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O corpo narrado. Edno Gonçalves Siqueira.  A palavra não me fugiu. Se me fez prisioneira. E como estar  preso é atingir liberdades, fui seu salvador. Fiz-me vítima por ser algoz. Sou filho de minha filha; sou mãe até que o parto me devora e vomita: só um refém. A escravidão nos confins da palavra é toda a amplitude possível. É assim antes e além. Há vezes que uma narrativa se bifurca e de cada um desses seus braços surgem ou tr os tantos que ao fim, ter-se-á um rio caudaloso tão longo que não será de estranhar que do tal não se saiba mais da origem e por vezes, nem seu fim. Caudal, turbilhão e per diç ão onde havia o desej o de rumo, de ida, de cheg ada. Isso porque abrir a boca ativa o esquecido e a fala vira cajado no deserto. Esse apoio nos dá a terceira perna que engendra a exata maturidade do saber-se-ser. Falar e para lembrar e inaugurar memórias futuras. Contar é seu rito. Somos o rio chamado Caudal. Somente o barulho não deixa escapar o que já se perdeu. Mas nossas perdas permanecem num movimento mist er ioso onde, perder é ganhar e o ganho enraíza qu ando se es qu ece qu e pl an to u. Como uma doença de causa desconhecida, quanto maior o sintoma, mas eu sei de mim mesmo por que temo a morte, o fim do caudal. Essa lon git ude de um rio assim, pode ser vivenciada por alguém que se encontre em uma de suas partes, com um grande sentido de permanência e seu cheiro, que varia de manhã até à noite, que varia de lua a lua, de uma

O corpo narrado Edno Gonçalves Siqueira

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Conto: A narrativa ativa o sentido de existir e unta fisicidade com memória; eros e psique, mente e corpo, ideia e afetividade se reúnem no ato de narrar.

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O corpo narrado. 

Edno Gonçalves Siqueira.

 A palavra não me fugiu. Se me fez prisioneira. E como estar 

 preso é atingir liberdades, fui seu salvador. Fiz-me vítima por ser 

algoz. Sou filho de minha filha; sou mãe até que o parto me devora e

vomita: só um refém. A escravidão nos confins da palavra é toda a

amplitude possível. É assim antes e além.

Há vezes que uma narrativa se bifurca e de cada um desses

seus braços surgem outros tantos que ao fim, ter-se-á um rio

caudaloso tão longo que não será de estranhar que do tal não se

saiba mais da origem e por vezes, nem seu fim. Caudal, turbilhão e

perdição onde havia o desejo de rumo, de ida, de chegada. Isso

porque abrir a boca ativa o esquecido e a fala vira cajado no deserto.

Esse apoio nos dá a terceira perna que engendra a exata maturidade

do saber-se-ser. Falar e para lembrar e inaugurar memórias futuras.

Contar é seu rito.

Somos o rio chamado Caudal. Somente o barulho não deixa

escapar o que já se perdeu. Mas nossas perdas permanecem num

movimento misterioso onde, perder é ganhar e o ganho enraíza

quando se esquece que plantou. Como uma doença de causa

desconhecida, quanto maior o sintoma, mas eu sei de mim mesmo

porque temo a morte, o fim do caudal. Essa longitude de um rio

assim, pode ser vivenciada por alguém que se encontre em uma de

suas partes, com um grande sentido de permanência e seu cheiro,

que varia de manhã até à noite, que varia de lua a lua, de uma

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estação à outra, por mais que mude, não apagará a sensação

subterrânea do que é eterno na dimensão de uma vida só. Essa

percepção não é inventada ou produção anormal; ela é órgão da

existência de quem se sabe como tal – e diz-se... eu sou. Entre a

memória e a projeção, algo permanece. É sob esse fio que a loucura –

o homem caudal – encontra sua contenção. De outra forma cairíamos

desde sempre no redemoinho feroz e todas as pequenas

humanidades estariam perdidas. De nada saberíamos; não

saberíamos de nós; não nadar saberíamos.

A quem vivesse imerso em sua vida, em um momento de

turbilhões, de cachoeiras e precisasse de terceira perna caudalosa

para sobreviver ao percalço, estaria irremediavelmente asujeitado a

dependências. Falar aprisiona e contar é tecer seus grilhões. Outras

que não a mínima possibilidade de uma prisão que liberta, não existe

senão em desejo vão. Aprisionamento seria a liberdade possível,

única aliada do fim, e o fim é o esquecimento. Outro mistério então é

que o caudal é a própria tábua flutuante de salvação. E se é assim

mesmo, é me puxando pelos cabelos que me afasto da espiral

sugadora do não lembrar. Falar é recuperar-se pelo puxar os próprios

cabelos e contar é sentir a dor gozosa de não afundar, ou sucumbir lá

pra baixo onde não há lembranças.

É bem provável, que o caudal, poderia também se tornar a

única âncora do mergulho, a chave sem segredo do grilhão. Fosse ela

rejeitada. Fosse, o que seria então? A invenção de estar livre ao que

corresponde no tempo da história da consciência que conseguiu ver-

se senão a ameaça de destruição no sumidouro? Falar é a âncora e

contar é negar a liberdade de perder-se em si – o caudal – para

agrilhoar-se, e presa de si, salvar-se, já de narrar é salvação.

Entrei certa vez, num antiquário cujo proprietário já não via há

bem mais que cinco anos. Do senhor alvo, esguio e sexagenário, não

esperava mais que a lembrança de uma impressão esparsa.

Decepcionando minha expectativa, só o meu nome não recordava.

Havia mantido em grande frescor todos os dados diretos que me

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levaram a ele em algumas oportunidades. Não apenas. Acrescentou o

que se desenrolou a outros que conhecíamos em comum durante

aqueles anos todos. Como de hábito, costurou casos, alinhavou

estórias e as ajeitou em camadas de modo que coubessem todas e

daquele exato arranjo para que transmitissem uma só idéia. Uma

construção de conjuntos ordenados para que culminassem a contar

uma apenas estória. Naquela oportunidade esse qüiproquó de

palavras, personagens, espaços e tempos vários serviam para que ele

expusesse suas conclusões sobre a dificuldade surpreendente que

representa ser professor. Mas, naquele exercício havia bem mais que

o expor. Havia muito mais de expor-se e mais ainda.

Longe dali, fixo na memória do corpo dele que falava em

conjunto com olhos e boca, suspeitei que aquele exercício revelava a

busca por coesão. Ao falar amarrava seu corpo de vivencias dispersas

na memória. No narrado estava contida sua vida, ele nela contido, ele

sendo ela, ela sendo ele, os dois um só, juntos e separados pela

impressão de ajuntamento e afastamento da palavra. Ao narrar, ia

ajeitando os fatos que formava como um bolo de muitas camadas,

porém, não para se dar a comer senão para ser por ele mesmo

comido. Para além de mim que ouvia, ele que se ouvia. O objeto de

sua boca era ele próprio e eu, apenas caminho de volta, uma curva

externa. Sua produção era o costurar de etapas de sua vida; o

recosturar de seu corpo de história que vivia escondido debaixo de

sua língua, alojado no vinco sulcado de seus recordos até tomarem

corpo também, na ravina de sua boca. Cada ponto levantado

correspondia a uma etapa de sua vida representada por um ponto de

memória, uma lembrança que solitária buscava outros e solidárias

rumavam ao encontro de um exército de seus semelhantes. Era

armada uma guerra cujo esquecimento se buscava derrotar sob a

pena capital da morte do eu, da tombada do grande bastião; a

consciência enervada, vívida. Essa, sua luta.

Cada ponto remembrado uma vitória que aliava, convalidava

um tempo que era acimentado na consistência de um órgão, pulsátil

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e vivo. Cada tempo acercava de valor o presente que se misturava a

todos os passados para fazer-lhes valer a valência de vitalidade. E

tudo isso era um homem só, desdobrado em espaços infinitos feitos

de presentes passados e todos juntos na memória: seu corpo em

cada extremidade fincado e expandido a se alongar ultrapassando

seus limites. O corpo biológico já era, ele sim, um sonho, uma ilusão,

uma invenção. Na troca, o real era o mnemônico, o passado redivivo.

Mas o objeto era mesmo se dar sentido e esse se dava pelo efeito de

coesão: era ele aquele mesmo ator de tantos palcos, de inúmeras

peças e quantas tragédias? Que catarses? Que monólogos? Que

fracassos? Quão poucos sucessos? O que selecionar a renascer e o

que sentenciar a morrer? Que decretos existências fazer? Era essa a

liberdade? Era essa a prisão?

A narrativa, aquela em específico, alinhavava, fazia os ponto-a-

ponto da costura de todas aquelas memórias que corporificam uma

roupa que vestia um corpo que era o seu próprio, só que falado e

expandido pela profissão de fé dos relatos. Seus relatos, agulhas de

costura de carne, como as carnes expostas dos acidentados, das

fraturas expostas em sua urgência de salvação que pouco vai além

da premência da costura, do urgir da coesão reconstitutiva. Cada

palavra uma pedra, um ponto, um nó. Cada frase um golpe no

mármore, um alinhavo na carne, um aperto na amarra. Cada estória

um esforço de cinzel, um toque cirúrgico. Ao fim, o copo narrado de

quem viveu e quer que o vivido coincida no corpo. Missão impossível;

o corpo, a carne, de suporte só serve. Ponto de partida dos pontos

tantos e outros. Desejo de que tenha a força da forma e conteúdo que

se supõe na carne; que funcione com a coesão da ossatura que no

corpo narrado é a saúde. Cresce o corpo de signos em teia. Saúde da

alma então, que agora é o próprio corpo, contudo renovado e

soerguido à palavra.

A madureza parece nos levar à defrontação de um rol deespelhos. E a madureza é sempre e piora quando sabida. Os que

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refletem, um processo; os que refratam, outro diverso, adverso. Não

se trata de convite e novamente, escapa ser livre. Embora, sendo

imperativo, resta evitar-lhe opondo-lhe indiferença.

O corpo que murcha é levado frente a um espelho onde seu

reflexo é mostrado em transparência. Isso é feito para que se meça o

senso de presença no mundo, sua inteireza de vida, da vida vivida, do

quanto o mundo se enraizou nos escombros do ser. No espaço do

corpo ali presente, o reflexo indaga se cabe sobre ele próprio, o corpo

transparente de sua existência, sem arranhões, em acoplamento de

cópula e portanto, vital. Um corpo que envelhece tem unidade porque

mesmo em processo, ao vê-lo, vê-se continuidade, ainda que seja a

menos desejada continuidade do crescer para a morte. Mas e o ser, a

alma, e o vivido, e a memória, e o lastro do coração? Suas ordens são

estranhas às do corpo que vai. Seu aspecto crescente, temporal, pode

ser dominado por descontinuidades; aquelas do corpo significado.

Frente ao espelho, ambos os corpos se confrontam. Mas o dos

signos contém o de carne. Falar e ser ouvido, contar e recontar são as

agulhas do tecelão ferido: costuram e tecem amarras para que

prendam um corpo ao outro – o de carne partida, o outro, ida. Dessa

cópula deve surgir, para a saúde dos corpos, uma tolerância sôfrega

do atrito dos contornos ou identidade entre as partes, que cremos,

vivem vidas em distância e busca: mais que Eros e Psique, corpo e

alma, uma vez que cada corpo, em seus reinos e ordens, erigem suas

categorias nunca equalizadas, nunca pacificadas porque para sempre

e desde sempre cindidas. O hermafroditismo inerente diz dos corpos

que de grande comum habitam o mesmo local de guerras.

Narro então; clamo por integridade, sonho com a pacificação da

natureza beligerante. A crença nos processos naturais de ajuste é

doce e frutifica em previsibilidade fácil. Viciados no seu sumo,

deliramos na replicação dessa ordem no corpo dos afetos, no corpo

dos sonhos, no corpo da memória, no corpo do tempo escondido.

Narro e clamo por segurança de ser e de continuar, perdurar,

transviver ... Nos espaços que não alcanço com minha palavra-

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agulha, neste interstício, brota alienação. Quanto mais superficial,

assim como uma ferida, mais tratável e vice-versa. Também quanto

a sua origem, quanto mais superficial, mais provavelmente causada

nos arredores de mim; quanto mais profunda, mais distante, para

além das cercanias que me limitam, onde vivo: corpo, casa, país,

continente, mundo.

Importa continuar o ofício, laborioso embate. Há buracos,

clivagens de dúvidas, espaços desfiados pelo efeito dilacerante dos

conflitos, das lutas tantas, rasgos feitos pela pressão dos tantos

desnorteios.

Conto que vive naquele que vive, me afirmo que vivo e

enquanto há o bramir dos dentes, segue a máquina de agulhas que

costura a persona que já não é mais apenas máscara – é vestido, toga

de um pano mágico que atenua o desespero do pesadelo de ficar nu

frente ao espelho, aquele espelho de górgona que com o escudo das

agulhas da boca tento vencer. Narro como narra o velho que busca se

salvar no corpo falado que nutre e infla de estórias.