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O Desaparecimento de Suzumiya Haruhi Tradução: kwijibo Revisão: GardenAll Capítulo 1: Naquela manhã, acordei com o recorrente golpe da minha irmã que arrancava meu travesseiro, juntamente com o gato tricolor que se aninhara no cobertor em que eu estava. Era esta realmente a minha irmã, a assassina matutina que seguia friamente as ordens da minha mãe. “Mamãe disse que você deveria tomar o seu café da manhã direito.” Sorrindo, ela segurava o gato vingativo com ambas as mãos e o levantava da cama, esfregando a ponta de seu nariz em suas orelhas peludas. “Você também Shami! Hora de comer!” Shamisen, que se tornara nossa mascote após o fatídico Festival Cultural, bocejou com uma cara vazia e lambeu as patas indolentemente. Aquele gato que antes falava, agora perdera completamente a sua voz, estabelecendo o seu status como mera mascote da casa. Tornando-se um gato comum que poderia ser visto em qualquer lugar – era como se eu pudesse alucinar que ele nunca havia falado na linguagem humana. Pensando bem, parecia que esse gato havia esquecido até mesmo da linguagem felina junto da humana, pois ele era quieto, e seus ronronados eram quase inexistentes. De algum modo, ele tinha feito de minha cama o seu lar, e se acostumado com as freqüentes intromissões da minha irmã, que se esforçava continuamente para cuidar de Shamisen. “Shaaamiiii, Shamiiii. Hora de comer!” Cantando uma canção que de forma alguma batia com o ritmo, minha irmãzinha saiu do quarto abraçada ao gato, com um esforço aparente. Arrepiei-me com a brisa gelada matutina enquanto olhava rapidamente para o relógio ao meu lado. Logo depois, lutei contra a afeição doentia que sentia pela minha cama quente. Vesti-me, lavei o rosto, e fui até a sala, onde comi meu café da manhã em rápidos cinco minutos, saindo pela porta muito antes da minha irmã. O dia, como esperado, estava frio, e parecia que isso tendia apenas a piorar. Até ai, tudo parecia estar acontecendo como de costume. Eu subia a ladeira, quando a cabeça de sempre entrou no meu campo de visão. A figura há dez metros de mim era, sem sombra de dúvida, Taniguchi. Usualmente esse sujeito saltava alegremente pelo caminho, porém hoje ele estava definitivamente andando devagar. Em pouco tempo eu havia o alcançado. “Ei, Taniguichi!” Seria bom tomar a iniciativa de dar um tapinha em suas costas de vez em quando. Pensando nisso, foi exatamente o que eu fiz. “... hmmm, Kyon?” A voz parecia abafada. É claro, Taniguichi estava usando uma máscara branca. “O que foi, pegou uma gripe?”

O Desaparecimento de Suzumiya Haruhi · Aquela interjeição poderia muito bem ter sido dita por mim. O que havia acontecido ... tempo e faltou na aula de Educação Física ontem.”

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O Desaparecimento de Suzumiya Haruhi Tradução: kwijibo Revisão: GardenAll

Capítulo 1:

Naquela manhã, acordei com o recorrente golpe da minha irmã que arrancava meu travesseiro, juntamente com o gato tricolor que se aninhara no cobertor em que eu estava. Era esta realmente a minha irmã, a assassina matutina que seguia friamente as ordens da minha mãe.

“Mamãe disse que você deveria tomar o seu café da manhã direito.” Sorrindo, ela segurava o gato vingativo com ambas as mãos e o levantava da cama,

esfregando a ponta de seu nariz em suas orelhas peludas. “Você também Shami! Hora de comer!” Shamisen, que se tornara nossa mascote após o fatídico Festival Cultural, bocejou

com uma cara vazia e lambeu as patas indolentemente. Aquele gato que antes falava, agora perdera completamente a sua voz, estabelecendo o seu status como mera mascote da casa. Tornando-se um gato comum que poderia ser visto em qualquer lugar – era como se eu pudesse alucinar que ele nunca havia falado na linguagem humana. Pensando bem, parecia que esse gato havia esquecido até mesmo da linguagem felina junto da humana, pois ele era quieto, e seus ronronados eram quase inexistentes. De algum modo, ele tinha feito de minha cama o seu lar, e se acostumado com as freqüentes intromissões da minha irmã, que se esforçava continuamente para cuidar de Shamisen.

“Shaaamiiii, Shamiiii. Hora de comer!” Cantando uma canção que de forma alguma batia com o ritmo, minha irmãzinha saiu

do quarto abraçada ao gato, com um esforço aparente. Arrepiei-me com a brisa gelada matutina enquanto olhava rapidamente para o relógio ao meu lado. Logo depois, lutei contra a afeição doentia que sentia pela minha cama quente.

Vesti-me, lavei o rosto, e fui até a sala, onde comi meu café da manhã em rápidos

cinco minutos, saindo pela porta muito antes da minha irmã. O dia, como esperado, estava frio, e parecia que isso tendia apenas a piorar.

Até ai, tudo parecia estar acontecendo como de costume. Eu subia a ladeira, quando a cabeça de sempre entrou no meu campo de visão. A

figura há dez metros de mim era, sem sombra de dúvida, Taniguchi. Usualmente esse sujeito saltava alegremente pelo caminho, porém hoje ele estava definitivamente andando devagar. Em pouco tempo eu havia o alcançado.

“Ei, Taniguichi!” Seria bom tomar a iniciativa de dar um tapinha em suas costas de vez em quando.

Pensando nisso, foi exatamente o que eu fiz. “... hmmm, Kyon?” A voz parecia abafada. É claro, Taniguichi estava usando uma máscara branca. “O que foi, pegou uma gripe?”

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“Eh...?” - Taniguchi parecia acabado - “Um resfriado, como pode ver. Para ser honesto, preferia matar aula, mas o meu pai não ficou muito contente com a idéia.”

Ele estava tão cheio de energia ontem, como foi pegar uma gripe tão de repente.

Disse. “Como assim? Já estava me sentindo mal ontem!” – tossiu Taniguchi. Ok, não mexa demais com o meu raciocínio, afinal, não estou acostumado a vê-lo

tossindo e com cara de quem está realmente fraco. Mas você estava doente ontem? Só consegui ver o palerma de sempre.

“Hmmm... sério? Não tinha a intenção de parecer especialmente bem.” Taniguichi chacoalhou a cabeça e me deu um sorriso amargo. “Você estava tão animado com o seu encontro na Véspera de Natal, não é? Bem,

melhore logo, antes que você perca o encontro. Esse tipo de chance é rara, sabia!?” Mesmo assim, a cabeça de Taniguchi pareceu virar ainda mais. “Encontro? Mas que diabos? Idiota. Não tenho planos para o Natal!” Aquela interjeição poderia muito bem ter sido dita por mim. O que havia acontecido

com a pretensa namorada de Taniguichi da Academia Feminina Kouyoen? Ele levou um fora ontem a noite?

“Ei Kyon, do que você está falando? Não sei nada sobre isso!” Taniguchi fechou a sua boca com irritação, e continuou a caminhar para frente. Todos

os sintomas de gripe pareciam estar em vigor, e a sua fragilidade não era fingida. Porém, julgando pela sua condição, seus planos românticos foram para o limbo e ele deve ter ficado exausto, tanto por dentro quando por fora. Depois de ter contado seus planos com tamanha empolgação, ele deve estar se sentindo péssimo por me encontrar cara a cara. Entendo, entendo...

“Não fique assim tão desanimado!” Empurrei as costas de Taniguchi. “Porque não vem para a festa de Fondue? Nos ainda podemos contar com você!” “Que festa? Do que você está falando, não me lembro de ter ouvido nada disso...” Sério? Acho que o choque da rejeição foi tão grande que tudo que eu disse caiu no

profundo esquecimento de sua mente, acho que é isso. Dessa vez, sou eu quem tem que lhe guiar. Acredite, tudo será resolvido pelo impiedoso e inescapável fluxo do tempo. Não vou mais tocar nesse assunto, prometo.

Taniguchi continuou a se arrastar para cima, enquanto permaneci em minha escalada

ao seu lado. Naquele momento ainda era impossível perceber qualquer coisa. Fui pego de guarda baixa. A gripe se tornara uma epidemia em nossa sala, sem que

eu sequer percebesse isso se aproximando. Entrei na sala logo antes do sinal tocar mas, mesmo assim, havia cadeiras vazias, e um quinto de toda a sala se escondia atrás de

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mascaras médicas. A única explicação para aquilo era que os vírus fizeram hora extra e dobraram a velocidade da sua incubação e propagação.

Fiquei ainda mais surpreso ao perceber que o assento atrás de mim havia estado

vago desde a primeira aula. “Inacreditável...” Haruhi realmente se ausentara por causa de alguma doença? Foi aquela epidemia

repentina de gripe? Não acredito que existam patogênios o suficientemente corajosos para invadir o seu corpo, sem mencionar como é surpreendente pensar que Haruhi pode ser parada por meros germes e vírus. A explicação mais convincente é de que Haruhi estava preparando outro de seus planos malignos. Será que ela tinha outra coisa em mente além da festa?

O ambiente da sala estava estéril, não apenas pela total falta de aquecimento, mas

com o repentino aumento dos ausentes. Parecia-me que a população total da sala havia despencado.

Era verdade que não conseguia sentir a presença devastadora de Haruhi atrás de

mim. Mas, ao mesmo tempo, sentia que a atmosfera havia se alterado inexplicavelmente. Então, as aulas se passaram com tranqüilidade, seguidas por um intervalo para

almoço igualmente calmo. Tirava a minha marmita congelada da mala. Kunikida se aproximou com seu lanche

nas mãos e sentou-se atrás de mim. “Acho que você está dando uma pausa. Posso sentar aqui?” Kunikida falava enquanto desembrulhava seu Tupperware [1] de um guardanapo.

Depois de me tornar colega desse sujeito no ensino médio, meio que se tornara um hábito lanchar com esse cara. Procurei meu outro colega de almoço, Taniguchi, mas ele não estava em sala, talvez estivesse na cantina.

1-[Nota do tradutor: Tupperware é o nome de uma empresa estadunidense da indústria dos plásticos e, simultaneamente, o nome do produto plástico produzido e vendido pela empresa].

Virei minha cadeira de lado. “É, a gripe certamente se tornou uma doença popular, e muito repentinamente!

Graças à Deus não fui infectado.” “Hmm?” Kunikida colocara sua marmita sobre o guardanapo com cuidado e analisava o seu

conteúdo, retornando um olhar surpreso para mim. Movendo seus hashis como garras de caranguejo, ele disse.

“Os sintomas desse resfriado já estavam bastante claros uma semana atrás! Não se

parece como uma daquelas gripes esquisitas, mas até seria melhor que fosse, já que temos remédios específicos hoje em dia.”

“Uma semana?” Parei de cortar minha omelete, e repeti a pergunta.

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Não conseguia me lembrar de ninguém espalhando esses germes durante a semana passada. Ninguém se ausentou, ninguém tossiu ou espirrou durante as aulas. Toda a classe parecia saudável. Será que o demônio da peste estava operando secretamente ao meu lado?

“Como assim? Haviam algumas pessoas que não vieram nos últimos dias, não

percebeu?” Como assim, está falando sério? “Claro. Ficou cada vez pior com o passar do tempo... só espero que não coloquem

todas as salas em quarentena ou algo assim. Nossas férias de inverno seriam destroçadas com uma coisa dessas.”

Kunikida colocou mais um pouco de arroz em sua boca. “Taniguchi também parecia péssimo nos últimos dias. Na família dele, dizem que a

melhor cura para as doenças é a animação, e ele não poderia ficar em casa se estivesse com menos de quarenta graus de febre. Espero que ele esteja fazendo algo, antes que fique pior.”

Parei subitamente com os meus hashis. “Kunikida, desculpe interromper, mas achei que o Taniguchi só começou a parecer

péssimo assim hoje...” “Oh não, sem chances. Ele esteve assim desde o inicio da semana, não? Até deu um

tempo e faltou na aula de Educação Física ontem.” Eu ficava cada vez mais confuso. Espere ai. Do que diabos você está falando? Se me lembro bem, ontem ele estava

bem durante a aula de Educação Física. Taniguchi jogou uma partida de futebol com tanto vigor que dava para pensar que ele estava cheio de esteróides, não estou enganado, estava no tive adversário e levei inúmeras trombadas dele. Não é que estivesse ressentido por ele ter uma namorada, mas se soubesse que algo assim aconteceria hoje teria pensado um pouco mais antes de revidar!

“Tem certeza? Sério? Que esquisito!” Kunikida chacoalhou sua cabeça enquanto pegava as cenouras do seu prato de

Kinpiragobou. “Será que eu me enganei?” Ele disse em um tom relaxado. “Hmm, veremos quando Taniguchi voltar.” O que diabos havia acontecido hoje? Taniguchi e Kunikida estão falando como se

estivessem detrás de uma névoa pesada, e Haruhi nem sequer apareceu! Não me diga que isso é um pressagio para acontecimentos que abalarão todos da espécie humana, com clara exceção de Haruhi. Meu quase inexistente sexto sentido começou a apitar furiosamente, e estranhos arrepios subitamente subiam pela minha espinha.

Eu estava certo. Meus pressentimentos não podiam ser subestimados. Não havia dúvida que fosse um

mal presságio. Aquele sentimento que corria pelas minhas entranhas só podia significar encrenca. Toda a raça humana, com exceção de Haruhi... bem, não era exatamente assim.

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Surpreendentemente apenas uma pessoa se surpreendeu e se importou com estes acontecimentos, pois o resto da humanidade parecia não ligar. Afinal, não conseguiram perceber o inicio deste incidente por si só. Afinal, não há como perceber algo totalmente fora da sua percepção. Para eles, nada havia mudado.

Então quem era a pessoa em estado de desespero e confusão? A resposta era tão obvia. Eu! Fiquei pasmo com a confusão, me sentindo abandonado pelo mundo. Finalmente eu havia percebido. Na hora do almoço do dia 18 de dezembro. Aquele presságio havia adquirido forma física, e entrado em nossa sala. Wow! Um grupo de garotas que estava perto da porta de nossa sala explodiu em

risos. Seus aparentes gritinhos de alegria vieram em reconhecimento a colega que havia acabado de entrar. Pelas frestas do grupo uniformizado, consegui ver de relance aquela que era o centro das atenções.

Com uma bolsa balançando nas mãos, ela deu um sorriso as amigas ao seu redor. “Sim, estou bem agora. Sinto-me muito melhor depois de ter ido ao hospital pela

manhã. Não tinha nada para fazer em casa, então resolvi vir à escola, mesmo que só para assistir as aulas da tarde.”

Um sorriso gentil respondeu a pergunta sobre a sua já curada doença. Com aquela

vivida conversa terminada, a garota de cabelos longos veio gradualmente... andando – em nossa – direção.

“Oops, tenho que ir.” Kunikida mordeu os seus hashis e se levantou. Quanto a mim, era como se as minhas

habilidades de fala tivessem sido inteiramente confiscadas, na verdade, até havia me esquecido que precisava continuar respirando. Apenas fiquei ali olhando para aquela pessoa. O fluxo do tempo parecia ter congelado, mas de fato, ela só teve de dar alguns passos. Quando terminou, ela estava bem ao meu lado.

“O que aconteceu?” Ela olhava para a minha expressão de surpresa com curiosidade. “Parece que você viu um fantasma! Tem alguma coisa no meu rosto?” A garota se virou para Kunikida, que tentava desesperadamente fechar a sua

marmita. “Não se preocupe, só deixe-me colocar a minha bolsa aqui. Podem continuar

comendo, já almocei antes de vir para cá. Entã,o pelo menos durante o almoço, eu posso emprestar minha mesa para você.”

Como havia dito, ela deixou a bolsa pendurada ao lado da mesa, e virou

graciosamente o seu corpo em direção a sua roda de amigos.

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“Espere.” Acho que nesse momento minha voz estava em frangalhos. “Por que você está aqui?” Essa pessoa se virou para mim, me atingindo com um olhar gélido. “O que você quer dizer com isso? Por acaso é estranho que eu esteja aqui? Ou você

acha que seria melhor se eu estivesse doente ainda mais tempo? O que, exatamente, você está querendo dizer com isso?”

“Não é isso. Não ligo se você está gripada ou não, o problema é que...” “Kyon.” Kunikida cutucou meu ombro com preocupação. “Você está muito estranho hoje! O Kyon vem dizendo coisas esquisitas o dia inteiro.” “Kunikida, você não pensa em nada de diferente quando olha para essa pessoa?” Incapaz de me controlar, levantei e apontei para ela, que me observava como um

enigma complexo. “Você deveria saber disso também, não? Essa pessoa não deveria nem estar aqui!” “... Kyon, que rude da sua parte esquecer do rosto de uma colega ‘só porque ela se

ausentou um pouco’! O que você quer dizer com: não deveria estar aqui? Nós sempre estivemos na mesma classe.”

Como eu poderia me esquecer!? Fora uma tentativa de assassinato! Mesmo que

pudesse me esquecer do rosto de alguém que tentou me matar, meio ano é muito pouco. “Entendo.” Ela sorriu como se estivesse presenciando uma imensa brincadeira. “Você cochilou depois do almoço, não? Tem certeza de que não está sonhando?

Deve ser isso. Vamos, acorde!” “Não concorda?” - com um grande sorriso estampado na sua amável face, ela se

virou para Kunikida, como se esperasse um sinal de aprovação. Ela tomou a aparência daquela garota cuja imagem se alojara em meu cérebro e ali criara raízes.

Visões de varias imagens do passado. Uma sala ao entardecer – sombras se

arrastando no chão – paredes sem janelas – um espaço distorcido – uma faca afiada – um sorriso tênue – cristais que caiam no chão como uma cascata de areia...

Aniquilada depois do combate contra Nagato, a verdadeira representante de classe,

que depois de certas complicações partira sem aviso para o Canadá. Ali, em minha frente, estava Asakura Ryouko “Você vai se sentir melhor se lavar um pouco esse rosto. Quer um lenço emprestado?

Tome...”

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Asakura colocou as mãos no bolso, e eu prontamente a impedi. Sabe-se lá o que ela poderia tirar dali.

… além do seu lenço? “Não, obrigado, só quero que me expliquem o que está acontecendo. Tudo mesmo.

Em particular o porquê de você estar deixando a sua bolsa aí em cima.” Afinal, esse lugar não é seu, é da Haruhi. “Haruhi?” Asakura levantou as sobrancelhas com espanto, e perguntou para Kunikida. “Quem é Haruhi? Tem alguém aqui com esse apelido?” O estudante disse a resposta que acabou com todas as minhas esperanças. “Não estou entendendo. Haruhi-san... como você escreve isso?” “A Haruhi é a Haruhi!” Deixei escapar um murmúrio inconsistente em meio a minha confusão. “Vocês esqueceram de Suzumiya Haruhi!? Como diabos alguém pode esquecer de

uma pessoa assim!?” “Suzumiya Haruhi, não?... bem Kyon.” Com uma voz reconfortante, Kunikida explicou. “Essa pessoa não está na nossa sala! Além disso, desde a mudança de mesas no

semestre passado, esse lugar pertence à Asakura-san. Você não está falando de outra sala? Hmm, nunca ouvi falar de nenhuma Suzumiya antes, ela não está do segundo ano ou algo assim?”

“Também não faço idéia de quem seja.” Com a voz de um gato gentil, Asakura falava como se eu tivesse de ser urgentemente

internado. “Kunikida-kun, você pode pegar uma coisa na minha mesa? Dentro dela devemos ter

o diário de classe.” Surrupiei o caderno que Kunikida pegou. Abri rapidamente na página de nossa sala e

passei o dedo sobre a lista de chamada das garotas. Saeki, Sakanaka, Suzuki, Seno… Nenhum único nome entre Suzuki e Seno. A identidade de Suzumiya Haruhi havia

evaporado da lista de nomes de nossa sala. “O que você está procurando? Essa garota nem existe, para começar!” Era o que o livro parecia me dizer, então, fechei o caderno, assim como os meus olhos.

“... Kunikida, tenho um pedido a fazer.” “Sim?” “Belisque-me, eu quero acordar.”

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“Tem certeza?” Ele pôs toda sua força naquilo. Foi doloroso, porém eu não acordei. Ao abrir meus

olhos, ainda pude ver Asakura ali, curvando seus lábios em um arco. O que diabos está acontecendo aqui!? Repentinamente, percebi que eu havia me tornado o centro das atenções. Seus olhos

haviam se focado em mim como se eu fosse um cachorro sofrendo de alguma doença contagiosa. Droga! Por quê!? Eu não disse nada de errado!

“Droga!” Repeti aquelas duas perguntas insistentemente para as pessoas ao meu redor. Onde está Suzumiya Haruhi? Asakura Ryouko não havia sido transferida? “Não sei.” “É claro que não foi!” As respostas que havia conseguido ainda soavam mal. Elas me golpeavam tão

fortemente que eu sentia uma crescente onda de enjôo e tontura. Só conseguia ficar de pé apoiando minhas mãos sobre a mesa. De alguma forma, alguma parte da minha sanidade parecia ter se despedaçado.

Asakura colocou suas mãos no meu pulso, me encarando com preocupação. O cheiro

doce do cabelo dela era como um narcótico para mim. “Acho que seria melhor se você fosse ver a enfermeira. Esse tipo de coisa pode

acontecer se você não estiver se sentindo muito bem. Deve ser isso! Será que você está ficando gripado?”

Sem chance! Queria gritar. Não sou estranho! É a situação por si só que é absurda! “Tire as mãos de mim!” Empurrei as mãos dela para longe, e corri para a saída. Aquela sensação

desagradável na minha pele parecia escoar até o cérebro. A súbita onde de gripe, o espaço estranho na minha conversa com Taniguchi, o desaparecimento de Haruhi dos registros da sala, o reaparecimento de Asakura... o quê? Haruhi sumiu? Ninguém se lembra dela?

Não pode ser! Afinal, esse mundo não gira em torno daquela garota? Não é ela a

pessoa que mais chama atenção dentro da escala universal? Quase desmaiando, forcei as minhas pernas a funcionar, e fui para o corredor quase

engatinhando. A primeira coisa que me veio a mente era consultar Nagato, certamente ela saberia

me explicar a situação. Afinal, ela era a onipotente andróide alienígena. Todas as vezes que coisas assim acontecem, ela é quem acaba consertando tudo. Sem exageros, posso afirmar que só sobrevivi até hoje por causa dela.

Eu tenho a Nagato ao meu lado! E, com certeza, ela é a pessoa certa para me

resgatar dessa situação aberrante!

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A sala de Nagato estava próxima. Sem precisar correr, cheguei lá poucos segundos depois. Incapaz de pensar em algo, abri a porta a procura da pequena figura de cabelos curtos.

Não está aqui. Mas ainda era cedo para desistir. No horário de almoço era provável que ela

estivesse na sala do clube, lendo. Mesmo que não estivesse em sala, era uma conclusão precipitada achar que Nagato havia desaparecido também.

O próximo da lista era Koizumi. A sala do clube, localizada no prédio velho, era muito

longe daqui. A construção era ainda mais afastada do bloco do segundo ano, onde Asahina-san estudava. A decisão mais sábia era ir para a sala 1-9 no andar de baixo.

Koizumi Itsuki, esteja ai! Não existe outra situação no mundo onde eu gostaria de ver

o seu rosto sorridente. Corri a passos largos até o corredor, pulando os degraus da escada com velocidade,

indo em direção a sala 1-9, que ficava na ponta do prédio da escola, enquanto rezava para que o garoto sobrenatural estar bem onde eu esperava que estivesse.

Passei pela sala 1-7, assim como a sala 1-8, e agora deveríamos ter a sala 1-9... “Mas como?” Parei, finalmente começando a voltar para os meus sentidos, checando novamente as

placas que pendiam da parede. Ao lado da sala 1-7 estava a sala 1-8, e ao lado da sala 1-8, estava...

Nada, não havia sequer o rastro de coisa alguma. “De todas as coisas, quem podia imaginar...?” Sem mencionar, nenhum rastro de Koizumi. Toda a sala 1-9 havia sumido. Realmente, agora estou com as mãos atadas... Quem poderia imaginar que uma sala inteira, que estava ali até ontem, poderia sumir

dessa maneira? Não foi apenas uma pessoa que desapareceu, mas uma turma inteira foi apagada da existência, e até mesmo o prédio havia encolhido. Não importa o quão rápido o trabalho fosse, era impossível ter feito isso em uma só noite. Para onde as pessoas da sala 1-9 haviam ido?

O choque havia distorcido a minha percepção de tempo. Só Deus sabe quanto tempo

fiquei ali, parado, esperando a minha consciência voltar, o que só aconteceu quando o professor de Biologia, que se parecia com um marshmellow gigantesco carregando uma pilha de livros, me deu um soco nas costas.

“O que você está fazendo aqui? As aulas começaram! Volte para sua sala!” Devo ter perdido o sinal do final do intervalo. O corredor já estava deserto, e apenas a

voz de um professor da sala 1-7 ecoava pelo edifício. Eu comecei a me mover forçosamente. O tempo que tinha para interpretar aqueles

sinais havia chego. As coisas haviam voltado a se mover. Os que não deveriam existir

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apareceram, e aqueles que deveriam estar aqui se foram. Trocar Haruhi, Koizumi e toda a sala 1-9 por Asakura simplesmente não estava dentro de nenhuma proporção.

“Mas que diabos?” Se eu não estava enlouquecendo, o mundo inteiro estava. Quem fez isso? Foi você, Haruhi? Graças à esses acontecimentos, não consegui ouvir absolutamente nada das aulas

da tarde. Todas as vozes passavam voando pela minha mente, e qualquer informação falhava completamente em se agregar aos meus neurônios. Sem que eu sequer percebesse, a aula já havia acabado e eu continuava ali, parado, esperando.

Estava assustado não tanto com Asakura, que escrevia com sua lapiseira atrás de

mim, mas sim em relação ao destino de Haruhi e de Koizumi, que não estavam na escola. Até mesmo buscar informações sobre eles já me irritava a níveis inimagináveis. “Não me lembro disso”. Toda vez que ouvia essa frase, afundava mais em um pântano sem fundo. Não tinha nem energia para me levantar da cadeira.

Taniguchi voltou para casa com Kunikida, que estava um pouco ansioso por minha

causa. Asakura deixou a sala com uma risada alegre e um grupo de amigas. Ela me meu uma olhada antes de sair, que parecia ser uma demonstração sincera de preocupação com um colega deprimido, mas não podia ter certeza, tudo era muito suspeito, já estava ficando zonzo só de pensar nisso.

Fui quase arrastado por alguns colegas de classe para ajudar na limpeza da sala.

Quando finalmente sai para o corredor, com minha mala pendurada em minha mão. Afinal, não era aqui que eu fico depois das aulas. Com o coração pesado corri pelas escadas em direção ao primeiro andar. E ali, um

brilhante raio de luz aparecera em minha frente, tive de correr até ele. “Asahina-san!” Poderia existir uma visão mais alegre do que essa? Vindo em minha direção estava a

nossa deusa, meu remédio contra todos os males. A felicidade ficava ainda mais completa ao ver a animada figura de Tsuruya-san ao lado daquela beldade com rosto juvenil. Aquela felicidade tremenda havia destruído meu bom senso e sensibilidade.

– penso que talvez pudesse ter sido um pouco mais prudente. Corri para as duas veteranas com toda a força de minhas pernas, e segurei forte o

ombro de Asahina-san, que arregalou os olhos ao me ver. “He-eh!” O choque era aparente em seu rosto, mas a minha boca se movia sozinha. “Haruhi desapareceu! A sala do Koizumi simplesmente evaporou! Ainda não encontrei

Nagato, mas a Asakura está aqui, e toda a escola se tornou um local bizarro! Você ainda é a Asahina-san de sempre, não é?”

Bang! Era o som da bolsa e do conjunto de caligrafia de Asahina-san se espatifando

no chão.

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“Eh? Ah, eh... eh. Bem... mas...” “Então, você é a Asahina-san do futuro?” “... futuro? O que você quer dizer? Por favor... solte-me.” Meu estomago revirou. Asahina-san me olhou como um dócil cervo domesticado

encarando um jaguar selvagem. Seus olhos estavam cheios de medo, e isso era o que eu mais temia.

Enquanto eu observava boquiaberto, senti meu braço girando no ar. E um

desagradável som de algo se quebrando saindo das minhas juntas. Ai! “Espere um pouco, rapazinho!” Tsuruya-san segurou meu braço usando técnicas marciais antigas e, decididamente,

dolorosas. “Pare de pular nas pessoas assim! Olha isso, a Mikuru está tremendo dos pés à

cabeça!” Sua voz era risonha, mas seu olhar era afiado com uma faca. Olhei para Asahina-san,

que se retraia com os olhos em lágrimas. “Você é mais um calouro do fã clube da Mikuru? Sabe, existe um protocolo para tudo,

jovenzinho. Ser apressado assim não me impressiona.” Aquele arrepio psicológico que tantas vezes presenciara hoje desceu pela minha

espinha. “Tsuruya-san...” - ainda preso em uma posição de uderagami, gemi o meu apelo. Ela me olhou confusamente, como se eu fosse um completo estranho. Você também, Tsuruya-san...? “Ei, como você me conhece? Falando nisso, quem é você? Um conhecido da Mikuru-

chan?” Pelo menos eu havia visto algo que estava em seu lugar. Acuada atrás de Tsuruya-

san, Asahina-san me encarou detalhadamente e balançou a cabeça com fúria. “N...N...Não sei quem ele é. E... eh. Ele deve ter me confundido com outra pessoa.” Sentindo que havia recebido o certificado que atestava meu completo fracasso no ano

inteiro, justamente quando ele chegava ao seu fim, minha visão escureceu. Poderia observar em silêncio qualquer um me acusando, mas essas palavras de Asahina-san foram as que tiveram o maior impacto em mim desde que minha prima, a qual eu tinha uma pequena queda quando mais novo, começou a sair com outro cara.

Certamente não a confundi com ninguém chamando Asahina-san de Asahina-san, a

não ser que essa Asahina fosse de algum outro tempo... oh, entendi! Tem um jeito de saber se essa Asahina-san é a que eu realmente conheço, não é?

Apontei a minha mão para o peito. Acho que posso dizer que fiquei louco. Minha boca

despejou a seguinte frase de maneira autônoma.

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“Existe uma marca de estrela em algum lugar por aqui em seu peito. Não é verdade?

Se você aceitar eu posso che–” Fui atingido por um soco forte.

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Dado pela própria Asahina-san. Ela me olhava, claramente surpresa com a frase que eu dissera, ficando mais

vermelha a cada segundo. Lágrimas surgiram em seu rosto, e ela me deu outro soco lento e desajeitado no rosto. “... urgh” um som soluçante saia de sua garganta enquanto ela corria.

“Ei Mikuru! Ah, droga, tanto faz. E você rapaz, fique atento! A Mikuru-chan é muito

tímida, você sabe! Se chegar perto dela de novo, pode ter certeza que vai sentir a minha fúria!”

Dando-me um desagradável e forte apertão no pulso antes de me soltar, Tsuruya-san

pegou a mala e os instrumentos de caligrafia espalhados pelo chão, apertou-os contra o peito e correu atrás de Asahina-san.

“Ei, espera um pouco – Mikuru! –” “ ... ” Olhando para elas, estupefato, senti o vento gelado de inverso soprar rente ao meu

rosto. Era o fim, sem dúvidas. Como poderia sobreviver ao dia seguinte? Se as noticias de que fiz Asahina-san

chorar se espalhassem pela escola, haveria mais do que alguns alunos loucos para me atacar. E acredito que se a situação fosse a inversa, eu faria o mesmo. Acredito que seja melhor eu ir me preparando.

Fui gradualmente empurrado para o fim de minhas forças. Liguei para o celular de

Haruhi, mas só ouvia a mensagem “esse numero que você ligou não se encontra mais disponível.” Não tinha registro algum do telefone de sua casa, assim somo o seu nome havia sido completamente apagado da minha agenda. Considerei em ir até a casa dela, mas não sei se deveria ir, visto que nunca tinha ido até lá. Fato bastante injusto, pensando que ela já foi até a minha casa dezenas de vezes, mas acho que é tarde demais para pensar nisso.

Ignorando o desaparecimento da sala 1-9, fui até a secretaria para perguntar se

algum dos dois estava doente ou algo assim. O resultado fora negativo. Não havia ninguém em sala alguma com o nome de Suzumiya Haruhi. Assim como não existia nenhum estudante transferido ou para se transferir com o nome de Koizumi Itsuki. Pelo menos é o que me disseram.

Havia chego a um beco sem saída. O que isso poderia significar? Será que era um jogo de “onde está a Haruhi”,

organizado pela mesma? Ou o objetivo era descobrir para onde a desaparecida garota havia sumido? Para que tudo isso?

Caminhava pensando em alguma solução. Graças ao soco de Asahina-san, esfriei um

pouco a cabeça. Não tem porque queimar meus neurônios à toa. Em momentos assim, tenho que permanecer calmo. Calmo...

“Por favor, eu imploro.” - murmurei. Havia apenas um lugar para ir agora. A o destino final, a linha de defesa absoluta. Se

ela houvesse caído, então tudo acabaria. Fim de jogo.

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A sala do Clube de Literatura, localizada no bloco normalmente chamado de “o bloco velho”.

Se Nagato não estivesse ali, onde mais ela poderia ir? Refreei o meu ritmo deliberadamente, indo em direção a sala do clube demorando

quanto tempo fosse necessário. Depois de alguns minutos parado em frente a velha porta de madeira, botei a mão no peito, confirmando meus batimentos cárdicos. Estava longe do normal, mas mesmo assim, melhor do que durante o intervalo. Provavelmente, meus sentidos haviam se anestesiado depois de receber tantas pancadas ininterruptas resultantes da seqüência de anomalias que havia presenciado. Estava acuado. Não havia saída se não encarar a nuvem de trevas que representava o pior cenário possível para mim.

Não bati antes de entrar, simplesmente a abri inteira com muita pressa. “... !” Foi então que eu vi. A pequena figura sentada em uma cadeira dobrável, com um livro estendido na

grande mesa em sua frente. Era Nagato Yuki, me olhando diretamente através dos óculos, com sua face confusa e

sua boca aberta de surpresa. “Você está aqui...” Deixei escapar um suspiro, metade de resignação, metade de alivio, e fechei a porta

atrás de mim. Ela não disse nada, como era de se esperar, mas não podia simplesmente amolecer e comemorar. A Nagato que eu conheço não usava óculos desde o incidente com Asakura. De todo modo, essa Nagato estava usando exatamente os mesmo óculos que tinha até certo tempo atrás. Pensei novamente nisso, mas estava crente em dizer que ela ficava melhor sem eles. Era uma preferência minha.

Apesar disso, aquela expressão simplesmente não combinava. Será que ela era

apenas uma garota membro do Clube de Literatura, sendo surpreendida por um sujeito estranho que entra correndo o qual ela não tem a menor idéia de quem seja? Ela não deveria estar surpresa, pelo contrario, não seria uma característica marcante dela estar o mais longe possível de qualquer emoção?

“Nagato...” Com a recente lição que havia tido com Asahina-san fresca em minha mente,

consegui segurar a minha impaciência e andei ao redor da mesa. “O quê?” Ela respondeu sem se mexer um milímetro. “Diga-me. Você me reconhece?” Ela apertou os lábios e ajeitou os óculos. Então se seguiu um longo momento de

silêncio. Justo quando pensava em desistir, encontrar um monastério e me isolar do mundo,

uma resposta veio. “Sim, eu conheço você.”

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Ela olhou para algum lugar em meu peito. Meu coração disparou. Ela poderia ser a

Nagato que eu conheço. “Na verdade, eu também sei de algumas coisas sobre você. Teria um segundo para

me escutar?” “ ... ” “Você não é humana, mas um tipo de andróide orgânico criado por alienígenas. Você

também tem algum tipo de poder impressionante, similar a magia, que já usou algumas vezes, como o bastão com modo teleguiado e a invasão ao Espaço Restrito onde estava aquele gafanhoto.”

Quando comecei a falar, um senso de arrependimento começou a crescer dentro de

mim. Nagato, aparentemente, mostrava expressões estranhas enquanto eu falava. Seus olhos e boca estavam escancarados, e sua visão não parava em um só lugar. Era como se ela realmente estivesse assustada com tudo que eu estava dizendo.

“... é isso que eu sei por enquanto. Estou certo?” “Desculpe-me.” A resposta dela me fez duvidar da minha audição. Por que se desculpar? Por que ela

diria algo assim? “Eu não sei. Sei que você é um estudante da sala 1-5 que eu vejo de tempos em

tempos. Mas não sei nada além disso. Para mim, essa é a primeira vez que nos falamos.” A fundação mais sólida havia virado lama e areia, a casa não teve outra opção além

de desabar sonoramente. “Então você não é uma alienígena? O nome de Suzumiya Haruhi não quer dizer nada

para você?” Ela chacoalhou a cabeça confusamente, digerindo a palavra “alienígena” em seus

lábios. “Não.” - ela respondeu. “Espere um pouco!” Além dela, em quem mais eu podia confiar? Eu estava como um garotinho que fora

abandonado pelos pais. A única chance de me manter são era com ela fazendo algo a respeito. Se isso continuar, eu vou ficar louco.

“Não pode ser!” Ah não, estava perdendo a compostura de novo. Minha mente estava no estado de

mais profunda confusão, com meteoros coloridos voando loucamente pelo ar, corri pela mesa, me aproximando de Nagato.

Os dedos pálidos fecharam o livro. Era um livro grosso, de capa dura. Não consegui

ver o título a tempo. Nagato se levantou da cadeira e deu um passo para trás se afastando de mim. Seus olhos, brilhantes e polidos como uma pedra de go escura, reviraram com hesitação.

Coloquei minhas mãos em seus ombros. Perdi a compostura que havia recebido na

recente falha que tivera com Asahina-san. Estava totalmente focado em não a deixar ela ir.

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Se não tivesse a segurado assim, todos os meus amigos teriam escorrido por entre os meus dedos, tinha medo. Não queria perder mais ninguém.

Sentia o calor do seu corpo passando pelo uniforme, seu perfil enquadrado pelo

cabelo curto tentava escapar de mim virando o rosto para longe. “Por favor, lembre-se! Esse mundo mudou de ontem para hoje. Haruhi foi substituída

por Asakura! Quem está por trás disso? A Entidade de Dados Integrados? Asakura simplesmente reviveu, você tem que saber de algo! Você e ela não vieram do mesmo lugar? O que diabos está acontecendo aqui? Pode usar quantas palavras compridas você quiser, mas me explique–”

Como havia feito todo o dia, estava para continuar, mas senti uma desagradável

sensação correndo pelo meu estomago. Essa reação... não é igual a de qualquer pessoa? Os olhos de Nagato estavam firmemente fechados, e um tom leve de vermelho se

espalhava pelo seu rosto pálido. Gemidos, como suspiros distantes, escapavam de seus lábios semi-abertos, finalmente havia percebido o tremor delicado nos ombros sob as minhas mãos, como um filhote sob o ar gelado. Uma voz insegura chegou aos meus ouvidos.

“Pare com isso...” Voltei aos meus sentidos. Já fazia algum tempo que Nagato estava de costas para a

parede. Em outras palavras, eu havia a empurrado sem perceber até lá. O que foi que eu fiz? Agi como um troglodita, não é? Se alguém tivesse presenciado isso, já estaria algemado e recebendo uma intimação penal. Se formos olhar objetivamente, eu não era nada além de um bastardo que atacou uma indefesa garota sozinha no Clube de Literatura.

“Desculpe.” Soltando as minhas mãos, senti toda a força que ainda me restava ser drenada do

meu corpo. “Não queria te atacar assim. Só queria confirmar uma coisa...” Meus joelhos enfraqueceram. Puxei uma cadeira até mim, e desabei sobre ela como

um caramujo letárgico. Nagato não se movera um palmo, continuara com as costas na parede. O que poderia considerar como sorte, tomando em conta que ela não correu para fora amedrontada.

Passei meus olhos pela sala mais uma vez, e logo percebi que aquela não era a base

secreta da Brigada SOS. Nessa sala só haviam pilhas de livros nas estantes e cadeiras dobráveis, alem de um computador sobre a longa mesa de madeira. Não era o computador de última geração que Haruhi extorquira do Clube de Informática, mas sim um modelo de três gerações atrás. Comparativamente falando, as diferenças eram como querer comparar um phaethon [2] de dois cavalos com um trem Maglev [3].

2-[Nota do tradutor: na mitologia grega, Phaëtōn, ou Phaethōn, era filho de Helios (Phoebus). Helios concede a Phaeton a carroagem do sol, porém esse perde o controle e, quando coloca a Terra em perigo, Zeus o mata com um raio, de forma a prevenir o desastre].

3-[Nota do tradutor: um comboio (trem) de levitação magnética ou Maglev (Magnetic levitation transport) é um veículo semelhante a um comboio que transita numa linha elevada sobre o

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chão e é propulsionado pelas forças atrativas e repulsivas do magnetismo através do uso de supercondutores].

Na mesa de Haruhi, onde normalmente teríamos um prisma com a palavra

”Comandante” inscrita, nada poderia ser visto. A geladeira e as diversas fantasias também estavam faltantes. Sem jogos de mesa trazidos por Koizumi. Sem Maids. Sem a netinha do papai Noel. Sem nada.

“Droga!” Segurei minha cabeça com as mãos. Realmente, o jogo havia acabado! Se isso era

um joguete psicológico de alguém, meus parabéns, você teve um sucesso retumbante! Eu mesmo posso te dar uma medalha. Então, quem estava por trás desse experimento, Haruhi? A Entidade de Dados Integrados? Ou algum novo inimigo até agora desconhecido ao nosso mundo...?

Isso durou uns cinco minutos. Lutei para melhorar o meu ânimo, até que pude com

muito esforço levantar a cabeça. Nagato ainda estava colada a parede, com seus olhos negros fixados em mim. Seus

óculos estavam tortos, e só posso agradecer aos céus por aqueles olhos não estarem repletos de horror ou medo, era mais um tipo de surpresa de uma garotinha que encontrara o seu irmão considerado morto caminhando pela rua. Pelo que parecia, ela não iria me denunciar pelo incidente. No meio de tanto pânico, talvez essa fosse minha única fonte de alívio.

Por que você não se senta? Comecei a falar, mas percebi que havia roubado a

cadeira de Nagato. Deveria ceder o lugar a ela ou pegar outra cadeira? Talvez ela não queria ficar perto de mim.

“Perdoe-me.” Com mais um pedido de desculpas, me levantei. Peguei uma cadeira em um canto e

a movi para o centro da sala. Julgando que essa seria uma distância saudável, desdobrei a cadeira e senti outra vez, continuando a apoiar minha cabeça entre as mãos.

Essa era apenas uma pequena sala onde ficava o Clube de Literatura. Em um dia em

maio, Haruhi me arrastara para cá como um robô enlouquecido, e assim pude conhecer Nagato. A sala que vi em nosso primeiro encontro era exatamente assim. Naquela época, só haviam as mesas, cadeiras e estantes, além da própria Nagato. A partir daí, objetos randômicos começaram a aparecer sem aviso, tudo porque Haruhi anunciara que “de agora em diante, essa será sala do nosso clube!”. Entre essas coisas estava um aquecedor, uma chaleira, um vaso de barro, uma geladeira, um computador...

“Espere um pouco.” Tirei as mãos da cabeça. O que foi. O que estava aqui? Um armário, um bule de chá, copos, um velho tocador de fitas... “Não isso...” Procure coisas que não existiam aqui antes e que apareceram apenas depois de se

tornar o covil da Brigada SOS, e que estão nessa sala agora! “O computador!”

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O modelo era completamente diferente. Só havia o cabo de energia estendido pelo chão, então era muito provável que não estivesse ligado na internet. Mas esse era o único objeto que me chamara a atenção, a resposta única para o meu “jogo dos sete erros”.

Nagato ainda estava em pé. Seus olhos estavam grudados em mim já fazia um longo

tempo, como se necessitasse de vigilância constante. Mas se olhasse para ela, seu rosto imediatamente se virava para o chão. Olhando bem, era possível ver uma sombra de rubor em suas bochechas. Ei Nagato... essa não é você! Você nunca deixaria seus olhos vagando por ai e seu rosto mergulhado em dúvidas!

Podia ser um esforço fútil, mas tentei parecer imperturbado enquanto me levantava,

na tentativa de não amedrontá-la. “Nagato.” Apontei para o monitor. “Posso usar isso um pouco?” A expressão dela era de choque, se tornando pouco a pouco em perplexidade, seus

olhos vagueavam rapidamente entre o computador e eu. Ela tomou fôlego. “Só um instante.” De maneira insegura, ela trouxe sua cadeira para frente do computador, apertou o

botão para ligar e se sentou. Para dar o boot no sistema operacional demorou uma eternidade, praticamente o

tempo para uma lata de café recém comprada esfriar até o ponto de um gato poder prová-la. Depois de um som similar a um esquilo mastigando as raízes de uma arvore, aquilo finalmente havia acabado. Nagato operou o mouse com agilidade, talvez para mover ou apagar algum arquivo. Talvez tivesse algo lá que ela não queria mostrar a ninguém. Entendo o que ela sente, também não queria que ninguém visse a pasta MIKURU.

“Está aqui.” Com uma voz baixa e sem olhar para mim, ela saiu da cadeira e continuou a me vigiar

ao lado da parede. “Desculpe pelo incômodo.” Me sentei e dei uma olhada rápida pela tela, usando de todas as habilidades que

tinha para encontrar a pasta MIKURU ou do site da Brigada SOS. Um senso de inutilidade pesava em meus ombros.

“... não está aqui.” Apesar de tudo que fiz, não consegui encontrar uma conexão nos fatos. As provas da

existência de Haruhi não estavam em lugar algum. Penso em que tipo de coisa Nagato pode ter escondido anteriormente, mas o olhar

vigilante dela permanecia em minhas costas. A atmosfera era tão pesada que ela poderia desconectar o cabo de energia logo que os dados ocultos estivessem para ser descobertos.

Me levantei. O computador não continha pista alguma. O que eu queria mesmo ver não era as

fotos de Asahina-san ou a página de internet da Brigada SOS. Esperava encontrar uma pista que Nagato me deixara, como aquela vez em que eu e Haruhi ficamos presos em um espaço restrito. Minhas esperanças foram aniquiladas sem piedade.

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“Desculpe pela confusão.” Desculpei-me com uma voz cansada e me virei para a porta. Vou para casa, dormir

um pouco. Então algo surpreendente aconteceu. “Espera.” Nagato puxou um papel timbrado de um vão na estante, e ficou em frente a mim com

um olhar hesitante. Seus olhos vagueavam ao redor da minha gravata enquanto ela falava. “Se estiver tudo bem para você.” Ela colocou a folha em minhas mãos. “Pegue isso.” Era um formulário, em branco, para inscrição nos clubes. Bem. Ao menos eu deveria estar grato de já ter encontrado todo o tipo de coisa absurda

antes. Caso contrário, nessas horas eu já teria ido atrás de um psiquiatra. Examinando as coisas com frieza, ou eu acabei ficando clinicamente insano, ou o

mundo todo saiu completamente dos trilhos; e eu quase posso marcar essa alternativa como incorreta. Sempre sou o sujeito sóbrio, me reconheço como um excelente comentarista da gigantesca Tsukkomi [4] que é a minha vida. Ei, se pudesse deixar um comentário sobre esse mundo incompreensível, seria algo assim; Nandeyanen [5]!?/ Mas que diabos!?

4-[Nota do tradutor: Boke e Tsukomi é uma famosa peça de teatro, chamada Manzai, que consiste em mostrar o relacionamento entre duas pessoas. Tsukkomi [ é o “personagem sem graça” da dupla].

5-[Nota do tradutor: traduzido como “por que isso!?”, é uma das frases da comédia Manzai].

“ ... ” Fiquei em silêncio, bem ao estilo de Nagato. De certa forma já começava a sentir o

frio gelando meus ossos, acho que existe um limite para a minha falsa coragem. Nagato havia se transformado em uma míope garota adoradora de livros. Asahina-

san voltara a ser uma veterana desconhecida para mim. Koizumi nunca havia se transferido para cá, e provavelmente estava estudando em algum outro lugar.

Mas na verdade, o que aconteceu aqui? Será que a intenção era voltar tudo ao início? Se fosse assim, as datas não estavam

um pouco erradas? Se fosse um reset, possivelmente voltaríamos até o início de tudo, no primeiro dia de aula, não é? Não tenho idéia de quem apertou o botão de reinicio, alterando apenas a configuração do ambiente enquanto o fluxo do tempo se manteve intacto. Isso é realmente confuso, sabe! Olhe só para mim, completamente desorientado e pasmo. Achei que esse tipo de atitude estava reservado apenas para Asahina-san!

E onde está a outra garota? Será que aquela idiota está aproveitando uma vida

confortável enquanto eu estou nesse lugar, morrendo de frio?

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Onde está Haruhi? Cadê você? Mostre já a sua cara! Está com medo ou o quê? “... droga. Por que eu tenho que procurar justamente por você?” Ou será que você simplesmente não existe por aqui, Haruhi? Pode parar agora com essa piada!? Não entendo porque infernos você pensaria

assim, mas a história não pode seguir se você não aparecer! É simplesmente cruel empurrar todos esses pensamentos depressivos e desconfortáveis para mim! Qual é o seu problema afinal?

Com a constante imagem de escravos carregando gigantescos blocos de pedra

ladeira acima para construir um mausoléu, olhei para o nebuloso céu gelado pela janela do corredor.

E o formulário de inscrição farfalhava em meus bolsos. Quando voltei para o meu quarto foi minha irmã e Shamisen que vieram me receber.

Ela, com um sorriso inocente, segurava um graveto com uma bola felpuda na ponta. Shamisen, deitado preguiçosamente na cama, era repetidamente atacado na cabeça pela vareta. O gato apertava os olhos, visivelmente incomodado, e de vez em quando erguia os braços para tentar se defender dos cruéis ataques de minha irmã.

“Oh, bem vindo de volta~” Ela me olhou com um sorriso no rosto. “O jantar está quase pronto. Janta-da-nya, Shami~” Shamisen levantou a cabeça, mas logo deu um grande bocejo, e lutou

preguiçosamente contra as investidas constantes da garotinha. Ah, pelo menos havia alguma esperança nisso tudo. “Ei.” Peguei a vareta e bati levemente na testa de minha irmã. “Você lembra da Haruhi? Asahina-san? Nagato? Koizumi? Não jogamos baseball

juntos, e aparecemos no filme?” “O quê? Kyon-kun, não sei do que você está falando.” Peguei Shamisen nos meus braços. “Quando esse gato veio para essa casa? Quem o trouxe aqui?” Os olhos da minha irmã ficaram cada vez mais circulares. “Hum... mês passado. Você que o trouxe aqui. Kyon-kun, não se lembra? Você

ganhou ele de um amigo que ia se mudar para longe. Não é verdade, Shami~?”

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Roubando o gato tricolor dos meus braços, minha irmãzinha afagou sua bochecha

afetuosamente contra Shamisen, que sonolentamente estreitou os olhos, me olhando de longe com uma expressão de desistência.

“Me dá ele aqui.”

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Peguei o gato de volta. Os seus bigodes estavam tremendo, aparentemente irritado em ser tratado como uma mercadoria. Desculpa, vou te dar mais comida depois como recompensa.

“Preciso trocar uma palavrinha com ele. Só nós dois. Então saia do meu quarto.

Agora!” “Ei, eu também quero conversar. Isso é injusto, Kyon-kun! Eh... você vai falar com o

Shami? Ah? Sério?” “Mãe~, o cérebro do Kyon-kun derreteu!” Minha irmã podia ser ouvida correndo pelas escadas, dizendo algo que poderia muito

bem ser verdadeiro. “Então, Shamisen.” Cruzei as pernas em frente a ele, falando com o precioso gato Calico deitado em meu

piso. “Ok, eu te disse uma vez para não falar, não importando o que acontecesse, mas

agora esqueça isso. Melhor ainda, ficaria realmente grato se, nesse momento, você dissesse algo. Então Shamisen, por favor, fale comigo. Qualquer coisa serve. Filosofia, ciências naturais, o que você preferir. Mesmo que eu não entenda, fale, por favor!”

O felino me olhou com uma cara de chateação. Completamente entediado, Shamisen

começou a lamber os seus pelos. “... você pelo menos entendeu o que eu disse? Você pode não conseguir mais falar,

mas ainda pode ouvir e entender? Levante a pata esquerda se sim, e a direita se não?” Com a minha mão direita, cutuquei o seu nariz. Shamisen cheirou a ponta de meus

dedos por alguns momentos, mas como esperado, voltou a lamber seus pelos, sem dizer nada ou demonstrar qualquer nível de compreensão.

Normal, eu acho... Esse gato falou apenas enquanto gravávamos o filme, e foi por um período bem

curto. Na mesma hora que paramos as filmagens, ele voltou a ser um gato comum. Um gato que poderia ser encontrado em qualquer lugar, e só poderia ser associado a verbos como comer, dormir e brincar.

Só sei de uma coisa. Nesse mundo gato nenhum pode falar. “Isso não é o normal?” Exausto, cai duro em minha cama, esticando meus braços e pernas. Gatos não

podem falar. Então, o momento mais estranho foi quando Shamisen abriu sua boca e falou, não agora. Não é?

Queria ser um gato. Daí poderia parar de pensar nessas coisas complicadas e viver

minha vida confiando apenas nos meus instintos básicos. Permaneci naquela posição, até minha irmãzinha voltar me dizendo que o jantar

estava pronto...