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Resenha de “A dança dos ossos” 1 (Bernardo Guimarães) Isabelle Rodrigues 2 O conto “A dança dos ossos”, de Bernardo Guimarães, consiste em uma troca de relatos proferidos em torno de uma fogueira, diante de uma casa de recebedoria no interior de Goiás. O narrador se encontra em meio a um grupo de homens rústicos, entre os quais está um barqueiro, chamado Cirino, que conta a todos o que lhe aconteceu quando passava pela floresta e se deparou com um esqueleto que pulava e dançava. Nossa proposta é comentar três aspectos deste conto: o modo narrativo, a construção do medo e a caracterização de um monstro. Modo narrativo Pode-se perceber um contraste visível entre a figura do narrador, um homem cético da cidade, e a de Cirino, homem supersticioso do interior. Através deles temos dois modos discursivos diferentes: o da escrita, marcado pela narração do conto, e o da oralidade, caracterizado pela fala de Cirino. Tais modos são igualmente concorrentes, já que o conto se desenrola através do diálogo entre os dois, e um tenta convencer ao outro de seu ponto de vista, seja através de argumentos, seja através de narrações. Cirino é o primeiro a contar que, quando adentrava a floresta, em uma sexta- feira, o burro que montava empacou bem próximo à conhecida cova de Joaquim Paulista. Não tardou para que o esqueleto do mesmo aparecesse, para se exibir em seu espetáculo macabro. A aparição dançou em volta do barqueiro até finalmente montar no burro e disparar com ele pela floresta. Cirino diz que perdeu os sentidos e só se recorda de acordar, na varanda de sua casa, na manhã seguinte. O narrador desacredita Cirino, afirmando que tudo não passara de imaginação, causada pelo medo e pelo álcool. Narra, então, valendo-se também de recursos da oralidade, como fora devido ao medo que, em certa noite, pensara ter visto não uma vaca, mas dois camaradas carregando um cadáver. No entanto, Cirino tem total 1 GUIMARÃES, Bernardo. A dança dos ossos. In:___. Lendas e Romances. São Paulo: Martins Fontes, 2006. (pp. 199-235) 2 Graduanda do Curso de Letras da UERJ, bolsista de Iniciação Científica (FAPERJ) e membro do Grupo de Pesquisa “O Medo como Prazer Estético”, sob a orientação do Prof. Dr. Julio França (UERJ).

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Resenha de “A dança dos ossos” 1 (Bernardo Guimarães) Isabelle Rodrigues 2

O conto “A dança dos ossos”, de Bernardo Guimarães, consiste em uma troca

de relatos proferidos em torno de uma fogueira, diante de uma casa de recebedoria no

interior de Goiás. O narrador se encontra em meio a um grupo de homens rústicos,

entre os quais está um barqueiro, chamado Cirino, que conta a todos o que lhe

aconteceu quando passava pela floresta e se deparou com um esqueleto que pulava e

dançava. Nossa proposta é comentar três aspectos deste conto: o modo narrativo, a

construção do medo e a caracterização de um monstro.

Modo narrativo

Pode-se perceber um contraste visível entre a figura do narrador, um homem

cético da cidade, e a de Cirino, homem supersticioso do interior. Através deles temos

dois modos discursivos diferentes: o da escrita, marcado pela narração do conto, e o

da oralidade, caracterizado pela fala de Cirino. Tais modos são igualmente

concorrentes, já que o conto se desenrola através do diálogo entre os dois, e um tenta

convencer ao outro de seu ponto de vista, seja através de argumentos, seja através de

narrações.

Cirino é o primeiro a contar que, quando adentrava a floresta, em uma sexta-

feira, o burro que montava empacou bem próximo à conhecida cova de Joaquim

Paulista. Não tardou para que o esqueleto do mesmo aparecesse, para se exibir em

seu espetáculo macabro. A aparição dançou em volta do barqueiro até finalmente

montar no burro e disparar com ele pela floresta. Cirino diz que perdeu os sentidos e

só se recorda de acordar, na varanda de sua casa, na manhã seguinte.

O narrador desacredita Cirino, afirmando que tudo não passara de imaginação,

causada pelo medo e pelo álcool. Narra, então, valendo-se também de recursos da

oralidade, como fora devido ao medo que, em certa noite, pensara ter visto não uma

vaca, mas dois camaradas carregando um cadáver. No entanto, Cirino tem total

1 GUIMARÃES, Bernardo. A dança dos ossos. In:___. Lendas e Romances. São Paulo: Martins Fontes,

2006. (pp. 199-235) 2 Graduanda do Curso de Letras da UERJ, bolsista de Iniciação Científica (FAPERJ) e membro do Grupo

de Pesquisa “O Medo como Prazer Estético”, sob a orientação do Prof. Dr. Julio França (UERJ).

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confiança na acurácia dos seus próprios sentidos, e se afirma mais capaz do que o

narrador, como podemos ver na passagem mais adiante:

A sua história está muito bonita; mas, perdoe que lhe diga, eu por mais escuro que estivesse a noite e por mais que eu tivesse entrado no gole, não podia ver uma rede onde havia uma vaca; só pelo faro eu conhecia. Meu amo decerto tinha poeira nos olhos. (GUIMARÃES, 2006, p. 221)

Cirino defende convictamente seu relato, e explica porque os ossos de Joaquim

Paulista se comportariam de tal inusitada maneira: ele fora assassinado, devido ao

ciúme despertado pelo amor de uma moça chamada Carolina. Desde então, não

descansara na cova onde esconderam seu corpo, e voltava sempre para assombrar a

floresta nas noites de sexta-feira.

Tanto a narração em primeira pessoa quanto o diálogo do narrador com Cirino

caracterizam a oralidade do texto, evocando os antigos “causos” contados em volta da

fogueira. Por sua vez, a oralidade reflete o ambiente rural, repleto de superstições. O

povo parece estar à mercê das incompreensíveis forças da natureza e de seus

mistérios, e é através do ato de narrar que suas crenças fantásticas são passadas

adiante.

Mas a oralidade, ao mesmo tempo em que ilustra o ambiente rural do conto,

também põe em dúvida a veracidade dos relatos: pode-se confiar no que Cirino conta?

À primeira vista, o narrador se recusa a acreditar na palavra do amigo, alegando que

este teria imaginado tudo devido ao medo e a ingestão de bebidas alcoólicas. No

entanto o barqueiro demonstra total confiança em seu método de aferição da

realidade: seus próprios sentidos:

O velho barqueiro ria com a melhor vontade, zombando de

minhas explicações. — Qual, meu amo, disse ele, réstia de luar não tem parecença

nenhuma com osso de defunto, e bicho do mato, de noite, está dormindo na toca, e não anda roendo coco. E pode Vm. ficar certo de que, quando eu tomo um gole, ali é que minha vista fica mais limpa e o ouvido mais afiado.

— É verdade, e, a tal ponto, que até chegas a ver e ouvir o que não existe.

— Meu amo tem razão; eu também, quando era moço, não acreditava em nada disso por mais que me jurassem. Foi-me preciso ver para crer; e Deus o livre a Vm. de ver o que eu já vi.

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— Eu já vi, Cirino; já vi, mas nem assim acreditei. — Como assim, meu amo?... — É que nesses casos eu não acredito nem nos meus próprios

olhos, senão depois de estar bem convencido, por todos os modos, de que eles não enganam. (IBID., p. 217).

O conto se desenvolve a partir do conflito argumentativo entre os dois

personagens, Cirino defendendo o sobrenatural e o narrador desacreditando-o, até

que, finalmente, este é convencido pelo caráter lógico-argumentativo da narrativa do

barqueiro, e conclui:

À vista de tão valentes provas, dei pleno crédito a tudo quanto o barqueiro me contou, e espero que a meus leitores acreditem comigo, piamente, que o velho barqueiro do Parnaíba, uma bela noite, andou pelos ares montado em um burro, com um esqueleto na garupa. (IBID., p. 235).

A conclusão a que chega o narrador parece revelar sua simpatia pela verdade

própria da narrativa oral. Ao longo do conto, ele já demonstrara sua incapacidade de

concorrer com a expressividade da narração do barqueiro, que não podia ser

representada adequadamente “por sinais escritos” (IBID., p. 214). Ecos românticos da

valorização do homem da terra, com sua sabedoria rústica.

Caracterização do medo

O conto de Bernardo Guimarães tem como ambiente a região entre Minas

Gerais e Goiás. É um cenário rural, que aparenta não apenas ser distante das grandes

cidades, mas igualmente isolado e, portanto, caracterizado como ermo. O espaço

principal, a floresta onde Joaquim Paulista é assassinado e, posteriormente, onde seu

esqueleto aparece, é um local ainda mais deserto. Afastado dos homens, trata-se de

um local comandado por forças de outra ordem e, portanto, que foge ao controle e à

compreensão dos personagens, oprimindo-os.

Para Montaigne, o medo é um estranho sentimento que projeta os homens

“precipitadamente fora do bom-senso”3 (MONTAIGNE, 1991, p. 39), tornando-os

insensatos e causando terríveis alucinações até nos mais equilibrados. O medo, ele diz,

faz as pessoas acreditarem que viram lobisomens, gnomos ou quimeras, de tal

3 MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (p. 39)

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maneira que um homem confundiria um rebanho com um esquadrão couraçado. Não

há rebanhos em “A dança dos ossos”, mas o ambiente induz o narrador a confundir

uma vaca e com dois caboclos carregando um cadáver em uma rede, como podemos

averiguar na seguinte passagem:

Eu ia viajando sozinho – por onde não importa – de noite, por um caminho estreito, em cerradão fechado, e vejo ir, andando a alguma distância diante de mim, qualquer coisa, que na escuridão não pude distinguir. Aperto um pouco o passo para reconhecer o que era, e vi clara e perfeitamente dois pretos carregando um defunto dentro de uma rede.

Bem poderia ser também qualquer criatura viva, que estivesse doente ou mesmo em perfeita saúde; mas, nessas ocasiões, a imaginação, não sei por quê, não nos representa senão defuntos. Uma aparição daquelas, em lugar tão ermo e longe de povoação, não deixou de me causar terror. (IBID., p. 218)

A cova de Joaquim Paulista, tida como assombrada, está localizada no interior

da já mencionada floresta. Mas a maneira como o esqueleto a assombrava era

bastante peculiar. Primeiramente, porque era de maneira inversa ao que encontramos

na maioria das histórias de assombração: se nessas narrativas dizia-se que alguém

morreu e sua alma ficou assombrando os vivos, temos, em “A dança dos ossos”,

exatamente o contrário, pois os personagens consideram que a alma de Joaquim

Paulista foi enterrada e seu corpo é que vagaria, enquanto seus ossos estiverem

espalhados pela floresta. Além disso, se o leitor de uma história de fantasmas espera

que a assombração seja uma ameaça aos vivos, o esqueleto de Joaquim Paulista não

causa nenhum dano físico a ninguém. Ele apenas dança, mexendo-se e pulando, sem

agredir Cirino, apenas assustando-o com sua imagem macabra:

(...) não tendo mais um ossinho com quem dançar, assentou de divertir-se comigo, que ali estava sem pingo de sangue, e mais morto do que vivo, e começa a dançar defronte de mim, como essas figurinhas de papelão que as crianças, com uma cordinha, fazem dar de mão e de pernas; vai-se chegando cada vez mais para perto, dá três voltas em roda de mim, dançando e estalando as ossadas; e por fim de contas, de um pulo, encaixa-se na minha garupa... (IBID., p. 212).

Podemos perceber que, embora Cirino defenda e o narrador negue o caráter

sobrenatural do evento, ambos são afetados pelo medo. Não é a incompreensão dos

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eventos que assombra Cirino, pois ele conhece muito bem os fatores envolvidos: sabe

que o esqueleto pertence a Joaquim Paulista, como e por que ele foi assassinado e

ainda em quais dias e onde o esqueleto aparece. No entanto, diante do esqueleto

Cirino fica aterrorizado. Temos diversas descrições das sensações que o atormentam:

Meu coração deu uma pancada e a modo que estava me pedindo que não fosse para diante. Mas fiquei com vergonha de voltar. Pois um homem, já de idade como eu, que desde criança estou acostumado a varar por esses matos a toda hora do dia ou da noite, hei de agora ter medo? De quê? (IBID., p. 208) (...) Eu bem queria fugir, mas não podia; meu corpo estava como estátua, meus olhos estavam pregados naquela dança dos ossos, como sapo quando enxerga cobra; meu cabelo, enroscado como Vm. está vendo, ficou em pé como espetos. (IBID., p. 210) (...) Ah! meu amo!... Eu não sei o que era feito de mim!... Eu estava sem fôlego, com a boca aberta querendo gritar e sem poder, com os cabelos espetados; meu coração não batia, meus olhos não pestanejavam. O meu burro mesmo estava tremer e encolhia-se todo, como quem queria sumir-se debaixo da terra. Oh! se eu pudesse... fugir naquela hora, eu fugia ainda que tivesse de entrar pela goela de uma sucuri adentro. (IBID., p. 212).

O narrador, por sua vez, afirmava que temia que aqueles homens acabassem

com ele “e, em vez de um, carregassem na mesma rede dois defuntos para a mesma

cova!” (IBID., p. 221). Embora não acreditasse no sobrenatural, ele temia o que os dois

homens poderiam lhe fazer. Nessa passagem fica claro que o medo do narrador dizia

respeito aos vivos.

Presença de um monstro

“A dança dos ossos” conta-nos sobre Timóteo, que era considerado amigo de

Joaquim antes de invejar o amor de Carolina por ele. Um dia, Timóteo chamou

Joaquim para caçar e, junto com um camarada, tentou matá-lo, forjando um acidente

com cobras venenosas. Um velho encontrou Joaquim a tempo e conseguiu salvá-lo da

morte. Mas, por golpe do destino, antes que deixasse a floresta, Joaquim foi

novamente encontrado por Timóteo e o camarada, que novamente o atacaram, desta

vez enterrando uma faca em seu coração.

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Diante deste crime (in) justificado pelo ciúme, e marcado por não apenas uma,

mas duas tentativas de assassinato, parece razoável supor que o verdadeiro monstro

da narrativa não é o esqueleto que dança sem fazer mal a ninguém, mas sim seus

cruéis algozes, um dos quais se passava por seu amigo.

Ele e seu camarada poderiam ser considerados monstros justamente pela

caracterização que os diferenciava dos outros personagens. Sua monstruosidade não

estaria na aparência, mas na sua psique − os dois são descritos por palavras como

“malvados”, “desalmados”, e seriam marcados como vilões da história justamente por

sua imoralidade (que fez Timóteo planejar matar um velho amigo) e a incomum

habilidade que seu camarada possuía com cobras. Os outros personagens atribuíam-

lhe um caráter sobrenatural, acreditando que este tinha algo a ver com o próprio

diabo, como está claro na seguinte passagem:

O camarada de Timóteo era mandingueiro e curado de cobra,

pegava aí no mais grosso jaracuçu ou cascavel, as enrolava no braço, no pescoço, metia a cabeça dentro da boca, brincava e judiava com elas de toda maneira, sem que lhe fizessem mal algum. Na hora em que ele enxergava uma cobra, bastava pregar os olhos nela, a cobra não se mexia do lugar. Em cima de tudo, o diabo do soldado sabia um assovio com que chamava cobra, quando queria.

Na hora em que ele dava esse assovio, se havia por ali perto alguma cobra, havia de aparecer por força. Dizem que ele tinha parte com o diabo, e todo mundo tinha medo dele como do próprio capeta. (IBID., p. 226).

Posteriormente o assassinato de Joaquim é descoberto, e seus algozes também

vêm a falecer: Timóteo é morto pelas mãos que o escoltavam para cumprir sentença, e

seu camarada acaba atacado por uma cobra. No entanto, como Joaquim Paulista fora

mal enterrado, sua cova foi aberta e seus ossos espalhados pelos animais da floresta.

Ele continuou assombrando a floresta às sextas-feiras, e, segundo o povo

(...) enquanto não se ajuntar na sepultura até o último ossinho do corpo de Joaquim Paulista, essa cova não se fecha. Se é assim, já se sabe que tem de ficar aberta para sempre. Quem é que há de achar esses ossos que, levados pelas enxurradas, já lá foram talvez rodando por esse Parnaíba abaixo? (IBID., p. 233)