21
O DESCORTINAR DA PAISAGEM A PARTIR DE UM MONUMENTO ENTRÓPICO: o caso do elevado Costa e Silva em São Paulo NEVES, Rafael H. (1); BERNARDINI, Sidney P. (2) 1. UNICAMP. Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura, Tecnologia e Cidade (PPGATC), Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo. Avenida Albert Einstein, 951, Cidade Universitária, Campinas, SP. CEP: 13083-852 [email protected] 2. UNICAMP. Docente no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura, Tecnologia e Cidade (PPGATC), Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo. Avenida Albert Einstein, 951, Cidade Universitária, Campinas, SP. CEP: 13083-852 [email protected] RESUMO Interpretar a metrópole contemporânea exige atenção aos fragmentos urbanos, aos meta-espaços, espaços-entre, paisagens essas surgidas através da experimentação em detrimento ao design. Novas demandas exprimem novas condições e mutações. Este artigo parte de uma hipótese de que um monumento entrópico, em conformidade com os escritos de Robert Smithson, pode ser um catalisador de novos enquadramentos paisagísticos. O emblemático elevado Costa e Silva localizado na capital paulista, conhecido popularmente como “Minhocão”, é um objeto característico da condição mutante do espaço urbano, que conforma a atribuição de um monumento entrópico. Construído em 1970 e inicialmente pensado como solução viária para o fluxo de automóveis entre regiões da cidade, aos moldes do modelo rodoviarista que pautou as intervenções urbanas em São Paulo já a partir da década de 1930, seu caráter foi colocado à prova ao longo de décadas pela população. De uma estrutura amorfa, impassível ao contexto, as apropriações e reivindicações das pessoas sobre a infraestrutura descortinaram a urbanidade latente que todo objeto em conformação com o espaço público deve elucidar. O elevado como nova tipologia dentro de uma perspectiva contemporânea. Como conceito formador de princípios arquitetônicos a fim de embasar um aporte metodológico de investigação e proposição de fatos arquitetônicos na urbe, apontando os condicionantes de formulação das premissas arquitetônicas envoltas no processo projetual complexo, apoiado nas conceituações de absurdo, emergência e antifragilidade. Palavras-chave: Paisagem; Monumento; Emergência; Complexidade; Absurdo;

O DESCORTINAR DA PAISAGEM A PARTIR DE UM … · 7/12/2016 · 3 Conceito fundamental do pensador Nassim Nicholas Taleb, “o antifrágil aprecia a aleatoriedade e a incerteza, o que

Embed Size (px)

Citation preview

O DESCORTINAR DA PAISAGEM A PARTIR DE UM MONUMENTO ENTRÓPICO: o caso do elevado Costa e Silva em São Paulo

NEVES, Rafael H. (1); BERNARDINI, Sidney P. (2)

1. UNICAMP. Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura, Tecnologia e Cidade

(PPGATC), Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo. Avenida Albert Einstein, 951, Cidade Universitária, Campinas, SP. CEP: 13083-852

[email protected]

2. UNICAMP. Docente no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura, Tecnologia e Cidade (PPGATC), Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo.

Avenida Albert Einstein, 951, Cidade Universitária, Campinas, SP. CEP: 13083-852 [email protected]

RESUMO

Interpretar a metrópole contemporânea exige atenção aos fragmentos urbanos, aos meta-espaços, espaços-entre, paisagens essas surgidas através da experimentação em detrimento ao design. Novas demandas exprimem novas condições e mutações. Este artigo parte de uma hipótese de que um monumento entrópico, em conformidade com os escritos de Robert Smithson, pode ser um catalisador de novos enquadramentos paisagísticos. O emblemático elevado Costa e Silva localizado na capital paulista, conhecido popularmente como “Minhocão”, é um objeto característico da condição mutante do espaço urbano, que conforma a atribuição de um monumento entrópico. Construído em 1970 e inicialmente pensado como solução viária para o fluxo de automóveis entre regiões da cidade, aos moldes do modelo rodoviarista que pautou as intervenções urbanas em São Paulo já a partir da década de 1930, seu caráter foi colocado à prova ao longo de décadas pela população. De uma estrutura amorfa, impassível ao contexto, as apropriações e reivindicações das pessoas sobre a infraestrutura descortinaram a urbanidade latente que todo objeto em conformação com o espaço público deve elucidar. O elevado como nova tipologia dentro de uma perspectiva contemporânea. Como conceito formador de princípios arquitetônicos a fim de embasar um aporte metodológico de investigação e proposição de fatos arquitetônicos na urbe, apontando os condicionantes de formulação das premissas arquitetônicas envoltas no processo projetual complexo, apoiado nas conceituações de absurdo, emergência e antifragilidade.

Palavras-chave: Paisagem; Monumento; Emergência; Complexidade; Absurdo;

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

O que caracterizaria um monumento? A grandiosidade de sua estatura, de suas dimensões

que atestam a memória e a admiração de uma comunidade? Um ponto de intersecção com a

história. Uma celebração da perpetuação da memória? A monumentalidade enseja uma série

de construções da paisagem, de vinculação do design com a história e o cotidiano presente.

Legibilidade. Reconhecimento. Pausa. Este artigo parte de uma hipótese de que um

monumento entrópico, em conformidade com os escritos de Robert Smithson, pode ser um

catalisador de novos enquadramentos paisagísticos. Ou seja, um monumento que não

ressalta a história e o momento, mas que celebra a performance do evento, como fator

propulsor da dinâmica da paisagem. A intenção é formular uma perspectiva contemporânea

para o campo, tanto da criação quanto da preservação, através de uma ontologia

metaprojetual baseada nos conceitos de absurdo1 (como interrupção), emergência2 (como

processo aberto) e antifragilidade3 (como um antídoto à obsolescência), a fim de revigorar a

essência da paisagem além de sua materialidade, estimulando o debate sobre a apreensão

dos espaços urbanos.

A leitura entrópica admite o imprevisto, a mutação da cultura da paisagem, um monumento

em permanente construção, ao contrário da identidade, que centraliza tal cultura num ponto.

Os monumentos entrópicos espalham-se sobre o território urbano. Não emergiram através de

forças centrais, mas da adaptação interativa do meio, onde o objeto se adapta ao ambiente.

Reconhecer ações antes características de determinados lugares em outras condições.

Tipos, referenciados como índice, como a ideia de pracialidade, de Eugênio Queiroga (2001).

O elevado Costa e Silva, na cidade de São Paulo, como um exemplo de monumento

entrópico, é um objeto característico da condição mutante do espaço urbano. Construído em

1970 e inicialmente pensado como solução viária para o fluxo de automóveis entre regiões da

cidade, aos moldes do modelo rodoviarista, seu caráter foi colocado à prova ao longo de

décadas pela população. A vitalidade de tal monumento advém da apropriação da obra com

1 Conceito formulado pelo filósofo Albert Camus, o absurdo é o confronto consciente entre o homem e o mundo,

numa relação de inadequação entre ambos. O mundo não é racional e o absurdo aponta esta inadequação, não sugerindo uma conclusão mas, um ponto de partida. O pensamento camusiano, com toda carga niilista, parece ser útil ao processo de criação, como veiculado nesta artigo, pois é uma forma de interrupção do processo de projeto.

2 Conceito que indica um comportamento auto organizado dentro de um sistema complexo: múltiplos agentes

interagindo dinamicamente de diversas formas, seguindo regras locais e não percebendo qualquer instrução de nível mais alto. O sistema seria considerado emergente quando todas as interações locais resultassem em algum tipo de macrocomportamento observável. (JOHNSON, 2003, p.15).

3 Conceito fundamental do pensador Nassim Nicholas Taleb, “o antifrágil aprecia a aleatoriedade e a incerteza, o

que também significa – acima de tudo – apreciar os erros, ou pelo menos certo tipo de erro.” (TALEB, 2012, p.22). E, ainda: “A antifragilidade não se resume à resiliência ou à robustez. O resiliente resiste a impactos e permanece o mesmo; o antifrágil fica melhor.” (TALEB, 2012, p.21).

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

valores opostos aos elaborados, uma vez que vem deixando, aos poucos, de ser utilizado

como um viaduto para automóveis e passando a se constituir como um espaço de lazer e

apropriação urbana pela população em geral. É um ponto de subversão da paisagem, uma

criação absurda que fomenta um descobrimento por vir, novas conexões, onde a paisagem

advém de um processo inconsciente de si mesma.

Tal exemplo é um ponto de reflexão da paisagem como processo, não como forma, como um

fim em si. O resultado presume que a paisagem a ser preservada é aquela que vai além da

fixidez de um retrato passado ou de sua importância arquitetônica e cultural; ao reconhecer a

paisagem como potência criadora, como suporte emergente dos vínculos passados e futuros.

Complexidade e contradição

O fenômeno urbano é marcado por uma equação caótica de diversos personagens

entremeando-se no cenário de cheios e vazios do território. As ciências complexas vêm

ganhando cada vez mais espaço nas últimas décadas, questionando a linearidade da ciência

tradicional na produção do conhecimento. Na arquitetura e no urbanismo, as aproximações

críticas da complexidade sobre as disciplinas são características de alguns autores como

Jacobs (2009), Venturi (1966), Alexander (1965). A epistemologia complexa não reduz a

história a processos determinísticos e oferece novos métodos sobre pesquisa organizacional.

“Imagens como auto-organização, estruturas dissipativas e complexidade dinâmica podem

oferecer um excelente arcabouço para os estudos organizacionais.” (SILVA, 2000, p.5).

É fundamental compreender os sistemas na conformação do espaço urbano. Sua

complexidade advém do fato de não ter uma clareza única, literal. Na sua essência reside na

verdade um paradoxo. "O sistema começa por apresentar-se como unitas multiplex, isto é,

como paradoxo: considerado sob o ângulo do todo, é uno e homogêneo; considerado sob o

ângulo dos constituintes, é diverso e heterogêneo." (MORIN, 1977, p.102).

Vale lembrar porém, que um sistema complexo é diferente de um sistema desordenado. O

primeiro engendra propriedades funcionais que permitem o sistema produzir conteúdo. Há

ordem no caos. Dentro da complexidade há uma ordem oculta que precisa ser vasculhada. Na

condição de desordem, não há uma propriedade de ligação que permite narrar o efeito do

sistema. O mesmo cuidado com as narrativas reducionistas tem de ser feito com o

complexismo. Não se pode tomar a desordem e o caos como imagem, como signo

determinado sem reconhecer os princípios abstratos internos à aparência. Morin (2005) é

taxativo sobre a perspectiva da pesquisa complexa quanto uma narrativa pronta, ao apontar

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

mal-entendidos como encará-la como receita, como a grande resposta de todas as

indagações e não como um meio para o pensar, um desafio à simplificação. “Dessa forma, a

complexidade surge como dificuldade, como incerteza e não como clareza ou como resposta.”

(SILVA, 2000, p.6).

Contrariamente aos ideais reducionistas das grandes metanarrativas, a cidade é um sistema

complexo, marcado por uma diversidade de relações de seus personagens. Querer reduzir tal

caos numa ideia de unidade provoca como consequência única o congelamento do tempo, a

supressão da vida em relação à arte e ao design. A arrogância do desenho etéreo esteriliza o

descompasso da vida humana. A complexidade de um sistema - ou de uma cidade - consiste

"em associar em si a ideia de unidade, por um lado, de diversidade ou multiplicidade, por

outro, que em princípio se repelem e se excluem." (MORIN, 1977, p.102). O sistema é uma

unidade global com qualidades próprias irredutíveis e indivisíveis. Como diz Morin:

A ideia de unidade complexa vai ganhar densidade se pressentimos que não podemos

reduzir nem o todo às partes nem as partes ao todo, nem o uno ao múltiplo nem o

múltiplo ao uno, mas que temos de tentar conceber em conjunto, de modo

simultaneamente complementar e antagônico, as noções de todo e de partes, de uno e

de diverso. (MORIN, 1977, p.103).

Ora, entender a arquitetura de modo isolado, como objeto arquitetural, reduz a condição

metaprojetual à unidade da forma. Conceber uma metodologia projetual "numa ciência que

procurava os seus fundamentos precisamente no redutível, no simples e no elementar",

resultará no enfraquecimento das ferramentas conceituais que investigarão condições

não-lineares emergentes. Tal metodologia permite calibrar as ferramentas analíticas, nunca

eliminar as contribuições passadas, buscando e eliminando erros a serviço da busca da

verdade, a serviço da verdade, como diria Popper.

A relação entre arquitetura e cidade configura a experiência do mundo concreto do homem,

uma formação contínua de um extenso palimpsesto, com suas diversas camadas, formando

um complexo sistema. O tempo imprimiu a organização das partes fundindo-as à unidade

global, ao todo. A cidade é um todo complexo de ordem e desordem que fica à mercê do

tempo e das relações diversas de sua unidade mínima, os indivíduos. Uma característica

muito importante nesse processo é o conceito de “emergência”. Termo comum, sugere algo

que "emerge", que enuncia um momento fortuito. O conceito representa um comportamento.

Comportamento que emerge sem qualquer previsão, proposta ou suposição quando da

implementação de algo. A característica fundamental é a auto-organização, a capacidade de

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

se tornar mais organizado com o passar do tempo. Uma "mistura de ordem e anarquia é o que

chamamos de comportamento emergente" (JOHNSON, 2003, p.27). Como explica Morin:

Podemos chamar emergências às qualidades ou propriedades dum sistema que

apresentam um caráter de novidade em relação às qualidades ou propriedades dos

componentes considerados isoladamente ou dispostos de maneira diferente num outro

tipo de sistema. (MORIN, 1977, p.104).

As qualidades desse comportamento emergente nascem das associações, das combinações

diversas entre as partes, emergindo a estabilidade dentro do caos. A separabilidade -

condição própria do reducionismo - perdeu o seu valor absoluto. As partes não podem ser

identificadas quando os elementos são tomados isoladamente.

O pensamento científico clássico foi construído sobre três pilares: a ordem, a

separabilidade e a razão. A noção de separabilidade corresponde ao princípio

cartesiano segundo o qual para estudar um fenómeno devemos decompô-lo em

elementos simples. O pensar complexo não substitui a separabilidade pela

inseparabilidade, mas chama, uma vez mais, uma dialógica que utiliza o separável,

mas o insere no inseparável. (FERRARA, 2003, p.8).

A ciência da auto-organização se concretiza na imprevisibilidade, na incerteza e na

racionalidade aberta, em oposição à racionalização fechada. Operar a incerteza é ter

consciência de que não há o absoluto - pode-se fazer um paralelo ao problema da indução em

Popper e ao sentimento do absurdo em Camus - não existe o controle total do processo de

projeto, muito menos de seus resultados. Porém, este fato não anula a capacidade de projeto

e ao relativismo de que não existe o real e de que tudo é válido. Ao contrário, qual é a essência

do projetar o não-absoluto? Seria possível projetar “emergencialmente”? O contrassenso

aparente do projetar, do ver além, reside em se exigir a ordem, o controle, um manual de

como se deve proceder, em face ao descontrole da imprevisibilidade do tempo. Esse realismo

antiutópico marca a dissolução do objeto moderno. A atividade supera a forma, adicionando

assim o fator tempo. A previsibilidade da natureza era evidente na concepção metaprojetual

da tríade vitruviana, marcada pelo termos de ordem, estrutura e função. A ciência da

complexidade recicla tais termos fechados, remetendo a um embasamento mais aberto e

abstrato como, organização, sistema e relação. Encarar a arquitetura como objeto acabado

é negar o caráter sempre dinâmico da realidade. A arquitetura da realidade admite a

modulação da passagem do tempo por seus usuários (MONTANER, 2009, p.90).

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

O pensamento complexo não visa substituir a ideia de ordem pela de desordem, ou ao

contrário, pois pretende, antes da exclusão, colocar em perspectiva dialógica ordem,

desordem e organização. “As ideias de ordem e desordem deixam de se excluir

absolutamente; ordem organizacional pode nascer a partir da turbulência e processos

desordenados podem nascer em contextos deterministas (FERRARA, 2003, p.8). A

complexidade do espaço metropolitano implica em novas habilidades das partes

componentes. A adaptação emerge no “design” de variados sistemas de auto-organização a

partir de milhões de decisões individuais consolidando uma ordem global a partir de

interações locais (JOHNSON, 2003, p.63-76). A cidade acontece. Padrões maiores emergem

de ações descoordenadas, do “caos” aparente imerso numa solução de estabilidade e

mudança. A espontaneidade de séculos de desenvolvimento das cidades tradicionais gerou

um padrão não-planejado, bottom-up, juntamente com a criação de uma paisagem artificial,

ao estilo top-down, conformando a natureza da cidade.

Há uma natureza inerente, um princípio organizador que emerge a pátina da vida, típica das

“cidades naturais”, conforme menciona Christopher Alexander (1965) em seu clássico artigo A

cidade não é uma árvore. Alexander faz um mapeamento das relações complexas do

ambiente urbano, identificando padrões em conjuntos que farão parte de um sistema. O artigo

é uma crítica às tentativas do design moderno em produzir as “cidades artificiais”,

marcadamente em um esquema rígido de “árvore” em detrimento à complexidade de um

“semilattice”. Árvore e semilattice são diagramas que demonstram a ramificação de um

sistema através da conjunção das partes. Aponta a falha dos designers de não conseguirem

captar a propriedade que “deu vida às cidades antigas” e o malogrado desejo destes de se

aterem às “características físicas e plásticas do passado” em detrimento “dos princípios

abstratos de ordenamento” notáveis da antiga urbe (ALEXANDER, 1965).

O todo é superior à soma das partes. Esse é o lema característico dos sistemas emergenciais.

Transcende a polarização entre reducionismo e holismo. O fenômeno urbano não pode ser

interpretado, e projetado, por uma coleção de partes autóctones ou por uma totalidade que

não reduz às partes. Árvores e semilattices, seguindo os conceitos de Alexander, traduzem as

aspirações do design quanto ao seu controle. A totalidade do espaço é resultado da

conjunção dos fixos e fluxos, conforme menciona Milton Santos. A arquitetura como um entre

vivenciado pode produzir a potência ou a nulidade do lugar. Entre o todo e as partes, a cidade

e a arquitetura, a pátina da vida se revela na metamorfose cotidiana das relações impessoais

da sociedade.

Relações sujeito-objeto dependem de diversos níveis de interações e escalas de

conhecimento. O fato é que todo o conhecimento é limitado. Como o design pode determinar

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

a imposição de um plano que subjuga conhecimentos locais? O planejador teria condições de

apreender a totalidade das informações, aspirações e planos individuais da sociedade? O

menosprezo do conhecimento prático dentro de certas circunstâncias particulares de tempo e

lugar, não vislumbra a potência e a criatividade da incerteza. Essa complexidade de ações

dificilmente seria projetada centralmente. Há um conhecimento disperso na sociedade onde o

design deveria se ater, se ligar ao mundo baixo para que surja uma ordem superior. Para

Hayek (1988) é necessária a descentralização desse “diretório central”, para que assim se

possa “garantir que o conhecimento das circunstâncias particulares de tempo e lugar sejam

prontamente utilizados”. Emerge assim, uma ordem espontânea (HAYEK, 1967) de baixo

para cima.

A ordem espontânea deve à tradição uma base moral. Descobertas acidentais e um processo

penoso de tentativa e erro elevaram a civilização. Supor que se deve todas as vantagens e

oportunidades oferecidas pela civilização a um plano deliberado e não à observância de

normas tradicionais seria induzir ao erro e não vislumbrar o risco herdado do passado. A

ineficiência de um racionalismo extremo, propugnada por uma moral intelectual, está em

acreditar que pode satisfazer melhor a sociedade que os métodos tradicionais.

Nosso objetivo tem que ser, como aprendemos com Karl Popper, cometer nossos

sucessivos erros o mais rápido possível. Se no meio tempo tivéssemos de abandonar

todas as conjecturas atuais, que não podemos provar como verdadeiras, logo

voltaríamos ao nível do selvagem, que confia apenas em seus instintos. Contudo, é o

que todas as versões do cientismo recomendaram - do racionalismo cartesiano ao

positivismo moderno. (HAYEK, 1988, p.98).

A ordem espontânea advém da experimentação. Algo entre a intuição e a razão. A arquitetura

é a mediação desses atributos, um agente moderador do progresso. A cultura da cidade

pré-industrial é retomada pela crítica arquitetônica a partir da década de 1960, como condição

última de uma urbanidade realmente viva. A tradição ressurge revelando seus espaços

testados frente à tabula rasa modernista que produziu, também, suas próprias tipologias e

novos programas. Cada época produziu hipóteses que foram lançadas à realidade, arriscando

um sistema de relações espaciais e temporais. Mergulhado no cotidiano, o risco sugere

condições laboratoriais que permitem o entendimento do fato arquitetônico lançado

(PORTAS, 1969, p.29).

Da mesma maneira que a força da gravidade faz com que a água sempre encontre a

maneira de chegar ao solo, acusando no seu percurso as fissuras da construção, o

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

descompasso dos elementos construtivos, assim também a força da realidade sempre

termina acusando o descompasso entre o projeto (o que se imaginou que deveria

ocorrer) e a vida (o que de fato ocorre). (ARAVENA, 1999).

A contradição da realidade é um poderoso insumo para o design a fim de reprogramar a sua

síntese. A realidade imprime uma condição complexa que exige do design uma

complementação, aventurando-se em seu abstrato processo de invenção, com potencial de

se criar relações inéditas entre os comportamentos dos usuários e o ambiente físico. Para

Nuno Portas (1969, p.31), é “de se estranhar o vulgar desinteresse dos mesmos projetistas

pela ‘sorte’ do seu projeto, ou seja, o que é mais grave, pela ‘sorte’ dos que o habitam”. Qual é

a “sorte” do projeto do elevado paulistano? Tal sorte elevou a sua condição infra estrutural a

um novo padrão de organização, ou seja, a uma nova tipologia?

A experimentação arquitetônica em nível tipológico resgata a experiência acumulada da

cidade. Anthony Vidler (1976) destaca a questão do tipo na cidade, e a própria cidade como

tipo, alçando-a a uma terceira tipologia, num evidente “desejo de resgatar a continuidade da

forma e da história em contraposição à fragmentação gerada pelas tipologias elementares,

institucionais e mecânicas” do passado modernista. O tipo emergido é um sobrevivente da

complexidade e contradição da qual foi exposto ao longo do tempo. Ele é resultado da

ambiguidade da obra, do projeto consumado, onde o controle cede à incerteza, a previsão ao

fato, o abstrato ao concreto, a intenção à percepção. Descortinar a ordem difícil de um cenário

complexo e contraditório de processos espontâneos em curso, é o que faz esses novos

territórios emergentes da cidade contemporânea; engendrar novas formas na arquitetura e no

urbanismo despidas da nostalgia pós-moderna e do purismo moderno.

Descortinamento

“Para mim, ver o muro de Berlim como arquitetura foi uma magnífica primeira revelação em

arquitetura, sobre como a ausência pode ter mais força que a presença.”

Rem Koolhaas

Esta seção procura refletir os limites da arquitetura [Figura 1], o estado da arte do

pensamento arquitetônico, ao propor uma amplidão crítica às interpretações da disciplina, a

fim de desobstruir um reducionismo que não permite vislumbrar as potencialidades ocultas em

determinadas formas emergidas de uma urbanidade espontânea. O monumento entrópico,

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

conforme enunciado, faz parte do que Bernard Tschumi (1980, p.174) descreve como obra

limite: “Assim como a pista secreta em um romance policial, essas obras são essenciais.”

Para Tschumi, os limites são áreas estratégicas da arquitetura.

Se a corrente dominante entre os historiadores descartou inúmeras obras por

considerá-las “arquitetura conceitual”, “arquitetura de papelão”, espaços “poéticos” ou

“narrativos”, chegou a hora de questionar sistematicamente as suas estratégias

reducionistas. Colocá-las em questão não é simplesmente exaltar o que essas

estratégias rejeitam. Ao contrário, significa entender o que as atividades de fronteira

escondem e encobrem. (TSCHUMI, 1980, p.176).

Figura 1. Imagem do Muro de Berlim, extraída do ensaio O Muro de Berlim como Arquitetura, de Rem

Koolhaas, 1970. Fonte: KOOLHAAS, Rem.; MAU, Bruce. S, M, L, XL. Nova York: The Monacelli

Press.1998 (1995).

Reconhecer as ações diversas da contemporaneidade é fundamental ao parecer crítico da

disciplina a fim de detectar e potencializar soluções futuras. Os monumentos investigados são

espaços sistemáticos que apontam condições, possibilidades do acontecimento, de uma

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

“catástrofe genésica”, remetendo às entidades do urbano, como a ideia de pracialidade.

Conforme explica Queiroga sobre o conceito de pracialidade [Figuras 3 e 4]:

Tratou-se de reconhecer que as ações que outrora caracterizavam as praças públicas

– convívio, encontro e manifestações públicas – lugares por excelência da esfera

pública geral e da esfera pública política, não mais se estabeleciam com exclusividade

neste espaço livre público. As ações típicas da praça verificam-se nos mais diversos

espaços em função dos diferentes contextos urbanos que assim lhes propiciam

ocorrer. (QUEIROGA, 2012, p.60).

Esta artigo acaba por reivindicar o elevado como arquitetura, a fim de explorar o limite da

disciplina, revelando excessos e códigos ocultos que sugerem outras definições, outras

intepretações, que não se restrinja ao objeto-em-si, mas ao estado do monumento entrópico e

sua incorporação à paisagem urbana. Conforme comenta Martha Telles (2010, p.81) “Os

monumentos entrópicos de (Robert) Smithson encontram-se em estado de possibilidade de

identificação e experimentação a cada vez, a cada visita à paisagem artificial pós-industrial.”

[Figura 2]. Conforme o próprio artista: “Ao invés de fazer-nos lembrar o passado como os

velhos monumentos, os novos monumentos parecem nos fazer esquecer o futuro”

(SMITHSON, 1966, p.11).

Tal descortinamento procura averiguar as potencialidades do fragmento. Ao espaço dilatado,

o objeto arquitetônico assumiu uma autonomia desconhecida, marcada pela técnica e forma,

e por uma liberdade que acaba por destruir o léxico da cidade oitocentista. “O fragmento

operou por muito tempo na modernidade, produzindo uma série de importantes contradições”

(SECCHI, 2012, p.105). A arquitetura e a paisagem da complexidade e contradição está à

espera de um projeto que possa repropor temas e interrogações, novas possibilidades

compositivas que permitam uma recomposição da experiência.

Em seu princípio de racionalização progressiva, urbanismo e arquitetura articulavam a

cidade em termos de totalidades, abstrações construídas com base em um modelo

temporal histórico e ideal. Menos do que mera constatação e celebração de tal

realidade, Smithson percebe nos fragmentos da modernidade novos temas de

trabalho. (TELLES, 2010, p.80).

A quebra dos limites não procura separar e personificar um novo estilo. O exercício

arquitetônico exige uma constância no pensar, numa autopoiese municiada com as

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

considerações exteriores da disciplina. A mutação constante exige a quebra das convenções

arquitetônicas. Qual o ideal de um monumento? O que seria um monumento contemporâneo

dessa metrópole genérica? Sua essência reside na perpetuação da memória de um

acontecimento, um design de memória. O monumento aqui promulgado poderia ser uma

espécie de religamento, um ponto de ordem e desordem, um conflito do absurdo camusiano,

que leva ao “salto”, à inconclusão do cotidiano. Segundo esse princípio, o monumento deixa

de ser algo ensimesmado, casado com o passado; passa a ser algo aberto, estranho,

divorciado do absoluto.

A potência do vazio, do inconcluso. O vazio não necessariamente como ausência, mas

também, como um cheio esvaziado, ou seja, uma presença sem história, sem referência, sem

conexão com a densidade do mundo, sem consciência. Tais espaços de “presenças

ausentes”, poderiam abrigar uma nova organização discursiva. O vazio positivo, ou seja,

espaços livres de um design a priori, aberto à (im)possibilidades, são espaços efetivamente

da incerteza de um design entrópico. [Figura 5].

O monumento entrópico explora o limite do valor arquitetônico tradicional como elemento

primário; seu aspecto espacial não remete a uma memória e sua funcionalidade não é algo

dada a priori. Um objeto arquitetural que remete ao segundo princípio (termodinâmico) que

não pode articular-se “nem com um conceito de ordem - sempre repulsivo - nem com um

conceito de organização - sempre ausente. Podia unicamente oscilar entre a insignificância

duma versão mínima e a enormidade duma versão máxima.” (MORIN, 1977, p.69). Como

ressalta Nelson Brissac Peixoto: “Os monumentos, como os jardins e as ruínas, são

construções que existem no limite da utilidade e da permanência. Eles flertam com o

desaparecimento.” (PEIXOTO, 2012, p.372).

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

Figura 2. Imagens do trabalho fotográfico de Robert Smithson, Monuments of Passaic, de 1967.

Disponível em

<http://revistacarbono.com/artigos/05os-meteoritos-mayana-redin/attachment/revista19-pdf/> Acesso

em: 09 ago. 2016; Disponível em:

<http://www.robertsmithson.com/photoworks/monument-passaic_300.htm> Acesso em: 09 ago. 2016.

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

Figura 3. Intervenções do artista plástico Felipe Morozini. Um exemplo de pracialidade criada.

Disponível em: <https://www.instagram.com/felipemorozini/?hl=pt-br> Acesso em: 12 jul. 2016.

Figura 4. Festa Junina no minhocão, evento que reuniu 4000 pessoas em 2013. Um exemplo de

pracialidade espontânea. Foto: Rivaldo Gomes, Folhapress, 2013.

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

Figura 5. Imagem da paisagem urbana da região do elevado Costa e Silva. Descortinar as nuances

urbanas de um espaço fragmentado. Fonte:

Esta narrativa complexa desestabiliza a visão do sujeito clássico que permeou a arquitetura e

os espaços urbanos. Uma desestabilização que não os invalida, mas que permite uma

apreensão dos espaços e dos fatos urbanos mais condizente à condição contemporânea. A

concepção do monumento se identifica com a persistência dos fatos urbanos, um ponto de

convergência da urbanidade, da práxis urbana, não se remetendo apenas ao ponto de vista

físico. A persistência de tal objeto é constituída "por seu valor constitutivo, pela história e pela

arte, pelo ser e pela memória", como lembra Aldo Rossi (2001, p.56). A palavra "persistência"

adquire um sentido mais apropriado ao que este artigo desenvolve em relação ao monumento

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

entrópico, pois, vincula-se mais a uma ideia de organização sistemática, sujeita à dicotomia

da ordem e desordem, própria do segundo princípio, expostas no "limite da utilidade e da

permanência", como descreve Peixoto. Há uma complexidade imanente ao monumento em

sua constituição, que não pode ser apreendida em sua essência com a literalidade de uma

imagem que possa ser transposta. Como lembra Rossi:

...reconhecer apenas aos monumentos uma efetiva intencionalidade estética, a ponto

de colocá-los como elementos fixos da estrutura urbana, pode ser uma simplificação.

(...) o processo dinâmico da cidade tende mais à evolução do que à conservação e que

na evolução os monumentos se conservam e representam fatos propulsores do próprio

desenvolvimento. (ROSSI, 2001, p.56).

A dimensão do monumento aqui propugnada não trata dos monumentos da permanência

histórica, mas, sim, da convergência catalisadora de novos enquadramentos paisagísticos.

Refere-se mais à dimensão dos “elementos primários”, que não se restringe apenas ao

monumento em si ou à atividades fixas, à entidades fechadas, evocando elementos capazes

de acelerar, ou contribuir, o processo de urbanização da cidade. Elementos estes nem

sempre construídos, detectáveis - lugar de acontecimentos (ROSSI, 2001, p.116). Trata-se

de reconhecer a eventualidade, o acaso, o acidental em detrimento a um design etéreo. A

paisagem desse descortinar admite o eventual, a complexidade e a responsabilidade da

liberdade. “Donde a necessidade do princípio de complexidade que, em vez de excluir o

acontecimento, o inclui e nos leva a olhar os acontecimentos da nossa escala terrestre, viva e

humana, aos quais uma ciência antieventual nos tornara cegos.” (MORIN, 1977, p.84).

O antigo universo não tinha singularidade na sua obediência às leis gerais, não tinha

eventualidade nos seus movimentos repetitivos de relógio, não tinha jogo no seu

determinismo inflexível... O universo que nasce aqui é singular precisamente no seu

próprio carácter geral; Este universo nascente nasce como acontecimento, e gera-se

em cascatas de acontecimentos. O acontecimento, triplamente excomungado pela

ciência clássica (por ser simultaneamente singular, aleatório e concreto), torna a entrar

pela porta cósmica, visto que o mundo nasce como acontecimento. Não é o nascimento

que é acontecimento, é o acontecimento que é nascimento, no sentido em que,

concebido no seu sentido mais forte, é acidente e ruptura, isto é, catástrofe. (MORIN,

1977, p.84).

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

Os monumentos entrópicos emergem como acontecimento [Figura 6]. A persistência resulta

na condição “antifrágil” do conceito (TALEB, 2012), marcado pela relação de

“desordem-ordem-organização” (anel tetralógico de Morin, 1977), onde se admite a dispersão

como fator organizacional.

O pensamento complexo deve ser capaz de contextualizar e globalizar, pondo em

relação os conhecimentos compartimentalizados de natureza disciplinar, ao mesmo

tempo em que reconhece singularidades, individualidades, o concreto. Para Morin

(2008, p.156-157), o conceito de sistema exprime ao mesmo tempo unidade,

multiplicidade, totalidade, diversidade, organização e complexidade. (QUEIROGA,

2012, p.72).

Com a apreensão mais ampla sobre a relação dos sistemas de objetos e ações, próprios dos

espaços de apropriação pública, torna-se possível a possibilidade de novos arranjos espaciais

que possam desempenhar a característica de tipos tradicionais de espaços de convívio

(QUEIROGA, 2012, p.62). O caso do elevado Costa e Silva é paradigmático, pois revela um

espaço potencialmente promissor na conformação de um tipo consubstanciado pela

complexidade sistemática. O artefato urbano que emerge, advém das condições da ação, da

apropriação e não das leis da consciência do design. O elevado enseja uma tipologia do

pensamento complexo, onde o eventual possui uma dimensão no processo de criação. Uma

tipologia que marca um enredo entrópico, onde identidade e mutação, ordem e desordem,

expandem o universo da física (arquitetura) clássica, desintegrando uma ordem

simplificadora. Não é uma tipologia que converge, finalizada. Tampouco orgulhosa a princípio.

É uma tipologia do devir, em formação. Uma pedra bruta genérica lançada, arriscada, a ser

lapidada pelos agenciamentos inferiores. Pois, nessa busca de identidade do que seria

cidade, fica a pergunta de Koolhaas (2013, p.31): “Quais são as desvantagens da identidade

e, inversamente, quais as vantagens da vacuidade?” E, ainda: “O que resta se removermos a

identidade? Se, como comenta, a identidade centraliza, insistindo numa essência, num ponto

(2013, p.33), a entropia expande, abre-se ao imprevisto, salta ao absurdo. O mundo novo que

se abre é incerto e misterioso. É mais camusiano que newtoniano, parafraseando Morin – “É

mais shakespeariano que newtoniano” (MORIN, 1977, p.81). Para Morin, Newton focava a

ideia de leis, “para quem a natureza obedece sempre às mesmas leis nas mesmas

condições”, e ressalva que “nós devemos agora focar a ideia de condições, as quais, sendo

aleatórias, não obedecem às leis mas, precisamente, condicionam-nas.” (MORIN, 1977,

p.77).

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

Figura 6. Imagem da marquise do Ibirapuera. Uso do conhecimento local, que passou de uma

organização fechada (circulação), uma ordem clara, para uma desordem, o acaso, o acontecimento

dos fenômenos da urbanidade bottom-up, a evidência da emergência. A interrupção do absurdo

(surgimento de um novo ponto de partida – o que seria a marquise hoje?), o acaso programático

(contaminação). Uma entidade antifrágil: a partir da aleatoriedade do evento, o espaço apresentou

mais vantagens do que desvantagens. Um monumento entrópico por excelência.

Desse modo, o elevado como arquitetura, viabiliza uma possível tipologia justamente pela

profusão de condições que contaminaram a inerte estrutura viária. [Figura 7]. Um passeio pela

via permite ao olhar uma revelação de uma paisagem em construção permanente. Artistas de

rua em suas apresentações momentâneas, seja em uma peça de teatro improvisado nas

janelas dos apartamentos lindeiros à via, ou no aproveitamento de uma empena cega de um

edifício para a elaboração de um grafite. Ou ainda, na apropriação do espaço para prática

esportiva, cultural e festiva. Essa tipologia nasce do acontecimento, que evoca o acidente e a

ruptura. Uma tipologia da condição, ou seja, que não conforma uma forma a priori,

determinada e etérea, mas que possibilita a ordem espontânea advinda da incerteza do

futuro. A realidade é uma imprevisibilidade. Uma forma eternamente inacabada do tempo.

Sentimento por vezes impotente, encontra respaldo na filosofia camusiana. Para o filósofo, a

relação do homem é de inadequação ao mundo. Há um confronto consciente entre o homem

e o mundo. Esse confronto é a ideia de absurdo (CAMUS, 2009). O absurdo é a condição

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

metafísica do homem. O mundo não é racional e o absurdo aponta esta inadequação, não

sugerindo uma conclusão mas, um ponto de partida. O absurdo assim, interrompe, interroga a

eternidade da paisagem, do absoluto; um termo provocador que estimula o processo de

criação e a conclusão da arquitetura. “Onde não há nada tudo é possível; onde há arquitetura

nada mais é possível” (KOOLHAAS, 1998).

Figura 7: Diagrama de estudo das principais linhas de descortinamento da paisagem ao longo da via e

dos conceitos que emergem do elevado. Fonte: Mapa produzido sobre imagem Google Earth, 2015,

pelo autor, 2016.

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

Seriam as inconclusões das paisagens típicas da ideia de pracialidade, um ponto de partida

para um descortinamento epistemológico do projeto na contemporaneidade? O monumento

entrópico – exemplificado pelo elevado Costa e Silva [Figura 8] - caracteriza-se por uma obra

absurda, onde mutação e transformação ocorrem como parte do processo. Uma obra aberta,

revigorada por forças emergenciais não deliberadas por um design superior, emergida de

baixo para cima, numa espécie de religamento, um ponto de ordem e desordem, um ponto de

partida, não de conclusão. Uma entidade tipológica antifrágil que se beneficia com o caos,

capaz de se auto organizar, sempre a persistir como fato urbano. Seria esta forma, uma nova

condição tipológica da metrópole contemporânea? Uma paisagem do devir? Talvez, resida ali,

uma chave futura para pensar os espaços da cidade. Tais descortinamentos das paisagens

através dos monumentos entrópicos terá como resultado um meio de reflexão através de uma

ontologia metaprojetual, baseada na tríade absurdo – emergência – antifragilidade, capaz de

experienciar a variabilidade e complexidade das espacialidades da vida pública

contemporânea.

Figura 8: Imagem do elevado Costa e Silva. Paisagem entrópica modelada pelas interações das partes

sobre o todo. Fonte: Carla Christiani.

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

Conclusão

Ao investigar a pertinência dos monumentos entrópicos, o artigo permite vislumbrar uma

paisagem em formação, uma paisagem potencial. Diferentemente de um monumento

tradicional, uma espécie de ponto acabado que conecta o presente ao passado, uma imagem

etérea e, também, de maneira diferente dos monumentos de Robert Smithson, que além de

fazer lembrar do passado, parecia fazer esquecer o futuro, o monumento referido neste artigo

tem como ponto de partida o futuro, pois a concepção do projeto se abre ao tempo, ao acaso.

Tal premissa, permite um alargamento dos aspectos materiais e imateriais do conceito de

patrimônio, ao descortinar a paisagem em busca de um diálogo mais complexo da relação

entre o edifício e a paisagem, propondo alternativas para os desafios contemporâneos

marcados pela fragmentação.

Referências

ALEXANDER, Christopher. A city is not a tree. Architectural Forum, Boston, Vol 122, No 1, April 1965, pp 58-62 (Part I), Vol 122, No 2, May 1965, pp 58-62 (Part II).

ARAVENA, Alejandro. Los hechos de la arquitectura, em Fernando Perez, Alejandro Aravena e Jose Quintanilla, Los Hechos de la Arquitectura. Santiago: Ediciones ARQ, 1999.

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Record, 2009. (1942).

FERRARA, Nelson. O pensar complexo: construção de um novo paradigma. In: Anais: XV Simpósio Nacional de Ensino de Física, v. 21, 2003, Curitiba. Publicada nos Anais do Simpósio.

HAYEK, F.A. O resultado da ação humana mas não do desenho humano. Chicago: Universidade de Chicago, 1967.

A arrogância fatal. Chicago: Universidade de Chicago, 1988.

JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2009. (1961).

JOHNSON, Steven. Emergência, a vida integrada de formigas, cérebros, cidades e softwares. São Paulo: Zahar, 2003.

KOOLHAAS, Rem; MAU, Bruce. S, M, L, XL. Nova York: The Monacelli Press, 1998 (1995).

Três textos sobre a cidade. Barcelona: Gustavo Gili, 2013.

MONTANER, Josep M. Sistemas arquitetônicos contemporâneos. Barcelona: Gustavo Gili, 2009.

MORIN, Edgard. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

O método 1 – A natureza da natureza. Portugal: Publicações Europa-América, 1977.

PEIXOTO, Nelson Brissac. Paisagens urbanas. São Paulo: Senac/Marca d’água, 2012.

PORTAS, Nuno. A cidade como arquitectura. Lisboa: Livros Horizonte, 2011. (1969).

QUEIROGA, Eugenio. A megalópole e a praça: o espaço entre a razão de dominação e a razão comunicativa. 2001. 351 p. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.

Dimensões públicas do espaço contemporâneo: resistências e transformações de territórios, paisagens e lugares urbanos brasileiros. 2012. 284 p. Tese (Livre Docência em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.

ROSSI, Aldo. A arquitetura da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995. (1966).

SECCHI, Bernardo. Primeira lição de urbanismo. São Paulo: Perspectiva, 2006.

SILVA, Rosangela. Teoria da complexidade e pós-modernismo: contribuições da epistemologia complexa para os estudos organizacionais. In: Encontro Nacional de Estudos Organizacionais, 2000, Curitiba. I ENEO, 2000.

SMITHSON, Robert. Entropy and the new monuments (1966). In FLAM, Jack. Robert Smithson: the collected writings. Los Angeles: University of California Press, 1966.

TALEB, Nassim Nicholas. Antifrágil, coisas que se beneficiam com o caos. Rio de Janeiro: Best business, 2016. (2012).

TELLES, Martha. Robert Smithson: a memória e o vazio na paisagem entrópica contemporânea. Arte e Ensaios, Rio de Janeiro, nº20, p. 79-85, jul. 2010.

TSCHUMI, Bernard. Arquitetura e limites I (1980). In NESBIT, Kate. Uma nova agenda para a arquitetura. Tradução Vera Pereira. São Paulo: Cosac Naify, 2006. P 172-177.

VENTURI, Robert. Complexidade e contradição em arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 1995. (1966).

VIDLER, Anthony. A terceira tipologia (1976). In NESBIT, Kate. Uma nova agenda para a arquitetura. Tradução Vera Pereira. São Paulo: Cosac Naify, 2006. P 284-289.