de que a determinaccedilatildeo do ente transcende
a generalidade dos gecircneros em segundo que a determinaccedilatildeo natildeo pode ela mesma ser definida
podendo apenas ser explicada em relaccedilatildeo agrave existecircncia real em terceiro que toda existecircncia estaacute
sujeita agrave fundamentaccedilatildeo de disposiccedilatildeo ontoloacutegica em uacuteltimo lugar que o ente finito perdura
em um modo indeterminaacutevel de quantidade sendo o ente infinito eacute aquilo que eacute perfeito e
totalmente indivisiacutevel em si mesmo e mais real e completo (cf IDEM IBIDEM)
59
Agora bem com o fito de retomar a linha de raciociacutenio desenvolvida no capiacutetulo eacute
preciso retomar a ideia de substantivaccedilatildeo do Ocidente e a maneira pela qual esse processo se
deixar ver ao longo da histoacuteria da ontologia Martin Heidegger indica em primeiro lugar o que
ele considera como o problema fundamental pelo qual a metafiacutesica se desdobra no Ocidente
qual seja o fato de que o ldquoserrdquo natildeo eacute um ldquoenterdquo mas que todavia um foi tomado pelo outro Ele
apresenta ainda o argumento de que a transposiccedilatildeo da experiecircncia fundamental grega (conforme
apresentada tambeacutem por Charles H Kahn) sofre uma violaccedilatildeo na absorccedilatildeo latina e na
transferecircncia de conceitos de um modo de pensar para o outro Eacute dentro deste ambiente latino
que eacute possiacutevel rastrear a maneira pela qual a metafiacutesica se forma e transforma em ontologia ou
bem dentro de uma filosofia do inteligiacutevel (como em Lorhard e Timpler) ou bem como um
ontocentrismo filosoacutefico (como em Suaacuterez) Sem embargo trata-se de uma disputa em torno agraves
formas primaacuterias da discussatildeo em torno ao ldquoserrdquo e ao ldquoenterdquo Eacute possiacutevel concluir desde a
constataccedilatildeo da entificaccedilatildeo do ser ou substantivaccedilatildeo do Ocidente que a demanda pela resposta
ao problema primeiro da filosofia necessariamente a encaminha para um percurso que natildeo
poderia ser outro Mas qual eacute propriamente este problema primeiro e como se constroacutei esse
caminho Natildeo haveria outra indicaccedilatildeo senatildeo a da ciecircncia dos primeiros princiacutepios e causas de
Aristoacuteteles Jaacute na doutrina das Categorias de Aristoacuteteles eacute possiacutevel observar a confusatildeo entre
ldquoserrdquo e ldquoenterdquo A questatildeo pode ser melhor observada na proposiccedilatildeo baacutesica e amplamente
difundida da Metafiacutesica ldquoO ente se diz em muacuteltiplos significados mas sempre em referecircncia a
uma unidade e a uma realidade determinadardquo (ARISTOacuteTELES 2002 131)17 A referecircncia a uma
unidade e uma realidade determinada eacute a chave para compreender a maneira pela qual a
ontologia se torna a ciecircncia responsaacutevel por esse tema (conforme Aristoacuteteles ldquoHaacute uma ciecircncia
que considera o ente enquanto ente e as propriedades que lhe competem enquanto talrdquo ID IBID)18
17 Τὸ δὲ λέγεται μὲν πολλαχῶς ἀλλὰ πρὸς ἓν καὶ μίαν τινὰ φύσις καὶ οὐχ ὁμωνύμως ἀλλrsquo (Metafiacutesica 1003a 30-
35) 18 Ἔστιν ἐπιστήμη τις ἧ τὸ ὄν ᾗ ὄν καὶ τὰ τούτῳ ὑπάρχοντα καθ αὑτό (Metafiacutesica 1003a 20)
60
Dentro desta ciecircncia o conceito central que unifica e determina ldquoenterdquo e ldquoserrdquo eacute
apresentado como οὐσία O conceito de οὐσία (substantia substacircncia) eacute bem desenvolvido nas
Categorias entre as expressotildees que natildeo satildeo compostas quais sejam a substacircncia mesma
quantidade qualidade relaccedilatildeo lugar tempo posiccedilatildeo estado accedilatildeo ou afecccedilatildeo Ela eacute
apresentada desde duas perspectivas uma primaacuteria outra secundaacuteria A substacircncia primeira
natildeo se afirma de um sujeito nem em um sujeito mas comporta as substacircncias segundas nas
quais a forma afirma a espeacutecie e o gecircnero (ldquoserrdquo do sujeito) comportando tambeacutem os acidentes
(ldquoserrdquo no sujeito) que a eles se atribui Embora o conceito em sua primeira formulaccedilatildeo
contemple o aspecto formal bem como o elemento inteligiacutevel envolve ainda o aspecto material
em seu segundo modo natildeo podendo ser um sem o outro
As consequecircncias do desenvolvimento de uma ciecircncia responsaacutevel pelo ente enquanto
ente centralizando o conceito de substacircncia e substantivando a ideia de ldquoserrdquo por meio de seu
particiacutepio presente ldquoenterdquo satildeo o que se pode considerar como o desenvolvimento da histoacuteria do
ldquoserrdquo ou a histoacuteria da maneira pela qual o Ocidente compreende o ldquoserrdquo e a si mesmo Por meio
desta postulaccedilatildeo o ldquoτὰ ὄνταrdquo eacute posicionado no centro do pensamento ocidental Mais ainda do
que uma simples constataccedilatildeo da maneira pelo qual coube ao Ocidente pensar curioso eacute
especular o fato de que se natildeo fosse possiacutevel pensar fora da delimitaccedilatildeo do ente natildeo haveria
sequer indagaccedilatildeo alguma sobre as limitaccedilotildees ou prejuiacutezos imbuiacutedos nesta formulaccedilatildeo Sem
embargo eacute possiacutevel constatar desde os recursos apresentados (e ainda por muitos outros
caminhos que natildeo este) a necessidade incontida do ser humano ocidental eacute desenhar de maneira
niacutetida as fronteiras do pensamento e da maneira pela qual esse pensamento deve e pode ser
aplicado Resta saber apoacutes esta delimitaccedilatildeo o que haacute para aleacutem da fronteira
61
2 O CAMINHO DA NEGATIVIDADE HENEOLOGIA E MEONTOLOGIA E A
ULTRAPASSAGEM DOS LIMITES DA METAFIacuteSICA
O discurso ontoloacutegico tanto grego quanto latino personificou a atividade filosoacutefica ocidental
em larga escala A maneira pela qual a ontologia habilitava ao raciociacutenio uma seacuterie de
procedimentos facilmente verificaacuteveis nutriu seguranccedila metodoloacutegica aos assuntos
concernentes aos problemas intelectuais com os quais o ser humano fatalmente se deparava ao
longo de suas especulaccedilotildees e que reverberavam ainda na conjuntura soacutecio-pragmaacutetica Eacute neste
sentido que teria afirmado Immanuel Kant de maneira perspicaz que a razatildeo humana se
defronta com inevitaacuteveis questotildees impostas por sua proacutepria natureza19 Tanto para Aristoacuteteles
quanto para Francisco Suaacuterez aleacutem de tantos outros entrementes a importacircncia de assegurar
uma linha de raciociacutenio vaacutelida natildeo somente atribuiacutea autoridade ao argumento como tambeacutem
provia de suficiente clareza a linguagem que advogava suas doutrinas Em outras palavras
tornava-se faacutecil convencer outrem de seus pressupostos dada a indefectiacutevel loacutegica empregada
para encadear as sentenccedilas e alcanccedilar uma conclusatildeo A ontologia por meio de suas loacutegicas de
identidade e natildeo-contradiccedilatildeo (e ateacute certo ponto tambeacutem via argumento do terceiro excluiacutedo)
visava alcanccedilar tanto para afirmaccedilatildeo quanto para negaccedilatildeo a dissoluccedilatildeo de todo e qualquer
paradoxo que colocasse a mente em estado de confusatildeo e discoacuterdia Independente daquilo que
estava sendo afirmado ou negado da linha de raciociacutenio ou doutrina em jogo os procedimentos
discursivos e intelectuais eram basicamente os mesmos com variaccedilotildees conceituais maiores ou
menores dependendo da vertente Todavia prosseguia-se sempre da mesma maneira
19 Kant afirma ldquoA razatildeo humana no seu gecircnio de seu conhecimento possui o peculiar destino de ser incomodada
por questotildees que natildeo pode evitar porque elas satildeo dadas pela natureza da razatildeo mesma mas tambeacutem natildeo possuem
respostas porque elas excedem a capacidade da razatildeo humanardquo (KANT 1956 5 Criacutetica da razatildeo pura AVII-
AVIII)
62
Contudo a despeito da supremacia ontoloacutegica outras formas de pensamento foram
desenvolvidas no decorrer da histoacuteria da filosofia fossem elas similares ou totalmente opostas
Alguns pensadores especialmente radicais se dedicaram a um modo reflexivo que se distanciava
consideravelmente da estrutura ontoloacutegica Suas bases seus pressupostos e seus meacutetodos pelos
quais prosseguiam no caminho especulativo dos temas propostos (muitas vezes os mesmos dos
formuladores da ontologia claacutessica) projetavam-se de maneira consideravelmente diversa Para
eles havia uma necessidade imperativa de incluir todos os elementos presentes na estrutura da
realidade pensada em sua maacutexima possibilidade de concepccedilatildeo tanto os que satildeo quanto os que
natildeo satildeo Ao que parece por este motivo Werner Beierwaltes considera que as caracteriacutesticas
pelas quais se configuram a ontologia claacutessica satildeo sobretudo frutos da interrogaccedilatildeo pelo nexo
da identidade e da diferenccedila quer seja na afirmaccedilatildeo parmeniacutedica da natildeo legitimaccedilatildeo filosoacutefica
da alteridade quer seja na resposta platocircnica do necessaacuterio estabelecimento da diferenccedila na
constituiccedilatildeo do ldquoserrdquo em seu inteiro (cf BEIERWALTES 1989 25) Para Beierwaltes o rigoroso
conceito de unidade demandado por Platatildeo em reposta agrave univocidade do ser de Parmecircnides
resultou na possibilidade de inclusatildeo do ldquonatildeo-serrdquo relativo ao ldquoserrdquo para afirmar sua totalidade
Disto derivaria a altercaccedilatildeo originaacuteria entre identidade e diferenccedila e nisto consiste a
possibilidade de desvio do pensamento ontoloacutegico20 Sem embargo precisamente neste ponto
que acredito poder encontrar o que chamo aqui de caminho da negatividade ou a possibilidade
de inclusatildeo do oxiacutemoro no caminho de pensamento delineado pela ontologia considerando que
ele se desdobra na tradiccedilatildeo do chamado neoplatonismo e ainda na miacutestica medieval
20 Trata-se da definiccedilatildeo do natildeo-ser como alteridade apresentada no Sofista Apoacutes a discussatildeo acerca da comunidade
de gecircneros e a questatildeo do ldquomesmordquo e do ldquooutrordquo que configuram o problema da identidade e da diferenccedila Platatildeo
apresenta a hipoacutetese de compreender o ldquomovimentordquo como ldquooutrordquo do ldquoserrdquo questionando a tese parmeniacutedica a
respeito da ldquoestaticidade do serrdquo Assim Platatildeo coloca a questatildeo ldquoDevemos trabalhar nossa coragem agora para
dizer que aquilo que lsquonatildeo eacutersquo definitivamente eacute algo que possui natureza proacutepria Devemos dizer que assim como
o grande era grande o belo era belo o natildeo grande eacute natildeo grande e o natildeo belo eacute natildeo belo da mesma maneira pela
qual natildeo eacute tambeacutem foi e eacute natildeo-ser e eacute uma das formas dentre as quais satildeordquo (PLATO 1997 282 Sofista 258 c-d)
A sequecircncia do diaacutelogo questionaraacute a realidade deste natildeo-ser relativo culminando na identidade entre pensamento
e discurso abrindo a possibilidade para o discurso falso (o do sofista) e introduzindo a assunccedilatildeo do paradoxo no
seio do pensamento representando o chamado parriciacutedio aos eleatas
63
Ateacute onde eacute possiacutevel investigar o termo neoplatonismo teria sido cunhado pela primeira
vez pelo helenista e medievalista Thomas Gale nos idos de 1670 Gale foi responsaacutevel por uma
seacuterie de estudos sobre o neoplatonismo pagatildeo e cristatildeo escrevendo sobre Plotino Jacircmblico
Joatildeo Escoto Eriuacutegena Maacuteximo Confessor entre outros21 Definiccedilotildees agrave parte os primeiros
elementos responsaacuteveis por delinearem um ldquoneoplatonismo originaacuteriordquo apenas tardiamente
nomeado satildeo atribuiacutedos a Amocircnio Sacas Contudo como a figura histoacuterica de Amocircnio Sacas
eacute tatildeo envolta em controveacutersias e misteacuterios quanto a vida de Pitaacutegoras ou Soacutecrates atribui-se
diretamente a fundaccedilatildeo de uma ldquoescola neoplatocircnicardquo a Plotino disciacutepulo de Amocircnio
Muacuteltiplos debates mais ou menos coerentes envolvem os relatos sobre a relaccedilatildeo entre Plotino e
Amocircnio aleacutem de polecircmicas acerca do proacuteprio Amocircnio22 Destaca-se apenas a autoridade dos
relatos de Porfiacuterio (em sua Vida de Plotino) nos quais se considera que o meacutetodo de pesquisa
aplicado por Plotino estava profundamente ligado ao de seu mestre O conteuacutedo dos discursos
de Plotino tambeacutem teria uma iacutentima relaccedilatildeo com as tentativas de Amocircnio de unificar os diversos
planos do ser e estabelecer a derivaccedilatildeo de todas as coisas a partir do uno23 Sem embargo
Plotino teria absorvido e desenvolvido a doutrina de Amocircnio e necessariamente de Platatildeo em
suas Eneacuteadas em um movimento de exegese ao discurso platocircnico Exegese esta suscetiacutevel de
diversas interpretaccedilotildees dos caminhos por Plotino tomados e mesmo natildeo muito consensual entre
os estudiosos da obra24
21 Extraiacute estes dados de Aaron W Huges em um trabalho intitulado ldquoMedievalrdquo and the Politics of Nostalgia
Ideology Scholarship and the Creation of the Rational Jew (2012) Huges natildeo apenas investiga as origens das
designaccedilotildees do neoplatonismo mas ainda constata que a alcunha de ldquoneoplatocircnicosrdquo continuou sendo utilizada
por eruditos alematildees no seacuteculo dezenove como uma menccedilatildeo pejorativa aos ldquofalsificadoresrdquo das doutrinas de Platatildeo
e Aristoacuteteles (cf HUGES 2012) 22 Conforme Giovanni Reale em sua Storia della filosofia antica (1975-1980) Sobre este ponto especificamente
acerca das incertezas em torno agrave figura de Amocircnio confira REALE 2008 5-13 23 Esta consideraccedilatildeo eacute apresentada por Giovanni Reale com base nos relatos de Nemeacutesio em De natura hominis
(cf REALE 2008 11) Conforme Francisco B Harriet a questatildeo fundamental se encontraria na foacutermula ldquoestaacute mais
aleacutem do intelecto e da essecircnciardquo (ἐπέκεινα νοῦϛ καὶ οὐσίας) conforme a formulaccedilatildeo de Oriacutegenes de Alexandria
em Contra Celsum (fons ex quo initium totius intellectualis naturae uel mentir est) presente em Plotino (Eneacuteadas
V 1 8 e VI 8 16) e derivada do ciacuterculo de Amocircnio (cf HARRIET 2012 153) 24 Sobre a questatildeo da exegese Marcus Reis Pinheiro (em Plotino exegeta de Platatildeo e Parmecircnides 2007)
argumenta que natildeo se pode reduzir a exegeacutetica agrave mera interpretaccedilatildeo dos diaacutelogos de Platatildeo e outros escritos Trata-
se antes do desdobramento de um discurso muito antigo onde ldquo() fazer exegese () natildeo eacute interpretar
objetivamente os textos mas caminhar rumo aos niacuteveis superiores junto com os antigosrdquo (P INHEIRO 2007 80)
64
Neste fluxo talvez o mais cabiacutevel usual e conhecido de todos os estabelecimentos de
um ldquoponto de partidardquo seja o do claacutessico artigo Jean Trouillard Le Parmeacutenide de Platon et son
interpretation neacuteoplatonicienne (1973) onde o neoplatonismo eacute pensado desde a busca da
doutrina originaacuteria de Platatildeo principalmente a partir de uma releitura de seu diaacutelogo
Parmecircnides Todavia a maneira pela qual eacute possiacutevel explanar esta releitura levanta suspeitas
sendo necessaacuterio ponderar em quais formas a exegese plotiniana converge ou diverge das
tentativas de uma interpretaccedilatildeo das doutrinas originaacuterias de Platatildeo Mais ainda estaacute tambeacutem
em jogo a autoridade de apontar que existam de fato doutrinas originaacuterias havendo ainda
abertura para questionar a fiabilidade e o suposto peso das chamadas ldquodoutrinas natildeo-escritasrdquo25
Seja como for interessa sobretudo destacar como com as Eneacuteadas de Plotino o pensamento
filosoacutefico experimenta um movimento iacutempar em relaccedilatildeo agravequilo que vinha sendo apresentado
Para Ciacutecero Cunha Bezerra eacute possiacutevel elencar alguns pontos que evidenciam de maneira
clara a renovaccedilatildeo do neoplatonismo Destaca-se em primeiro lugar a junccedilatildeo entre os elementos
aristoteacutelicos e pitagoacutericos em siacutentese com uma perfeita sintonia entre o platonismo acadecircmico
e as ldquodoutrinas natildeo-escritasrdquo Ademais a ldquohierarquizaccedilatildeordquo do real a partir da qual todos os
graus satildeo derivados desde o uno permite uma sistematizaccedilatildeo do platonismo anterior Por este
motivo tende-se agrave leitura conforme a qual o neoplatonismo possuiria um sistema ldquomonopolarrdquo
frente a um suposto ldquobipolarismordquo platocircnico Por fim haacute ldquo() o fim uacuteltimo do processo de
conhecimento que para o neoplatocircnico eacute a uniatildeo plena com Deus (fugir soacute ao soacute) uma uniatildeo
que tem como marca a supressatildeo (aphaiacuteresis) de todo saber e dizerrdquo (BEZERRA 2006 57)
Dentre os pontos apresentados interessa-me particularmente o uacuteltimo (evidente consequecircncia
dos trecircs primeiros) no qual o neoplatonismo aparece como uma ldquosupressatildeo de todo saber e
dizerrdquo
25 Haacute uma interessante e profunda discussatildeo acerca do tema na tradiccedilatildeo de leitores e inteacuterpretes do platonismo e
do neoplatonismo a respeito deste toacutepico Ciacutecero Cunha Bezerra (em Compreender Plotino e Proclo 2006) aborda
o tema abrindo uma interlocuccedilatildeo com a obra Platone alla ricerca della spienza segreta de Giovanni Reale e ainda
com as investigaccedilotildees de W K C Guthrie e a chamada Escola de Tuumlbingen (cf BEZERRA 200617-24)
65
O senso comum ocidental regula a atividade filosoacutefica como um progresso ininterrupto
rumo ao acuacutemulo de conhecimento e dissoluccedilatildeo dos problemas Curioso agora eacute pensar a
maneira pela qual uma doutrina filosoacutefica pode suprimir o saber e o dizer ao inveacutes de
acrescentar Mas eacute apenas possiacutevel atingir a compreensatildeo necessaacuteria desta supressatildeo uma vez
esclarecido o que eacute propriamente o princiacutepio negativo do pensamento de Plotino Para isto natildeo
se pode perder de vista as duas questotildees que levariam agrave construccedilatildeo do pensamento de Plotino
quais sejam ldquo() o problema religioso (que corresponde agrave busca de compreensatildeo do destino
da alma assim como sua restauraccedilatildeo) e o problema filosoacutefico relativo agrave explicaccedilatildeo racional da
realidade ()rdquo (IDEM IBIDEM 66)26 ponderando ainda que em Plotino ambas estatildeo perfeitamente
inter-relacionadas Para atingir este entendimento todavia eacute necessaacuterio analisar as chamadas
trecircs hipoacutestases de Plotino presentes em suas Eneacuteadas
O conjunto de circunstacircncia que acompanham a formulaccedilatildeo do pensamento de Plotino
eacute todavia aquele anteriormente citado apresentado por Werner Beierwaltes que remete agrave
contenda entre Parmecircnides e Platatildeo Contextualizar a disputa Parmecircnides-Platatildeo da qual
derivam centralmente as hipoacutestases de Plotino natildeo eacute necessariamente complicado embora
interpretaacute-la e desde aiacute desdobrar um novo caminho reflexivo seja uma tarefa bastante
trabalhosa A demanda especulativa eacute altiacutessima e envolve uma bibliografia excessivamente
extensa e complexa Contudo como o interesse aqui eacute a apresentaccedilatildeo dos aspectos centrais do
pensamento de Plotino e como deles redunda uma nova postura e atitude filosoacuteficas o trabalho
fica menos penoso Portanto para colocar em relevo as hipoacutestases de Plotino eacute importante ao
menos demonstrar de forma simples os pontos originais dos quais elas derivam seja em
Parmecircnides seja em Platatildeo (e ateacute certo ponto tambeacutem no neopitagorismo e em Aristoacuteteles
embora esta tarefa exija um pouco mais e seja um pouco mais complicada de rastrear) Para
alcanccedilar este objetivo torna-se imperioso retornar brevemente a Parmecircnides
26 Esta hipoacutetese eacute destacada por Bezerra diretamente da obra de Eacutemile Breacutehier La Philosophie de Plotin (1928)
66
O segundo fragmento do poema Sobre a Natureza de Parmecircnides catalisa os principais
argumentos do conflito permitindo compreender quais satildeo os pontos mais problemaacuteticos do
estabelecimento de sua doutrina na tradiccedilatildeo Aleacutem da Fiacutesica de Simpliacutecio as fontes pelas quais
se estruturou esse fragmento adveacutem dos Comentaacuterios ao Timeu e Comentaacuterios ao Parmecircnides
de Proclo Os oito versos contidos no fragmento centralizam a doutrina de Parmecircnides como
foi herdada pela tradiccedilatildeo a partir da manifestaccedilatildeo das duas uacutenicas vias possiacuteveis para o
pensamento quais sejam a via da verdade e a via da aparecircncia O fragmento diz
εἰ δ᾽ ἄγ᾽ ἐρὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας
αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι
ἡ μέν ὄπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι
πειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ)
ἡ δ᾽ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι
τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν
οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐόν (οὐ γὰρ ἀνυστόν)
οὔτε φράσαις
(KIRK E RAVEN 1957 269)
Pois bem agora vou eu falar e tu presta atenccedilatildeo ouvindo a palavra
acerca das uacutenicas vias de questionamento que satildeo a pensar
uma para o que eacute e como tal natildeo eacute para natildeo ser
eacute o caminho de persuasatildeo ndash pois Verdade o segue ndash
outra para o que natildeo eacute e como tal eacute preciso natildeo ser
esta via indico-te que eacute uma trilha inteiramente inviaacutevel
pois nem ao menos se reconheceria o natildeo ente pois natildeo eacute realizaacutevel
nem tampouco se mostraria
(Traduccedilatildeo de Fernando Santoro cf PARMEcircNIDES 200612)
67
O caminho da verdade que eacute e natildeo eacute para natildeo ser (ἡ μέν ὄπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ
εἶναι) e o caminho da aparecircncia que natildeo eacute e natildeo pode ser (ἡ δ᾽ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών
ἐστι μὴ εἶναι) satildeo via de regra estabelecidos como a manifestaccedilatildeo maacutexima da loacutegica ocidental
e berccedilo dos princiacutepios de identidade e natildeo-contradiccedilatildeo A partir deles eacute possiacutevel natildeo soacute
estabelecer uma identidade (o ser eacute representada pela claacutessica foacutermula A=A) como ainda
verificar a veracidade dessa mesma identidade ndash natildeo eacute possiacutevel que o ser sendo natildeo seja
ilustrado pela foacutermula not (A ˄ notA) um tanto esdruacutexula sem duacutevidas27
O legado de Parmecircnides eacute marcado em sua difusatildeo pelos chamados ldquofiloacutesofos eleatasrdquo
sobretudo por Zenatildeo de Eleacuteia Seus argumentos contra a pluralidade (cf KIRK E RAVEN OP CIT
288-291) e contra o movimento (cf IDEM IBIDEM 291-297) se tornaram assaz populares
sobretudo no que concerne aos paradoxos da flecha no estaacutedio e de Aquiles e a tartaruga Aleacutem
da constataccedilatildeo da univocidade do ser presente em toda linha de pensamento parmeniacutedica28 O
resultado imediato dos exerciacutecios de raciociacutenio de Zenatildeo demonstraram a formataccedilatildeo de uma
estaticidade do ser e da realidade em torno alertando para a ilusatildeo do movimento e alteraccedilotildees
na substacircncia do real O momento no qual Platatildeo compotildee seu diaacutelogo Parmecircnides retrata
justamente o evento no qual tanto Parmecircnides quanto Zenatildeo estatildeo no aacutepice da divulgaccedilatildeo de
sua doutrina dialogando com um ainda jovem Soacutecrates Trata-se de um dos momentos mais
emblemaacuteticos da histoacuteria da filosofia ocidental
27 Haacute uma discussatildeo em torno a uma suposta terceira via aquela na qual o que ldquoeacuterdquo eacute e natildeo eacute ao mesmo tempo
baseada no sexto fragmento onde se lecirc ldquoοἶς τὸ πέλειν τε καὶ οὐκ ταῦτὸν νενόμισταιrdquo (KIRK E RAVEN OP CIT 271)
Embora ainda em um sentido pejorativo de uma via do engano emerge a possibilidade de que algo seja e natildeo seja
Mesmo que natildeo seja profiacutecuo para o andamento da tese se fixar na discussatildeo vale ao menos citaacute-la sobretudo
ponderando os apontamentos feitos por Jean Beaufret acerca da interpretaccedilatildeo de Martin Heidegger da terceira via
como a via dos entes Ao que cabe no propoacutesito do trabalho basta apenas atentar para como a tensatildeo entre as duas
primeiras vias jaacute foram suficientes para levantar controveacutersias Eacute possiacutevel especular ainda que jaacute na primeira via
aparece tambeacutem uma possibilidade de que o ser seja e natildeo seja quando se afirma que ele ldquoeacute e natildeo eacute para natildeo serrdquo
Seria possiacutevel conectar o ldquonatildeo eacuterdquo da sentenccedila como o natildeo-ser relativo necessaacuterio agrave constituiccedilatildeo da inteireza do
ser como argumentado no Sofista de Platatildeo 28 O que significa afirmar que natildeo existem ldquograusrdquo do ser uma coisa ou eacute real (ser) ou irreal (nada) (cf BEZERRA
2003 47)
68
As chamadas ldquotrecircs hipoacutetesesrdquo do Parmecircnides de Platatildeo satildeo apresentadas
respectivamente nas passagens 137c-142a 142b-157a e 157b-159a Elas constituem a mateacuteria
bruta para a elaboraccedilatildeo das trecircs hipoacutestases de Plotino Todas as trecircs hipoacuteteses de Platatildeo satildeo
apresentadas pela personagem do entatildeo velho Parmecircnides arguindo Soacutecrates a respeito da
viabilidade de cada argumento Elas se apresentam ainda a partir do problema constituiacutedo pela
questatildeo da unidade e da multiplicidade A pulsatildeo do jovem Soacutecrates ao inquirir Parmecircnides a
respeito de sua teoria fazendo-o apresentar as trecircs hipoacuteteses parte da colocaccedilatildeo de Parmecircnides
a respeito da assunccedilatildeo da multiplicidade por um lado e da impossibilidade do muacuteltiplo por
outro Parmecircnides eacute levado pelo jovem Soacutecrates a confirmar natildeo apenas sua teoria mas sua
metodologia e plano doutrinaacuterio
Para confrontar a teoria parmeniacutedica Platatildeo desenvolve a primeira hipoacutetese Ela
consiste basicamente na afirmaccedilatildeo de o que o ldquouno eacute unordquo ou seja se haacute uno natildeo eacute possiacutevel
que o uno seja muacuteltiplo Por este motivo ele natildeo pode conter partes nem tampouco ser um
inteiro (composto por partes) Tambeacutem natildeo pode ter um comeccedilo nem um meio nem um fim
natildeo possuindo nada que o limite ou delimite Tampouco pode possuir um formato nem se
encontrar em lugar algum nem estar se movimentando de um lugar para outro (porque entatildeo
assumir-se-ia algo outro que natildeo o uno pelo qual ele se movimenta) e nem em si mesmo
(porque com isto se movimentaria entre suas partes que por definiccedilatildeo natildeo pode conter) Natildeo
pode ainda ser diferente de si mesmo nem o mesmo que si mesmo porque assumindo sua
diferenccedila se assumiria algo outro que natildeo o uno ndash e assumindo sua identidade se assumiria que
haacute algo a saber a proacutepria identidade predicada do uno e que natildeo eacute o uno Natildeo pode tambeacutem
estar no tempo nem ter surgido em momento algum Por fim o uno natildeo pode possuir um nome
ou seja eacute inominaacutevel natildeo podendo ser objeto de opiniatildeo nem conhecimento nem percepccedilatildeo
caso contraacuterio assumir-se-ia um ser ou essecircncia distintos do uno pelo qual se alcanccedila seu
entendimento
69
Necessariamente a primeira hipoacutetese leva a uma outra questatildeo ou ao levantamento de
uma segunda hipoacutetese qual seja o uno eacute e quais satildeo as consequecircncias disto para ele mesmo
Essa hipoacutetese eacute consideravelmente mais complicada e envolve algumas nuances bastante
delicadas O argumento geral se concentra na ideia de que a proposiccedilatildeo uno eacute envolve
necessariamente a ideia de essecircncia do uno O grande problema em afirmar que o uno participa
da essecircncia de uno eacute justamente estabelecer a diferenccedila entre uma coisa e outra ou seja torna-
se inevitaacutevel afirmar que existem duas coisas a saber o uno e a essecircncia do uno O embargo
consiste na simples afirmaccedilatildeo uno eacute em contraposiccedilatildeo agrave afirmaccedilatildeo uno uno Logo desdobram-
se dois unos um uno que eacute e um uno e o ser O primeiro como afirmaccedilatildeo do proacuteprio uno o
segundo como assunccedilatildeo da participaccedilatildeo dele mesmo em sua essecircncia A reaccedilatildeo imediata agrave
afirmaccedilatildeo de que o uno eacute caminha em sentido contraacuterio das negaccedilotildees da primeira hipoacutetese
Sem embargo jaacute neste momento mesmo antes da apresentaccedilatildeo da terceira hipoacutetese
torna-se possiacutevel fazer algumas consideraccedilotildees Em primeiro lugar a hipoacutetese de que o ldquouno eacute
unordquo a despeito da aplicaccedilatildeo da categoria do ser para a predicaccedilatildeo da sentenccedila direciona o
pensamento para um caminho no qual natildeo haacute outra possibilidade senatildeo a completa negaccedilatildeo de
tudo que possivelmente competiria ao uno levando mesmo agrave dissoluccedilatildeo do eacute presente na frase
Em segundo lugar a hipoacutetese de que o ldquouno eacuterdquo desta vez com ecircnfase no eacute gera o movimento
oposto de afirmaccedilatildeo de tudo o que porventura poderia ser predicado de qualquer elemento
Estas duas hipoacuteteses (como se veraacute na apresentaccedilatildeo das hipoacutestases de Plotino)
discriminam perfeitamente as duas vias aqui cogitadas quais sejam uma via afirmativa da
ontologia claacutessica na afirmaccedilatildeo das coisas por meio da qual percebe-se compreende-se e se
faz ciecircncia e uma via negativa do que seraacute ulteriormente nomeada henologia na qual a maacutexima
especulaccedilatildeo acerca da natureza do uno natildeo leva senatildeo agrave negaccedilatildeo absoluta ndash as caracteriacutesticas
desta negaccedilatildeo ou negatividade ver-se-aacute mais claramente nas Eneacuteadas
70
A terceira hipoacutetese do Parmecircnides de Platatildeo eacute apresentada no diaacutelogo muito brevemente
Ela abarca ambos os aspectos centrais das duas primeiras hipoacuteteses sugerindo que o uno eacute e
natildeo eacute imputando a categoria de mudanccedila em sua natureza Trata-se de diagnosticar o fato de
que sendo o uno uno por um lado e muacuteltiplo por outro participa e natildeo participa de sua
essecircncia vem a ser e deixa de ser ponderando ainda que esta mudanccedila se daacute no instante Sendo
assim tanto o movimento de retorno ao uno quanto o movimento de procedecircncia a partir do
uno daacute-se ao mesmo tempo em uma reciprocidade na qual tanto a geraccedilatildeo da multiplicidade
configura o uno nem como uno nem como muacuteltiplo quanto a reuniatildeo da multiplicidade ao
uno tampouco configura o uno nem como uno nem como muacuteltiplo ndash como se a proacutepria ideia
de uno flutuasse em um ldquoinstante incapturaacutevelrdquo
Natildeo haacute duacutevida que o raciociacutenio apresentado por Platatildeo constitui um dos maiores
desafios especulativos da histoacuteria do pensamento ocidental seja nos esforccedilos empreendidos
pela loacutegica de compreensatildeo seja pelo desafio meditativo aflorado da temaacutetica proposta Neste
contexto Marcus Reis Pinheiro indica a interpretaccedilatildeo de Jean-Luc Brisson (Annexe I Les
interpretation du Parmeacutenide dans lrsquoAntiquiteacute presente na ediccedilatildeo Parmenide Paris Flamarion
1999) conforme a qual ldquo() Plotino estaacute no grupo dos inteacuterpretes do diaacutelogo que natildeo o vecirc
apenas como um exerciacutecio loacutegico mas que procura determinar a que tipo de objeto se refere o
diaacutelogordquo (PINHEIRO 2006 3) Seguindo esta linha de raciociacutenio o importante seria portanto
compreender como Plotino absorve a temaacutetica Considerar uma interpretaccedilatildeo para aleacutem da mera
concatenaccedilatildeo loacutegica de conceitos eacute basicamente absorver o sentido de cada termo Isto significa
natildeo apenas expor as formataccedilotildees daquilo que foi introduzido no discurso como ldquounordquo mas
ainda entender de que forma a simples possibilidade de concebecirc-lo no raciociacutenio implica em
uma reduccedilatildeo draacutestica das estruturas hieraacuterquicas do real ou seja constitui uma compreensatildeo
da realidade que possui como primeiro princiacutepio algo que coloca o pensamento em um niacutevel de
paradoxo que necessariamente denota a assunccedilatildeo de uma impossibilidade loacutegica
71
As trecircs hipoacutestases de Plotino seratildeo teoricamente encadeadas de maneira semelhante agraves
hipoacuteteses de Platatildeo embora natildeo sequencialmente Contudo a primeira (e talvez a mais
complexa) jaacute iniciaraacute o movimento de negatividade em direccedilatildeo agraves seguintes estabelecendo os
conflitos presentes na ideia de uno (τὸ ἑν) Plotino considera que ldquoO Uno eacute todas as coisas e
nenhuma delas a fonte para todas as coisas eacute nenhuma das coisas e ainda eacute todas as coisas em
um sentido transcendental ndash todas as coisas para assim dizer tendo seu retorno agrave isto ()rdquo
(PLOTINUS 1969 380 Eneacuteadas V 2 1) Ele ainda assevera a inefabilidade inerente ao uno
conforme a qual todo discurso eacute jaacute sempre indireto e impreciso Apenas mediante referecircncias
como ldquotodas as coisas e nenhuma delasrdquo torna-se possiacutevel acenar para o uno ndash e apenas isto
acenar Entretanto esta eacute para Plotino a uacutenica maneira de compreender a estrutura da realidade
como tal pelo simples motivo de que ldquoEacute precisamente porque haacute nada no Uno que todas as
coisas derivam dele para que o Ser possa ser trazido a fonte natildeo pode ser o Ser mesmo mas o
gerador do Ser ()rdquo (IDEM IBIDEM) que natildeo pode possuir a natureza do ser mas deve se constituir
como outro dele qual seja natildeo-ser ou mesmo nada Plotino prossegue ainda dizendo
ldquoBuscando nada possuindo nada faltando nada o Uno eacute perfeito e em nossa metaacutefora
transborda e sua exuberacircncia produz o novo este produto torna-se novamente seu progenitor
e eacute preenchido e se torna seu contemplador e Princiacutepio-Intelectualrdquo (ID IBID) A passagem
altamente especulativa denota que tudo eacute contemplaccedilatildeo dotada de uma atividade suprema que
comeccedila pelo uno e retorna a ele no simples olhar que natildeo implica nem em complexidade nem
em necessidade29 Mediante uma reflexatildeo propriamente loacutegica a contemplaccedilatildeo por meio da
qual o uno se desdobra e gera todas as coisas se daacute devido a sua proacutepria perfeiccedilatildeo ou seja o
uno natildeo eacute coisa nenhuma e necessariamente engendra todas as coisas porque eacute completo
porque eacute a totalidade de tudo e para isto eacute necessaacuterio que seja ele mesmo e ainda outro de si
29 Estes apontamentos satildeo de John Bussanich que ainda explica que ldquo() a doutrina plotiniana da derivaccedilatildeo do
Uno eacute lsquoprocessatildeorsquo o adjetivo que melhor qualifica isto eacute lsquocontemplativorsquo o movimento no qual a hipoacutestase eacute
gerada coincide com a contemplaccedilatildeo De fato o ponto cardial a chave para a estrutura da processatildeo da metafiacutesica
plotiniana era contemplaccedilatildeo ou theocircriardquo (BUSSANICH 1999 32)
72
Ciacutecero Cunha Bezerra apresenta a organizaccedilatildeo feita por Pierre Aubenque30 conforme a
qual haveriam trecircs esferas argumentativas no desenvolvimento da primeira hipoacutestase uma
loacutegica outra epistemoloacutegica e uma metafiacutesica Bezerra cita uma das passagens mais conhecidas
de Plotino que diz ldquoPrivado de unidade uma coisa cessa de ser aquilo pelo qual eacute chamada
um exeacutercito natildeo eacute um exeacutercito se natildeo eacute uno um coro um rebanho devem ser uma coisa soacuterdquo
(ID IBID 612 VI 9 1) sobretudo para enfatizar o aspecto loacutegico pelo qual Plotino ldquosubverterdquo
a resposta aristoteacutelica da entidade da coisa pela definiccedilatildeo substancial Bezerra argumenta
dizendo que ldquo() Plotino por uma exigecircncia loacutegica jaacute que o princiacutepio originaacuterio natildeo pode
possuir qualquer caraacuteter dos seres relativiza a ontologia e estabelece a henologia como
fundamento de todo serrdquo (BEZERRA OP CIT 67) O problema epistemoloacutegico sobressalta a
ultrapassagem necessaacuteria de todo conhecimento para alcanccedilar tal niacutevel de especulaccedilatildeo ao passo
que a questatildeo metafiacutesica retorna aos trechos anteriormente citados no qual a geraccedilatildeo de todas
as coisas soacute pode derivar de coisa nenhuma
O emprego do termo henologia define aqui o primeiro passo para o caminho da
negatividade Institui-se como negativo o princiacutepio que jaacute natildeo mais decorre de um rendimento
ldquopositivordquo por meio do qual se pode construir um conhecimento soacutelido e confiaacutevel mas uma
base que possui caracteriacutesticas muito diversas e que desafiam a capacidade loacutegica Por este
motivo a primeira demanda eacute jaacute a superaccedilatildeo intelectual (ἐπέκεινα νοῦϛ καὶ οὐσίας) que deve
assumir que o comeccedilo de todas as coisas eacute incoacutegnito O discurso eacute indireto e metafoacuterico porque
somente assim eacute possiacutevel indicar sua possibilidade de ser pensado ndash entendendo principalmente
que o ldquoser pensadordquo natildeo indica nem conota existecircncia porque o ser e a existecircncia mesmo satildeo
ainda posteriores agrave ideia de uno As segunda e terceira hipoacutestases portanto natildeo podem ser
concebidas se de antematildeo natildeo for assumida a negatividade do primeiro princiacutepio
30 Pierre Aubenque ldquoPlotin et le deacutepassement de lrsquoontologie grecque classiquerdquo Colloque des Royaumont Le
Neacuteoplatonisme Paris Centre National de Recherche Scientifique 1971 101-110
73
Somente por meio da completude da pensamento henoloacutegico de Plotino fica possiacutevel
deixar claro os termos pelos quais se destaca a negatividade como ldquosupressatildeo de todo saber e
dizerrdquo Os motivos contudo jaacute satildeo bastante evidentes se levado em consideraccedilatildeo que a
inefabilidade do uno indica que sobre ele natildeo se pode falar e ele natildeo se pode conhecer Portanto
o neoplatonismo necessariamente parte do pressuposto de que o ponto de partida e o ponto de
chegada do pensamento satildeo ambos uma caminhada rumo agrave supressatildeo Ao explicar a processatildeo
por meio da qual o uno engendra todas as coisas destaca-se uma consideraccedilatildeo importante se
os seres engendram o eternamente perfeito engendra eternamente algo inferior a si mesmo por
isto mesmo ldquoEacute preciso observar que a processatildeo plotiniana implica necessariamente uma
negaccedilatildeo A negaccedilatildeo eacute uma condiccedilatildeo a priori no sentido de que o engendrado deve assimilar-se
ao seu gerador mas mantendo uma resistecircncia que diferencia um do outrordquo (IDEM IBIDEM 74)
Em outras palavras a geraccedilatildeo do uno e a abertura da segunda hipoacutestase soacute eacute possiacutevel por meio
da introduccedilatildeo da diferenccedila A diferenccedila eacute o que aqui constitui o passo fundamental da sequecircncia
do pensamento neoplatocircnico O ser eacute na medida em que eacute diferente do uno e por ele eacute
engendrado justamente porque apenas a diferenccedila pode advir do eternamente perfeito
Assim sendo resta saber como o uno engendra e o quecirc ele engendra O que significa
ainda resgatar a pergunta anteriormente colocada por Parmecircnides e Platatildeo como do uno
provem o muacuteltiplo Esta questatildeo eacute sem sombra de duacutevidas uma das mais complexas do sistema
neoplatocircnico em geral A ideia de processatildeo (πρόοδος) pressupotildee uma emanaccedilatildeo a partir do
uno na qual todas as outras coisas satildeo engendradas o que significa dizer que se trata de um
movimento que abarca a realidade em toda sua estrutura na qual ldquo() difere completamente de
um mecanicismo dado que estaacute mais aleacutem de toda contingecircncia e necessidade Nesse sentido
natildeo se pode dizer que se trata de algo que implique um livre-arbiacutetrio ou uma produccedilatildeo artesanalrdquo
(ID IBID 76) Ou seja o uno natildeo necessita de nada e por isto mesmo daacute origem a tudo A
espontaneidade (se eacute que se pode utilizar tal termo) eacute natural e natildeo possui um motor
74
Ao mesmo tempo tudo aquilo que eacute gerado pelo uno possui um poder de conversatildeo
(επιστροφή) um voltar-se sobre si mesmo e voltar-se em direccedilatildeo ao uno (cf ID IBID 76)
movimentada pelo autoconhecimento daquilo que eacute Este autoconhecimento soacute eacute possiacutevel
todavia pelo proacuteprio movimento de emanaccedilatildeo conforme o qual se identifica ldquoserrdquo e
ldquopensamentordquo como havia postulado Parmecircnides e eacute justamente este o momento no qual
emerge a segunda hipoacutestase qual seja a inteligecircncia (νοῦϛ)
As caracteriacutesticas pelas quais a inteligecircncia se mostra desde a compreensatildeo da processatildeo
satildeo a chave para o sentido da filosofia de Plotino Sobre isto Thomas Alexander Szlezaacutek
escreve ldquoNatildeo persegue o Uno com esforccedilo deliberado mas espera tranquilamente ateacute que ele
apreccedila Assim a alma soacute recebe unicamente o Uno eacute uma volta do lsquosolitaacuterio para o solitaacuteriorsquordquo
(SZLEZAacuteK 2010 11) acrescentando ainda que ldquoO caminho que conduz ao Uno natildeo passa poreacutem
pela praacutetica asceacutetica de um anacoreta mas pela apropriaccedilatildeo conceitual do mundo inteligiacutevel
()rdquo (IDEM IBIDEM) Os termos inteligecircncia e inteligiacutevel referem-se aqui a uma definiccedilatildeo
particular que compreende o nuacutecleo da segunda hipoacutestase Bezerra escreve acerca deste ponto
ldquoPlotino no tratado oitavo da terceira Eneacuteada define a Inteligecircncia natildeo como uma coisa
particular mas como algo universal e muacuteltiplordquo (BEZERRA OP CIT 78) explicando que eacute
ldquoUniversal porque abarca todos os seres e muacuteltiplo porque coexistem em sua natureza
simultaneamente o inteligente (Inteligecircncia) e o inteligiacutevel (ser) ()rdquo (IDEM IBIDEM) Plotino
encadeia seu raciociacutenio elucidando como o Princiacutepio-Intelectual eacute universal e iniacutecio de todas as
coisas de maneira que ldquo() assim todas as coisas e o Princiacutepio de tudo deve ser tal que cada
parte dele seja universal eacute todas coisas do contraacuterio conteria partes que natildeo satildeo o Princiacutepio-
Intelectualrdquo (PLOTINUS OP CIT 246 Eneadas III 8 8) Conclui a partir de entatildeo que ldquo() este
Ser eacute ilimitado e que em tudo que flui dele natildeo haacute reduccedilatildeo nem em sua emanaccedilatildeo desde que eacute
o universo inteiro nem em si mesmo o ponto de partida desde que natildeo haacute reuniatildeo de partes
()rdquo (IDEM IBIDEM 246-247) Fica claro o caraacuteter ascendente e natildeo descendente da processatildeo
75
Plotino explica que ldquo() um ser desta natureza natildeo eacute existecircncia primaacuteria deve existir a
partir daquilo do qual transcende o Ser (o Absoluto) ()rdquo (ID IBID 247) e prossegue dizendo
que ldquo() Pluralidade eacute mais tardia que Unidade O Princiacutepio-Intelectual eacute um nuacutemero (=a
expressatildeo de uma pluralidade) e o nuacutemero deriva da unidade a fonte de um nuacutemero como este
deve ser o autecircntico Unordquo (ID IBID) A transcendecircncia que evidencia o caraacuteter progressivo
pode ainda ser entendida desde a ideia de que ldquo() ao contemplar-se a si mesmo a Inteligecircncia
se une ao objeto contemplando uma unidade entre o eu e o ser universal que supera toda
alteridade ()rdquo (BEZERRA OP CIT 79) Com isto eacute possiacutevel resgatar ainda o sentido pelo qual
Beierwaltes destaca a diferenccedila como princiacutepio pelo qual haacute um desvio de Plotino em relaccedilatildeo
agrave ontologia claacutessica (cf BEIERWALTES OP CIT 58) Contudo como se compreende esta
contemplaccedilatildeo eacute o que levaraacute agrave terceira hipoacutestase a alma (ψυχή) Bezerra explica recapitulando
os passos anteriores ldquoVimos anteriormente que o Uno e o Muacuteltiplo apresentam-se sob duas
maneiras distintas a) Uno e natildeo muacuteltiplo (I hipoacutetese) b) Uno-Muacuteltiplo (II hipoacutetese) A alma eacute
portanto ao mesmo tempo uno e muacuteltiplordquo (BEZERRA OP CIT 82) o que significa evidenciar
que ela representa uma distinccedilatildeo radical e afastamento do primeiro princiacutepio o uno
Ainda no oitavo tratado da terceira Eneacuteada Plotino aborda a natureza enquanto ato
criador compreendendo o fenocircmeno a partir de uma tensatildeo entre um Princiacutepio-Racional inerte
e um Princiacutepio-Natural em movimento (cf PLOTINUS OP CIT 239-240 Eneadas III 8 2) que
responderia ainda ao conflito entre unidade e multiplicidade e ainda agrave questatildeo entre tempo e
eternidade Plotino indaga como a natureza responderia ao questionamento colocando
literalmente o argumento na fala da natureza que diria que ldquoOs matemaacuteticos desde suas visotildees
desenham suas figuras mas eu desenho nada eu contemplo as figuras do material do mundo
tomando os seres como eu os sinto desde minha contemplaccedilatildeordquo (IDEM IBDEM 241) chegando a
conclusatildeo de que ldquo() o que noacutes conhecemos por Natureza eacute uma Alma cria de uma Alma
ainda anterior () uma visatildeo interna de si mesmardquo (ID IBID)
76
A visatildeo interna de si mesma mencionada por Plotino prove o entendimento de que ldquoA
alma portanto autodetermina-se e ao mesmo tempo autofragmenta-se pois ao separar-se do
todo volta-se maravilhada para o particularrdquo (BEZERRA OP CIT 84) Disto adveacutem a geraccedilatildeo do
tempo como desordem introduzida no equiliacutebrio primordial e ao mesmo tempo a introduccedilatildeo
de uma ordenaccedilatildeo mediada pela conversatildeo (επιστροφή) ndash pelo retorno maravilhado ao uno ou
uniatildeo ao fundamento por meio da contemplaccedilatildeo
Agora bem toda esta inevitaacutevel breve introduccedilatildeo ao pensamento de Plotino deve
direcionar para uma postura distinta daquela antes observada com a ontologia claacutessica e o
pensamento metafiacutesico Que postura eacute esta Ou melhor qual o caminho que se abre a partir das
trecircs hipoacutestases plotinianas Este eacute o momento no qual o caminho da negatividade comeccedila a se
encorpar e mostrar seu caraacuteter decisivo na constituiccedilatildeo do desvio intelectual do neoplatonismo
Gostaria de fazer um recorte especiacutefico do nono tratado da sexta Eneacuteada para alcanccedilar este
esclarecimento
Plotino reconstitui seu caminho a partir da afirmaccedilatildeo ldquoEacute em virtude da unidade que os
seres satildeo seresrdquo (PLOTINUS OP CIT 614 Eneadas VI 9 1) O que significa afirmar que sem a
unidade natildeo se pode considera que algo seja o que seja Em termos mais simples se nomeio
braccedilo pernas cabeccedila razatildeo sensibilidade entre outras muacuteltiplas singularidades presentes em
um ser humano mas natildeo as congrego em uma unidade pela qual afirmo ldquoser humanordquo que
compreende todas as particulares em questatildeo inexoravelmente perco de vista seu sentido Por
isto ldquoQualquer coisa que possa ser descrita como uma unidade o eacute no preciso grau pelo qual
sustenta um ser caracteriacutestico quanto menor ou maior o niacutevel do ser menor ou maior seraacute a
unidaderdquo (IDEM IBIDEM) Portanto alma seria (em razatildeo de sua distinccedilatildeo da unidade mesma)
uma grande unidade em proporccedilatildeo e na autenticidade do ser e assim ldquoUnidade absoluta natildeo eacute
eacute a alma e a primeira alma a unidade em algum sentido concomitante ()rdquo (ID IBID) deixando
ver como a unidade natildeo eacute e eacute
77
Desta forma pode-se compreender que o uno natildeo pode ser a totalidade dos seres que
anularia sua unidade nem tampouco o ldquoPrinciacutepio-Intelectualrdquo pelo qual as coisas satildeo nem o
ldquoser mesmordquo no sentido da totalidade das coisas Plotino prossegue dizendo ldquoA alma ou mente
movimentando-se rumo ao que eacute sem forma encontra-se em estado de incompetecircncia para
apreender ali onde nada se limita ou onde a se impinge a realidade difusardquo (ID IBID 615 VI
9 3) Assim ldquo(hellip) ante o puro pavor de se sustentar no nada esvai-se O estado eacute doloroso
geralmente busca aliacutevio ao se retratar de sua vagueza na regiatildeo do sentido para ali repousar em
um fundamento soacutelido bem como a visatildeo aflige-se com o minuto no qual repousa na escuridatildeordquo
(ID IBID) Mas para onde olhar frente ao desconforto de natildeo se ter onde repousar Quando se
percebe o quatildeo vago eacute todo e qualquer presumido fundamento ou sentido quando a escuridatildeo
natildeo reflete senatildeo a angustia de uma contemplaccedilatildeo exausta pelo esvair de todo sustento o que
resta para aleacutem discoacuterdia que atinge o intelecto Plotino sintetiza a afliccedilatildeo
A alma deve ver em sua proacutepria maneira isto se daacute por coalescecircncia a unificaccedilatildeo
mas buscando assim conhecer a unidade eacute impedida por esta mesma unificaccedilatildeo de
reconhecer o que foi encontrado natildeo se pode distinguir a si mesmo do objeto de sua
intuiccedilatildeo No entanto este eacute nosso uacutenico recurso caso nossa filosofia busque o
conhecimento da Unidade (ID IBID)
O uacutenico caminho rumo ao conhecimento da unidade eacute um caminho impossiacutevel em si mesmo
uma via cerrada pela proacutepria natureza do questionamento proposto Intuir as trecircs hipoacutestases ou
encadeaacute-las conforme uma loacutegica sistemaacutetica portanto elucida o caminho mas natildeo
necessariamente introspecta e absorve a pureza da experiecircncia Para isto eacute necessaacuterio mais ou
melhor menos ndash muito menos O uacutenico ponto de apoio aqui seraacute a identificaccedilatildeo entre o uno e
bem ou a compreensatildeo da primeira hipoacutestase como uno-bem (τὸ ἑν καὶ αγαθον) cujo sentido
eacute por um lado extrema e pura simplicidade e por outro inefabilidade total devido agrave perfeiccedilatildeo
78
Reivindicar este caminho soacute pode portanto levar a uma supressatildeo absoluta onde
ldquoAinda esta abstenccedilatildeo de autoconhecimento natildeo comporta ignoracircncia ignoracircncia eacute algo de fora
ndash um conhecedor ignorante de um cognosciacutevel ndash mas no solitaacuterio natildeo haacute nem conhecimento
nem nada desconhecidordquo (ID IBID 620 VI 9 6) Plotino entatildeo apresenta uma formulaccedilatildeo
nada usual conforme a qual certo direcionamento de suas intenccedilotildees pode ser entendido em
uma passagem tatildeo emblemaacutetica quanto enigmaacutetica ele escreve
Neste coro a alma olha para a nascente da Vida tambeacutem nascente do Intelecto iniacutecio
do Ser fonte do Bem raiz da Alma Natildeo que eles tenham sido despejados do Supremo
menosprezando-os como se fosse uma massa Nisto aquilo que emana seria pereciacutevel
mas eles satildeo eternos eles nasce de um princiacutepio eterno que produz deles sua
fragmentaccedilatildeo mas em virtude de sua identidade inata portanto eles se manteacutem muito
firmes conto o sol brilhe contanto haveraacute luz
()
Aqueles para os quais toda esta experiecircncia eacute estranha podem entende-la como nossos
anseios terrenos e a alegria que temos ao ganhar o que mais desejamos ndash lembrando
sempre que aqui o que noacutes amamos eacute pereciacutevel doloroso que nosso amor eacute mimeacutetico
e se afasta porque foi tudo um engano nosso bem natildeo estava laacute isto natildeo era o que
procuraacutevamos Haacute apenas o verdadeiro amor onde haacute uniatildeo natildeo segurando isto com
algum tipo de abraccedilo carnal mas possuindo na totalidade sua veracidade Todos
aqueles que viram sabem o que tenho em mente a alma toma outra vida quando se
aproxima de Deus assim restaurada sente que o distribuidor da verdadeira vida estaacute
laacute para ver que agora natildeo temos nada para procurar senatildeo aquilo que precisamos
deixar de lado e deixar assim sozinho assim vindouro assim soacute tudo o que o ambiente
terreno aniquilou na pressa de ser livre impaciente em relaccedilatildeo a qualquer laccedilo que
nos sustenta na base para que com todo nosso ser possamos agarrar-nos sobre isto
quando natildeo sobra nada em noacutes senatildeo aquilo pelo qual tocamos em Deus (ID IBID
623 VI 9 9)
79
As palavras de Plotino ressoam como uma conduta que eacute antes como postura que doutrina O
uso termo ldquoamorrdquo denota claramente uma experiecircncia irregulaacutevel uma tensatildeo entre ausecircncia e
presenccedila preenchimento e falta ndash sem embargo um misteacuterio
O misteacuterio que indicado por Plotino se configura como o guia para a visatildeo que permite
descortinar o sentido pensamento filosoacutefico Um misteacuterio que segue a mesma regra de Platatildeo e
do platonismo onde ldquoNada eacute divulgado para os natildeo-iniciadosrdquo (ID IBID 624 VI 9 11) e do
qual natildeo se pode simplesmente exibir uma estoacuteria ordinaacuteria ldquoCoisas aqui satildeo sinaisrdquo (ID IBID)
adverte Plotino Sinais para aqueles que entram em solo sagrado e tornam real a visatildeo do
inacessiacutevel Ele esclarece ainda ldquoQuando a alma comeccedila novamente a se colocar natildeo se torna
outra mas si mesma assim desprendida natildeo eacute nada senatildeo si mesma auto-reunida natildeo eacute mais
da ordem do ser estaacute no Supremordquo (ID IBID) O desprendimento e a supressatildeo a visatildeo do uno
e o movimento de uniatildeo encaminham para o ldquotodo-transcendenterdquo que jaacute natildeo mais estaacute no niacutevel
daquilo que eacute do ente mesmo do ser mas em uma esfera para aleacutem de todas as coisas que satildeo
e que natildeo satildeo A culminaccedilatildeo do pensamento henoloacutegico de Plotino como uma ldquomiacutestica da
unidaderdquo eacute o berccedilo do neoplatonismo e necessariamente o iniacutecio de sua radicalizaccedilatildeo
Neste fluxo considera-se que existam dois momentos fundamentais do desdobramento
do neoplatonismo a partir da henologia plotiniana quais sejam a teologizaccedilatildeo da henologia
desenvolvida por Proclo e a teologia negativa do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita Em ambos eacute
possiacutevel observar como o caminho da negatividade se configura partir de uma profunda
introspecccedilatildeo de temas que tendem agrave dissoluccedilatildeo do conhecimento ateacute entatildeo concebido
estruturado e instaurado ndash e ainda agrave subversatildeo completa de seus meios de expressatildeo e
significaccedilatildeo isto eacute agrave supressatildeo do saber e do dizer Eles natildeo representam meramente o ldquopasso
adianterdquo como se houvessem ainda superado o discurso antecessor mas antes o ldquopasso atraacutesrdquo
enquanto retorno agraves bases e aos princiacutepios por meio da reivindicaccedilatildeo da atitude desvelada pela
miacutestica onde o misteacuterio natildeo eacute o problema a ser desvendado mas o elemento a ser incorporado
80
O obra de Proclo eacute composta por diversos comentaacuterios aos diaacutelogos de Platatildeo dentre os
quais ao Timeu ao Parmecircnides ao Alcebiacuteades agrave Repuacuteblica entre outros aleacutem de escritos
sistemaacuteticos como os Elementos de Teologia e a Teologia Platocircnica Existem ainda obras que
abordam temas de matemaacutetica astronomia arte magia e tratados propedecircuticos sobre doutrinas
filosoacuteficas Especialmente em relaccedilatildeo agraves contribuiccedilatildeo em torno agrave henologia duas obras satildeo de
suma importacircncia o Comentaacuterio ao Parmecircnides de Platatildeo e os Elementos de Teologia
A leitura de Proclo do Parmecircnides de Platatildeo eacute considerada uma das mais sistemaacuteticas e
originais que teria sobrevivido agraves vicissitudes dos tempos Ademais guardaria ainda um apelo
ao resguardo da filosofia de Platatildeo bem como uma preparaccedilatildeo para um projeto de resgate da
vitalidade do paganismo por meio de um platonismo revigorado 31 Decorreria disto uma
profunda incursatildeo na filosofia como teologia que culminaria em seus Elementos Ainda no
Comentaacuterio Proclo descreve o percurso de Platatildeo em relaccedilatildeo agrave Parmecircnides e manifesta uma
linha argumentativa similar a Plotino
Mas caso se queira chegar o mais proacuteximo da verdade deve-se seguir a linha de nosso
Mestre que Parmecircnides inicia desde o Uno (Ser) (para a proposiccedilatildeo ldquose haacute um unordquo
jaacute que conteacutem aleacutem do ldquoUnordquo o conceito de existecircncia pertence a este tipo de coisas)
ascendendo do Uno Ser para o Uno assim demonstrando que o Uno em sentido estrito
deseja apenas isto ser One e ldquoarrebatar-se para longerdquo do Ser e o Uno Ser eacute
secundaacuterio a este pela razatildeo de sua descendecircncia em direccedilatildeo ao Ser ao passo que o
Uno mesmo eacute superior mesmo agrave designaccedilatildeo ldquoeacuterdquo e a hipoacutetese ldquose haacuterdquo assim que
adicionamos eacute o Uno no sentido estrito natildeo mais permanece (PROCLUS 1987 379-380
In Parm 1033)
31 Estas consideraccedilotildees satildeo de Ciacutecero Cunha Bezerra em Algumas consideraccedilotildees sobre leitura procleana do
Parmecircnides de Platatildeo (2004) Neste artigo ele ainda sustenta em consonacircncia com H D Saffrey (Proclus
diadoque de Platon 1990) que Proclo entra na linha de inteacuterpretes de Platatildeo que entendem sua filosofia como
revelaccedilatildeo de uma verdade divina estruturada a partir do uno filiando Platatildeo aos teoacutelogos gregos (cf BEZERRA 2004
99-100)
81
Proclo apresentaraacute na sequecircncia a impossibilidade de ldquohipotetizarrdquo o uno cindindo de um lado
hipoacutetese-condicionada e de outro anti-hipoacutetese-incondicionada O problema que estaacute sendo
colocado parte da ideia de que natildeo se pode pensar a multiplicidade isolada senatildeo somente por
meio da concepccedilatildeo de uma unificaccedilatildeo Para aleacutem da estrutura binaacuteria uno-muacuteltiplo deve-se
considerar a unificaccedilatildeo como consequecircncia necessaacuteria dando origem agrave formulaccedilatildeo ldquouno-
unificado-muacuteltiplordquo para explicar como eacute simplesmente possiacutevel que hajam elementos pelos
quais outros se unificam32
O resultado da formulaccedilatildeo de Proclo parece ser a absolutizaccedilatildeo do uno e sua
identificaccedilatildeo com Deus algo sobremaneira evidente na proposiccedilatildeo de seus Elementos que diz
ldquoTodo intelecto divino eacute uniforme ou possui a forma do Uno e eacute perfeito E o primeiro intelecto
subsiste por si mesmo e produz outros intelectosrdquo (IDEM 1998 86 Elem Theo Prop CLX)
Proclo argumenta ainda que se haacute um Deus ele eacute preenchido de unidades divinas e eacute uniforme
sendo ainda perfeito e cheio da bondade divina havendo um Deus primeiro que provecirc as
hipoacutestases para outros intelectos
Este eacute precisamente o ponto que seraacute aprofundado pelo Pseudo-Dioniacutesio Areopagita em
sua teologia negativa Tanto em Proclo quanto no Pseudo-Dioniacutesio o divino habita a
compreensatildeo filosoacutefica da realidade como incorporaccedilatildeo do misteacuterio seguindo ainda a esteira
da muacutetua reciprocidade entre filosofia e religiatildeo demanda por Plotino desde o iniacutecio Pseudo-
Dioniacutesio coroa a radicalizaccedilatildeo do uno e sua identidade com o Deus primeiro apresentado como
supraessencial (ὑπερούσιε) suprabondoso (ὑπεράγαθε) e mesmo supradivino (ὑπερθεε) razatildeo
pela qual ele demanda que ldquo() em absoluta renuacutencia de si mesmo e de todas as coisas deveraacutes
na pureza deixar todas as coisas de lado liberando-se de tudo e sendo assim levado para cima
para o Raio da Divina Treva que excede toda existecircnciardquo (DIONYSIUS THE AREOPAGITE 1920 192)
32 Esta passagem eacute cuidadosamente explicada por Giuseppe Girgenti que esclarece que ldquoO ponto culminante do
primeiro grupo de teoremas eacute o alargamento da hierarquia de quatro termos uma vez que o raciociacutenio de Proclo
levou a distinguir o intermediaacuterio entre o proacuteprio Uno e o unificado ou seja elementos que compotildeem o unificada
as primeiras unidades do natildeo-unificado ou a henadirdquo (GIRGENTI 2009 113-114)
82
Discursar acerca da inefabilidade impotildee no Pseudo-Dioniacutesio uma superaccedilatildeo da proacutepria
linguagem que se revela agora como uma construccedilatildeo liberta de qualquer fronteira e acima de
qualquer paradoxo onde negaccedilatildeo (ἀπόφασις) e afirmaccedilatildeo (κατσφάσις) comungam de igual
valor e sentido em uma mesma e uacutenica esfera A primazia propriamente apofaacutetica que toma
conta da fala do Pseudo-Dioniacutesio ganha forccedila quando supera toda definiccedilatildeo conceitual e
identifica Deus como nada daquilo que eacute
Uma vez mais indo ainda mais alto mantemos que Ele natildeo eacute alma ou mente ou
concebido pela faculdade da imaginaccedilatildeo conjuntura razatildeo ou entendimento nem eacute
nenhum ato de razatildeo ou compreensatildeo nem pode ser descrito pela razatildeo ou percebido
pelo entendimento jaacute que natildeo eacute nuacutemero ou ordem ou magnificecircncia ou pequenez
ou igualdade ou desigualdade e jaacute que natildeo estaacute inerte nem em movimento ou em
descanso e natildeo possui poder e natildeo eacute poder nem luz e natildeo vive e natildeo eacute vida nem eacute
essecircncia pessoal ou eternidade ou tempo nem pode ser apreendido pelo
entendimento jaacute que natildeo eacute nem conhecimento nem verdade nem eacute reinado ou
sabedoria nem eacute uno nem unidade nem deidade ou bondade natildeo eacute um espiacuterito como
se entende o termo jaacute que natildeo eacute Filho nem Pai nem eacute nenhuma outra coisa tal como
noacutes ou qualquer outro ente do qual se possa ter conhecimento nem pertence a
categoria de natildeo-existecircncia ou de existecircncia nem os entes existentes o conhecem
como realmente eacute nem Ele os conhece como realmente satildeo nem a razatildeo pode o
atingir nomear ou conhecer nem eacute escuridatildeo nem eacute luz ou erro ou verdade nem
nenhuma afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo pode ser aplicada porquanto aplicar afirmaccedilotildees e
negaccedilotildees natildeo se aproximam Dele noacutes natildeo aplicamos nem negaccedilatildeo nem afirmaccedilatildeo
enquanto transcende toda afirmaccedilatildeo por ser perfeita e uacutenica Causa dos seres e
transcende toda negaccedilatildeo pela preeminecircncia de sua livre natureza simples e absoluta
de qualquer limitaccedilatildeo e para aleacutem de tudo (DIONYSIUS THE AREOPAGITE 1920 200-201)
83
Seria justo afirmar que esta densa passagem da Teologia Miacutestica eacute muito mais proacutexima de uma
declaraccedilatildeo de amor do que uma articulaccedilatildeo filosoacutefica (e caberia aiacute perguntar se haacute enfim
alguma diferenccedila entre uma coisa e outra) Pseudo-Dioniacutesio natildeo apenas promove um
movimento de negaccedilatildeo em direccedilatildeo agrave toda afirmaccedilatildeo mas ainda rumo agrave proacutepria negaccedilatildeo Neste
sentido a definiccedilatildeo mais justa conforme a qual se utiliza aqui o termo negatividade seguiria
com precisatildeo os termos do Pseudo-Dioniacutesio entendendo que o caminho negativo estaacute mais
aleacutem de toda afirmaccedilatildeo e mesmo de toda negaccedilatildeo Esta eacute ainda a via para entender o que pode
ser nomeado como meontologia um percurso intelectual que apoiado pela henologia
neoplatocircnica natildeo se fundamenta mais no ente mas antes no natildeo-ente (μή ὄν) ou mesmo no
nada
As consequecircncias da henologia neoplatocircnica de Plotino e Proclo e da meontologia
miacutestica do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita natildeo passaratildeo incoacutelumes pelos seacuteculos que se seguiriam
agrave composiccedilatildeo dos escritos aqui conjurados Contudo algumas recepccedilotildees bastante acuradas e
inspiradas criativas e bem desenvolvidas ocupar-se-iam de resgatar o sentido do pensamento
negativo e desdobrar a profundidade do problema Eacute possiacutevel citar algumas dezenas de filoacutesofos
que se dedicaram ao diaacutelogo com o neoplatonismo e a teologia negativa Aqui gostaria de
encerrar este capiacutetulo direcionando-o para uma interlocuccedilatildeo especial e ao meu ver central para
a difusatildeo da negatividade na filosofia medieval moderna e contemporacircnea Tenho em mente
Joatildeo o Escoto chamado Eriuacutegena
Eriuacutegena ocupou um lugar de destaque nas altercaccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas durante
o chamado Renascimento Caroliacutengio sendo-lhe atribuiacutedas tarefas como a traduccedilatildeo do grego
para o latim das obras do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita bem como explanaccedilotildees em torno agrave
contenda da divina predestinaccedilatildeo e agraves interpretaccedilotildees e exegeses suscitadas pela disputa erguida
pela cultura biacuteblica do periacuteodo33
33 Para especificaccedilotildees em torno a Eriuacutegena e seu tempo confira CONTRENI 1996 e MCNAMARA 1996
84
A presenccedila do neoplatonismo em Eriuacutegena parece se posicionar de maneira estrateacutegica
ao longo dos movimentos por ele realizados em sua magna obra o Periphyseon Natildeo se pode
perder de vista as possiacuteveis definiccedilotildees do neoplatonismo natildeo apenas dentro de suas esferas
relacionais e a partir das tendecircncias de leitura mas ainda por meio da questatildeo fundamental que
problematiza todo conteuacutedo qual seja como o uno se relaciona com o muacuteltiplo ou ainda como
o que eacute primeiro se relaciona com o que eacute posterior Oscar Federico Bauchwitz sustenta que
ldquo() a questatildeo pela antonomaacutesia do neoplatonismo enquanto uma reflexatildeo acerca da relaccedilatildeo
entre o Criador e a criatura entre o Uno e a multiplicidade pode ser enfocada na obra de
Eriuacutegena no que diz respeito a creatio ex nihilo e ao sentido original que eacute determinado ao
termo nihilrdquo (BAUCHWITZ 2001 11) Assumindo esta hipoacutetese como vaacutelida torna-se
imprescindiacutevel compreender o lugar que tal questatildeo ocupa na obra eriugeneana e como ela se
desenvolve
Conforme os apontamentos de Bauchwitz o ldquonadardquo se apresenta pela primeira vez jaacute
no iniacutecio do Periphyseon ao serem articulados os modos da diferenccedila fundamental da divisatildeo
da natureza (φύσις natura) definida como tudo aquilo que eacute e que natildeo eacute (quae sunt et quae non
sunt) sendo dividida em quatro espeacutecies ldquo() primeiro naquilo que cria e natildeo eacute criado segundo
naquilo que eacute criado e tambeacutem cria terceiro naquilo que eacute criado e natildeo cria enquanto o quarto
nem cria nem eacute criadordquo (ERIVGENAE 1999 37 441ordf) O que eacute pode ser percebido apreendido e
conhecido O que natildeo eacute todavia natildeo se pode perceber apreender ou conhecer (cognoscitur non
quid est sed quia est) De acordo com Bauchwitz o termo quid est (ldquoo que eacuterdquo) diz respeito agrave
essecircncia de tudo que permanece incompreensiacutevel e infinito ao passo que quia est (ldquoque eacuterdquo)
indica a existecircncia da essecircncia divina ou seja seus efeitos como algo determinado e que eacute O
incompreensiacutevel da natureza divina Eriuacutegena deixa ver quando escreve ldquoPortanto se eacute por
causa de sua excelecircncia inefaacutevel e incompreensiacutevel infinitude que a Natureza Divina eacute dita natildeo
ser disto se segue que ela eacute nada ()rdquo (IDEM 2005 61 634C)
85
A impossibilidade de compreender a natureza divina eacute o que permite a Eriuacutegena
descortinar seu entendimento acerca da creatio ex nihilo Bauchwitz escreve sobre este ponto
ldquoA questatildeo se origina eacute que se a diferenccedila fundamental abarca a totalidade da natureza o que
se poderia predicar de Deus Isto eacute o que haacute para mais aleacutem do ser e do natildeo ser senatildeo o Nada
desde o qual Deus cria todas as coisasrdquo (BAUCHWITZ OP CIT 12) O problema eacute apresentado por
Eriuacutegena a partir da busca pelo sentido conforme o qual se questiona de que maneira eacute possiacutevel
compreender como todas as coisas que satildeo se originam do nada (ou nos termos do
neoplatonismo pagatildeo a mesma questatildeo de ldquocomo do uno se origina a multiplicidade) Eacute
possiacutevel interpretar esta passagem alegando que Eriuacutegena se refere ao nihilo em perfeita
sintonia com toda doutrina Cristatilde da criaccedilatildeo como de fato faz sentido afirmar Contudo
Eriuacutegena vislumbra o que considera ldquoa verdadeira essecircncia da natureza divinardquo O Criador que
cria todas as coisas que satildeo criadas insere-se naquela parte da divisatildeo da natureza na qual ldquocria
mas natildeo eacute criadordquo enquanto sua ldquoessecircnciardquo reflete aquilo que ldquonatildeo eacute nem criado nem criardquo
Em outros temos indica-se que nada eacute a natureza divina de Deus ou ainda que natildeo-ser
corresponde agrave divindade
Resta ainda resolver o mesmo problema ante ao qual se encontraram Plotino Proclo o
Pseudo-Dioniacutesio entre outros a saber como eacute possiacutevel para Deus desarraigar-se de seu nada
ou desdobrar-se desde si mesmo Bauchwitz oferece uma explicaccedilatildeo quando potildee em relevo o
problema da expressatildeo do paradoxo
() por meio da criatura eacute Deus quem se manifesta e portanto todas as criaturas
podem ser entendidas como certas apariccedilotildees divinas isto eacute teofania Neste sentido a
teofania nomeia o paradoxo da ineffabilis difusio que diz que o infinito devem finito
que o incompreensiacutevel devem compreensiacutevel que o silecircncio clama (BAUCHWITZ 2003ordf
57)
86
Em Eriuacutegena eacute possiacutevel acompanhar o sentido da explicaccedilatildeo de Bauchwitz na passagem que
diz
Tudo o que eacute entendido e sentido nada mais eacute senatildeo apariccedilatildeo do que natildeo eacute aparente
a manifestaccedilatildeo do oculto afirmaccedilatildeo da negaccedilatildeo compreensatildeo do incompreensiacutevel [a
expressatildeo do inexpressiacutevel o acesso ao inacessiacutevel] o intelecccedilatildeo do ininteligiacutevel o
corpo do incorpoacutereo a essecircncia do supraessencial a forma do informado a medida
do incomensuraacutevel o nuacutemero do inumeraacutevel o peso do impensaacutevel a materializaccedilatildeo
do espiritual a visibilidade do invisiacutevel o lugar do natildeo-lugar o tempo do natildeo-tempo
a definiccedilatildeo do infinito a circunscriccedilatildeo do incircunscrito e as outras coisas que satildeo
ambas consideradas e percebidas pelo intelecto sozinho e natildeo podem se restringir
dentro de recessos da memoacuteria e nas quais escapa agrave destreza da mente (ERIVGENAE OP
CIT 59 633BC)
A despeito da possibilidade de sintonia com a doutrina Cristatilde da criaccedilatildeo (especificamente o
sentido moralizante da gecircnese) natildeo haacute forccedila catequeacutetica senatildeo puramente especulativa na
maneira pela qual Eriuacutegena aborda a questatildeo O acesso ao sagrado aparece antes como uma
atitude fundamental na qual se insiste no misteacuterio da nadidade do divino
O resultado do caminho meditativo de Eriuacutegena eacute uma postura na qual o pensamento
natildeo responde apenas agraves demandas imediatas agraves preocupaccedilotildees que sanem os conflitos
existenciais e sociais mas uma intelecccedilatildeo cujo grau de alcance atinge toda mensurabilidade e
incomensurabilidade da estruturaccedilatildeo do real como internalizaccedilatildeo do segredo oculto e dos
misteacuterios da natureza Parece ser neste sentido que Bauchwitz sugere uma eacutetica do silecircncio
onde ldquo() natildeo basta enunciar o princiacutepio que deve reger as accedilotildees do ser humano () O silecircncio
como destino a ser alcanccedilado soacute tem sentido na medida em que nomeia a incessante e natural
disposiccedilatildeo do proacuteprio homem em dirigir-se a elerdquo (BAUCHWTZ OP CIT 12) Antes de resolver
qualquer problema assume-se o respeito para com a profundeza do incocircndito
87
Durante a introduccedilatildeo desta tese referi-me a um outro escrito de Bauchwitz Nihilismo
e Neoplatonismo assumindo que aquele artigo havia sido responsaacutevel por traccedilar uma direccedilatildeo
ou mesmo proporcionar um estiacutemulo ao desenvolvimento deste trabalho Gostaria de retornar
agravequele artigo uma vez mais para encerrar esta seccedilatildeo com definiccedilotildees mais precisas a respeito da
henologia e da meontologia como ultrapassagem dos limites da metafiacutesica
O capiacutetulo anterior evidenciou que com a ontologia ou a substantivaccedilatildeo do pensamento
ocidental por meio da confusatildeo entre ser e ente perdeu-se natildeo a capacidade intelectual do ser
humano mas o atino para o seu fundamento Em razatildeo da urgecircncia de respostas abandonou-se
tudo aquilo que era por princiacutepio incoacutegnito inefaacutevel inexprimiacutevel Como havia dito na
introduccedilatildeo com o apoio do trabalho de Bauchwitz a consumaccedilatildeo deste movimento eacute anunciado
por meio de um diagnoacutestico do niilismo Neste sentido Bauchwitz escreve
A relaccedilatildeo entre Nihilismo e Neoplatonismo que aponta para uma eacutetica aleacutem dos
limites da temporalidade e de crenccedilas religiosas ainda estaacute para ser esclarecida Uma
tal eacutetica somente poderaacute ser realmente quando cumpridas umas exigecircncias que neste
trabalho foram apenas assinaladas a superaccedilatildeo da vontade e em consequecircncia da
proacutepria liberdade soacute pode ser interpretada em uma perspectiva que jaacute natildeo se encontra
nos limites da ontologia tradicional ou no dizer de Heidegger no acircmbito da metafiacutesica
O sem-propoacutesito de uma tal eacutetica que abnega qualquer visatildeo utilitarista e
simplesmente dada do mundo exige pensar a partir de novas fundamentaccedilotildees e
valores o retorno do divino eacute uma metaacutefora que atende a tais exigecircncias na medida
em que ao tempo que nos abre uma concepccedilatildeo totalmente outra daquele que ancora
os principais valores vigentes questiona pelos conceitos fundamentais que
homologaram esses valores como superiores porque quantificaacuteveis A ausecircncia de
referecircncias fixadas pelos padrotildees contemporacircneos que mensuram o bem-estar de cada
indiviacuteduo e o resgate de uma vivecircncia que se justifica nela mesma e natildeo pelas suas
finalidades devem servir de origem para superar a ldquonoite do mundordquo (BAUCHWITZ OP
CIT 179-180)
88
Em primeiro lugar eacute importante destacar que a falta de esclarecimento da ldquoeacutetica aleacutem dos
limitesrdquo ou como prefiro colocar aqui ldquopara aleacutem das fronteirasrdquo natildeo soacute natildeo estaacute clara como
assim deve permanecer caso queira responder agrave exigecircncia de absorver a negatividade que
tambeacutem faz parte da humanidade do humano mas que foi todavia afasta de sua visatildeo da
realidade Por este motivo utiliza-se aqui o termo conflito das fronteiras para indicar natildeo uma
resoluccedilatildeo de problemas mas a assunccedilatildeo de um confronto Sendo assim a ultrapassagem de
limites deve se dar apenas no que tange agrave possibilidade de abrir o pensamento para aleacutem da
metafiacutesica tradicional Explorar o que haacute de propriamente fraco o que natildeo se sustenta o que
natildeo pode ser
A temaacutetica poderia ser encerrada aqui Seria possiacutevel retornar ao neoplatonismo com
ainda mais cautela e extrair de laacute mesmo os elementos para subverter toda sorte de ordenamento
que lanccedila o ser humano na ldquonoite do mundordquo Contudo meu interesse aqui eacute explorar mais um
momento da histoacuteria da filosofia e se possiacutevel encontrar um ponto de apoio para reunir a
tradiccedilatildeo metafiacutesica e o neoplatonismo em um uacutenico problema Minhas hipoacutetese conforme seraacute
desenvolvida no terceiro e uacuteltimo capiacutetulo eacute encontrar uma orientaccedilatildeo Orientaccedilatildeo extrema
Ali no Extremo Oriente
89
3 O EXTREMO ORIENTE E O CONFLITO DAS FRONTEIRAS A FILOSOFIA COMPARADA INTERCULTURAL
COMO CHAVE DE LEITURA PARA ALGUNS PROBLEMAS DO PENSAMENTO CONTEMPORAcircNEO
O ambiente acadecircmico britacircnico do final da deacutecada de 1970 foi palco de uma fervorosa disputa
acerca das interpretaccedilotildees e definiccedilotildees culturais entre Ocidente e Oriente A publicaccedilatildeo do livro
Orientalism (1978) de Edward Wadie Said (ع إدوارد Idwārd Wadīʿ Saʿīd) fomentou ديعس ودي
uma inesgotaacutevel discussatildeo acerca de qualquer suposta correspondecircncia deste ou daquele
elemento nos princiacutepios da tradiccedilatildeo oriental sustentando em termos bem simples que o
Oriente era antes uma invenccedilatildeo convencional Said sofreu diversas criacuteticas algumas mais
significativas outras menos Uma de suas consideraccedilotildees mais discutidas afirma que ldquo() o
Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente) como sua imagem ideacuteia personalidade e
experiecircncia de contraste Contudo nada desse Oriente eacute meramente imaginativordquo (SAID 1990
13-14) acrescentando ainda de forma incisiva que ldquoO Oriente expressa e representa esse
papel cultural e ateacute mesmo ideologicamente como um modo de discurso com o apoio de
instituiccedilotildees vocabulaacuterio erudiccedilatildeo imagiacutestica doutrina e ateacute burocracias e estilos coloniaisrdquo
(IDEM IBIDEM 14) Said defendeu que o Oriente tal qual eacute conhecido pelo mundo ocidental natildeo
corresponde agrave proveniecircncia originaacuteria de suas tradiccedilotildees mas eacute antes uma estrateacutegia (poliacutetica e
econocircmica) de manutenccedilatildeo geograacutefica Toda designaccedilatildeo acadecircmica de qualquer orientalismo
ateacute entatildeo desenvolvido estaria entatildeo equivocada apoiada em pressupostos que natildeo condizem
com a tradiccedilatildeo oriental Sem embargo o mesmo poderia ser dito a respeito da introspecccedilatildeo do
mundo grego pelo mundo romano-latino e no decorrer da histoacuteria da humanidade eacute possiacutevel
ainda identificar outras centenas de casos semelhantes ateacute o ponto no qual se afirma a
globalizaccedilatildeo por meio da modernizaccedilatildeo de todos os recantos do planeta dentro do iacutempeto de
igualar todas as culturas em um niacutevel comum
90
Entretanto apesar de ser possiacutevel interpretar as assertivas de Said de forma mais
ponderada aproveitando com isto certo direcionamento fatalista embora natildeo necessariamente
inveriacutedico de sua investigaccedilatildeo algumas gafes de sua compreensatildeo da histoacuteria se revelam
bastante perturbadoras Um dos principais criacuteticos de Said Robert Irwin publicou uma obra
onde ampla parte eacute dedicada agrave refutaccedilatildeo direta dos principais argumentos de Said Em For the
Lust of Knowning (2006) Irwin destaca algumas inverdades de Said e contrargumenta de
maneira precisa certas falaacutecias Contudo Irwin eacute tambeacutem bastante emotivo em sua abordagem
ele escreve ldquoPara pocircr minhas cartas na mesa jaacute de iniacutecio a meu ver aquele livro [Orientalism]
eacute uma obra de uma impostura maleacutevola na qual eacute difiacutecil distinguir erros verdadeiros de
falsidades propositadasrdquo (IRWIN 2006 11) Irwin ataca principalmente os erros fatuais de Said
apontando para lacunas na fundamentaccedilatildeo da obra Orientalism34 destacando vaacuterios enganos e
afirmando em siacutentese ldquoPois se eacute possiacutevel apresentar uma imagem falsa do orientalismo do
cristianismo e do imperialismo britacircnico natildeo seria tatildeo obviamente errado apresentar de modo
semelhante uma falsa imagem do islatilde da histoacuteria aacuterabe ou da difiacutecil situaccedilatildeo dos palestinosrdquo
(IDEM IBIDEM 330-331) fazendo referecircncia agraves posiccedilotildees por Said defendidas Em suma Irwin daacute
a entender nas entrelinhas que a politizaccedilatildeo de um criacutetico literaacuterio no caso Said tornou a obra
Orientalism um intento mal construiacutedo como ferramenta para sustentaccedilatildeo de posiccedilotildees poliacuteticas
condenando todo seacuterio estudo que envolve o orientalismo Ateacute entatildeo muitos outros
pesquisadores e eruditos atacaram Said bem como tantos outros o admiravam e o defenderam
Todavia com a apresentaccedilatildeo desta disputa quero aqui destacar um fator iacutempar que natildeo
necessariamente se prende agrave contenda mas que encobre o toacutepico de modo geral
34 Irwin destaca alguns erros ldquoOrientalismo daacute a impressatildeo de um livro escrito agraves pressas Eacute repetitivo e conteacutem
muitos erros factuais Said menciona lsquoPedro o Veneraacutevel e outros orientalistas cluniacensesrsquo Que outros
orientalistas cluniacenses Seria interessante conhecer seus nomes (Mas naturalmente a ideia de que houvesse toda
uma escola de orientalistas cluniacenses eacute absurda Pedro o Veneraacutevel trabalhou sozinho) Como Bernard Lewis
ressaltou Said faz com que exeacutercitos muccedilulmanos conquistem a Turquia antes de conquistarem o norte da Aacutefrica
Isso realmente sugere uma ignoracircncia espantosa da histoacuteria do Oriente Meacutedio da mesma forma que sua crenccedila
quanto a terem a Gratilde-Bretanha e a Franccedila dominado a regiatildeo oriental do Mediterracircneo a partir do final do seacuteculo
XVIIrdquo (IRWIN 2006 329)
91
Com a discussatildeo entre os orientalistas e seus inimigos o importante eacute destacar natildeo
apenas as dificuldades que envolvem todo e qualquer estudo comparado entre Ocidente e
Oriente mas o fato de que eacute da natureza do proacuteprio estudo comparado que haja divergecircncias
A divergecircncia e o erro satildeo de fato disposiccedilotildees naturais dos estudos comparados sem os quais
natildeo seria possiacutevel sequer dar iniacutecio agrave discussatildeo ou desenvolver qualquer linha de raciociacutenio
preparatoacuteria Soacute eacute possiacutevel falar em estudos comparados porque houve de antematildeo a percepccedilatildeo
de uma divergecircncia Mais ainda a necessidade do momento e os acasos eventuais direcionam
os estudiosos para um ou para outro lado Assim como Said saiu em defesa da Palestina durante
um periacuteodo no qual os conflitos haviam se asseverado em decorrecircncia da expulsatildeo das forccedilas
de paz das Naccedilotildees Unidas em 1967 tambeacutem outros pensadores em outros momentos da histoacuteria
foram motivados por acontecimentos histoacutericos sejam eles de guerra ou de paz poliacuteticos
econocircmicos ou religiosos Como por exemplo as diversas manifestaccedilotildees de revolta e
indignaccedilatildeo de Theodor Wiesengrund Adorno e Gershom Scholem apoacutes Auschwitz ou as
anaacutelises polecircmicas de Slavoj Žižek das revoltas do subuacuterbio de Londres e da Primavera Aacuterabe
Contudo algumas deacutecadas antes da publicaccedilatildeo da obra de Said precisamente durante a
deacutecada de 1950 o Departamento de Filosofia da University of Hawairsquoi at Mānoa havia
alavancado uma seacuterie de trabalhos a respeito dos fundamentos e procedimentos dos estudos
comparados Eacute preciso considerar que proacuteprio departamento jaacute havia sido estruturado entre
1930 e 1940 com o objetivo de suprir a lacuna que havia a respeito dos estudos comparados na
filosofia A primeira East-West Philosophers Conferece em 1939 ditou o tom pelo qual se
tornaria possiacutevel falar abertamente alguns anos mais tarde de uma filosofia comparada
intercultural Ali natildeo escapou a ideia de que foi justamente por meio do ldquoerrordquo que se
estabelecia o diaacutelogo entre fronteiras Em outras palavras este diaacutelogo nascia jaacute sempre de um
conflito das fronteiras A hipoacutetese de consenso eacute explorada neste sentido apenas mediante a
assunccedilatildeo de certa ignoracircncia parcial e sopesando ainda as variaccedilotildees de interpretaccedilatildeo
92
O rigor filosoacutefico que direcionou as primeiras tentativas da filosofia comparada em
confrontar as tradiccedilotildees sapienciais ocidentais e orientais permitiu a instauraccedilatildeo de uma postura
cuidadosa e quase mesmo analiacutetica do problema35 Com isto foi possiacutevel comeccedilar a pensar de
que forma elementos do pensamento oriental e da filosofia ocidental poderiam convergir ou
divergir e quais as contribuiccedilotildees que este tipo de comparaccedilatildeo pode trazer aos problemas da
contemporaneidade Todavia como anos mais tarde discutiriam Said Irwin e outros natildeo se
pode desprezar o fato de que nada escapa aos entrelaccedilamentos ldquoirrastreaacuteveisrdquo das relaccedilotildees entre
Ocidente e Oriente Neste sentido embora qualquer comprovaccedilatildeo cientiacutefica empaque frente aos
desafios historiograacuteficos natildeo eacute de todo ingecircnuo especular as influecircncias que por exemplo
Platatildeo teria sofrido da sabedoria primitiva de hinduiacutesta e budistas como sustentam diversos
especialistas36 Ou ainda da indagaccedilatildeo acerca de ateacute que ponto o Aristoacuteteles que conhecemos
natildeo foi orientalizado por Al-Farabi (صر ون ن محمس اب ی محمس ب اراب Abū Naṣr Muḥammad ibn ف
Muḥammad Fārābī) Avicena (ن نا اب ع د ou و لی اب نا ع ع د Pūr Sinɑʼ ou ainda ور نا پ ع د Pur-
e Sina em aacuterabe و لي أب عن ع س ح ن ال بس ب الله ع ن نا ب ع د Abū ʿAlī al-Ḥusayn ibn ʿAbd Allāh
ibn Al-Hasan ibn Ali ibn Sīnā) entre outros filoacutesofos da tradiccedilatildeo aacuterabe Sem contar os
sincretismos que permearam a filosofia do helenismo tardio em Alexandria onde pagatildeos
judeus cristatildeo e mulccedilumanos travavam interminaacuteveis disputas teoacutericas (e natildeo apenas teoacutericas)
a respeitos dos fundamento filosoacuteficos e teoloacutegicos religiosidade momento no qual fica difiacutecil
empreender uma anaacutelise pormenorizada de quem influenciou quem quando o quanto e como37
35 Charles A Moore ponderou no trabalho Some Problems of Comparative Philosophy (1951) a dificuldade em
posicionar as doutrinas orientais em um grupo homogecircneo como podia ser feito com a ocidentais apontando ainda
para o cuidado em evitar as caracterizaccedilotildees e comparaccedilotildees a partir de tendecircncias mais gerais (cf MOORE 1951 67)
Kwee Swan Liat escreveu ainda em Methods of Comparative Philosophy (1951) que ao menos sete esferas de
aplicaccedilatildeo metodoloacutegica devem ser previamente levadas em consideraccedilatildeo (aproximaccedilatildeo filoloacutegica histoacuterica
comparativa formal-valorativa psicoloacutegica fenomenoloacutegica e socioloacutegica-antropoloacutegica) avaliando uma por
uma e propondo por conseguinte uma oitava aproximaccedilatildeo total-integrativa (cf KWEE SWAN LIAT 1951 10ss) 36 Estas hipoacuteteses satildeo levantadas por Graham Parkes na introduccedilatildeo de Heidegger and Asian Thought (1987) (cf
PARKES 1987 1) 37 Este ponto especiacutefico acerca das contendas do periacuteodo heleniacutestico foram sobremaneira bem expostas por Jean
Pepiacuten no escrito intitulado Heacutelleacutenisme et christianisme no volume de Franccedilois Chacirctelet La Philosophie v 1 De
Platon agrave Saint Thomas Paris Marabout 1995
93
Falar efetivamente de uma filosofia comparada intercultural todavia pressupotildee outra
perspectiva aquela na qual ambas as tradiccedilotildees estatildeo culturalmente niacutetidas e bem delineadas
(ainda que por meio de caracterizaccedilotildees vulgares pouco precisas ou mesmo caricatas) e satildeo
entendidas como exponencialmente distintas Entretanto as mesmas dificuldades permanecem
Com isto quero dizer fica difiacutecil afirmar ateacute que ponto um lado compreendeu o outro de modo
suficiente e satisfatoacuterio sendo possiacutevel indagar ainda se as apropriaccedilotildees natildeo se deram mediante
interpretaccedilotildees equivocadas ou leituras transviadas sobretudo quando natildeo haacute domiacutenio pleno dos
idiomas envolvidos
Estas asseveraccedilotildees tomaram conta de muitos pensadores no decorrer da histoacuteria da
humanidade Ateacute onde eacute possiacutevel investigar dois momentos marcam o iniacutecio da relaccedilatildeo
expliacutecita (e natildeo meramente impliacutecita como no caso dos primeiros filoacutesofos gregos de Platatildeo e
de Aristoacuteteles) entre Ocidente e Oriente na filosofia a apropriaccedilatildeo latina durante a Idade Meacutedia
dos escritos aacuterabes do Oriente Meacutedio38 e a interlocuccedilatildeo e introspecccedilatildeo da tradiccedilatildeo do Extremo
Oriente (sobretudo chinesa em um primeiro momento) na filosofia alematilde dos seacuteculos dezessete
e dezoito Aqui interessa especialmente o diaacutelogo com o Extremo Oriente e como ele natildeo se
encerrou no mero intercacircmbio de tradiccedilotildees fomentando um movimento de reversatildeo no qual os
orientais por sua vez tambeacutem abriram interlocuccedilatildeo direta com o pensamento ocidental
introspectando a filosofia e desenvolvendo ao seu modo formas de reflexatildeo nos mesmos
moldes da estrutura categoacuterica ocidental mas partindo dos princiacutepios orientais ainda que em
certa medida (como se veraacute) tais princiacutepios por vezes comunguem em muitos aspectos de
elementos e direcionamentos comuns aos ocidentais e por vezes natildeo Para isto eacute preciso
investigar brevemente a gecircnese desta relaccedilatildeo e como ela tem iniacutecio
38 Sobre este toacutepico que natildeo seraacute abordado aqui confira W Raven e A Akasoy (eds) Islamic Thought in the
Middle Ages Studies in Text Transmissions and Translations in Honour of Hand Daiber Leiden Brill 2008 D
Calma Eacutetudes sur le premier siegravecle de lrsquoaverroisme latin approches et textes ineacutedits Turnhout Brepols 2010
entre outros
94
A despeito da culminaccedilatildeo das luzes no periacuteodo moderno diversos temas obscuros
perpassaram o seacuteculo dezessete sobretudo aqueles motivados pelas missotildees catequeacuteticas
jesuiacutetas na China que inevitavelmente influenciaram o ambiente intelectual da eacutepoca 39
Independente dos transtornos causados pelos europeus em suas incursotildees tambeacutem na Europa
os problemas apareceram Quando os documentos acerca das tradiccedilotildees chinesas de pensamento
desembarcaram no continente europeu despertaram imediato interesse em diversos estudiosos
Contudo tampouco foi ameno o iniacutecio deste diaacutelogo O caso mais draacutestico se deu em
1723 quando Christian Wolff fugiu de Halle an der Saale em Sachsen-Anhalt na Alemanha
em decorrecircncia de uma seacuterie de perseguiccedilotildees despertadas por um discurso por ele pronunciado
dois anos antes sob o tiacutetulo Oratio de Sinarum philosophia practica (1721) O motivo era
polecircmico e suscetiacutevel de distintas interpretaccedilotildees Wolff afirmara que ldquoA mesma autoridade que
possui os ditos e feitos de Cristo possui tambeacutem Confuacutecio para os chineses Moiseacutes para os
judeus e Mohammed para os turcosrdquo (WOLFF 1985 117) Embora Wolff tenha impressionado
grande parte de seus ouvintes com o teor apaixonado de sua preleccedilatildeo tal comparaccedilatildeo redundou
em acirradas criacuteticas por diversos professores e eruditos que acompanhavam a fala e a
interpretaram como uma espeacutecie de ateiacutesmo mais ou menos mitigado Estas acusaccedilotildees todavia
natildeo eram fruto apenas da sinofilia de Wolff mas advinham jaacute de seu confronto com colegas
pietistas da Universidade de Halle devido agrave inclinaccedilatildeo bastante evidente para um pensamento
racionalista e secular40
39 Sobre as missotildees jesuiacutetas confira Wenzhao Li Die christliche China-Mission im 17 Jahrhundert Stuttgart
Franz Steiner 2000 Acerca do caso especiacutefico do diaacutelogo com a filosofia alematilde confira ainda Antonio Florentino
Neto Von der Interpretation zum Gespraumlch Das chinesische Denken in deutschen Philosophie Saarbruumlcken
SVH 2013 Florentino Neto ainda comenta que as missotildees tiveram iniacutecio ainda no seacuteculo dezesseis tendo
comeccedilado no Japatildeo e soacute entatildeo atingido a China no seacuteculo dezessete (cf FLORENTINO NETO 2009 41) 40 Os interesses de Wolff pela China bem como pelo racionalismo paulatinamente aparecem em seus escritos
desde a influecircncia direta de Leibniz ateacute a leitura dos tratados dos jesuiacutetas a respeito da China Menccedilotildees ao
pensamento chinecircs e o peso da admiraccedilatildeo que nutria por Reneacute Descartes satildeo evidentes em seus trabalhos a partir
de 1721 (cf LACH 1953) A despeito dos interesses de Wolff pelo pensamento chinecircs sobretudo acerca dos temas
morais constata-se que ele considerava o cristianismo moralmente superior e mais bem desenvolvido (cf KANAMORI
1997 302-303)
95
A hipoacutetese de que a natureza comum do ser humano possibilita o discurso intercultural
nasce sobretudo da comunhatildeo entre uma radicalizaccedilatildeo quase miacutestica do racionalismo moderno
e o impacto causado por escritos de ordem semelhante embora com princiacutepios e fundamentos
distintos Aleacutem de Wolff tambeacutem Nicolas Malebranche e Gottfried Leibniz se dedicaram agraves
leituras do material trazido pelos jesuiacutetas no mesmo periacuteodo Malebranche compocircs em 1707 o
escrito Entretien drsquoun Philosophe Chreacutetien et drsquoun Philosophe chinois sur lrsquoexistence et la
nature de Dieu por meio do qual mais tarde aproveitou para se livrar das acusaccedilotildees de ser um
ldquospinozistardquo Malebranche ainda encarou uma acirrada disputa acerca da condenaccedilatildeo do Papa
Clemente XI agraves missotildees jesuiacutetas sustentando posiccedilotildees bastante polecircmicas em seu diaacutelogo
Malebranche levanta em sua obra a questatildeo fundamental acerca da entificaccedilatildeo do deus
cristatildeo instigando a pergunta acerca do infinito que eacute respondida pelo filoacutesofo chinecircs da
seguinte maneira ldquoEstou convencido de que quando penso sobre o infinito estou muito longe
de pensar qualquer coisa Mas entatildeo eu penso em um tal ser individual e determinado Agora
o Deus que vocecircs adoram natildeo eacute assim um ser individual e particularrdquo (MALEBRANCHE 1708
17) As preocupaccedilotildees de Malebranche caminham no sentido de articular ser e ente no problema
da ontologia do cristianismo Quando Leibniz escreve seu Discours sur la theacuteologie naturelle
des Chinois (1716) ele o faz justamente tendo em vista repetidos pedidos de esclarecer pontos
levantados por Malebranche apoacutes o escrito ter sido enviado a ele por Nicholas Reacutemond41
Eacute possiacutevel considerar que Leibniz foi o que se devotou com mais afinco agrave tradiccedilatildeo
chinesa Ele teria se envolvido principalmente com o direcionamento praacutetico da sabedoria
chinesa profundamente norteada pelo propoacutesito de melhorar a si mesmo e agrave sociedade por meio
da noccedilatildeo confucionista de cultivo de si (修身 xiushen) no sentido propriamente moral42
41 Leibniz trocou extensa correspondecircncia com os missionaacuterios jesuiacutetas a respeito da filosofia chinesa aleacutem de
apresentar comentaacuterios pontuais em sua Novissima Sinica (1697) Contudo eacute no Discours que suas ponderaccedilotildees
mais seacuterias e cuidadosas satildeo delineadas e manifestas (cf KANG 2009 6-8) 42 Mais especificaccedilotildees sobre este tema podem ser encontrados em Karyn T Lay Introduccedilatildeo agrave filosofia chinesa
Trad Saulo Alencastre Satildeo Paulo Madras 2009
96
Leibniz escreve em seu discurso ldquoMas quem poderia pensar que houvesse na terra um
povo que superasse os nossos aspectos da vida cultural Se formos iguais nos modos de
produccedilatildeo somo superiores nas ciecircncias teoacutericas mas inferiores na filosofia praacuteticardquo (LEIBNIZ
1979 11) concluindo que ldquo() somos inferiores na aacuterea da eacutetica na poliacutetica e na vida dos
haacutebitos cotidianosrdquo (IDEM IBIDEM) A interpretaccedilatildeo de Leibniz exalta a capacidade dos chineses
em se organizarem e valorarem as tensotildees promovidas pelo campo social com base no cultivo
de si e ainda identificando o ldquosirdquo ao povo em geral Importante eacute ressaltar natildeo apenas desta
breve sentenccedila ilustrativa mas a partir de uma visatildeo mais ampla de suas reflexotildees o profundo
interesse em preencher lacunas a respeito da proveniecircncia intelectual de certos problemas
filosoacuteficos
Anos depois tambeacutem Georg W F Hegel Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche
nutririam interesses pelo Oriente43 Contudo a resposta propriamente oriental a respeito do
intercacircmbio filosoacutefico se daria apenas na virada do seacuteculo dezenove para o seacuteculo vinte Este eacute
o momento no qual a filosofia comparada intercultural comeccedila a ganhar corpo precisamente
com a abertura poliacutetica e intelectual do Japatildeo e o desenvolvimento da chamada Escola de
Filosofia de Kyōto44 Embora natildeo haja tempo nem espaccedilo para abordar de maneira mais
cuidadosa os enlaces teoacutericos e praacuteticos da Escola de Kyōto escrutinando as estruturas de
pensamento de cada um de seus primeiros membros (e ainda de seus membros tardios) gostaria
aqui de destacar alguns aspectos fundamentais direcionados por duas questotildees a primeira
sustentando o porquecirc a filosofia tem iniacutecio propriamente acadecircmico no Extremo Oriente e
precisamente no Japatildeo e a segunda indagando como (ou de que modo) isto acontece Uma
hipoacutetese necessariamente leva agrave outra e isto pode ser facilmente observado
43 Um panorama mais especiacutefico das aproximaccedilotildees pode ser visto em Florentino Neto 2009 44 Em minha dissertaccedilatildeo de mestrado jaacute havia explanado os movimentos histoacutericos que levaram agrave abertura do Japatildeo
e ao surgimento da filosofia japonesa moderna ou contemporacircnea Uma bibliografia mais completa acerca do tema
pode ser extraiacuteda das obras de referecircncia William Beasley The Meiji Restoration (Stanford Stanford UP 1972) e
The Rise of Modern Japan (New York St Matinrsquos Press 1995)
97
Em primeira matildeo sustento que os motivos que proporcionaram o surgimento de uma
ldquoescola filosoacuteficardquo no Japatildeo modernizado estatildeo intimamente ligadas com sua introspecccedilatildeo da
tradiccedilatildeo oriental precedente Em palavras mais simples a maneira pela qual os japoneses
compreenderam e sintetizaram as principais linhas de pensamento orientais (hinduiacutesmo
budismo confucionismo e daoiacutesmo) culminando no chamado budismo zen foi sem embargo
a chave para absorver a filosofia ocidental Em segunda matildeo sustento ainda que a filosofia
japonesa nasce cresce e se estabelece mediante duas perspectivas (justamente os ldquoparadigmasrdquo
anteriormente abordados na tese) metafiacutesica e negatividade em decorrecircncia do florescimento
do zen no Japatildeo Por fim argumento que justamente pelo entrelaccedilamento de metafiacutesica
negatividade e o pensamento do Extremo Oriente que nasce a uacutenica filosofia possiacutevel para o
momento histoacuterico pelo qual passava o Japatildeo e com isto abre-se uma pertinente chave de
leitura para o momento que agora mesmo atravessa a filosofia contemporacircnea
Portanto inicialmente eacute essencial destacar a singularidade do budismo zen em relaccedilatildeo
agraves tradiccedilotildees precedentes Existem muacuteltiplas maneiras pelas quais eacute possiacutevel empreender esta
tarefa Acredito ser plausiacutevel direcionar este toacutepico mediante um problema especiacutefico qual seja
da fundamentaccedilatildeo uacuteltima da realidade a partir da meditaccedilatildeo a respeito da questatildeo da vacuidade
entendida como śūnyatā (शनयता)
A ideia de śūnyatā deriva do budismo indiano primitivo Relatos de reflexotildees em torno
ao problema do fundamento da realidade aparecem (como jaacute havia exposto na introduccedilatildeo desta
tese) desde os cacircnones Pāḷi e satildeo expressos de maneira mais clara e niacutetida no budismo mahāyāna
principalmente no Sūtra do Coraccedilatildeo (Prajntildeāpāramitā Hṛdaya परझञापारनमताहरदय) passando pela escola
mādhyamaka de budismo indiano e ainda nos Versos Fundamentais sobre o Caminho do Meio
(Mūlamadhyamaka-kārikā मलमधयमककाररका) de Nāgārjuna (िागारि) onde foi apresentada de maneira
mais profunda e sistemaacutetica
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Algumas interpretaccedilotildees do escrito de Nāgārjuna destacam o śūnyatā como constituiccedilatildeo
da totalidade da realidade enfatizando que isto significa uma muacutetua dependecircncia (pratītya-
samutpāda परतीतयसमतपाद) de todas as coisas de todas aquelas que possuiriam existecircncia individual
ou substancial e ateacute da proacutepria ideia de nada o que significa propriamente uma anulaccedilatildeo de
qualquer Ente Supremo ou mesmo qualquer verdade absoluta45
Quando os ensinamentos do budismo indiano chegam agrave China e no Japatildeo alguns
princiacutepios fundamentais satildeo radicalizados por ambas as naccedilotildees Existem vaacuterias hipoacuteteses
conforme as quais eacute possiacutevel indagar os motivos desta radicalizaccedilatildeo Alguns consideram que a
doutrina radical do budismo se deve ao gecircnio do monge Boddidharma embora outros
argumentem que o motivo foi o encontro com o daoiacutesmo e o neoconfucionismo A questatildeo pode
permanecer suspensa sem que isto afete a compreensatildeo das bases e dos caminhos do budismo
zen Ao que concerne propriamente agrave introspecccedilatildeo deste conceito fundamental na filosofia
japonesa contemporacircnea (sem embargo o ponto ao qual quero chegar) existem tambeacutem
inuacutemeras controveacutersias embora haja ainda certos pontos solidamente estabelecidos e
mutuamente consentidos que se pode explorar com o intuito de apresentar o problema
O expoente da Escola de Kyōto que pela primeira vez explorou de maneira sistemaacutetica
a questatildeo e a colocou via uma formulaccedilatildeo filosoacutefica foi Kitarō Nishida (西田 幾多郎) Sua
biografia eacute repleta de elementos que o fariam parecer ou bem um rebelde visionaacuterio ou bem
um precoce e intempestivo intelectual permeado por desacordos com o sistema Sem embargo
muitos pesquisadores descreveram com minuacutecia os percalccedilos de sua biografia Por isto natildeo eacute
de todo liacutecito perder muito tempo aqui descrevendo seu percurso pessoal Gostaria apenas de
atentar para alguns pontos sobremaneira importantes no que tange agrave formaccedilatildeo intelectual de
Nishida
45 Este ponto eacute melhor analisado por Michael Barnhart que considera que de acordo com Nāgārjuna ldquo() natildeo se
pode sustentar nenhuma feacute na realidade ou princiacutepio transcendente nem nenhuma razatildeo humana pode pretender
independecircncia de nenhum tipo ()rdquo (BARNHART 1994 649)
99
Em primeiro lugar Nishida viveu em meio agrave restauraccedilatildeo Meiji (1868-1912) um periacuteodo
que divide a histoacuteria do Japatildeo entre preacute-moderna e moderna no qual a sociedade feudal entra
em decliacutenio e a naccedilatildeo eacute ocidentalizada pela forccedila maior da pressatildeo do Departamento de Estado
Norte-Americano A evidecircncia de que o ensino japonecircs estava defasado frente aos desafios do
novo mundo levou seus governantes a implementarem um sistema educacional semelhante ao
ocidental sendo neste periacuteodo fundadas as primeiras universidades japonesas Nishida
frequentou tais universidades embora tivesse seu proacuteprio percurso intelectual independente
tendo a oportunidade de estudar com Raphael von Koumlber professor russo-alematildeo convidado
para ministrar aulas de filosofia no Japatildeo Com Koumlber Nishida estudou a histoacuteria do
cristianismo (com ecircnfase nas influecircncias do paganismo de Plotino) aleacutem da filosofia criacutetica de
Immanuel Kant e da esteacutetica claacutessica Eacute preciso ponderar ainda que Nishida lia com fluecircncia o
francecircs o alematildeo e o inglecircs tendo acesso integral agraves principais obras da filosofia ocidental Por
outro lado o mesmo estudante dedicado era ainda um pensador radical que encontrou na
tradiccedilatildeo do zen budismo um rumo para suas inquietaccedilotildees
Quando Nishida se aproxima do zen budismo e comeccedila a praticar mediaccedilatildeo o impacto
da destruiccedilatildeo dos meacutetodos convencionais de ensino o afeta largamente ponderando sobretudo
que ele jaacute havia abandonado a escola primaacuteria por desentendimentos com o regime educacional
Um artigo de Lothar Knauth intitulado Life is Tragic The Diary of Nishida Kitaro (1965)
destaca uma passagem do diaacuterio de Nishida onde eacute possiacutevel observar sua postura conforme suas
proacutepria palavras
Faccedila sua proacutepria mente e depois disto natildeo dependa dos outros
Natildeo acredite indiscriminadamente nas palavras das pessoas
Natildeo fale de assuntos que ainda natildeo foram amadurecidos
Natildeo desperdice tempo precioso com fofocas ociosas
A lei da mateacuteria de leitura ler pensar escrever
100
Se vocecirc ainda natildeo terminou de pensar sobre um assunto
natildeo mude para outro
Se vocecirc natildeo terminou de ler um livro ateacute o fim
natildeo pegue outro
Non multa sed multum
Diaacuterio Ano Novo 1897 (NISHIDA apud KNAUTH 1965 337)
O trecho do diaacuterio aponta para um jovem estudioso preocupado com o rigor a tensatildeo
proveniente do impacto surtido pelas leituras Knauth expotildee consecutivamente um outro trecho
do diaacuterio este datado de 1 de julho de 1945 jaacute no final da vida de Nishida que diz
simplesmente ldquoEscurecendo nublado vinte grausrdquo (IDEM IBIDEM) A intenccedilatildeo de Knauth com
isto eacute mostrar a profunda introspecccedilatildeo redundante de um amadurecimento especulativo
proveniente de anos de meditaccedilatildeo Contudo ao que interessa ao propoacutesito do toacutepico vale
salientar que mesmo em um conturbado espiacuterito jovem havia jaacute sempre a necessidade de forccedilar
uma ldquoaquietamentordquo da mente uma busca por um lugar silencioso no qual prevalece a maacutexima
non multa sed multum natildeo muito mas bastante
Entre 1891 e 1897 (a ano da primeira citaccedilatildeo) Nishida praticou incessantemente a
meditaccedilatildeo zen havendo tambeacutem contribuiacutedo para uma revista do secto do Budismo da Terra
Pura Sua transformaccedilatildeo efetiva se daria em 1903 onde uma draacutestica revoluccedilatildeo de seu
entendimento abriria caminho para dar iniacutecio ao seu pensamento efetivo
O homens natildeo podem pensar em morrer natildeo podem ter grandes pensamentos ambos
Kawai e Gordon jaacute disseram isto Tentei pensar em mim mesmo morto aos trinta e um
de dezembro de meu trigeacutesimo quinto ano mas entretanto por mais que tentasse natildeo
podia pensar sobre isto seriamente Natildeo importa o quanto eu pense na morte eu natildeo
consigo me fazer esquecer o mundo (ID IBID 341)
101
Para Knauth este trecho evidencia uma iluminaccedilatildeo por meio da ideia de morte miacutestica e
renascimento O resultado imediato da iluminaccedilatildeo ao contraacuterio do que poderia parecer coerente
aos olhos ocidentais daacute-se na publicaccedilatildeo imediata de um artigo onde Nishida afirma ldquoEu
estava errado em usar o Zen em consideraccedilatildeo ao conhecimento Eu deveria tecirc-lo usado para o
espiacuterito e alma Ateacute eu comeccedilar a sentir pela visatildeo eu natildeo pensarei nem em filosofia nem em
religiatildeordquo (ID IBID 342) Este momento representa uma iluminaccedilatildeo justamente pelo fato de que
haacute sem embargo a assunccedilatildeo de uma correta postura mas com um propoacutesito enganoso ndash a busca
pelo conhecimento havia posto em xeque absolutamente todos os anos dedicados agrave meditaccedilatildeo
era necessaacuterio portanto comeccedilar novamente
Conforme Knauth Nishida iraacute se preparar nos proacuteximos anos para exprimir o potencial
introspectado durante sua iluminaccedilatildeo Trecircs pontos satildeo neste momento fundamentais O
primeiro eacute a leitura profundamente marcante para Nishida de Mestre Eckhart46 O segundo eacute
o falecimento de sua filha Yūko viacutetima de um ataque de bronquite O terceiro (diretamente
ligado ao segundo) eacute sua luta contra o cigarro Em 1923 Nishida escreve ldquoDeste dia em diante
eu morri para mundo Eu vivo em minha proacutepria filosofia Tudo sacrificado tudo sacrificado
Profunda impressionante experiecircnciardquo (ID IBID 344) e em 1927 ldquoAgrave tarde eu estava sozinho
na casa Pensamento quietos Quietamente eu passei metade do dia Eu natildeo fumei nem sequer
um cigarro Renascimento despertado de um sonho ruim De uma aacutervore podre de alguma
maneira um novo broto de vida pode florescer Hoje eu estava quase felizrdquo (ID IBID) O motivo
pelo qual Knauth intitula seu artigo com a expressatildeo Life is Tragic adveacutem justamente desta
postura de Nishida conforme a qual a vida humana natildeo passaria de preocupaccedilotildees e problemas
46 Nishida inicia a leitura de Eckhart em 1907 Seria interessante ao propoacutesito da tese que houvesse uma explanaccedilatildeo
maior e mais cuidadosa do pensamento de Eckhart sobretudo no segundo capiacutetulo onde seu posicionamento eacute
fundamental para o desenvolvimento do neoplatonismo e da miacutestica Contudo esta difiacutecil tarefa tornaria o percurso
da tese demasiado longo e cansativo podendo desviar a atenccedilatildeo primordial do trabalho Todavia possuo a intenccedilatildeo
de desdobrar este toacutepico em um trabalho futuro
102
A despeito de um aparente pessimismo o que pode ser destacado do percurso intelectual
e pessoal de Nishida eacute a profundidade com qual ele sentiu o peso da vida A doutrina buacutedica do
sofrimento eacute por ele absorvida de maneira natildeo soacute transcendente mas ainda imanente Os
escritos de Nishida revelaratildeo natildeo apenas um caminho filosoacutefico no qual se imbricam a tradiccedilatildeo
sapiencial oriental e a filosofia ocidental mas a descriccedilatildeo de uma experiecircncia vital na qual pulsa
a forccedila do pensamento especulativo Por esta e outras razotildees Nishida havia sido nomeado com
o nome laico-budista ldquosunshinrdquo uma polegada de mente
A produccedilatildeo propriamente filosoacutefica de Nishida eacute tanto mais densa quando suas reflexotildees
pessoais anotadas em seu diaacuterio contudo relativamente mais faacuteceis de serem abordadas devido
agrave sistematicidade que permeia os escritos A despeito de suas incompatibilidades com o sistema
de ensino sua carreira acadecircmica foi coroada em 1894 quando recebeu o tiacutetulo de licenciado
em filosofia com uma tese acerca da causalidade em David Hume culminando no professorado
junto agrave Universidade Imperial de Kyōto em 1913 Neste iacutenterim dedicou-se ao desdobramento
das bases de sua filosofia que teria sido divulgada de maneira mais consistente na obra que
havia publicado em 1911 sob o tiacutetulo Zen no kenkyū (善の研究 Investigaccedilatildeo sobre o bem) A
obra mais conhecida de Nishida busca o autodespertar o que significa uma visatildeo dos
fenocircmenos que compreendem a experiecircncia pura evidente desde a movimentaccedilatildeo de uma
loacutegica toacutepica O termo ldquoloacutegica toacutepicardquo eacute propositalmente ambivalente Por um lado indica uma
loacutegica do espaccedilo do lugar por outro denuncia como esse lugar (locus) revela uma locuccedilatildeo um
discurso Eacute neste lugar que se desenvolvem os limites do pensamento Relatos de alunos de
Nishida comentam que ele costumava desenhar no quadro negro trecircs esferas uma sobre a outra
na qual a primeira representaria os acidentes circundaacuteveis ao sujeito a segunda os elementos
incapturaacuteveis pela percepccedilatildeo e a terceira (com linhas tracejadas) a impossibilidade final de
limitaccedilatildeo e a esfera do absoluto insuperaacutevel e infinitamente expansiacutevel nomeado com o signo
do nada absoluto (絶対無 Zettaina) sua interpretaccedilatildeo para a noccedilatildeo budista de śūnyatā
103
Com isto Nishida arrancaria da tradiccedilatildeo zen budista uma negatividade total para
fundamentar sua ideia de experiecircncia pura (純粋経験 Junsui keiken) que segundo ele ldquo() se
entende conhecer os fatos como eles simplesmente satildeo (hellip)rdquo (NISHIDA 1990 3) Estaacute presente
nesta formulaccedilatildeo a absorccedilatildeo de Nishida da psicologia funcional de William James onde se
depura a correspondecircncia da percepccedilatildeo com a teoria da verdade Nishida ainda afirma ldquo() o
que usualmente se refere como experiecircncia eacute via de regra adulterado por algum tipo de
pensamento portanto por experiecircncia pura se entende aquele estado no qual se tem experiecircncia
sem qualquer discriminaccedilatildeo deliberativardquo (IDEM IBIDEM) O claacutessico exemplo pelo qual se ilustra
a condiccedilatildeo primaacuteria da pureza da experiecircncia sugere que em uma expressatildeo como ldquoouvi uma
moscardquo haacute um momento no qual o sujeito que ouve a mosca e seu barulho e o ato mesmo de
ouvir ainda natildeo foram distinguidos O fundamento da realidade enquanto nada absoluto para
Nishida encontra-se neste preciso momento neste instante incapturaacutevel na inefabilidade do
indescritiacutevel Entretanto embora a erudiccedilatildeo filosoacutefica de Nishida fosse sobremaneira evidente
bem como sua dedicaccedilatildeo ao zen budismo suas ideias natildeo estavam livres de criacuteticas em ambas
as esferas
Uma das criacuteticas mais ferrenhas a Nishida foi apresentada por Hajime Tanabe (田辺 元)
seu sucessor na caacutetedra de filosofia da Universidade Imperial de Kyōto (em 1928) Ao contraacuterio
de Nishida que nunca havia saiacutedo do Japatildeo Tanabe foi contemplado com um intercacircmbio pelo
governo japonecircs e teve a oportunidade de estudar ao lado de Husserl e Heidegger Sua maior
obra Zangedo to shite no tetsugaku (懺悔道としての哲學 A filosofia como caminho metanoeacutetico
1946) ocupava-se da superaccedilatildeo do inevitaacutevel problema epistemoloacutegico que envolvia a questatildeo
do nada absoluto propondo o termo metanoeacutetica derivado do grego μετανόησις e vertido ao
japonecircs como zangedo (懺悔道) cuja definiccedilatildeo seria nas palavras de Tanabe ldquoum baacutelsamo para
a dor do pesar e ao mesmo tempo o recurso para uma luz absoluta que paradoxalmente torna
vigente a escuridatildeo sem expulsaacute-lardquo (TANABE 1986 2)
104
Em decorrecircncia da necessidade de superaccedilatildeo do proacuteprio pensamento a criacutetica de Tanabe
emerge no sentido de questionar se a filosofia possui condiccedilotildees de enquadrar o autodespertar
religioso conforme exposto por Nishida de maneira sistemaacutetica Conforme Agustiacuten Jacinto
Zavala ldquoResumidamente ao tomar como base o ponto de vista da religiatildeo a filosofia de
Nishida lsquoconverte o trans-histoacuterico absoluto em principium [princiacutepio fundamental] do sistema
e mediante esta determinaccedilatildeo vem [finalmente] ordenar e organizar o histoacuterico relativordquo
(ZAVALA 2013 106) ao passo que ldquoPor isto Tanabe diz lsquoa duacutevida fundamental que albergo
frente a filosofia mestre Nishida se relaciona com este ponto () se a filosofia trata de tomar o
ponto de vista religioso como seu proacuteprio ponto de vista necessariamente deixa de ser si mesmardquo
(IDEM IBIDEM) sintetizando a preocupaccedilatildeo de Tanabe
Os conflitos entre a filosofia a auto-percepccedilatildeo religiosa a partir do estabelecimento do
nada absoluto como fundamento da realidade passaratildeo ainda prelo crivo de diversos
interlocutores sofrendo alteraccedilotildees e recebendo criacuteticas diretas e indiretas Em linhas gerais o
problema de Tanabe estaacute diretamente relacionado com suas compreensotildees estritas da religiatildeo e
da filosofia Em primeiro lugar porque ao contraacuterio de Nishida (que era praticante do zen
budismo) Tanabe partia antes do budismo Jōdo Shinshū (浄土真宗 A Escola da Terra Pura) do
monge Shinran (親鸞)47 Em segundo lugar devido aos interesses de Tanabe pela filosofia da
histoacuteria de Wilhelm Wundt e Heinrich Rickert aleacutem da influecircncia da Lebensphilosophie e o
compromisso histoacuterico que ele alimentou a partir de tais influecircncias Por este motivo era
necessaacuterio tanto para resolver a disputa entre Nishida e Tanabe quanto para superar os estaacutegios
preliminares das discussotildees da Escola de Kyōto reformular as compreensotildees de filosofia e
religiatildeo algo que acontece de maneira somente com Keiji Nishitani (西谷 啓治)
47 Sobre a fundamentaccedilatildeo budista de Tanabe confira Joaquim Antonio Bernardes Carneiro Monteiro ldquoO lsquoNada
Absolutorsquo em Hajime Tanabe uma avaliaccedilatildeo criacuteticardquo In Antonio Florentino Neto e Oswaldo Giacoia Jr (orgs)
O Nada absoluto e a superaccedilatildeo do niilismo Os fundamentos filosoacuteficos da Escola de Kyoto Campinas Phi 2013
155-188
105
Keiji Nishitani eacute talvez o filoacutesofo japonecircs contemporacircneo mais popular entre os
ocidentais O motivo eacute provavelmente o estilo bastante solto e livre de seus ensaios
principalmente os que chegaram traduzidos ao Ocidente ndash precisamente os mais maduros
compostos apoacutes a deacutecada de 1960 como Shūkyo to wa Nanika (宗敎とは何か O que eacute religiatildeo
1961) e Nihirizumu (ニヒリズム Niilismo 1986) Estes mesmos trabalhos sofreram diversas
criacuteticas por parte de colegas japoneses que o acusaram de se afastar dos modos propriamente
orientais de expressatildeo supostamente sugerindo uma indiferenccedila ao idioma vernaacuteculo agraves
tradiccedilotildees e aos projetos de seus antecessores Sobre isto Nishitani teria argumentado que as
lacunas do pensamento japonecircs tradicional sobretudo as idiomaacuteticas impossibilitariam o
alcance do sentido de alguns problemas colocados pela filosofia ocidental motivo pelo qual a
criaccedilatildeo de novas palavras em japonecircs se mostrava absolutamente necessaacuterios48 Sem embargo
os questionamentos impostos pelos novos tempos natildeo se prendiam agraves fronteiras linguiacutesticas e
invadiam o Japatildeo modernizado e ocidentalizado com especial forccedila razatildeo pela qual a
aproximaccedilatildeo com a filosofia sua interiorizaccedilatildeo e reflexatildeo era simplesmente inevitaacutevel
Todavia embora Nishitani tenha realmente pendido para o pensamento filosoacutefico ou para a
maneira pela qual os pensadores ocidentais liam as questotildees conflituosas da contemporaneidade
ao mesmo tempo ele se voltava com ainda maior introspecccedilatildeo para o budismo sobretudo para
o zen Esta ambiguidade intencional do pensamento de Nishitani se revela nas inquiriccedilotildees por
ele levantadas e pelo teor de suas investigaccedilotildees deixando ver claramente sua preocupaccedilatildeo a
respeito do direcionamento reflexivo da filosofia contemporacircnea
48 James Heisig discute esta questatildeo pormenorizadamente quando apresenta o estilo filosoacutefico de Nishitani
Conforme Heisig a influecircncia ocidental absorvida por Nishitani cujas maiores expressotildees foram a esteacutetica de
Immanuel Kant o idealismo alematildeo (especialmente Friedrich W J Schelling) Plotino e o neoplatonismo a
miacutestica de Mestre Eckhart e Francisco de Assis e ainda a hermenecircutica existencial de Wilhelm Dilthey e Martin
Heidegger deixam bastante claro o porquecirc ele subverte e converte os limites e alcances da linguagem Heisig
ainda destaca o momento no qual Nishitani afirma que nos miacutesticos a confluecircncia e a uniatildeo entre religiatildeo e
filosofia alcanccedilaram um ponto elevado despertando seu profundo interesse por tais autores A despeito dos temas
eleitos Heisig considera ainda que por este mesmo motivo o estilo de Nishitani se mostra superior ao de Tanabe
e ao de Nishida (cf HEISIG 2002 233-242)
106
Eacute possiacutevel considerar que o problema com o qual Nishitani se defrontou e que norteou
o andamento geral de seu pensamento mais cuidadosamente desenvolvido possui um ponto de
partido muito bem estabelecido qual seja o problema do niilismo denunciado na virada do
seacuteculo por autores como Friedrich Nietzsche Ernst Juumlnger Fioacutedor Dostoievsky Ivan
Turgeniev entre outros Em Shūkyo to wa Nanika longe de tentar elucidar o sentido da religiatildeo
em termos sistemaacuteticos a despeito do tiacutetulo do escrito Nishitani parece buscar uma imersatildeo na
tensatildeo contraditoacuteria que os seres humanos possuem com a experiecircncia religiosa segundo ele
ldquo() para quem a religiatildeo natildeo eacute uma necessidade precisamente por esta razatildeo ela eacute uma
necessidade Natildeo haacute nenhuma outra coisa sobre a qual se possa dizer o mesmordquo (NISHITANI
1983 1) Sua definiccedilatildeo de religiatildeo se abre a partir da compreensatildeo de uma ldquoauto-despertar da
realidaderdquo cuja explicaccedilatildeo se apoia no termo inglecircs realize segundo ele um termo polissecircmico
que possuem tanto o sentido de actualize (atualizar mas tambeacutem trazer o sentido real como na
expressatildeo actually cujo significado seria na verdade) quanto de understand (compreender)
Nishitani explica ldquo() estou utilizando esta palavra para indicar que nossa habilidade para
perceber a realidade significa realizar (atualizar) a realidade por si mesma em noacutesrdquo (IDEM IBIDEM
5) Esta explicaccedilatildeo apareceria para confrontar o sentido do niilismo que segundo Nishitani
ldquo() se refere agravequilo que torna sem sentido o sentido da vida () sinalizando nada menos do
que fato de que o despertar da nossa existecircncia penetrou em uma profundidade extraordinaacuteriardquo
(ID IBID 4) Em suma Nishitani possui um alvo muito claro lidar com o abismo existencial
que se deixa ver sobremaneira angustiante nos novos tempos aqueles mesmos ldquotempos de
penuacuteriardquo da ldquonoite do mundordquo anunciados por Nietzsche denunciados por Heidegger e que
assombravam os filoacutesofos que se deparavam com a instituiccedilatildeo da morte do pensamento
reflexivo mediante a Era Atocircmica dos desastres ambientais e dos deliacuterios da modernizaccedilatildeo
industrializaccedilatildeo e tecnologizaccedilatildeo do mundo Fatos inegaacuteveis cuja profunda relaccedilatildeo com a
histoacuteria do pensamento torna seu sentido cada vez mais obscuro
107
A forccedila interpretativa que moveraacute o pensamento de Nishitani rumo agraves tentativas de
resoluccedilatildeo dos conflitos passaraacute em primeiro lugar por sua leitura a respeito do problema do
niilismo e sua relaccedilatildeo com a ideia de śūnyatā Quando Nishitani alcanccedila esta abordagem ele
frisa de iniacutecio que ldquo() um dos maiores e mais fundamentais problemas que todas as religiotildees
encaram em nossos tempos eacute sua relaccedilatildeo com a ciecircnciardquo (IDEM IBIDEM 77) O motivo aparenta
ser a incompatibilidade entre o pensamento cientiacutefico e o sentido essencial da vida religiosa
Nishitani entatildeo argumenta de maneira incisiva (e que sintetiza o propoacutesito desta tese no final
das contas)
Uma em cada dez pessoas escuta que a religiatildeo e a ciecircncia tem cada uma seu proacuteprio
domiacutenio e tarefa e que as duas nunca precisaratildeo entrar em conflito caso permaneccedilam
confinadas em suas fronteiras originais Isto eacute inadequado Uma fronteira separa uma
aacuterea da outra e ao mesmo tempo pertence a ambas as aacutereas Os fundamentos do
conflito entre religiatildeo e ciecircncia repousam certamente em tais fronteiras De fato desde
os tempos mais antigos metafiacutesica e filosofia consistiram na exploraccedilatildeo destas
fronteiras entre ciecircncia e religiatildeo (IDEM IBIDEM 77-78)
Nishitani ainda questiona se tais fronteiras podem ser consideradas realmente fronteiras ou natildeo
admitindo que a ciecircncia contemporacircnea natildeo parece se preocupar com a questatildeo A criteacuterio de
verdade objetiva da ciecircncia com o apoio das leis da natureza seria responsaacutevel por de certo
modo menosprezar o conhecimento religioso e mesmo o conhecimento filosoacutefico em
decorrecircncia da verdade cientiacutefica absoluta Mas Nishitani contesta no contrafluxo da tendecircncia
mais geral ldquoMas eacute realmente tatildeo evidente Uma nova maneira de olhar para o absoluto e o
relativo conforme a qual dois absolutos podem se tornar conjuntos impensaacutevel em uacuteltima
instacircnciardquo (ID IBID 78) Para Nishitani o problema vige no fechamento das possibilidades
108
Natildeo haacute aqui uma criacutetica ldquocientofoacutebicardquo mas o levantamento de uma questatildeo qual seja
ldquoNatildeo possuiacutemos uma outra maneira de conceber o relativo senatildeo em termos de estabelecimento
de limites ndash como fazemos por exemplo quando dividimos uma folha de papel em duas ao
traccedilar uma linha nelardquo (ID IBID 79) Nishitani mostraraacute esta possibilidade por meio de sua
interpretaccedilatildeo da ideia de śūnyatā e como ela desvela uma perspectiva que explora os elementos
abandonados pela objetividade cientiacutefica Seja como for eacute possiacutevel considerar jaacute de iniacutecio que
se concentra aiacute toda a potecircncia do diaacutelogo entre metafiacutesica e negatividade apresentado ao longo
desta tese sendo possiacutevel acompanhar Nishitani em uma definiccedilatildeo do conflito das fronteiras
Agora bem quais as saiacutedas ou quais as possiacuteveis chaves de leitura para o problema que
se apresenta a saber a questatildeo do niilismo contemporacircneo Quando emprego aqui o termo
filosofia comparada intercultural tenho em vista a maneira pela Nishitani (entre outros)
exploram as muacuteltiplas significaccedilotildees de distintas tradiccedilotildees culturais em suas convergecircncias e
divergecircncias para se aproximar do problema e propor novos pontos de vista A respeito
especificamente da questatildeo levantada Nishitani utiliza a proacutepria ambivalecircncia do niilismo para
propor uma soluccedilatildeo Seu caminho seraacute resgatar o sentido pelo qual a ciecircncia se apropria das
leis da natureza e desenvolve a tecnologia argumento que eacute precisamente por meio desta
apropriaccedilatildeo que se revelam a medida da liberdade do homem em relaccedilatildeo agraves fronteiras impostas
pelas leis naturais Contudo haacute uma inversatildeo pela qual o controlador se torna o controlado
Conforme Graham Parkes ldquo() a vida humana e o trabalho como um todo se tornam
progressivamente mecanizados e impessoais (nos termos de Heidegger perdemos nossa lsquolivre
relaccedilatildeorsquo com a teacutecnica e estamos lsquoacorrentadosrsquo agrave ela)rdquo explicando ademais que para Nishitani
ldquoA liberdade advinda das leis da natureza que a tecnologia mecanizada nos concede aleacutem do
sentimento concomitante de distacircncia ou separaccedilatildeo do mundo natural levam os seres humanos
a lsquose comportarem como se eles estivessem completamente fora das leis da naturezarsquordquo (PARKES
2013a 103) Sendo assim a uacutenica via possiacutevel eacute restabelecer esta relaccedilatildeo humano-natureza
109
O ponto de apoio de Nishitani para colocar o problema parte da compreensatildeo que
oferece o neoplatonismo e a miacutestica medieval de Deus como nada absoluto (ele cita
especificamente Mestre Eckhart neste ponto) para trazer agrave tona a questatildeo morte-sive-vida
Nishitani evidencia portanto que ldquoEste ponto natildeo pode repousar em um lado mais distante
aleacutem deste mundo e desta vida terrena que possuiacutemos Deve repousar no lado mais proacuteximo
tanto mais proacuteximo quanto nossas vidas ordinariamente devem serrdquo (ID IBID 90) Aproveitando
a perspectiva budista para elucidar este caminho Nishitani esclarece de maneira precisa que
ldquoŚūnyatā eacute o ponto no qual noacutes nos tornamos manifestos de nossa proacutepria talidade (suchness)
como seres humanos concretos como indiviacuteduos com alma e personalidade Ao mesmo tempo
eacute o ponto no qual tudo ao redor se manifesta para noacutes em sua proacutepria talidade (suchness)rdquo (ID
IBID 90)49 Śūnyatā envolve inevitaacutevel e necessariamente este complexo conceito de talidade
(真如 Shinrsquonyo ndash Tathatā तथता) que eacute sem embargo o berccedilo da meditaccedilatildeo oriental
A talidade eacute a via pela qual se extrai a conduccedilatildeo do sistema eacutetico e moral da sociedade
hinduiacutesta primitiva Sua disseminaccedilatildeo no Extremo Oriente eacute carregada por duas tradiccedilotildees quais
sejam o daoiacutesmo e o budismo Os daoiacutestas centram sua noccedilatildeo de ldquoprinciacutepiordquo por meio da noccedilatildeo
de dao (道) e sua relaccedilatildeo com de (德) O famoso Dao De Jing (道德经) bem como a obra do
mestre Zhuangzi (莊子) satildeo os principais responsaacuteveis por colocarem ambos os princiacutepios (dao
e de) e movimento dinacircmico conforme o qual a relaccedilatildeo com natureza natildeo seria entendida nem
como celestial nem como humana mas como ambas sem que uma tenha privileacutegio sobre a
outra ndash e este seria enfim o caminho (dao) da virtude (de) (cf ZHUANGZI 2009 42)
49 Traduzo aqui suchness por talidade com base na ideia de que Nishitani se refere ao conceito budista de Tathatā
(तथता) que em japonecircs se ilustra com o kanji 真如 (Shinnyo) cuja traduccedilatildeo seria ldquorealidade absolutardquo mas natildeo
corresponde ao peso do termo Sobre isto Antonio Morillas escreve que ldquoO termo tathata eacute de difiacutecil traduccedilatildeo
em castelhano Em inglecircs se verte com as expressotildees suchness (a condiccedilatildeo de ser ldquotalrdquo e como se eacute) thatness (o
fato de ser ldquoissordquo que se eacute) e isness (a qualidade de algo que ldquoeacuterdquo sem mais o que eacute e como eacute) () A talidade
[traduccedilatildeo castelhana de tathata] eacute a noccedilatildeo do fato de que a realidade e as coisas e fenocircmenos que a compotildeem satildeo
ldquoassimrdquo ldquotalrdquo e como satildeo que satildeo ldquoissordquo ldquoo que satildeordquo em seu caraacuteter plenamente desnudo na existecircncia luminosardquo
(MORILLAS 2006 167) Pela proximidade com o idioma castelhano opto aqui por adotar a sugestatildeo de Morillas
110
O budismo especialmente o budismo zen absorveria tais ideias com especial forma nos
pensamentos de Kūkai (空海) e Dōgen Zenji (道元禅師) Graham Parkes explica que para Kūkai
duas ideias se configuram essenciais Sokushinjobutsu (即身成仏) a possibilidade de atingir a
iluminaccedilatildeo na vida presente (em contraste ao princiacutepio budista tradicional conforme o qual
seriam necessaacuterias muitas vidas) e Hosshin seppo (発疹 説法 ) o entendimento de que a
personificaccedilatildeo buacutedica eacute desprovida de forma e imagem natildeo permitindo conceitualizaccedilatildeo nem
verbalizaccedilatildeo (cf PARKES 2003 81) A despeito da uniatildeo suscitada pelo daoiacutesmo o budismo
chinecircs do oitavo seacuteculo estava imerso em uma profunda discussatildeo acerca da questatildeo se a
natureza buacutedica podia ser atribuiacuteda somente aos seres sencientes ou tambeacutem agraves miacutenimas
partiacuteculas de poeira Kūkai articula as duas ideias acima mencionadas e interpretas as chamadas
ldquotrecircs intimidadesrdquo (corpo fala mente) do Dainichi Nyorai (木造大日如来坐像) que representa a
revelaccedilatildeo esoteacuterica dos ensinamentos no Budismo para sustentar o muacutetuo pertencimento da
relaccedilatildeo do todo com suas partes assumindo a natureza buacutedica para absolutamente tudo Ele
escreve neste sentido ldquoEssa existecircncia estaacute naquela e aquela estaacute nessa A Existecircncia do Buda
(Mahāvairocana) eacute a existecircncia dos seres sencientes e vice e versa Eles natildeo satildeo idecircnticos mas
satildeo todavia idecircnticos eles natildeo satildeo diferentes mas satildeo todavia diferentesrdquo (KŪKAI 1972 93)
Jaacute para Dōgen a evocaccedilatildeo da conduta zen se daria por meio de uma miacutestica cotidiana
alimentando a noccedilatildeo de que toda atividade eacute expressatildeo da natureza buacutedica Parkes argumenta
que algumas atividades satildeo especialmente ilustrativas como por exemplo preparar a comida
servi-la e come-la Dōgen citaria um trecho do Vimalakīrti Nirdeśa Sūtra (नवमलकीनत निदश सतर) que
diria ldquoQuando somos unos com a comida que comemos somos unos com todo o universordquo
evocando o uso do silecircncio como veiacuteculo para o esclarecimento do śūnyatā como fundamento
absoluto da realidade (cf PARKES OP CIT 84) As praacuteticas rituais natildeo possuiriam todavia
conotaccedilatildeo lituacutergica pontual e direcionada mas antes a totalidade de uma experiecircncia de vida
religiosa
111
Tanto Kūkai quanto Dōgen influenciaram amplamente o pensamento de Nishitani e o
ponto de vista conforme o qual o śūnyatā direciona uma atitude por meio da qual se mostra a
talidade Tanto no daoiacutesmo de Zhuangzi quando no zen budismo de Kūkai e Dōgen estatildeo em
jogo o aspecto formal a aparecircncia (rūpa shiki) da realidade em torno por um lado e a assunccedilatildeo
da dissoluccedilatildeo do fundamento dessa realidade por outro (sua vacuidade śūnyatā kū) Por este
motivo haacute uma muacutetua reciprocidade entre a totalidade e as coisas entre uno e muacuteltiplo Isto eacute
o que permite a participaccedilatildeo e ao mesmo tempo incorporaccedilatildeo da realidade (dharmakāya)
Contudo natildeo seraacute o mero resgate das tradiccedilotildees orientais que forneceraacute a Nishitani a resposta
ao problema no que concerne ao impacto da questatildeo frente aos tempos de niilismo mas sim o
resultado da confrontaccedilatildeo desta tradiccedilatildeo com a filosofia contemporacircnea ocidental ou sem
embargo o confronto entre as fronteiras
Graham Parkes atenta para uma reivindicaccedilatildeo de Nishitani de haver superado em certa
medida o desenvolvimento das filosofias de pensadores como Hegel Nietzsche e Heidegger
(cf PARKES 2013b 189-190) Contudo no cerne desta proposiccedilatildeo estaacute a ideia de que o que foi
superado natildeo foi propriamente o conteuacutedo da meditaccedilatildeo mas a forma da abordagem ou seja
a perspectiva intercultural privilegiada da comparaccedilatildeo filosoacutefica de Nishitani Com o anuacutencio
da morte de Deus e dos tempos de niilismo em Nietzsche ficou evidente um diagnoacutestico da
atividade humana inerente aos valores que a guiam por um lado e a induccedilatildeo ao desespero
suscitado pela projeccedilatildeo cognoscitiva ao ente por outro A saiacuteda de Nietzsche por meio do
ldquogrande antiacutedotordquo da transvaloraccedilatildeo de todos os valores eacute recebida em Nishitani considerando
trecircs ideias chave de sua leitura budista (1) a constituiccedilatildeo do fundamento da existecircncia como
uma experiecircncia aleacutem da relaccedilatildeo entre sujeito objeto por meio do conceito de (referente agrave noccedilatildeo
de dharma धम) (2) a reaccedilatildeo de retorno ao mesmo de toda atividade (a partir do conceito de
karma कम) e a noccedilatildeo de que natildeo haacute nada que exista independente de circunstacircncias e
condicionamento ou a chamada ldquoco-originaccedilatildeo dependenterdquo (o pratītya-samutpāda परतीतयसमतपाद)
112
Portanto o que em Nietzsche seria postulado como destino enquanto o ldquomesmordquo (o ego
fatum nietzscheano) engendrando um ponto de vista criativo em Nishitani seria entendido
desde a ideia do karma Em Nihirizumu Nishitani escreve acerca deste ponto especiacutefico que
ldquoNeste niacutevel fundamental o mundo se move na esfera do mesmo e o mesmo na esfera do
mundo Esta ideia estaacute proacutexima da ideia budista de karma embora em Nietzsche o ponto de
vista do mesmo como destino eacute fundamentalmente criativordquo (NISHITANI 1990 50) Em termos
mais simples de acordo com Parkes ldquo() o que parece um golpe do destino pode ser entendido
antes como uma parte de nossa proacutepria atividaderdquo (PARKES OP CIT 196) O florescimento desta
consideraccedilatildeo se daacute na afirmaccedilatildeo niezscheana do amor fati e da superaccedilatildeo do abismo da grande
suspeita niilista por meio da grande dor pela qual se renasce o que seraacute entendido em Nishitani
a partir do retorno ao abismo onde ldquo() uma vez que algueacutem eacute libertado do abismo a
necessidade se torna um elemento desta vida de liberdade Neste caso necessidade se torna
uma com a criatividaderdquo (NISHITANI OP CIT 52) Entretanto a ressalva de Nishitani consiste que
a afirmaccedilatildeo resultante da superaccedilatildeo do abismo niilista pode ainda ser superar e que a vontade
de poder eacute ainda uma ldquocoisardquo chamada ldquovontaderdquo (cf IDEM OP CIT 234) cuja uacutenica possibilidade
de ser pensada para aleacutem dos fundamentos que redundam no destino como mesmo seria
justamente o ponto de vista do śūnyatā Uma ilustraccedilatildeo possiacutevel de ldquopara onderdquo este ponto de
vista levaria pode ser encontrada quando Nishitani comenta a arte japonesa de arranjo de flores
a chamada Ikebana (生け花) Ali fica niacutetido qual a postura que se assume quando se daacute conda
da vacuidade da realidade uacuteltima e absoluta Nishitani escreve
Desde a perspectiva de sua natureza fundamental todas as coisas no mundo satildeo
lacircminas de grama sem raiacutezes Tal grama entretanto tenho fincado suas raiacutezes no solo
esconde a si mesma em sua fundamental ausecircncia de raiacutezes () sendo cortadas de suas
raiacutezes as flores satildeo feitas pela primeira vez pela manifestaccedilatildeo minuciosa de sua
natureza fundamenta ndash sua falta de raiacutezes (IDEM 2011 1199)
113
Ao fim e ao cabo Nishitani estaacute chamando atenccedilatildeo para uma aprendizagem decorrente da ldquoco-
originaccedilatildeo dependenterdquo a partir da natureza Sobre este ponto e sua relaccedilatildeo com o niilismo
Parkes escreve ldquo() noacutes humanos diferimos de outros entes por meio da possibilidade de nos
tornamos conscientes de nossa proacutepria finitude no estado da niilidade (kyomu) um tipo de
ldquovacuidade ocardquo que eacute uma antecacircmara para a vacuidade criativa (śūnyatā kū)rdquo (PARKES OP
CIT 112) Resumidamente o ponto de vista do śūnyatā se configura para Nishitani a partir da
tradiccedilatildeo do zen budismo oriental e de sua leitura da filosofia ocidental como uma iluminaccedilatildeo
a respeito do fundamento da realidade enquanto vacuidade evidenciado sobremaneira pelo
abismo do niilismo contemporacircneo e que direciona o ser humano para uma vacuidade criativa
na qual sua relaccedilatildeo com as coisas congrega tudo em uma mesma natureza buacutedica ou seja o
lugar onde as flores o arranjo o florista e o ato de fazer o arranjo satildeo a mesma coisa ou o lugar
onde a mosca o anjo Deus e o eu satildeo o mesmo
114
CONCLUSAtildeO
Durante o primeiro semestre de 2011 estava profundamente motivado com a preparaccedilatildeo do
texto final desta tese doutoral Ocupava-me ao mesmo tempo das pesquisas leituras
sistematizaccedilatildeo dos esquemas defesa da versatildeo do final do projeto e dos cursos que iria ministrar
na Universidade Federal do Rio Grande do Norte nos meses seguintes A abordagem agrave histoacuteria
da metafiacutesica agrave tradiccedilatildeo do neoplatonismo e agrave filosofia japonesa contemporacircnea atingiam-me
simultaneamente por meio de muacuteltiplas construccedilotildees conceituais interligadas pela lucidez
provocada mediante a histoacuteria dos efeitos de cada ambiente temaacutetica Contudo ao 11 de marccedilo
daquele ano foi transmitida uma notiacutecia que imediatamente cessou minha produccedilatildeo e
empolgaccedilatildeo com todo e qualquer toacutepico Os jornais incessantemente transmitiam as uacuteltimas
notiacutecias a respeito de um terremoto seguido por um tsunami que havia atingido o Japatildeo e
danificado a estrutura da usina nuclear de Fukushima na cidade de Ōkuma expondo a
comunidade da regiatildeo agrave alarmantes niacuteveis de radioatividade O desastre ambiental seria
considerado algum tempo mais tarde a maior cataacutestrofe nuclear desde Chernobyl em 1986
Evidentemente como havia ocorrido tambeacutem em 2001 durante o ataque terrorista ao
World Trade Center em Nova Iorque as reportagens que chocavam o mundo se tornariam
rapidamente repetitivas e esgotariam o puacuteblico O motivo pelo qual se daria tal neutralizaccedilatildeo e
letargia frente aos fatos foi denunciado por Slavoj Žižek na obra The Year of Dreaming
Dangerously (2012) Ele pondera os eventos destrutivos de 2011 tais quais a Primavera Aacuterabe
e o Occupy Wall Street desde a neutralizaccedilatildeo ideoloacutegica promovida pela miacutedia dando margem
agrave interpretaccedilatildeo conforme a qual os veiacuteculos de comunicaccedilatildeo vigentes aniquilam o potencial
emancipatoacuterio dos eventos por meio da pasteurizaccedilatildeo de sua difusatildeo
115
Žižek destaca o termo da liacutengua persa ldquowar nam nihadanrdquo cujo abstruso significado
seria em linhas gerais ldquomatar algueacutem enterrar seu corpo e plantar flores sobre sua cova para
esconder o cadaacuteverrdquo Para Žižek os meios de comunicaccedilatildeo do capitalismo global destroem a
absorccedilatildeo propriamente humana dos eventos do mundo contemporacircneo exatamente neste
mesmo sentido (cf ŽIŽEK 2012 9) Sem sombra de duacutevidas o mesmo se daria em relaccedilatildeo ao
desastre de Fukushima e hoje trecircs anos depois uma pedra foi posta por sobre o assunto e poucas
pessoas sequer se lembram do ocorrido
Entretanto meu denso envolvimento com a filosofia japonesa natildeo permitiu que os
acontecimentos fossem dissolvidos assim tatildeo facilmente Passei um bom tempo tocado pela
calamidade e mesmo ateacute agora ainda tenho dificuldades em lidar com o assunto As
adversidades emotivas todavia natildeo me impediram de pensar com devoccedilatildeo sobre a questatildeo
pelo contraacuterio estimularam ainda mais o rumo da reflexatildeo filosoacutefica
O ano seguinte seria marcado em meu percurso pessoal pela saiacuteda do paiacutes e realizaccedilatildeo
de estaacutegio sanduiacuteche junto agrave University College Cork (Colaacuteiste na hOllscoile Corcaigh) para
realizar minhas pesquisas sob a supervisatildeo do professor Graham Parkes na Irlanda Parkes
havia publicado no iniacutecio daquele ano um breve artigo intitulado Nuclear Power after
Fukushima 2011 Buddhist and Promethean Perspectives (2012) no qual natildeo apenas analisava
os fatos mas ainda apresentava uma meditaccedilatildeo a respeito de uma filosofia da natureza para
aleacutem das ecologias profundas ou natildeo
Simplificando o assunto o estiacutemulo para o fornecimento de energia nuclear eacute
alimentado pela conclusatildeo de que se trata de uma fonte limpa e autossustentaacutevel em contraste
agrave queima do combustiacutevel e exploraccedilatildeo de recursos foacutesseis ou mesmo aos impactos ambientais
causados pela obstruccedilatildeo de fluxos de aacutegua Aparentemente trata-se de uma soluccedilatildeo emergente
frente ao ainda ineficaz suporte das energias ecologicamente viaacuteveis como a eoacutelica e a solar
116
Parkes pontua sobre isto que ldquoA questatildeo crucial natildeo diz respeito aos meacuteritos relativos
e agraves desvantagens do poder nuclear versus a energia dos combustiacuteveis foacutesseis Antes trata-se
de pensar o que norteia nosso desejo de consumir tanta energia em primeiro lugarrdquo (PARKES
2012 103) O posicionamento diz respeito a um ldquopasso atraacutesrdquo A pergunta eacute o que move no
final das contas o irredutiacutevel e irrefreaacutevel iacutempeto de explorar todos os recursos naturais para
fomentar a manutenccedilatildeo da vida humana na Terra Mesmo com a leitura do escrito eu
particularmente soacute conseguiria compreender o direcionamento proposto por Parkes apoacutes
acompanhar seus seminaacuterios sobre filosofias da natureza entre Ocidente e Oriente no qual
ficariam claras as bases pelas quais ele questionava a conduta contemporacircnea face agrave crise
ambiental
Entretanto quando me deparei com as primeiras leituras oferecidas por Parkes (muitas
das quais constam na bibliografia desta tese) natildeo fui acometido pelo espanto da novidade mas
pela pulsatildeo da comparaccedilatildeo A experiecircncia que jaacute havia acumulado sob a orientaccedilatildeo do
professor Oscar Federico Bauchwitz durante meus anos de pesquisa acadecircmica dedicado agrave
leitura de Nietzsche Heidegger e da tradiccedilatildeo do neoplatonismo e da miacutestica medieval proveu-
me de uma arquitetocircnica meditativa que com a aproximaccedilatildeo com a filosofia oriental apenas
nutriu imediata empatia e introspecccedilatildeo Sendo assim quando congreguei o focirclego e as forccedilas
necessaacuterias para encerrar este trabalho natildeo tinha em mente uma tese levantada de um mero
problema particular mas um longo percurso especulativo que ao longo das paacuteginas aqui
apresentadas tentei descrever da melhor maneira possiacutevel
Sobreveio-me durante os termos finais uma intensa obrigaccedilatildeo de sustentar que a uacutenica
via possiacutevel para enfrentar os problemas filosoacutefico contemporacircneos era a instauraccedilatildeo de um
retorno aos fundamentos por meio da interculturalidade Portanto a conclusatildeo desta tese soacute
pode caminhar rumo agrave elucidaccedilatildeo de quais fundamentos no final das contas satildeo estes que estatildeo
aqui e ali indicados no interior do trabalho
117
Em 1953 Martin Heidegger pronunciou a conferecircncia intitulada Die Frage nach
Technik O escrito eacute talvez uma de suas mais claras expressotildees acerca de sua anaacutelise da
consumaccedilatildeo da histoacuteria da metafiacutesica a instauraccedilatildeo do niilismo europeu e o advento da Era
Teacutecnica Paralelamente durante o mesmo periacuteodo (na verdade em 1954) Nishitani finalizava
a composiccedilatildeo de seu ensaio sobre ldquoNiilismo e Śūnyatārdquo mais tarde incluiacutedo no volume Shūkyo
to wa Nanika abordado aqui ao longo do terceiro capiacutetulo Como foi possiacutevel observar em
Nishitani a saiacuteda do ponto de vista da vacuidade ou nada absoluto demandava a busca por
uma postura interior do ser humano na qual se tornava evidente nada mais senatildeo o elemento
inexplicaacutevel e inexprimiacutevel do fundamento uacuteltimo da realidade que era assumido agora como
oriente para o comportamento humano frente ao colapso do novo mundo A dificuldade inerente
de absorver a proposta de Nishitani todavia eacute ilustrada de maneira praacutetica quando ele aborda
uma questatildeo particular qual seja a relaccedilatildeo entre ser humano e natureza na imagem do jardim
zen Noacutes estamos dentro do jardim e natildeo somos apenas espectadores porque noacutes nos tornamos
parte da real manifestaccedilatildeo da expressatildeo da proacutepria experiecircncia iluminadora do arquiteto do
jardim O jardim eacute meu mestre Zen agora e eacute seu mestre Zen tambeacutem (NISHITANI 1992 55)
Quando Heidegger indica em sua conferecircncia que a essecircncia da teacutecnica natildeo eacute ela mesma nada
teacutecnico ele estaacute em um movimento similar ao de Nishitani chamando atenccedilatildeo para o fato de
que eacute necessaacuterio tambeacutem retornar a algo que natildeo pode ser submetido agrave objetividade cientiacutefica
da relaccedilatildeo sujeito-objeto que sustenta a tecnicizaccedilatildeo do mundo Neste sentido a saiacuteda de
Heidegger eacute ilustrada por meio de um dos conceitos mais enigmaacuteticos de toda sua obra
Gelassenheit Heidegger escreve ldquoTalvez se oculte na Gelassenheit uma accedilatildeo mais elevada do
que em todos os atos do mundo e do que nas maquinaccedilotildees das reliacutequias humanasrdquo (HEIDEGGER
1983a 41) O sentido contudo permanece oculto Resta apenas a ideia de que esta postura
evocada por Heidegger demanda um ldquodeixarrdquo (lassen) que atina para um recolhimento da
paradoxal ambiguidade do que se revela na essecircncia do humano
118
Ressoa tanto em Heidegger quanto em Nishitani uma raiz comum aquela na qual se
ldquoRenuncia aos sentidos agraves operaccedilotildees intelectuais a todo sensiacutevel e ao inteligiacutevelrdquo ainda mais
aquela onde se pede ldquoDespoja-te de todas as coisas que satildeo e ainda das que natildeo satildeo Deixa de
lado teu entender e esforccedila-te por subir o mais que possa ateacute unir-se com aquele que estaacute mais
aleacutem de todo ser e todo saberrdquo Estas palavras aqui propositalmente citadas sem a indicaccedilatildeo
bibliograacutefica satildeo do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita onde neoplatonismo e miacutestica se encontram
no caminho da negatividade Tanto o ldquoprestar atenccedilatildeo aos misteacuterios da naturezardquo em Nishitani
quando a ldquoabstenccedilatildeo da vontade por meio da natildeo-vontaderdquo o ldquoquerer o natildeo-quererrdquo em
Heidegger estatildeo depositados nas sentenccedilas do miacutestico siacuterio
Agora qual eacute este lugar ou natildeo-lugar aleacutem de todo ser e todo saber O que se revela
por meio do despojo e da supressatildeo de todo saber e todo o dizer Esta pergunta natildeo eacute respondida
Natildeo pode ser respondida O que se desvela aiacute eacute justamente o incoacutegnito o misteacuterio Como reagir
portanto frente a tal proposta de em meio a existecircncia contemporacircnea remar no contrafluxo
do sentido do mundo e buscar uma quietude absoluta no silecircncio que adveacutem do misteacuterio da
existecircncia Agrave esta pergunta tampouco se ofereceraacute resposta mas desta vez porque ela jaacute estaacute
respondida A reaccedilatildeo foi nomeada com diversos termos ao longo da histoacuteria recebendo distintas
designaccedilotildees Algumas tradiccedilotildees orientais optam por chama-la ldquoiluminaccedilatildeordquo
Por fim o conflito das fronteiras aqui abordado natildeo eacute um evento especiacutefico um
momento ou instante captaacutevel uma situaccedilatildeo ou circunstacircncia particular O conflito das
fronteiras eacute um caminho ou melhor uma caminhada Uma caminhada rumo ao desconhecido
cujo uacutenico sinal evidente acena para o clamor de um silecircncio ensurdecedor indicando que jaacute eacute
hora de se recolher
119
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7
RESUMO
O conflito das fronteiras se desdobra como um percurso natural da histoacuteria do pensamento
humano Torna-se manifesto todavia apenas mediante um expliacutecito choque cultural que
evidencia distintas formataccedilotildees conceituais Pensar este conflito pode esclarecer os enlaces
responsaacuteveis pelo desenvolvimento do pensamento contemporacircneo Esta tese pretende analisar
em um primeiro momento a histoacuteria do pensamento enquanto metafiacutesica apresentando um
diagnoacutestico da maneira pela qual o Ocidente impinge sua loacutegica categoacuterica Por conseguinte
apresenta a tradiccedilatildeo da negatividade evidenciando um pensamento para aleacutem da ontologia
claacutessica mediante uma henologia e uma meontologia no neoplatonismo e na miacutestica medieval
Por fim expotildee o pensamento do Extremo Oriente como possiblidade de recepccedilatildeo
contemporacircnea da negatividade e escapatoacuteria para a formataccedilatildeo ocidentalizante da filosofia
vigente
Palavras-chave Fronteiras Metafiacutesica Negatividade Extremo Oriente
8
ABSTRACT
The conflict of borderlines unfolds itself as a natural path in history of human thought It
becomes clear only through an explicit cultural clash which conveys distinct conceptual
formatting Thinking this conflict might enlighten the bindings responsible for development of
contemporary way of thought This thesis intent to analyse in a first moment the history of
thought as Metaphysics presenting a diagnostic towards the way through which the West
impinges its categorical logic Thereafter presents the tradition of Negativity showing a
thinking beyond Classic Ontology through a Henology and a Meontology in Neoplatonism and
Medieval Mysticism At the end exposes the Far Eastern thought as possibility of contemporary
reception of Negativity and escape from the Westernizer formatting of contemporary
philosophy
Key words Frontiers Metaphysics Negativity Far East
9
ZUSAMMENFASSUNG
Der Konflikt der Grenzen entfaltet sich als einen natuumlrlichen Weg in der Geschichte des
menschlichen Denkens Es wird nur klar durch eine explizite Kulturkampf die unterschiedliche
konzeptionelle Formatierung vermittelt Denken dieses Konflikts koumlnnte die Bindungen fuumlr die
Entwicklung der zeitgenoumlssischen Denkweise verantwortlich zu erleuchten Diese These
versuchen zu analysieren in einem ersten Moment die Geschichte des Denkens als Metaphysik
praumlsentiert eine Diagnose auf die Moumlglichkeit durch die der Westen trifft seine kategorische
Logik Danach praumlsentiert die Tradition der Negativitaumlt zeigt ein Denken jenseits Klassische
Ontologie durch eine Henologie und Meontologie im Neuplatonismus und mittelalterliche
Mystik Am Ende macht der Fernost gedacht als Moumlglichkeit der zeitgenoumlssischen Rezeption
von Negativitaumlt und Flucht aus der Westler Formatierung der zeitgenoumlssischen Philosophie
Schuumlsselwoumlrter Frontiers Metaphysik Negativitaumlt Fernost
10
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 11
1 ONTOLOGIA A SUBSTANTIVACcedilAtildeO DO OCIDENTE E O PROBLEMA DA METAFIacuteSICA 28
ENQUANTO DELIMITACcedilAtildeO DAS FRONTEIRAS DO PENSAMENTO
2 O CAMINHO DA NEGATIVIDADE HENOLOGIA E MEONTOLOGIA E A ULTRAPASSAGEM 61
DOS LIMITES DA METAFIacuteSICA
3 O EXTREMO ORIENTE E O CONFLITO DAS FRONTEIRAS A FILOSOFIA COMPARADA 89
INTERCULTURAL COMO CHAVE DE LEITURA PARA ALGUNS PROBLEMAS DO
PENSAMENTO CONTEMPORAcircNEO
CONCLUSAtildeO 113
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 119
11
INTRODUCcedilAtildeO
Aos 16 de abril de 2010 sob a avaliaccedilatildeo de uma banca composta pelos professores Oscar
Federico Bauchwitz Gisele Amaral dos Santos e Acylene Maria Cabral Ferreira defendi a
dissertaccedilatildeo de mestrado intitulada A caminho da fronteira Embora possa ainda dedicar mais
dez anos agrave correta composiccedilatildeo estiliacutestica daquele texto aleacutem da estruturaccedilatildeo dos argumentos
laacute natildeo tatildeo bem encadeados imagino ter alcanccedilado o objetivo de tornar claro natildeo apenas o intuito
do trabalho mas o problema movimentado pela questatildeo do conflito fronteiriccedilo de uma filosofia
comparada intercultural por meio de uma histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica
A questatildeo ldquoentre Heidegger e os japonesesrdquo (subtiacutetulo da dissertaccedilatildeo) abordada ao longo
dos dois anos de mestrado acadecircmico referia-se a uma virada de pontos de vista se em um
primeiro momento os orientais se perguntavam o quecirc a filosofia ocidental podia oferecer ao
pensamento e desenvolvimento do Extremo Oriente em um segundo momento os ocidentais
passaram a se perguntar de que forma os japoneses podiam acrescentar agrave filosofia um elemento
meditativo perdido no periacuteodo da consumaccedilatildeo da teacutecnica moderna e do cientificismo desde
suas perspectivas milenares de pensamento reflexivo
Ao passo em que a pesquisa ia se desenvolvendo o trabalho caminhou paulatinamente
rumo ao impacto violento surtido pelo diaacutelogo entre limites bem delineados de um Ocidente
estruturalmente metafiacutesico e um Oriente especulativo quase inefaacutevel para um leitor ocidental
A conclusatildeo extraiacuteda do caminho percorrido entre os anos de 2008 e 2010 apresentou antes de
qualquer soluccedilatildeo a constataccedilatildeo da instalaccedilatildeo de uma impertinecircncia petrificada no seio da
filosofia contemporacircnea sobre a qual pouco se pode acrescentar na dissoluccedilatildeo de problemas
mas muito se pode desdobrar no que tange ao entrelaccedilamento do alcance de um grau distinto
de movimentaccedilatildeo das arquitetocircnicas conceituais
12
Embora tais palavras pareccedilam abstratas em demasia (e de fato satildeo) o foco atingido se
concentrou em uma inquiriccedilatildeo a respeito do pensamento da linguagem e da verdade a partir
de um inusitado enigma sobre a negatividade do impensaacutevel ou seja sobre o silecircncio que
emerge no preciso momento no qual o pensamento eacute estarrecido e a liacutengua cala
A armadilha construiacuteda a partir das muacuteltiplas tentativas de elaboraccedilatildeo de conceitos afeta
natildeo somente a formataccedilatildeo silogiacutestica do intelecto humano comum mas ainda as
particularidades dos diversos modos de expressatildeo geograficamente distintos Correndo o risco
de se tornar antes uma antropologia filosoacutefica do que propriamente uma histoacuteria e criacutetica da
metafiacutesica o trabalhou refletiu uma anaacutelise agrave proacutepria concepccedilatildeo pela qual se distingue uma
filosofia da outra execrando qualquer nacionalismo filosoacutefico e investigando as questotildees que
envolvem a existecircncia humana dentro de seu modo relacional com o ser e com o ambiente que
a cerca O resultado foi a apresentaccedilatildeo de uma filosofia comparada intercultural que aparece
natildeo simplesmente como um campo disciplina ou subaacuterea da filosofia mas antes como uma
maneira pela qual eacute possiacutevel pensar filosoficamente para aleacutem das fronteiras de uma mera
linguagem de primeira ordem Dentro deste contexto nasce a hipoacutetese do tema o conflito das
fronteiras a partir do pressuposto de uma abordagem aos temas centrais do pensamento
contemporacircneo sustentando a interculturalidade filosoacutefica como aporte central
A proposiccedilatildeo fundamental desta tese adveacutem de alguns questionamentos particulares e
pontuais em um fluxo semelhante ao da dissertaccedilatildeo de 2010 Em abril de 2009 enquanto ainda
trabalhava no texto do mestrado teve lugar no campus da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte o III Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica comissionado pelos professores Oscar
Federico Bauchwitz Jaimir Conte Maria da Paz Nunes de Medeiros e Markus Figueira da Silva
O evento marcava a consolidaccedilatildeo da linha de pesquisa em Metafiacutesica do Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Filosofia da universidade trazendo em sua terceira ediccedilatildeo o tema O que eacute
metafiacutesica Em homenagem aos oitenta anos da preleccedilatildeo homocircnima de Martin Heidegger
13
A conferecircncia pronunciada por Heidegger aos 24 de julho de 1929 foi preparada como
aula inaugural para a assunccedilatildeo da caacutetedra de filosofia que antes pertencera a Edmund Husserl
na Albert-Luumldwigs Universitaumlt Freiburg im Breisgau O escrito se tornou um dos mais
emblemaacuteticos conhecidos e discutidos textos de Heidegger Talvez o fator mais impactante da
preleccedilatildeo seja antes mesmo da abordagem temaacutetica o meacutetodo pouco usual conforme o qual o
questionamento eacute elaborado Heidegger inicia a aula dizendo que embora a questatildeo suscite a
expectativa de que se falaraacute sobre a metafiacutesica ele iraacute na verdade discutir uma questatildeo
metafiacutesica particular proporcionando uma movimentaccedilatildeo em seu interior e habilitando a
oportunidade para que a ela apareccedila por si soacute a partir do problema levantado (cf HEIDEGGER
1976 103) Deixar a metafiacutesica se apresentar por si soacute antes do que sobre ela discorrer
evidencia uma feiccedilatildeo um tanto distinta da abordagem de Heidegger ao problema uma de suas
marcas registradas todavia
Raras vezes a tradiccedilatildeo ocidental se deparou com tal niacutevel de heterodoxia no que tange
agrave instruccedilatildeo filosoacutefica (talvez apenas Platatildeo tenha cunhado semelhante meacutetodo ao perseguir o
pescador com o anzol antes de se aproximar da figura do sofista por exemplo ndash natildeo consigo
pensar em outras ilustraccedilotildees agora mesmo embora certamente elas existam) Uma linha de
raciociacutenio como esta aproxima-se muito mais de uma postura oriental
Durante o Coloacutequio aleacutem de retomar pela eneacutesima vez a leitura da preleccedilatildeo de
Heidegger lembro-me de me dedicar agrave leitura da claacutessica obra propedecircutica de Kaiten Nukariya
The Religion of Samurai (1913) a primeira obra sobre zen budismo publicada no Ocidente (em
liacutengua ocidental) Apoacutes uma breve introduccedilatildeo sobre a origem do budismo na Iacutendia e o percurso
de Śākyamuni Siddhārta Gautama (o Buddha Śākyamuni शाकयमनि) Nukariya relata a maneira
pela qual o monge Bodhidharma introduz o budismo na China destacando que seu meacutetodo era
inteiramente diferente dos outros instrutores de ensino ordinaacuterios
14
Sobre Bodhidharma Nukariya relata ldquoEle natildeo explicaria nenhum problema ao
estudante mas simplesmente ajudaacute-lo-ia a ser iluminado colocando-o um abrupto poreacutem eficaz
questionamentordquo (NUKARIYA 2006 10) Com esta metodologia tem iniacutecio a tradiccedilatildeo de
budismo chinecircs nomeada chrsquoan (dʑjen 禪) uma traduccedilatildeo do termo sacircnscrito dhyāna (धयाि) cujo
significado mais geral seria ldquomeditaccedilatildeordquo ou ldquopensamentordquo que futuramente seria lido na
pronuacutencia japonesa (くんよみ kun-yomi) do ideograma como zen (禅 ) Apoacutes expor esta
caracteriacutestica iacutempar do ensino de Bodhidharma Nukariya ainda relata uma breve histoacuteria na
qual um tal Shang Kwang havia requisitado ao mestre que ldquolhe pacificasse a menterdquo
Prontamente Bodhidharma teria respondido ldquoTraga-me aqui sua mente ante mim para que eu
a pacifiquerdquo e Shang Kwang teria replicado ldquomas isto eacute impossiacutevelrdquo recebendo em seguida
a resposta ldquoentatildeo jaacute pacifiquei sua menterdquo Shang Kwang foi instantaneamente iluminado
Certamente Martin Heidegger natildeo exige de seus ouvintes leitores e interlocutores uma
iluminaccedilatildeo tatildeo abrupta e desprovida de raciociacutenio loacutegico mas nem por isto suas reivindicaccedilotildees
satildeo menos ousadas e intensas ou sua meditaccedilatildeo menos profunda Heidegger propocircs diversas
reflexotildees que extraiacutedas de seu contexto especiacutefico configuram-se tatildeo inusitadas quanto as
passagens da tradiccedilatildeo chrsquoan ou zen sendo por vezes consideradas mesmo impertinentes Eacute o
caso de uma de suas mais arrojadas e emblemaacuteticas afirmaccedilotildees ldquoO mais grave eacute que natildeo
pensamosrdquo (HEIDEGGER 2002 6) Desconsiderando o sentido ao qual a sentenccedila pertence
certamente as palavras de Heidegger parecem uma afronta Todavia o leitor atento sabe que
Heidegger se refere agrave distinccedilatildeo entre um pensamento calculador (rechnende Denken) e um
pensamento meditativo (Besinnung) reportando-se ao velamento deste uacuteltimo e da supremacia
exclusiva do primeiro por meio do qual se faz ciecircncia e se daacute o desenvolvimento estrutural da
condiccedilatildeo tecnoloacutegica imperiosa Eacute justamente dentro deste fluxo que Heidegger afirma a
predominacircncia do pensamento cientiacutefico tambeacutem em Was ist Metaphysik
15
Para ingressar no interior da metafiacutesica Heidegger chama atenccedilatildeo ao fato de que a
existecircncia humana eacute hoje sobremaneira norteada pela ciecircncia Embora alguns opositores ainda
resistam agrave tal afirmaccedilatildeo natildeo eacute todavia difiacutecil convencecirc-los do contraacuterio argumentando em
favor da tese de Heidegger Natildeo se trata apenas de afirmar que o ser humano se apoia e confia
uacutenica e exclusivamente (quiccedilaacute mesmo cegamente) na ciecircncia como modo de desenvolvimento
e sustentaccedilatildeo da vida humana na Terra Antes disto e mais grave ainda trata-se de constatar
que a maneira pela qual o ser humano hoje pensa eacute tatildeo somente cientiacutefica mesmo em casos nos
quais o discurso supostamente se volta para um tema espiritual ou de feacute (ou qualquer outro
assunto) ndash a despeito de qualquer pretensa e torta teosofia eacute ainda a teologia a ciecircncia reinante
dos seminaacuterios sem embargo Independente do tema ou assunto da circunstacircncia ou
necessidade a maneira de proceder eacute jaacute sempre cientiacutefica sustentada por uma loacutegica inflexiacutevel
que imputa sua norma de que ldquosendo algo aquilo mesmo isto ou bem eacute ou bem natildeo eacute natildeo
havendo uma terceira opccedilatildeordquo
Em outras palavras parece ter se ocultado na mente humana qualquer outro modo de
pensar que natildeo seja o propriamente cientiacutefico Este modo cientiacutefico de pensar possui algumas
caracteriacutestica pelas quais se pode evidenciaacute-lo estritamente desde um triacuteplice entendimento que
compreende ldquoreferecircncia ao mundordquo ldquoposturardquo e ldquoirrupccedilatildeordquo Heidegger explica estes pontos
ldquoAquilo que na referecircncia ao mundo permanece eacute o ente em si mesmo ndash e mais nada Aquilo
que lidera toda postura eacute o ente em si mesmo ndash e nada mais Aquilo que faz acontecer a
discussatildeo investigativa da irrupccedilatildeo eacute o ente em si mesmo ndash e aleacutem disto nadardquo (IDEM OP CIT
105) A cientificidade da existecircncia humana se expressa mediante uma projeccedilatildeo ao ente e nada
mais Ao afirmar a determinaccedilatildeo da ciecircncia na vida e conduta humanas Heidegger quer deixar
ver sobretudo isto o fato de que hoje soacute eacute validado o discurso de um sujeito cujo objeto
cognosciacutevel eacute um ente este mesmo que subjacente obsta-lhe Dentro da relaccedilatildeo entre sujeito
e objeto toda uma tradiccedilatildeo se fundamenta e doravante prossegue da mesma maneira
16
Fazendo uma revisatildeo dos passos da histoacuteria do pensamento humano seria mais ou menos
faacutecil portanto imaginar como a partir da metafiacutesica claacutessica se desdobra o cientificismo
sobretudo tendo em vista a doutrina das Categorias de Aristoacuteteles aleacutem da tatildeo aclamada
ldquociecircncia do ente enquanto enterdquo Contudo natildeo eacute este o alvo de Heidegger Deixar a metafiacutesica
aparecer por si soacute deve contemplar a totalidade do questionamento proposto e natildeo um
historicismo vulgar Que todo raciociacutenio eacute regulado e direcionado pelo ente facilmente
constata-se Agora bem o que se passa com a outra parte da inquiriccedilatildeo qual seja o ldquonada
maisrdquo Heidegger formula a questatildeo ldquoA ciecircncia natildeo quer saber do nada Mas certamente em
sua permanecircncia ao manifestar sua proacutepria natureza chama o nada para ajudar O que ela
rejeita eacute necessaacuterio para classificaacute-la Que ambiacutegua essecircncia se revela aiacuterdquo (ID IBIDEM 106) Ao
perquirir o ente e aleacutem disto nada o elemento que confere a exatidatildeo de sua pesquisa eacute
auxiliado pelo ldquonadardquo ou seja trata-se disto e nada mais (por mais redundante e ambivalente
que soe ateacute mesmo um pouco non sense) Heidegger pergunta ldquoO que acontece com o nadardquo
(ID IBID) ou ainda para onde vai esse nada em meio agrave existecircncia cientiacutefica
Eacute justamente a inusitada apariccedilatildeo deste nada que revela o incocircmodo de um elemento
impensaacutevel e inexprimiacutevel que natildeo se dobra ante agrave relaccedilatildeo sujeito-objeto Natildeo eacute preciso aqui
destrinchar todo o caminho percorrido por Heidegger em Was ist Metaphysik Trata-se de um
texto bastante lido e amplamente comentado Basta apenas pontuar a sentenccedila central da
conferecircncia (ou a pergunta-condutora a Leitfrage) por meio da qual emerge a resposta agrave
questatildeo ldquoo que eacute metafiacutesicardquo ldquoPor que haacute absolutamente o ente e natildeo antes nadardquo (ID IBID
122) O extraordinaacuterio da questatildeo eacute justamente a capacidade do ser humano em por ela
perguntar A capacidade de questionar ldquopor que natildeo nadardquo define uma disposiccedilatildeo fundamental
da existecircncia quiccedilaacute mesmo aquela ocultada pelo modo cientiacutefico de existir (ou seja
paradoxalmente este mesmo modo eacute responsaacutevel por evidenciar o que nele se perde)
17
A disposiccedilatildeo que regula a eleiccedilatildeo do modo cientiacutefico de pensar tem em vista
salvaguardar o humano do abismo (da falta de fundamento) que se abre quando o nada emerge
silencia o discurso e joga o ser humano em uma situaccedilatildeo incocircmoda uma anguacutestia profunda
Quase como um mestre zen Heidegger deixa a metafiacutesica se abrir natildeo pela pergunta nem
sequer pela acircnsia de prover ao interlocutor (ou a si mesmo) uma resposta mas pela simples
possibilidade e capacidade de perguntar A metafiacutesica neste sentido perdura antes como uma
decisatildeo Ao que parece por este motivo Heidegger cita um trecho de Eacutedipo em Colonos de
Soacutefocles no posfaacutecio agrave preleccedilatildeo (em 1943) destacando os versos (em sua traduccedilatildeo particular
por mim aqui pobremente e quiccedilaacute mesmo irresponsavelmente adaptada) que dizem
ἀλλ᾽ ἀποπαύετε μηδ᾽ ἐπὶ πλείω
θρῆνον ἐγείρετε˙
πάντως γὰρ ἔχει τάδε κῡρος
Mas paremos e nunca mais a partir de agora
despertaremos o lamento
Em todos os lugares se deteacutem o evento
assegurando-lhe uma decisatildeo pela conclusatildeo (ID IBID 312)
A ldquodecisatildeo pela conclusatildeordquo coloniza todos os lugares e se deteacutem a partir de agora em uma
posiccedilatildeo da qual natildeo mais se sairaacute A anguacutestia revelada a partir do pensamento em torno ao
nada manifesta os limites da linguagem e vislumbra o destino do ente no ser em sua plenitude
e predominacircncia Mas para aleacutem da constataccedilatildeo da indigecircncia da linguagem haacute todavia uma
possibilidade de abordar efetivamente esse nada Como eacute possiacutevel pensar para aleacutem da
delimitaccedilatildeo entificante da referecircncia ao mundo da postura e da irrupccedilatildeo Haacute um caminho de
ultrapassagem e superaccedilatildeo possiacutevel ainda nos dias de hoje
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Ao passo em que avanccedilava nas leituras e Heidegger e em algumas outras esta se tornou
a pergunta-chave pela qual imaginava atingir certo direcionamento temaacutetico A despeito da
disposiccedilatildeo de humor apresentada na conferecircncia bem como das consideraccedilotildees do posfaacutecio de
1943 os trabalhos de Heidegger dos anos de 1930 em diante datildeo a entender um claro
direcionamento pelo qual os elementos abandonados pela entificaccedilatildeo do pensamento podem ser
evidenciados qual seja a partir da poesia Os versos de Soacutefocles segundo o proacuteprio Heidegger
ldquoa uacuteltima poesia do uacuteltimo poeta gregordquo natildeo estatildeo ali dispostos sem motivo Tambeacutem natildeo eacute
sem razatildeo que a partir de aiacute haacute uma incansaacutevel busca pela poesia de Friedrich Houmllderlin (aleacutem
de Georg Trakl Stephan George Rainer Maria Rilke e de outros poetas escolhidos por
Heidegger) Ateacute certo ponto eacute possiacutevel afirmar que Heidegger encontra na poesia a
possibilidade de superar a linguagem por meio da proacutepria linguagem Em alguns outros
momentos uma meditaccedilatildeo de teor semelhante aparece como no encontro entre Heidegger e os
japoneses (como apresentei na dissertaccedilatildeo de 2010) Contudo restava ainda buscar os modos
de reflexatildeo que natildeo simplesmente podiam ir aleacutem da expressatildeo da ciecircncia do ente enquanto
ente mas ainda colocaacute-la em questionamento mediante outros meacutetodos
Foi na abertura do III Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica que minhas inquietaccedilotildees
comeccedilaram a se asseverar e ganhar corpo para o que viria a ser esta tese A conferecircncia
inaugural do evento foi sobremaneira marcante neste processo O professor Gilvan Fogel da
Universidade Federal do Rio Janeiro havia sido convidado para encerrar o primeiro dia de
evento Ele apresentou naquela noite a conferecircncia O que eacute metafiacutesica Como ele mesmo frisou
ldquonatildeo a pergunta mas a respostardquo Havia sem embargo a intenccedilatildeo de responder a pergunta
em um certo direcionamento eacute claro O texto vinha ainda acompanhado de um subtiacutetulo (com
o qual foi publicado como tiacutetulo oficial alguns anos depois diga-se de passagem) Sobre a
metafiacutesica ou a respeito do jejum O mote para o subtiacutetulo o proacuteprio professor o explica na
passagem inicial do texto que gostaria de citar por completo agora mesmo
19
O subtiacutetulo pode soar estranho insoacutelito e natildeo muito seacuterio Mas pelo que ele insinua
pretende anunciar algo seacuterio mesmo muito seacuterio a saber a metafiacutesica E a inspiraccedilatildeo
ou a motivaccedilatildeo que propicia o encaminhamento para a questatildeo anunciada a
metafiacutesica vem de uma obra igualmente seacuteria muito seacuteria ainda que se possa melhor
que se deva dela se ocupar tambeacutem com grandes e gostosas gargalhadas ndash aquelas que
no destampar do riso sacudindo a barriga bem solta e largada deixam escorrer
viacutesceras pela boca afora Estou me referindo ao Dom Quixote o Engenhoso Fidalgo
Dom Quixote lsquode la Mancharsquo ndash o ldquoda Triste Figurardquo
Entre as poesias que preludiam a primeira parte e que homenageiam seus personagens
maiores temos o uacuteltimo que eacute um diaacutelogo em forma de soneto entre Babieca o
cavalo de El Cid e Rocinante o grande rocim o pangareacute erado de Dom Quixote A
certa altura do diaacutelogo-soneto Babieca pergunta ldquoSeraacute tolice amarrdquo e Rocinante
responde ldquoNatildeo eacute muito prudenterdquo Babieca retruca ldquoEstaacutes metafiacutesicordquo E Rocinante
contesta enfaacutetico ldquoEacute que natildeo comordquo (FOGEL 2011 101)
A passagem sugere que a metafiacutesica eacute antes de tudo coisa de fome Por isto ldquoa respeito do jejumrdquo
denuncia a indisposiccedilatildeo que envolve a metafiacutesica A metafiacutesica eacute portanto certo incocircmodo que
eacute tambeacutem necessidade premente decorrente de certa privaccedilatildeo A partir disto Fogel delineia o
tipo de jejum ao qual se refere natildeo se trata de um jejum nutricional alimentiacutecio mas jejum de
vida conforme ele mesmo diz ldquo() natildeo vida no sentido bioloacutegico mas no sentido banal e
corriqueiro como falamos da vida de ldquonossa vidardquo ndash que ela eacute boa ou ruim ou um buracordquo
(IDEM IBIDEM 102) Esta vida a vida imanente a vida do cotidiano do dia-a-dia esta mesma
que ocupa o tempo e o espaccedilo sofre priva-se absteacutem-se Esta abstenccedilatildeo e privaccedilatildeo satildeo a
condiccedilatildeo pela qual reverbera sua constituiccedilatildeo enquanto sujeito ndash e nasce aiacute uma interpretaccedilatildeo
do que eacute enfim metafiacutesica A partir da conferecircncia de Fogel aleacutem de algumas outras
consideraccedilotildees comecei a ponderar a maneira pela qual abordaria o problema
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Natildeo por meio de uma definiccedilatildeo conceitual acontecimento histoacuterico ou muacutetuo
consentimento temaacutetico mas por meio de uma experiecircncia de pensamento que sem deixar de
lado nenhum dos elementos supracitados configura-se antes como algo intriacutenseco agrave proacutepria
natureza do pensar Ponderando as consideraccedilotildees da conferecircncia de Heidegger a metafiacutesica se
deixa mostrar como uma decisatildeo pela conclusatildeo Um iacutempeto maior do ser humano em
resguardar sua condiccedilatildeo de pacificidade A humanidade teme o caos teme o desalinho receia
o incoacutegnito e inexprimiacutevel Elege por isto seu caminho de seguranccedila com aquilo que lhe eacute
papaacutevel o ente enquanto ente e nada mais Nada quer saber do nada que nada lhe oferece aleacutem
de um indisposto silecircncio um insoacutelito vazio Mediante esta postura embora sob o risco de
ocultar algo em si mesmo que talvez lhe sirva para alcanccedilar siacutetios recocircnditos do misteacuterio de
sua proacutepria existecircncia constitui-se o ser humano um metafiacutesico Sem embargo eacute preciso abster-
se de algo em prol disto ou daquilo que se lhe afigura mais propiacutecio ao momento Fogel enxerga
isto como privaccedilatildeo como jejum como fome Fica muito claro em sua interpretaccedilatildeo o caraacuteter
inflexiacutevel da decisatildeo pela conclusatildeo sobretudo quando traz agrave luz o curioso caso de Vicent van
Gogh
Fogel cita uma carta que van Gogh teria enviado em maio de 1888 a seu irmatildeo Theacuteo
onde descreve sua nova moradia e ao mesmo tempo atelier afirmando que o local eacute pouco
atraente para desenvolver qualquer tipo de flerte ou paquera acrescentando que dificilmente
enxerga como compatiacuteveis o trabalhar e o farrear (faire la noce) A verdade eacute que van Gogh
natildeo possui outra opccedilatildeo senatildeo se privar da diversatildeo do faire la noce natildeo porque eacute asceta ou
abstecircmio nem porque precisa dedicar mais tempo ao seu trabalho ou pagar suas contas (todos
sabem da condiccedilatildeo por vezes paupeacuterrima na qual ele se encontrou ao longo de seu percurso)
mas por ser artista por ser pintor por pintar Urge no artista uma realidade que parece muito
mais real que a vida comum na qual o farrear remete ao contentamento agrave felicidade Natildeo viver
a vida para van Gogh seria natildeo pintar
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Se viver a vida eacute buscar este contentamento esta felicidade entatildeo van Gogh vive para
natildeo-viver Natildeo-viver se torna paradoxalmente a expressatildeo maacutexima da vida metafisicamente
entendida Fogel completa ldquoE por que natildeo viver este natildeo-viver seria ingratidatildeo Seria isso a
saber a distacircncia o agrave parte um dom um presente uma graccedilardquo (IDEM IBIDEM 105)
acrescentando ainda ldquoA metafiacutesica desde que jejum abstinecircncia de vida de viver seria
igualmente muita vida e natildeo cumpri-la natildeo realizaacute-la isto eacute natildeo pensar uma grande
ingratidatildeordquo (ID IBID) e por fim sugerindo ldquoAqui precisa-se confessar viver natildeo eacute preciso
Pintar pensar fazer quadros fazer metafiacutesica ndash isso eacute precisordquo (ID IBID) Ressalte-se o tom das
inquiriccedilotildees da interrogaccedilatildeo acompanhada pela exclamaccedilatildeo A precisatildeo da qual fala fazendo
menccedilatildeo a Fernando Pessoa eacute a necessidade de justeza de ser preciso e acurado destro
rigorosamente alinhado ao fazer metafiacutesica Assim se configura algo muito iacutentimo e sem
embargo inevitaacutevel na natureza humana
Fogel prossegue sua exposiccedilatildeo chamando ao diaacutelogo o Zaratustra de Friedrich
Nietzsche especificamente a seccedilatildeo intitulada Da Visatildeo e do Enigma na qual reincide o anuacutencio
da famosa doutrina do Eterno Retorno citando o trecho que diz
O homem eacute todavia o mais corajoso animal assim ele supera todo e cada animal Com
o jogo sonoro supera ele tambeacutem a dor Mas a dor humana eacute a dor mais profunda A
coragem tambeacutem indica a tontura morte em abismos e onde estaria o homem senatildeo
em abismos Ele natildeo vecirc a si mesmo ndash vecirc abismos (NIETZSCHE 2005 119)
Para Fogel o ldquoverrdquo natildeo denuncia uma observaccedilatildeo circunvisatildeo ou vislumbre mas antes um
acontecimento uma iluminaccedilatildeo um tornar visiacutevel Torna-se visiacutevel o abismo o sem fundo
sem fundamento Ao que parece quanto mais o ser humano contempla sua proacutepria existecircncia
mais sem chatildeo fica maior eacute a falta de fundamento e com maior radicalidade se abre um abismo
frente aos seus peacutes
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Eacute possiacutevel todavia prosseguir caminhando ao lado de Nietzsche e Heidegger bem como
por meio das reflexotildees e interpretaccedilotildees oferecidas por Fogel buscando alcanccedilar uma feiccedilatildeo da
vida humana que permita descortinar a proveniecircncia metafiacutesica de seu percurso e ateacute mesmo
suscitando uma ultrapassagem deste fenocircmeno Contudo eacute necessaacuterio ainda precisar com maior
cuidado os termos contidos na questatildeo Faz parte do labor filosoacutefico se afundar mais e mais em
algo que por si soacute jaacute eacute bastante fundo
Natildeo apenas os pensamentos de Nietzsche e Heidegger oferecem uma especulaccedilatildeo de
formidaacutevel profundidade difiacutecil de ser absorvida em primeira matildeo como tambeacutem por vezes
pode se mostrar demasiado complexo empreender um rastreamento do sentido originaacuterio das
palavras e sentenccedilas salvo mediante uma anaacutelise completa (empresa complicadiacutessima
provavelmente impossiacutevel) de suas obras Mesmo assim talvez ainda natildeo se mostre com
suficiente nitidez se natildeo houver de antematildeo uma explanaccedilatildeo das fontes e referecircncias cruzadas
Com estas ideias em mente buscando avanccedilar cada vez mais no tema e sobre ele meditar
com cada vez mais dedicada atenccedilatildeo e profundidade tentando ampliar com ferocidade o
vocabulaacuterio (para fazer minhas as palavras de Marco Lucchesi) outro escrito me sobreveio
durante o processo de composiccedilatildeo das hipoacuteteses contidas neste trabalho Em Nihilismo e
Neoplatonismo (2003) Oscar Federico Bauchwitz traccedila algumas linhas que especificam a
condiccedilatildeo por meio da qual o problema efetivamente se apresenta
Haacute no texto de Bauchwitz tambeacutem um necessaacuterio retorno a Nietzsche e Heidegger Natildeo
apenas dentro do contexto de um estudo da metafiacutesica enquanto histoacuteria intelectual mas ainda
constatando os tempos onde ela se apresenta como formataccedilatildeo do modo de ldquoagir-pensarrdquo torna-
se imprescindiacutevel resgatar a lembranccedila de que ldquo() com Nietzsche se estabelece uma criacutetica da
metafiacutesica que acaba por homologar o seu oacutebitordquo (BAUCHWTIZ 2003b 169) Como explica
Bauchwitz a declaraccedilatildeo da morte da metafiacutesica eacute aquela mesma da morte do platonismo
cristianismo niilismo e outros sinocircnimos para o mesmo fenocircmeno
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Esta morte natildeo eacute todavia apenas uma declaraccedilatildeo da inexistecircncia corrente do pensamento
metafiacutesico senatildeo sua consumaccedilatildeo total e absoluta A ldquociecircncia do ente enquanto enterdquo entifica
tudo aquilo que outrora foi nomeado vida (φύσις) pelos gregos dos periacuteodos arcaico e claacutessico
ndash das coisas ao redor aos pensamentos e aos deuses A entificaccedilatildeo do mundo em torno eacute sem
sombra de duacutevidas a maneira pela qual a ciecircncia vigente concebe o mundo configurando o que
Heidegger havia chamado de ldquoreferecircncia ao mundordquo A entificaccedilatildeo do pensamento por sua vez
denota a ldquoposturardquo tambeacutem mencionada por Heidegger aquela mesma segundo a qual haacute uma
maneira ldquocorretardquo de pensar Ao passo que a entificaccedilatildeo dos deuses um pouco mais complicada
apresenta-se como ldquoirrupccedilatildeordquo na qual a circunvisatildeo resultante dos dois elementos acima
mencionados denuncia a morte de deus a fuga dos deuses o viver sem o divino sem o
iluminado sem o deslumbre Desatados os laccedilos entre ser humano e divindade Bauchwitz
questiona ldquoO que natildeo pode o homem modernordquo (IDEM IBIDEM 170) questionamento que
poderia ainda ser vertido nos termos (mais ou menos) de Dostoievsky ldquose deus morreu entatildeo
tudo eacute permitidordquo ou ainda nos (mais ou menos novamente) de Heidegger ldquose apagou da
histoacuteria universal o esplendor da divindade Essa eacute a eacutepoca da noite do mundordquo Contudo para
Bauchwitz perdura algo no labor filosoacutefico que torna liacutecito novamente regressar agrave questatildeo Ele
explica que ldquoResgatar a forccedila mais originaacuteria das palavras eacute o ofiacutecio do filoacutesofo Por isso
dizemos que a miacutestica se mostra no fechar de olhos no fechar da bocardquo (ID IBID 173) Recordo-
me acompanhando os seminaacuterios matinais do professor Bauchwitz de ouvir certa vez a
sentenccedila ldquoo miacutestico estaacute sempre em conflito com a linguagemrdquo Conflito ou confronto natildeo me
lembro muito bem Havia de fato escrito a frase literalmente ao peacute da paacutegina de algum livro
(ou alguma fotocoacutepia) que agora mesmo esqueccedilo qual era e natildeo consigo encontrar
Independente das palavras exatas o que se apresenta no texto de Bauchwitz eacute a sugestatildeo de um
caminho para este resgate por meio de um conflito o confronto suscitado pela miacutestica
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Bauchwitz escreve ldquoO miacutestico eacute em primeiro lugar aquele que acolhe o misteacuterio dentro
de si recolhendo em silecircncio o sentido oculto da realidade soacute depois eacute que o silecircncio rompe a
barreira dos dentes para mostrar-se linguagemrdquo (ID IBID) E ainda prossegue especificando que
ldquoPor isso a miacutestica eacute uma experiecircncia radical da liberdade proacutepria Abrindo matildeo de um mundo
que clama sua atenccedilatildeo o miacutestico encontra-se com o que nele eacute totalmente incoacutegnito e
incognosciacutevel um eu que se mostra como puro nadardquo (ID IBID) A maneira pela qual Bauchwitz
iraacute desdobrar a explicaccedilatildeo destas sentenccedilas sobremaneira enigmaacuteticas percorreraacute trecircs
pensadores que marcam a tradiccedilatildeo do neoplatonismo e da chamada miacutestica medieval quais
sejam Pseudo-Dioniacutesio Areopagita Joatildeo Escoto Eriuacutegena e Mestre Eckhart Contudo o que
havia me saltado aos olhos antes da eleiccedilatildeo temaacutetica autoral ou metodoloacutegica havia sido a
sentenccedila ldquoum eu que se mostra como puro nadardquo Jaacute havia encontrado semelhante formulaccedilatildeo
todavia nunca em autores ocidentais Remeti diretamente a maneira pela qual a tradiccedilatildeo
mahāyāna do budismo do leste asiaacutetico havia compreendido a noccedilatildeo do natildeo-si-mesmo ou natildeo-
ego (anātman अितमि) como dissoluccedilatildeo do eu por meio da tensatildeo entre forma (ou fenocircmeno ou
ainda aparecircncia rūpa रप) e nada (ou vacuidade śūnyatā शनयता) Estas ideias derivam
diretamente do chamado Cacircnone Pāḷi tendo sido transmitidas em sacircnscrito pelo Sūtra do
Coraccedilatildeo (Prajntildeāpāramitā Hṛdaya परझञापारनमताहरदय) ateacute alcanccedilarem formas mais refinadas no
budismo chrsquoan e no zen budismo japonecircs assumindo as configuraccedilotildees de ldquoformardquo ou
ldquoaparecircnciardquo enquanto shiki (色) e ldquonadardquo ou ldquovacuidaderdquo enquanto kū (空) elementos centrais
do pensamento da filosofia japonesa contemporacircnea da Escola de Kyōto (e que tambeacutem havia
abordado brevemente em minha dissertaccedilatildeo de mestrado) Tornou-se imperioso investigar ateacute
que ponto tais ideias se aproximam ou comungam de princiacutepios convergentes aleacutem da maneira
como elas repercutem em suas tradiccedilotildees e particularidades Mais uma vez encontrava-me frente
ao sem-fim nuacutemero de possibilidades comparativas e complementares
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Contudo temia o risco de cair no engodo certa vez denunciado por Immanuel Kant
quando afirmou em seus Prolegomena zu einer jeden kuumlnftigen Metaphyysik (1783) que ldquo()
dificilmente se espera que natildeo seja possiacutevel descobrir analogias para cada nova ideia entre ditos
de eras passadasrdquo (KANT 1911 7) natildeo havendo grande meacuterito nisto e sendo necessaacuterio admitir
que estes historiadores da filosofia ocupados com tal empreendimento devam antes aguardar
que os ldquoverdadeiros filoacutesofosrdquo esgotem as fontes da razatildeo Sob pena de realizar uma mera
comparaccedilatildeo friacutevola (embora com a consciecircncia de que passo longe de ser um ldquoverdadeiro
filoacutesofordquo ao menos no sentido Kantiano ndash talvez o seja em outro digamos mais Ginsbergiano
de pura pretensatildeo mas certamente natildeo muito talento) ocupei-me em corretamente designar o
problema que me afligia de modo que fosse possiacutevel corretamente endireitar o roteiro da tese
Era preciso encontrar um mote mesmo que ele natildeo deixasse ver claramente os passos a serem
percorridos mas que provessem alguma direccedilatildeo
Tendo isto em vista natildeo podia negar que o interesse pelo que ousei chamar de ldquoconflito
das fronteirasrdquo crescia a partir de um ldquopar de viacutergulasrdquo que aparentemente haviam escapado agrave
anaacutelise da histoacuteria do pensamento Em outras palavras um determinado momento no qual o
transcurso metafiacutesico foi levemente desviado em uma guinada espontacircnea e natural como um
marinheiro que sutilmente move o leme para a esquerda ou para direita ao perceber o advento
de uma portentosa onda logo atraacutes de si soltando o motor e deixando o barco ser levado pelo
mar ndash saacutebia decisatildeo em momentos de tormenta (passei por esta situaccedilatildeo certa vez em mar
aberto transitando entre Paraty e uma praia recocircndita Pouso do Cajaiacuteba se natildeo me falha a
memoacuteria gostaria de poder descrever em pormenores a experiecircncia que seria proveitosa ao
leitor em termos ilustrativos mas estava muito enjoado no barco para congregar detalhes
miacutesticos em minha massa cinzenta) E eram momentos de tormenta Como poderiam natildeo ser
Sendo assim estabeleci um conveniente itineraacuterio (ao menos sob meu ponto de vista) que
compartilho antes de iniciar o trabalho
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O primeiro passo importante eacute estabelecer dentro de quais termos se apresenta a
metafiacutesica pela qual se nomeia a histoacuteria do pensamento ocidental O primeiro capiacutetulo da tese
intitulado Ontologia a substantivaccedilatildeo do Ocidente e a delimitaccedilatildeo das fronteiras do
pensamento ocupa-se de tal apresentaccedilatildeo e eacute na verdade bastante simples apesar do tiacutetulo
pomposo A despeito da abordagem histoacuterico-conceitual desdobrada em um primeiro momento
o capiacutetulo segue em consonacircncia com a avaliaccedilatildeo de Martin Heidegger assumindo-o como
interlocutor e inteacuterprete da histoacuteria e criacutetica da metafiacutesic Haacute aqui uma ecircnfase nas leituras por
meio das quais Heidegger caracterizou de maneira direta a passagem de uma fisiologia grega
claacutessica (por ele nomeada ldquopensamento originaacuteriordquo) para o acircmbito da ontologia latina e o modo
conforme o qual a proacutepria ideia de ldquoserrdquo eacute compreendida de maneira tatildeo somente substantivada
a partir de seu particiacutepio presente ldquoenterdquo Um necessaacuterio retorno cronoloacutegico-regressivo eacute
estabelecido do fim ao iniacutecio da modernidade pontuando autores como Jacob Lorhard e
Francisco Suaacuterez Todavia o objetivo principal do capiacutetulo eacute compreender este modo de
substantivaccedilatildeo e quais as consequecircncias disto para o pensamento em um sentido geral (a
delimitaccedilatildeo de suas fronteiras no final das contas) sem nunca perder de vista o peso aristoteacutelico
da designaccedilatildeo e realizando algumas especificaccedilotildees sobre isto
O segundo capiacutetulo intitulado O caminho da negatividade henologia e meontologia e
a ultrapassagem dos limites da metafiacutesica pretende caracterizar efetivamente essa nomeada
ldquonegatividaderdquo Negatividade que natildeo eacute simplesmente predominacircncia de um ldquonatildeordquo ou partiacutecula
de privaccedilatildeo mas antes assunccedilatildeo de um oxiacutemoro o auscultar de um inaudito Desenvolve-se
como argumento central por meio do qual se evidencia as estruturas baacutesicas de um pensamento
radical a evidenciaccedilatildeo de uma meditaccedilatildeo que jaacute natildeo eacute mais norteada pelo ldquoenterdquo mas sim pelo
ldquounordquo (henologia) neoplatocircnico ou mesmo por uma profunda meditaccedilatildeo em torno ao ldquonadardquo
(meontologia) presentes no neoplatonismo e sobremaneira evidentes no pensamento miacutestico
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O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo nomeado O Extremo Oriente e o conflito das fronteiras a
filosofia comparada intercultural como chave de leitura para alguns problemas do pensamento
contemporacircneo pretende conectar os pontos e resgatar o sentido da tese O capiacutetulo traz uma
breve apresentaccedilatildeo da chamada Escola de Kyōto e a constituiccedilatildeo da filosofia japonesa
contemporacircnea Este eacute o momento no qual eacute possiacutevel observar a recepccedilatildeo contemporacircnea da
filosofia ocidental (tanto dentro da tradiccedilatildeo metafiacutesica quanto ldquoforardquo dela na dita negatividade)
e o diaacutelogo (e siacutentese) com o mundo do Extremo Oriente O objetivo eacute portanto pensar em
comunhatildeo com os pensadores da Escola de Kyōto com especial atenccedilatildeo para Keiji Nishitani
(西谷 啓治) observando suas propostas para anaacutelise e resoluccedilatildeo dos problemas de filosofia
contemporacircnea e buscando um esclarecimento a respeito dos termos indicados
Ao fim e ao cabo a intenccedilatildeo aqui eacute convidar os leitores ao diaacutelogo intercultural
apresentando em um diaacuterio de minhas leituras diferentes nuances e pontos de vista a respeito
de algumas questotildees especiacuteficas e ousando um diagnoacutestico da filosofia contemporacircnea bem
como uma vaacutelvula de escape para a atual condiccedilatildeo do pensamento filosoacutefico Caso a empreitada
logre ecircxito acredito que uma nova conversa se abra e novas ideias venham agrave mente Sem
embargo trata-se de uma composiccedilatildeo acerca de um conflito o conflito das fronteiras
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ONTOLOGIA A SUBSTANTIVACcedilAtildeO DO OCIDENTE E O PROBLEMA DA METAFIacuteSICA
ENQUANTO DELIMITACcedilAtildeO DAS FRONTEIRAS DO PENSAMENTO
Embora ontologia tenha um sentido bastante amplo (que seraacute melhor explorado ao longo do
capiacutetulo) aleacutem de uma sem-fim variedade de definiccedilotildees distintas de autor para autor (algumas
das quais seratildeo eleitas e apresentadas aqui) entende-se o conceito (de forma simplificada) como
um discurso capaz de reunir em uma unidade a polissemia do verbo ser O resultado eacute a
centralizaccedilatildeo conceitual de qualquer ulterior doutrina a partir da definiccedilatildeo desenrolada desde
sua compreensatildeo Por substantivaccedilatildeo do Ocidente refiro-me aqui agrave corrente historial
responsaacutevel por compreender o verbo ser de modo substantivado a partir de seu particiacutepio
presente ldquoenterdquo A intenccedilatildeo do capiacutetulo portanto concentra-se na investigaccedilatildeo do processo
decorrido dessa substantivaccedilatildeo e quais as consequecircncias disto para o pensamento ocidental e
contemporacircneo em uma concepccedilatildeo geral no que diz respeito agrave delimitaccedilatildeo das fronteiras do
pensamento
Em primeiro lugar gostaria de abrir uma interlocuccedilatildeo com o professor Charles H Kahn
da University of Pennsylvania dada a relevacircncia e pertinecircncia de sua obra The Verb lsquoBersquo in
Ancient Greek (1973) para o desenvolvimento do capiacutetulo Antes de desdobrar em pormenores
seu estudo bastante extenso e detalhado Kahn sustenta a tese de que haacute uma relatividade
linguiacutestica referente ao verbo ser (cf KAHN 2003 1-3) Em sua introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo de 2003 (cf
IDEM IBIDEM vii) Kahn se reposiciona em relaccedilatildeo ao argumento expresso em sua obra clamando
ser uma posiccedilatildeo bastante defensiva e ldquofora de modardquo para os tempos atuais Ainda assim trata-
se de uma hipoacutetese bastante interessante
29
A posiccedilatildeo de Kahn (cf IBID 1-3) se apoia na afirmaccedilatildeo de Angus C Graham1 acerca
do mesmo verbo dentro do chinecircs claacutessico onde o sinoacutelogo posiciona o ser relativamente agrave
regra gramatical inerente agrave formulaccedilatildeo de uma determinada sentenccedila significando portanto a
impossibilidade de uma doutrina universal acerca do ser compatiacutevel com liacutenguas distintas
(como o grego o aacuterabe ou o chinecircs) Isto concorda em absoluto com a ideia de que no proacuteprio
grego claacutessico e nas liacutenguas indo-europeias em geral conforme a menccedilatildeo feita por Kahn a
Eacutemile Benveniste2 natildeo haacute em hipoacutetese alguma a implementaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo universal ou
condiccedilatildeo necessaacuteria envolta na distribuiccedilatildeo dos significados do verbo ser Haacute sim e Benveniste
endossa a ideia uma predisposiccedilatildeo da linguiacutestica grega agrave ldquovocaccedilatildeo filosoacutefica da noccedilatildeo de serrdquo
Vocaccedilatildeo esta segundo Kahn muito geral e diversificada no desenvolvimento sistemaacutetico de
seu conceito desde Parmecircnides ateacute Aristoacuteteles e de uma maneira mais sistemaacutetica dos Estoicos
ateacute Plotino Em siacutentese Kahn sustenta que a tese de um determinismo linguiacutestico do ser eacute
claramente falsa ou seja mesmo em falantes de uma mesma liacutengua natildeo eacute possiacutevel encontrar
uma mesma doutrina em torno ao ser como eacute possiacutevel ver nos pensamentos distintos de Platatildeo
e Aristoacuteteles Epicuro e Plotino
Todavia natildeo haacute duacutevidas para Kahn a respeito das condiccedilotildees intriacutensecas da liacutengua de um
autor em sua atividade intelectual seus recursos e suas tendecircncias Ele afirma que natildeo haveria
possibilidade de especificar a determinaccedilatildeo ontoloacutegica se o verbo grego εἰμί natildeo fosse provido
do particiacutepio presente τὸ ὄν ou se natildeo houvesse a derivaccedilatildeo nominal ndashία da qual redunda a
noccedilatildeo de οὐσία Ou ainda a classe de morfemas que compreende ἐστί εἶναι e ἐών derivadas
do indo-europeu ndashes Satildeo as formas nominais do verbo que permitem segundo Kahn (cf IBID
451) natildeo soacute uma clara expressatildeo senatildeo tambeacutem a tematizaccedilatildeo do conceito como um toacutepico
distinto para a reflexatildeo filosoacutefica
1 Angus C Graham ldquoBeing in Classical Chineserdquo In The Verb lsquoBersquo and its Synonyms John W M Verhaar (ed)
Dordrecht Holland D Reidel 1967 1-39 2 Eacutemile Benveniste ldquoCateacutegories de penseacutee et cateacutegories de languerdquo Les Eacutetudes philosophiques n 4 (out-dez
1958) PUF Paris 419-429
30
Kahn fala dos primeiros usos do verbo εἰμί (em formas participiais) em sua
possibilidade de representar qualquer construccedilatildeo copulativa (natildeo muito diferente de qualquer
outro particiacutepio em grego) adaptando-se agraves construccedilotildees coordenadas ou subordinadas (em
nuacutemero gecircnero e causa) e expressando diferentes nuances (concessiva causal adversativa)
Contudo frisa haver ainda outras expressotildees para aleacutem do caso copulativo como nos casos
vital veriacutedico ou existencial Quando o verbo aparece dentro da expressatildeo existencial e emerge
a necessidade de indicar uma referecircncia ou seja um caso gramatical locativo surgem as formas
do uso filosoacutefico do ser como τὰ ὄντα o berccedilo para o desenvolvimento da ontologia O sentido
de τὰ ὄντα apareceria em Aristoacuteteles de acordo com Kahn (cf ID IBID 457) em primeira matildeo
como ldquoo que eacuterdquo (o caso os fatos ou eventos) e em segunda matildeo existencialmente como ldquocoisas
que existemrdquo ldquocoisas que estatildeo presentesrdquo ldquocoisas que podem ser encontradas em algum lugarrdquo
Em ambos os casos o verbo ser eacute entificado Como neste sentido haacute uma conotaccedilatildeo ldquodo que
eacuterdquo algo Aristoacuteteles considerou a referecircncia aos atributos de um determinado ente para expressar
a muacuteltipla significaccedilatildeo de τὸ ὄν partindo em seguida para a definiccedilatildeo do ser no sentido primaacuterio
e fazendo uso de seu derivado nominal οὐσία
A manifestaccedilatildeo de οὐσία surge como uma nominalizaccedilatildeo abstrata ou substantivo de
accedilatildeo Kahn enumera trecircs aspectos distintos do uso de οὐσία em uma concepccedilatildeo filosoacutefica o
primeiro uso refere-se agrave nominalizaccedilatildeo do verbo na qual οὐσία representaria ldquoo que algo eacuterdquo
dando abertura para as formas platocircnicas e essecircncias aristoteacutelicas (τὸ τί ἐστι τὸ τί ἦν εἶναι) o
segundo uso eacute todavia menos teacutecnico e predica οὐσία como ldquoserrdquo ldquoexistecircnciardquo ou ldquorealidade
verdadeirardquo o terceiro uso enuncia uma equivalecircncia entre οὐσία e τὸ ὄν referindo ldquoas coisas
que satildeo (neste mundo)rdquo τὰ ὄντα (cf ID IBID 461) Aristoacuteteles pontua precisamente a intenccedilatildeo
socraacutetica primaacuteria de buscar a essecircncia das coisas (τὸ τί ἐστι) por meio do procedimento
silogiacutestico cujo princiacutepio eacute justamente a quididade (ἀρχὴ δὲ τῶν συλλογισμῶν τὸ τί ἐστι)
(ARISTOacuteTELES 2002 604-605 Metafiacutesica 1078b 24-25)
31
O que em Soacutecrates apareceria de fato como τί ἐστι e em Platatildeo como (τὸ) ὅ ἐστι em
Aristoacuteteles seria simplificado como τὸ τί ἐστι e τὸ τί ἦν εἶναι em um uso que expressa a essecircncia
ou natureza das coisas pela definiccedilatildeo ao passo que a definiccedilatildeo propriamente existencial caberia
ao termo οὐσία 3 Kahn ilustra as distinccedilotildees dizendo que
Enquanto o substantivo no primeiro e no segundo usos serve como uma
nominalizaccedilatildeo ldquoabstratardquo para o verbo finito como predicado isto eacute para o ldquoser aquilo
que eacuterdquo (e eacute assim sintaticamente paralelo ao infinitivo articular τὸ εἶναι) οὐσία no
terceiro sentido eacute utilizado ndash como em muitos outros substantivos abstratos ndash para o
sujeito caracterizado (isto eacute o que eu chamo de concreto ou agente de nominalizaccedilatildeo
como tipicamente ilustrado pelo particiacutepio articular τὸ ὄν ou como por exemplo ὁ
τρέχων ldquoo corredorrdquo em contraste agrave accedilatildeo de nominalizaccedilatildeo abstrata τὸ τρέχειν
ldquocorrerrdquo Esta distinccedilatildeo sintaacutetica corresponde em parte ao contraste de Heidegger
entre das Seiende e das Sein der Seienden) (ID IBID)
Embora haja tal distinccedilatildeo Kahn prossegue afirmando que em seu uso tardio (poacutes-platocircnico)
οὐσία e τὸ ὄν satildeo claramente sinocircnimos sendo um utilizado para enfatizar o outro como na
doutrina das Categorias de Aristoacuteteles4 O resultado eacute a inexistecircncia de uma diferenccedila entre o
agente concreto e a accedilatildeo abstrata de nominalizaccedilatildeo do εἰμί onde natildeo haacute distinccedilatildeo conceitual
entre οὐσία e τὸ ὄν ou seja entre a entidade e o que ela eacute Em outras palavras ser e ente se
tornam o mesmo confundem-se em sua aplicaccedilatildeo a despeito das distinccedilotildees conceituais que
definem substacircncia (οὐσία) e essecircncia (τὸ τί ἦν εἶναι)
3 Um comentaacuterio mais preciso foi apresentado em Luiacutes Andreacutes Berdlow ldquoParmenides and the Grammar of Beingrdquo
Classical Philology v 106 (2011) 283-298 4 As Categorias de Aristoacuteteles apresentam a classificaccedilatildeo das coisas que satildeo (τὰ ὄντα) dentre as quais encontra-
se a substacircncia (οὐσία) (cf ARISTOTLE 1952 5-6 Categorias 1a-2b) Na Metafiacutesica Aristoacuteteles deixa isto mais
claro quando diz ldquoMas em primeiro lugar se o ldquoenterdquo (τὸ ὂν) se diz de muitas maneiras ndash dentre as quais algumas
vezes substacircncia (οὐσία) em outras qualidade ou mesmo quantidade aleacutem de todas as outras categorias ndash qual
deles portanto eacute aquele pelo qual as coisas satildeo ()rdquo (ARISTOacuteTELES 2002 669 Metafiacutesica 1089a 5-15) A diferenccedila
conceitual ou mesmo hieraacuterquica eacute paulatinamente abandonada pela necessidade de exprimir um niacutevel de
realidade no qual jaacute natildeo eacute mais possiacutevel discorrer acerca do ente se redundar a palavra definida na proacutepria definiccedilatildeo
32
Essa indistinccedilatildeo entre ser e ente eacute sabido foi o que chamou a atenccedilatildeo de Martin
Heidegger no processo ldquodestrutivordquo de histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica realizado em seu projeto
Sein und Zeit (1927) Conforme Heidegger haacute uma γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας de haacute muito
abandonada O motivo aparente se concentra nas caracteriacutesticas emergentes do proacuteprio ser
quais sejam sua maacutexima universalidade sua vacuidade sua obscuridade sua maacutexima
evidecircncia Neste sentido Heidegger diz
O conceito de ldquoserrdquo eacute indefiniacutevel Isto pode ser concluiacutedo desde sua maacutexima
universalidade E isto com razatildeo ndash se definitio fit per genus proximum et differentiam
specificam De fato ldquoserrdquo natildeo pode ser entendido conceitualmente como ente enti
non additur aliqua natura ldquoserrdquo natildeo pode estar em uma determinaccedilatildeo concebendo
dele um ente O ser por definiccedilatildeo natildeo pode ser derivado de conceitos superiores e
nem dado por nenhuma ilustraccedilatildeo Contudo disto se segue que do ser natildeo se pode
derivar nenhum problema Pode-se concluir em absoluto apenas que o ldquoserrdquo natildeo eacute
algo como um ente Portanto o legiacutetimo dentro de certos limites de determinaccedilatildeo dos
entes ndash a ldquodefiniccedilatildeordquo da loacutegica tradicional que em si tem suas bases na antiga
ontologia ndash natildeo eacute aplicaacutevel ao ser A indefiniccedilatildeo do ser natildeo dispensa a pergunta por
seu significado senatildeo que justamente a intima isto (HEIDEGGER 1967 4)
As observaccedilotildees de Heidegger concordam com a conclusatildeo de Kahn a respeito da tomada de
rumo do verbo ser dentro da filosofia grega claacutessica sobretudo na concepccedilatildeo das bases da antiga
ontologia acerca da indistinccedilatildeo entre ser e ente A γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας agrave qual se refere
Heidegger parece ser a natureza inevitaacutevel da proacutepria metafiacutesica em fechar a porta aberta por
ela mesma para o modo de se relacionar com o ser uma espeacutecie de destinaccedilatildeo forccedilosa da qual
natildeo se poderia de maneira alguma escapar ponderando a projeccedilatildeo que reverbera em cada um
dos sentidos
33
O conflito acerca do entendimento e expressatildeo da φύσις revela em boa parte a maneira
pela qual o conjunto do ser se tornou alvo de disputas A contenda eacute ilustrada na histoacuteria
primaacuteria da filosofia grega enquanto fisiologia e na ldquocontroveacutersiardquo paradigmaacutetica entre
Heraacuteclito e Parmecircnides Uma realidade em constante movimento e mutaccedilatildeo absorvida desde a
observaccedilatildeo teoreacutetica do mundo entorno ou simplesmente o ponto de vista do ldquodevirrdquo parece
compatiacutevel com a natureza infinitiva e inapreensiacutevel do verbo ser como eacute possiacutevel rastrear no
πάντα ῥεῖ heracliacutetico 5 Heraacuteclito expressa o movimento intriacutenseco de abertura do modo
relacional do ser Todavia tal entendimento natildeo eacute compatiacutevel com qualquer tipo de silogismo
loacutegico onde eacute possiacutevel desenhar um conhecimento comum Para assumir a cogniccedilatildeo e percepccedilatildeo
vaacutelidas seria necessaacuterio assumir a permanecircncia de algo como eacute possiacutevel acompanhar na
elaboraccedilatildeo da univocidade do ser em Parmecircnides6
O primeiro ponto de vista paradoxalmente leva agrave evidecircncia da diferenccedila e a posiccedilatildeo do
oxiacutemoro enquanto o segundo permite a identificaccedilatildeo e a possibilidade de conclusatildeo por meio
das loacutegicas da identidade e natildeo-contradiccedilatildeo Aparentemente o primeiro natildeo resulta em nenhum
avanccedilo imediato a respeito de assuntos praacuteticos ou na dissoluccedilatildeo de questotildees teoacutericas enquanto
o segundo iraacute provavelmente resolver problemas de quase todos os tipos no campo pragmaacutetico
e em toda sorte de adversidades naturais e sociais Por meio da loacutegica natural do ser humano
social eacute bastante evidente qual ponto de vista deve ser eleito no intuito de estabelecer a
coexistecircncia mais faacutecil e paciacutefica aquela que afasta o homem da falta de fundamento da
existecircncia ou seja do abismo existencial da afliccedilatildeo que eacute existir
5 Conforme cita Platatildeo no Craacutetilo ldquotodas as coisas estatildeo em processo e nada permanece paradordquo (τά ὄντα ἱέναι
τε πάντα καὶ μένειν οὑδέν) (PLATO 1997 119-120 Craacutetilo 401d-402a) (KIRK E RAVEN 1957 197) Kirk e Raven
ponderam ainda que se trata de um momento ldquoOnde φύσις provavelmente natildeo significa lsquonaturezarsquo mas lsquoas coisas
em sua verdadeira constituiccedilatildeorsquordquo (IDEM IBIDEM 184) 6 ldquoO uacutenico caminho de inquiriccedilatildeo que pode ser pensadordquo (αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι) (KIRK E RAVEN
1957 269) Haacute uma anaacutelise mais detalhada acerca do toacutepico em Ciacutecero Cunha Bezerra ldquoParmeacutenides y la
univocidad del serrdquo Caacutetedra v 1 (2003) 33-48
34
Eacute possiacutevel especular que com a ausecircncia de um princiacutepio solidamente identificado e
natildeo-contraditoacuterio quiccedilaacute nem mesmo uma regra gramatical linguiacutestica poderia ser estabelecida
dando margem mesmo agrave impossibilidade de comunicaccedilatildeo Igualmente tampouco se poderia
delinear uma corrente de haacutebitos pessoais compatiacuteveis aos costumes sociais desabilitando toda
e qualquer eacutetica ou ciecircncia poliacutetica pela qual se pode regulamentar a conduta humana Com a
perspectiva de um devir total e assunccedilatildeo da diferenccedila a presenccedila de certo caos eacute inegaacutevel Com
a fundaccedilatildeo de uma estrutura loacutegica todavia eacute possiacutevel organizar e controlar os pensamentos e
accedilotildees do ser humano e sua convivecircncia social Contudo natildeo necessariamente esta postura iraacute
levar a humanidade para as escolhas mais coerentes ndash e a histoacuteria pode comprovar isto inuacutemeras
vezes O abandono da multiplicidade de perspectivas sobretudo as supracitadas (uma em
detrimento de outra) parece ter dirigido a histoacuteria por vias pouco luacutecidas e por vezes mesmo
autodestrutivas
Mas a anaacutelise da histoacuteria fatual natildeo eacute o que realmente interessa aqui tampouco a
atribuiccedilatildeo de uma culpa ou indicaccedilatildeo de um erro neste ou naquele ponto de vista O que
interessa aqui eacute como identificar a predileccedilatildeo loacutegica do pensamento ocidental com o cerne de
sua postura contemporacircnea e inquirir se eacute possiacutevel (ou se jaacute foi tomado) um caminho de
pensamento distinto e quais os resultados da confrontaccedilatildeo de um ponto de vista com o outro
Para isto eacute preciso retomar uma anaacutelise da histoacuteria da ontologia observando a maneira pela
qual ela se movimenta intriacutenseca e extrinsecamente Dentro das possibilidades de eleiccedilatildeo de um
caminho interpretativo opto aqui em um primeiro momento por absorver a histoacuteria e criacutetica
da metafiacutesica feita por Heidegger durante o seacuteculo vinte com o fito de deixar um pouco mais
evidente o problema fundamental da indistinccedilatildeo entre ser e ente que eacute sem embargo o pontapeacute
inicial de toda a contenda Muito embora seja possiacutevel descortinar a histoacuteria do pensamento
ocidental mediante distintos autores a ecircnfase na nomeada questatildeo do ldquoesquecimento do serrdquo
serve sobremaneira bem ao propoacutesito desta tese
35
Portanto em primeiro lugar eacute preciso considerar que embora ilustrativo Martin
Heidegger passou ao largo de resolver os problemas suscitados pela histoacuteria das ideias Antes
ele desenvolveu problemaacuteticas ainda mais insoluacuteveis e como se natildeo bastasse propocircs novos
enigmas A maior dentre todas as dificuldades talvez ainda precise aguardar muito tempo para
ser descortinada Durante um longo periacuteodo o entretenimento geral dos eruditos se contentou
em traccedilar um denominador comum dentre as vaacuterias questotildees pertinentes aos problemas de sua
filosofia em um movimento enciclopeacutedico quiccedilaacute tatildeo importuno quanto improfiacutecuo de decifrar
seu pensamento Mais conveniente talvez seja simplesmente resguardar o segredo de certas
passagens e aguardar a maturaccedilatildeo necessaacuteria para interpelaacute-las independentemente da espera
suscitada por tal postura
Ainda assim alguns pontos merecem ser postos em relevo e sobre eles decerto vale
despender alguma energia no esforccedilo de meditar acerca de seu sentido Certos trabalhos
compostos por Heidegger guardam de uma soacute vez todo o peso de sua leitura da realidade
notadamente em trechos sutis e aparentemente inofensivos Em momentos nos quais o leitor se
daacute por satisfeito em compreender um posicionamento aparentemente simples e historial como
pueril revisatildeo da histoacuteria da filosofia aiacute mesmo se lhe eacute possiacutevel abrir uma brecha para absorver
a atitude fundamental de seu pensamento Heidegger sempre foi um historiador da filosofia e
natildeo renegou em momento algum o peso de um ofiacutecio como este pelo contraacuterio coube-lhe fazecirc-
lo por diversas vezes e em distintos modos Mesmo quando seus ensaios e conferecircncias se
projetavam a um tema especiacutefico e natildeo a um autor a forte presenccedila de suas interpretaccedilotildees da
histoacuteria da filosofia eacute inegaacutevel Cabe ao propoacutesito desta tese realccedilar um exemplo que torne liacutecito
ilustrar uma fissura por onde seja possiacutevel se esgueirar ateacute a fonte da emanaccedilatildeo especulativa
acerca do sentido da histoacuteria da filosofia e do desenvolvimento do pensamento ocidental
sinocircnimos para o que conveacutem nomear metafiacutesica
36
Aos 13 de novembro de 1935 como sabem os leitores assiacuteduos de Heidegger foi
pronunciada uma conferecircncia preparada para a Kunstwissenschaftlichen Gesellschaft de
Freiburg im Breisgau7 Der Ursprung des Kunstwerkes se tornou de forma veloz e viral um
trabalho amplamente comentado no circuito acadecircmico em geral principalmente no campo da
esteacutetica filosoacutefica e teorias da arte O ponto de vista quase unacircnime dos receptores do trabalho
assentou na interpretaccedilatildeo do texto como uma tese a respeito da arte como ldquoposta em marcha da
verdade enquanto desvelamentordquo uma frase natildeo tatildeo simples de ser decifrada mas repetida
quase como uma foacutermula automaacutetica que se tornou rapidamente um emblemaacutetico clichecirc e uma
resposta imediata agrave pergunta pelo sentido da arte em Heidegger
A popular obra de Michael Inwood A Heidegger Dictionary (1999) destaca
enfaticamente o caraacuteter essencial da proposiccedilatildeo-chave quando pontua no mesmo sentido que
ldquoA obra de arte eacute mais bem um projeto que abre um mundo no qual escolhas podem ser feitas
A verdade a revelaccedilatildeo do lsquoserrsquo eacute o configurar em uma obra e configurar para obra iluminando
o mundo e a terra naquilo que neles perdurardquo (INWOOD 1999 18) Inwood ressalta a
proximidade encontrada por Heidegger entre o termo alematildeo ldquoproteger manterrdquo (bewahren) e
a proacutepria palavra ldquoverdaderdquo (Wahrheit) embora os termos natildeo necessariamente estejam
etimologicamente conectados Ele aponta para a ldquopreservaccedilatildeordquo como elemento pelo qual ldquoA
arte eacute o deixar-acontecer da chegada da verdade do ser enquanto talrdquo (IDEM IBIDEM) com especial
atenccedilatildeo para o proacuteprio fazer (ποίησις) da arte e particularmente da poesia Haacute contudo uma
seacuterie de consideraccedilotildees mais sutis a serem levadas em consideraccedilatildeo nas conferecircncias de
Heidegger proporcionando uma anaacutelise um pouco mais cuidadosa do que estaacute propriamente
em jogo quando Heidegger sobreleva a questatildeo da obra de arte
7 O mesmo trabalho sofreu novas releituras durante todo o ano de 1936 sendo reapresentado respectivamente na
Einladung der Studentenschaft der Universitaumlt em Zuumlrich durante o mecircs de janeiro e na Deutschen Hochstift em
Frankfurt am Main entre novembro e dezembro O ciclo de conferecircncias recebeu ediccedilotildees retrabalhadas em 1956 e
1960 publicadas pela Reclam de Stuttgart e sendo incluiacutedo em 1977 no tomo Holzwege da Gesamtausgabe
37
O editor do volume Holzwege Friedrich-Wilhelm von Hermann dedicou toda uma obra
agrave anaacutelise temaacutetica envolta naquele escrito publicando em 1980 o livro Heideggers Philosophie
der Kunst Em algumas de suas consideraccedilotildees mais amplas sobre as conferecircncias de Heidegger
Hermann atenta para o fato da questatildeo da obra de arte ser levantada a partir de um problema
desdobrado pela ontologia fundamental Hermann observa a problemaacutetica geral do escrito
desde o estabelecimento do ldquoserrdquo como ldquoacontecimentordquo (Ereignis) Conforme ele pondera
trata-se de um trabalho contemporacircneo aos Beitraumlge zur Philosophie (1936-38) Para Hermann
a questatildeo em torno ao ldquoserrdquo como ldquoacontecimentordquo (Ereignis) estende-se em Der Ursprung des
Kunstwerkes por meio de quatro outros problemas (1) o estabelecimento constitutivo da arte
(2) da obra de arte (3) da criaccedilatildeo artiacutestica e (4) da compreensatildeo da arte (cf HERMANN 2001 7)
Contudo circunscrita agrave conferecircncia sobre a arte estaacute a elaboraccedilatildeo da passagem da discussatildeo em
torno agrave verdade do ser para o ldquopensamento da histoacuteria do serrdquo (seinsgeschichtliches Denken)
Trata-se especificamente do momento de transiccedilatildeo do pensamento de Heidegger8 Em
linhas gerais Der Ursprung des Kunstwerkes ressalta uma preocupaccedilatildeo da lida do homem para
com a essecircncia da verdade mediante a obra de arte enquanto coisa Haacute toda uma histoacuteria dos
efeitos pertinentes agraves anaacutelises de Heidegger da obra de Vincent van Gogh9 aleacutem de inuacutemeras
teorizaccedilotildees em torno ao poder salvador da obra de arte Todavia salta aos olhos uma passagem
muito mais peculiar (para qual gostaria de chamar a atenccedilatildeo agora mesmo) qual seja aquela
na qual Heidegger aborda o problema da transposiccedilatildeo da experiecircncia fundamental grega para a
intepretaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo do pensamento romano-latino (cf HEIDEGGER 1977 7)
8 A perspectiva da ontologia fundamental de Sein und Zeit (1927) continuada no curso Grundprobleme der
Phaumlnomenologie ministrado em Marburg durante o semestre de veratildeo de 1927 receberia seu desenvolvimento
desde uma visatildeo historial-reflexiva jaacute na primavera de 1932 ocasiatildeo na qual conforme Hermann satildeo elaboradas
as primeiras linhas de Beitraumlge zur Philosophie redigido entre 1936 e 1938 mas publicado postumamente somente
em 1989 9 Em uma das mais famosas passagens de Der Ursprung des Kunstwerkes Heidegger interpreta os sapatos de um
dos quadros de Vincent van Gogh (natildeo identifica qual todavia) descortinando com isto o cotidiano campesino e
oferecendo uma leitura da realidade a partir de aiacute Uma criacutetica direta foi apresentada por Meyer Shapiro (em The
Still Life as a Personal Object ndash A Note on Heidegger and van Gogh 1968 e ainda em Further Notes on Heidegger
and van Gogh 1994) onde ele sustenta que os sapatos retratados por van Gogh natildeo satildeo de uma pessoa do campo
mas as botas do proacuteprio artista apontando com isto graves mal entendidos na interpretaccedilatildeo de Heidegger
38
Ainda no iniacutecio do escrito Heidegger busca a compreensatildeo mais geral da ldquocoisardquo
abordando como exemplo um bloco de granito A despeito de suas muacuteltiplas caracteriacutesticas ele
enfatiza o ldquoao redorrdquo (das herum sich) pelo qual suas propriedades se agrupam podendo entatildeo
falar de algo como um ldquonuacutecleordquo (Kern) da coisa Esse nuacutecleo de acordo com Heidegger
chamaram-lhe os gregos claacutessicos de ὑποκείμενον Embora ilustrativa a descriccedilatildeo eacute decerto
passiacutevel de baixo niacutevel de representaccedilatildeo posta sua exposiccedilatildeo pouco objetiva O termo eacute mesmo
tatildeo controverso quanto as proacuteprias ideias de ser e ente dentro da perspectiva grega Ela possui
uma carga conceitual talvez natildeo tatildeo difiacutecil de ser desvelada mas que tampouco garante exatidatildeo
e lucidez em sua abordagem variando de eacutepoca para eacutepoca de filoacutesofo para filoacutesofo de
interpretaccedilatildeo para interpretaccedilatildeo Ademais vaacuterias histoacuterias metaforizam o sentido do termo
ὑποκείμενον Uma das mais conhecidas (conto-a sem embasamento ou referecircncias quiccedilaacute
mesmo de maneira inapropriada) relata que certa vez um rei se espantara ao conhecer a obra de
um escultor haacutebil em reproduzir as formas da natureza em blocos de maacutermore Tamanha era a
destreza do artista que se postas lado a lado a escultura e a coisa mesma confundiam-se os
espectadores exceto pelo caraacuteter inanimado da escultura Intrigado o rei mandou chamar o
escultor e perguntou-lhe como fazia para reproduzir com tanta fidelidade o mundo em torno
Natildeo sabendo explicar senatildeo por meio da praacutetica pediu um bloco de maacutermore e agraves vistas do rei
reproduziu perfeitamente um cavalo em tamanho real faltando-lhe apenas galopar O rei lhe
questionou ldquoComo o fizesterdquo e respondeu o escultor ldquofaacutecil apenas retirei do bloco de
maacutermore o que natildeo era cavalordquo O ὑποκείμενον seria portanto aquele elemento sem o qual o
cavalo natildeo seria cavalo ou sem o qual uma coisa natildeo eacute uma coisa Contudo o grande problema
envolto nas tentativas de atingir um entendimento deste sentido por meio de um silogismo uma
loacutegica racional ou uma explicaccedilatildeo conceitual (e natildeo por uma metaacutefora ou estoacuteria) consiste na
dificuldade em elaborar uma equaccedilatildeo que exija menos esforccedilo do ouvinte capacitando uma
lucidez mais ampla e geral que a todos possa atingir
39
Toda definiccedilatildeo a partir de uma predicaccedilatildeo direta pode se configurar ainda mais obscura
e lanccedilar aquele que se propotildee a entender o conceito para um mero encadeamento e conexatildeo de
termos sem contudo realmente promover a experiecircncia do sentido da palavra Sem embargo o
Impeacuterio Romano foi a eacutegide da popularizaccedilatildeo e introspecccedilatildeo do mundo grego competindo-lhes
a tarefa de transpor ao modo latino de pensar os sentidos das meditaccedilotildees gregas Sobre isto
Heidegger ostenta uma posiccedilatildeo bastante firme e vale a pena destacar por completo o trecho no
qual se lhe pode observar sua atitude
Estas denominaccedilotildees natildeo eram meros nomes Em sua fala a experiecircncia fundamental
grega do ser do ente no sentido de sua presenccedila mostrava o que natildeo se podia mostrar
Por meio dessa disposiccedilatildeo instaura-se a interpretaccedilatildeo oficial da coisidade da coisa e
a interpretaccedilatildeo ocidental do ser do ente Comeccedila com a traduccedilatildeo das palavras gregas
para o pensamento romano-latino ὑποκείμενον torna-se subjectum ὑπόστασις torna-
se substantia συνβεβηκός torna-se accidens O processo desta traduccedilatildeo dos nomes
gregos para a liacutengua latina natildeo se daacute sem consequecircncias e nos dias de hoje toma-se
ainda a mesma compreensatildeo Antes pelo contraacuterio por detraacutes da traduccedilatildeo
aparentemente literal haacute um traslado da experiecircncia grega para outro modo de pensar
O pensamento romano assume para si as palavras gregas sem a devida
correspondecircncia com a experiecircncia originaacuteria do que dizem sem a palavra grega A
falta de fundamento do pensamento ocidental comeccedila com essas traduccedilotildees (IDEM
IBIDEM 7-8)
Responsabilizar o pensamento romano-latino pela queda do Ocidente no abismo da falta de
fundamento delega a Heidegger um encargo de peso formidaacutevel cujo maior perigo talvez seja
o de natildeo se ambientar aqui ou ali dentro deste ou daquele territoacuterio neste ou naquele lugar
mas na posiccedilatildeo do meio na esfera do entre no desenho do limite da linha da fronteira
40
A direccedilatildeo do pensamento de Heidegger a partir desta passagem claramente se constitui
desde uma divisatildeo da metafiacutesica ocidental em dois momentos muito distintos embora
interligados A emboscada se encontra na percepccedilatildeo de que todo e qualquer ocidental eacute jaacute
sempre forccedilado a se movimentar na esfera da ontologia latina ao passo que o retorno aos
fundamentos da ontologia grega eacute antes de tudo calcar terreno em solo incerto e regiatildeo
desconhecida Estabelecer uma ponte que permita ao ser humano contemporacircneo entender a
proveniecircncia de sua apreensatildeo da existecircncia eacute um roteiro deveras ousado Resta saber como eacute
possiacutevel ainda pensar os conceitos fundamentais da metafiacutesica dentro de sua propriedade sem
causaacute-los algum tipo de dano que faccedila seu sentido se perder ser obscurecido ou transviado
A partir da colocaccedilatildeo do problema da obra de arte enquanto coisa Heidegger questiona
o que enfim se compreende pelo termo mesmo ldquocoisardquo quando se compromete com a ideia de
tentar envolvecirc-lo conceitualmente (a partir de ὑποκείμενον ὑπόστασις e συνβεβηκός) e desde
aiacute extrair uma explicaccedilatildeo Sobre isto Hermann comenta ldquoComo podemos ver ainda mais e
melhor resolver o problema da obra de arte se torna um problema ontoloacutegico ndash isto eacute em
primeira instacircncia o problema ontoloacutegico do ser-res da resrdquo (HERMANN OP CIT 87) entenda-se
ainda o problema da coisidade da coisa Ele ainda complementa deixando ver a postura exigida
pela tarefa de entender a ontologia grega ldquoPortanto explicar o pensamento grego significa
antes de tudo revelar novamente a experiecircncia de estar no lugar em que se encontra a expressatildeo
de acordo com o fio condutor da palavra filosoacutefica gregardquo (IDEM IBIDEM 93-94) Sem embargo
conforme aponta Hermann (em coerecircncia com Heidegger) o ofiacutecio de introduzir a filosofia
grega (ou se introduzir na filosofia grega sua ontologia e berccedilo da metafiacutesica) constitui-se
desde o caminhar ao lado do fio condutor de sua expressatildeo e manifestaccedilatildeo A caminhada talvez
seja ela mesma o ldquoestar no lugar em que se encontra a expressatildeordquo ou o espaccedilo do ldquoentrerdquo a
ldquolinha de fronteirardquo
41
Algumas dezenas de leituras podem ser desdobradas desde a interpretaccedilatildeo de Heidegger
do lugar de transiccedilatildeo da histoacuteria do ser O itineraacuterio do pensamento de Heidegger legou aos
fieacuteis depositaacuterios de sua vasta caminhada a tarefa ingloacuteria de dar uma passo aleacutem Gostaria de
destacar aqui um direcionamento um pouco menos ousado nem por isto ingecircnuo Considerar
uma histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica em Heidegger eacute procurar pela fenda cuja passagem
encaminha diretamente ao salto no abismo da superaccedilatildeo da metafiacutesica embora natildeo fique ainda
claro o significado destes termos Ademais a intenccedilatildeo aqui eacute justamente esta esclarecer os
enlaces desse percurso histoacuterico nomeado sob o signo da metafiacutesica agrave luz da trajetoacuteria
interpretativa de Heidegger
Justamente sob o tiacutetulo Itineraacuterio do Pensamento de Heidegger (1965) Emmanuel
Carneiro Leatildeo apresenta sua traduccedilatildeo para o portuguecircs da Einfuumlhrung in die Metaphysik (1935)
de Heidegger ndash segundo ele nem de perto uma obra de faacutecil acesso Em primeiro lugar pela
impossibilidade geral de uma introduccedilatildeo em filosofia no sentido amplo Em outras palavras
natildeo haacute caminho de iniciaccedilatildeo agrave filosofia como se houvesse ainda um siacutetio no qual se a conquista
Haacute na verdade o puro levantar de questotildees responsaacuteveis por conduzir o pensamento para dentro
da proacutepria filosofia Carneiro Leatildeo elucida tal dificuldade quando especifica o tiacutetulo da obra
Introduzir agrave metafiacutesica eacute movimentar-lhe a questatildeo fundamental de maneira a
conduzi-la (-ducere) para dentro (-intro) das origens donde a metafiacutesica procede Um
esforccedilo de pensamento que nada tem de horizontal e progressivo Cujo movimento
se processa antes no sentido vertical e regressivo (CARNEIRO LEAtildeO 1999 10)
A filosofia busca o movimento imputado para originaacute-la para com isto retornar agraves suas origens
proacuteprias Em segundo lugar e natildeo menos importante a obra ainda guarda certa inacessibilidade
devido agrave intencional ambiguidade de um periacuteodo conturbado de transiccedilatildeo do pensamento de
Heidegger (tambeacutem evidenciado por Hermann)
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Eacute preciso movimentar a questatildeo fundamental da metafiacutesica para conduzi-la para dentro
de suas origens Agora bem destacar a questatildeo fundamental eacute o primeiro passo de Heidegger
na obra quando questiona ldquoPorque haacute em geral o ente e natildeo antes nadardquo (HEIDEGGER 1983b
3) Um adendo eacute necessaacuterio ao leitor lusoacutefono Carneiro Leatildeo em sua traduccedilatildeo explica o
emprego do termo ldquoenterdquo para traduzir o alematildeo Seiendes justificando o uso da forma erudita
referida ao latim ens entis para salvaguardar o caraacuteter de tudo que eacute independentemente de
seu modo de ser (cf CARNEIRO LEAtildeO OP CIT 77 nota) Ponderando isto a leitura de Carneiro
Leatildeo segue um rumo bastante simples e esclarecedor ele afirma
O homem natildeo pode existir senatildeo em comeacutercio e comunhatildeo com o mundo dos entes
Ente significa tudo que de algum modo eacute o homem as coisas os acontecimentos ateacute
mesmo o Nada enquanto eacute um Nada ieacute enquanto tem um significado () (IDEM IBIDEM
11)
A forccedila responsaacutevel por manter a decisatildeo a respeito dos entes depende diretamente da
capacidade de enxergar suas distinccedilotildees Em um compecircndio unitaacuterio a base de sustentaccedilatildeo no
comeacutercio com os entes se daacute na e pela linguagem mediante a qual o homem simplesmente
afirma eacute Uma afirmaccedilatildeo aparentemente simples guarda contudo uma relaccedilatildeo complexa e
ambiacutegua talvez mesmo em decorrecircncia de sua extrema simplicidade
A existecircncia humana se agita dentro da tensatildeo entre imanecircncia e transcendecircncia
porque o homem existe enquanto in-siste no domiacutenio da Verdade do Ser ieacute a
vicissitude instaurada pela diferenccedila irredutiacutevel e referecircncia necessaacuteria entre ente e
ser A tarefa do pensamento natildeo eacute procurar sair decircsse ciacuterculo de diferenccedila e referecircncia
e sim necircle ingressar de maneira a poder regressar ateacute a fonte originaacuteria de sua tensatildeo
e unidade (ID IBID 15)
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O atino para o ingresso ao interior da tarefa do pensamento deixa bastante evidente a intitulaccedilatildeo
da obra Eacute possiacutevel conceber a empreitada em regressar ao fundamento desde o qual a metafiacutesica
eacute ela mesma a proveniecircncia da tensatildeo em torno agrave unidade da existecircncia perante a multiplicidade
Eacute preciso destarte compreender que ldquoSoacute poderemos entender os pensamentos os conceitos
ou as explicaccedilotildees dados na medida em que nos ex-pusermos e dis-pusermos aquilo que se pensa
que se concebe ou que se explicardquo (ID IBID 29) acompanhando assim os passos de Heidegger
e verificando sua coerecircncia teoacuterica de levar colocar e se pocircr no estado da questatildeo
Esta mesma ambivalecircncia eacute tambeacutem destacada por Heidegger quando ele se refere ao
ambiacuteguo das formas essenciais do espiacuterito Natildeo se trata portanto de uma dedicaccedilatildeo integral agraves
possibilidades de captar de maneira exclusivamente formal os procedimentos que envolvem os
estudos mas de perceber (αἴσθησις) e experienciar os fenocircmenos Heidegger adverte ainda
Tomada na totalidade de seu sentido mais cru a filosofia sempre lida com o
fundamento do ente de tal maneira que o proacuteprio ser humano tem enfaticamente a
experiecircncia de seu significado e propoacutesito Por isto agora se vislumbra facilmente a
amplitude da filosofia que poderia e deveria proporcionar o fundamento da existecircncia
da eacutepoca histoacuterica atual e futura pela qual se estabelece a cultura Com tais
espectativas e demandas o estado e a essecircncia da filosofia satildeo sobrecarregadas Na
maior parte das vezes essa demanda excessiva se mostra pela forma de uma censura
da filosofia Diz-se por exemplo porque a metafiacutesica natildeo participou na preparaccedilatildeo
para a revoluccedilatildeo ela deve ser rejeitada Isto eacute tatildeo espirituoso quanto dizer que porque
vocecirc natildeo pode voar com um tocircrno portanto este deve ser abandonado A filosofia
natildeo provecirc diretamente forccedilas nem modos de accedilatildeo e criaccedilatildeo para ajeitar a condiccedilatildeo
histoacuterica simplesmente pelo motivo de dizer respeito apenas a poucos Quais poucos
Aqueles que transformam criativamente convertendo os fins Afetando uma vastidatildeo
apenas indiretamente e nunca fazendo rodeios ateacute certo ponto onde finalmente desde
o longo esquecimento da filosofia degenera-se como autocompreensatildeo da existecircncia
(HEIDEGGER OP CIT 12)
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Heidegger aponta certa responsabilidade da filosofia na formaccedilatildeo da cultura e direcionamento
da eacutepoca presente e futura A chamada ldquoessencializaccedilatildeo da filosofiardquo eacute em grande parte
responsaacutevel pela tomada de rumo e pela constituiccedilatildeo da histoacuteria ateacute mesmo por seu abandono
Agrave ela estaacute diretamente conectada a ldquoessencializaccedilatildeo do serrdquo e maneira pela qual a filosofia se
apresenta como contemplaccedilatildeo dos fundamentos do ente
Heidegger explica em pormenores a diferenccedila entre ser e ente quando expotildee a gramaacutetica
e etimologia da palavra Certa advertecircncia contudo clama a petrificaccedilatildeo das normas
gramaticais ocas e vazias destituindo a Escola do Mundo do Espiacuterito que circunda a
morfologia dos termos e se restringindo tatildeo somente agrave transmissatildeo de regras do uso da palavra
Neste sentido a maneira pela qual se ostenta a ldquogrande gramaacuteticardquo eacute em si mesma o processo
de substantivaccedilatildeo do Ocidente visto como o cerrar das fronteiras como delimitaccedilatildeo
Tambeacutem em Einfuumlhrung in die Metaphysik Heidegger insiste no argumento exprimido
em Der Ursprung des Kunstwerkes seguindo o fluxo comentado acima quando afirma outra
vez ldquoQue essas formas gramaticais natildeo dissecaram desde toda eternidade uma linguagem
absoluta enquanto controle elas satildeo de fato erigidas de uma particular interpretaccedilatildeo da liacutengua
grega pela liacutengua latinardquo (ID IBID 56) Em outras palavras a linguagem possibilita sendo ela
tambeacutem um ente manipulaccedilatildeo e controle por sobre suas formas Por este motivo eacute possiacutevel
transmitir o conhecimento de uma liacutengua estrangeira somente com o ensino da gramaacutetica
mesmo para pessoas que nunca realmente entraram em contato com essa determinada liacutengua
Ou ainda aprender um idioma antigo natildeo mais utilizado ou cujo vigor ou esplendor se apagou
como o latim o grego claacutessico ou o sacircnscrito antigo sem ter a possibilidade de experenciaacute-los
no cotidiano O domiacutenio teoacuterico de uma liacutengua pode permitir ainda intuiccedilotildees e analogias a
respeito da experiecircncia que esta liacutengua provocava em seus falantes originais sem contudo
garantir exatidatildeo das disposiccedilotildees ou estados de acircnimo referidos pelos termos
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Dentro da gramaacutetica e morfologia do ser Heidegger evidencia que existe um duplo
sentido para a palavra dentro de seu entendimento como consistecircncia (Staumlndigkeit) qual seja
a) o estar em si mesmo enquanto proveniente de si mesmo e b) o que perdura constantemente
enquanto tal Consistecircncia eacute a palavra-chave de sua leitura do termo ser dentro da circunvisatildeo
grega claacutessica Heidegger aponta que justamente por isso o natildeo-ser denota a desistecircncia ou a
saiacuteda da existecircncia ou ainda o abrir matildeo do ldquosalto para aleacutemrdquo Jaacute a etimologia da palavra ser
revela como os sentidos manifestos pela gramaacutetica e morfologia foram confundidos
historicamente Heidegger expotildee trecircs raiacutezes do termo uma sacircnscrita (es asus) outra indo-
germacircnica (bhuuml) e uma apenas germacircnica (sein) Conforme suas interpretaccedilotildees elas se
desdobram respectivamente em um sentido de ldquoviverrdquo ldquosurgirrdquo e ldquopermanecerrdquo Tratam-se de
verbos distintos todavia Heidegger natildeo citas as fontes das quais ele extrai tais etimologias
Ateacute onde eacute possiacutevel investigar o termo sacircnscrito mais proacuteximo ao que ele considera es
asus seria asti (अनतत) cuja raiz ās (आस) possui incontaacuteveis significados dentre os quais ldquoexistirrdquo
ldquoestar presenterdquo ldquopermanecerrdquo entre vaacuterios outros Aparentemente eacute a origem do indo-europeu
es cujo similar em grego seria o morfema ἐστί e em latim esse (sobremaneira visiacutevel no
portuguecircs estar) Jaacute a palavra bhuuml provavelmente indicada por Heidegger como ldquoindo-
germacircnicardquo em consequecircncia da formataccedilatildeo do verbo ser como ldquobinrdquo ldquobistrdquo (ou ainda ist e em
inglecircs ldquoisrdquo) eacute tambeacutem ela sacircnscrita (bhū भ) e estaacute presente em vaacuterias outras liacutenguas indo-
europeias (como no inglecircs being) Seu significado mais geral seria ldquoserrdquo ou ldquoexistirrdquo embora
aponte tambeacutem para ldquoacontecerrdquo ou ldquoperceberrdquo aleacutem de outros sentidos Sein tambeacutem pode ser
rastreado ateacute certo ponto em sua origem germacircnica no mittelhochdeutsch sīn e no
althochdeutsch wesan derivado da raiz sacircnscrita ves (वस) que daria as formas de Wesen
(essecircncia) ou (war o preteacuterito de Sein ser) em alematildeo De qualquer forma a questatildeo leva
imediatamente ao que Heidegger chama de ldquoessencializaccedilatildeo do serrdquo O motivo eacute simples viver
surgir e permanecer satildeo manifestaccedilotildees que interpelam o ser humano inevitavelmente
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Contudo o ser ao interpelar o humano natildeo se manifesta antes se oculta esconde sua
proveniecircncia mostra-se ambiacuteguo e pela metade A forma de manifestaccedilatildeo do ser passiacutevel de
ser apreendida como uma realidade existente daacute-se por meio de sua participaccedilatildeo na realidade
presente qual seja ente (seu particiacutepio presente) A predileccedilatildeo pelo ente nasceria justamente
de seu caraacuteter manipulaacutevel embora haja uma conclusatildeo que clama as variaccedilotildees da palavra ser
e seu comportamento com respeito ao ldquoser em si mesmordquo evocado de modo distinto de outros
substantivos e verbos com relaccedilatildeo aos seus respectivos entes A eleiccedilatildeo de uma manifestaccedilatildeo
do ser diz muito sobre o modo relacional do humano com a conduccedilatildeo de sua existecircncia10
Alguns anos antes da composiccedilatildeo da Einfuumlhrung em um compecircndio posteriormente
publicado sob o tiacutetulo Sein und Wahrheit (1933-34) Heidegger se aproximou sistematicamente
da constituiccedilatildeo histoacuterica da metafiacutesica A obra eacute todavia pouco comentada O motivo eacute simples
haacute certo complexo ou trauma envolto na abordagem de um texto do periacuteodo da ascensatildeo do
Partido Nazi e do consentimento ao seu propoacutesito inicial Embora haja certos traccedilos de sintonia
com o discurso do momento pelo qual o povo alematildeo atravessava natildeo haacute nenhum resquiacutecio em
Heidegger dos preconceitos intriacutensecos ao desenrolar do totalitarismo Dentro do ambiente
promissoramente inovador Heidegger escreve ldquoToda gestatildeo essencial se vivifica desde uma
grande determinaccedilatildeo oculta no fundamentordquo (ID 2001 3) As palavras de Heidegger parecem
indicar antes de uma referecircncia ao destino da Alemanha o fato de que a questatildeo fundamental
estaacute contida no proacuteprio fundamento Por este motivo Heidegger ainda sugere um ldquo() caminho
histoacuterico na essecircncia da filosofia ndash e natildeo se poderia ter outro e isto justamente porque a filosofia
eacute ela mesma o acontecimento fundamental da histoacuteria da existecircnciardquo (ID IBIDEM 17) Resta
saber portanto como esse acontecimento fundamental se constitui como metafiacutesica
10 Heidegger justifica este ponto na sua apresentaccedilatildeo do conceito de Cura Sorgen em Sein und Zeit que embora
seja de suma importacircncia uma explanaccedilatildeo mais cuidadosa tomaria aqui e agora demasiado tempo mas que
precisa ao menos ser mencionada Seria esta caracteriacutestica originaacuteria do ser humano Cura Cuidado (Sorgen)
aquilo que o impulsionaria a preservar sua condiccedilatildeo evitando a queda nos abismos existenciais e a confusatildeo
generalizada (cf HEIDEGGER OP CIT 196-200)
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Quando a tarefa eacute compreender a histoacuteria e criacutetica da metafiacutesica realizada por Heidegger
insisto nunca eacute demasiada repeticcedilatildeo retomar as primeiras linhas de Sein und Zeit Vale lembrar
uma vez mais a disputa titacircnica a respeito da essecircncia (γιγαντομαχία περὶ τῆς οὐσίας) que
envolve os questionamentos aparentemente desprestigiados da metafiacutesica Conforme Heidegger
a maneira pela qual o problema perdurou sofreu alteraccedilotildees de Platatildeo e Aristoacuteteles ateacute sua
formulaccedilatildeo mais sofisticada na Wissenschaft der Logik (1812-16) de Georg W F Hegel Em
Sein und Wahrheit eacute tambeacutem a discussatildeo com Hegel que orienta a anaacutelise da metafiacutesica
tradicional Ateacute alcanccedilar Hegel entretanto Heidegger se preocupa em delinear as feiccedilotildees da
perda de sentido da μετὰ τὰ φυσικά aristoteacutelica na recepccedilatildeo tardia de seus escritos onde
ldquoGrandeza e iacutempeto desaparecem tanto na singularidade do questionamento criativo quanto na
designaccedilatildeo conceitual a praccedila desocupada daacute lugar agrave atividade de uma escola ndash somente
sobraram palavras e conceitos mas natildeo o poder estimulante da coisardquo (ID IBID 21)
Para Heidegger a unificaccedilatildeo do termo grego na palavra latina metaphysica natildeo eacute
acompanhada somente de uma correspondecircncia senatildeo ao mesmo tempo de uma mudanccedila em
seu significado Inerente agrave transformaccedilatildeo de seu sentido estaacute a apropriaccedilatildeo cristatilde do conceito
imputando um conhecimento suprassensiacutevel (trans physicam) de maior grau de importacircncia e
relevacircncia e diretamente relacionado ao divino Onde antes havia perplexidade na aspiraccedilatildeo agrave
sapiecircncia e observaccedilatildeo da realidade haacute agora um conhecimento humano elevado e suscetiacutevel agrave
confirmaccedilatildeo pela ciecircncia superior Heidegger visa e cita textualmente a formulaccedilatildeo de
Immanuel Kant da metafiacutesica como a ultrapassagem de todos os objetos empiacutericos a fim de
alcanccedilar um conhecimento viaacutevel e puro ou a superaccedilatildeo do conhecimento sensiacutevel pelo
conhecimento suprassensiacutevel11
11 Embora esta premissa esteja presente jaacute na Kritik der reinen Vernunft e em certa medida em suas especulaccedilotildees
preacute-criacuteticas atingindo ainda todos os escritos intercalados agraves duas outras criacuteticas e ainda os posteriores ele parece
se referir agraves conferecircncias de Kant reunidas por Karl Heinrich Ludwig Poumllitz publicadas em Vorlesungen Kants
uumlber Metaphysik aus drei Semestern Max Heine (org) Leipzig Hirzel 1984 (natildeo tenho certeza disto entretanto)
48
Haacute ainda a absorccedilatildeo do direito agrave verdade metafiacutesica pela ontologia claacutessica e neste
sentido Heidegger cita Alexander Baumgarten onde a verdade metafiacutesica eacute o princiacutepio
universal e fundamental em conveniecircncia agrave determinaccedilatildeo do ente enquanto tal Deste modo
conclui que a metafiacutesica se constitui como uma determinaccedilatildeo cristatilde e ideia matemaacutetico-
metoacutedica de fundamentaccedilatildeo nos sistemas metafiacutesicos da modernidade onde ela se apresenta
como conhecimento do ente em seu todo Hegel ocuparia neste sentido o lugar da consumaccedilatildeo
da plenitude da filosofia ocidental na metafiacutesica destacado o caraacuteter teoloacutegico no qual a medida
do saber eacute o ldquoinfinitordquo (perfectum) manifesto enquanto identidade absoluta (perfectissimus)
ou espiacuterito absoluto Por este motivo ao que parece quando se refere agrave histoacuteria da disputa
titacircnica sobre a essecircncia em Sein und Zeit Heidegger aponta a Wissenschaft der Logik de Hegel
como ponto de chegada Ali a loacutegica eacute entendida como ciecircncia do pensamento todavia natildeo
como ciecircncia responsaacutevel por regular o pensamento mas como fundamento do conceito e em
uacuteltima instacircncia fundamento do ente em si mesmo Heidegger explica dizendo que em Hegel
ldquoA metafiacutesica como ciecircncia do ser do ente eacute lsquoLoacutegicarsquo e esta Loacutegica eacute Loacutegica lsquodorsquo Absoluto isto
eacute de Deus Genitivo deliberadamente ambiacuteguo Natildeo apenas um genitivus objectivus Deus
representado mas sim genitivus subjectivus a essecircncia de deus como presenccedila do Espiacuterito
Absolutordquo (ID IBID 76) Em um momento final da exposiccedilatildeo da questatildeo fundamental da
filosofia Heidegger faz uma divisatildeo entre a filosofia ocidental em seu princiacutepio e em seu fim
escrevendo que
No princiacutepio a mais profunda necessidade era o questionamento na luta com os
poderes incontrolaacuteveis da verdade e da decepccedilatildeo A filosofia causava o mais alto
poder clarificante da naccedilatildeo e de sua existecircncia Riqueza de decisatildeo momento de
decisatildeo No fim alta bem-aventuranccedila na suspensatildeo das contradiccedilotildees fraqueza de
meros conceitos opostos fracasso e morte de todo questionamento Eternidade vazia
cheia de indecisotildees (ID IBID 77)
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A eternidade vazia cheia de indecisotildees todavia natildeo soa aqui como algo proveniente de um
descontentamento Pelo contraacuterio emerge desde a simples oposiccedilatildeo de conceitos com o fito de
suspender contradiccedilotildees e evidenciar uma maacutexima clareza e nitidez com o intuito de um suposto
pleno contentamento como se a profunda necessidade de questionamento houvesse sido calada
pela extrema emergecircncia de soluccedilatildeo Um abismo entre a filosofia ocidental em seu princiacutepio e
em seu fim eacute diagnosticado de maneira direta e evidente Longe de apontar culpados ou
referendar uma condenaccedilatildeo agrave metafiacutesica claacutessica Heidegger explica o processo intriacutenseco de
explicaccedilatildeo e complicaccedilatildeo da metafiacutesica evidenciando fatualmente a transiccedilatildeo do pensamento
da histoacuteria do ser da ontologia grega agrave latina A distacircncia que provecirc de clareza a anaacutelise eacute todavia
bastante tendenciosa aos propoacutesitos da ontologia fundamental A maneira pela qual a proacutepria
ontologia se protege com uma complexidade de conceitos dificulta a visualizaccedilatildeo do percurso
histoacuterico e da explanaccedilatildeo esclarecedora
Vale portanto retomar alguns aspectos relevantes embora por vezes sutis da pesquisa
acerca da ontologia na metafiacutesica claacutessica Gostaria de propor um breve desvio que agrave primeira
vista pareceraacute desnecessaacuterio contudo configura-se como extremamente pertinente ao
propoacutesito do capiacutetulo Atualmente as pesquisas voltadas ao estudo da ontologia se restringem
ou bem ao estudo histoacuterico ou bem agraves repercussotildees da metafiacutesica na filosofia contemporacircnea
Via de regra servem de embasamento para questotildees projetadas aos assuntos pertinentes da
eacutepoca vigente A ontologia se torna assim uma ldquoaacuterea da filosofiardquo uma ldquodisciplinardquo ou mesmo
um tronco braccedilo ou ramificaccedilatildeo dos estudos filosoacuteficos Os pesquisadores responsaacuteveis por
esta aacuterea da filosofia desdobram prolegocircmenos e comentaacuterios explicativos aos textos claacutessicos
fundamentando muacuteltiplas outras aacutereas Poucas vezes eacute possiacutevel observar um trabalho sobre
ontologia que realmente conecte seu sentido primaacuterio aos problemas apresentados nos dias de
hoje todavia escavando com devoccedilatildeo algumas pesquisas emergem sobremaneira conexas
50
A ontologia parece ser mesmo ldquoutilizadardquo como ponte para abrir novos caminhos como
por exemplo as discussotildees histoacutericas na anaacutelise do desenvolvimento da cultura as
investigaccedilotildees epistemoloacutegicas na confrontaccedilatildeo das possibilidades de conhecimento as
consideraccedilotildees eacuteticas e poliacuteticas na constituiccedilatildeo dos haacutebitos e costumes da relaccedilatildeo do ser humano
com as virtudes deveres e utilidades os juiacutezos esteacuteticos na relaccedilatildeo com a obra de arte ou
mesmo as bases psicanaliacuteticas do entendimento do proacuteprio humano e sua relaccedilatildeo com as coisas
e o mundo entorno
Um dos exemplos mais niacutetidos de um pensamento comprometido em discutir a
ontologia por si mesma observando a maneira pela qual as categorias ontoloacutegicas dispotildeem
ainda hoje os modos de estruturar a realidade talvez se apresente nas recentes discussotildees em
torno ao ldquodigitalrdquo e ao ldquovirtualrdquo ou as propostas de uma ldquoontologia digitalrdquo Ouvi falar pela
primeira vez sobre ldquoontologia digitalrdquo por meio de Rafael Capurro em 2009 durante o III
Coloacutequio Internacional de Metafiacutesica realizado em Natal na Universidade Federal do Rio
Grande do Norte12 Ateacute entatildeo possuiacutea minhas proacuteprias teorias acerca do mundo digital e da
esfera virtual da internet todavia natildeo tinha sequer noccedilatildeo da envergadura do problema e da
maneira pela qual o assunto podia ser pensado desde uma perspectiva ontoloacutegica e natildeo
meramente poliacutetico-ativista ou mesmo teoacuterico-juriacutedica Embora este natildeo seja propriamente o
assunto do capiacutetulo gostaria de abordar o tema como forma de justificar o questionamento pela
ontologia claacutessica para aleacutem da mera constataccedilatildeo historiograacutefica Conforme pude acompanhar
a inquietaccedilatildeo que move os trabalhos se concentra na crenccedila segundo a qual todos os fenocircmenos
podem ser analisados construiacutedos e manipulados sob a condiccedilatildeo de poderem ser digitalizados
12 A discussatildeo de Capurro havia comeccedilado com uma troca de e-mails com Michael Eldred A conversa redundou
em primeira matildeo nos trabalhos de Capurro intitulados Entwurf einer digitalen Ontologie (1999) e Beitraumlge zu
einer digitalen Ontologie (1999) sendo estendida em ulteriores escritos como Interpreting the digital human
(2008) e Einfuumlhrung in die digitale Ontologie (2009) aleacutem do livro publicado por Eldred The Digital Cast of
Being (2009) Provavelmente a discussatildeo ainda prossegue e outros trabalhos foram ou estatildeo sendo publicados
51
Talvez como um chiste mas bastante pertinente e veriacutedico Capurro afirma que
atualmente se algueacutem natildeo estaacute na rede eacute como se natildeo existisse Dando impulso para uma
formulaccedilatildeo inusitada esse est computari em analogia agrave famosa foacutermula de George Berkeley
(esse est percipi) A conclusatildeo bastante perspicaz extraiacuteda por Capurro eacute a de que seria correto
dizer que hoje vemos a realidade no horizonte de sua digitabilidade Uma seacuterie de outros termos
e expressotildees natildeo-convencionais emergem do texto de Capurro como ldquoem tudo que eacute puramente
virtual as coisas consistem essencialmente em bitsrdquo ou a denominaccedilatildeo ldquopitagorismo digitalrdquo
Entretanto todas as definiccedilotildees e determinaccedilotildees estatildeo conectadas ao arcano questionamento em
torno ao ente
O que eacute o ente Esta pergunta fundamental da metafiacutesica natildeo pode ter uma resposta
definitiva a partir da perspectiva de um conhecimento finito sem cair na ilusatildeo
essencialista Isto tem consequecircncias para a problemaacutetica de como pensar uma cultura
digital Uma ontologia digital eacute uma interpretaccedilatildeo possiacutevel do ser dos entes vistos
desde sua digitabilidade No entanto tal ontologia corre sempre o perigo de
transformar-se em uma metafiacutesica digital no momento em que acredita ser a
verdadeira ou uacutenica resposta agrave pergunta pelo ser A ontologia digital eacute uma possiacutevel
compreensatildeo do ser por parte do conhecimento humano finito Todas as regiotildees ou
esferas dos entes satildeo concebidas entatildeo como digitais (CAPURRO 2009 322)
A introduccedilatildeo da digitabilidade para aleacutem da anaacutelise do ldquoserrdquo quantificado pela ciecircncia moderna
confere uma perspectiva nova de experimentaccedilatildeo do ente em sua totalidade Chama atenccedilatildeo o
perigo envolto na transformaccedilatildeo em uma ldquometafiacutesica digitalrdquo na qual uma virada ontocecircntrica
concentraria o poder da verdade enquanto julgamento como oriente agrave pergunta pelo ldquoserrdquo
Talvez o mais importante da anaacutelise de Capurro consista justamente na renovaccedilatildeo desta criacutetica
na qual se chama atenccedilatildeo para a imprecisatildeo especulativa por meio da indefiniccedilatildeo do virtual
52
Natildeo eacute difiacutecil perceber que o mundo digital oferece uma vasta gama de temas e
possibilidades de se pensar filosoficamente sob as mais diversas perspectivas Natildeo haacute grande
espanto na busca dos filoacutesofos por reflexotildees em torno aos acontecimentos revolucionaacuterios dos
veiacuteculos de informaccedilatildeo e tecnologias em geral no seacuteculo vinte-e-um Contudo admiraacutevel eacute
encontrar o caminho oposto o momento no qual desenvolvedores da ciecircncia e da teacutecnica
buscam a filosofia para fundamentar seus trabalhos Eacute caso dos estudos realizados por Peter
Oslashhrstroslashm Henrik Schaumlrfe e Sara L Uckelman cujos resultados foram publicados nos anais da
International Conference on Conceptual Structures um evento dedicado agrave ciecircncia da
computaccedilatildeo Os trecircs investigadores fundamentam desde a ontologia moderna claacutessica a
concepccedilatildeo de hipertexto um conceito fundamental da computaccedilatildeo13 Para Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e
Uckelman o nascimento do termo ldquoontologiardquo representa o estabelecimento de um hipertexto
sobre a realidade e a temporalidade em pleno seacuteculo dezessete Os pesquisadores se referem
especificamente a Jacob Lorhard autor dos oito volumes intitulados Ogdoas Scholastica (1606)
responsaacutevel por cunhar o termo ldquoontologiardquo pela primeira vez na histoacuteria
Lorhard compocircs sua Ogdoas como uma gramaacutetica para o ensino escolar por meio de
aacutervores diagramaticais A teacutecnica utilizada por Lorhard foi profundamente influenciada por
Petrus Ramus (Pierre de la Rameacutee) cujo objetivo era transformar a razatildeo dialeacutetica em um
meacutetodo de loacutegica pedagoacutegica Petrus Ramus foi uma figura controversa e polecircmica Aleacutem de
suas interpretaccedilotildees pouco ortodoxas de Aristoacuteteles Ramus defendia uma completa reforma no
sistema educacional Ele fomentava o espiacuterito humanista pelo qual procurava devolver agrave
retoacuterica sua posiccedilatildeo proeminente visando desautorizar o peso da loacutegica escolaacutestica14
13 A ideia de hipertexto eacute bastante antiga todavia o termo no sentido moderno foi cunhado por Ted Nelson em
1965 para descrever o sistema de escrita natildeo-sequencial que envolvia o ligamento entre textos distintos em uma
mesma interface na internet O sistema de hyperlinks em um siacutetio da internet eacute um exemplo bastante simples de
um hipertexto 14 Cf Petrus Ramus Sa Vie Ses Eacutecrits et Ses Opinions Charles Waddington (ed) Paris Librairie de Ch Meyrteis
1855 Acerca das singularidades de Petrus Ramus confira Laura Adriaacuten Lara ldquoPetrus Ramus y el ocaso de la
retoacuterica ciacutevicardquo Utopiacutea y Praxis Latinoamericana v 13 n 43 (out-dez 2008) 11-31 e ainda Frank P Graves
Petrus Ramus and the Educational Reformation of Sixteenth Century New York Macmillan 1912
53
Havia um profundo espiacuterito anti-escolaacutestico que movia os interesses de Ramus
enfatizando uma postura radical na qual a filosofia ramista considerava falsa todas as
afirmaccedilotildees de Aristoacuteteles Para facilitar o processo de aprendizagem pelo qual o domiacutenio das
ciecircncias e artes liberais pode ser alcanccedilado Ramus emprega seus ldquoesquemas visuais abstratosrdquo
Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman se referem aos esquemas de Ramus como base para a aacutervore
diagramatical de Jacob Lorhard ndash para os pesquisadores este tipo de diagrama eacute o berccedilo de
todo futuro hipertexto
Eacute faacutecil observar que a estrutura da Ogdoas Scholastica de Jacob Lorhard permite ao
leitor localizar conceitos especiacuteficos e suas respectivas definiccedilotildees por meio de uma rede de
interconexotildees na forma de diagramas A ldquoaacutervorerdquo facilita natildeo soacute a compreensatildeo dos conceitos
como tambeacutem a maneira pela qual eles se relacionam uns com os outros Sem embargo trata-
se de uma gramaacutetica pela qual o domiacutenio de conceitos fundamentais da metafiacutesica se torna
bastante simples concordando em absoluto com a demanda da eacutepoca em introduzir este tipo de
estudo nos niacuteveis baacutesicos de ensino Com obras como as de Lorhard a exigecircncia do estudo da
ontologia foi difundida durante o seacuteculo dezoito como parte essencial da formaccedilatildeo acadecircmica
baacutesica15 Aleacutem disto a Ogdoas ainda sustentava a eacutegide da clarificaccedilatildeo da ontologia como base
para todo ulterior desenvolvimento intelectual Em outros termos Lorhard (assim como Ramus)
acreditava que natildeo era possiacutevel esclarecer nenhuma ciecircncia se natildeo houvesse de antematildeo uma
lucidez absoluta a respeito dos fundamentos do ente que poderia ser proporcionada apenas pelo
estudo por ele nomeado ldquoontologiardquo um discurso que buscava um pleno esclarecimento dos
termos empregados para definir todo e qualquer ulterior passo tomado tanto nas ciecircncias do
espiacuterito quanto nas ciecircncias da natureza
15 Muito disto deve-se ao filoacutesofo norueguecircs Jens Kraft cuja obra (influenciada em larga escala pela Metaphysica
sive Ontologia de Christian Wolff) reforccedilou o peso dos estudos em ontologia Dentro da compreensatildeo de Kraft
compartilhada tambeacutem por Lorhard e outros a ontologia ganha um lugar privilegiado como unificaccedilatildeo sistemaacutetica
das estruturas do pensamento como um todo
54
O oitavo livro da Ogdoas de Lorhard que encerra o compecircndio e eacute dedicado agrave ontologia
no sentido de unificar todos os escritos anteriores define a metafiacutesica como ldquo() o
conhecimento de um inteligiacutevel enquanto inteligiacutevel ()rdquo (LORHARD sd 3) Este conhecimento
eacute divido entre conhecimento dos particulares e dos universais Para Lorhard a parte da
metafiacutesica responsaacutevel pelo conhecimento dos particulares ou bem se refere acirc substacircncia
pertinente aos seres natildeo-complexos que subsistem em si mesmos (sejam eles criados ou natildeo)
ou bem aos acidentes
Jaacute o conhecimento dos universais se refere a tudo o que eacute inteligiacutevel redundando nos
atributos gerais ou nas distribuiccedilotildees conforme as quais o λόγος eacute entendido como um inteligiacutevel
As distribuiccedilotildees dizem respeito ao nada por um lado ou a algo por outro sendo este uacuteltimo
em seu aspecto positivo o que envolve as ideias de ldquoessecircnciardquo e ldquoenterdquo As noccedilotildees de ldquoessecircnciardquo
e ldquoenterdquo satildeo centrais natildeo apenas para o sistema de Lorhard mas tambeacutem para todas as
subsequentes compreensotildees da ontologia Em uma primeira definiccedilatildeo Lorhard observa a
ldquoessecircnciardquo em sua relaccedilatildeo com o λόγος definindo que ldquoEssecircncia eacute algo produtivo pelo qual o
Ser eacute o que eacute Esta palavra estrangeira eacute chamada pelos Escolaacutesticos de Entidade ou quidditasrdquo
(IDEM IBIDEM 4) Em segundo lugar considera a ldquoessecircnciardquo em relaccedilatildeo a sua distribuiccedilatildeo na
qual ela eacute ou bem ldquorealrdquo (ou seja uma atualizaccedilatildeorealizaccedilatildeo do ser) ou bem ldquoimaginaacuteriardquo (no
caso de um ser puramente racional) Ambas podem ser ldquosimplesrdquo ou ldquocompostasrdquo ldquoabsolutasrdquo
ou ldquorespectivasrdquo ldquouniversaisrdquo ou ldquosingularesrdquo Dentro do uacuteltimo destes casos a ldquoessecircnciardquo
pode ser ainda ldquogeneacutericardquo (ou um gecircnero compartilhado por outras espeacutecies) ou ldquoespeciacuteficardquo
(relativa a uma uacutenica espeacutecie) Natildeo haacute grande espanto nos pontos apresentados ateacute entatildeo por
Lorhard O que haacute na verdade eacute uma constituiccedilatildeo sistemaacutetica de um diaacutelogo que estava sendo
travado jaacute haacute muito tempo e sobremaneira evidente no periacuteodo no qual ele compocircs sua obra
Suas contribuiccedilotildees mais significantes talvez se deem na seccedilatildeo seguinte quando aborda a
questatildeo do ldquoenterdquo
55
Lorhard tambeacutem considera o ldquoenterdquo no discurso unificador bem como na questatildeo da
ldquoessecircnciardquo afirmando dele algo produtivo ldquodotado de certa essecircnciardquo Em seu caraacuteter
distributivo o ldquoenterdquo (assim como a ldquoessecircnciardquo) eacute ou bem ldquorealrdquo ou bem ldquoracionalrdquo Ele define
o ldquoente de razatildeo ou racionalrdquo afirmando que ldquoEacute um ente de razatildeo que eacute tocado pela cogitaccedilatildeo
de uma mente singular de acordo com o modo real do ente agrave parte disto eacute nada Eacute tambeacutem
chamado ente fictiacutecio e imaginaacuteriordquo (ID IBID 5) Jaacute o ldquoente realrdquo pode se dar por meio do
discurso (λόγος) de sua proacutepria essecircncia ou ainda ser distribuiacutedo em entes primaacuterios e
secundaacuterios (estes uacuteltimos decorrentes dos primeiros) sendo ambos ldquosimplesrdquo ou ldquocomplexosrdquo
ldquoabsolutosrdquo ou ldquorespectivosrdquo ldquouniversaisrdquo ou ldquoparticularesrdquo ldquoimateriaisrdquo ou ldquomateriaisrdquo
ldquopermanentesrdquo ou ldquosucessivosrdquo
Toda a divisatildeo da ontologia de Lorhard acompanha em muitos aspectos a ontologia
derivada da filosofia grega claacutessica desde o processo dialeacutetico de questionamento da realidade
conforme a doutrina platocircnica e a divisatildeo das Categorias de Aristoacuteteles A principal distinccedilatildeo
do emprego do termo ontologia como expressatildeo e manifestaccedilatildeo das doutrinas metafiacutesicas em
Lorhard eacute o foco especiacutefico de uma ldquodoutrina dos inteligiacuteveisrdquo Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman
comentam que
Conforme Lorhard haacute uma importante dualidade entre os entes e nossa discussatildeo
racional a respeito deles Parece que ele insistiu na necessidade dessa dualidade no
sentido de que cada vez que noacutes discutimos os entes no mundo tentando classificaacute-
los tambeacutem temos que refletir sobre os conceitos usados para fazecirc-los (OslashHRSTOslashM
SCHAumlRFE E UCKELMAN OP CIT 4)
Em termos mais simples apoacutes um longo periacuteodo de aristotelismo escolaacutestico talvez tenha sido
Lorhard o primeiro a atentar para o fato de certa confusatildeo gerada dentro da metafiacutesica a respeito
da maneira pela qual se predica o ser do ente em sua participaccedilatildeo presente na realidade
56
Seria liacutecito portanto argumentar que a evidecircncia da confusatildeo de termos se deve ao fato
de Lorhard ter deslocado o ontocentrismo metafiacutesico para uma teoria dos intiligiacuteveis Ainda
conforme Oslashhrstroslashm Schaumlrfe e Uckelman a postura de Lorhard eacute diretamente influenciada pela
obra de Clemens Timpler que sustentava a mesma posiccedilatildeo a respeito da metafiacutesica desde uma
confrontaccedilatildeo direta com a filosofia de Francisco Suaacuterez Esta seria a contenda principal do
iniacutecio da modernidade responsaacutevel por conformar e enformar a metafiacutesica como ontologia tal
qual hoje ainda se a concebe Joseph S Freedman desenvolve uma anaacutelise bastante precisa da
maneira pela qual Timpler fundamentou sua postura e as consequecircncias de seu trabalho
sobretudo no que tange agrave disputa com Francisco Suaacuterez A respeito da proposiccedilatildeo ldquotudo que eacute
inteligiacutevelrdquo (omne intelligibile) o tema constitutivo da metafiacutesica Freedman (cf 2009 10-11)
comenta que Timpler provecirc uma moldura conceitual dentro da qual alguns conceitos
ontologicamente baacutesicos satildeo englobados quais sejam ldquoalgordquo (aliquid) ldquoprivaccedilatildeordquo (privatio)
ldquoessecircnciardquo (essentia) e ldquoentidaderdquo (ens) Dentro da dissoluccedilatildeo dos conceitos na obra central de
Timpler Metaphysicae systema methodicum (1604) Freedman comenta
Conforme Timpler ldquotudo aquilo que eacute Inteligiacutevelrdquo eacute dividido entre nihil (ie ldquonadardquo
ou ldquonatildeo-serrdquo) e aliquid aut est (ldquoalgordquo ou ldquoenterdquo) esta eacute basicamente a mesma
dicotomia que William Shakespeare aludiu quando ele coloca no Ato 3 Cena 1 de
Hamlet ndash alguns anos antes (c 1600) da publicaccedilatildeo do texto de Timpler sobre
metafiacutesica ndash que ldquoser ou natildeo ser estaacute eacute a questatildeo []rdquo Mas esta foi a questatildeo que
Timpler e todos os seus (conhecidos) contemporacircneos acadecircmicos aparentemente
desejaram evitar de discutir A discussatildeo da questatildeo de Shakespeare ndash e da dicotomia
de Timpler ndash poderia ter provido as bases para o levantamento de toacutepicos altamente
sensiacuteveis por exemplo 1) a relaccedilatildeo entre Deus e Nada (nihil) 2) a relaccedilatildeo entre Deus
entidade e privaccedilatildeo (ie mal) e 3) a relaccedilatildeo entre Deus e o princiacutepio de contradiccedilatildeo
(FREEDMAN op cit 12)
57
Embora estas questotildees estivessem jaacute sempre presentes dentro dos questionamentos de Timpler
e de seus contemporacircneos elas eram todavia caladas de acordo com Freedman (IDEM IBIDEM)
pela imposiccedilatildeo das instituiccedilotildees cristatildes das coisas sobre as quais se era proibido falar ou acreditar
O que perdura das apresentaccedilotildees filosoacuteficas da metafiacutesica como ontologia em Timpler
ponderando seu princiacutepio do inteligiacutevel concentra-se em primeiro lugar como o mateacuteria de
todas as disciplinas e subdisciplinas acadecircmicas e em segundo lugar como foco de disciplinas
separadas como a archeologia gnostologia hexiologia intelligentia pansophia e tecnologia
(cf ID IBID 14)
O motivo da predileccedilatildeo da questatildeo dos intiligiacuteveis como foco principal de todos os
temas concernentes ao pensamento aparece dentro da possibilidade de envolver todos os
aspectos responsaacuteveis pelos modos operativos de pensar 16 Desta forma por exemplo as
disciplinas separadas como a ldquotecnologiardquo seriam desenvolvidas para as consideraccedilotildees gerais
e universais da estrutura das disciplinas liberais (cf ID IBID 16) Embora discrimine em parte
o princiacutepio da cogniccedilatildeo a metafiacutesica tampouco envolve a loacutegica por levar em consideraccedilatildeo
apenas os princiacutepios excluindo entidades complexas que redundem no princiacutepio de contradiccedilatildeo
Em contrapartida ao sistema metoacutedico de Timpler vecirc-se em Francisco Suaacuterez um
caraacuteter muito mais ontocecircntrico As Disputationes Metaphysicae (1597) de Francisco Suaacuterez
satildeo publicadas dentro de um contexto de desarmonia e conflitos entre a teologia e a filosofia
onde os conceitos fundamentais na discussatildeo sobre o divino estavam sendo postos em questatildeo
A despeito das influecircncias de Suaacuterez e dos necessaacuterios posicionamentos poliacuteticos sua obra
parece instaurar um regulamento por meio do qual nada poderia ser legado agrave mera
inteligibilidade
16 Freedman (ID IBID 15) cita o teoacutelogo calvinista Matthias Martinius contemporacircneo de Timpler que evidencia
de maneira mais clara os motivos das proposiccedilotildees fundamentais Ele atesta que conforme esta designaccedilatildeo agrave
metafiacutesica ldquopertence tudo aquilo que eacute cognosciacutevelrdquo (de omni cogitabili) mas com certas restriccedilotildees englobando
a ldquouniversalidade das coisasrdquo (rerum universitatem) mas natildeo envolvendo disciplinas acadecircmicas especializadas
singulares ou particulares
58
As Disputationes de Suaacuterez podem ser entendidas desde uma divisatildeo da obra na qual a
primeira parte (as primeiras vinte-e-sete questotildees) se refere ao ente no sentido geral enquanto
a segunda parte (as vinte-e-sete uacuteltimas questotildees) lida com o ente particular redundando em
uma dupla divisatildeo da proacutepria metafiacutesica entre ldquometafiacutesica geralrdquo e ldquometafiacutesica especialrdquo (cf
SUAacuteREZ 2004 DOYLE 2004) Ao comentar o desenvolvimento deste aspecto da filosofia de
Suaacuterez Ludger Honnefelder ainda acrescenta
Conforme Suaacuterez a metafiacutesica lida com o conceito de ente tanto ldquoformalrdquo quanto
ldquoobjetivordquo Pelo conceito formal Suaacuterez entende o ato de conhecer do qual ldquoex unica
et prima impositionerdquo que rende uma representaccedilatildeo intencional do objeto pelo
conceito objetivo ele designa aquilo que representa intencionalmente o ato Em outras
palavras Suaacuterez natildeo assume a teoria dos conceitos caracterizada pelo paralelismo
noeacutetico-noemaacutetico de res e conceptus antes ele aceita a abordagem criacutetica de Ockham
em direccedilatildeo a interpretaccedilatildeo realiacutestica dos conceitos universais Desde que Scottus ele
mesmo natildeo depende desse paralelismo quando isto vem a dizer respeito sobre o ente
Suaacuterez substancialmente segue Scottus e aplica ldquoenterdquo para um conceito formal
primaacuterio e unificado que em virtude de sua imposiccedilatildeo representa um objetivo
primaacuterio e unificado do conteuacutedo absolutamente simples que envolve todos os entes
distintos de uma maneira indeterminada ie como ente (HONNEFELDER 2003)
Segundo a exposiccedilatildeo de Honnefelder o direcionamento da metafiacutesica de Suaacuterez iraacute redundar
em alguns pontos baacutesicos em primeiro lugar o fato de que a determinaccedilatildeo do ente transcende
a generalidade dos gecircneros em segundo que a determinaccedilatildeo natildeo pode ela mesma ser definida
podendo apenas ser explicada em relaccedilatildeo agrave existecircncia real em terceiro que toda existecircncia estaacute
sujeita agrave fundamentaccedilatildeo de disposiccedilatildeo ontoloacutegica em uacuteltimo lugar que o ente finito perdura
em um modo indeterminaacutevel de quantidade sendo o ente infinito eacute aquilo que eacute perfeito e
totalmente indivisiacutevel em si mesmo e mais real e completo (cf IDEM IBIDEM)
59
Agora bem com o fito de retomar a linha de raciociacutenio desenvolvida no capiacutetulo eacute
preciso retomar a ideia de substantivaccedilatildeo do Ocidente e a maneira pela qual esse processo se
deixar ver ao longo da histoacuteria da ontologia Martin Heidegger indica em primeiro lugar o que
ele considera como o problema fundamental pelo qual a metafiacutesica se desdobra no Ocidente
qual seja o fato de que o ldquoserrdquo natildeo eacute um ldquoenterdquo mas que todavia um foi tomado pelo outro Ele
apresenta ainda o argumento de que a transposiccedilatildeo da experiecircncia fundamental grega (conforme
apresentada tambeacutem por Charles H Kahn) sofre uma violaccedilatildeo na absorccedilatildeo latina e na
transferecircncia de conceitos de um modo de pensar para o outro Eacute dentro deste ambiente latino
que eacute possiacutevel rastrear a maneira pela qual a metafiacutesica se forma e transforma em ontologia ou
bem dentro de uma filosofia do inteligiacutevel (como em Lorhard e Timpler) ou bem como um
ontocentrismo filosoacutefico (como em Suaacuterez) Sem embargo trata-se de uma disputa em torno agraves
formas primaacuterias da discussatildeo em torno ao ldquoserrdquo e ao ldquoenterdquo Eacute possiacutevel concluir desde a
constataccedilatildeo da entificaccedilatildeo do ser ou substantivaccedilatildeo do Ocidente que a demanda pela resposta
ao problema primeiro da filosofia necessariamente a encaminha para um percurso que natildeo
poderia ser outro Mas qual eacute propriamente este problema primeiro e como se constroacutei esse
caminho Natildeo haveria outra indicaccedilatildeo senatildeo a da ciecircncia dos primeiros princiacutepios e causas de
Aristoacuteteles Jaacute na doutrina das Categorias de Aristoacuteteles eacute possiacutevel observar a confusatildeo entre
ldquoserrdquo e ldquoenterdquo A questatildeo pode ser melhor observada na proposiccedilatildeo baacutesica e amplamente
difundida da Metafiacutesica ldquoO ente se diz em muacuteltiplos significados mas sempre em referecircncia a
uma unidade e a uma realidade determinadardquo (ARISTOacuteTELES 2002 131)17 A referecircncia a uma
unidade e uma realidade determinada eacute a chave para compreender a maneira pela qual a
ontologia se torna a ciecircncia responsaacutevel por esse tema (conforme Aristoacuteteles ldquoHaacute uma ciecircncia
que considera o ente enquanto ente e as propriedades que lhe competem enquanto talrdquo ID IBID)18
17 Τὸ δὲ λέγεται μὲν πολλαχῶς ἀλλὰ πρὸς ἓν καὶ μίαν τινὰ φύσις καὶ οὐχ ὁμωνύμως ἀλλrsquo (Metafiacutesica 1003a 30-
35) 18 Ἔστιν ἐπιστήμη τις ἧ τὸ ὄν ᾗ ὄν καὶ τὰ τούτῳ ὑπάρχοντα καθ αὑτό (Metafiacutesica 1003a 20)
60
Dentro desta ciecircncia o conceito central que unifica e determina ldquoenterdquo e ldquoserrdquo eacute
apresentado como οὐσία O conceito de οὐσία (substantia substacircncia) eacute bem desenvolvido nas
Categorias entre as expressotildees que natildeo satildeo compostas quais sejam a substacircncia mesma
quantidade qualidade relaccedilatildeo lugar tempo posiccedilatildeo estado accedilatildeo ou afecccedilatildeo Ela eacute
apresentada desde duas perspectivas uma primaacuteria outra secundaacuteria A substacircncia primeira
natildeo se afirma de um sujeito nem em um sujeito mas comporta as substacircncias segundas nas
quais a forma afirma a espeacutecie e o gecircnero (ldquoserrdquo do sujeito) comportando tambeacutem os acidentes
(ldquoserrdquo no sujeito) que a eles se atribui Embora o conceito em sua primeira formulaccedilatildeo
contemple o aspecto formal bem como o elemento inteligiacutevel envolve ainda o aspecto material
em seu segundo modo natildeo podendo ser um sem o outro
As consequecircncias do desenvolvimento de uma ciecircncia responsaacutevel pelo ente enquanto
ente centralizando o conceito de substacircncia e substantivando a ideia de ldquoserrdquo por meio de seu
particiacutepio presente ldquoenterdquo satildeo o que se pode considerar como o desenvolvimento da histoacuteria do
ldquoserrdquo ou a histoacuteria da maneira pela qual o Ocidente compreende o ldquoserrdquo e a si mesmo Por meio
desta postulaccedilatildeo o ldquoτὰ ὄνταrdquo eacute posicionado no centro do pensamento ocidental Mais ainda do
que uma simples constataccedilatildeo da maneira pelo qual coube ao Ocidente pensar curioso eacute
especular o fato de que se natildeo fosse possiacutevel pensar fora da delimitaccedilatildeo do ente natildeo haveria
sequer indagaccedilatildeo alguma sobre as limitaccedilotildees ou prejuiacutezos imbuiacutedos nesta formulaccedilatildeo Sem
embargo eacute possiacutevel constatar desde os recursos apresentados (e ainda por muitos outros
caminhos que natildeo este) a necessidade incontida do ser humano ocidental eacute desenhar de maneira
niacutetida as fronteiras do pensamento e da maneira pela qual esse pensamento deve e pode ser
aplicado Resta saber apoacutes esta delimitaccedilatildeo o que haacute para aleacutem da fronteira
61
2 O CAMINHO DA NEGATIVIDADE HENEOLOGIA E MEONTOLOGIA E A
ULTRAPASSAGEM DOS LIMITES DA METAFIacuteSICA
O discurso ontoloacutegico tanto grego quanto latino personificou a atividade filosoacutefica ocidental
em larga escala A maneira pela qual a ontologia habilitava ao raciociacutenio uma seacuterie de
procedimentos facilmente verificaacuteveis nutriu seguranccedila metodoloacutegica aos assuntos
concernentes aos problemas intelectuais com os quais o ser humano fatalmente se deparava ao
longo de suas especulaccedilotildees e que reverberavam ainda na conjuntura soacutecio-pragmaacutetica Eacute neste
sentido que teria afirmado Immanuel Kant de maneira perspicaz que a razatildeo humana se
defronta com inevitaacuteveis questotildees impostas por sua proacutepria natureza19 Tanto para Aristoacuteteles
quanto para Francisco Suaacuterez aleacutem de tantos outros entrementes a importacircncia de assegurar
uma linha de raciociacutenio vaacutelida natildeo somente atribuiacutea autoridade ao argumento como tambeacutem
provia de suficiente clareza a linguagem que advogava suas doutrinas Em outras palavras
tornava-se faacutecil convencer outrem de seus pressupostos dada a indefectiacutevel loacutegica empregada
para encadear as sentenccedilas e alcanccedilar uma conclusatildeo A ontologia por meio de suas loacutegicas de
identidade e natildeo-contradiccedilatildeo (e ateacute certo ponto tambeacutem via argumento do terceiro excluiacutedo)
visava alcanccedilar tanto para afirmaccedilatildeo quanto para negaccedilatildeo a dissoluccedilatildeo de todo e qualquer
paradoxo que colocasse a mente em estado de confusatildeo e discoacuterdia Independente daquilo que
estava sendo afirmado ou negado da linha de raciociacutenio ou doutrina em jogo os procedimentos
discursivos e intelectuais eram basicamente os mesmos com variaccedilotildees conceituais maiores ou
menores dependendo da vertente Todavia prosseguia-se sempre da mesma maneira
19 Kant afirma ldquoA razatildeo humana no seu gecircnio de seu conhecimento possui o peculiar destino de ser incomodada
por questotildees que natildeo pode evitar porque elas satildeo dadas pela natureza da razatildeo mesma mas tambeacutem natildeo possuem
respostas porque elas excedem a capacidade da razatildeo humanardquo (KANT 1956 5 Criacutetica da razatildeo pura AVII-
AVIII)
62
Contudo a despeito da supremacia ontoloacutegica outras formas de pensamento foram
desenvolvidas no decorrer da histoacuteria da filosofia fossem elas similares ou totalmente opostas
Alguns pensadores especialmente radicais se dedicaram a um modo reflexivo que se distanciava
consideravelmente da estrutura ontoloacutegica Suas bases seus pressupostos e seus meacutetodos pelos
quais prosseguiam no caminho especulativo dos temas propostos (muitas vezes os mesmos dos
formuladores da ontologia claacutessica) projetavam-se de maneira consideravelmente diversa Para
eles havia uma necessidade imperativa de incluir todos os elementos presentes na estrutura da
realidade pensada em sua maacutexima possibilidade de concepccedilatildeo tanto os que satildeo quanto os que
natildeo satildeo Ao que parece por este motivo Werner Beierwaltes considera que as caracteriacutesticas
pelas quais se configuram a ontologia claacutessica satildeo sobretudo frutos da interrogaccedilatildeo pelo nexo
da identidade e da diferenccedila quer seja na afirmaccedilatildeo parmeniacutedica da natildeo legitimaccedilatildeo filosoacutefica
da alteridade quer seja na resposta platocircnica do necessaacuterio estabelecimento da diferenccedila na
constituiccedilatildeo do ldquoserrdquo em seu inteiro (cf BEIERWALTES 1989 25) Para Beierwaltes o rigoroso
conceito de unidade demandado por Platatildeo em reposta agrave univocidade do ser de Parmecircnides
resultou na possibilidade de inclusatildeo do ldquonatildeo-serrdquo relativo ao ldquoserrdquo para afirmar sua totalidade
Disto derivaria a altercaccedilatildeo originaacuteria entre identidade e diferenccedila e nisto consiste a
possibilidade de desvio do pensamento ontoloacutegico20 Sem embargo precisamente neste ponto
que acredito poder encontrar o que chamo aqui de caminho da negatividade ou a possibilidade
de inclusatildeo do oxiacutemoro no caminho de pensamento delineado pela ontologia considerando que
ele se desdobra na tradiccedilatildeo do chamado neoplatonismo e ainda na miacutestica medieval
20 Trata-se da definiccedilatildeo do natildeo-ser como alteridade apresentada no Sofista Apoacutes a discussatildeo acerca da comunidade
de gecircneros e a questatildeo do ldquomesmordquo e do ldquooutrordquo que configuram o problema da identidade e da diferenccedila Platatildeo
apresenta a hipoacutetese de compreender o ldquomovimentordquo como ldquooutrordquo do ldquoserrdquo questionando a tese parmeniacutedica a
respeito da ldquoestaticidade do serrdquo Assim Platatildeo coloca a questatildeo ldquoDevemos trabalhar nossa coragem agora para
dizer que aquilo que lsquonatildeo eacutersquo definitivamente eacute algo que possui natureza proacutepria Devemos dizer que assim como
o grande era grande o belo era belo o natildeo grande eacute natildeo grande e o natildeo belo eacute natildeo belo da mesma maneira pela
qual natildeo eacute tambeacutem foi e eacute natildeo-ser e eacute uma das formas dentre as quais satildeordquo (PLATO 1997 282 Sofista 258 c-d)
A sequecircncia do diaacutelogo questionaraacute a realidade deste natildeo-ser relativo culminando na identidade entre pensamento
e discurso abrindo a possibilidade para o discurso falso (o do sofista) e introduzindo a assunccedilatildeo do paradoxo no
seio do pensamento representando o chamado parriciacutedio aos eleatas
63
Ateacute onde eacute possiacutevel investigar o termo neoplatonismo teria sido cunhado pela primeira
vez pelo helenista e medievalista Thomas Gale nos idos de 1670 Gale foi responsaacutevel por uma
seacuterie de estudos sobre o neoplatonismo pagatildeo e cristatildeo escrevendo sobre Plotino Jacircmblico
Joatildeo Escoto Eriuacutegena Maacuteximo Confessor entre outros21 Definiccedilotildees agrave parte os primeiros
elementos responsaacuteveis por delinearem um ldquoneoplatonismo originaacuteriordquo apenas tardiamente
nomeado satildeo atribuiacutedos a Amocircnio Sacas Contudo como a figura histoacuterica de Amocircnio Sacas
eacute tatildeo envolta em controveacutersias e misteacuterios quanto a vida de Pitaacutegoras ou Soacutecrates atribui-se
diretamente a fundaccedilatildeo de uma ldquoescola neoplatocircnicardquo a Plotino disciacutepulo de Amocircnio
Muacuteltiplos debates mais ou menos coerentes envolvem os relatos sobre a relaccedilatildeo entre Plotino e
Amocircnio aleacutem de polecircmicas acerca do proacuteprio Amocircnio22 Destaca-se apenas a autoridade dos
relatos de Porfiacuterio (em sua Vida de Plotino) nos quais se considera que o meacutetodo de pesquisa
aplicado por Plotino estava profundamente ligado ao de seu mestre O conteuacutedo dos discursos
de Plotino tambeacutem teria uma iacutentima relaccedilatildeo com as tentativas de Amocircnio de unificar os diversos
planos do ser e estabelecer a derivaccedilatildeo de todas as coisas a partir do uno23 Sem embargo
Plotino teria absorvido e desenvolvido a doutrina de Amocircnio e necessariamente de Platatildeo em
suas Eneacuteadas em um movimento de exegese ao discurso platocircnico Exegese esta suscetiacutevel de
diversas interpretaccedilotildees dos caminhos por Plotino tomados e mesmo natildeo muito consensual entre
os estudiosos da obra24
21 Extraiacute estes dados de Aaron W Huges em um trabalho intitulado ldquoMedievalrdquo and the Politics of Nostalgia
Ideology Scholarship and the Creation of the Rational Jew (2012) Huges natildeo apenas investiga as origens das
designaccedilotildees do neoplatonismo mas ainda constata que a alcunha de ldquoneoplatocircnicosrdquo continuou sendo utilizada
por eruditos alematildees no seacuteculo dezenove como uma menccedilatildeo pejorativa aos ldquofalsificadoresrdquo das doutrinas de Platatildeo
e Aristoacuteteles (cf HUGES 2012) 22 Conforme Giovanni Reale em sua Storia della filosofia antica (1975-1980) Sobre este ponto especificamente
acerca das incertezas em torno agrave figura de Amocircnio confira REALE 2008 5-13 23 Esta consideraccedilatildeo eacute apresentada por Giovanni Reale com base nos relatos de Nemeacutesio em De natura hominis
(cf REALE 2008 11) Conforme Francisco B Harriet a questatildeo fundamental se encontraria na foacutermula ldquoestaacute mais
aleacutem do intelecto e da essecircnciardquo (ἐπέκεινα νοῦϛ καὶ οὐσίας) conforme a formulaccedilatildeo de Oriacutegenes de Alexandria
em Contra Celsum (fons ex quo initium totius intellectualis naturae uel mentir est) presente em Plotino (Eneacuteadas
V 1 8 e VI 8 16) e derivada do ciacuterculo de Amocircnio (cf HARRIET 2012 153) 24 Sobre a questatildeo da exegese Marcus Reis Pinheiro (em Plotino exegeta de Platatildeo e Parmecircnides 2007)
argumenta que natildeo se pode reduzir a exegeacutetica agrave mera interpretaccedilatildeo dos diaacutelogos de Platatildeo e outros escritos Trata-
se antes do desdobramento de um discurso muito antigo onde ldquo() fazer exegese () natildeo eacute interpretar
objetivamente os textos mas caminhar rumo aos niacuteveis superiores junto com os antigosrdquo (P INHEIRO 2007 80)
64
Neste fluxo talvez o mais cabiacutevel usual e conhecido de todos os estabelecimentos de
um ldquoponto de partidardquo seja o do claacutessico artigo Jean Trouillard Le Parmeacutenide de Platon et son
interpretation neacuteoplatonicienne (1973) onde o neoplatonismo eacute pensado desde a busca da
doutrina originaacuteria de Platatildeo principalmente a partir de uma releitura de seu diaacutelogo
Parmecircnides Todavia a maneira pela qual eacute possiacutevel explanar esta releitura levanta suspeitas
sendo necessaacuterio ponderar em quais formas a exegese plotiniana converge ou diverge das
tentativas de uma interpretaccedilatildeo das doutrinas originaacuterias de Platatildeo Mais ainda estaacute tambeacutem
em jogo a autoridade de apontar que existam de fato doutrinas originaacuterias havendo ainda
abertura para questionar a fiabilidade e o suposto peso das chamadas ldquodoutrinas natildeo-escritasrdquo25
Seja como for interessa sobretudo destacar como com as Eneacuteadas de Plotino o pensamento
filosoacutefico experimenta um movimento iacutempar em relaccedilatildeo agravequilo que vinha sendo apresentado
Para Ciacutecero Cunha Bezerra eacute possiacutevel elencar alguns pontos que evidenciam de maneira
clara a renovaccedilatildeo do neoplatonismo Destaca-se em primeiro lugar a junccedilatildeo entre os elementos
aristoteacutelicos e pitagoacutericos em siacutentese com uma perfeita sintonia entre o platonismo acadecircmico
e as ldquodoutrinas natildeo-escritasrdquo Ademais a ldquohierarquizaccedilatildeordquo do real a partir da qual todos os
graus satildeo derivados desde o uno permite uma sistematizaccedilatildeo do platonismo anterior Por este
motivo tende-se agrave leitura conforme a qual o neoplatonismo possuiria um sistema ldquomonopolarrdquo
frente a um suposto ldquobipolarismordquo platocircnico Por fim haacute ldquo() o fim uacuteltimo do processo de
conhecimento que para o neoplatocircnico eacute a uniatildeo plena com Deus (fugir soacute ao soacute) uma uniatildeo
que tem como marca a supressatildeo (aphaiacuteresis) de todo saber e dizerrdquo (BEZERRA 2006 57)
Dentre os pontos apresentados interessa-me particularmente o uacuteltimo (evidente consequecircncia
dos trecircs primeiros) no qual o neoplatonismo aparece como uma ldquosupressatildeo de todo saber e
dizerrdquo
25 Haacute uma interessante e profunda discussatildeo acerca do tema na tradiccedilatildeo de leitores e inteacuterpretes do platonismo e
do neoplatonismo a respeito deste toacutepico Ciacutecero Cunha Bezerra (em Compreender Plotino e Proclo 2006) aborda
o tema abrindo uma interlocuccedilatildeo com a obra Platone alla ricerca della spienza segreta de Giovanni Reale e ainda
com as investigaccedilotildees de W K C Guthrie e a chamada Escola de Tuumlbingen (cf BEZERRA 200617-24)
65
O senso comum ocidental regula a atividade filosoacutefica como um progresso ininterrupto
rumo ao acuacutemulo de conhecimento e dissoluccedilatildeo dos problemas Curioso agora eacute pensar a
maneira pela qual uma doutrina filosoacutefica pode suprimir o saber e o dizer ao inveacutes de
acrescentar Mas eacute apenas possiacutevel atingir a compreensatildeo necessaacuteria desta supressatildeo uma vez
esclarecido o que eacute propriamente o princiacutepio negativo do pensamento de Plotino Para isto natildeo
se pode perder de vista as duas questotildees que levariam agrave construccedilatildeo do pensamento de Plotino
quais sejam ldquo() o problema religioso (que corresponde agrave busca de compreensatildeo do destino
da alma assim como sua restauraccedilatildeo) e o problema filosoacutefico relativo agrave explicaccedilatildeo racional da
realidade ()rdquo (IDEM IBIDEM 66)26 ponderando ainda que em Plotino ambas estatildeo perfeitamente
inter-relacionadas Para atingir este entendimento todavia eacute necessaacuterio analisar as chamadas
trecircs hipoacutestases de Plotino presentes em suas Eneacuteadas
O conjunto de circunstacircncia que acompanham a formulaccedilatildeo do pensamento de Plotino
eacute todavia aquele anteriormente citado apresentado por Werner Beierwaltes que remete agrave
contenda entre Parmecircnides e Platatildeo Contextualizar a disputa Parmecircnides-Platatildeo da qual
derivam centralmente as hipoacutestases de Plotino natildeo eacute necessariamente complicado embora
interpretaacute-la e desde aiacute desdobrar um novo caminho reflexivo seja uma tarefa bastante
trabalhosa A demanda especulativa eacute altiacutessima e envolve uma bibliografia excessivamente
extensa e complexa Contudo como o interesse aqui eacute a apresentaccedilatildeo dos aspectos centrais do
pensamento de Plotino e como deles redunda uma nova postura e atitude filosoacuteficas o trabalho
fica menos penoso Portanto para colocar em relevo as hipoacutestases de Plotino eacute importante ao
menos demonstrar de forma simples os pontos originais dos quais elas derivam seja em
Parmecircnides seja em Platatildeo (e ateacute certo ponto tambeacutem no neopitagorismo e em Aristoacuteteles
embora esta tarefa exija um pouco mais e seja um pouco mais complicada de rastrear) Para
alcanccedilar este objetivo torna-se imperioso retornar brevemente a Parmecircnides
26 Esta hipoacutetese eacute destacada por Bezerra diretamente da obra de Eacutemile Breacutehier La Philosophie de Plotin (1928)
66
O segundo fragmento do poema Sobre a Natureza de Parmecircnides catalisa os principais
argumentos do conflito permitindo compreender quais satildeo os pontos mais problemaacuteticos do
estabelecimento de sua doutrina na tradiccedilatildeo Aleacutem da Fiacutesica de Simpliacutecio as fontes pelas quais
se estruturou esse fragmento adveacutem dos Comentaacuterios ao Timeu e Comentaacuterios ao Parmecircnides
de Proclo Os oito versos contidos no fragmento centralizam a doutrina de Parmecircnides como
foi herdada pela tradiccedilatildeo a partir da manifestaccedilatildeo das duas uacutenicas vias possiacuteveis para o
pensamento quais sejam a via da verdade e a via da aparecircncia O fragmento diz
εἰ δ᾽ ἄγ᾽ ἐρὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας
αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι
ἡ μέν ὄπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι
πειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ)
ἡ δ᾽ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι
τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν
οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐόν (οὐ γὰρ ἀνυστόν)
οὔτε φράσαις
(KIRK E RAVEN 1957 269)
Pois bem agora vou eu falar e tu presta atenccedilatildeo ouvindo a palavra
acerca das uacutenicas vias de questionamento que satildeo a pensar
uma para o que eacute e como tal natildeo eacute para natildeo ser
eacute o caminho de persuasatildeo ndash pois Verdade o segue ndash
outra para o que natildeo eacute e como tal eacute preciso natildeo ser
esta via indico-te que eacute uma trilha inteiramente inviaacutevel
pois nem ao menos se reconheceria o natildeo ente pois natildeo eacute realizaacutevel
nem tampouco se mostraria
(Traduccedilatildeo de Fernando Santoro cf PARMEcircNIDES 200612)
67
O caminho da verdade que eacute e natildeo eacute para natildeo ser (ἡ μέν ὄπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ
εἶναι) e o caminho da aparecircncia que natildeo eacute e natildeo pode ser (ἡ δ᾽ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών
ἐστι μὴ εἶναι) satildeo via de regra estabelecidos como a manifestaccedilatildeo maacutexima da loacutegica ocidental
e berccedilo dos princiacutepios de identidade e natildeo-contradiccedilatildeo A partir deles eacute possiacutevel natildeo soacute
estabelecer uma identidade (o ser eacute representada pela claacutessica foacutermula A=A) como ainda
verificar a veracidade dessa mesma identidade ndash natildeo eacute possiacutevel que o ser sendo natildeo seja
ilustrado pela foacutermula not (A ˄ notA) um tanto esdruacutexula sem duacutevidas27
O legado de Parmecircnides eacute marcado em sua difusatildeo pelos chamados ldquofiloacutesofos eleatasrdquo
sobretudo por Zenatildeo de Eleacuteia Seus argumentos contra a pluralidade (cf KIRK E RAVEN OP CIT
288-291) e contra o movimento (cf IDEM IBIDEM 291-297) se tornaram assaz populares
sobretudo no que concerne aos paradoxos da flecha no estaacutedio e de Aquiles e a tartaruga Aleacutem
da constataccedilatildeo da univocidade do ser presente em toda linha de pensamento parmeniacutedica28 O
resultado imediato dos exerciacutecios de raciociacutenio de Zenatildeo demonstraram a formataccedilatildeo de uma
estaticidade do ser e da realidade em torno alertando para a ilusatildeo do movimento e alteraccedilotildees
na substacircncia do real O momento no qual Platatildeo compotildee seu diaacutelogo Parmecircnides retrata
justamente o evento no qual tanto Parmecircnides quanto Zenatildeo estatildeo no aacutepice da divulgaccedilatildeo de
sua doutrina dialogando com um ainda jovem Soacutecrates Trata-se de um dos momentos mais
emblemaacuteticos da histoacuteria da filosofia ocidental
27 Haacute uma discussatildeo em torno a uma suposta terceira via aquela na qual o que ldquoeacuterdquo eacute e natildeo eacute ao mesmo tempo
baseada no sexto fragmento onde se lecirc ldquoοἶς τὸ πέλειν τε καὶ οὐκ ταῦτὸν νενόμισταιrdquo (KIRK E RAVEN OP CIT 271)
Embora ainda em um sentido pejorativo de uma via do engano emerge a possibilidade de que algo seja e natildeo seja
Mesmo que natildeo seja profiacutecuo para o andamento da tese se fixar na discussatildeo vale ao menos citaacute-la sobretudo
ponderando os apontamentos feitos por Jean Beaufret acerca da interpretaccedilatildeo de Martin Heidegger da terceira via
como a via dos entes Ao que cabe no propoacutesito do trabalho basta apenas atentar para como a tensatildeo entre as duas
primeiras vias jaacute foram suficientes para levantar controveacutersias Eacute possiacutevel especular ainda que jaacute na primeira via
aparece tambeacutem uma possibilidade de que o ser seja e natildeo seja quando se afirma que ele ldquoeacute e natildeo eacute para natildeo serrdquo
Seria possiacutevel conectar o ldquonatildeo eacuterdquo da sentenccedila como o natildeo-ser relativo necessaacuterio agrave constituiccedilatildeo da inteireza do
ser como argumentado no Sofista de Platatildeo 28 O que significa afirmar que natildeo existem ldquograusrdquo do ser uma coisa ou eacute real (ser) ou irreal (nada) (cf BEZERRA
2003 47)
68
As chamadas ldquotrecircs hipoacutetesesrdquo do Parmecircnides de Platatildeo satildeo apresentadas
respectivamente nas passagens 137c-142a 142b-157a e 157b-159a Elas constituem a mateacuteria
bruta para a elaboraccedilatildeo das trecircs hipoacutestases de Plotino Todas as trecircs hipoacuteteses de Platatildeo satildeo
apresentadas pela personagem do entatildeo velho Parmecircnides arguindo Soacutecrates a respeito da
viabilidade de cada argumento Elas se apresentam ainda a partir do problema constituiacutedo pela
questatildeo da unidade e da multiplicidade A pulsatildeo do jovem Soacutecrates ao inquirir Parmecircnides a
respeito de sua teoria fazendo-o apresentar as trecircs hipoacuteteses parte da colocaccedilatildeo de Parmecircnides
a respeito da assunccedilatildeo da multiplicidade por um lado e da impossibilidade do muacuteltiplo por
outro Parmecircnides eacute levado pelo jovem Soacutecrates a confirmar natildeo apenas sua teoria mas sua
metodologia e plano doutrinaacuterio
Para confrontar a teoria parmeniacutedica Platatildeo desenvolve a primeira hipoacutetese Ela
consiste basicamente na afirmaccedilatildeo de o que o ldquouno eacute unordquo ou seja se haacute uno natildeo eacute possiacutevel
que o uno seja muacuteltiplo Por este motivo ele natildeo pode conter partes nem tampouco ser um
inteiro (composto por partes) Tambeacutem natildeo pode ter um comeccedilo nem um meio nem um fim
natildeo possuindo nada que o limite ou delimite Tampouco pode possuir um formato nem se
encontrar em lugar algum nem estar se movimentando de um lugar para outro (porque entatildeo
assumir-se-ia algo outro que natildeo o uno pelo qual ele se movimenta) e nem em si mesmo
(porque com isto se movimentaria entre suas partes que por definiccedilatildeo natildeo pode conter) Natildeo
pode ainda ser diferente de si mesmo nem o mesmo que si mesmo porque assumindo sua
diferenccedila se assumiria algo outro que natildeo o uno ndash e assumindo sua identidade se assumiria que
haacute algo a saber a proacutepria identidade predicada do uno e que natildeo eacute o uno Natildeo pode tambeacutem
estar no tempo nem ter surgido em momento algum Por fim o uno natildeo pode possuir um nome
ou seja eacute inominaacutevel natildeo podendo ser objeto de opiniatildeo nem conhecimento nem percepccedilatildeo
caso contraacuterio assumir-se-ia um ser ou essecircncia distintos do uno pelo qual se alcanccedila seu
entendimento
69
Necessariamente a primeira hipoacutetese leva a uma outra questatildeo ou ao levantamento de
uma segunda hipoacutetese qual seja o uno eacute e quais satildeo as consequecircncias disto para ele mesmo
Essa hipoacutetese eacute consideravelmente mais complicada e envolve algumas nuances bastante
delicadas O argumento geral se concentra na ideia de que a proposiccedilatildeo uno eacute envolve
necessariamente a ideia de essecircncia do uno O grande problema em afirmar que o uno participa
da essecircncia de uno eacute justamente estabelecer a diferenccedila entre uma coisa e outra ou seja torna-
se inevitaacutevel afirmar que existem duas coisas a saber o uno e a essecircncia do uno O embargo
consiste na simples afirmaccedilatildeo uno eacute em contraposiccedilatildeo agrave afirmaccedilatildeo uno uno Logo desdobram-
se dois unos um uno que eacute e um uno e o ser O primeiro como afirmaccedilatildeo do proacuteprio uno o
segundo como assunccedilatildeo da participaccedilatildeo dele mesmo em sua essecircncia A reaccedilatildeo imediata agrave
afirmaccedilatildeo de que o uno eacute caminha em sentido contraacuterio das negaccedilotildees da primeira hipoacutetese
Sem embargo jaacute neste momento mesmo antes da apresentaccedilatildeo da terceira hipoacutetese
torna-se possiacutevel fazer algumas consideraccedilotildees Em primeiro lugar a hipoacutetese de que o ldquouno eacute
unordquo a despeito da aplicaccedilatildeo da categoria do ser para a predicaccedilatildeo da sentenccedila direciona o
pensamento para um caminho no qual natildeo haacute outra possibilidade senatildeo a completa negaccedilatildeo de
tudo que possivelmente competiria ao uno levando mesmo agrave dissoluccedilatildeo do eacute presente na frase
Em segundo lugar a hipoacutetese de que o ldquouno eacuterdquo desta vez com ecircnfase no eacute gera o movimento
oposto de afirmaccedilatildeo de tudo o que porventura poderia ser predicado de qualquer elemento
Estas duas hipoacuteteses (como se veraacute na apresentaccedilatildeo das hipoacutestases de Plotino)
discriminam perfeitamente as duas vias aqui cogitadas quais sejam uma via afirmativa da
ontologia claacutessica na afirmaccedilatildeo das coisas por meio da qual percebe-se compreende-se e se
faz ciecircncia e uma via negativa do que seraacute ulteriormente nomeada henologia na qual a maacutexima
especulaccedilatildeo acerca da natureza do uno natildeo leva senatildeo agrave negaccedilatildeo absoluta ndash as caracteriacutesticas
desta negaccedilatildeo ou negatividade ver-se-aacute mais claramente nas Eneacuteadas
70
A terceira hipoacutetese do Parmecircnides de Platatildeo eacute apresentada no diaacutelogo muito brevemente
Ela abarca ambos os aspectos centrais das duas primeiras hipoacuteteses sugerindo que o uno eacute e
natildeo eacute imputando a categoria de mudanccedila em sua natureza Trata-se de diagnosticar o fato de
que sendo o uno uno por um lado e muacuteltiplo por outro participa e natildeo participa de sua
essecircncia vem a ser e deixa de ser ponderando ainda que esta mudanccedila se daacute no instante Sendo
assim tanto o movimento de retorno ao uno quanto o movimento de procedecircncia a partir do
uno daacute-se ao mesmo tempo em uma reciprocidade na qual tanto a geraccedilatildeo da multiplicidade
configura o uno nem como uno nem como muacuteltiplo quanto a reuniatildeo da multiplicidade ao
uno tampouco configura o uno nem como uno nem como muacuteltiplo ndash como se a proacutepria ideia
de uno flutuasse em um ldquoinstante incapturaacutevelrdquo
Natildeo haacute duacutevida que o raciociacutenio apresentado por Platatildeo constitui um dos maiores
desafios especulativos da histoacuteria do pensamento ocidental seja nos esforccedilos empreendidos
pela loacutegica de compreensatildeo seja pelo desafio meditativo aflorado da temaacutetica proposta Neste
contexto Marcus Reis Pinheiro indica a interpretaccedilatildeo de Jean-Luc Brisson (Annexe I Les
interpretation du Parmeacutenide dans lrsquoAntiquiteacute presente na ediccedilatildeo Parmenide Paris Flamarion
1999) conforme a qual ldquo() Plotino estaacute no grupo dos inteacuterpretes do diaacutelogo que natildeo o vecirc
apenas como um exerciacutecio loacutegico mas que procura determinar a que tipo de objeto se refere o
diaacutelogordquo (PINHEIRO 2006 3) Seguindo esta linha de raciociacutenio o importante seria portanto
compreender como Plotino absorve a temaacutetica Considerar uma interpretaccedilatildeo para aleacutem da mera
concatenaccedilatildeo loacutegica de conceitos eacute basicamente absorver o sentido de cada termo Isto significa
natildeo apenas expor as formataccedilotildees daquilo que foi introduzido no discurso como ldquounordquo mas
ainda entender de que forma a simples possibilidade de concebecirc-lo no raciociacutenio implica em
uma reduccedilatildeo draacutestica das estruturas hieraacuterquicas do real ou seja constitui uma compreensatildeo
da realidade que possui como primeiro princiacutepio algo que coloca o pensamento em um niacutevel de
paradoxo que necessariamente denota a assunccedilatildeo de uma impossibilidade loacutegica
71
As trecircs hipoacutestases de Plotino seratildeo teoricamente encadeadas de maneira semelhante agraves
hipoacuteteses de Platatildeo embora natildeo sequencialmente Contudo a primeira (e talvez a mais
complexa) jaacute iniciaraacute o movimento de negatividade em direccedilatildeo agraves seguintes estabelecendo os
conflitos presentes na ideia de uno (τὸ ἑν) Plotino considera que ldquoO Uno eacute todas as coisas e
nenhuma delas a fonte para todas as coisas eacute nenhuma das coisas e ainda eacute todas as coisas em
um sentido transcendental ndash todas as coisas para assim dizer tendo seu retorno agrave isto ()rdquo
(PLOTINUS 1969 380 Eneacuteadas V 2 1) Ele ainda assevera a inefabilidade inerente ao uno
conforme a qual todo discurso eacute jaacute sempre indireto e impreciso Apenas mediante referecircncias
como ldquotodas as coisas e nenhuma delasrdquo torna-se possiacutevel acenar para o uno ndash e apenas isto
acenar Entretanto esta eacute para Plotino a uacutenica maneira de compreender a estrutura da realidade
como tal pelo simples motivo de que ldquoEacute precisamente porque haacute nada no Uno que todas as
coisas derivam dele para que o Ser possa ser trazido a fonte natildeo pode ser o Ser mesmo mas o
gerador do Ser ()rdquo (IDEM IBIDEM) que natildeo pode possuir a natureza do ser mas deve se constituir
como outro dele qual seja natildeo-ser ou mesmo nada Plotino prossegue ainda dizendo
ldquoBuscando nada possuindo nada faltando nada o Uno eacute perfeito e em nossa metaacutefora
transborda e sua exuberacircncia produz o novo este produto torna-se novamente seu progenitor
e eacute preenchido e se torna seu contemplador e Princiacutepio-Intelectualrdquo (ID IBID) A passagem
altamente especulativa denota que tudo eacute contemplaccedilatildeo dotada de uma atividade suprema que
comeccedila pelo uno e retorna a ele no simples olhar que natildeo implica nem em complexidade nem
em necessidade29 Mediante uma reflexatildeo propriamente loacutegica a contemplaccedilatildeo por meio da
qual o uno se desdobra e gera todas as coisas se daacute devido a sua proacutepria perfeiccedilatildeo ou seja o
uno natildeo eacute coisa nenhuma e necessariamente engendra todas as coisas porque eacute completo
porque eacute a totalidade de tudo e para isto eacute necessaacuterio que seja ele mesmo e ainda outro de si
29 Estes apontamentos satildeo de John Bussanich que ainda explica que ldquo() a doutrina plotiniana da derivaccedilatildeo do
Uno eacute lsquoprocessatildeorsquo o adjetivo que melhor qualifica isto eacute lsquocontemplativorsquo o movimento no qual a hipoacutestase eacute
gerada coincide com a contemplaccedilatildeo De fato o ponto cardial a chave para a estrutura da processatildeo da metafiacutesica
plotiniana era contemplaccedilatildeo ou theocircriardquo (BUSSANICH 1999 32)
72
Ciacutecero Cunha Bezerra apresenta a organizaccedilatildeo feita por Pierre Aubenque30 conforme a
qual haveriam trecircs esferas argumentativas no desenvolvimento da primeira hipoacutestase uma
loacutegica outra epistemoloacutegica e uma metafiacutesica Bezerra cita uma das passagens mais conhecidas
de Plotino que diz ldquoPrivado de unidade uma coisa cessa de ser aquilo pelo qual eacute chamada
um exeacutercito natildeo eacute um exeacutercito se natildeo eacute uno um coro um rebanho devem ser uma coisa soacuterdquo
(ID IBID 612 VI 9 1) sobretudo para enfatizar o aspecto loacutegico pelo qual Plotino ldquosubverterdquo
a resposta aristoteacutelica da entidade da coisa pela definiccedilatildeo substancial Bezerra argumenta
dizendo que ldquo() Plotino por uma exigecircncia loacutegica jaacute que o princiacutepio originaacuterio natildeo pode
possuir qualquer caraacuteter dos seres relativiza a ontologia e estabelece a henologia como
fundamento de todo serrdquo (BEZERRA OP CIT 67) O problema epistemoloacutegico sobressalta a
ultrapassagem necessaacuteria de todo conhecimento para alcanccedilar tal niacutevel de especulaccedilatildeo ao passo
que a questatildeo metafiacutesica retorna aos trechos anteriormente citados no qual a geraccedilatildeo de todas
as coisas soacute pode derivar de coisa nenhuma
O emprego do termo henologia define aqui o primeiro passo para o caminho da
negatividade Institui-se como negativo o princiacutepio que jaacute natildeo mais decorre de um rendimento
ldquopositivordquo por meio do qual se pode construir um conhecimento soacutelido e confiaacutevel mas uma
base que possui caracteriacutesticas muito diversas e que desafiam a capacidade loacutegica Por este
motivo a primeira demanda eacute jaacute a superaccedilatildeo intelectual (ἐπέκεινα νοῦϛ καὶ οὐσίας) que deve
assumir que o comeccedilo de todas as coisas eacute incoacutegnito O discurso eacute indireto e metafoacuterico porque
somente assim eacute possiacutevel indicar sua possibilidade de ser pensado ndash entendendo principalmente
que o ldquoser pensadordquo natildeo indica nem conota existecircncia porque o ser e a existecircncia mesmo satildeo
ainda posteriores agrave ideia de uno As segunda e terceira hipoacutestases portanto natildeo podem ser
concebidas se de antematildeo natildeo for assumida a negatividade do primeiro princiacutepio
30 Pierre Aubenque ldquoPlotin et le deacutepassement de lrsquoontologie grecque classiquerdquo Colloque des Royaumont Le
Neacuteoplatonisme Paris Centre National de Recherche Scientifique 1971 101-110
73
Somente por meio da completude da pensamento henoloacutegico de Plotino fica possiacutevel
deixar claro os termos pelos quais se destaca a negatividade como ldquosupressatildeo de todo saber e
dizerrdquo Os motivos contudo jaacute satildeo bastante evidentes se levado em consideraccedilatildeo que a
inefabilidade do uno indica que sobre ele natildeo se pode falar e ele natildeo se pode conhecer Portanto
o neoplatonismo necessariamente parte do pressuposto de que o ponto de partida e o ponto de
chegada do pensamento satildeo ambos uma caminhada rumo agrave supressatildeo Ao explicar a processatildeo
por meio da qual o uno engendra todas as coisas destaca-se uma consideraccedilatildeo importante se
os seres engendram o eternamente perfeito engendra eternamente algo inferior a si mesmo por
isto mesmo ldquoEacute preciso observar que a processatildeo plotiniana implica necessariamente uma
negaccedilatildeo A negaccedilatildeo eacute uma condiccedilatildeo a priori no sentido de que o engendrado deve assimilar-se
ao seu gerador mas mantendo uma resistecircncia que diferencia um do outrordquo (IDEM IBIDEM 74)
Em outras palavras a geraccedilatildeo do uno e a abertura da segunda hipoacutestase soacute eacute possiacutevel por meio
da introduccedilatildeo da diferenccedila A diferenccedila eacute o que aqui constitui o passo fundamental da sequecircncia
do pensamento neoplatocircnico O ser eacute na medida em que eacute diferente do uno e por ele eacute
engendrado justamente porque apenas a diferenccedila pode advir do eternamente perfeito
Assim sendo resta saber como o uno engendra e o quecirc ele engendra O que significa
ainda resgatar a pergunta anteriormente colocada por Parmecircnides e Platatildeo como do uno
provem o muacuteltiplo Esta questatildeo eacute sem sombra de duacutevidas uma das mais complexas do sistema
neoplatocircnico em geral A ideia de processatildeo (πρόοδος) pressupotildee uma emanaccedilatildeo a partir do
uno na qual todas as outras coisas satildeo engendradas o que significa dizer que se trata de um
movimento que abarca a realidade em toda sua estrutura na qual ldquo() difere completamente de
um mecanicismo dado que estaacute mais aleacutem de toda contingecircncia e necessidade Nesse sentido
natildeo se pode dizer que se trata de algo que implique um livre-arbiacutetrio ou uma produccedilatildeo artesanalrdquo
(ID IBID 76) Ou seja o uno natildeo necessita de nada e por isto mesmo daacute origem a tudo A
espontaneidade (se eacute que se pode utilizar tal termo) eacute natural e natildeo possui um motor
74
Ao mesmo tempo tudo aquilo que eacute gerado pelo uno possui um poder de conversatildeo
(επιστροφή) um voltar-se sobre si mesmo e voltar-se em direccedilatildeo ao uno (cf ID IBID 76)
movimentada pelo autoconhecimento daquilo que eacute Este autoconhecimento soacute eacute possiacutevel
todavia pelo proacuteprio movimento de emanaccedilatildeo conforme o qual se identifica ldquoserrdquo e
ldquopensamentordquo como havia postulado Parmecircnides e eacute justamente este o momento no qual
emerge a segunda hipoacutestase qual seja a inteligecircncia (νοῦϛ)
As caracteriacutesticas pelas quais a inteligecircncia se mostra desde a compreensatildeo da processatildeo
satildeo a chave para o sentido da filosofia de Plotino Sobre isto Thomas Alexander Szlezaacutek
escreve ldquoNatildeo persegue o Uno com esforccedilo deliberado mas espera tranquilamente ateacute que ele
apreccedila Assim a alma soacute recebe unicamente o Uno eacute uma volta do lsquosolitaacuterio para o solitaacuteriorsquordquo
(SZLEZAacuteK 2010 11) acrescentando ainda que ldquoO caminho que conduz ao Uno natildeo passa poreacutem
pela praacutetica asceacutetica de um anacoreta mas pela apropriaccedilatildeo conceitual do mundo inteligiacutevel
()rdquo (IDEM IBIDEM) Os termos inteligecircncia e inteligiacutevel referem-se aqui a uma definiccedilatildeo
particular que compreende o nuacutecleo da segunda hipoacutestase Bezerra escreve acerca deste ponto
ldquoPlotino no tratado oitavo da terceira Eneacuteada define a Inteligecircncia natildeo como uma coisa
particular mas como algo universal e muacuteltiplordquo (BEZERRA OP CIT 78) explicando que eacute
ldquoUniversal porque abarca todos os seres e muacuteltiplo porque coexistem em sua natureza
simultaneamente o inteligente (Inteligecircncia) e o inteligiacutevel (ser) ()rdquo (IDEM IBIDEM) Plotino
encadeia seu raciociacutenio elucidando como o Princiacutepio-Intelectual eacute universal e iniacutecio de todas as
coisas de maneira que ldquo() assim todas as coisas e o Princiacutepio de tudo deve ser tal que cada
parte dele seja universal eacute todas coisas do contraacuterio conteria partes que natildeo satildeo o Princiacutepio-
Intelectualrdquo (PLOTINUS OP CIT 246 Eneadas III 8 8) Conclui a partir de entatildeo que ldquo() este
Ser eacute ilimitado e que em tudo que flui dele natildeo haacute reduccedilatildeo nem em sua emanaccedilatildeo desde que eacute
o universo inteiro nem em si mesmo o ponto de partida desde que natildeo haacute reuniatildeo de partes
()rdquo (IDEM IBIDEM 246-247) Fica claro o caraacuteter ascendente e natildeo descendente da processatildeo
75
Plotino explica que ldquo() um ser desta natureza natildeo eacute existecircncia primaacuteria deve existir a
partir daquilo do qual transcende o Ser (o Absoluto) ()rdquo (ID IBID 247) e prossegue dizendo
que ldquo() Pluralidade eacute mais tardia que Unidade O Princiacutepio-Intelectual eacute um nuacutemero (=a
expressatildeo de uma pluralidade) e o nuacutemero deriva da unidade a fonte de um nuacutemero como este
deve ser o autecircntico Unordquo (ID IBID) A transcendecircncia que evidencia o caraacuteter progressivo
pode ainda ser entendida desde a ideia de que ldquo() ao contemplar-se a si mesmo a Inteligecircncia
se une ao objeto contemplando uma unidade entre o eu e o ser universal que supera toda
alteridade ()rdquo (BEZERRA OP CIT 79) Com isto eacute possiacutevel resgatar ainda o sentido pelo qual
Beierwaltes destaca a diferenccedila como princiacutepio pelo qual haacute um desvio de Plotino em relaccedilatildeo
agrave ontologia claacutessica (cf BEIERWALTES OP CIT 58) Contudo como se compreende esta
contemplaccedilatildeo eacute o que levaraacute agrave terceira hipoacutestase a alma (ψυχή) Bezerra explica recapitulando
os passos anteriores ldquoVimos anteriormente que o Uno e o Muacuteltiplo apresentam-se sob duas
maneiras distintas a) Uno e natildeo muacuteltiplo (I hipoacutetese) b) Uno-Muacuteltiplo (II hipoacutetese) A alma eacute
portanto ao mesmo tempo uno e muacuteltiplordquo (BEZERRA OP CIT 82) o que significa evidenciar
que ela representa uma distinccedilatildeo radical e afastamento do primeiro princiacutepio o uno
Ainda no oitavo tratado da terceira Eneacuteada Plotino aborda a natureza enquanto ato
criador compreendendo o fenocircmeno a partir de uma tensatildeo entre um Princiacutepio-Racional inerte
e um Princiacutepio-Natural em movimento (cf PLOTINUS OP CIT 239-240 Eneadas III 8 2) que
responderia ainda ao conflito entre unidade e multiplicidade e ainda agrave questatildeo entre tempo e
eternidade Plotino indaga como a natureza responderia ao questionamento colocando
literalmente o argumento na fala da natureza que diria que ldquoOs matemaacuteticos desde suas visotildees
desenham suas figuras mas eu desenho nada eu contemplo as figuras do material do mundo
tomando os seres como eu os sinto desde minha contemplaccedilatildeordquo (IDEM IBDEM 241) chegando a
conclusatildeo de que ldquo() o que noacutes conhecemos por Natureza eacute uma Alma cria de uma Alma
ainda anterior () uma visatildeo interna de si mesmardquo (ID IBID)
76
A visatildeo interna de si mesma mencionada por Plotino prove o entendimento de que ldquoA
alma portanto autodetermina-se e ao mesmo tempo autofragmenta-se pois ao separar-se do
todo volta-se maravilhada para o particularrdquo (BEZERRA OP CIT 84) Disto adveacutem a geraccedilatildeo do
tempo como desordem introduzida no equiliacutebrio primordial e ao mesmo tempo a introduccedilatildeo
de uma ordenaccedilatildeo mediada pela conversatildeo (επιστροφή) ndash pelo retorno maravilhado ao uno ou
uniatildeo ao fundamento por meio da contemplaccedilatildeo
Agora bem toda esta inevitaacutevel breve introduccedilatildeo ao pensamento de Plotino deve
direcionar para uma postura distinta daquela antes observada com a ontologia claacutessica e o
pensamento metafiacutesico Que postura eacute esta Ou melhor qual o caminho que se abre a partir das
trecircs hipoacutestases plotinianas Este eacute o momento no qual o caminho da negatividade comeccedila a se
encorpar e mostrar seu caraacuteter decisivo na constituiccedilatildeo do desvio intelectual do neoplatonismo
Gostaria de fazer um recorte especiacutefico do nono tratado da sexta Eneacuteada para alcanccedilar este
esclarecimento
Plotino reconstitui seu caminho a partir da afirmaccedilatildeo ldquoEacute em virtude da unidade que os
seres satildeo seresrdquo (PLOTINUS OP CIT 614 Eneadas VI 9 1) O que significa afirmar que sem a
unidade natildeo se pode considera que algo seja o que seja Em termos mais simples se nomeio
braccedilo pernas cabeccedila razatildeo sensibilidade entre outras muacuteltiplas singularidades presentes em
um ser humano mas natildeo as congrego em uma unidade pela qual afirmo ldquoser humanordquo que
compreende todas as particulares em questatildeo inexoravelmente perco de vista seu sentido Por
isto ldquoQualquer coisa que possa ser descrita como uma unidade o eacute no preciso grau pelo qual
sustenta um ser caracteriacutestico quanto menor ou maior o niacutevel do ser menor ou maior seraacute a
unidaderdquo (IDEM IBIDEM) Portanto alma seria (em razatildeo de sua distinccedilatildeo da unidade mesma)
uma grande unidade em proporccedilatildeo e na autenticidade do ser e assim ldquoUnidade absoluta natildeo eacute
eacute a alma e a primeira alma a unidade em algum sentido concomitante ()rdquo (ID IBID) deixando
ver como a unidade natildeo eacute e eacute
77
Desta forma pode-se compreender que o uno natildeo pode ser a totalidade dos seres que
anularia sua unidade nem tampouco o ldquoPrinciacutepio-Intelectualrdquo pelo qual as coisas satildeo nem o
ldquoser mesmordquo no sentido da totalidade das coisas Plotino prossegue dizendo ldquoA alma ou mente
movimentando-se rumo ao que eacute sem forma encontra-se em estado de incompetecircncia para
apreender ali onde nada se limita ou onde a se impinge a realidade difusardquo (ID IBID 615 VI
9 3) Assim ldquo(hellip) ante o puro pavor de se sustentar no nada esvai-se O estado eacute doloroso
geralmente busca aliacutevio ao se retratar de sua vagueza na regiatildeo do sentido para ali repousar em
um fundamento soacutelido bem como a visatildeo aflige-se com o minuto no qual repousa na escuridatildeordquo
(ID IBID) Mas para onde olhar frente ao desconforto de natildeo se ter onde repousar Quando se
percebe o quatildeo vago eacute todo e qualquer presumido fundamento ou sentido quando a escuridatildeo
natildeo reflete senatildeo a angustia de uma contemplaccedilatildeo exausta pelo esvair de todo sustento o que
resta para aleacutem discoacuterdia que atinge o intelecto Plotino sintetiza a afliccedilatildeo
A alma deve ver em sua proacutepria maneira isto se daacute por coalescecircncia a unificaccedilatildeo
mas buscando assim conhecer a unidade eacute impedida por esta mesma unificaccedilatildeo de
reconhecer o que foi encontrado natildeo se pode distinguir a si mesmo do objeto de sua
intuiccedilatildeo No entanto este eacute nosso uacutenico recurso caso nossa filosofia busque o
conhecimento da Unidade (ID IBID)
O uacutenico caminho rumo ao conhecimento da unidade eacute um caminho impossiacutevel em si mesmo
uma via cerrada pela proacutepria natureza do questionamento proposto Intuir as trecircs hipoacutestases ou
encadeaacute-las conforme uma loacutegica sistemaacutetica portanto elucida o caminho mas natildeo
necessariamente introspecta e absorve a pureza da experiecircncia Para isto eacute necessaacuterio mais ou
melhor menos ndash muito menos O uacutenico ponto de apoio aqui seraacute a identificaccedilatildeo entre o uno e
bem ou a compreensatildeo da primeira hipoacutestase como uno-bem (τὸ ἑν καὶ αγαθον) cujo sentido
eacute por um lado extrema e pura simplicidade e por outro inefabilidade total devido agrave perfeiccedilatildeo
78
Reivindicar este caminho soacute pode portanto levar a uma supressatildeo absoluta onde
ldquoAinda esta abstenccedilatildeo de autoconhecimento natildeo comporta ignoracircncia ignoracircncia eacute algo de fora
ndash um conhecedor ignorante de um cognosciacutevel ndash mas no solitaacuterio natildeo haacute nem conhecimento
nem nada desconhecidordquo (ID IBID 620 VI 9 6) Plotino entatildeo apresenta uma formulaccedilatildeo
nada usual conforme a qual certo direcionamento de suas intenccedilotildees pode ser entendido em
uma passagem tatildeo emblemaacutetica quanto enigmaacutetica ele escreve
Neste coro a alma olha para a nascente da Vida tambeacutem nascente do Intelecto iniacutecio
do Ser fonte do Bem raiz da Alma Natildeo que eles tenham sido despejados do Supremo
menosprezando-os como se fosse uma massa Nisto aquilo que emana seria pereciacutevel
mas eles satildeo eternos eles nasce de um princiacutepio eterno que produz deles sua
fragmentaccedilatildeo mas em virtude de sua identidade inata portanto eles se manteacutem muito
firmes conto o sol brilhe contanto haveraacute luz
()
Aqueles para os quais toda esta experiecircncia eacute estranha podem entende-la como nossos
anseios terrenos e a alegria que temos ao ganhar o que mais desejamos ndash lembrando
sempre que aqui o que noacutes amamos eacute pereciacutevel doloroso que nosso amor eacute mimeacutetico
e se afasta porque foi tudo um engano nosso bem natildeo estava laacute isto natildeo era o que
procuraacutevamos Haacute apenas o verdadeiro amor onde haacute uniatildeo natildeo segurando isto com
algum tipo de abraccedilo carnal mas possuindo na totalidade sua veracidade Todos
aqueles que viram sabem o que tenho em mente a alma toma outra vida quando se
aproxima de Deus assim restaurada sente que o distribuidor da verdadeira vida estaacute
laacute para ver que agora natildeo temos nada para procurar senatildeo aquilo que precisamos
deixar de lado e deixar assim sozinho assim vindouro assim soacute tudo o que o ambiente
terreno aniquilou na pressa de ser livre impaciente em relaccedilatildeo a qualquer laccedilo que
nos sustenta na base para que com todo nosso ser possamos agarrar-nos sobre isto
quando natildeo sobra nada em noacutes senatildeo aquilo pelo qual tocamos em Deus (ID IBID
623 VI 9 9)
79
As palavras de Plotino ressoam como uma conduta que eacute antes como postura que doutrina O
uso termo ldquoamorrdquo denota claramente uma experiecircncia irregulaacutevel uma tensatildeo entre ausecircncia e
presenccedila preenchimento e falta ndash sem embargo um misteacuterio
O misteacuterio que indicado por Plotino se configura como o guia para a visatildeo que permite
descortinar o sentido pensamento filosoacutefico Um misteacuterio que segue a mesma regra de Platatildeo e
do platonismo onde ldquoNada eacute divulgado para os natildeo-iniciadosrdquo (ID IBID 624 VI 9 11) e do
qual natildeo se pode simplesmente exibir uma estoacuteria ordinaacuteria ldquoCoisas aqui satildeo sinaisrdquo (ID IBID)
adverte Plotino Sinais para aqueles que entram em solo sagrado e tornam real a visatildeo do
inacessiacutevel Ele esclarece ainda ldquoQuando a alma comeccedila novamente a se colocar natildeo se torna
outra mas si mesma assim desprendida natildeo eacute nada senatildeo si mesma auto-reunida natildeo eacute mais
da ordem do ser estaacute no Supremordquo (ID IBID) O desprendimento e a supressatildeo a visatildeo do uno
e o movimento de uniatildeo encaminham para o ldquotodo-transcendenterdquo que jaacute natildeo mais estaacute no niacutevel
daquilo que eacute do ente mesmo do ser mas em uma esfera para aleacutem de todas as coisas que satildeo
e que natildeo satildeo A culminaccedilatildeo do pensamento henoloacutegico de Plotino como uma ldquomiacutestica da
unidaderdquo eacute o berccedilo do neoplatonismo e necessariamente o iniacutecio de sua radicalizaccedilatildeo
Neste fluxo considera-se que existam dois momentos fundamentais do desdobramento
do neoplatonismo a partir da henologia plotiniana quais sejam a teologizaccedilatildeo da henologia
desenvolvida por Proclo e a teologia negativa do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita Em ambos eacute
possiacutevel observar como o caminho da negatividade se configura partir de uma profunda
introspecccedilatildeo de temas que tendem agrave dissoluccedilatildeo do conhecimento ateacute entatildeo concebido
estruturado e instaurado ndash e ainda agrave subversatildeo completa de seus meios de expressatildeo e
significaccedilatildeo isto eacute agrave supressatildeo do saber e do dizer Eles natildeo representam meramente o ldquopasso
adianterdquo como se houvessem ainda superado o discurso antecessor mas antes o ldquopasso atraacutesrdquo
enquanto retorno agraves bases e aos princiacutepios por meio da reivindicaccedilatildeo da atitude desvelada pela
miacutestica onde o misteacuterio natildeo eacute o problema a ser desvendado mas o elemento a ser incorporado
80
O obra de Proclo eacute composta por diversos comentaacuterios aos diaacutelogos de Platatildeo dentre os
quais ao Timeu ao Parmecircnides ao Alcebiacuteades agrave Repuacuteblica entre outros aleacutem de escritos
sistemaacuteticos como os Elementos de Teologia e a Teologia Platocircnica Existem ainda obras que
abordam temas de matemaacutetica astronomia arte magia e tratados propedecircuticos sobre doutrinas
filosoacuteficas Especialmente em relaccedilatildeo agraves contribuiccedilatildeo em torno agrave henologia duas obras satildeo de
suma importacircncia o Comentaacuterio ao Parmecircnides de Platatildeo e os Elementos de Teologia
A leitura de Proclo do Parmecircnides de Platatildeo eacute considerada uma das mais sistemaacuteticas e
originais que teria sobrevivido agraves vicissitudes dos tempos Ademais guardaria ainda um apelo
ao resguardo da filosofia de Platatildeo bem como uma preparaccedilatildeo para um projeto de resgate da
vitalidade do paganismo por meio de um platonismo revigorado 31 Decorreria disto uma
profunda incursatildeo na filosofia como teologia que culminaria em seus Elementos Ainda no
Comentaacuterio Proclo descreve o percurso de Platatildeo em relaccedilatildeo agrave Parmecircnides e manifesta uma
linha argumentativa similar a Plotino
Mas caso se queira chegar o mais proacuteximo da verdade deve-se seguir a linha de nosso
Mestre que Parmecircnides inicia desde o Uno (Ser) (para a proposiccedilatildeo ldquose haacute um unordquo
jaacute que conteacutem aleacutem do ldquoUnordquo o conceito de existecircncia pertence a este tipo de coisas)
ascendendo do Uno Ser para o Uno assim demonstrando que o Uno em sentido estrito
deseja apenas isto ser One e ldquoarrebatar-se para longerdquo do Ser e o Uno Ser eacute
secundaacuterio a este pela razatildeo de sua descendecircncia em direccedilatildeo ao Ser ao passo que o
Uno mesmo eacute superior mesmo agrave designaccedilatildeo ldquoeacuterdquo e a hipoacutetese ldquose haacuterdquo assim que
adicionamos eacute o Uno no sentido estrito natildeo mais permanece (PROCLUS 1987 379-380
In Parm 1033)
31 Estas consideraccedilotildees satildeo de Ciacutecero Cunha Bezerra em Algumas consideraccedilotildees sobre leitura procleana do
Parmecircnides de Platatildeo (2004) Neste artigo ele ainda sustenta em consonacircncia com H D Saffrey (Proclus
diadoque de Platon 1990) que Proclo entra na linha de inteacuterpretes de Platatildeo que entendem sua filosofia como
revelaccedilatildeo de uma verdade divina estruturada a partir do uno filiando Platatildeo aos teoacutelogos gregos (cf BEZERRA 2004
99-100)
81
Proclo apresentaraacute na sequecircncia a impossibilidade de ldquohipotetizarrdquo o uno cindindo de um lado
hipoacutetese-condicionada e de outro anti-hipoacutetese-incondicionada O problema que estaacute sendo
colocado parte da ideia de que natildeo se pode pensar a multiplicidade isolada senatildeo somente por
meio da concepccedilatildeo de uma unificaccedilatildeo Para aleacutem da estrutura binaacuteria uno-muacuteltiplo deve-se
considerar a unificaccedilatildeo como consequecircncia necessaacuteria dando origem agrave formulaccedilatildeo ldquouno-
unificado-muacuteltiplordquo para explicar como eacute simplesmente possiacutevel que hajam elementos pelos
quais outros se unificam32
O resultado da formulaccedilatildeo de Proclo parece ser a absolutizaccedilatildeo do uno e sua
identificaccedilatildeo com Deus algo sobremaneira evidente na proposiccedilatildeo de seus Elementos que diz
ldquoTodo intelecto divino eacute uniforme ou possui a forma do Uno e eacute perfeito E o primeiro intelecto
subsiste por si mesmo e produz outros intelectosrdquo (IDEM 1998 86 Elem Theo Prop CLX)
Proclo argumenta ainda que se haacute um Deus ele eacute preenchido de unidades divinas e eacute uniforme
sendo ainda perfeito e cheio da bondade divina havendo um Deus primeiro que provecirc as
hipoacutestases para outros intelectos
Este eacute precisamente o ponto que seraacute aprofundado pelo Pseudo-Dioniacutesio Areopagita em
sua teologia negativa Tanto em Proclo quanto no Pseudo-Dioniacutesio o divino habita a
compreensatildeo filosoacutefica da realidade como incorporaccedilatildeo do misteacuterio seguindo ainda a esteira
da muacutetua reciprocidade entre filosofia e religiatildeo demanda por Plotino desde o iniacutecio Pseudo-
Dioniacutesio coroa a radicalizaccedilatildeo do uno e sua identidade com o Deus primeiro apresentado como
supraessencial (ὑπερούσιε) suprabondoso (ὑπεράγαθε) e mesmo supradivino (ὑπερθεε) razatildeo
pela qual ele demanda que ldquo() em absoluta renuacutencia de si mesmo e de todas as coisas deveraacutes
na pureza deixar todas as coisas de lado liberando-se de tudo e sendo assim levado para cima
para o Raio da Divina Treva que excede toda existecircnciardquo (DIONYSIUS THE AREOPAGITE 1920 192)
32 Esta passagem eacute cuidadosamente explicada por Giuseppe Girgenti que esclarece que ldquoO ponto culminante do
primeiro grupo de teoremas eacute o alargamento da hierarquia de quatro termos uma vez que o raciociacutenio de Proclo
levou a distinguir o intermediaacuterio entre o proacuteprio Uno e o unificado ou seja elementos que compotildeem o unificada
as primeiras unidades do natildeo-unificado ou a henadirdquo (GIRGENTI 2009 113-114)
82
Discursar acerca da inefabilidade impotildee no Pseudo-Dioniacutesio uma superaccedilatildeo da proacutepria
linguagem que se revela agora como uma construccedilatildeo liberta de qualquer fronteira e acima de
qualquer paradoxo onde negaccedilatildeo (ἀπόφασις) e afirmaccedilatildeo (κατσφάσις) comungam de igual
valor e sentido em uma mesma e uacutenica esfera A primazia propriamente apofaacutetica que toma
conta da fala do Pseudo-Dioniacutesio ganha forccedila quando supera toda definiccedilatildeo conceitual e
identifica Deus como nada daquilo que eacute
Uma vez mais indo ainda mais alto mantemos que Ele natildeo eacute alma ou mente ou
concebido pela faculdade da imaginaccedilatildeo conjuntura razatildeo ou entendimento nem eacute
nenhum ato de razatildeo ou compreensatildeo nem pode ser descrito pela razatildeo ou percebido
pelo entendimento jaacute que natildeo eacute nuacutemero ou ordem ou magnificecircncia ou pequenez
ou igualdade ou desigualdade e jaacute que natildeo estaacute inerte nem em movimento ou em
descanso e natildeo possui poder e natildeo eacute poder nem luz e natildeo vive e natildeo eacute vida nem eacute
essecircncia pessoal ou eternidade ou tempo nem pode ser apreendido pelo
entendimento jaacute que natildeo eacute nem conhecimento nem verdade nem eacute reinado ou
sabedoria nem eacute uno nem unidade nem deidade ou bondade natildeo eacute um espiacuterito como
se entende o termo jaacute que natildeo eacute Filho nem Pai nem eacute nenhuma outra coisa tal como
noacutes ou qualquer outro ente do qual se possa ter conhecimento nem pertence a
categoria de natildeo-existecircncia ou de existecircncia nem os entes existentes o conhecem
como realmente eacute nem Ele os conhece como realmente satildeo nem a razatildeo pode o
atingir nomear ou conhecer nem eacute escuridatildeo nem eacute luz ou erro ou verdade nem
nenhuma afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo pode ser aplicada porquanto aplicar afirmaccedilotildees e
negaccedilotildees natildeo se aproximam Dele noacutes natildeo aplicamos nem negaccedilatildeo nem afirmaccedilatildeo
enquanto transcende toda afirmaccedilatildeo por ser perfeita e uacutenica Causa dos seres e
transcende toda negaccedilatildeo pela preeminecircncia de sua livre natureza simples e absoluta
de qualquer limitaccedilatildeo e para aleacutem de tudo (DIONYSIUS THE AREOPAGITE 1920 200-201)
83
Seria justo afirmar que esta densa passagem da Teologia Miacutestica eacute muito mais proacutexima de uma
declaraccedilatildeo de amor do que uma articulaccedilatildeo filosoacutefica (e caberia aiacute perguntar se haacute enfim
alguma diferenccedila entre uma coisa e outra) Pseudo-Dioniacutesio natildeo apenas promove um
movimento de negaccedilatildeo em direccedilatildeo agrave toda afirmaccedilatildeo mas ainda rumo agrave proacutepria negaccedilatildeo Neste
sentido a definiccedilatildeo mais justa conforme a qual se utiliza aqui o termo negatividade seguiria
com precisatildeo os termos do Pseudo-Dioniacutesio entendendo que o caminho negativo estaacute mais
aleacutem de toda afirmaccedilatildeo e mesmo de toda negaccedilatildeo Esta eacute ainda a via para entender o que pode
ser nomeado como meontologia um percurso intelectual que apoiado pela henologia
neoplatocircnica natildeo se fundamenta mais no ente mas antes no natildeo-ente (μή ὄν) ou mesmo no
nada
As consequecircncias da henologia neoplatocircnica de Plotino e Proclo e da meontologia
miacutestica do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita natildeo passaratildeo incoacutelumes pelos seacuteculos que se seguiriam
agrave composiccedilatildeo dos escritos aqui conjurados Contudo algumas recepccedilotildees bastante acuradas e
inspiradas criativas e bem desenvolvidas ocupar-se-iam de resgatar o sentido do pensamento
negativo e desdobrar a profundidade do problema Eacute possiacutevel citar algumas dezenas de filoacutesofos
que se dedicaram ao diaacutelogo com o neoplatonismo e a teologia negativa Aqui gostaria de
encerrar este capiacutetulo direcionando-o para uma interlocuccedilatildeo especial e ao meu ver central para
a difusatildeo da negatividade na filosofia medieval moderna e contemporacircnea Tenho em mente
Joatildeo o Escoto chamado Eriuacutegena
Eriuacutegena ocupou um lugar de destaque nas altercaccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas durante
o chamado Renascimento Caroliacutengio sendo-lhe atribuiacutedas tarefas como a traduccedilatildeo do grego
para o latim das obras do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita bem como explanaccedilotildees em torno agrave
contenda da divina predestinaccedilatildeo e agraves interpretaccedilotildees e exegeses suscitadas pela disputa erguida
pela cultura biacuteblica do periacuteodo33
33 Para especificaccedilotildees em torno a Eriuacutegena e seu tempo confira CONTRENI 1996 e MCNAMARA 1996
84
A presenccedila do neoplatonismo em Eriuacutegena parece se posicionar de maneira estrateacutegica
ao longo dos movimentos por ele realizados em sua magna obra o Periphyseon Natildeo se pode
perder de vista as possiacuteveis definiccedilotildees do neoplatonismo natildeo apenas dentro de suas esferas
relacionais e a partir das tendecircncias de leitura mas ainda por meio da questatildeo fundamental que
problematiza todo conteuacutedo qual seja como o uno se relaciona com o muacuteltiplo ou ainda como
o que eacute primeiro se relaciona com o que eacute posterior Oscar Federico Bauchwitz sustenta que
ldquo() a questatildeo pela antonomaacutesia do neoplatonismo enquanto uma reflexatildeo acerca da relaccedilatildeo
entre o Criador e a criatura entre o Uno e a multiplicidade pode ser enfocada na obra de
Eriuacutegena no que diz respeito a creatio ex nihilo e ao sentido original que eacute determinado ao
termo nihilrdquo (BAUCHWITZ 2001 11) Assumindo esta hipoacutetese como vaacutelida torna-se
imprescindiacutevel compreender o lugar que tal questatildeo ocupa na obra eriugeneana e como ela se
desenvolve
Conforme os apontamentos de Bauchwitz o ldquonadardquo se apresenta pela primeira vez jaacute
no iniacutecio do Periphyseon ao serem articulados os modos da diferenccedila fundamental da divisatildeo
da natureza (φύσις natura) definida como tudo aquilo que eacute e que natildeo eacute (quae sunt et quae non
sunt) sendo dividida em quatro espeacutecies ldquo() primeiro naquilo que cria e natildeo eacute criado segundo
naquilo que eacute criado e tambeacutem cria terceiro naquilo que eacute criado e natildeo cria enquanto o quarto
nem cria nem eacute criadordquo (ERIVGENAE 1999 37 441ordf) O que eacute pode ser percebido apreendido e
conhecido O que natildeo eacute todavia natildeo se pode perceber apreender ou conhecer (cognoscitur non
quid est sed quia est) De acordo com Bauchwitz o termo quid est (ldquoo que eacuterdquo) diz respeito agrave
essecircncia de tudo que permanece incompreensiacutevel e infinito ao passo que quia est (ldquoque eacuterdquo)
indica a existecircncia da essecircncia divina ou seja seus efeitos como algo determinado e que eacute O
incompreensiacutevel da natureza divina Eriuacutegena deixa ver quando escreve ldquoPortanto se eacute por
causa de sua excelecircncia inefaacutevel e incompreensiacutevel infinitude que a Natureza Divina eacute dita natildeo
ser disto se segue que ela eacute nada ()rdquo (IDEM 2005 61 634C)
85
A impossibilidade de compreender a natureza divina eacute o que permite a Eriuacutegena
descortinar seu entendimento acerca da creatio ex nihilo Bauchwitz escreve sobre este ponto
ldquoA questatildeo se origina eacute que se a diferenccedila fundamental abarca a totalidade da natureza o que
se poderia predicar de Deus Isto eacute o que haacute para mais aleacutem do ser e do natildeo ser senatildeo o Nada
desde o qual Deus cria todas as coisasrdquo (BAUCHWITZ OP CIT 12) O problema eacute apresentado por
Eriuacutegena a partir da busca pelo sentido conforme o qual se questiona de que maneira eacute possiacutevel
compreender como todas as coisas que satildeo se originam do nada (ou nos termos do
neoplatonismo pagatildeo a mesma questatildeo de ldquocomo do uno se origina a multiplicidade) Eacute
possiacutevel interpretar esta passagem alegando que Eriuacutegena se refere ao nihilo em perfeita
sintonia com toda doutrina Cristatilde da criaccedilatildeo como de fato faz sentido afirmar Contudo
Eriuacutegena vislumbra o que considera ldquoa verdadeira essecircncia da natureza divinardquo O Criador que
cria todas as coisas que satildeo criadas insere-se naquela parte da divisatildeo da natureza na qual ldquocria
mas natildeo eacute criadordquo enquanto sua ldquoessecircnciardquo reflete aquilo que ldquonatildeo eacute nem criado nem criardquo
Em outros temos indica-se que nada eacute a natureza divina de Deus ou ainda que natildeo-ser
corresponde agrave divindade
Resta ainda resolver o mesmo problema ante ao qual se encontraram Plotino Proclo o
Pseudo-Dioniacutesio entre outros a saber como eacute possiacutevel para Deus desarraigar-se de seu nada
ou desdobrar-se desde si mesmo Bauchwitz oferece uma explicaccedilatildeo quando potildee em relevo o
problema da expressatildeo do paradoxo
() por meio da criatura eacute Deus quem se manifesta e portanto todas as criaturas
podem ser entendidas como certas apariccedilotildees divinas isto eacute teofania Neste sentido a
teofania nomeia o paradoxo da ineffabilis difusio que diz que o infinito devem finito
que o incompreensiacutevel devem compreensiacutevel que o silecircncio clama (BAUCHWITZ 2003ordf
57)
86
Em Eriuacutegena eacute possiacutevel acompanhar o sentido da explicaccedilatildeo de Bauchwitz na passagem que
diz
Tudo o que eacute entendido e sentido nada mais eacute senatildeo apariccedilatildeo do que natildeo eacute aparente
a manifestaccedilatildeo do oculto afirmaccedilatildeo da negaccedilatildeo compreensatildeo do incompreensiacutevel [a
expressatildeo do inexpressiacutevel o acesso ao inacessiacutevel] o intelecccedilatildeo do ininteligiacutevel o
corpo do incorpoacutereo a essecircncia do supraessencial a forma do informado a medida
do incomensuraacutevel o nuacutemero do inumeraacutevel o peso do impensaacutevel a materializaccedilatildeo
do espiritual a visibilidade do invisiacutevel o lugar do natildeo-lugar o tempo do natildeo-tempo
a definiccedilatildeo do infinito a circunscriccedilatildeo do incircunscrito e as outras coisas que satildeo
ambas consideradas e percebidas pelo intelecto sozinho e natildeo podem se restringir
dentro de recessos da memoacuteria e nas quais escapa agrave destreza da mente (ERIVGENAE OP
CIT 59 633BC)
A despeito da possibilidade de sintonia com a doutrina Cristatilde da criaccedilatildeo (especificamente o
sentido moralizante da gecircnese) natildeo haacute forccedila catequeacutetica senatildeo puramente especulativa na
maneira pela qual Eriuacutegena aborda a questatildeo O acesso ao sagrado aparece antes como uma
atitude fundamental na qual se insiste no misteacuterio da nadidade do divino
O resultado do caminho meditativo de Eriuacutegena eacute uma postura na qual o pensamento
natildeo responde apenas agraves demandas imediatas agraves preocupaccedilotildees que sanem os conflitos
existenciais e sociais mas uma intelecccedilatildeo cujo grau de alcance atinge toda mensurabilidade e
incomensurabilidade da estruturaccedilatildeo do real como internalizaccedilatildeo do segredo oculto e dos
misteacuterios da natureza Parece ser neste sentido que Bauchwitz sugere uma eacutetica do silecircncio
onde ldquo() natildeo basta enunciar o princiacutepio que deve reger as accedilotildees do ser humano () O silecircncio
como destino a ser alcanccedilado soacute tem sentido na medida em que nomeia a incessante e natural
disposiccedilatildeo do proacuteprio homem em dirigir-se a elerdquo (BAUCHWTZ OP CIT 12) Antes de resolver
qualquer problema assume-se o respeito para com a profundeza do incocircndito
87
Durante a introduccedilatildeo desta tese referi-me a um outro escrito de Bauchwitz Nihilismo
e Neoplatonismo assumindo que aquele artigo havia sido responsaacutevel por traccedilar uma direccedilatildeo
ou mesmo proporcionar um estiacutemulo ao desenvolvimento deste trabalho Gostaria de retornar
agravequele artigo uma vez mais para encerrar esta seccedilatildeo com definiccedilotildees mais precisas a respeito da
henologia e da meontologia como ultrapassagem dos limites da metafiacutesica
O capiacutetulo anterior evidenciou que com a ontologia ou a substantivaccedilatildeo do pensamento
ocidental por meio da confusatildeo entre ser e ente perdeu-se natildeo a capacidade intelectual do ser
humano mas o atino para o seu fundamento Em razatildeo da urgecircncia de respostas abandonou-se
tudo aquilo que era por princiacutepio incoacutegnito inefaacutevel inexprimiacutevel Como havia dito na
introduccedilatildeo com o apoio do trabalho de Bauchwitz a consumaccedilatildeo deste movimento eacute anunciado
por meio de um diagnoacutestico do niilismo Neste sentido Bauchwitz escreve
A relaccedilatildeo entre Nihilismo e Neoplatonismo que aponta para uma eacutetica aleacutem dos
limites da temporalidade e de crenccedilas religiosas ainda estaacute para ser esclarecida Uma
tal eacutetica somente poderaacute ser realmente quando cumpridas umas exigecircncias que neste
trabalho foram apenas assinaladas a superaccedilatildeo da vontade e em consequecircncia da
proacutepria liberdade soacute pode ser interpretada em uma perspectiva que jaacute natildeo se encontra
nos limites da ontologia tradicional ou no dizer de Heidegger no acircmbito da metafiacutesica
O sem-propoacutesito de uma tal eacutetica que abnega qualquer visatildeo utilitarista e
simplesmente dada do mundo exige pensar a partir de novas fundamentaccedilotildees e
valores o retorno do divino eacute uma metaacutefora que atende a tais exigecircncias na medida
em que ao tempo que nos abre uma concepccedilatildeo totalmente outra daquele que ancora
os principais valores vigentes questiona pelos conceitos fundamentais que
homologaram esses valores como superiores porque quantificaacuteveis A ausecircncia de
referecircncias fixadas pelos padrotildees contemporacircneos que mensuram o bem-estar de cada
indiviacuteduo e o resgate de uma vivecircncia que se justifica nela mesma e natildeo pelas suas
finalidades devem servir de origem para superar a ldquonoite do mundordquo (BAUCHWITZ OP
CIT 179-180)
88
Em primeiro lugar eacute importante destacar que a falta de esclarecimento da ldquoeacutetica aleacutem dos
limitesrdquo ou como prefiro colocar aqui ldquopara aleacutem das fronteirasrdquo natildeo soacute natildeo estaacute clara como
assim deve permanecer caso queira responder agrave exigecircncia de absorver a negatividade que
tambeacutem faz parte da humanidade do humano mas que foi todavia afasta de sua visatildeo da
realidade Por este motivo utiliza-se aqui o termo conflito das fronteiras para indicar natildeo uma
resoluccedilatildeo de problemas mas a assunccedilatildeo de um confronto Sendo assim a ultrapassagem de
limites deve se dar apenas no que tange agrave possibilidade de abrir o pensamento para aleacutem da
metafiacutesica tradicional Explorar o que haacute de propriamente fraco o que natildeo se sustenta o que
natildeo pode ser
A temaacutetica poderia ser encerrada aqui Seria possiacutevel retornar ao neoplatonismo com
ainda mais cautela e extrair de laacute mesmo os elementos para subverter toda sorte de ordenamento
que lanccedila o ser humano na ldquonoite do mundordquo Contudo meu interesse aqui eacute explorar mais um
momento da histoacuteria da filosofia e se possiacutevel encontrar um ponto de apoio para reunir a
tradiccedilatildeo metafiacutesica e o neoplatonismo em um uacutenico problema Minhas hipoacutetese conforme seraacute
desenvolvida no terceiro e uacuteltimo capiacutetulo eacute encontrar uma orientaccedilatildeo Orientaccedilatildeo extrema
Ali no Extremo Oriente
89
3 O EXTREMO ORIENTE E O CONFLITO DAS FRONTEIRAS A FILOSOFIA COMPARADA INTERCULTURAL
COMO CHAVE DE LEITURA PARA ALGUNS PROBLEMAS DO PENSAMENTO CONTEMPORAcircNEO
O ambiente acadecircmico britacircnico do final da deacutecada de 1970 foi palco de uma fervorosa disputa
acerca das interpretaccedilotildees e definiccedilotildees culturais entre Ocidente e Oriente A publicaccedilatildeo do livro
Orientalism (1978) de Edward Wadie Said (ع إدوارد Idwārd Wadīʿ Saʿīd) fomentou ديعس ودي
uma inesgotaacutevel discussatildeo acerca de qualquer suposta correspondecircncia deste ou daquele
elemento nos princiacutepios da tradiccedilatildeo oriental sustentando em termos bem simples que o
Oriente era antes uma invenccedilatildeo convencional Said sofreu diversas criacuteticas algumas mais
significativas outras menos Uma de suas consideraccedilotildees mais discutidas afirma que ldquo() o
Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente) como sua imagem ideacuteia personalidade e
experiecircncia de contraste Contudo nada desse Oriente eacute meramente imaginativordquo (SAID 1990
13-14) acrescentando ainda de forma incisiva que ldquoO Oriente expressa e representa esse
papel cultural e ateacute mesmo ideologicamente como um modo de discurso com o apoio de
instituiccedilotildees vocabulaacuterio erudiccedilatildeo imagiacutestica doutrina e ateacute burocracias e estilos coloniaisrdquo
(IDEM IBIDEM 14) Said defendeu que o Oriente tal qual eacute conhecido pelo mundo ocidental natildeo
corresponde agrave proveniecircncia originaacuteria de suas tradiccedilotildees mas eacute antes uma estrateacutegia (poliacutetica e
econocircmica) de manutenccedilatildeo geograacutefica Toda designaccedilatildeo acadecircmica de qualquer orientalismo
ateacute entatildeo desenvolvido estaria entatildeo equivocada apoiada em pressupostos que natildeo condizem
com a tradiccedilatildeo oriental Sem embargo o mesmo poderia ser dito a respeito da introspecccedilatildeo do
mundo grego pelo mundo romano-latino e no decorrer da histoacuteria da humanidade eacute possiacutevel
ainda identificar outras centenas de casos semelhantes ateacute o ponto no qual se afirma a
globalizaccedilatildeo por meio da modernizaccedilatildeo de todos os recantos do planeta dentro do iacutempeto de
igualar todas as culturas em um niacutevel comum
90
Entretanto apesar de ser possiacutevel interpretar as assertivas de Said de forma mais
ponderada aproveitando com isto certo direcionamento fatalista embora natildeo necessariamente
inveriacutedico de sua investigaccedilatildeo algumas gafes de sua compreensatildeo da histoacuteria se revelam
bastante perturbadoras Um dos principais criacuteticos de Said Robert Irwin publicou uma obra
onde ampla parte eacute dedicada agrave refutaccedilatildeo direta dos principais argumentos de Said Em For the
Lust of Knowning (2006) Irwin destaca algumas inverdades de Said e contrargumenta de
maneira precisa certas falaacutecias Contudo Irwin eacute tambeacutem bastante emotivo em sua abordagem
ele escreve ldquoPara pocircr minhas cartas na mesa jaacute de iniacutecio a meu ver aquele livro [Orientalism]
eacute uma obra de uma impostura maleacutevola na qual eacute difiacutecil distinguir erros verdadeiros de
falsidades propositadasrdquo (IRWIN 2006 11) Irwin ataca principalmente os erros fatuais de Said
apontando para lacunas na fundamentaccedilatildeo da obra Orientalism34 destacando vaacuterios enganos e
afirmando em siacutentese ldquoPois se eacute possiacutevel apresentar uma imagem falsa do orientalismo do
cristianismo e do imperialismo britacircnico natildeo seria tatildeo obviamente errado apresentar de modo
semelhante uma falsa imagem do islatilde da histoacuteria aacuterabe ou da difiacutecil situaccedilatildeo dos palestinosrdquo
(IDEM IBIDEM 330-331) fazendo referecircncia agraves posiccedilotildees por Said defendidas Em suma Irwin daacute
a entender nas entrelinhas que a politizaccedilatildeo de um criacutetico literaacuterio no caso Said tornou a obra
Orientalism um intento mal construiacutedo como ferramenta para sustentaccedilatildeo de posiccedilotildees poliacuteticas
condenando todo seacuterio estudo que envolve o orientalismo Ateacute entatildeo muitos outros
pesquisadores e eruditos atacaram Said bem como tantos outros o admiravam e o defenderam
Todavia com a apresentaccedilatildeo desta disputa quero aqui destacar um fator iacutempar que natildeo
necessariamente se prende agrave contenda mas que encobre o toacutepico de modo geral
34 Irwin destaca alguns erros ldquoOrientalismo daacute a impressatildeo de um livro escrito agraves pressas Eacute repetitivo e conteacutem
muitos erros factuais Said menciona lsquoPedro o Veneraacutevel e outros orientalistas cluniacensesrsquo Que outros
orientalistas cluniacenses Seria interessante conhecer seus nomes (Mas naturalmente a ideia de que houvesse toda
uma escola de orientalistas cluniacenses eacute absurda Pedro o Veneraacutevel trabalhou sozinho) Como Bernard Lewis
ressaltou Said faz com que exeacutercitos muccedilulmanos conquistem a Turquia antes de conquistarem o norte da Aacutefrica
Isso realmente sugere uma ignoracircncia espantosa da histoacuteria do Oriente Meacutedio da mesma forma que sua crenccedila
quanto a terem a Gratilde-Bretanha e a Franccedila dominado a regiatildeo oriental do Mediterracircneo a partir do final do seacuteculo
XVIIrdquo (IRWIN 2006 329)
91
Com a discussatildeo entre os orientalistas e seus inimigos o importante eacute destacar natildeo
apenas as dificuldades que envolvem todo e qualquer estudo comparado entre Ocidente e
Oriente mas o fato de que eacute da natureza do proacuteprio estudo comparado que haja divergecircncias
A divergecircncia e o erro satildeo de fato disposiccedilotildees naturais dos estudos comparados sem os quais
natildeo seria possiacutevel sequer dar iniacutecio agrave discussatildeo ou desenvolver qualquer linha de raciociacutenio
preparatoacuteria Soacute eacute possiacutevel falar em estudos comparados porque houve de antematildeo a percepccedilatildeo
de uma divergecircncia Mais ainda a necessidade do momento e os acasos eventuais direcionam
os estudiosos para um ou para outro lado Assim como Said saiu em defesa da Palestina durante
um periacuteodo no qual os conflitos haviam se asseverado em decorrecircncia da expulsatildeo das forccedilas
de paz das Naccedilotildees Unidas em 1967 tambeacutem outros pensadores em outros momentos da histoacuteria
foram motivados por acontecimentos histoacutericos sejam eles de guerra ou de paz poliacuteticos
econocircmicos ou religiosos Como por exemplo as diversas manifestaccedilotildees de revolta e
indignaccedilatildeo de Theodor Wiesengrund Adorno e Gershom Scholem apoacutes Auschwitz ou as
anaacutelises polecircmicas de Slavoj Žižek das revoltas do subuacuterbio de Londres e da Primavera Aacuterabe
Contudo algumas deacutecadas antes da publicaccedilatildeo da obra de Said precisamente durante a
deacutecada de 1950 o Departamento de Filosofia da University of Hawairsquoi at Mānoa havia
alavancado uma seacuterie de trabalhos a respeito dos fundamentos e procedimentos dos estudos
comparados Eacute preciso considerar que proacuteprio departamento jaacute havia sido estruturado entre
1930 e 1940 com o objetivo de suprir a lacuna que havia a respeito dos estudos comparados na
filosofia A primeira East-West Philosophers Conferece em 1939 ditou o tom pelo qual se
tornaria possiacutevel falar abertamente alguns anos mais tarde de uma filosofia comparada
intercultural Ali natildeo escapou a ideia de que foi justamente por meio do ldquoerrordquo que se
estabelecia o diaacutelogo entre fronteiras Em outras palavras este diaacutelogo nascia jaacute sempre de um
conflito das fronteiras A hipoacutetese de consenso eacute explorada neste sentido apenas mediante a
assunccedilatildeo de certa ignoracircncia parcial e sopesando ainda as variaccedilotildees de interpretaccedilatildeo
92
O rigor filosoacutefico que direcionou as primeiras tentativas da filosofia comparada em
confrontar as tradiccedilotildees sapienciais ocidentais e orientais permitiu a instauraccedilatildeo de uma postura
cuidadosa e quase mesmo analiacutetica do problema35 Com isto foi possiacutevel comeccedilar a pensar de
que forma elementos do pensamento oriental e da filosofia ocidental poderiam convergir ou
divergir e quais as contribuiccedilotildees que este tipo de comparaccedilatildeo pode trazer aos problemas da
contemporaneidade Todavia como anos mais tarde discutiriam Said Irwin e outros natildeo se
pode desprezar o fato de que nada escapa aos entrelaccedilamentos ldquoirrastreaacuteveisrdquo das relaccedilotildees entre
Ocidente e Oriente Neste sentido embora qualquer comprovaccedilatildeo cientiacutefica empaque frente aos
desafios historiograacuteficos natildeo eacute de todo ingecircnuo especular as influecircncias que por exemplo
Platatildeo teria sofrido da sabedoria primitiva de hinduiacutesta e budistas como sustentam diversos
especialistas36 Ou ainda da indagaccedilatildeo acerca de ateacute que ponto o Aristoacuteteles que conhecemos
natildeo foi orientalizado por Al-Farabi (صر ون ن محمس اب ی محمس ب اراب Abū Naṣr Muḥammad ibn ف
Muḥammad Fārābī) Avicena (ن نا اب ع د ou و لی اب نا ع ع د Pūr Sinɑʼ ou ainda ور نا پ ع د Pur-
e Sina em aacuterabe و لي أب عن ع س ح ن ال بس ب الله ع ن نا ب ع د Abū ʿAlī al-Ḥusayn ibn ʿAbd Allāh
ibn Al-Hasan ibn Ali ibn Sīnā) entre outros filoacutesofos da tradiccedilatildeo aacuterabe Sem contar os
sincretismos que permearam a filosofia do helenismo tardio em Alexandria onde pagatildeos
judeus cristatildeo e mulccedilumanos travavam interminaacuteveis disputas teoacutericas (e natildeo apenas teoacutericas)
a respeitos dos fundamento filosoacuteficos e teoloacutegicos religiosidade momento no qual fica difiacutecil
empreender uma anaacutelise pormenorizada de quem influenciou quem quando o quanto e como37
35 Charles A Moore ponderou no trabalho Some Problems of Comparative Philosophy (1951) a dificuldade em
posicionar as doutrinas orientais em um grupo homogecircneo como podia ser feito com a ocidentais apontando ainda
para o cuidado em evitar as caracterizaccedilotildees e comparaccedilotildees a partir de tendecircncias mais gerais (cf MOORE 1951 67)
Kwee Swan Liat escreveu ainda em Methods of Comparative Philosophy (1951) que ao menos sete esferas de
aplicaccedilatildeo metodoloacutegica devem ser previamente levadas em consideraccedilatildeo (aproximaccedilatildeo filoloacutegica histoacuterica
comparativa formal-valorativa psicoloacutegica fenomenoloacutegica e socioloacutegica-antropoloacutegica) avaliando uma por
uma e propondo por conseguinte uma oitava aproximaccedilatildeo total-integrativa (cf KWEE SWAN LIAT 1951 10ss) 36 Estas hipoacuteteses satildeo levantadas por Graham Parkes na introduccedilatildeo de Heidegger and Asian Thought (1987) (cf
PARKES 1987 1) 37 Este ponto especiacutefico acerca das contendas do periacuteodo heleniacutestico foram sobremaneira bem expostas por Jean
Pepiacuten no escrito intitulado Heacutelleacutenisme et christianisme no volume de Franccedilois Chacirctelet La Philosophie v 1 De
Platon agrave Saint Thomas Paris Marabout 1995
93
Falar efetivamente de uma filosofia comparada intercultural todavia pressupotildee outra
perspectiva aquela na qual ambas as tradiccedilotildees estatildeo culturalmente niacutetidas e bem delineadas
(ainda que por meio de caracterizaccedilotildees vulgares pouco precisas ou mesmo caricatas) e satildeo
entendidas como exponencialmente distintas Entretanto as mesmas dificuldades permanecem
Com isto quero dizer fica difiacutecil afirmar ateacute que ponto um lado compreendeu o outro de modo
suficiente e satisfatoacuterio sendo possiacutevel indagar ainda se as apropriaccedilotildees natildeo se deram mediante
interpretaccedilotildees equivocadas ou leituras transviadas sobretudo quando natildeo haacute domiacutenio pleno dos
idiomas envolvidos
Estas asseveraccedilotildees tomaram conta de muitos pensadores no decorrer da histoacuteria da
humanidade Ateacute onde eacute possiacutevel investigar dois momentos marcam o iniacutecio da relaccedilatildeo
expliacutecita (e natildeo meramente impliacutecita como no caso dos primeiros filoacutesofos gregos de Platatildeo e
de Aristoacuteteles) entre Ocidente e Oriente na filosofia a apropriaccedilatildeo latina durante a Idade Meacutedia
dos escritos aacuterabes do Oriente Meacutedio38 e a interlocuccedilatildeo e introspecccedilatildeo da tradiccedilatildeo do Extremo
Oriente (sobretudo chinesa em um primeiro momento) na filosofia alematilde dos seacuteculos dezessete
e dezoito Aqui interessa especialmente o diaacutelogo com o Extremo Oriente e como ele natildeo se
encerrou no mero intercacircmbio de tradiccedilotildees fomentando um movimento de reversatildeo no qual os
orientais por sua vez tambeacutem abriram interlocuccedilatildeo direta com o pensamento ocidental
introspectando a filosofia e desenvolvendo ao seu modo formas de reflexatildeo nos mesmos
moldes da estrutura categoacuterica ocidental mas partindo dos princiacutepios orientais ainda que em
certa medida (como se veraacute) tais princiacutepios por vezes comunguem em muitos aspectos de
elementos e direcionamentos comuns aos ocidentais e por vezes natildeo Para isto eacute preciso
investigar brevemente a gecircnese desta relaccedilatildeo e como ela tem iniacutecio
38 Sobre este toacutepico que natildeo seraacute abordado aqui confira W Raven e A Akasoy (eds) Islamic Thought in the
Middle Ages Studies in Text Transmissions and Translations in Honour of Hand Daiber Leiden Brill 2008 D
Calma Eacutetudes sur le premier siegravecle de lrsquoaverroisme latin approches et textes ineacutedits Turnhout Brepols 2010
entre outros
94
A despeito da culminaccedilatildeo das luzes no periacuteodo moderno diversos temas obscuros
perpassaram o seacuteculo dezessete sobretudo aqueles motivados pelas missotildees catequeacuteticas
jesuiacutetas na China que inevitavelmente influenciaram o ambiente intelectual da eacutepoca 39
Independente dos transtornos causados pelos europeus em suas incursotildees tambeacutem na Europa
os problemas apareceram Quando os documentos acerca das tradiccedilotildees chinesas de pensamento
desembarcaram no continente europeu despertaram imediato interesse em diversos estudiosos
Contudo tampouco foi ameno o iniacutecio deste diaacutelogo O caso mais draacutestico se deu em
1723 quando Christian Wolff fugiu de Halle an der Saale em Sachsen-Anhalt na Alemanha
em decorrecircncia de uma seacuterie de perseguiccedilotildees despertadas por um discurso por ele pronunciado
dois anos antes sob o tiacutetulo Oratio de Sinarum philosophia practica (1721) O motivo era
polecircmico e suscetiacutevel de distintas interpretaccedilotildees Wolff afirmara que ldquoA mesma autoridade que
possui os ditos e feitos de Cristo possui tambeacutem Confuacutecio para os chineses Moiseacutes para os
judeus e Mohammed para os turcosrdquo (WOLFF 1985 117) Embora Wolff tenha impressionado
grande parte de seus ouvintes com o teor apaixonado de sua preleccedilatildeo tal comparaccedilatildeo redundou
em acirradas criacuteticas por diversos professores e eruditos que acompanhavam a fala e a
interpretaram como uma espeacutecie de ateiacutesmo mais ou menos mitigado Estas acusaccedilotildees todavia
natildeo eram fruto apenas da sinofilia de Wolff mas advinham jaacute de seu confronto com colegas
pietistas da Universidade de Halle devido agrave inclinaccedilatildeo bastante evidente para um pensamento
racionalista e secular40
39 Sobre as missotildees jesuiacutetas confira Wenzhao Li Die christliche China-Mission im 17 Jahrhundert Stuttgart
Franz Steiner 2000 Acerca do caso especiacutefico do diaacutelogo com a filosofia alematilde confira ainda Antonio Florentino
Neto Von der Interpretation zum Gespraumlch Das chinesische Denken in deutschen Philosophie Saarbruumlcken
SVH 2013 Florentino Neto ainda comenta que as missotildees tiveram iniacutecio ainda no seacuteculo dezesseis tendo
comeccedilado no Japatildeo e soacute entatildeo atingido a China no seacuteculo dezessete (cf FLORENTINO NETO 2009 41) 40 Os interesses de Wolff pela China bem como pelo racionalismo paulatinamente aparecem em seus escritos
desde a influecircncia direta de Leibniz ateacute a leitura dos tratados dos jesuiacutetas a respeito da China Menccedilotildees ao
pensamento chinecircs e o peso da admiraccedilatildeo que nutria por Reneacute Descartes satildeo evidentes em seus trabalhos a partir
de 1721 (cf LACH 1953) A despeito dos interesses de Wolff pelo pensamento chinecircs sobretudo acerca dos temas
morais constata-se que ele considerava o cristianismo moralmente superior e mais bem desenvolvido (cf KANAMORI
1997 302-303)
95
A hipoacutetese de que a natureza comum do ser humano possibilita o discurso intercultural
nasce sobretudo da comunhatildeo entre uma radicalizaccedilatildeo quase miacutestica do racionalismo moderno
e o impacto causado por escritos de ordem semelhante embora com princiacutepios e fundamentos
distintos Aleacutem de Wolff tambeacutem Nicolas Malebranche e Gottfried Leibniz se dedicaram agraves
leituras do material trazido pelos jesuiacutetas no mesmo periacuteodo Malebranche compocircs em 1707 o
escrito Entretien drsquoun Philosophe Chreacutetien et drsquoun Philosophe chinois sur lrsquoexistence et la
nature de Dieu por meio do qual mais tarde aproveitou para se livrar das acusaccedilotildees de ser um
ldquospinozistardquo Malebranche ainda encarou uma acirrada disputa acerca da condenaccedilatildeo do Papa
Clemente XI agraves missotildees jesuiacutetas sustentando posiccedilotildees bastante polecircmicas em seu diaacutelogo
Malebranche levanta em sua obra a questatildeo fundamental acerca da entificaccedilatildeo do deus
cristatildeo instigando a pergunta acerca do infinito que eacute respondida pelo filoacutesofo chinecircs da
seguinte maneira ldquoEstou convencido de que quando penso sobre o infinito estou muito longe
de pensar qualquer coisa Mas entatildeo eu penso em um tal ser individual e determinado Agora
o Deus que vocecircs adoram natildeo eacute assim um ser individual e particularrdquo (MALEBRANCHE 1708
17) As preocupaccedilotildees de Malebranche caminham no sentido de articular ser e ente no problema
da ontologia do cristianismo Quando Leibniz escreve seu Discours sur la theacuteologie naturelle
des Chinois (1716) ele o faz justamente tendo em vista repetidos pedidos de esclarecer pontos
levantados por Malebranche apoacutes o escrito ter sido enviado a ele por Nicholas Reacutemond41
Eacute possiacutevel considerar que Leibniz foi o que se devotou com mais afinco agrave tradiccedilatildeo
chinesa Ele teria se envolvido principalmente com o direcionamento praacutetico da sabedoria
chinesa profundamente norteada pelo propoacutesito de melhorar a si mesmo e agrave sociedade por meio
da noccedilatildeo confucionista de cultivo de si (修身 xiushen) no sentido propriamente moral42
41 Leibniz trocou extensa correspondecircncia com os missionaacuterios jesuiacutetas a respeito da filosofia chinesa aleacutem de
apresentar comentaacuterios pontuais em sua Novissima Sinica (1697) Contudo eacute no Discours que suas ponderaccedilotildees
mais seacuterias e cuidadosas satildeo delineadas e manifestas (cf KANG 2009 6-8) 42 Mais especificaccedilotildees sobre este tema podem ser encontrados em Karyn T Lay Introduccedilatildeo agrave filosofia chinesa
Trad Saulo Alencastre Satildeo Paulo Madras 2009
96
Leibniz escreve em seu discurso ldquoMas quem poderia pensar que houvesse na terra um
povo que superasse os nossos aspectos da vida cultural Se formos iguais nos modos de
produccedilatildeo somo superiores nas ciecircncias teoacutericas mas inferiores na filosofia praacuteticardquo (LEIBNIZ
1979 11) concluindo que ldquo() somos inferiores na aacuterea da eacutetica na poliacutetica e na vida dos
haacutebitos cotidianosrdquo (IDEM IBIDEM) A interpretaccedilatildeo de Leibniz exalta a capacidade dos chineses
em se organizarem e valorarem as tensotildees promovidas pelo campo social com base no cultivo
de si e ainda identificando o ldquosirdquo ao povo em geral Importante eacute ressaltar natildeo apenas desta
breve sentenccedila ilustrativa mas a partir de uma visatildeo mais ampla de suas reflexotildees o profundo
interesse em preencher lacunas a respeito da proveniecircncia intelectual de certos problemas
filosoacuteficos
Anos depois tambeacutem Georg W F Hegel Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche
nutririam interesses pelo Oriente43 Contudo a resposta propriamente oriental a respeito do
intercacircmbio filosoacutefico se daria apenas na virada do seacuteculo dezenove para o seacuteculo vinte Este eacute
o momento no qual a filosofia comparada intercultural comeccedila a ganhar corpo precisamente
com a abertura poliacutetica e intelectual do Japatildeo e o desenvolvimento da chamada Escola de
Filosofia de Kyōto44 Embora natildeo haja tempo nem espaccedilo para abordar de maneira mais
cuidadosa os enlaces teoacutericos e praacuteticos da Escola de Kyōto escrutinando as estruturas de
pensamento de cada um de seus primeiros membros (e ainda de seus membros tardios) gostaria
aqui de destacar alguns aspectos fundamentais direcionados por duas questotildees a primeira
sustentando o porquecirc a filosofia tem iniacutecio propriamente acadecircmico no Extremo Oriente e
precisamente no Japatildeo e a segunda indagando como (ou de que modo) isto acontece Uma
hipoacutetese necessariamente leva agrave outra e isto pode ser facilmente observado
43 Um panorama mais especiacutefico das aproximaccedilotildees pode ser visto em Florentino Neto 2009 44 Em minha dissertaccedilatildeo de mestrado jaacute havia explanado os movimentos histoacutericos que levaram agrave abertura do Japatildeo
e ao surgimento da filosofia japonesa moderna ou contemporacircnea Uma bibliografia mais completa acerca do tema
pode ser extraiacuteda das obras de referecircncia William Beasley The Meiji Restoration (Stanford Stanford UP 1972) e
The Rise of Modern Japan (New York St Matinrsquos Press 1995)
97
Em primeira matildeo sustento que os motivos que proporcionaram o surgimento de uma
ldquoescola filosoacuteficardquo no Japatildeo modernizado estatildeo intimamente ligadas com sua introspecccedilatildeo da
tradiccedilatildeo oriental precedente Em palavras mais simples a maneira pela qual os japoneses
compreenderam e sintetizaram as principais linhas de pensamento orientais (hinduiacutesmo
budismo confucionismo e daoiacutesmo) culminando no chamado budismo zen foi sem embargo
a chave para absorver a filosofia ocidental Em segunda matildeo sustento ainda que a filosofia
japonesa nasce cresce e se estabelece mediante duas perspectivas (justamente os ldquoparadigmasrdquo
anteriormente abordados na tese) metafiacutesica e negatividade em decorrecircncia do florescimento
do zen no Japatildeo Por fim argumento que justamente pelo entrelaccedilamento de metafiacutesica
negatividade e o pensamento do Extremo Oriente que nasce a uacutenica filosofia possiacutevel para o
momento histoacuterico pelo qual passava o Japatildeo e com isto abre-se uma pertinente chave de
leitura para o momento que agora mesmo atravessa a filosofia contemporacircnea
Portanto inicialmente eacute essencial destacar a singularidade do budismo zen em relaccedilatildeo
agraves tradiccedilotildees precedentes Existem muacuteltiplas maneiras pelas quais eacute possiacutevel empreender esta
tarefa Acredito ser plausiacutevel direcionar este toacutepico mediante um problema especiacutefico qual seja
da fundamentaccedilatildeo uacuteltima da realidade a partir da meditaccedilatildeo a respeito da questatildeo da vacuidade
entendida como śūnyatā (शनयता)
A ideia de śūnyatā deriva do budismo indiano primitivo Relatos de reflexotildees em torno
ao problema do fundamento da realidade aparecem (como jaacute havia exposto na introduccedilatildeo desta
tese) desde os cacircnones Pāḷi e satildeo expressos de maneira mais clara e niacutetida no budismo mahāyāna
principalmente no Sūtra do Coraccedilatildeo (Prajntildeāpāramitā Hṛdaya परझञापारनमताहरदय) passando pela escola
mādhyamaka de budismo indiano e ainda nos Versos Fundamentais sobre o Caminho do Meio
(Mūlamadhyamaka-kārikā मलमधयमककाररका) de Nāgārjuna (िागारि) onde foi apresentada de maneira
mais profunda e sistemaacutetica
98
Algumas interpretaccedilotildees do escrito de Nāgārjuna destacam o śūnyatā como constituiccedilatildeo
da totalidade da realidade enfatizando que isto significa uma muacutetua dependecircncia (pratītya-
samutpāda परतीतयसमतपाद) de todas as coisas de todas aquelas que possuiriam existecircncia individual
ou substancial e ateacute da proacutepria ideia de nada o que significa propriamente uma anulaccedilatildeo de
qualquer Ente Supremo ou mesmo qualquer verdade absoluta45
Quando os ensinamentos do budismo indiano chegam agrave China e no Japatildeo alguns
princiacutepios fundamentais satildeo radicalizados por ambas as naccedilotildees Existem vaacuterias hipoacuteteses
conforme as quais eacute possiacutevel indagar os motivos desta radicalizaccedilatildeo Alguns consideram que a
doutrina radical do budismo se deve ao gecircnio do monge Boddidharma embora outros
argumentem que o motivo foi o encontro com o daoiacutesmo e o neoconfucionismo A questatildeo pode
permanecer suspensa sem que isto afete a compreensatildeo das bases e dos caminhos do budismo
zen Ao que concerne propriamente agrave introspecccedilatildeo deste conceito fundamental na filosofia
japonesa contemporacircnea (sem embargo o ponto ao qual quero chegar) existem tambeacutem
inuacutemeras controveacutersias embora haja ainda certos pontos solidamente estabelecidos e
mutuamente consentidos que se pode explorar com o intuito de apresentar o problema
O expoente da Escola de Kyōto que pela primeira vez explorou de maneira sistemaacutetica
a questatildeo e a colocou via uma formulaccedilatildeo filosoacutefica foi Kitarō Nishida (西田 幾多郎) Sua
biografia eacute repleta de elementos que o fariam parecer ou bem um rebelde visionaacuterio ou bem
um precoce e intempestivo intelectual permeado por desacordos com o sistema Sem embargo
muitos pesquisadores descreveram com minuacutecia os percalccedilos de sua biografia Por isto natildeo eacute
de todo liacutecito perder muito tempo aqui descrevendo seu percurso pessoal Gostaria apenas de
atentar para alguns pontos sobremaneira importantes no que tange agrave formaccedilatildeo intelectual de
Nishida
45 Este ponto eacute melhor analisado por Michael Barnhart que considera que de acordo com Nāgārjuna ldquo() natildeo se
pode sustentar nenhuma feacute na realidade ou princiacutepio transcendente nem nenhuma razatildeo humana pode pretender
independecircncia de nenhum tipo ()rdquo (BARNHART 1994 649)
99
Em primeiro lugar Nishida viveu em meio agrave restauraccedilatildeo Meiji (1868-1912) um periacuteodo
que divide a histoacuteria do Japatildeo entre preacute-moderna e moderna no qual a sociedade feudal entra
em decliacutenio e a naccedilatildeo eacute ocidentalizada pela forccedila maior da pressatildeo do Departamento de Estado
Norte-Americano A evidecircncia de que o ensino japonecircs estava defasado frente aos desafios do
novo mundo levou seus governantes a implementarem um sistema educacional semelhante ao
ocidental sendo neste periacuteodo fundadas as primeiras universidades japonesas Nishida
frequentou tais universidades embora tivesse seu proacuteprio percurso intelectual independente
tendo a oportunidade de estudar com Raphael von Koumlber professor russo-alematildeo convidado
para ministrar aulas de filosofia no Japatildeo Com Koumlber Nishida estudou a histoacuteria do
cristianismo (com ecircnfase nas influecircncias do paganismo de Plotino) aleacutem da filosofia criacutetica de
Immanuel Kant e da esteacutetica claacutessica Eacute preciso ponderar ainda que Nishida lia com fluecircncia o
francecircs o alematildeo e o inglecircs tendo acesso integral agraves principais obras da filosofia ocidental Por
outro lado o mesmo estudante dedicado era ainda um pensador radical que encontrou na
tradiccedilatildeo do zen budismo um rumo para suas inquietaccedilotildees
Quando Nishida se aproxima do zen budismo e comeccedila a praticar mediaccedilatildeo o impacto
da destruiccedilatildeo dos meacutetodos convencionais de ensino o afeta largamente ponderando sobretudo
que ele jaacute havia abandonado a escola primaacuteria por desentendimentos com o regime educacional
Um artigo de Lothar Knauth intitulado Life is Tragic The Diary of Nishida Kitaro (1965)
destaca uma passagem do diaacuterio de Nishida onde eacute possiacutevel observar sua postura conforme suas
proacutepria palavras
Faccedila sua proacutepria mente e depois disto natildeo dependa dos outros
Natildeo acredite indiscriminadamente nas palavras das pessoas
Natildeo fale de assuntos que ainda natildeo foram amadurecidos
Natildeo desperdice tempo precioso com fofocas ociosas
A lei da mateacuteria de leitura ler pensar escrever
100
Se vocecirc ainda natildeo terminou de pensar sobre um assunto
natildeo mude para outro
Se vocecirc natildeo terminou de ler um livro ateacute o fim
natildeo pegue outro
Non multa sed multum
Diaacuterio Ano Novo 1897 (NISHIDA apud KNAUTH 1965 337)
O trecho do diaacuterio aponta para um jovem estudioso preocupado com o rigor a tensatildeo
proveniente do impacto surtido pelas leituras Knauth expotildee consecutivamente um outro trecho
do diaacuterio este datado de 1 de julho de 1945 jaacute no final da vida de Nishida que diz
simplesmente ldquoEscurecendo nublado vinte grausrdquo (IDEM IBIDEM) A intenccedilatildeo de Knauth com
isto eacute mostrar a profunda introspecccedilatildeo redundante de um amadurecimento especulativo
proveniente de anos de meditaccedilatildeo Contudo ao que interessa ao propoacutesito do toacutepico vale
salientar que mesmo em um conturbado espiacuterito jovem havia jaacute sempre a necessidade de forccedilar
uma ldquoaquietamentordquo da mente uma busca por um lugar silencioso no qual prevalece a maacutexima
non multa sed multum natildeo muito mas bastante
Entre 1891 e 1897 (a ano da primeira citaccedilatildeo) Nishida praticou incessantemente a
meditaccedilatildeo zen havendo tambeacutem contribuiacutedo para uma revista do secto do Budismo da Terra
Pura Sua transformaccedilatildeo efetiva se daria em 1903 onde uma draacutestica revoluccedilatildeo de seu
entendimento abriria caminho para dar iniacutecio ao seu pensamento efetivo
O homens natildeo podem pensar em morrer natildeo podem ter grandes pensamentos ambos
Kawai e Gordon jaacute disseram isto Tentei pensar em mim mesmo morto aos trinta e um
de dezembro de meu trigeacutesimo quinto ano mas entretanto por mais que tentasse natildeo
podia pensar sobre isto seriamente Natildeo importa o quanto eu pense na morte eu natildeo
consigo me fazer esquecer o mundo (ID IBID 341)
101
Para Knauth este trecho evidencia uma iluminaccedilatildeo por meio da ideia de morte miacutestica e
renascimento O resultado imediato da iluminaccedilatildeo ao contraacuterio do que poderia parecer coerente
aos olhos ocidentais daacute-se na publicaccedilatildeo imediata de um artigo onde Nishida afirma ldquoEu
estava errado em usar o Zen em consideraccedilatildeo ao conhecimento Eu deveria tecirc-lo usado para o
espiacuterito e alma Ateacute eu comeccedilar a sentir pela visatildeo eu natildeo pensarei nem em filosofia nem em
religiatildeordquo (ID IBID 342) Este momento representa uma iluminaccedilatildeo justamente pelo fato de que
haacute sem embargo a assunccedilatildeo de uma correta postura mas com um propoacutesito enganoso ndash a busca
pelo conhecimento havia posto em xeque absolutamente todos os anos dedicados agrave meditaccedilatildeo
era necessaacuterio portanto comeccedilar novamente
Conforme Knauth Nishida iraacute se preparar nos proacuteximos anos para exprimir o potencial
introspectado durante sua iluminaccedilatildeo Trecircs pontos satildeo neste momento fundamentais O
primeiro eacute a leitura profundamente marcante para Nishida de Mestre Eckhart46 O segundo eacute
o falecimento de sua filha Yūko viacutetima de um ataque de bronquite O terceiro (diretamente
ligado ao segundo) eacute sua luta contra o cigarro Em 1923 Nishida escreve ldquoDeste dia em diante
eu morri para mundo Eu vivo em minha proacutepria filosofia Tudo sacrificado tudo sacrificado
Profunda impressionante experiecircnciardquo (ID IBID 344) e em 1927 ldquoAgrave tarde eu estava sozinho
na casa Pensamento quietos Quietamente eu passei metade do dia Eu natildeo fumei nem sequer
um cigarro Renascimento despertado de um sonho ruim De uma aacutervore podre de alguma
maneira um novo broto de vida pode florescer Hoje eu estava quase felizrdquo (ID IBID) O motivo
pelo qual Knauth intitula seu artigo com a expressatildeo Life is Tragic adveacutem justamente desta
postura de Nishida conforme a qual a vida humana natildeo passaria de preocupaccedilotildees e problemas
46 Nishida inicia a leitura de Eckhart em 1907 Seria interessante ao propoacutesito da tese que houvesse uma explanaccedilatildeo
maior e mais cuidadosa do pensamento de Eckhart sobretudo no segundo capiacutetulo onde seu posicionamento eacute
fundamental para o desenvolvimento do neoplatonismo e da miacutestica Contudo esta difiacutecil tarefa tornaria o percurso
da tese demasiado longo e cansativo podendo desviar a atenccedilatildeo primordial do trabalho Todavia possuo a intenccedilatildeo
de desdobrar este toacutepico em um trabalho futuro
102
A despeito de um aparente pessimismo o que pode ser destacado do percurso intelectual
e pessoal de Nishida eacute a profundidade com qual ele sentiu o peso da vida A doutrina buacutedica do
sofrimento eacute por ele absorvida de maneira natildeo soacute transcendente mas ainda imanente Os
escritos de Nishida revelaratildeo natildeo apenas um caminho filosoacutefico no qual se imbricam a tradiccedilatildeo
sapiencial oriental e a filosofia ocidental mas a descriccedilatildeo de uma experiecircncia vital na qual pulsa
a forccedila do pensamento especulativo Por esta e outras razotildees Nishida havia sido nomeado com
o nome laico-budista ldquosunshinrdquo uma polegada de mente
A produccedilatildeo propriamente filosoacutefica de Nishida eacute tanto mais densa quando suas reflexotildees
pessoais anotadas em seu diaacuterio contudo relativamente mais faacuteceis de serem abordadas devido
agrave sistematicidade que permeia os escritos A despeito de suas incompatibilidades com o sistema
de ensino sua carreira acadecircmica foi coroada em 1894 quando recebeu o tiacutetulo de licenciado
em filosofia com uma tese acerca da causalidade em David Hume culminando no professorado
junto agrave Universidade Imperial de Kyōto em 1913 Neste iacutenterim dedicou-se ao desdobramento
das bases de sua filosofia que teria sido divulgada de maneira mais consistente na obra que
havia publicado em 1911 sob o tiacutetulo Zen no kenkyū (善の研究 Investigaccedilatildeo sobre o bem) A
obra mais conhecida de Nishida busca o autodespertar o que significa uma visatildeo dos
fenocircmenos que compreendem a experiecircncia pura evidente desde a movimentaccedilatildeo de uma
loacutegica toacutepica O termo ldquoloacutegica toacutepicardquo eacute propositalmente ambivalente Por um lado indica uma
loacutegica do espaccedilo do lugar por outro denuncia como esse lugar (locus) revela uma locuccedilatildeo um
discurso Eacute neste lugar que se desenvolvem os limites do pensamento Relatos de alunos de
Nishida comentam que ele costumava desenhar no quadro negro trecircs esferas uma sobre a outra
na qual a primeira representaria os acidentes circundaacuteveis ao sujeito a segunda os elementos
incapturaacuteveis pela percepccedilatildeo e a terceira (com linhas tracejadas) a impossibilidade final de
limitaccedilatildeo e a esfera do absoluto insuperaacutevel e infinitamente expansiacutevel nomeado com o signo
do nada absoluto (絶対無 Zettaina) sua interpretaccedilatildeo para a noccedilatildeo budista de śūnyatā
103
Com isto Nishida arrancaria da tradiccedilatildeo zen budista uma negatividade total para
fundamentar sua ideia de experiecircncia pura (純粋経験 Junsui keiken) que segundo ele ldquo() se
entende conhecer os fatos como eles simplesmente satildeo (hellip)rdquo (NISHIDA 1990 3) Estaacute presente
nesta formulaccedilatildeo a absorccedilatildeo de Nishida da psicologia funcional de William James onde se
depura a correspondecircncia da percepccedilatildeo com a teoria da verdade Nishida ainda afirma ldquo() o
que usualmente se refere como experiecircncia eacute via de regra adulterado por algum tipo de
pensamento portanto por experiecircncia pura se entende aquele estado no qual se tem experiecircncia
sem qualquer discriminaccedilatildeo deliberativardquo (IDEM IBIDEM) O claacutessico exemplo pelo qual se ilustra
a condiccedilatildeo primaacuteria da pureza da experiecircncia sugere que em uma expressatildeo como ldquoouvi uma
moscardquo haacute um momento no qual o sujeito que ouve a mosca e seu barulho e o ato mesmo de
ouvir ainda natildeo foram distinguidos O fundamento da realidade enquanto nada absoluto para
Nishida encontra-se neste preciso momento neste instante incapturaacutevel na inefabilidade do
indescritiacutevel Entretanto embora a erudiccedilatildeo filosoacutefica de Nishida fosse sobremaneira evidente
bem como sua dedicaccedilatildeo ao zen budismo suas ideias natildeo estavam livres de criacuteticas em ambas
as esferas
Uma das criacuteticas mais ferrenhas a Nishida foi apresentada por Hajime Tanabe (田辺 元)
seu sucessor na caacutetedra de filosofia da Universidade Imperial de Kyōto (em 1928) Ao contraacuterio
de Nishida que nunca havia saiacutedo do Japatildeo Tanabe foi contemplado com um intercacircmbio pelo
governo japonecircs e teve a oportunidade de estudar ao lado de Husserl e Heidegger Sua maior
obra Zangedo to shite no tetsugaku (懺悔道としての哲學 A filosofia como caminho metanoeacutetico
1946) ocupava-se da superaccedilatildeo do inevitaacutevel problema epistemoloacutegico que envolvia a questatildeo
do nada absoluto propondo o termo metanoeacutetica derivado do grego μετανόησις e vertido ao
japonecircs como zangedo (懺悔道) cuja definiccedilatildeo seria nas palavras de Tanabe ldquoum baacutelsamo para
a dor do pesar e ao mesmo tempo o recurso para uma luz absoluta que paradoxalmente torna
vigente a escuridatildeo sem expulsaacute-lardquo (TANABE 1986 2)
104
Em decorrecircncia da necessidade de superaccedilatildeo do proacuteprio pensamento a criacutetica de Tanabe
emerge no sentido de questionar se a filosofia possui condiccedilotildees de enquadrar o autodespertar
religioso conforme exposto por Nishida de maneira sistemaacutetica Conforme Agustiacuten Jacinto
Zavala ldquoResumidamente ao tomar como base o ponto de vista da religiatildeo a filosofia de
Nishida lsquoconverte o trans-histoacuterico absoluto em principium [princiacutepio fundamental] do sistema
e mediante esta determinaccedilatildeo vem [finalmente] ordenar e organizar o histoacuterico relativordquo
(ZAVALA 2013 106) ao passo que ldquoPor isto Tanabe diz lsquoa duacutevida fundamental que albergo
frente a filosofia mestre Nishida se relaciona com este ponto () se a filosofia trata de tomar o
ponto de vista religioso como seu proacuteprio ponto de vista necessariamente deixa de ser si mesmardquo
(IDEM IBIDEM) sintetizando a preocupaccedilatildeo de Tanabe
Os conflitos entre a filosofia a auto-percepccedilatildeo religiosa a partir do estabelecimento do
nada absoluto como fundamento da realidade passaratildeo ainda prelo crivo de diversos
interlocutores sofrendo alteraccedilotildees e recebendo criacuteticas diretas e indiretas Em linhas gerais o
problema de Tanabe estaacute diretamente relacionado com suas compreensotildees estritas da religiatildeo e
da filosofia Em primeiro lugar porque ao contraacuterio de Nishida (que era praticante do zen
budismo) Tanabe partia antes do budismo Jōdo Shinshū (浄土真宗 A Escola da Terra Pura) do
monge Shinran (親鸞)47 Em segundo lugar devido aos interesses de Tanabe pela filosofia da
histoacuteria de Wilhelm Wundt e Heinrich Rickert aleacutem da influecircncia da Lebensphilosophie e o
compromisso histoacuterico que ele alimentou a partir de tais influecircncias Por este motivo era
necessaacuterio tanto para resolver a disputa entre Nishida e Tanabe quanto para superar os estaacutegios
preliminares das discussotildees da Escola de Kyōto reformular as compreensotildees de filosofia e
religiatildeo algo que acontece de maneira somente com Keiji Nishitani (西谷 啓治)
47 Sobre a fundamentaccedilatildeo budista de Tanabe confira Joaquim Antonio Bernardes Carneiro Monteiro ldquoO lsquoNada
Absolutorsquo em Hajime Tanabe uma avaliaccedilatildeo criacuteticardquo In Antonio Florentino Neto e Oswaldo Giacoia Jr (orgs)
O Nada absoluto e a superaccedilatildeo do niilismo Os fundamentos filosoacuteficos da Escola de Kyoto Campinas Phi 2013
155-188
105
Keiji Nishitani eacute talvez o filoacutesofo japonecircs contemporacircneo mais popular entre os
ocidentais O motivo eacute provavelmente o estilo bastante solto e livre de seus ensaios
principalmente os que chegaram traduzidos ao Ocidente ndash precisamente os mais maduros
compostos apoacutes a deacutecada de 1960 como Shūkyo to wa Nanika (宗敎とは何か O que eacute religiatildeo
1961) e Nihirizumu (ニヒリズム Niilismo 1986) Estes mesmos trabalhos sofreram diversas
criacuteticas por parte de colegas japoneses que o acusaram de se afastar dos modos propriamente
orientais de expressatildeo supostamente sugerindo uma indiferenccedila ao idioma vernaacuteculo agraves
tradiccedilotildees e aos projetos de seus antecessores Sobre isto Nishitani teria argumentado que as
lacunas do pensamento japonecircs tradicional sobretudo as idiomaacuteticas impossibilitariam o
alcance do sentido de alguns problemas colocados pela filosofia ocidental motivo pelo qual a
criaccedilatildeo de novas palavras em japonecircs se mostrava absolutamente necessaacuterios48 Sem embargo
os questionamentos impostos pelos novos tempos natildeo se prendiam agraves fronteiras linguiacutesticas e
invadiam o Japatildeo modernizado e ocidentalizado com especial forccedila razatildeo pela qual a
aproximaccedilatildeo com a filosofia sua interiorizaccedilatildeo e reflexatildeo era simplesmente inevitaacutevel
Todavia embora Nishitani tenha realmente pendido para o pensamento filosoacutefico ou para a
maneira pela qual os pensadores ocidentais liam as questotildees conflituosas da contemporaneidade
ao mesmo tempo ele se voltava com ainda maior introspecccedilatildeo para o budismo sobretudo para
o zen Esta ambiguidade intencional do pensamento de Nishitani se revela nas inquiriccedilotildees por
ele levantadas e pelo teor de suas investigaccedilotildees deixando ver claramente sua preocupaccedilatildeo a
respeito do direcionamento reflexivo da filosofia contemporacircnea
48 James Heisig discute esta questatildeo pormenorizadamente quando apresenta o estilo filosoacutefico de Nishitani
Conforme Heisig a influecircncia ocidental absorvida por Nishitani cujas maiores expressotildees foram a esteacutetica de
Immanuel Kant o idealismo alematildeo (especialmente Friedrich W J Schelling) Plotino e o neoplatonismo a
miacutestica de Mestre Eckhart e Francisco de Assis e ainda a hermenecircutica existencial de Wilhelm Dilthey e Martin
Heidegger deixam bastante claro o porquecirc ele subverte e converte os limites e alcances da linguagem Heisig
ainda destaca o momento no qual Nishitani afirma que nos miacutesticos a confluecircncia e a uniatildeo entre religiatildeo e
filosofia alcanccedilaram um ponto elevado despertando seu profundo interesse por tais autores A despeito dos temas
eleitos Heisig considera ainda que por este mesmo motivo o estilo de Nishitani se mostra superior ao de Tanabe
e ao de Nishida (cf HEISIG 2002 233-242)
106
Eacute possiacutevel considerar que o problema com o qual Nishitani se defrontou e que norteou
o andamento geral de seu pensamento mais cuidadosamente desenvolvido possui um ponto de
partido muito bem estabelecido qual seja o problema do niilismo denunciado na virada do
seacuteculo por autores como Friedrich Nietzsche Ernst Juumlnger Fioacutedor Dostoievsky Ivan
Turgeniev entre outros Em Shūkyo to wa Nanika longe de tentar elucidar o sentido da religiatildeo
em termos sistemaacuteticos a despeito do tiacutetulo do escrito Nishitani parece buscar uma imersatildeo na
tensatildeo contraditoacuteria que os seres humanos possuem com a experiecircncia religiosa segundo ele
ldquo() para quem a religiatildeo natildeo eacute uma necessidade precisamente por esta razatildeo ela eacute uma
necessidade Natildeo haacute nenhuma outra coisa sobre a qual se possa dizer o mesmordquo (NISHITANI
1983 1) Sua definiccedilatildeo de religiatildeo se abre a partir da compreensatildeo de uma ldquoauto-despertar da
realidaderdquo cuja explicaccedilatildeo se apoia no termo inglecircs realize segundo ele um termo polissecircmico
que possuem tanto o sentido de actualize (atualizar mas tambeacutem trazer o sentido real como na
expressatildeo actually cujo significado seria na verdade) quanto de understand (compreender)
Nishitani explica ldquo() estou utilizando esta palavra para indicar que nossa habilidade para
perceber a realidade significa realizar (atualizar) a realidade por si mesma em noacutesrdquo (IDEM IBIDEM
5) Esta explicaccedilatildeo apareceria para confrontar o sentido do niilismo que segundo Nishitani
ldquo() se refere agravequilo que torna sem sentido o sentido da vida () sinalizando nada menos do
que fato de que o despertar da nossa existecircncia penetrou em uma profundidade extraordinaacuteriardquo
(ID IBID 4) Em suma Nishitani possui um alvo muito claro lidar com o abismo existencial
que se deixa ver sobremaneira angustiante nos novos tempos aqueles mesmos ldquotempos de
penuacuteriardquo da ldquonoite do mundordquo anunciados por Nietzsche denunciados por Heidegger e que
assombravam os filoacutesofos que se deparavam com a instituiccedilatildeo da morte do pensamento
reflexivo mediante a Era Atocircmica dos desastres ambientais e dos deliacuterios da modernizaccedilatildeo
industrializaccedilatildeo e tecnologizaccedilatildeo do mundo Fatos inegaacuteveis cuja profunda relaccedilatildeo com a
histoacuteria do pensamento torna seu sentido cada vez mais obscuro
107
A forccedila interpretativa que moveraacute o pensamento de Nishitani rumo agraves tentativas de
resoluccedilatildeo dos conflitos passaraacute em primeiro lugar por sua leitura a respeito do problema do
niilismo e sua relaccedilatildeo com a ideia de śūnyatā Quando Nishitani alcanccedila esta abordagem ele
frisa de iniacutecio que ldquo() um dos maiores e mais fundamentais problemas que todas as religiotildees
encaram em nossos tempos eacute sua relaccedilatildeo com a ciecircnciardquo (IDEM IBIDEM 77) O motivo aparenta
ser a incompatibilidade entre o pensamento cientiacutefico e o sentido essencial da vida religiosa
Nishitani entatildeo argumenta de maneira incisiva (e que sintetiza o propoacutesito desta tese no final
das contas)
Uma em cada dez pessoas escuta que a religiatildeo e a ciecircncia tem cada uma seu proacuteprio
domiacutenio e tarefa e que as duas nunca precisaratildeo entrar em conflito caso permaneccedilam
confinadas em suas fronteiras originais Isto eacute inadequado Uma fronteira separa uma
aacuterea da outra e ao mesmo tempo pertence a ambas as aacutereas Os fundamentos do
conflito entre religiatildeo e ciecircncia repousam certamente em tais fronteiras De fato desde
os tempos mais antigos metafiacutesica e filosofia consistiram na exploraccedilatildeo destas
fronteiras entre ciecircncia e religiatildeo (IDEM IBIDEM 77-78)
Nishitani ainda questiona se tais fronteiras podem ser consideradas realmente fronteiras ou natildeo
admitindo que a ciecircncia contemporacircnea natildeo parece se preocupar com a questatildeo A criteacuterio de
verdade objetiva da ciecircncia com o apoio das leis da natureza seria responsaacutevel por de certo
modo menosprezar o conhecimento religioso e mesmo o conhecimento filosoacutefico em
decorrecircncia da verdade cientiacutefica absoluta Mas Nishitani contesta no contrafluxo da tendecircncia
mais geral ldquoMas eacute realmente tatildeo evidente Uma nova maneira de olhar para o absoluto e o
relativo conforme a qual dois absolutos podem se tornar conjuntos impensaacutevel em uacuteltima
instacircnciardquo (ID IBID 78) Para Nishitani o problema vige no fechamento das possibilidades
108
Natildeo haacute aqui uma criacutetica ldquocientofoacutebicardquo mas o levantamento de uma questatildeo qual seja
ldquoNatildeo possuiacutemos uma outra maneira de conceber o relativo senatildeo em termos de estabelecimento
de limites ndash como fazemos por exemplo quando dividimos uma folha de papel em duas ao
traccedilar uma linha nelardquo (ID IBID 79) Nishitani mostraraacute esta possibilidade por meio de sua
interpretaccedilatildeo da ideia de śūnyatā e como ela desvela uma perspectiva que explora os elementos
abandonados pela objetividade cientiacutefica Seja como for eacute possiacutevel considerar jaacute de iniacutecio que
se concentra aiacute toda a potecircncia do diaacutelogo entre metafiacutesica e negatividade apresentado ao longo
desta tese sendo possiacutevel acompanhar Nishitani em uma definiccedilatildeo do conflito das fronteiras
Agora bem quais as saiacutedas ou quais as possiacuteveis chaves de leitura para o problema que
se apresenta a saber a questatildeo do niilismo contemporacircneo Quando emprego aqui o termo
filosofia comparada intercultural tenho em vista a maneira pela Nishitani (entre outros)
exploram as muacuteltiplas significaccedilotildees de distintas tradiccedilotildees culturais em suas convergecircncias e
divergecircncias para se aproximar do problema e propor novos pontos de vista A respeito
especificamente da questatildeo levantada Nishitani utiliza a proacutepria ambivalecircncia do niilismo para
propor uma soluccedilatildeo Seu caminho seraacute resgatar o sentido pelo qual a ciecircncia se apropria das
leis da natureza e desenvolve a tecnologia argumento que eacute precisamente por meio desta
apropriaccedilatildeo que se revelam a medida da liberdade do homem em relaccedilatildeo agraves fronteiras impostas
pelas leis naturais Contudo haacute uma inversatildeo pela qual o controlador se torna o controlado
Conforme Graham Parkes ldquo() a vida humana e o trabalho como um todo se tornam
progressivamente mecanizados e impessoais (nos termos de Heidegger perdemos nossa lsquolivre
relaccedilatildeorsquo com a teacutecnica e estamos lsquoacorrentadosrsquo agrave ela)rdquo explicando ademais que para Nishitani
ldquoA liberdade advinda das leis da natureza que a tecnologia mecanizada nos concede aleacutem do
sentimento concomitante de distacircncia ou separaccedilatildeo do mundo natural levam os seres humanos
a lsquose comportarem como se eles estivessem completamente fora das leis da naturezarsquordquo (PARKES
2013a 103) Sendo assim a uacutenica via possiacutevel eacute restabelecer esta relaccedilatildeo humano-natureza
109
O ponto de apoio de Nishitani para colocar o problema parte da compreensatildeo que
oferece o neoplatonismo e a miacutestica medieval de Deus como nada absoluto (ele cita
especificamente Mestre Eckhart neste ponto) para trazer agrave tona a questatildeo morte-sive-vida
Nishitani evidencia portanto que ldquoEste ponto natildeo pode repousar em um lado mais distante
aleacutem deste mundo e desta vida terrena que possuiacutemos Deve repousar no lado mais proacuteximo
tanto mais proacuteximo quanto nossas vidas ordinariamente devem serrdquo (ID IBID 90) Aproveitando
a perspectiva budista para elucidar este caminho Nishitani esclarece de maneira precisa que
ldquoŚūnyatā eacute o ponto no qual noacutes nos tornamos manifestos de nossa proacutepria talidade (suchness)
como seres humanos concretos como indiviacuteduos com alma e personalidade Ao mesmo tempo
eacute o ponto no qual tudo ao redor se manifesta para noacutes em sua proacutepria talidade (suchness)rdquo (ID
IBID 90)49 Śūnyatā envolve inevitaacutevel e necessariamente este complexo conceito de talidade
(真如 Shinrsquonyo ndash Tathatā तथता) que eacute sem embargo o berccedilo da meditaccedilatildeo oriental
A talidade eacute a via pela qual se extrai a conduccedilatildeo do sistema eacutetico e moral da sociedade
hinduiacutesta primitiva Sua disseminaccedilatildeo no Extremo Oriente eacute carregada por duas tradiccedilotildees quais
sejam o daoiacutesmo e o budismo Os daoiacutestas centram sua noccedilatildeo de ldquoprinciacutepiordquo por meio da noccedilatildeo
de dao (道) e sua relaccedilatildeo com de (德) O famoso Dao De Jing (道德经) bem como a obra do
mestre Zhuangzi (莊子) satildeo os principais responsaacuteveis por colocarem ambos os princiacutepios (dao
e de) e movimento dinacircmico conforme o qual a relaccedilatildeo com natureza natildeo seria entendida nem
como celestial nem como humana mas como ambas sem que uma tenha privileacutegio sobre a
outra ndash e este seria enfim o caminho (dao) da virtude (de) (cf ZHUANGZI 2009 42)
49 Traduzo aqui suchness por talidade com base na ideia de que Nishitani se refere ao conceito budista de Tathatā
(तथता) que em japonecircs se ilustra com o kanji 真如 (Shinnyo) cuja traduccedilatildeo seria ldquorealidade absolutardquo mas natildeo
corresponde ao peso do termo Sobre isto Antonio Morillas escreve que ldquoO termo tathata eacute de difiacutecil traduccedilatildeo
em castelhano Em inglecircs se verte com as expressotildees suchness (a condiccedilatildeo de ser ldquotalrdquo e como se eacute) thatness (o
fato de ser ldquoissordquo que se eacute) e isness (a qualidade de algo que ldquoeacuterdquo sem mais o que eacute e como eacute) () A talidade
[traduccedilatildeo castelhana de tathata] eacute a noccedilatildeo do fato de que a realidade e as coisas e fenocircmenos que a compotildeem satildeo
ldquoassimrdquo ldquotalrdquo e como satildeo que satildeo ldquoissordquo ldquoo que satildeordquo em seu caraacuteter plenamente desnudo na existecircncia luminosardquo
(MORILLAS 2006 167) Pela proximidade com o idioma castelhano opto aqui por adotar a sugestatildeo de Morillas
110
O budismo especialmente o budismo zen absorveria tais ideias com especial forma nos
pensamentos de Kūkai (空海) e Dōgen Zenji (道元禅師) Graham Parkes explica que para Kūkai
duas ideias se configuram essenciais Sokushinjobutsu (即身成仏) a possibilidade de atingir a
iluminaccedilatildeo na vida presente (em contraste ao princiacutepio budista tradicional conforme o qual
seriam necessaacuterias muitas vidas) e Hosshin seppo (発疹 説法 ) o entendimento de que a
personificaccedilatildeo buacutedica eacute desprovida de forma e imagem natildeo permitindo conceitualizaccedilatildeo nem
verbalizaccedilatildeo (cf PARKES 2003 81) A despeito da uniatildeo suscitada pelo daoiacutesmo o budismo
chinecircs do oitavo seacuteculo estava imerso em uma profunda discussatildeo acerca da questatildeo se a
natureza buacutedica podia ser atribuiacuteda somente aos seres sencientes ou tambeacutem agraves miacutenimas
partiacuteculas de poeira Kūkai articula as duas ideias acima mencionadas e interpretas as chamadas
ldquotrecircs intimidadesrdquo (corpo fala mente) do Dainichi Nyorai (木造大日如来坐像) que representa a
revelaccedilatildeo esoteacuterica dos ensinamentos no Budismo para sustentar o muacutetuo pertencimento da
relaccedilatildeo do todo com suas partes assumindo a natureza buacutedica para absolutamente tudo Ele
escreve neste sentido ldquoEssa existecircncia estaacute naquela e aquela estaacute nessa A Existecircncia do Buda
(Mahāvairocana) eacute a existecircncia dos seres sencientes e vice e versa Eles natildeo satildeo idecircnticos mas
satildeo todavia idecircnticos eles natildeo satildeo diferentes mas satildeo todavia diferentesrdquo (KŪKAI 1972 93)
Jaacute para Dōgen a evocaccedilatildeo da conduta zen se daria por meio de uma miacutestica cotidiana
alimentando a noccedilatildeo de que toda atividade eacute expressatildeo da natureza buacutedica Parkes argumenta
que algumas atividades satildeo especialmente ilustrativas como por exemplo preparar a comida
servi-la e come-la Dōgen citaria um trecho do Vimalakīrti Nirdeśa Sūtra (नवमलकीनत निदश सतर) que
diria ldquoQuando somos unos com a comida que comemos somos unos com todo o universordquo
evocando o uso do silecircncio como veiacuteculo para o esclarecimento do śūnyatā como fundamento
absoluto da realidade (cf PARKES OP CIT 84) As praacuteticas rituais natildeo possuiriam todavia
conotaccedilatildeo lituacutergica pontual e direcionada mas antes a totalidade de uma experiecircncia de vida
religiosa
111
Tanto Kūkai quanto Dōgen influenciaram amplamente o pensamento de Nishitani e o
ponto de vista conforme o qual o śūnyatā direciona uma atitude por meio da qual se mostra a
talidade Tanto no daoiacutesmo de Zhuangzi quando no zen budismo de Kūkai e Dōgen estatildeo em
jogo o aspecto formal a aparecircncia (rūpa shiki) da realidade em torno por um lado e a assunccedilatildeo
da dissoluccedilatildeo do fundamento dessa realidade por outro (sua vacuidade śūnyatā kū) Por este
motivo haacute uma muacutetua reciprocidade entre a totalidade e as coisas entre uno e muacuteltiplo Isto eacute
o que permite a participaccedilatildeo e ao mesmo tempo incorporaccedilatildeo da realidade (dharmakāya)
Contudo natildeo seraacute o mero resgate das tradiccedilotildees orientais que forneceraacute a Nishitani a resposta
ao problema no que concerne ao impacto da questatildeo frente aos tempos de niilismo mas sim o
resultado da confrontaccedilatildeo desta tradiccedilatildeo com a filosofia contemporacircnea ocidental ou sem
embargo o confronto entre as fronteiras
Graham Parkes atenta para uma reivindicaccedilatildeo de Nishitani de haver superado em certa
medida o desenvolvimento das filosofias de pensadores como Hegel Nietzsche e Heidegger
(cf PARKES 2013b 189-190) Contudo no cerne desta proposiccedilatildeo estaacute a ideia de que o que foi
superado natildeo foi propriamente o conteuacutedo da meditaccedilatildeo mas a forma da abordagem ou seja
a perspectiva intercultural privilegiada da comparaccedilatildeo filosoacutefica de Nishitani Com o anuacutencio
da morte de Deus e dos tempos de niilismo em Nietzsche ficou evidente um diagnoacutestico da
atividade humana inerente aos valores que a guiam por um lado e a induccedilatildeo ao desespero
suscitado pela projeccedilatildeo cognoscitiva ao ente por outro A saiacuteda de Nietzsche por meio do
ldquogrande antiacutedotordquo da transvaloraccedilatildeo de todos os valores eacute recebida em Nishitani considerando
trecircs ideias chave de sua leitura budista (1) a constituiccedilatildeo do fundamento da existecircncia como
uma experiecircncia aleacutem da relaccedilatildeo entre sujeito objeto por meio do conceito de (referente agrave noccedilatildeo
de dharma धम) (2) a reaccedilatildeo de retorno ao mesmo de toda atividade (a partir do conceito de
karma कम) e a noccedilatildeo de que natildeo haacute nada que exista independente de circunstacircncias e
condicionamento ou a chamada ldquoco-originaccedilatildeo dependenterdquo (o pratītya-samutpāda परतीतयसमतपाद)
112
Portanto o que em Nietzsche seria postulado como destino enquanto o ldquomesmordquo (o ego
fatum nietzscheano) engendrando um ponto de vista criativo em Nishitani seria entendido
desde a ideia do karma Em Nihirizumu Nishitani escreve acerca deste ponto especiacutefico que
ldquoNeste niacutevel fundamental o mundo se move na esfera do mesmo e o mesmo na esfera do
mundo Esta ideia estaacute proacutexima da ideia budista de karma embora em Nietzsche o ponto de
vista do mesmo como destino eacute fundamentalmente criativordquo (NISHITANI 1990 50) Em termos
mais simples de acordo com Parkes ldquo() o que parece um golpe do destino pode ser entendido
antes como uma parte de nossa proacutepria atividaderdquo (PARKES OP CIT 196) O florescimento desta
consideraccedilatildeo se daacute na afirmaccedilatildeo niezscheana do amor fati e da superaccedilatildeo do abismo da grande
suspeita niilista por meio da grande dor pela qual se renasce o que seraacute entendido em Nishitani
a partir do retorno ao abismo onde ldquo() uma vez que algueacutem eacute libertado do abismo a
necessidade se torna um elemento desta vida de liberdade Neste caso necessidade se torna
uma com a criatividaderdquo (NISHITANI OP CIT 52) Entretanto a ressalva de Nishitani consiste que
a afirmaccedilatildeo resultante da superaccedilatildeo do abismo niilista pode ainda ser superar e que a vontade
de poder eacute ainda uma ldquocoisardquo chamada ldquovontaderdquo (cf IDEM OP CIT 234) cuja uacutenica possibilidade
de ser pensada para aleacutem dos fundamentos que redundam no destino como mesmo seria
justamente o ponto de vista do śūnyatā Uma ilustraccedilatildeo possiacutevel de ldquopara onderdquo este ponto de
vista levaria pode ser encontrada quando Nishitani comenta a arte japonesa de arranjo de flores
a chamada Ikebana (生け花) Ali fica niacutetido qual a postura que se assume quando se daacute conda
da vacuidade da realidade uacuteltima e absoluta Nishitani escreve
Desde a perspectiva de sua natureza fundamental todas as coisas no mundo satildeo
lacircminas de grama sem raiacutezes Tal grama entretanto tenho fincado suas raiacutezes no solo
esconde a si mesma em sua fundamental ausecircncia de raiacutezes () sendo cortadas de suas
raiacutezes as flores satildeo feitas pela primeira vez pela manifestaccedilatildeo minuciosa de sua
natureza fundamenta ndash sua falta de raiacutezes (IDEM 2011 1199)
113
Ao fim e ao cabo Nishitani estaacute chamando atenccedilatildeo para uma aprendizagem decorrente da ldquoco-
originaccedilatildeo dependenterdquo a partir da natureza Sobre este ponto e sua relaccedilatildeo com o niilismo
Parkes escreve ldquo() noacutes humanos diferimos de outros entes por meio da possibilidade de nos
tornamos conscientes de nossa proacutepria finitude no estado da niilidade (kyomu) um tipo de
ldquovacuidade ocardquo que eacute uma antecacircmara para a vacuidade criativa (śūnyatā kū)rdquo (PARKES OP
CIT 112) Resumidamente o ponto de vista do śūnyatā se configura para Nishitani a partir da
tradiccedilatildeo do zen budismo oriental e de sua leitura da filosofia ocidental como uma iluminaccedilatildeo
a respeito do fundamento da realidade enquanto vacuidade evidenciado sobremaneira pelo
abismo do niilismo contemporacircneo e que direciona o ser humano para uma vacuidade criativa
na qual sua relaccedilatildeo com as coisas congrega tudo em uma mesma natureza buacutedica ou seja o
lugar onde as flores o arranjo o florista e o ato de fazer o arranjo satildeo a mesma coisa ou o lugar
onde a mosca o anjo Deus e o eu satildeo o mesmo
114
CONCLUSAtildeO
Durante o primeiro semestre de 2011 estava profundamente motivado com a preparaccedilatildeo do
texto final desta tese doutoral Ocupava-me ao mesmo tempo das pesquisas leituras
sistematizaccedilatildeo dos esquemas defesa da versatildeo do final do projeto e dos cursos que iria ministrar
na Universidade Federal do Rio Grande do Norte nos meses seguintes A abordagem agrave histoacuteria
da metafiacutesica agrave tradiccedilatildeo do neoplatonismo e agrave filosofia japonesa contemporacircnea atingiam-me
simultaneamente por meio de muacuteltiplas construccedilotildees conceituais interligadas pela lucidez
provocada mediante a histoacuteria dos efeitos de cada ambiente temaacutetica Contudo ao 11 de marccedilo
daquele ano foi transmitida uma notiacutecia que imediatamente cessou minha produccedilatildeo e
empolgaccedilatildeo com todo e qualquer toacutepico Os jornais incessantemente transmitiam as uacuteltimas
notiacutecias a respeito de um terremoto seguido por um tsunami que havia atingido o Japatildeo e
danificado a estrutura da usina nuclear de Fukushima na cidade de Ōkuma expondo a
comunidade da regiatildeo agrave alarmantes niacuteveis de radioatividade O desastre ambiental seria
considerado algum tempo mais tarde a maior cataacutestrofe nuclear desde Chernobyl em 1986
Evidentemente como havia ocorrido tambeacutem em 2001 durante o ataque terrorista ao
World Trade Center em Nova Iorque as reportagens que chocavam o mundo se tornariam
rapidamente repetitivas e esgotariam o puacuteblico O motivo pelo qual se daria tal neutralizaccedilatildeo e
letargia frente aos fatos foi denunciado por Slavoj Žižek na obra The Year of Dreaming
Dangerously (2012) Ele pondera os eventos destrutivos de 2011 tais quais a Primavera Aacuterabe
e o Occupy Wall Street desde a neutralizaccedilatildeo ideoloacutegica promovida pela miacutedia dando margem
agrave interpretaccedilatildeo conforme a qual os veiacuteculos de comunicaccedilatildeo vigentes aniquilam o potencial
emancipatoacuterio dos eventos por meio da pasteurizaccedilatildeo de sua difusatildeo
115
Žižek destaca o termo da liacutengua persa ldquowar nam nihadanrdquo cujo abstruso significado
seria em linhas gerais ldquomatar algueacutem enterrar seu corpo e plantar flores sobre sua cova para
esconder o cadaacuteverrdquo Para Žižek os meios de comunicaccedilatildeo do capitalismo global destroem a
absorccedilatildeo propriamente humana dos eventos do mundo contemporacircneo exatamente neste
mesmo sentido (cf ŽIŽEK 2012 9) Sem sombra de duacutevidas o mesmo se daria em relaccedilatildeo ao
desastre de Fukushima e hoje trecircs anos depois uma pedra foi posta por sobre o assunto e poucas
pessoas sequer se lembram do ocorrido
Entretanto meu denso envolvimento com a filosofia japonesa natildeo permitiu que os
acontecimentos fossem dissolvidos assim tatildeo facilmente Passei um bom tempo tocado pela
calamidade e mesmo ateacute agora ainda tenho dificuldades em lidar com o assunto As
adversidades emotivas todavia natildeo me impediram de pensar com devoccedilatildeo sobre a questatildeo
pelo contraacuterio estimularam ainda mais o rumo da reflexatildeo filosoacutefica
O ano seguinte seria marcado em meu percurso pessoal pela saiacuteda do paiacutes e realizaccedilatildeo
de estaacutegio sanduiacuteche junto agrave University College Cork (Colaacuteiste na hOllscoile Corcaigh) para
realizar minhas pesquisas sob a supervisatildeo do professor Graham Parkes na Irlanda Parkes
havia publicado no iniacutecio daquele ano um breve artigo intitulado Nuclear Power after
Fukushima 2011 Buddhist and Promethean Perspectives (2012) no qual natildeo apenas analisava
os fatos mas ainda apresentava uma meditaccedilatildeo a respeito de uma filosofia da natureza para
aleacutem das ecologias profundas ou natildeo
Simplificando o assunto o estiacutemulo para o fornecimento de energia nuclear eacute
alimentado pela conclusatildeo de que se trata de uma fonte limpa e autossustentaacutevel em contraste
agrave queima do combustiacutevel e exploraccedilatildeo de recursos foacutesseis ou mesmo aos impactos ambientais
causados pela obstruccedilatildeo de fluxos de aacutegua Aparentemente trata-se de uma soluccedilatildeo emergente
frente ao ainda ineficaz suporte das energias ecologicamente viaacuteveis como a eoacutelica e a solar
116
Parkes pontua sobre isto que ldquoA questatildeo crucial natildeo diz respeito aos meacuteritos relativos
e agraves desvantagens do poder nuclear versus a energia dos combustiacuteveis foacutesseis Antes trata-se
de pensar o que norteia nosso desejo de consumir tanta energia em primeiro lugarrdquo (PARKES
2012 103) O posicionamento diz respeito a um ldquopasso atraacutesrdquo A pergunta eacute o que move no
final das contas o irredutiacutevel e irrefreaacutevel iacutempeto de explorar todos os recursos naturais para
fomentar a manutenccedilatildeo da vida humana na Terra Mesmo com a leitura do escrito eu
particularmente soacute conseguiria compreender o direcionamento proposto por Parkes apoacutes
acompanhar seus seminaacuterios sobre filosofias da natureza entre Ocidente e Oriente no qual
ficariam claras as bases pelas quais ele questionava a conduta contemporacircnea face agrave crise
ambiental
Entretanto quando me deparei com as primeiras leituras oferecidas por Parkes (muitas
das quais constam na bibliografia desta tese) natildeo fui acometido pelo espanto da novidade mas
pela pulsatildeo da comparaccedilatildeo A experiecircncia que jaacute havia acumulado sob a orientaccedilatildeo do
professor Oscar Federico Bauchwitz durante meus anos de pesquisa acadecircmica dedicado agrave
leitura de Nietzsche Heidegger e da tradiccedilatildeo do neoplatonismo e da miacutestica medieval proveu-
me de uma arquitetocircnica meditativa que com a aproximaccedilatildeo com a filosofia oriental apenas
nutriu imediata empatia e introspecccedilatildeo Sendo assim quando congreguei o focirclego e as forccedilas
necessaacuterias para encerrar este trabalho natildeo tinha em mente uma tese levantada de um mero
problema particular mas um longo percurso especulativo que ao longo das paacuteginas aqui
apresentadas tentei descrever da melhor maneira possiacutevel
Sobreveio-me durante os termos finais uma intensa obrigaccedilatildeo de sustentar que a uacutenica
via possiacutevel para enfrentar os problemas filosoacutefico contemporacircneos era a instauraccedilatildeo de um
retorno aos fundamentos por meio da interculturalidade Portanto a conclusatildeo desta tese soacute
pode caminhar rumo agrave elucidaccedilatildeo de quais fundamentos no final das contas satildeo estes que estatildeo
aqui e ali indicados no interior do trabalho
117
Em 1953 Martin Heidegger pronunciou a conferecircncia intitulada Die Frage nach
Technik O escrito eacute talvez uma de suas mais claras expressotildees acerca de sua anaacutelise da
consumaccedilatildeo da histoacuteria da metafiacutesica a instauraccedilatildeo do niilismo europeu e o advento da Era
Teacutecnica Paralelamente durante o mesmo periacuteodo (na verdade em 1954) Nishitani finalizava
a composiccedilatildeo de seu ensaio sobre ldquoNiilismo e Śūnyatārdquo mais tarde incluiacutedo no volume Shūkyo
to wa Nanika abordado aqui ao longo do terceiro capiacutetulo Como foi possiacutevel observar em
Nishitani a saiacuteda do ponto de vista da vacuidade ou nada absoluto demandava a busca por
uma postura interior do ser humano na qual se tornava evidente nada mais senatildeo o elemento
inexplicaacutevel e inexprimiacutevel do fundamento uacuteltimo da realidade que era assumido agora como
oriente para o comportamento humano frente ao colapso do novo mundo A dificuldade inerente
de absorver a proposta de Nishitani todavia eacute ilustrada de maneira praacutetica quando ele aborda
uma questatildeo particular qual seja a relaccedilatildeo entre ser humano e natureza na imagem do jardim
zen Noacutes estamos dentro do jardim e natildeo somos apenas espectadores porque noacutes nos tornamos
parte da real manifestaccedilatildeo da expressatildeo da proacutepria experiecircncia iluminadora do arquiteto do
jardim O jardim eacute meu mestre Zen agora e eacute seu mestre Zen tambeacutem (NISHITANI 1992 55)
Quando Heidegger indica em sua conferecircncia que a essecircncia da teacutecnica natildeo eacute ela mesma nada
teacutecnico ele estaacute em um movimento similar ao de Nishitani chamando atenccedilatildeo para o fato de
que eacute necessaacuterio tambeacutem retornar a algo que natildeo pode ser submetido agrave objetividade cientiacutefica
da relaccedilatildeo sujeito-objeto que sustenta a tecnicizaccedilatildeo do mundo Neste sentido a saiacuteda de
Heidegger eacute ilustrada por meio de um dos conceitos mais enigmaacuteticos de toda sua obra
Gelassenheit Heidegger escreve ldquoTalvez se oculte na Gelassenheit uma accedilatildeo mais elevada do
que em todos os atos do mundo e do que nas maquinaccedilotildees das reliacutequias humanasrdquo (HEIDEGGER
1983a 41) O sentido contudo permanece oculto Resta apenas a ideia de que esta postura
evocada por Heidegger demanda um ldquodeixarrdquo (lassen) que atina para um recolhimento da
paradoxal ambiguidade do que se revela na essecircncia do humano
118
Ressoa tanto em Heidegger quanto em Nishitani uma raiz comum aquela na qual se
ldquoRenuncia aos sentidos agraves operaccedilotildees intelectuais a todo sensiacutevel e ao inteligiacutevelrdquo ainda mais
aquela onde se pede ldquoDespoja-te de todas as coisas que satildeo e ainda das que natildeo satildeo Deixa de
lado teu entender e esforccedila-te por subir o mais que possa ateacute unir-se com aquele que estaacute mais
aleacutem de todo ser e todo saberrdquo Estas palavras aqui propositalmente citadas sem a indicaccedilatildeo
bibliograacutefica satildeo do Pseudo-Dioniacutesio Areopagita onde neoplatonismo e miacutestica se encontram
no caminho da negatividade Tanto o ldquoprestar atenccedilatildeo aos misteacuterios da naturezardquo em Nishitani
quando a ldquoabstenccedilatildeo da vontade por meio da natildeo-vontaderdquo o ldquoquerer o natildeo-quererrdquo em
Heidegger estatildeo depositados nas sentenccedilas do miacutestico siacuterio
Agora qual eacute este lugar ou natildeo-lugar aleacutem de todo ser e todo saber O que se revela
por meio do despojo e da supressatildeo de todo saber e todo o dizer Esta pergunta natildeo eacute respondida
Natildeo pode ser respondida O que se desvela aiacute eacute justamente o incoacutegnito o misteacuterio Como reagir
portanto frente a tal proposta de em meio a existecircncia contemporacircnea remar no contrafluxo
do sentido do mundo e buscar uma quietude absoluta no silecircncio que adveacutem do misteacuterio da
existecircncia Agrave esta pergunta tampouco se ofereceraacute resposta mas desta vez porque ela jaacute estaacute
respondida A reaccedilatildeo foi nomeada com diversos termos ao longo da histoacuteria recebendo distintas
designaccedilotildees Algumas tradiccedilotildees orientais optam por chama-la ldquoiluminaccedilatildeordquo
Por fim o conflito das fronteiras aqui abordado natildeo eacute um evento especiacutefico um
momento ou instante captaacutevel uma situaccedilatildeo ou circunstacircncia particular O conflito das
fronteiras eacute um caminho ou melhor uma caminhada Uma caminhada rumo ao desconhecido
cujo uacutenico sinal evidente acena para o clamor de um silecircncio ensurdecedor indicando que jaacute eacute
hora de se recolher
119
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