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O corte”: apontamentos para uma análise imanente Paulo Massey IFCE-Baturité [email protected]  Antes do filme, o aviso A análise do cinema, tal como tem sido feita por aqueles que adotam o filme como recurso em sala de aula, é didática e esclarecedora, na medida em que o drama e os vários elementos que compõem a imagem servem como “pretexto” para a discussão baseada na análise sociológica, ilustrando seus temas clássicos. Essa forma de proceder tem seu valor e sua função. No entanto, é um modo de lidar com a obra de arte que se distingue daquilo que poderíamos chamar de “análise imanente” , condição primeira para uma crítica que se pretenda dialética. Numa análise imanente, as várias questões e discussões que podem ser desenvolvidas a partir da obra de arte refletem, em última instância, o conflito que perpassa todo reflexo estético da realidade  – a relação forma/conteúdo. E justamente nessa relação está não apenas o fundamento para a análise acerca das formas narrativas e da natureza do reflexo estético-ideológico figurado no discurso cinematográfico, como quer a “crítica” de cinema, mas também a condição para ponderação quanto ao valor propriamente estético da obra. Isso distingue a crítica feita pela análise imanente (interior e dialética) daquela feita pela análise sociológica (exterior e normativa). Veja que o critério da análise e os elementos para o  juízo correspondem à essência da própria obra de arte, já que ela é a necessidade de dizer algo (ética) por meio de uma forma (estética) adequada a uma linguagem (do cinema, teatro, literatura, arquitetura, pintura etc.). É isso que alguns teóricos chamam de “autonomia” da obra de arte, já que o critério para julgá-la é imanente, essencial, formal. A arte, nesse sentido, não deve ser vista prioritariamente pela função política que cumpre, a serviço de quem, se é engajada ou não etc. Como diria Lukács, toda obra de arte reflete, querendo ou não, um conteúdo objetivo extraído do mundo, das relações materiais de uma época; cabe avaliar, portanto, as  formas adequadas dessa expressão, entendendo-se por isso não uma adequação às exigências morais ou políticas impostas a priori por uma visão interessada  , mas uma adequação da forma ao mundo, à época, cuja substância deve estar

O Corte, de Costa Gavras, 2005 - Análise do filme - Paulo Massey

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“O corte”: apontamentos para uma análise imanentePaulo Massey IFCE-Baturité [email protected] do filme, o aviso A análise do cinema, tal como tem sido feita por aqueles que adotam o filme como recurso em sala de aula, é didática e esclarecedora, na medida em que o drama e os vários elementos que compõem a imagem servem como “pretexto” para a discussão baseada na análise sociológica, ilustrando seus temas clássicos. Essa forma de proceder tem seu valor e sua função. No entanto, é um

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“O corte”: apontamentos para uma análise imanente

Paulo Massey

IFCE-Baturité

[email protected]

 Antes do filme, o aviso

A análise do cinema, tal como tem sido feita por aqueles que adotam o filme

como recurso em sala de aula, é didática e esclarecedora, na medida em que o drama e

os vários elementos que compõem a imagem servem como “pretexto” para a discussão

baseada na análise sociológica, ilustrando seus temas clássicos. Essa forma de proceder

tem seu valor e sua função. No entanto, é um modo de lidar com a obra de arte que se

distingue daquilo que poderíamos chamar de “análise imanente”, condição primeira

para uma crítica que se pretenda dialética. Numa análise imanente, as várias questões e

discussões que podem ser desenvolvidas a partir da obra de arte refletem, em última

instância, o conflito que perpassa todo reflexo estético da realidade  –  a relação

forma/conteúdo. E justamente nessa relação está não apenas o fundamento para a

análise acerca das formas narrativas e da natureza do reflexo estético-ideológico

figurado no discurso cinematográfico, como quer a “crítica” de cinema, mas também a

condição para ponderação quanto ao valor propriamente estético da obra. Isso distingue

a crítica feita pela análise imanente (interior e dialética) daquela feita pela análise

sociológica (exterior e normativa). Veja que o critério da análise e os elementos para o

  juízo correspondem à essência da própria obra de arte, já que ela é a necessidade de

dizer algo (ética) por meio de uma forma (estética) adequada a uma linguagem (do

cinema, teatro, literatura, arquitetura, pintura etc.).

É isso que alguns teóricos chamam de “autonomia” da obra de arte, já que o

critério para julgá-la é imanente, essencial, formal. A arte, nesse sentido, não deve ser

vista prioritariamente pela função política que cumpre, a serviço de quem, se é engajada

ou não etc. Como diria Lukács, toda obra de arte reflete, querendo ou não, um conteúdo 

objetivo extraído do mundo, das relações materiais de uma época; cabe avaliar,

portanto, as  formas adequadas dessa expressão, entendendo-se por isso não uma

adequação às exigências morais ou políticas impostas a priori por uma visão

interessada , mas uma adequação da forma ao mundo, à época, cuja substância deve estar

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expressa, como síntese, no conteúdo do reflexo estético. Essa determinação dialética é

ainda mais evidente quando se pensa, também acompanhando o filósofo húngaro, na

centralidade da ação dos personagens para o desenrolar da trama; ou seja, o quanto seus

destinos são determinados não pelo que eles dizem ou pensam sobre si mesmos, mas

pelo que eles são, e o que eles são é o que eles fazem e o modo como fazem - suas

ações, suas escolhas, suas relações. Um deus ex machina, heterônomo, convocado de

última hora pelo autor para resolver ou salvar os personagens dos conflitos em que se

envolveram é, portanto, um artifício falseador , na medida em que a centralidade da ação

tem um estatuto ontológico determinante, não apenas na realidade imediata da vida

social, mas também nas suas formas reflexivas  –  isso vale para a ciência tanto quanto

para a arte.

A questão da autonomia da obra contra intenções extemporâneas, no caso do

cinema, constitui um espectro amplo de conformações estéticas que vai do naturalismo,

passando pelo realismo crítico e o neo-realismo até as experiências puramente plásticas,

como é o caso das vanguardas que atuam para além do campo realista de

figuração. Naturalismo, realismo crítico e neo-realismo constituem, pois, as três grandes

matrizes da experiência e da linguagem fílmica, e se distinguem na medida em que a

análise imanente procede por meio de um método que, por um caminho de ida, sedistancia da obra para captar suas determinações mais abstratas, radicadas na relação

forma/conteúdo, e, em seguida, por um caminho de volta, se reaproxima do objeto,

tornando aquela relação elementar cada vez mais concreta porque mais determinada,

mais plena de expressões cujas contradições se mantêm em unidade.

Para ser breve, o naturalismo cria um universo fechado, montado e dramático-

 ficcional que aprisiona o expectador às experiências psicológicas dos personagens. O

neo-realismo, por sua vez, sugere um universo aberto, não-montado ou espontâneo eonde se supõe uma experiência psicológica própria, direta. O realismo crítico, por sua

vez, funde dois dos elementos das estéticas anteriores: cria um universo ficcional, tal

como no naturalismo, porém, aberto; mas do que isso: há uma intervenção direta, uma

postura “crítica” (que opera, por certo, mais como denúncia do que como auto-

exposição das contradições objetivas), uma “tomada de posição” diante das questões

éticas gerais, mais ou menos mediadas pelas alternativas políticas de uma época.

Comumente, porém, os elementos que bem caracterizam cada uma dessas formas secruzam e se interdeterminam, de modo a dificultar a apreensão crítica de sua natureza.

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 Depois do filme, a análise

Nesse sentido, a estética do filme “O corte”, de Costa-Gavras, lançado em

2005, parece, à primeira vista, ser naturalista (embora a decupagem e a montagem não

sigam um encadeamento lógico-temporal linear), enquanto sua intenção de denúncia deum flagelo social é próxima ao realismo crítico, ao “Cinema Novo” de Glauber Rocha,

ao teatro épico de Brecht. Vê-se aqui, pois, a relação exata entre forma e conteúdo, cujo

desenrolar traz à luz a unidade dessa contradição inicial, cuja evolução assenta sobre as

noções de realidade e ficção e as inversões que sofrem. Inicialmente, a forma da

narrativa parece naturalista (expõe-se o cotidiano de uma família, “igual a qualquer

outra”, e a introspecção de um pai desempregado com quem o público se identifica

afetivamente, dado seu carisma) e, do mesmo modo, o conteúdo é, por seu absurdo,ficcional - uma “ficção social”, por assim dizer, gênero em que Costa-Gavras dá provas

de sua maestria.

Tem-se, então, no início da narrativa, dois elementos substantivos da estética

naturalista: a realidade natural, cotidiana, e a ficção  – além, claro, do apelo emotivo, do

compadecimento, da identificação com o personagem, pressuposto da catarse

aristotélica, reinventada pelo naturalismo glamourizado de Hollywood. Ao se desenrolar

a trama, no entanto, o conteúdo vai revelando, intrigantemente, o quanto há de real no

absurdo ficcional do início, desnudando uma realidade que é ela mesma absurda.

Tornado crítico, ao desvelar uma contradição objetiva do quadro histórico-social que

retrata, o realismo do conteúdo, por seu turno, passa a exigir da forma uma expressão

não-naturalista (Bruno Davert, um amador desesperado, comete um “crime perfeito”!)

  já que é o conteúdo que passa a determinar a narrativa: o plano de execução dos

concorrentes reflete a determinação essencial de uma sociedade fundada na disputa por

recursos supostamente escassos, um princípio que se impõe objetivamente, com forçamaterial, de tal modo que não apenas se expressa no conteúdo ideológico do filme

(ainda que negativamente, na forma de crítica) mas também em sua forma narrativa,

retirando o sentido de questionamentos presos à verossimilhança, à “verdade dos fatos”

 –  como a polícia não descobriu?! O autor parece querer, com isso, tornar a estética

naturalista insustentável: o filme tem “um final feliz”, como manda o script , mas é um

final feliz infeliz, absurdo, inaceitável (Davert restabeleceu seu emprego e a felicidade

no seio familiar por meio dos homicídios que praticou friamente, como se “os fins justificassem os meios”). Essa é a forma mesma que o autor encontrou para traduzir sua

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crítica não apenas à estética naturalista, enquanto cineasta, mas também a nossa

omissão e conivência a uma ordem social insustentável - o sistema do capital  –  que

tende a se naturalizar , na medida em que cria formas adequadas para a acomodação das

tensões, dos conflitos. Daí, a ironia objetiva: o cinema é uma dessas formas de

amortecimento, por mais que seja voltado contra si mesmo – por isso, as palavras de um

certo diretor argentino fazem eco na obra de Gavras: “yo no quiero el cine

revolucionário, yo quiero la revolución”. É pela interseção entre forma e conteúdo que a

posição política do cineasta ganha vida, vertendo os limites do cinema em

possibilidades, sem maiores ilusões.

No filme, o princípio da competição que funda a sociedade mercantil-

capitalista evolui e se expressa em formas outras - nas disputas amorosas, naconcorrência dos candidatos a uma vaga de emprego, nas lutas entre grevistas e patrões,

na guerra como menção honrosa a um tempo em que se dava a vida em defesa da nação

e, por fim, no crime que, neste caso, é uma forma de responder com violência ao crime

que inverte violentamente a lei e a condição de liberdade e igualdade entre os agentes da

troca (liberdade e igualdade entre os compradores e vendedores de mercadoria, em

especial a força de trabalho) em não-liberdade e não-igualdade dos agentes da

produção (capitalistas e trabalhadores, em especial os operários). Um crime cometidodiariamente, que, de tão exposto, torna-se indizível; uma violação que recorre à

violência sempre que não seja possível mais violar; tal como o desempregado aspirante

a executivo, o capital comete um crime perfeito - não há como denunciá-lo, pois é a

exceção tornada regra. Um crime no interior de uma ordem criminosa. É como se algo

maior já houvesse planejado a série de execuções, impondo-a, cedo ou tarde, como uma

necessidade  –  Davert é apenas mais um que resolveu, contudo, levá-la às últimas

conseqüências, enquanto os outros apenas a cogitavam.

Sua decisão evolui da hesitação ressentida, passando pelo cálculo frio até

encontrar no cinismo esclarecido uma forma de subjetivação em que seja possível o

criminoso rir de si. Mais do que isso: quando, depois de confessar seus crimes, como

forma de remir-se de alguma culpa que viesse a estorvar seu plano, Bruno Davert, com

uma faca em punho, zomba de seu reflexo, ele o faz, na verdade, contra o público, que é

o espelho do filme, na medida em que qualquer um de nós já imaginou fazer o que

Davert fez. Aliás, mais do que sua imagem, seu reflexo, somos seus comparsas, poisninguém sabe de suas ações, senão o público, que assiste a tudo compassivamente, ora

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reprovando ora transigindo com suas ações, de modo igualmente cínico. Sob o

capitalismo, ninguém é inocente – é o que parece querer arrematar o autor.

Ao final, por trás da satisfação de Davert, sorridente, sentado à mesa cercado

de subordinados, impera a desconfiança, a vigília e, por que não, o medo  – pois sabeque a ameaça pode vir de qualquer um, de onde menos se espera, inclusive de uma

 jovem e linda mulher que não se contenta com as funções rebaixadas (das tarefas do lar,

do trabalho precário e mal remunerado, da exposição fetichista de seu corpo) reservadas

pelas regras de uma competição sem regras. É ao final, portanto, que obra sai de sua

imanência e se abre para o mundo, por meio de suas extensões, de suas ironias

objetivas, vislumbradas em sua relação com a realidade, não consigo mesma.

Depois do filme, a análise; depois, o noticiário: jovem invade escola e mata

crianças. Não, não se pode confundir realidade e ficção, assim como não se pode

confundir psicose e desespero. Reagir violentamente, de modo consciente e previsível, a

uma ordem social insustentável, porque premida por injustiças, riscos e privações não é

o mesmo que reagir inconscientemente, por força de uma patologia psíquica cuja causa,

embora possa estar radicada na deterioração de laços familiares e sociais, não é, por

certo, desencadeada pelos mesmos fatores. O psicótico  –  e mesmo o psicopata  –  é

alguém que é levado a agir com violência (embora isso seja quase uma exceção entre os

doentes) porque é refém de suas próprias fantasias, de seus delírios. O protagonista do

filme, que é uma ficção, age conforme o intuito do autor de revelar ou denunciar o

quanto há de ficção em nossa realidade, fundada em fantasias sociais, ideologicamente

instrumentadas, que não se desfazem porque são constantemente restabelecidas  –  no

filme, resolver o problema do desemprego por meio da eliminação física dos

concorrentes equivale a resolver a realidade do desemprego pela qualificação ou, pior,

dissolver a realidade da exploração do trabalho com a ilusão do consumo.

Um caso precisaria de tratamento médico e psicoterapêutico adequado, o outro

- se viesse a existir - precisaria de explicação. Ambos, no entanto, não mudam em nada

a realidade política do meio social que determina condicionalmente suas ações

“delirantes”. Apenas uma força social, uma reação coletiva (nem individual, nem

individualmente comandada), uma ação de classe, portanto, pode levar a cabo

transformações efetivas. O único ponto que justificaria sua dissuasão, por sorte, é

comum a toda e qualquer outra ação: não se sabe em absoluto qual será seu resultado.

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No entanto, o que mais se vê é o silêncio quanto a sua necessidade; no filme, sua forma

mais esporádica e reativa  – a manifestação contra as demissões  – é vista à distância e

condenada por sua virulência, estampada na frase que diz: “morte aos nossos carrascos”.

A ironia salta aos olhos: morte aos que nos mortificam dia-a-dia. Antes, operários,

trabalhadores qualificados e gerentes se opunham como inimigos; agora,

desempregados, mesmo à revelia, estão unidos por uma mesma condição.

Assim como o filme, a realidade é prenhe de contradições que provocam, ao

mesmo tempo, o riso (que não é o desespero) e a indignação (que não é a violência).

Para seguir com rigor e dar continuidade a uma análise imanente, seria preciso

identificar a contradição elementar entre forma e conteúdo em suas várias

manifestações, analisando, entre outras, a condição de esposa fiel, o filho delinqüente, afilha precoce, o executivo decadente e bem intencionado, a suplantação de empregos

industriais por investimentos financeiros e publicitários, o racismo etc. Este seria um

segundo desafio à análise imanente: não apenas esforçar-se por demarcar sua distinção

em relação à análise sociológica, mas dar provas disso, no tratamento de cada uma

dessas questões.

Não sendo possível, resta-nos, enfim, para fazer a crítica consoante ao filme,

concluir de modo a repetir e lançar contra a ordem neoliberal, pano de fundo da trama,

seu jargão instaurador: abandonados a si, sob a ordem do capital, os pressupostos da

liberdade e da igualdade se invertem em seus contrários, ora como tragédia, ora como

farsa, levando aos estertores da eliminação física os concorrentes, herdeiros de

Bentham. Por efeito da intensificação da disputa entre estes “que só cuidam de si”,

nações são militarmente invadidas, regiões sofrem com o desinvestimento, fábricas são

fechadas, vidas desperdiçadas, pessoas... eliminadas. No neoliberalismo, antes e depois

das recessões, é preciso cortar. “Não há alternativa”.