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O DIREITO FUNDAMENTAL À PREVIDÊNCIA SOCIAL FRENTE À TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL. Autoria: Ana Paula Sousa de Oliveira. Especialista em Direito Previdenciário. Advogada. Os direitos fundamentais têm um papel importante em um Estado Democrático de Direito, porquanto geram uma relação de confiança entre o povo, lato sensu, e a ordem jurídica estabelecida, fortalecendo a sensação de democracia, além de privilegiar o indivíduo como ser humano. Na ordem nacional, os diretos fundamentais possuem importância destacada, o que pode ser vislumbrado, inclusive, por sua localização topográfica na Constituição Federal de 1988 CF/88, sendo-lhes dedicado o Título II. O Brasil se firmou como um Estado (Social) Democrático de Direito, estabelecendo, na sua Constituição, diversos direitos de ordem social, dentre eles, a Previdência, que solidificam ainda mais a soberania popular e prestigiam a dignidade da pessoa humana, elevando-a a princípio vetor da nossa República (art. 1º, III, CF/88). É nessa seara em que se desenvolve o presente artigo. Os direitos sociais são ditos de 2ª (segunda) dimensão, cuja função precípua é a de prestação social. Configuram-se, primordialmente, como prestações positivas estatais, que têm por premissas a justiça e o bem-estar social, visando-se à isonomia material e aos objetivos fundamentais da República brasileira, insculpidos no art. 3º da Constituição Federal, dentre os quais são citados a erradicação da pobreza e da marginalização, e a promoção do bem de todos. A concretização dos direitos fundamentais, em especial os sociais, por serem, em sua maioria, de caráter prestacional, demanda recursos financeiros, o que traz à baila a chamada Teoria da Reserva do Possível (Vorbehalt des Möglichen), a tutelar o Estado no caso de descumprimento dos mandamentos constitucionais, configurando uma limitação ao direito fundamental social. Essa teoria, conforme alegam alguns doutrinadores, teria surgido na Alemanha, no início dos anos 70. Por ela, tendo em vista que as necessidades são infinitas e as reservas orçamentárias, finitas, cumpre ao Estado realizar o possível dentro das condições materiais existentes. Assim, os direitos sociais só existiriam “[...] quando e enquanto existir dinheiro nos cofres públicos” (CANOTILHO, 2011, p. 481). Não se pode obrigar o Estado, o qual zela pelo bem estar de toda a sociedade, a arcar com obrigações extremamente onerosas e imprevistas no orçamento público, em um contexto desprovido de razoabilidade, em beneficio de um administrado. Não é ela, contudo, um escudo protetor estatal a legitimar atuações e omissões arbitrárias, devendo, portanto, ser catalogada em âmbito excepcional e averiguada com cautela. Deve ser analisada no caso concreto, sob a perspectiva da proporcionalidade, devendo ser sopesado com outros valores constitucionais, prevalecendo a segurança social e tutelando-se a dignidade do indivíduo.

O DIREITO FUNDAMENTAL À PREVIDÊNCIA SOCIAL · PDF fileEspecialista em Direito Previdenciário. Advogada. Os direitos fundamentais têm um papel importante em um Estado Democrático

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O DIREITO FUNDAMENTAL À PREVIDÊNCIA SOCIAL FRENTE À TEORIA

DA RESERVA DO POSSÍVEL.

Autoria: Ana Paula Sousa de Oliveira. Especialista em Direito Previdenciário.

Advogada.

Os direitos fundamentais têm um papel importante em um Estado Democrático de

Direito, porquanto geram uma relação de confiança entre o povo, lato sensu, e a ordem

jurídica estabelecida, fortalecendo a sensação de democracia, além de privilegiar o

indivíduo como ser humano.

Na ordem nacional, os diretos fundamentais possuem importância destacada, o

que pode ser vislumbrado, inclusive, por sua localização topográfica na Constituição

Federal de 1988 – CF/88, sendo-lhes dedicado o Título II.

O Brasil se firmou como um Estado (Social) Democrático de Direito,

estabelecendo, na sua Constituição, diversos direitos de ordem social, dentre eles, a

Previdência, que solidificam ainda mais a soberania popular e prestigiam a dignidade da

pessoa humana, elevando-a a princípio vetor da nossa República (art. 1º, III, CF/88). É

nessa seara em que se desenvolve o presente artigo.

Os direitos sociais são ditos de 2ª (segunda) dimensão, cuja função precípua é a de

prestação social. Configuram-se, primordialmente, como prestações positivas estatais,

que têm por premissas a justiça e o bem-estar social, visando-se à isonomia material e

aos objetivos fundamentais da República brasileira, insculpidos no art. 3º da

Constituição Federal, dentre os quais são citados a erradicação da pobreza e da

marginalização, e a promoção do bem de todos.

A concretização dos direitos fundamentais, em especial os sociais, por serem, em

sua maioria, de caráter prestacional, demanda recursos financeiros, o que traz à baila a

chamada Teoria da Reserva do Possível (Vorbehalt des Möglichen), a tutelar o Estado

no caso de descumprimento dos mandamentos constitucionais, configurando uma

limitação ao direito fundamental social.

Essa teoria, conforme alegam alguns doutrinadores, teria surgido na Alemanha, no

início dos anos 70. Por ela, tendo em vista que as necessidades são infinitas e as

reservas orçamentárias, finitas, cumpre ao Estado realizar o possível dentro das

condições materiais existentes. Assim, os direitos sociais só existiriam “[...] quando e

enquanto existir dinheiro nos cofres públicos” (CANOTILHO, 2011, p. 481).

Não se pode obrigar o Estado, o qual zela pelo bem estar de toda a sociedade, a

arcar com obrigações extremamente onerosas e imprevistas no orçamento público, em

um contexto desprovido de razoabilidade, em beneficio de um administrado.

Não é ela, contudo, um escudo protetor estatal a legitimar atuações e omissões

arbitrárias, devendo, portanto, ser catalogada em âmbito excepcional e averiguada com

cautela. Deve ser analisada no caso concreto, sob a perspectiva da proporcionalidade,

devendo ser sopesado com outros valores constitucionais, prevalecendo a segurança

social e tutelando-se a dignidade do indivíduo.

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A alocação de verba pública deve ser feita pelo Estado com responsabilidade,

administrando de forma planejada o orçamento, acurando primordialmente as áreas

intrinsecamente relacionas à vida e à dignidade da pessoa humana, imputando, diante da

escassez orçamentária, recursos a essas áreas em privilégio das demais. Não há,

portanto, que se nela falar diante da tutela do mínimo existencial e dos direitos inerentes

à vida condigna, em se tratando de um Estado Social Democrático de Direito. É essa a

conclusão que se extrai da análise da ADPF nº 45.

A Previdência Social, para ser efetivada, demanda quantias financeiras, a fim de

honrar com o pagamento dos benefícios e com a prestação dos serviços previstos

constitucional e legalmente. Seguindo a trilha já percorrida, a reserva do possível

encontra aqui óbices ao seu estabelecimento, porquanto o direito à previdência está

intrinsecamente ligado ao mínimo existencial, à dignidade da pessoa humana, portanto.

Afora a essencialidade desse direito, cumpre lembrar que a Previdência Social

constitui um seguro obrigatório, de caráter contributivo, havendo entre o segurado e o

regime um pacto intergeracional. Assim sendo, gera no beneficiário a justa expectativa

de que ela a ampare quando dela necessitar.

Os beneficiários que cumprem os requisitos preestabelecidos pela lei têm o

direito público subjetivo à concessão de benefícios e serviços, não havendo

discricionariedade por parte do ente público; sendo, destarte, o ato concessório

vinculado. Este deve honrar com os compromissos assumidos pelo Constituinte e pelo

legislador infraconstitucional, uma vez que o vínculo existente é estatutário, a fim de

não ferir a segurança jurídica e a confiança que o beneficiário possui no regime

previdenciário, que são seus pilares de sustentação. Uma vez rompida, tende a levar à

ruína um sistema construído ao longo da história.

Pela análise da legislação correlata, percebe-se a preocupação do legislador com a

saúde do sistema previdenciário, devendo haver designação de receita no orçamento

público, observando as metas e prioridades estabelecidas na lei de diretrizes

orçamentárias (art. 195, § 2º, CF), participando a União com recursos adicionais do

Orçamento Fiscal, fixados na Lei Orçamentária Anual.

É pensando na estabilidade da balança econômica que o texto constitucional

determina que a Previdência seja organizada observando-se critérios que preservem o

equilíbrio financeiro e atuarial (art. 201, caput) e vedando a concessão, majoração ou

extensão de qualquer benefício ou serviço sem a prévia fonte de custeio total (art. 195, §

5º).

O assunto é deveras sério, determinando a Lei nº 8.212/91, em seu art. 80, VII, a

transparência na gestão do regime, para que a sociedade possa acompanhá-la.

No cenário atual, é complicado se utilizar dessa teoria quando vigente a

Desvinculação de Receitas da União- DRU, veiculada pelo art. 76 do Ato das

Disposições Constitucionais Transitórias- ADCT, que desvincula, até 31 de dezembro

de 2015, 20% da arrecadação de contribuições atreladas à Seguridade Social, podendo

ser aplicada em outras despesas.

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Se há a possibilidade de desvinculação, há verba suficiente para custear as

despesas da Seguridade Social, em que se inclui a Previdência.

A aplicabilidade da reserva do possível nessa seara impulsionaria o caminho

inverso do desejado, estimulando a fuga à margem e esvaziando ainda mais o fundo

previdenciário, haja vista a ausência de confiança, que é salutar para a existência de um

seguro, mesmo que público e obrigatório. Trata-se, pois, de questão de segurança

jurídica.

REFERÊNCIAS

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Previdência Social. Disponível em:

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2012.

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Seguridade Social, institui Plano de Custeio, e dá outras providências. Diário Oficial da

União, Brasília, DF, 25 jul. 1991,

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8212cons.htm>. Acesso em: 02 de março

de 2012.

__________. Lei nº. 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de

Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Diário Oficial da União,

Brasília, DF, 25 jul. 1991, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8213cons.htm>.

Acesso em: 02 de março de 2012.

_______. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito

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CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed.

Coimbra: Almedina, 2011.

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Fundamentais orçamento e “reserva do possível”. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do

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Advogado, 2011.