O Direito Ambiental Brasileiro em face dos riscos e incertezas da nanotecnologia: uma proposta de reflexão crítica

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    O DIREITO AMBIENTAL BRASILEIRO EM FACE DOS RISCOS E INCERTEZAS

    DA NANOTECNOLOGIA: UMA PROPOSTA DE REFLEXO CRTICA

    Thas Emlia de Sousa Viegas

    e Roberto de Oliveira Almeida

    RESUMO

    Prope-se refletir acerca dos desafios que a sociedade global de risco impe aos instrumentosjurdicos de proteo do meio ambiente e ao prprio Direito Ambiental. que os problemasambientais contemporneos tm, na segunda modernidade, uma nova configurao, advindado processo de modernizao. Os riscos que outrora afetavam somente quem os produzia,agora so democraticamente distribudos, afetando todo o globo. Dentre os riscos de gravesconseqncias que acompanham o desenvolvimento tcnico-cientfico, verifica-se os dautilizao de nanomateriais pela indstria. A nanotecnologia oferece riscos na medida em quetais materiais j no obedecem s leis tradicionais da fsica, gerando um alto grau deimprevisibilidade acerca do seu comportamento na natureza e no corpo humano. Atualmente,a nanotecnologia no regulamentada por nenhuma legislao ou resoluo especfica, nosendo considerada, para fins de responsabilizao segundo os preceitos do Direito Ambiental,uma ameaa ao meio ambiente ou sade humana. Alm disso, o debate acadmico sobre osriscos da nanotecnologia , ainda, incipiente, mormente para o Direito. O presente trabalhotem como objeto a anlise crtica dos instrumentos de salvaguarda do meio ambiente, nocontexto da sociedade global de risco, especificamente no que tange ao descompasso dosinstrumentos jurdicos de proteo ambiental no trato dos riscos de graves conseqnciasoriundos das nanotecnologias.

    Palavras-chave: risco; incerteza; nanotecnologia; Direito Ambiental.ABSTRACT

    It is proposed to reflect on the challenges that the global risk society requires from the legalenvironment protection instruments and from the Environmental Law itself. Among thereasons that pushed to these changes, the most significant ones are the changes on the contentof the new environmental rights and the contemporary environmental questions that arequalified by the element of risk, especially when these risks are created through themodernization. Risk, that on the past would affect only those who created it, now endangersthe whole globe. Among the major consequences risks that emerge of the scientificdevelopment, the most significant ones are related to the nuclear energy, genetically modified

    organisms and nanotechnology. Nanotechnology offers risks as long as the classical laws ofphysics do not apply on these materials, increasing the uncertainties about its behavior onenvironment and human body. Nowadays, there isnt any law or resolution that regulatesnanotechnology when it comes to its risks. On the Environmental Law context, its notconsidered a threat to the environment or human health. Also, theres no significant academicdebate when it comes to nanotechnology risks. The present work intends to offer a criticalanalysis of the instruments of environmental protection on the global risk society, especiallyregarding its omission about nanotechnologys risks.

    Key words: risk; uncertainty; nanotechnology; Environmental Law.

    Graduada em Direito pela Universidade Federal do Maranho (UFMA). Mestre em Direito pela UniversidadeFederal de Santa Catarina (USFC). Professora dos Cursos de Graduao em Direito e de Ps-Graduao latosensu em Direito Ambiental da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco (UNDB), em So Lus/MA. Graduado em Direito pela Unidade de Ensino Superior Dom Bosco (UNDB). Advogado em So Lus/MA.

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    Consideraes iniciais

    A emergncia de novas tecnologias decorrentes da radicalizao dos processos de

    modernizao consolida a percepo pblica de que a cincia no mais capaz de oferecer

    certezas. Tal cenrio remete uma nova modernidade ps-industrial, perodo em que o

    conhecimento cientfico j no representa garantia de segurana e estabilidade. Cuida-se de

    um tempo em que os riscos advindos do avano tecnolgico e da progressiva modernizao

    ameaam a todos democraticamente, no importando o local onde estejam ou a classe social

    a que pertenam.

    Este cenrio novidadeiro demanda reflexes que estejam para alm do espao do

    Estado nacional, de modo a inserir no debate questes que colocam em jogo as premissasfundamentais dos sistemas sociais e polticos da sociedade industrial. Em conseqncia disso

    e para uma anlise mais fiel e crtica dos inditos contornos desta tessitura social,

    determinante a construo categorias mais afinadas com a insero de novidades tecnolgicas,

    riscos e instabilidades em qualquer reflexo que se prope.

    O Direito no passa ao largo deste desafio. Com efeito, a insero irrefletida, na

    sociedade, de riscos vinculados s novas tecnologias impe para o Direito e, muito

    especialmente, para o Direito Ambiental uma gama ainda pouco explorada de problemas quese confrontam com a prpria estrutura de seus institutos e princpios. Isso porque os riscos

    que qualificam a sociedade atual possuem novas caractersticas, que no se encaixam nas

    antigas categorias de risco da sociedade industrial. Suas conseqncias j no podem ser

    limitadas temporal ou espacialmente e sua invisibilidade e imprevisibilidade escapam aos

    tradicionais instrumentos de controle, colocando em xeque todo o programa institucionalizado

    de clculo dos seus efeitos colaterais.

    Diante da ampla democratizao dos riscos e da insuficincia das categorias dasociedade industrial para a anlise dos novos contornos desta sociedade, a teoria sociolgica

    do risco, tal como estruturada por Ulrich Beck, oferece uma abordagem que considera o risco

    como elemento central para qualquer reflexo ou proposta crtica em torno desta nova

    realidade. Assim, os riscos passam a ser reconhecidos enquanto fatores determinantes para a

    compreenso da sociedade contempornea, o que se coaduna com uma proposta de reflexo

    crtica sobre o Direito Ambiental e o modo como seus institutos reagem em face dos riscos.

    Dentre os riscos de graves conseqncias advindos do exacerbamento do processode modernizao, possvel verificar os oriundos da produo e consumo de organismos

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    geneticamente modificados, da utilizao da energia nuclear, do uso de agrotxicos e da

    nanotecnologia. A nanotecnologia a capacidade de criar e manusear materiais de escala

    nanomtrica. Um nanmetro (1 nm) equivale bilionsima parte de um metro ou a

    milionsima parte de um milmetro. Um nanmetro um milmetro dividido por um milho.

    Os riscos envolvidos a partir da miniaturizao esto ligados, principalmente, s

    novas propriedades que os materiais em nanoescala podem adquirir. Qualquer material

    reduzido a nanopartculas pode, repentinamente, comportar-se de maneira completamente

    oposta de antes, o que faz com que as atividades que envolvam determinadas partculas

    sejam absolutamente imprevisveis. Materiais antes insolveis passam a ser solveis.

    Substncias isolantes podem passar a conduzir energia. No s o comportamento das

    partculas, como sua mobilidade completamente afetada: ao contrrio das micropartculas de

    maior tamanho, as nanopartculas tm acesso quase irrestrito ao corpo humano.

    A nanotecnologia no regulamentada por nenhuma legislao ou resoluo

    especfica, no sendo considerada, para fins de responsabilizao segundo os preceitos do

    Direito Ambiental, uma ameaa ao meio ambiente ou sade humana. Alm disso, o debate

    acadmico sobre os riscos da nanotecnologia , ainda, incipiente, mormente para o Direito.

    Assim, pergunta-se: quais as conseqncias, para o Direito, da permanncia dos riscos

    oriundos da nanotecnologia margem do debate jurdico?

    O desafio que se impe a este trabalho, portanto, o de proceder anlise crtica

    dos instrumentos de salvaguarda do meio ambiente, no contexto da sociedade global de risco,

    especificamente no que tange ao descompasso destes no trato dos riscos de graves

    conseqncias oriundos das nanotecnologias.

    Para tanto, o problema ser analisado a partir da teoria da sociedade de risco de

    Ulrich Beck, objeto dos itens inaugurais deste trabalho. Em seguida, aborda-se a trajetria dosestudos acerca da temtica do risco e sua centralidade na teoria do socilogo alemo, para, em

    seguida, situar a nanotecnologia entre os riscos de graves conseqncias advindos do processo

    de modernizao.

    Aps, cuida-se dos riscos concernentes utilizao de nanomateriais pela

    indstria. Primeiramente, a nanotecnologia ser localizada historicamente, apresentando-se os

    seus conceitos fundamentais. Em seguida, sero demonstradas as suas principais aplicaes,

    inclusive no cotidiano. Por fim, sero apresentados os seus riscos quanto sade humana e aomeio ambiente, bem como as incertezas cientficas acerca do seu manejo seguro.

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    Na seqncia, ser feita a anlise dos instrumentos de salvaguarda do meio

    ambiente, considerando que se vive numa sociedade global de risco. Aponta-se a maneira

    como o Direito Ambiental se relaciona com os problemas ambientais qualificados pelo risco

    e, depois, discute-se o seu anonimato para o discurso jurdico e sua conseqente invisibilidade

    para os instrumentos de proteo jurdica do meio ambiente.

    Derradeiramente, questiona-se o papel do Direito Ambiental no trato dos conflitos

    envolvendo os riscos advindos da nanotecnologia e em que medida a sua desconsiderao

    jurdica ameaa os pilares epistemolgicos sobre os quais fundada a teoria jurdica

    contempornea.

    1. Modernidade, risco e reflexividade: uma mudana de paradigmasParte-se da idia de que se vive uma experincia diferente de modernidade.

    Obviamente, vivncias de outrora convivem com as atuais, de modo que se tem uma transio

    no-linear entre primeira e segunda modernidade.

    Na primeira modernidade marcante a distino entre sociedade e natureza,

    concebida como fonte inesgotvel de recursos para o processo de industrializao. A cincia,

    enquanto produtora de certezas estrutura-se a partir da possibilidade de exercer total domnio

    dos recursos naturais pela humanidade. A sociedade da primeira modernidade umasociedade do pleno emprego, em que a participao social define-se, basicamente, pela

    participao no trabalho (BECK, 2003).

    Na segunda modernidade, h um esvaziamento do continer do Estado nacional

    ante os processos de globalizao (BECK, 2003). A noo de sociedade do trabalho cede em

    razo da nova dinmica capitalista, a do vnculo entre tecnologia de informao e mercados

    mundiais (CAPELLA, 2002). De outro turno, a crise ecolgica dissolve a oposio entre

    sociedade e natureza; a cincia perde o monoplio da verdade e, por conseguinte, da certeza

    (LEITE & AYALA, 2004).

    O deslocamento da primeira para a segunda modernidade remete, dentre outros

    fatos, a uma experincia cotidiana de um mundo globalizado, que ameaa a si mesmo. De

    fato, o processo agudo de modernizao origina riscos de graves conseqncias, que do a

    tnica de uma nova tessitura social.

    Esta modernizao que dissolve os antigos modelos da sociedade industrial e que

    no pode ser apreendida pelas rudimentares categorias e mtodos da cincia social que se

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    mostram insuficientes diante da vastido e ambivalncia dos fatos a serem considerados tem

    como principal caracterstica a reflexividade (BECK, 1997).

    Reflexividade refere-se ao questionamento acerca das premissas fundamentais do

    sistema social e poltico da sociedade industrial por ela prpria. Tais questes tornam-se um

    tema e um problema. A modernidade , ento, reflexiva e envolve uma constante

    autoconfrontao com os efeitos da emergente sociedade de risco.

    A transio da sociedade industrial para o perodo de risco da modernidade ocorre

    de maneira despercebida, no constituindo uma opo que se possa escolher ou rejeitar no

    decorrer dos processos de disputas polticas. Diante dessa transio autnoma e indesejada,

    efeitos da sociedade de risco no so assimilados pelos padres institucionais da sociedadeindustrial, habituada a conflitos de distribuio de bens (empregos, renda, seguridade social).

    Na sociedade de risco, ao contrrio, surgem conflitos de responsabilidade distributiva, isto ,

    acerca da distribuio, controle, preveno e legitimao dos riscos decorrentes do avano

    tecnolgico e cientfico (BECK, 1997: 17).

    O processo de modernizao torna-se uma questo central na medida em que as

    instabilidades e riscos so oriundos das novidades tecnolgicas e organizacionais

    introduzidas, de forma no refletida, na sociedade. Comeam a tomar corpo, na sociedade derisco, as ameaas produzidas pela sociedade industrial, a demandar uma redefinio dos

    padres relativos responsabilidade, segurana, controle e distribuio das conseqncias dos

    riscos e ameaas potenciais, que escapam percepo sensorial e no podem ser determinadas

    pela cincia.

    Nesse contexto, o conceito de risco torna-se fundamental para o entendimento das

    caractersticas, limites e transformaes do projeto de modernidade. A partir das

    contribuies de Anthony Giddens (1997) e Ulrich Beck (1997, 2003), principalmente, osriscos deixaram de representar uma mera temtica subdisciplinar das cincias sociais para

    representar um elemento fundamental na compreenso da sociedade contempornea.

    2. A teoria da sociedade de risco

    A partir do acidente na usina nuclear de Chernobyl, em 1986, a sociedade se viu

    s voltas com um mundo que oferece mais riscos medida que se moderniza (BECK, 2003:

    29). O projeto de uma sociedade enquanto controladora dos efeitos colaterais oriundos do

    processo de industrializao j no pode ser aplicado realidade da segunda modernidade.

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    Com Ulrich Beck, o risco foi elevado ao centro da teoria social, j que no seu trabalho este

    tido como um elemento-chave para entender a sociedade contempornea (GUIVANT, 1998).

    O risco, para Ulrich Beck, um conceito relativamente novo. Em que pese a

    possibilidade de se entender a sociedade como uma resposta a todos os perigos possveis, s

    com a modernidade que nasce o conceito de risco. H, portanto, uma distino entre riscos e

    perigos. Estes ltimos esto ligados a pocas mais remotas, em que a humanidade se via

    merc de catstrofes naturais ou da interveno dos deuses. Os perigos compreendem todas as

    ameaas que no so interpretadas como condicionadas pelos seres humanos. O conceito de

    risco, por outro lado, surge com as decises humanas, isto , so originados pelo processo

    civilizacional e modernizao progressiva. A civilizao que busca tornar previsveis as

    imprevisveis conseqncias das suas decises, que busca controlar o incontrolvel e sujeitar

    os efeitos colaterais a medidas preventivasacaba por criar o risco (BECK, 2003: 115).

    A partir do momento em que so concebidas respostas institucionais para os

    perigos, isto , quando estes se tornam calculveis por respostas institucionais adequadas,

    que surge o risco. Como exemplo, Ulrich Beck cita os primrdios da navegao comercial

    intercontinental. quele tempo, o risco era entendido como ousadia e estava umbilicalmente

    ligado noo de segurana. Para os primeiros comerciantes e aventureiros que se lanavam

    conquista do desconhecido, havia uma grande probabilidade de seus navios naufragarem, o

    que pode ser entendido como um perigo. Quando este destino individual passou a ser visto

    como a possvel experincia comum de um determinado grupo, ou seja, como um problema

    que afetava e ameaava a existncia de empreendimento comercial intercontinental, criou-se

    uma caixa comum destinada a pagar uma indenizao em caso de naufrgio. Nesse momento,

    cria-se uma resposta institucional para o perigo, este se transforma em risco, isto , um

    problema coletivamente solvel (BECK, 2003: 115).

    Niklas Luhmann (1998) sugere que os riscos sejam interpretados como os

    possveis danos decorrentes de uma deciso. Quando os danos so relacionados a causas fora

    do prprio controle, estes so tidos como perigos. Os perigos englobam, tambm, as decises

    de outras pessoas, grupos e organizaes. Dessa maneira, a mesma ao pode ser tida como

    risco para alguns e perigo para outros. A ttulo exemplificativo: o motorista que dirige em alta

    velocidade assume um risco para si ao mesmo tempo que representa um perigo aos demais

    (BRUSEKE, 2001: 40).

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    Levando-se em conta o padro conceitual estabelecido por Beck, o

    desenvolvimento das foras produtivas, isto , a industrializao, pode ser entendida como o

    processo de surgimento dos riscos e das respostas institucionais a eles. Entre os sculos XVIII

    e XX, o processo de distribuio das conseqncias dos riscos foi negociado e

    institucionalizado, de forma que desempenhou um papel fundamental para o otimismo

    desenvolvimentista. Assim, o progresso sempre esteve umbilicalmente ligado possibilidade

    de compensao dos seus efeitos colaterais atravs de um programa institucionalizado

    (BECK, 2003: 118).

    Na sociedade de risco, contudo, esse otimismo desenvolvimentista confrontado

    pela mudana substancial na qualidade dos riscos. Isto porque o clculo do risco pressupe

    um acidente, isto , um acontecimento delimitado social, espacial e temporalmente. Para o

    socilogo alemo, tal modelo perde validade, principalmente, partir de Chernobyl, onde as

    conseqncias do acidente j no puderam mais ser delimitadas. Os riscos oriundos das novas

    tecnologias presentes na segunda modernidade fazem com que j no seja possvel determinar

    o grupo de pessoas afetadas por um acidente, tampouco delimitar territorialmente as

    conseqncias e muito menos precisar at quando estas perduraro. O imprevisvel j no

    pode ser antecipado e no h respostas institucionalizadas para tanto. Assim, fundamental

    que haja um desprendimento das antigas categorias do risco (BECK, 2003: 119).

    A sociedade da primeira modernidade partia do princpio de que os riscos e suas

    conseqncias podiam ser tecnicamente superados. Contudo, a radicalizao dos processos de

    modernizao gera conseqncias que pem em xeque todo o programa institucionalizado de

    clculo dos efeitos colaterais. Tanto na elaborao cientfica dos acidentes quanto nas

    instituies centrais na proteo contra catstrofes, previso da assistncia mdica ou dos

    custos no se percebe a distncia que separa os riscos da primeira dos riscos globais da

    segunda modernidade. Os riscos da segunda modernidade so imperceptveis e interpretados

    contraditoriamente pelos especialistas. J no mais possvel, para os leigos, distinguir o

    perigoso do inofensivo. Como conseqncia, todos ficam merc de especialistas e

    instituies que se contradizem nas questes mais elementares do dia-a-dia (BECK, 2003:

    120).

    Ao contrrio dos riscos da primeira modernidade, os riscos da segunda so

    imperceptveis. Um acidente em uma mina ou o naufrgio de um navio era um acontecimento

    perceptvel. A poluio emanada da chamin de uma fbrica tambm. Agora, na sociedade

    tecnologicamente perfeita da segunda modernidade, onde os riscos da primeira foram

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    institucionalizados e relativamente superados, surgem novos riscos que escapam percepo

    imediata dos afetados. Estes, por sua vez, j no so mais os operrios ou marinheiros que se

    submetiam aos riscos voluntariamente: agora, os afetados so consumidores ou at mesmo

    pessoas que no possuem qualquer ligao com a origem desses perigos. Chafurdamos todos

    nas mesmas areias movedias (SERRES, 1991: 12).

    Para exigir reparao, cabe aos afetados buscar as causas do dano. Estas, por sua

    vez, surgem num contexto por demais complexo, o que acaba por frustrar quaisquer

    pretenses das vtimas. que os riscos j no so mais localizveis espacial ou

    temporalmente: o caso, por exemplo, do lanamento de uma diversidade de produtos txicos

    no ar por diversas indstrias. Como estabelecer o nexo de causalidade entre a conduta de cada

    uma destas e a condio mdica de suas potenciais vtimas? Como relacionar causa e

    conseqncia se esta for tardia, ou seja, se a vtima apresentar uma doena apenas vinte anos

    depois da exposio? Ante a impossibilidade de se estabelecer tal nexo e na ausncia de

    culpados, no h punio. Quando o risco se torna invisvel e no localizvel, suas

    conseqncias j no podem ser manejadas pelos instrumentos clssicos de jurisdio, tendo

    como conseqncia um estado de crise de legitimao da prpria sociedade. Isso acontece

    pelo fato de que a segurana dos seus membrosuma das legitimaes mais importantes da

    sociedadeagora j no pode ser garantida (BECK, 2003: 122).

    A confiabilidade nas instituies passa a ser questionada a partir dos conflitos de

    risco, isto , quando as diversas pretenses de racionalidade que participam da definio

    social do risco se contradizem. A racionalidade institucionalizadadecorrente das concluses

    produzidas por cientistas que se mantm presos s antigas categorias no reconhece os

    riscos sem rigorosas evidncias. A instncia jurdica, quando impossibilitada de estabelecer

    qualquer nexo de causalidade, tambm no reconhece a existncia dos mesmos. Os afetados,

    por sua vez, detectam o potencial de ameaa e se organizam em movimentos sociais,

    utilizando instrumentos diversos como outros dados cientficos ou estatsticas para se

    insurgirem contra a negao institucional. Esses conflitos geram um esvaziamento no ncleo

    de legitimidade das instituies na medida em que os riscos se ampliam e se diversificam

    com o aval do Estado o que tem como conseqncia a crise de confiana (BECK, 2003:

    126).

    Esse novo quadro de incertezas conhecidas onde as relaes causais s so

    comprovadas em quadros extremos permeado por opinies contraditrias. E no desenrolar

    dessa luta pela definio dos riscos, das suas vtimas e das suas causas, h uma srie de

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    conseqncias tanto no mbito poltico como no econmico. Isto porque, na nova dinmica

    dos riscos, a riqueza no significa mais uma preveno contra os mesmos e, cedo ou tarde, os

    prprios causadores sero vtimas. Como exemplo, pode-se citar empresas do setor qumico

    ou que trabalham com organismos geneticamente modificados (OGMs). Tais empresas

    investem em pesquisas e em especialistas para que estes convenam a sociedade de que no

    h risco, e assim constroem mercados no mundo inteiro. Quando surgem interpretaes

    diversas daqueles riscos, as empresas so obrigadas a suportar a queda no valor das suas aes

    (BECK, 2003: 130).

    Tais conflitos de risco, resultantes da insuficincia dos arranjos institucionais,

    denotam um quadro de irresponsabilidade organizada. Os que deveriam ser responsabilizados

    esto livres para a irresponsabilidade (BECK, 2003: 135). Os instrumentos utilizados para

    estabelecer a culpa ainda so os mesmos da primeira modernidade, mantendo-se presos

    lgica das racionalidades tcnica e mdica que por sua vez so constantemente adaptadas aos

    interesses de lucro. Com o esvaziamento do ncleo de legitimidade do Estado, um novo

    conceito de risco e novas respostas institucionais a ele se tornam centrais para que o processo

    de modernizao tenha continuidade.

    Em que pese o debate exaustivo acerca dos possveis riscos sade humana e

    meio ambiente oriundos dos agrotxicos (GUIVANT, 2000), transgnicos ou clulas-tronco,

    existem novas tecnologias que ainda no figuram no centro das discusses e sequer foram

    reguladas pela legislao ptria. o caso da nanotecnologia.

    3. Nanotecnologia e riscos de graves conseqncias

    A possibilidade de manipulao de materiais em escala nanomtrica foi aventada

    em 1959, a partir da apresentao do fsico Richard Feynman, no encontro anual da Sociedade

    Americana de Fsica. Em sua palestra intitulada H mais espao l embaixo (Theres plentyof room at the bottom), Feynman defende a inexistncia de quaisquer obstculos tericos

    construo de dispositivos bastante pequenos, compostos por elementos igualmente

    diminutos. O termo nanotecnologia, entretanto, veio a ser utilizado somente em 1974,

    quando Norio Taniguchi, pesquisador da Universidade de Tokyo, referiu habilidade de

    engendrar materiais precisamente ao nvel nanomtrico (THE ROYAL..., 2004: 5).

    Os termos nanotecnologia, nanocincia, nanomateriais e demais variaes

    so derivados da palavra grega nano, que significa ano. Um nanmetro (1nm) oequivalente a um bilionsimo de um metro. Em outras palavras, pode-se dizer que um

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    nanmetro o equivalente a um milmetro dividido por um milho. Apesar da dificuldade de

    imaginar medidas em tais escalas, pode-se estabelecer algumas comparaes: uma pulga

    possui 1.000.000nm (um milho de nanmetros); um fio de cabelo humano, por sua vez,

    possui 80.000nm (oitenta mil nanmetros); um glbulo vermelho possui cerca de 7.000nm

    (sete mil nanmetros); bactrias possuem 1.000nm (mil nanmetros) (SWISS

    REINSURANCE..., 2004: 5).

    Os termos nanotecnologia e nanocincia so utilizados de maneira distinta em

    diversos estudos, apesar de no haver diferenas substanciais entre os mesmos que impeam o

    bom entendimento da temtica. A primeira significa a habilidade de medir, ver, prever,

    engendrar, produzir e aplicar materiais em escala nanomtrica, alm de explorar as novas

    propriedades dos materiais em nanoescala. A nanocincia, por outro lado, preocupa-se em

    estudar o fenmeno e a manipulao de materiais em escala nanomtrica, cujas propriedades

    diferem significativamente das dos materiais de maior escala. Ao longo deste trabalho,

    respeitar-se- tal distino.

    Somente nos ltimos anos o uso sistemtico e a manipulao de nanopartculas

    individuais foram possveis. Na dcada de 80, microscpios mais sofisticados foram

    desenvolvidos para investigar e manipular nanomateriais. Tais instrumentos, alm de terem

    possibilitado a visualizao de superfcies em escala atmica, tambm permitiram o manuseio

    e a construo de estruturas nanomtricas ainda rudimentares. Em 1990, Don Eigler e Erhard

    Schweizer manusearam tomos de xennio e conseguiram gravar, sobre uma superfcie de

    nquel, a logomarca da IBM (THE ROYAL..., 2004: 16).

    As diversas tcnicas de manipulao dos nanomateriais esto divididas em duas

    abordagens: de cima para baixo (top-down techniques) e de baixo para cima (bottom-up

    techniques). A primeira, de cima para baixo, engloba as tcnicas de produo de

    nanomateriais que tem como ponto de partida uma grande partcula, que reduzida at o

    formato e tamanho desejados. Tal processo envolve um gasto expressivo de energia e produz

    uma grande quantidade de dejetos, alm do uso significativo de recursos naturais. Na segunda

    abordagem, de baixo pra cima, estruturas maiores so construdas tomo a tomo, molcula

    por molcula. possvel, nesta abordagem, o uso da tcnica de auto-organizao, que consiste

    na unio espontnea de diversos componentes, criando novos materiais (SWISS

    REINSURANCE..., 2004: 9).

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    Para que sejam considerados de nanoescala e, por conseguinte, para que sejam

    objeto de estudo da nanocincia, os materiais devem possuir no mximo 100nm (THE

    ROYAL..., 2004: 8). Em se tratando da abordagem de cima para baixo, pode-se considerar

    um nanomaterial aquele que foi reduzido a 100nm ou menos. Partindo-se da abordagem

    inversa, de baixo para cima, a unio de nanopartculas no deve exceder este patamar. Tal

    escala deve ser atingida em, no mnimo, uma dimenso. Por exemplo: existem nanomateriais,

    como revestimentos e camadas especiais, que chegam a atingir alguns centmetros de rea, j

    que so utilizados em superfcies. Contudo, tais materiais so considerados nanomtricos pelo

    fato de apresentarem profundidade nanomtrica, chegando a possuir somente um tomo de

    espessura.

    possvel verificar materiais em nanoescala de somente uma, duas ou em todas as

    trs dimenses. Os nanomateriais unidimensionais so aqueles que possuem somente uma

    dimenso em escala nanomtrica. Em geral a dimenso a profundidade, como se pode

    verificar em filmes ultrafinos, camadas e revestimentos de superfcies. Algumas camadas e

    revestimentos chegam a possuir somente uma molcula ou um tomo de profundidade, apesar

    de possurem uma rea de cobertura relativamente extensa. Exemplos de nanomateriais

    unidimensionais so os revestimentos em dixido de titnio ativado, projetados para repelir

    gua e bactrias de superfcies auto-limpantes. Tambm existem revestimentos prova de

    arranhes que so significativamente aprimorados a partir do uso de camadas intermedirias

    em nanoescala (THE ROYAL..., 2004: 8).

    Nanomateriais bidimensionais so aqueles que possuem duas dimenses em

    escala nanomtrica (largura e profundidade, e.g.) e possuem uma dimenso estendida (altura,

    e.g.). Nanotubos de carbono, nanofios, biopolmeros e nanotubos inorgnicos se encaixam

    nesta categoria. Nanotubos so estruturas cilndricas, cujo dimetro no ultrapassa os 100nm,

    cujos maiores atrativos so suas propriedades fsicas e qumicas, como resistncia,

    durabilidade e condutividade (THE ROYAL..., 2004: 16).

    A nanoescala em trs dimenses representada por partculas que possuem um

    raio no maior do que 100nm e no ultrapassam este limite em nenhuma dimenso. Materiais

    que pertenam escala nanomtrica em todas as suas dimenses so denominados

    nanopartculas. So exemplos de nanopartculas os fulerenos, que so compostos por sessenta

    tomos de carbono organizados em 20 hexgonos e 12 pentgonos, cujo formato comparado

    a uma bola de futebol. Por serem ocos, podem desempenhar a funo de veculos para

    11

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    remdios e contrastes, bem como para lubrificantes de superfcies (THE ROYAL..., 2004:

    10).

    Partculas em nanoescala no so novas e sempre estiveram presentes na natureza.

    Por exemplo, os polmeros macromolculas construdas a partir de subunidades de menor

    escala vm sendo manuseados por industriais desde o incio do sculo XX, a despeito do

    desconhecimento dos estudiosos acerca da existncia de partculas to diminutas. Nanocristais

    de sal so detectveis nos ventos dos oceanos. Motores a diesel emitem milhes de partculas

    de carbono no ar, assim como cigarros e velas. O leite (com os colides) outro exemplo,

    bem como as protenas que controlam processos biolgicos. Nanopartculas, alm de surgirem

    naturalmente, so criadas h milhares de anos enquanto resultado da combusto ou do cozer

    de alimentos (THE ROYAL..., 2004: 6).

    Deve-se ressaltar, porm, que h uma diferena substancial entre as

    nanopartculas encontradas na natureza e as artificialmente manufaturadas. Partculas de sal,

    por exemplo, so solveis em gua. Se inaladas, ao entrarem em contato com o tecido,

    imediatamente se dissolvem e perdem a sua forma. Partculas oriundas de processos de

    combusto, apesar de insolveis, tm uma grande tendncia aglomerao, formando

    micropartculas de diferentes propriedades. Nanopartculas artificialmente manufaturadas

    possuem propriedades bem diferentes das naturais e isso constitui o seu grande atrativo. Ao

    contrrio das naturais, elas tm tendncia disperso, dado o seu revestimento peculiar. A

    lgica simples: a fim de evitar que nanopartculas se aglomerem e formem micropartculas

    o que geraria uma perda de propriedades alcanadas com a miniaturizao estas so

    revestidas de maneira especial. Assim, no importando quanto tempo passe, as nanopartculas

    artificiais continuam reativas e bastante mveis (SWISS REINSURANCE..., 2004: 13).

    Em razo destas peculiaridades, a nanotecnologia, que juntamente com a

    biotecnologia, a informtica e as cincias cognitivas constitui as chamadas tecnologias

    convergentes, no se refere simplesmente ao estudo da natureza pelas mos da cincia, mas

    trata de se criar a natureza (MORENO, 2009: 181). Considerando este incrvel potencial,

    obviamente, a capacidade de manipular matrias e estruturas em pequenssima escala

    desenvolve-se no contexto socioeconmico capitalista.

    Nanomateriais interessam indstria por vrios motivos. Partculas menores do

    que 50nm j no so regidas pelas clssicas leis da fsica, mas da fsica quntica. Issosignifica que nanopartculas podem assumir outras propriedades ticas, magnticas e eltricas,

    12

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    o que as distingue substancialmente das partculas maiores da mesma famlia. Tambm,

    devido dimenso reduzida, a razo entre massa e superfcie diferenciada. Quanto menor

    um corpo, maior a superfcie em relao sua massa, o que significa dizer que, quanto

    menor a partcula, mais tomos existiro na sua superfcie e menos tomos em seu interior

    (SWISS REINSURANCE..., 2004: 12). Por exemplo, uma partcula de 30nm possui somente

    5% dos seus tomos na sua superfcie, enquanto uma partcula de 3nm possui 50%. Pelo fato

    de reaes qumicas catalticas e de crescimento ocorrerem nas superfcies, os nanomateriais

    se tornam bem mais reativos do que os mesmos materiais em largas partculas (THE

    ROYAL..., 2004: 7).

    Nanotecnologia, combinada com biotecnologia, formam os pilares que sustentam

    os rpidos avanos em diversas reas da medicina. Tais progressos em nanoescala podem ser

    vislumbrados quando nanomateriais passivos ou ativos so utilizados para aplicar drogas em

    locais e momentos desejados. Isto reduz efeitos colaterais, levando a uma melhor resposta do

    organismo e utilizao de menores dosagens. O desenvolvimento e a aplicao da

    nanotecnologia na medicina englobam diversas reas: diagnstico, aplicao de drogas,

    regenerao de tecidos, reparao de leses, prteses, dentre outras.

    No que diz respeito ao diagnstico, h pesquisas em torno de marcadores

    (contrastes) em nanoescala. Tais marcadores so teis para a deteco de clulas cancergenas

    e, conseqentemente, para antecipao do tratamento. Outra ferramenta construda com o uso

    de nanotecnologia so os laboratrios em chips, que consistem em laboratrios portteis

    para a obteno de diagnsticos, sendo aplicados na preveno e controle de doenas, bem

    como na monitorao do prprio meio ambiente (GREENPEACE..., 2003: 28).

    Atualmente, empresas farmacuticas j utilizam da nanotecnologia para aumentar

    a eficcia de medicamentos e reduzir efeitos colaterais. Os princpios ativos das drogas so

    manipulados de modo a caberem em cavidades minsculas das substncias que os

    transportaro para as clulas. Substncias como beta-ciclodextrina ou HDL sinttico (Hight

    Density Lipoprotein) o colesterol bom j so largamente utilizadas em antiinflamatrios,

    antialrgicos, anticidos e no tratamento de determinados tipos de cncer.

    Estudos do ano de 2001 j indicavam que nanopartculas entre 50nm e 100nm

    seriam ideais para o tratamento do cncer, eis que partculas maiores no penetrariam com a

    mesma eficcia nos tumores. No tratamento da AIDS, grandes avanos so obtidos a partirdas nanocpsulas, que desviam do sistema imunolgico, possibilitando o direcionamento de

    13

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    agentes teraputicos a locais especficos. No tratamento da diabetes, um sistema de aplicao

    de insulina vem sendo desenvolvido a partir do uso combinado entre nanomateriais porosos e

    sensores (GREENPEACE..., 2003: 28).

    Para a construo de prteses, existem nanomateriais que representam uma

    alternativa liga de titnio e cido inoxidvel utilizada em implantes ortopdicos e vlvulas

    cardacas. Em alguns casos, estas ligas tradicionais no chegam a durar o equivalente ao

    tempo de vida do paciente. Por outro lado, o xido de zircnio nanocristalino resistente,

    prova de biocorroso e biocompatvel, demonstrando-se ideal para prteses. Carbetos de

    silcio, por serem leves e resistentes, so ideais para a construo de vlvulas cardacas (THE

    ROYAL..., 2004: 12).

    Alm da aplicao em diversas reas da medicina e na indstria farmacutica, a

    nanotecnologia tambm empregada pelas empresas de protetores solares, que utilizam

    dixido de titnio e xido de zinco, cujo principal atrativo a possibilidade de absorver e

    refletir raios ultra-violetas ao mesmo tempo em que so transparentes luz visvel (THE

    ROYAL..., 2004: 10). Cosmticos, como cremes hidratantes e antienvelhecimento, tm seus

    princpios ativos reduzidos nanoescala, facilitando a chegada s camadas mais profundas da

    pele sem que suas propriedades sejam perdidas pelo caminho.

    Nanopartculas tambm j esto presentes em cremes dentais. Nanocristais de

    prata e hidroxiapatita (composto de fosfato e clcio) so utilizados para a recuperao de

    dentes danificados. Tais materiais aderem aos dentes durante a escovao, ajudando na

    recomposio do esmalte cujas irregularidades so freqentes, porm invisveis e

    garantindo proteo contra desgastes futuros.

    No ramo da informtica, desde 1997, a indstria de eletrnicos vem utilizando a

    nanotecnologia na produo dos telefones celulares, cujas funes bsicas de agenda edespertador dependiam dos poucos bytes comportados pelos microchips. No ano de 2000,

    surgiram os primeiros MP3 players com memria flash, cuja capacidade de armazenamento

    chegava a somente 1Gb (umgigabyte). Dado o avano considervel nesse campo, o mercado

    da telefonia celular caminhou no sentido da reduo dos aparelhos, aumento significativo da

    capacidade de armazenamento de dados e insero de novas funes, como acesso internet e

    cmera fotogrfica.

    Em 2002, a instituio ETC Group, por ocasio da publicao de um estudo,afirmou que em 2012 todo o mercado de informtica (eletrnicos, magnticos e ticos

    14

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    inclusos) seria dependente de nanomateriais (GREENPEACE..., 2003: 22). Tal previso vem

    se mostrando acertada na medida em que os recentes lanamentos da rea da informtica, em

    sua grande maioria, utilizam a nanotecnologia. Modernos microprocessadores, memrias

    flash, microchips e monitores em LCD (cristal lquido), atualmente, dependem de nanotubos

    de carbono para que sejam produzidos.

    Nanomateriais tambm so utilizados pela engenharia, na produo de

    revestimentos e superfcies. Nanopartculas de dixido de silcio so largamente utilizadas em

    vidros, dada a sua capacidade de absorver a luz, gerando, assim, propriedades anti-reflexos.

    Vidros revestidos de dixido de titnio ativado, por sua vez, possuem propriedades auto-

    limpantes e anti-bacterianas. Nanopartculas de cermica tm sido utilizadas no aumento da

    resistncia das tintas de automveis, enquanto as de argila as deixam mais leves, resultando

    em economia de combustvel e natural benefcio ao meio ambiente (THE ROYAL..., 2004:

    11).

    Alm de revestimentos em nanoescala e tintas, nanomateriais tambm esto

    presentes em lubrificantes. Nanopartculas de cido brico diminuem consideravelmente o

    atrito entre superfcies e se mantm quimicamente estveis quando misturadas em leos de

    uso industrial.

    Como mencionado anteriormente, nanotubos de carbono constituem uma grande

    evoluo na indstria da informtica. No obstante, j so vislumbradas algumas aplicaes

    de tal matria-prima em maior escala. Por possurem propriedades mecnicas de grande

    importncia, como resistncia e leveza (chegam a ser cem vezes mais resistentes do que o ao,

    com um sexto do peso), os nanotubos de carbono vm sendo estudados como potenciais

    substitutos de compostos atualmente utilizados, como ligas metlicas e fibras de carbono. Isto

    influenciaria sobremaneira a produo de automveis e a construo de aeronaves

    (GREENPEACE..., 2003: 15).

    Os avanos nanotecnolgicos podem trazer mudanas substanciais no setor

    energtico, principalmente em termos de iluminao, armazenamento, gerao e economia de

    energia. No que diz respeito iluminao, mudanas significativas so esperadas no setor

    para os prximos dez anos. Semicondutores utilizados na fabricao de diodos emissores de

    luz podem ser esculpidos em nanoescala, o que deve levar reduo de mais de 10% do

    consumo de energia em todo o mundo (GREENPEACE..., 2003: 27).

    15

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    O armazenamento e a gerao de energia tambm se tornaram mais eficientes.

    Nanopartculas de on ltio contriburam para a reduo no tamanho e aumento da capacidade

    dos dispositivos de armazenamento. Na fabricao de clulas fotoeltricas capazes de gerar

    energia a partir da luz do Sol polmeros e clulas nanocristalinas aumentam a eficincia e a

    reduo de custos dos materiais. Por conta da grande rea de superfcie, possibilitam o

    aumento da absoro de energia a partir da utilizao de menor espao (GREENPEACE...,

    2003: 30).

    Em relao ao contato das partculas com os seres humanos, isso ocorre,

    essencialmente, de trs maneiras: se inaladas, engolidas ou absorvidas pela pele. Para essas

    trs vias, o organismo humano possui defesas naturais contra matrias a ele estranhas.

    As vias areas, por exemplo, possuem protees naturais contra a penetrao de

    resduos slidos. Os plos das fossas nasais e o muco impedem a entrada de partculas

    maiores, que so expulsas atravs da garganta durante a respirao. As que eventualmente

    chegam ao tecido pulmonar onde ocorrem trocas gasosas so absorvidas por fagcitos cuja

    funo primordial expulsar matria estranha ao organismo e levadas a ndulos linfticos.

    No obstante, tais funes podem ser prejudicadas se a quantidade de partculas absorvidas

    for excessiva. Inflamao e degenerao do decido pulmonar, pneumonia e cncer de pulmo,

    so algumas das possveis conseqncias da absoro de resduos slidos pelo sistema

    respiratrio (THE ROYAL..., 2004: 38).

    A pele protegida por uma camada de clulas mortas (epiderme) e coberta por

    uma camada de gordura, que ajuda a repelir lquidos. Abaixo da epiderme, uma camada de

    clulas vivas (derme), possui terminaes nervosas e vasos sanguneos. Quando da ocorrncia

    de infeces por bactrias ou quaisquer outros danos pele, tais vasos possibilitam a chegada

    de clulas que levam a processos inflamatrios e reparadores do tecido danificado (THE

    ROYAL..., 2004: 38).

    O sistema intestinal, ao contrrio do pulmo e da pele, possui como funes

    primordiais a quebra e absoro de partculas. O alto grau de acidez do estmago, que

    possibilita a digesto de alimentos, tambm funciona como microbicida, evitando que o

    organismo seja contaminado. O intestino, por sua vez, produz muco e enzimas digestivas,

    alm de uma grande quantidade de vasos sanguneos e linfticos que desempenham as

    funes de proteo mencionadas anteriormente (THE ROYAL..., 2004: 38).

    16

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    A despeito do perfeito funcionamento de tais mecanismos de defesa e da prvia

    existncia de nanopartculas naturais, novos questionamentos devem ser feitos quando da

    absoro de nanopartculas artificiais. Com o tamanho reduzido, alto grau de reatividade e

    grande rea de superfcie, materiais que seriam considerados inofensivos podem representar

    um grande perigo para os seres humanos. Como tais partculas se comportam no organismo?

    Quais os efeitos nocivos da absoro de nanopartculas pelo corpo humano? O destino

    comum de todas as partculas a corrente sangunea? possvel, se presentes na corrente

    sangunea, a absoro destas pelos rgos?

    Nanopartculas, se inaladas, podem causar danos completamente diferentes dos

    causados por partculas de maiores tamanhos. Em primeiro lugar, dado o seu tamanho

    reduzido, nanopartculas podem penetrar mais profundamente nos pulmes. Existem

    evidncias cientficas de que determinadas partculas escapam defesa do sistema respiratrio

    e, ao atingirem os alvolos (onde ocorrem as trocas gasosas), penetram na corrente sangunea.

    Alm da possibilidade de penetrao de nanopartculas na corrente sangunea e do acesso

    irrestrito aos demais rgos, o sistema respiratrio pode ser danificado pela simples presena

    das mesmas. Isto devido ao fato de que matrias que eram consideradas inofensivas quando

    em maior tamanho, podem ser consideradas perigosas quando em nanoescala, a exemplo do

    ltex.

    Tal nocividade conseqncia direta de dois fatores. O primeiro, relativo

    sobrecarga dos fagcitos (clulas encarregadas de eliminar matria estranha ao sistema

    respiratrio). Isto ocorre quando os invasores excedem a capacidade de defesa das clulas.

    Como conseqncia, h inflamaes nos tecidos pulmonares e o enfraquecimento do seu

    sistema imunolgico, o que deixa o organismo mais propenso a infeces (SWISS

    REINSURANCE..., 2004: 16).

    A reatividade dos nanomateriais, a depender do seu revestimento, pode causar

    danos qumicos ao tecido que com eles estiver em contato. Tal reatividade devida presena

    de radicais livres, que so tomos que possuem um nmero reduzido de eltrons. Estes

    tomos furtam eltrons de clulas vizinhas para aperfeioar sua prpria estrutura, criando,

    assim, outro radical livre. Este novo radical livre tambm ir furtar eltrons das outras

    clulas, e assim por diante, gerando uma reao em cadeia. A formao de radicais livres

    comum em um organismo saudvel, onde existem, inclusive, enzimas responsveis pela sua

    eliminao. Porm, tais processos ocorrem localmente e em um ambiente quimicamente

    equilibrado. Os radicais danosos, cujos efeitos so intensificados por fatores exgenos

    17

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    (nanopartculas reativas, radiao, raios solares, e.g.), prejudicam tal equilbrio qumico do

    organismo e podem contribuir para a formao de tumores (SWISS REINSURANCE..., 2004:

    16).

    A possibilidade de absoro de nanopartculas pela pele ainda objeto de debate

    entre especialistas. Como mencionado anteriormente, o mercado de cosmticos, protetores

    solares e bronzeadores que utilizam nanomateriais crescente. Contraditoriamente, a cincia

    ainda apresenta resultados inconclusos: de um lado, afirmado que nanopartculas

    previamente marcadas foram encontradas na corrente sangunea, enquanto outras pesquisas

    apontam no sentido de que tais materiais no conseguem sequer ultrapassar a camada mais

    superficial da pele (SWISS REINSURANCE..., 2004: 19).

    A terceira via de acesso ao corpo humano o trato intestinal. O sistema digestivo

    possui duas funes bsicas: ingesto de alimentos e expulso de matrias indesejadas pelo

    organismo. As substncias desejadas so digeridas por enzimas e absorvidas pelas clulas

    do intestino, enquanto as nocivas ao organismo so mantidas no trato intestinal e eliminadas

    na forma de fezes ou pela via dos ndulos linfticos.

    Nanopartculas so absorvidas pelas placas de Peyer, que consistem em ndulos

    de tecidos linfticos associados ao intestino. Estes ndulos absorvem partculas maiores embolhas e as transporta aos vasos linfticos, onde so eliminadas pelo organismo. O problema

    relacionado aos nanomateriais que estes, ao penetrarem no sistema linftico, podem chegar

    corrente sangunea (SWISS REINSURANCE..., 2004: 20).

    Quando as nanopartculas transpem a barreira de tais rgos de acesso ou quando

    so inseridas deliberadamente na corrente sangunea (medicamentos e contrastes), uma nova

    srie de questionamentos emerge. Partculas estranhas, quando presentes no sistema

    circulatrio, so absorvidas por fagcitos especializados e so expulsas do organismo.Entretanto, tal regra no se aplica aos nanomateriais. Nanopartculas de tamanho inferior a

    200nm no so absorvidas por fagcitos, mas, surpreendentemente, por clulas que sequer

    desempenham a funo de defesa. Uma vez absorvidas por tais clulas (glbulos vermelhos,

    e.g.), podem transitar pelo organismo de maneira livre e irrestrita. Corao, medula, ovrios,

    fgado, msculos e at mesmo o crebro o mais protegido rgo do corpo humano so

    penetrados, sem maiores dificuldades, por nanopartculas presentes no sangue (SWISS

    REINSURANCE..., 2004: 22).

    18

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    Nanomateriais que atingem a corrente sangunea se acumulam, principalmente, no

    fgado. A sua presena pode desencadear processos inflamatrios, leses ao seu tecido e, a

    depender do grau de reatividade das nanopartculas, tambm possvel que se formem

    tumores.

    Em virtude das tcnicas de produo e da grande disseminao dos nanomateriais,

    estes podem ser despejados na gua ou no ar e, em ltima instncia, o solo e os lenis

    freticos podem ser atingidos. Alm disso, nanopartculas vm sendo utilizadas, cada vez

    mais, em materiais descartveis, o que torna inevitvel o seu contato com o meio ambiente

    quando estes so reciclados ou eliminados como lixo. Por constiturem uma nova classe de

    materiais no-biodegradveis, as conseqncias para o meio ambiente e o seu comportamento

    a longo prazo so difceis de prever.

    Em que pese a inexistncia de certezas cientficas acerca do comportamento das

    nanopartculas no meio ambiente, possvel imaginar alguns cenrios a partir do

    conhecimento j produzido acerca das demais formas de poluio. No que diz respeito

    possibilidade de disseminao atmosfrica, por exemplo, estudos sobre poluio indicam que

    o nmero de partculas ultrafinas no ar est diretamente relacionado ao ndice de mortalidade

    da populao. As partculas estudadas, contudo, eram oriundas do diesel, cujas tendncias

    naturais so de agregao e repouso. Por outro lado, nanopartculas artificiais permanecem no

    ar por muito mais tempo, o que pode agravar a disseminao, alm de serem nocivas aos

    humanos.

    Nanopartculas tambm podem contribuir para o aumento da distribuio de

    poluentes no solo. Esta concluso foi obtida atravs da observao dos colides, cujas

    propriedades permitem a sua unio com poluentes insolveis em gua e metais pesados. Por

    serem menores e apresentarem maior rea de superfcie, uma maior quantidade de poluentes

    pode se unir s nanopartculas, sendo absorvidos em maior quantidade e em maior velocidade

    pelo solo (SWISS REINSURANCE..., 2004: 29).

    A partir das incertezas cientficas, emergem cenrios mais pessimistas. O que

    aconteceria se nanopartculas altamente txicas fossem espalhadas pelo meio ambiente? Seria

    possvel retir-las de circulao? Haveria alguma possibilidade de remov-las da gua, solo

    ou ar?

    A eliminao de nanopartculas do meio ambiente um grande desafio para oscientistas, j que os procedimentos at ento estudados so de alto custo e inadequados para a

    19

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    utilizao em larga escala. A remoo de nanopartculas dos lquidos, por exemplo, s

    possvel atravs de centrifugao ou ultrafiltragem. No primeiro procedimento, partculas so

    separadas atravs da fora centrfuga oriunda de altas rotaes. Na ultrafiltragem, lquidos so

    pressionados contra uma membrana semipermevel (SWISS REINSURANCE..., 2004: 30).

    Filtros de purificao atualmente utilizados em prdios e fbricas possuem poros

    grandes demais para a reteno de nanopartculas. Problemas relativos presso do ar e ao

    bloqueio dos poros por partculas maiores devem ser superados para que os nanomateriais

    possam ser retidos.

    Neste cenrio de ausncia de certeza cientfica (ou, pelo menos, de certezas

    cientficas contraditrias) em torno dos riscos relacionados nanotecnologia, emerge o debatesobre a invisibilidade do tema para o discurso jurdico, anonimato este parcialmente resultante

    das lacunas de conhecimento quanto s tecnologias infinitesimais.

    4. O Direito Ambiental brasileiro em face dos riscos e incertezas da nanotecnologia

    O desenvolvimento econmico e industrial opera de maneira cclica. Uma anlise

    histrica dos dados demonstra que este marcado por grandes picos e vales, que

    representam momentos de grande expresso econmica acompanhados por momentos de

    recesso. A partir dos estudos de Schumpeter, foi possvel verificar que os ciclos econmicosso consubstanciados em processos de destruio criativa. Tais processos explicam a

    dinmica dos ciclos atravs de ondas de inovaes que revolucionam a estrutura econmica

    vigente. Impulsionadas pela concorrncia, estas ondas fazem com que os novos produtos,

    processos e mtodos de organizao industrial se sobreponham aos antigos. Referidas

    inovaes esto relacionadas principalmente a novos bens de consumo, novos mtodos de

    produo ou transporte, novos mercados e novas formas de organizao industrial (SANTOS

    JUNIORet. al., 2008: 6).

    O carter cclico da economia est diretamente relacionado atividade cientfica.

    Nas dcadas de 1970 e 1980, Freeman e Perez notaram que o processo inovador no modifica

    somente as estruturas econmicas vigentes, mas todo o aparato institucional estabelecido,

    mudando a forma do progresso tecnolgico em um sentido amplo e construindo um novo

    paradigma tcnico-econmico. A difuso deste novo paradigma abrange todo o sistema

    econmico, envolvendo fatores sociais, polticos, ambientais e culturais (SANTOS JUNIOR

    et. al., 2008: 6).

    20

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    Freeman e Perez identificaram cinco ondas na histria do capitalismo, cada uma

    com a presena de um paradigma diferente, onde se pode identificar um fator-chave, isto ,

    um insumo que serve como base para o desenvolvimento de novos produtos e processos. Para

    que um novo paradigma tcnico-econmico desloque o antigo completamente, tornando-se o

    eixo central do crescimento das inovaes tcnicas, sociais e gerenciais, necessrio que

    satisfaa trs condies: custos decrescentes, incremento na oferta e aplicaes penetrantes

    (SANTOS JUNIORet. al., 2008: 8).

    A mais recente onda do capitalismo caracterizada pela informacionalizao da

    economia, em que ganha destaque a introduo generalizada da informtica e de novos

    materiais de origem qumica ou bioqumica. Para Capella, a introduo de novos

    componentes e a adoo de novas formas organizativas para desenvolver os processos

    econmicos em combinao com estes caracterizam a terceira revoluo industrial

    (CAPELLA, 2002: 240).

    As novas tecnologias e os novos materiais permitem uma diferenciao e

    especificao produtiva at ento impensada, o que proporciona indstria um alto grau de

    flexibilidade e capacidade de adaptao s exigncias tcnicas, bem como a criao de novas

    necessidades at ento inimaginveis. As novidades organizacionais introduzidas possibilitam

    a superao da barreira estatal pelo capital e aumentam drasticamente a sua concentrao,

    bem como o poder e a capacidade de deciso das empresas transnacionais (CAPELLA, 2002:

    241).

    O desenvolvimento econmico aliado s novas tecnologias dentre elas, a

    nanotecnologia inaugura um novo paradigma tcnico-econmico. Este paradigma,

    caracterizador da sociedade de risco onde a modernizao, em seu sucesso, ameaa a

    existncia humana , inicia um processo de destruio criativa cujas conseqncias

    institucionais so bastante profundas.

    A falncia dos instrumentos de securitizao resultante, em grande parte, do

    desenvolvimento da prpria modernizao, faz com que as instituies de controle e o dogma

    da infalibilidade tecnolgica sejam deslocados para o terreno da falha de segurana e

    incapacidade de previso. A pretenso da cincia de averiguar os riscos de acordo com a

    lgica de preveno do acidente frustrada pelas suas novas caractersticas, tais como a

    invisibilidade, a incerteza e a irreversibilidade de suas conseqncias (LEITE & AYALA,2004: 19).

    21

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    22/32

    Os mecanismos de explicao e justificao dos riscos na sociedade

    contempornea esto inseridos num quadro de irresponsabilidade organizada, o que leva a

    uma legitimao da no-imputabilidade das ameaas e a legalizao das contaminaes. Em

    que pese o ocultamento social e institucional dos responsveis, das causas e das

    conseqncias dos riscos, o mesmo no ocorre com os seus efeitos secundrios. Estes

    rompem a barreira da invisibilidade social gerada pela selva institucional e se revelam no

    cotidiano das relaes sociais e dos debates pblicos acerca dos efeitos dos riscos de graves

    conseqncias. O fenmeno da irresponsabilidade organizada representa com clareza a

    ineficcia da produo normativa enquanto instrumento para o enfrentamento da crise

    ambiental. Concomitantemente, expe os desafios impostos ao Direito Ambiental na

    sociedade de risco quando da necessidade de enfrentamento de uma crise ambiental queadquire novos contornos (LEITE & AYALA, 2004: 21).

    Diante da insuficincia dos instrumentos (ou procedimentos) institudos para a

    proteo do ambiente e enfrentamento da crise ambiental, surge a necessidade de correo

    deste quadro. Tais modificaes dizem respeito, principalmente, maneira como o Direito do

    Ambiente se relaciona com os problemas ambientais qualificados pelo risco. Para Leite e

    Ayala, o Direito Ambiental contemporneo orbita ao redor de trs eixos de argumentao: a

    necessidade de adequao aos novos direitos ambientais, a reviso da forma de

    funcionamento dos tradicionais processos de deciso e quais os objetivos deste novo Direito

    (LEITE & AYALA, 2004: 202-203).

    Os novos direitos ambientais so caracterizados, agora, pela recuperao dos

    ideais ticos do meio ambiente, bem como uma perspectiva do mundo e da natureza enquanto

    ecossistema, dando-se nfase aos ideais de solidariedade e responsabilidade no trato do bem

    ambiental. Assim, pode-se dizer que os direitos ambientais contemporneos so direitos de

    contribuio, isto , que exigem certos deveres por parte dos seus detentores. Ao mesmo

    tempo, tais direitos constituem instrumentos de proteo contra os riscos e no s contra

    danos pessoais ou comunitrios (LEITE & AYALA, 2004: 205).

    O risco, por sua vez, desafia o Direito Ambiental, levando-o a se questionar sob

    que condies esta salvaguarda coletiva e transgeracional pode ser concretizada. O Direito do

    Ambiente passa de um direito de danos (preocupado em reparar ou quantificar os prejuzos ao

    meio ambiente) para um direito de riscos, cuja principal preocupao evitar a degradao

    ambiental (BENJAMIN, 2001: 61).

    22

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    Para que o Direito do Ambiente compreenda os problemas ambientais e oferea

    solues viveis e suficientes, este deve recorrer, inevitavelmente, ao conhecimento

    cientfico. Entretanto, no quadro de incertezas produzidas pela prpria cincia, para que haja a

    caracterizao do risco ambiental que j no mais prvia ou previsvel mandados de

    proporcionalidade e complexos julgamentos polticos e sociais se tornam extremamente

    necessrios (LEITE & AYALA, 2004: 209).

    Dada a perda do monoplio da verdade pela cincia, o Direito instado a inserir a

    incerteza em sua estrutura epistemolgica, fazendo com que seus institutos, aprisionados em

    uma racionalidade marcadamente cientificista e antropocentrista, sejam objeto de reflexo,

    crtica e dvida quanto sua potencialidade para tutelar direitos e interesses das geraes

    vindouras (CARVALHO, 2008).

    Um quadro representativo desta virada epistemolgica por que passa o Direito do

    Ambiente pode ser vislumbrado na esfera da tutela jurdica do dano ambiental, onde j no se

    exige que este se enquadre na moldura convencional de imputao da responsabilidade. A

    percepo da existncia dos riscos invisveis da segunda modernidade tambm leva ruptura

    com os requisitos da certeza e atualidade do dano, passando o Direito Ambiental a ser guiado

    pela aplicao das suas normas luz do princpio da precauo, onde a dvida e a incerteza

    possuem um papel determinante no atuar preventivo (STEIGLEDER, 2004: 142).

    No contexto da sociedade de riscos, a ausncia de certezas cientficas acerca

    destes no deve postergar a adoo pelo Estado de medidas preventivas. o que contempla a

    precauo, que tem como contedo o princpio 15 da Declarao do Rio, cujo texto o

    seguinte:

    Com o fim de proteger o meio ambiente, o princpio da precauo dever seramplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando

    houver ameaa de danos graves ou irreversveis, a ausncia de certeza cientficaabsoluta no ser utilizada como razo para o adiamento de medidaseconomicamente viveis para prevenir a degradao ambiental.

    Embora faam parte de uma mesma finalidade, isto , a proteo do meio

    ambiente, os princpios da precauo e da preveno diferem no que tange avaliao do

    risco que ameaa o meio ambiente. A precauo considerada quando o risco bastante

    elevado, de maneira que a certeza cientfica no exigida antes de se adotar uma ao

    corretiva, aplicando-se aos casos em que os danos potenciais so duradouros e at mesmo

    irreversveis. O princpio da preveno, por outro lado, trabalha com os indicativos tcnicosda iminncia da produo de um dano, certo e definido, indicando a necessidade de medidas

    23

  • 8/9/2019 O Direito Ambiental Brasileiro em face dos riscos e incertezas da nanotecnologia: uma proposta de reflexo crtica

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    preventivas anteriores consumao do resultado prejudicial ao ambiente, ou seja, trata-se da

    adoo de critrios de antecipao diante de um resultado certo, mas indesejado (VARELLA,

    2004).

    A figura da precauo traz a exigncia do clculo precoce dos potenciais riscos

    para a sade humana anterior ao surgimento do prprio dano. Isto se ope frontalmente

    lgica da ao tardia, ou da avaliao posterior, que cientificamente rigorosa, porm

    impotente. Mesmo assim, agir antecipadamente sobre os riscos cuja existncia sequer est

    comprovada e cujas conseqncias potenciais so pouco compreendidas envolve um dilema.

    Em primeiro lugar, h a possibilidade de comprometer custos elevados e impor desgastes s

    pessoas, grupos particulares ou para toda a coletividade, bem como fechar as portas ao

    desenvolvimento econmico e tecnolgico. Por outro lado, possvel que se deixe evoluir, de

    maneira irreversvel, tecnologias que venham a oferecer riscos inimaginveis sade humana

    e ao meio ambiente (GODARD, 2004: 164).

    Com o princpio da precauo, o comportamento judicial de tolerncia do dano

    substitudo pelo de vigilncia e prudncia. Enquanto vetor interpretativo, tal princpio orienta

    a atuao dos instrumentos processuais cautelares, provimentos liminares e inibitrios, bem

    como os instrumentos de responsabilizao, introduzindo a inverso do nus da prova em

    matria ambiental. luz do princpio da precauo, j no cabe mais aos titulares dos direitos

    ambientais provarem a ofensividade de determinados empreendimentos levados apreciao

    do Poder Pblico. Aos potenciais degradadores, por outro lado, cabe provar a inofensividade

    da atividade proposta.

    Esta racionalidade coaduna-se com a nanotecnologia, na medida em que se trata

    de atividade ainda envolta em incontveis dvidas, especialmente quanto assimilao de

    seus riscos pelo Direito Ambiental e a projeo deles para uma dimenso temporal futura.

    5. Tutela jurdica do dano ambiental futuro

    Os efeitos de uma ao contra o meio ambiente no so imediatamente aparentes.

    A avaliao das conseqncias nocivas de determinada ao depende, necessariamente, do

    estgio do conhecimento cientfico no momento da sua prtica, o que denota a necessidade do

    constante dilogo entre o Direito e outras cincias. Com o passar do tempo e na medida em

    que o conhecimento cientfico evolui, conseqncias nocivas de contaminaes ocorridas no

    passado podem ser verificadas. Por conta disso, os critrios jurdicos para reparao do danodevem ser reformulados, agora luz dos princpio da precauo.

    24

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    A ruptura com o requisito da atualidade do dano faz parte da preocupao com o

    futuro e da percepo da existncia de riscos invisveis, caracterizados pela imprevisibilidade

    das suas conseqncias, tpicos da sociedade de risco. Tais riscos, mesmo separados dos seus

    efeitos nocivos pelo seu contedo, espao e tempo, agora so unidos por um liame causal que

    no era perceptvel a priori. Sob influncia do princpio da precauo, o reconhecimento do

    dano futuro tambm traz tona a discusso acerca da responsabilizao sem dano, onde se

    busca a supresso do fator de risco existente, ao invs da indenizao (GODARD, 2004: 143).

    Danos futuros so os danos certos, mas ainda no concretizados quando da

    observao do local impactado. Reconhecer o dano futuro perceber que o dano ambiental

    possui carter dinmico, cujos efeitos se dilatam a longo prazo. Tais danos devem ser aferidos

    a partir de um juzo de probabilidade cientfica sobre sua ocorrncia, embora seja necessrio,

    s vezes, recorrer presuno de ocorrncia de determinado dano enquanto desdobramento

    normal de uma situao especfica. A ttulo exemplificativo: um foco de poluio gerada pela

    infiltrao de um aterro sanitrio ser muito mais grave no futuro, quando o lenol fretico

    localizado a quilmetros de distncia do foco inicial estiver contaminado. Embora os efeitos

    do dano ambiental se manifestem em tempo futuro e incerto, este no pode ser excludo do

    ressarcimento (GODARD, 2004: 144).

    Tambm deve ser considerada a possibilidade de reparao dos danos potenciais.

    Reconhecer tal possibilidade significa afastar o dogma da segurana jurdica e passar

    aplicao do princpio da precauo. Os danos potenciais no se limitaro aos efeitos j

    conhecidos dos danos futuros, abrangendo os efeitos meramente provveis a partir do

    conhecimento cientfico disponvel poca. O mecanismo de responsabilidade, em tais casos,

    materializa-se na adoo de medidas preventivas que obriguem a interrupo da atividade

    poluidora e a retirada, na medida do possvel, das substncias contaminantes (GODARD,

    2004: 147).

    A idia de dano ambiental futuro dialoga com a emergente sociedade,

    caracterizada que pela produo de riscos invisveis e globais, que se protraem no tempo e

    desconhecem fronteiras geopolticas. A autoconfrontao entre as condies de

    desenvolvimento dessa sociedade de risco e seu potencial autodestrutivo reivindica, portanto,

    uma nova compreenso da tutela jurdica ambiental, afinada com o princpio da precauo e

    mais adequada gesto dos riscos antes de sua concretizao em danos (CARVALHO, 2008:

    163).

    25

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    Trata-se, mais uma vez, da construo de vnculos com o futuro (GIORGI, 1998)

    como condio para a imputao da responsabilidade civil objetiva (Lei 6.938/81, art. 14,

    pargrafo 1), agora sem dano. Nesse ponto, considerando que a Constituio Federal inseriu,

    no caputdo art. 225, as geraes vindouras como destinatrias da proteo jurdica do meio

    ambiente, fixar o comprometimento do Direito Ambiental com o futuro apresenta-se como

    condio estrutural operacionalizao jurdico-dogmtica do risco por meio da definio de

    dano ambiental futuro. Tal categoria, portanto, acarreta a fragilizao da certeza da

    concretizao do dano e do dogma da segurana jurdica para incidncia da responsabilidade

    civil (CARVALHO, 2008).

    Examinadas tais questes, tem-se por relativa a adequao dos instrumentos ora

    institudos para a salvaguarda dos novos direitos relacionados tutela jurdica do meio

    ambiente. Contudo, possvel verificar, quando trazidos tona os potenciais riscos da

    nanotecnologia, a obsolescncia dos mecanismos jurdico-processuais tradicionais. Eles

    podem, podem muito, mas no podem tudo, especialmente quando se tem em conta os limites

    e possibilidades do conhecimento cientfico frente aos riscos de graves conseqncias.

    Nesta situao, questiona-se: como pensar a aplicao do princpio da precauo

    no contexto das incertezas cientficas relativas nanotecnologia? Como garantir a

    responsabilizao por danos futuros ou potenciais resultantes da utilizao de nanomateriais?

    E quanto dimenso participativa do Direito Ambiental contemporneo?

    6. A invisibilidade da nanotecnologia para o Direito Ambiental brasileiro

    Segundo Ulrich Beck, a construo social dos riscos est ligada diretamente

    criao de respostas institucionais para os perigos. Mesmo diante da desmistificao da

    racionalidade tcnica, o conhecimento cientfico ainda possui um papel determinante no

    processo de construo social dos riscos. O monoplio do juzo cientfico sobre a verdadeobriga os afetados a fazerem uso dos seus meios e mtodos de anlise para a consecuo de

    seus objetivos no que tange, principalmente, gesto dos riscos. A nanotecnologia j

    considerada, para alguns cientistas, como uma atividade potencialmente causadora de danos

    ambientais e sade humana.

    Entretanto, a ausncia de respostas institucionais para seus potenciais riscos faz

    com que ela permanea invisvel aos instrumentos de proteo, situao absolutamente

    contraditria face s contingncias das aplicaes nanotecnolgicas que pressupem

    26

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    interpretao tica e atualizao dos marcos jurdicos como condies proteo dos direitos

    fundamentais envolvidos na problemtica (MORENO, 2009).

    Atualmente, a nanotecnologia carece de regulamentao especfica. No h

    nenhuma legislao federal que verse sobre a matria, tampouco precedentes jurisprudenciais.

    E o debate acadmico ainda incipiente. Essas ausncias significam regresso aos

    instrumentos ortodoxos de proteo ambiental. O estado de invisibilidade da nanotecnologia

    para o ordenamento jurdico, na medida em que no h sua institucionalizao, deixa a

    atividade merc de instrumentos insuficientes diante da realidade criada pelas tecnologias

    convergentes, tpicas da sociedade de risco.

    Estes fatores demonstram o desafio imposto ao Direito quando da necessidade deconcretizao de instrumentos de proteo em face de ameaas que sequer por ele foram

    reconhecidas. Num retorno perspectiva proposta por Beck: se o reconhecimento dos riscos

    corresponde institucionalizao dos perigos e oferecimento de respostas para estes, isto

    significaria dizer, diante da inexistncia destas, que os riscos no so reconhecidos pelo

    Direito como tais, a despeito de oferecerem ameaas sociedade.

    Esta invisibilidade dos riscos gerada a partir das suas qualidades diferenciadas e,

    sobretudo, a partir do seu no reconhecimento pela sociedade e pelos instrumentos deproteo, faz com que haja um retorno insegurana, era das ameaas desconhecidas,

    criando um novo reino das sombras. Para Ulrich Beck, estar merc de riscos

    desconhecidos comparvel aos deuses e demnios da antiguidade, que se escondiam por

    detrs do mundo visvel, pondo em perigo a vida humana (BECK, 1997).

    Os riscos da segunda modernidade, quando reconhecidos como tais, impem ao

    Direito a necessidade de apresentar respostas em contextos de incerteza. A nanotecnologia,

    por outro lado, faz transparecer a j obsolescncia dos instrumentos de que lana mo oDireito quando da tentativa de oferecer respostas segunda modernidade e seus

    desdobramentos. No s pela simples existncia dos riscos desconhecidos, mas

    principalmente pela possibilidade de sua institucionalizao tardia e irreversibilidade de suas

    conseqncias. Em se tratando da nanotecnologia, sua vasta gama de aplicaes e a sua

    penetrao nos mais diversos setores da produo e do consumo impossibilitam qualquer

    tentativa no sentido de retirar de circulao os nanomateriais ou responsabilizar quem os

    introduziu sem os devidos cuidados.

    27

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    O paradoxo jurdico reside justamente na tentativa de controlar as tecnologias

    convergentes ainda agrilhoado a categorias tericas tpicas da sociedade industrial. O fosso

    entre os instrumentos de natureza principiolgica e processual provenientes da primeira

    modernidade e os conflitos advindos das inovaes tecnolgicas fragiliza a apropriao

    jurdica do tema dos riscos ambientais e mitiga o mbito de proveito ecolgico do Direito.

    Quer dizer, quanto mais o Direito operar em contextos lineares de racionalidade limitada,

    desconsiderando a complexidade dos riscos ambientais e negando a parcialidade e as

    incertezas que permeiam o conhecimento cientfico, menor ser a possibilidade de

    juridicizao de situaes de risco, como a nanotecnologia (CARVALHO, 2008).

    Nesse sentido, o princpio da precauo, como ora exposto, tem fundamental

    importncia, pois trata, na sua essncia da adoo de medidas preventivas em contextos de

    incerteza. A partir do momento em que o ordenamento jurdico adota uma postura permissiva,

    isto , admitindo a insero de nanomateriais de forma no refletida na sociedade, resta

    flagrante a inobservncia do referido princpio. importante a lio de Raffaele de Giorgi no

    sentido de que os princpios consistem em premissas que adquiriro realidade somente

    quando da sua aplicao, isto , atravs da sua construo na prxis decisria (GIORGI, 1998:

    158). Enquanto existirem riscos que passam ao largo do debate jurdico, tais princpios

    consistiro, somente, em premissas.

    Atualmente, no Brasil, difcil associar a nanotecnologia idia de cidadania.

    No permitido ao cidado participar da vida poltica por conta do seu desconhecimento

    acerca do assunto. O debate pblico se faz necessrio na medida em que deve ser garantido

    sociedade o direito de exigir avaliaes sobre segurana alimentar, sade e impactos

    ambientais relacionados nanotecnologia (NUNES & GUIVANT, 2008: 10). Ao consumidor

    deve ser assegurado o direito de escolha, principalmente quando o produto consumido pode

    gerar riscos sua sade. No nvel do indivduo, um componente fundamental no seu dia-a-dia

    o da escolha. Entretanto, lembra Giddens, no s so seguidos estilos de vida como em

    determinado momento os indivduos so obrigados a faz-lo. No h escolha seno escolher

    (GIDDENS, 1997: 79).

    O Direito continua atuando com instrumentos, teorias e matizes epistemolgicos

    ortodoxos que no so condizentes com o novo modelo de Estado Ambiental e da sociedade

    de risco. Isto tem como conseqncia, alm da dificuldade de tomada de deciso em se

    tratando de novos riscos, a no institucionalizao de outros. Diante das incertezas que

    emanam da sociedade contempornea, o Direito deve estar pronto para oferecer respostas em

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    contextos de grande instabilidade, bem como institucionalizar determinados riscos de maneira

    eficiente. Esta ameaa trazida pela nanotecnologia aos pilares da lgica e racionalidade sobre

    os quais repousa o Direito denota a necessidade de elaborao de um novo paradigma que

    venha a controlar a modernidade de riscos e assegurar uma nova segurana social e jurdica.

    Consideraes finais

    Na sociedade global do risco, a radicalizao da modernizao faz com que a

    cincia se torne concausa dos riscos de graves conseqncias. A cincia, que outrora era tida

    como instncia de legitimao do saber, adentra ao campo da incerteza, pondo em xeque todo

    o sistema institucionalizado de clculo de efeitos colaterais e riscos. Estes riscos, advindos das

    incertezas produzidas pela prpria cincia, apresentam novas caractersticas que fogem percepo sensorial e delimitao espacial ou temporal.

    A nanotecnologia, enquanto uma das tecnologias representativas do novo

    paradigma tcnico-econmico inaugurado pela sociedade de risco (tecnologias convergentes),

    tem permitido uma especificao e diferenciao produtivas at ento impensadas.

    Nanomateriais esto presentes em alimentos, cosmticos, eletrnicos e medicamentos, no

    sendo possvel delimitar, com exatido, em que propores estes j esto presentes na vida

    dos seres humanos. Em que pese a sua grande insero na linha de produo e consumo, ananotecnologia ainda no possui um papel significativo na agenda de debates pblicos acerca

    dos seus riscos sade humana ou ao meio ambiente.

    As incertezas manufaturadas levam o aparato institucional produzido na primeira

    modernidade a um quadro de severo atordoamento. Todos os instrumentos de controle e

    proteo dos riscos, outrora construdos sobre as bases das certezas cientficas e apegados

    racionalidade tcnica, agora esto s voltas com riscos cuja prpria existncia incerta, mas

    cujas conseqncias so extremamente danosas. Em virtude disso, estudos cientficos passama conduzir seus resultados em consonncia com os interesses econmicos e o Estado, por sua

    vez, institucionaliza tais estudos, gerando um quadro de irresponsabilidade organizada.

    Cabe ao Direito Ambiental, assim, uma reformulao dos seus instrumentos de

    proteo, um repensar de sua prpria epistemologia. Agora, tais instrumentos voltam-se s

    novas configuraes do direito ao ambiente, permeado pelos valores ecossistmicos e de

    solidariedade intergeracional, e principalmente contemplando os elementos da incerteza e do

    risco. Nesse esforo, apresenta-se o princpio da precauo, segundo o qual as incertezascientficas no devem postergar a adoo de medidas preventivas pelos Estados. Enquanto

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    desdobramentos do referido princpio, novos delineamentos foram dados aos institutos da

    responsabilizao civil por dano ambiental, considerando-se, para efeitos de

    responsabilizao, os danos futuros e potenciais.

    Tais mudanas denotam a tentativa do Direito Ambiental em se adaptar aos novos

    desafios impostos pela sociedade global do risco. Entretanto, estas medidas possuem pouca ou

    nenhuma efetividade enquanto existirem riscos, como a nanotecnologia, que sequer so

    reconhecidos como tais.

    A invisibilidade dos riscos gerada por suas qualidades diferenciadas e,

    principalmente, em face de seu no reconhecimento pela sociedade e pelos instrumentos de

    proteo, gera o retorno insegurana da era das ameaas desconhecidas. A permanncia dananotecnologia margem do debate jurdico significa ficar merc dos mesmos instrumentos

    de proteo ambiental que, a priori, no ofereceram respostas cleres e eficientes o bastante

    para as questes relativas nanotecnologia. O princpio da precauo, que tem sua razo de

    ser fundada no agir preventivo, no fora observado. A responsabilizao por danos futuros ou

    potenciais de todos os responsveis pela difuso de nanomateriais improvvel, diante da

    grande diversidade de aplicaes envolvidas. Retirar de circulao todos os produtos que

    utilizam nanomateriais tambm invivel.

    Desta forma, a nanotecnologia faz transparecer a obsolecncia dos instrumentos

    de proteo ambiental e a inrcia da teoria (e dos tericos) jurdica. No somente no que diz

    respeito necessidade de apresentar respostas em contextos de incerteza, mas tambm quando

    se trata da necessidade de institucionalizar e inserir na agenda de debates pblicos questes

    relativas aos riscos ambientais. Atualmente, no permitido ao cidado participar da vida

    poltica por conta do seu desconhecimento acerca do assunto. Os indivduos tm o seu direito

    de escolha cerceado diante da omisso estatal.

    O Direito Ambiental contemporneo continua prevalentemente aprisionado aos

    instrumentos, teorias e matizes epistemolgicos que no so condizentes com os novos

    delineamentos da sociedade que emerge da segunda modernidade. A permanncia da

    nanotecnologia margem do Direito, por sua vez, ameaa os pilares epistemolgicos da

    lgica e da racionalidade sobre os quais este foi construdo. Indispensvel, ento, uma

    reformulao dos seus paradigmas, com vistas a assegurar uma nova segurana jurdica e

    social.Referncias

    30

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    31/32

    BECK, Ulrich. A reinveno da poltica: rumo a uma teoria da modernizao reflexiva. In:BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernizao Reflexiva: poltica,tradio e esttica na ordem social moderna. Trad. Magda Lopes. So Paulo: Editora daUniversidade Estadual Paulista, 1997.

    ___________. Liberdade ou capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms.Trad. Luiz Antnio Oliveira de Araujo. So Paulo: Editora UNESP, 2003.

    BENJAMIN, Antonio Herman de V.; SICOLI, Jos Carlos Meloni. (Orgs.). Anais do 5Congresso Internacional de Direito Ambiental, de 4 a 7 de junho em 2001. O futuro docontrole da poluio e da implementao ambiental. So Paulo: IMESP, 2001.

    BRUSEKE, Franz Josef. A tcnica e os riscos da modernidade. Florianpolis: Editora daUFSC, 2001.

    CAPELLA, Juan Ramn. Fruto proibido: uma aproximao histrico-terica ao estudo doDireito e do Estado. Trad. Gisela Nunes da Rosa e Ldio Rosa de Andrade. Porto Alegre:Livraria do Advogado, 2002.

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