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O discurso de Dilma Rousseff e suas repercussões na pauta da mídia
e da agenda internacionais1
Amanda Rodrigues Lima Cardoso2
Diana Zacca Thomaz3
Rafael Piccinini Machado4
Introdução
O presente artigo busca analisar o discurso da presidente Dilma Rousseff na abertura
da 66ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas à luz da linha seguida
pela política externa de seu governo, levando em consideração alguns temas
importantes nele abordados. Buscaremos aqui comparar diretamente o que é falado no
discurso e o que de fato é praticado pela diplomacia brasileira na gestão das relações
exteriores.
Desde o início de seu mandato, a presidente brasileira vem atraindo a atenção
da mídia internacional tanto pela atuação da política externa de seu governo – ainda
que tenha uma atuação mais discreta que a de seu antecessor – quanto pela crescente
importância do Brasil no sistema internacional. Assim, a percepção de jornais
estrangeiros acerca das relações exteriores do governo Dilma contribuiu sobremaneira
para a análise do discurso. Utilizaremos as pesquisas desses jornais para fornecer base
analítica e factual, uma vez que partimos da compreensão de que a política externa de
um país também é influenciada pela comunicação política oriunda da mídia, tornando
tal instrumento um agente político nos processos decisórios. Nesse primeiro ano de
1 Este trabalho se originou da pesquisa "A Política Externa Brasileira na Imprensa Internacional" realizada no âmbito do Laboratório de Estudos sobre a Política Externa Brasileira da Universidade Fedreal Fluminense - LEPEB/UFF, sob a orientação do prof. Dr. Adriano de Freixo. 2 Graduanda em História pela Universidade Federal Fluminense e bolsista de iniciação científica - FAPERJ 3 Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal Fluminense e bolsista PIBIC/UFF 4 Graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal Fluminense
governo Dilma, percebemos que as linhas gerais da política externa da Era Lula foram
mantidas, porém há diferenças de estilo e de ênfase, com questões como os direitos
humanos passando a ter maior centralidade, conforme analisamos ao discorrer sobre a
“responsabilidade ao proteger”. De modo geral, os artigos de opinião já definem o
país como um global player que deve ser levado em consideração nas questões
centrais das relações internacionais contemporâneas.
A comunicação divide-se em três partes. Primeiramente, iremos traçar um
panorama dos pontos mais destacados do discurso, entendendo-os como relativos à
crise econômica global e à posição brasileira em meio à ela. Buscaremos analisar se
aquilo que a presidente aponta em seu discurso condiz com a prática da política
externa brasileira. Para tanto, será utilizado o paradigma do Estado logístico, como
definido por Amado Luiz Cervo, para analisar os elementos da crise internacional e
da política externa brasileira presentes no discurso. Tal base conceitual nos servirá
somente para esse tópico, pois o tema da crise econômica global abrange o discurso
de forma mais geral. Para uma visão também um pouco mais ampla acerca desses
temas, são necessários melhores instrumentais teóricos. Observaremos o destaque
dado pela presidente Dilma à maneira como o Brasil tem lidado com a crise (por meio
de medidas econômicas e de sua diplomacia), entendendo a atuação brasileira como
condizente com o paradigma do Estado logístico. Tentaremos explicitar também a
clara sintonia entre o discurso da presidente e a prática da política exterior brasileira.
Os tópicos seguintes, por serem mais específicos, não se utilizam da mesma
base teórica. Assim, analisaremos mais detalhadamente dois aspectos fundamentais da
diplomacia brasileira, também abordados no discurso: a reivindicação brasileira pela
reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas e a ideia da “responsabilidade
ao proteger”, levando em conta o contexto da Primavera Árabe. A demanda brasileira
por um assento permanente será analisada considerando o histórico das discussões,
tanto no Brasil quanto no exterior, acerca da necessidade de reformar-se dita
instância. No discurso da Dilma, o tema aparece no sentido da defesa e da
necessidade de democratizar os processos de decisão do sistema internacional, em um
cenário cada vez mais dinâmico e no qual potências ditas emergentes ganham cada
vez mais espaço e importância. Tentaremos demonstrar também como a presidente
considera que a maior representatividade do Conselho, inclusive no amadurecimento
da “responsabilidade ao proteger”, é fundamental para fornecer maior legitimidade a
suas decisões.
A introdução do conceito pelo governo Rousseff da “responsabilidade ao
proteger”, diretamente relacionado à ideia de não intervenção, frequentemente
defendida pelo ex-chanceler Celso Amorim, é uma forma de criticar a maneira como
foram feitas as intervenções no contexto da Primavera Árabe. Sua aplicação está
diretamente ligada à preocupação com violações no âmbito dos direitos humanos e de
como proceder para que elas não ocorram, nem abram brechas para um direito de
ingerência, o qual prejudicaria a soberania de um determinado Estado. O debate sobre
o conceito insere-se na esfera mais ampla de princípios tradicionalmente defendidos
pela diplomacia brasileira, como a não intervenção e a autodeterminação dos povos.
1. O discurso e a prática brasileira em meio à crise econômica
1.1 Os paradigmas de inserção internacional do Brasil
É necessário, para analisarmos as passagens que discutem a crise e a economia
internacional no discurso da presidente Dilma, estabelecer uma base conceitual. Para
tanto, utilizaremos como instrumental o conceito de Estado logístico criado por
Amado Luiz Cervo. O modelo conceitual dos paradigmas de inserção internacional do
Estado brasileiro no mundo nos ajuda a pensar a política externa do Brasil em cada
período da história. Este modelo traduz as aspirações do país, e a função da
diplomacia nacional na realização destas. Assim, a partir da análise do discurso da
presidente Dilma Rousseff na abertura da Assembléia Geral da ONU, tentaremos
mostrar como a política externa atual pode ser entendida à luz do paradigma
supracitado.
Amado Cervo divide a história da inserção internacional brasileira em quatro
períodos orientados por paradigmas distintos. Em um primeiro momento, durante
grande parte do século XIX e ainda durante a Primeira República, as relações
internacionais do Brasil foram orientadas pelo paradigma liberal-conservador. Dentro
deste paradigma vigorou a ideologia do liberalismo de matriz europeia, aplicado ao
Brasil(Cervo, 2008)5. Assim, entendia-se o papel do Brasil como país da periferia.
Nossa diplomacia voltava-se para a defesa do nosso principal produto de exportação,
mantendo a dependência dos insumos industriais dos países centrais.
O paradigma desenvolvimentista que vigorou entre 1930 e 1989 foi marcado
pela modernização e industrialização orientadas pelo Estado brasileiro. Com a crise
dos anos 1930 foi ficando claro à sociedade a necessidade da criação de um modelo
econômico distinto do anterior, que se baseasse na indústria nacional e na busca por
maior autonomia internacional. O Estado brasileiro, desta forma, fortalecia-se e
ganhava prerrogativas para intervir diretamente na economia com o intuito de realizar
o projeto nacional de industrialização. Na busca pela autonomia, o país vai se fechar
às importações de produtos manufaturados, buscando proteger as indústrias nascentes.
Por isso “essa nova orientação traduziu-se numa política explícita de fomento da
industrialização por substituição de importações”6. A política externa brasileira vai,
assim, buscar meios de dar o suporte necessário à industrialização.
O paradigma do Estado normal, ou neoliberal, tem como características
principais o retorno às regras impostas pelos países centrais de modo passivo e pelo
desmantelamento abrupto (mas não total) da concepção de desenvolvimento expressa
5 CERVO, Amado Luis. Inserção internacional: formação dos conceitos brasileiros. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 69 6 SINGER, Paul. “Evolução da Economia e Vinculação Internacional”. In Brasil: Um século de transformações. organização SACHS, Ignacy, WILHEIM, Jorge e PINHEIRO, Paulo Sérgio. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 97.
pelo paradigma anterior. Além da adesão à ideologia neoliberal por parte de inúmeros
líderes latino-americanos, as determinações externas contribuíram para a mudança de
paradigma. Aliado a isso, estavam as idéias de abertura dos mercados de consumo, de
valores, do sistema produtivo e de serviços, fazendo com que a inserção internacional
brasileira ficasse à mercê da agenda estabelecida pelas maiores potências, em especial
pelos EUA, então potência hegemônica.
É imperativo explicarmos os paradigmas anteriores ao Estado logístico, pois
este é a síntese dialética de características do modelo desenvolvimentista e do modelo
neoliberal.7 Muitos intelectuais, políticos e acadêmicos perceberam que o referido
modelo não servia aos interesses brasileiros. Dever-se-ia, portanto, buscar um
caminho alternativo que tirasse o país da subserviência e o revalorizasse. Para Amado
Cervo, a ideologia por trás do modelo de Estado logístico identifica um elemento
externo, o liberalismo, associando-o a um interno, o desenvolvimentismo. Ou seja, o
país não mais deveria se isolar da ordem internacional na busca do desenvolvimento,
mas participar dela. O modelo logístico se diferencia do desenvolvimentista porque
transfere à sociedade algumas responsabilidades do Estado-empresário. Também não
é igual ao neoliberal, pois cabe ao Estado a manutenção da estabilidade e a afirmação
dos interesses da sociedade.
Ao mesmo tempo em que o Estado atua diretamente no mercado - como se
verifica ao longo do governo Lula e já no primeiro ano do governo Dilma - ele
mantém alguns mecanismos de caráter neoliberal, identificando-o como elemento
externo. Porém, toma medidas em prol do desenvolvimento, trazendo novamente à
tona um discurso que o valorize. Politicamente, o paradigma logístico busca recuperar
a autonomia decisória nacional, adentrando (diferentemente do modelo
desenvolvimentista) na economia globalizada e interdependente (Cervo. 2008. p. 85).
1.1 A política externa do governo Dilma
7 Idem 1. p. 84.
Falar da política externa do governo Lula e do governo Dilma é falar de alguns
princípios expressos pela Política Externa Independente (PEI), pois as relações
internacionais do Brasil se pautaram na busca de diversificação de parceiros com
vistas a conseguir um posicionamento internacional mais autônomo.8 Tal visão de
política externa baseia-se no pensamento nacionalista, entendendo que a inserção
brasileira se dá através da luta pelo desenvolvimento em um sistema mundial de
poder. Daí seu caráter pragmático e autonomista.9 É evidente que no governo Lula,
dado o diferente contexto internacional de seu período, mudam-se alguns
componentes desta política. Nas palavras de Vizentini, durante o governo Lula “a
diplomacia política (...) representa um campo de reafirmação dos interesses nacionais
e de um verdadeiro protagonismo nas relações internacionais, com a intenção real de
desenvolver uma “diplomacia ativa e afirmativa” 10.
Portanto, aqui se encaixa o conceito de Estado logístico proposto por Cervo. É
no governo Lula que este paradigma se estabelece. Nele, a inserção do país busca
nova relação com o mundo e maior integração com a América do Sul, área natural de
expansão da economia brasileira. Na esfera global, o país forja coalizões com outros
emergentes como Índia, Rússia, China e África do Sul que o reforçam como ator
importante e permitem bloquear as estruturas hegemônicas, possibilitando abertura do
caminho rumo ao desenvolvimento e a melhor e mais confortável inserção
internacional brasileira. (Williams, 2010).
Entendemos aqui que o primeiro ano de governo da presidente Dilma Rousseff
pautou-se em uma orientação similar no que tange a política externa. Dilma mudou a
ênfase da política em alguns temas, como veremos em outro momento deste artigo.
8 GONÇALVES, Williams. “Panorama da Política Externa Brasileira no Governo Lula da Silva”. In: A política externa na era Lula: um balanço”. Org. Adriano de Freixo, Luiz Pedone, Thiago Moreira Rodrigues e Vagner Camilo Alves. 9 CERVO, Amado Luis e BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. 3. Ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2010. 10 VIZENTINI, Paulo Fagundes. Relações Internacionais do Brasil: De Vargas a Lula. 3. Ed. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2008. p. 106
Entretanto, os princípios que guiam a política exterior mantêm-se basicamente os
mesmos do governo anterior.
1.2 Elementos da Política Externa presentes no discurso
O discurso da presidente Dilma é marcado por referências diretas à atual crise
econômica global. Em diversos momentos, ela destaca o que deve ser feito em
conjunto para que os países superem a crise e pontua seu discurso com críticas à
postura dos Estados desenvolvidos na tentativa de debelá-la. Ela sustenta que os
países emergentes não foram tão afetados pela crise quanto aqueles que a criaram:
“Como outros países emergentes, o Brasil tem sido, até agora, menos afetado pela
crise mundial.” Além disso, tenta mostrar ao mundo quais políticas e instrumentos o
Brasil vem utilizando para evitar o contágio direto da crise. Entretanto, reconhece que
a imunidade às turbulências não é ilimitada: “(...) sabemos que nossa capacidade de
resistência não é ilimitada.”
Ao contrário do que se poderia imaginar, percebe-se um afinamento entre o
discurso e a prática da política externa brasileira. É evidente que, como chefe de
Estado, seu discurso esteja de acordo com os princípios pregados pela política
exterior. No entanto, a prática da diplomacia brasileira de fato confirma muito do que
Dilma menciona. Seu discurso pode parecer, em alguns momentos, uma síntese da
política externa de seu governo. É de se esperar, todavia, que existam alguns pontos
discrepantes, onde o discurso se distancia da prática. Mesmo assim, estes pontos não
constituem elementos centrais de sua fala.
A parte do discurso que versa sobre a crise gira em torno da necessidade de
uma ação coordenada e multilateral. Refletindo a recente mudança nas relações de
poder, ela enfatiza que é necessária a participação de mais países na busca de
soluções: “Essa crise é séria demais para que seja administrada apenas por uns poucos
países. (...) como todos os países sofrem as consequências da crise, todos têm o direito
de participar das soluções.” Após assumir que os países desenvolvidos são os
responsáveis pela crise (embora não mencionando isso diretamente: “Agora, menos
importante é saber quais foram os causadores da situação que enfrentamos, até porque
isto já está suficientemente claro.”), Dilma aproveita para fazer uma crítica
contundente às ações dos países desenvolvidos, algo que, aliás, já vem fazendo há
algum tempo11: “Não é por falta de recursos financeiros que os líderes dos países
desenvolvidos ainda não encontraram uma solução para a crise. É (...) por falta de
recursos políticos e (...) de clareza de ideias.”
Ao mesmo tempo, ela dá grande destaque à ascensão dos países emergentes, o
que também está em sintonia com o que é praticado pela diplomacia brasileira.
Defende a maior participação destes países nos foros multilaterais já existentes (como
o FMI, o Banco Mundial), assim como uma imprescindível cooperação entre os
emergentes e os desenvolvidos, assumindo que a configuração de poder no plano
internacional mudou: “Um novo tipo de cooperação, entre países emergentes e países
desenvolvidos, é a oportunidade histórica para redefinir, de forma solidária e
responsável, os compromissos que regem as relações internacionais.”
A postura da diplomacia brasileira no que tange uma inserção brasileira no
sistema internacional mais justa e participativa é clara ao longo do discurso. Vê-se
que o país pretende ganhar mais espaço nas instituições multilaterais já existentes,
através de reformas que aumentem a representatividade destes foros. Daí a
importância da ação concertada do Brasil com outros emergentes, componente que,
como inúmeros outros, foi herdado da política externa do governo Lula. Seu discurso
deixa claro o pensamento pragmático da política externa brasileira: busca-se alterar a
ordem global a partir de coalizões de Estados com objetivos convergentes. (Williams,
2010 p. 168). A posição e a atuação brasileira no que concerne à ampliação do
Conselho de Segurança das Nações Unidas é um exemplo desta tentativa, como será
demonstrado mais detalhadamente em outro momento.
11 Como fica claro na reportagem de 7 de outubro de 2011 publicada no El País: Disponível em <http://internacional.elpais.com/internacional/2011/10/07/actualidad/1318012382_401325.html>
Podemos perceber, entretanto, outros elementos presentes no discurso da
presidente Dilma que, mesmo não constituindo pontos centrais, não necessariamente
condizem com as ações de seu governo e de sua diplomacia. Ao mencionar a questão
da guerra cambial, por exemplo, Dilma defende que se imponham controles à
manipulação do câmbio por parte dos Estados, assim como defende evitar políticas
monetárias demasiadamente expansionistas ou taxas de câmbio fixas. Ora, o Brasil
tem feito cada vez mais uso de políticas de restrição à entrada excessiva de dólares
(através de taxações como o IOF, por exemplo) numa tentativa de desvalorizar sua
moeda.
Em outro momento, Dilma mostra que a posição brasileira é terminantemente
contra o protecionismo: “O protecionismo e todas as formas de manipulação
comercial devem ser combatidos, pois conferem maior competitividade de maneira
espúria e fraudulenta.” Mais uma vez, vê-se que a postura brasileira na prática não
condiz com o discurso, pois se verifica, recentemente, um movimento rumo a maior e
melhor proteção da indústria nacional, principalmente contra as importações de
manufaturados chineses12.
A presidente afirma em seu discurso que as presentes ideias neoliberais, que
ainda regem as economias de muitos países, não são mais úteis para lidar com a crise:
“O desafio colocado pela crise é substituir teorias defasadas, de um mundo velho, por
novas formulações para um mundo novo. Enquanto muitos governos se encolhem, a
face mais amarga da crise - a do desemprego - se amplia.” Ao colocar que o mundo
necessita de “novas formulações”, Dilma aproveita para mostrar que o Brasil tem
adotado políticas diferentes daqueles países, as quais o permite manter um bom nível
de estabilidade e crescimento econômico: “O Brasil está fazendo a sua parte. Com
sacrifício, mas com discernimento, mantemos os gastos do governo sob rigoroso
controle, a ponto de gerar vultoso superávit nas contas públicas, sem que isso
12 Mas não só contra produtos chineses. O Brasil vem adotando também algumas medidas de retaliação contra o fechamento da economia argentina: Disponível em < http://www.ieco.clarin.com/economia/Brasil- tomaria-medidas-exportaciones-argentinas_0_564543647.html>
comprometa o êxito das políticas sociais, nem nosso ritmo de investimento e de
crescimento.” Ora, é patente neste trecho a presença de elementos condizentes com o
paradigma do Estado logístico, definido por Amado Cervo. Como mencionado, o
modelo logístico de inserção internacional “mescla em seu curso (...) os outros dois, o
desenvolvimentista e o neoliberal” (Cervo, 2008. p 83). O país encontra o equilíbrio
entre políticas econômicas de mercado ou com características neoliberais (por
exemplo, como ficou claro na passagem supracitada: “mantemos os gastos do
governo sob rigoroso controle”); e políticas voltadas para o desenvolvimento e
crescimento econômico (“sem que isso comprometa o êxito das políticas sociais, nem
nosso ritmo de investimento e de crescimento”).
O caráter desenvolvimentista condizente com a política externa brasileira fica
ainda mais evidente na passagem: “Temos insistido na inter-relação entre
desenvolvimento, paz e segurança; e que as políticas de desenvolvimento sejam, cada
vez mais, associadas às estratégias do Conselho de Segurança na busca por uma paz
sustentável.” Está claro que além de estar de acordo com a política exterior brasileira,
a passagem também corrobora com o paradigma logístico, onde se volta a falar de
desenvolvimento, embora com um caráter diferente daquele de períodos anteriores.
Em outro momento, seu discurso mostra clara sintonia com o novo paradigma:
“Uma parte do mundo não encontrou ainda o equilíbrio entre ajustes fiscais
apropriados e estímulos fiscais corretos e precisos para a demanda e o crescimento.”
Admite que seja necessário cortes orçamentários do governo, mas, ao mesmo tempo,
considera importante uma política de estímulo à demanda, como fomentador do
crescimento econômico, através dos gastos do setor público.
Com base no que foi definido como Estado logístico, podemos perceber que o
discurso da presidente Dilma Rousseff, assim como a política internacional brasileira
do atual governo de forma geral, encaixa-se em tal modelo conceitual criado por
Amado Cervo. Vemos no discurso elementos que, à primeira vista, parecem opostos e
antagônicos (como o corte de gastos e o estímulo à demanda), mas que são
perfeitamente aceitáveis dentro do paradigma logístico, no qual o Estado identifica a
presença de uma economia de mercado globalizada, mas, ao mesmo tempo, busca
novo papel de indutor do desenvolvimento. Deste modo, depreende-se também que a
política externa do período trabalha nesse cenário, buscando obter maior autonomia
decisória, o que abriria caminho para o desenvolvimento econômico e social.
2. A recorrente demanda do governo brasileiro por um assento
permanente
A reivindicação brasileira por um assento permanente no Conselho de Segurança
também é um tema recorrente na mídia internacional quando se fala da política
externa brasileira. Tal demanda está diretamente relacionada com a maior autonomia
que se busca dentro do paradigma logístico, pois, como veremos, apesar de não ser
uma demanda recente, recebeu maior ênfase a partir do governo Lula, principalmente
se comparada à atenção dada pelo governo anterior.
A abordagem da Organização das Nações Unidas foi cada vez mais
questionada a partir dos atentados de 11 de setembro e da ação unilateral dos Estados
Unidos e seus aliados na invasão do Iraque, conforme constata Paulo Afonso Velasco
Júnior. Somados ao bombardeio do escritório das Nações Unidas em Bagdá, em 2003,
tais fatores levaram o então secretário-geral, Kofi Annan, a reconhecer a fragilidade
do momento e a propor reformas urgentes para a organização.13 Apesar de a
declaração de Annan não ter surtido nenhum efeito prático no que concerne a reforma
do Conselho de Segurança, o tema não foi esquecido e costuma assomar à pauta dos
assuntos internacionais com mais frequência e intensidade do que as potências
detentoras de um assento permanente no Conselho (conhecidas como P5) gostariam.
Isso se deve à crescente influência de Estados emergentes, muitos considerados
potências médias e líderes regionais, que não se sentem suficientemente representados 13 VELASCO Jr., Paulo A. Conselho de Segurança: Uma Reforma, muitas propostas, nenhum acordo. Candelária vol. 3, Jul/Dez, 2005, p. 52
na ONU. Nesse contexto, o discurso da presidente do Brasil, Dilma Rousseff, na
abertura da 66ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas ilustra plenamente tal
questão, na medida em que clama por “uma solução para a falta de representatividade
do Conselho de Segurança, que corrói sua credibilidade e sua eficácia”.
O Conselho de Segurança pode ser considerado o principal órgão da
Organização das Nações Unidas. A Carta de São Francisco atribui-lhe a função de
determinar a existência de qualquer ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de agressão
(art. 39), cabendo-lhe o poder de decisão das medidas a serem tomadas para a
manutenção ou restabelecimento da paz e segurança internacionais. Os membros do
Conselho são divididos entre permanentes (cinco) e não permanentes (dez), e apenas
os primeiros detêm o poder de veto, o qual garante a unanimidade do processo
decisório. A desigual distribuição de poder, explicitada pela existência do veto,
encontra-se em dissonância com a igualdade entre os Estados prescrita na Carta das
Nações Unidas. Atualmente, seu poder discricionário para constatar quaisquer
violações da ordem levanta sérios questionamentos sobre a legitimidade de suas
medidas coercitivas.14
2.1 Propostas de reforma
A configuração do Conselho de Segurança quando da criação da ONU foi essencial
para evitar um fracasso semelhante ao da Liga das Nações, e para que as potências
vencedoras da Segunda Guerra Mundial aceitassem seu funcionamento. O grande
número de novos países membros da ONU, devido à descolonização afro-asiática,
levou à reforma do Conselho em 1963, com o objetivo de tornar-se mais
representativo. Assim, ampliou-se de 6 para 10 os membros não permanentes.
Todavia, o número de membros da ONU continuava a crescer, e mesmo essa reforma
não foi suficiente para adequar a organização às rápidas transformações que se
14 SEITENFUS, Ricardo. Manual das Organizações Internacionais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2005. P. 128
processavam. Desde então, não houve qualquer outra mudança, mesmo com a nova
configuração mundial oriunda do fim da Guerra Fria e do multilateralismo e
cooperação intensificados a partir da década de 1990.
A primeira proposta concreta de reforma do CSNU foi apresentada pela Índia,
em 1991. Três anos depois, o Grupo de Trabalho encarregado de estudar o tema
percebeu que havia posições muito distintas acerca da questão e acabou por não
apresentar nenhuma solução efetiva. Em 1997, o embaixador da Malásia e presidente
da Assembleia Geral, Razali Ismali, propôs a incorporação de dois novos membros
permanentes oriundos do grupo de países desenvolvidos (Alemanha e Japão seriam os
nomes mais prováveis) mais um Estado de cada região em desenvolvimento,
totalizando cinco (2+3).15 No mesmo período, os Estados Unidos admitiram pela
primeira vez a ideia de reforma do Conselho, mas defendiam somente um quick-fix,
ou seja, a incorporação de apenas Japão e Alemanha, o que iria ao encontro de
interesses estadunidenses, visto que os EUA poderiam dividir os gastos – como os
altos custos de operações de paz – sem diluir significativamente o poder dos membros
permanentes.
Parece claro que a simples incorporação de Japão e Alemanha não aumentaria de forma
suficiente a representatividade do órgão, nem lhe garantiria uma maior legitimidade, ainda mais
se considerando que boa parte das ações do Conselho incidem justamente sobre países em
desenvolvimento, que continuariam excluídos do rol de membros permanentes. (VELASCO,
2005, p. 55)
O tema da reforma voltou com força total em setembro de 2004, quando Brasil, Índia,
Japão e Alemanha, formando o G4, buscam apoiar mutuamente suas aspirações a um
assento permanente. A proposta oficial do G4 previa a ampliação do órgão para 25
membros, com 6 novos membros permanentes – inclusive com poder de veto – e 4
não permanentes. A proposta foi mal vista pelo P5, mormente porque a extensão do
veto significaria o congelamento das decisões, tal como ocorrido durante a Guerra
Fria. Posteriormente, uma nova proposta, na qual se excluía o poder de veto, foi feita,
15 VELASCO Jr., Paulo A, op. cit. p. 54
mas o grupo frequentemente esbarrava na resistência daqueles que temiam o êxito de
suas proposições. Trata-se de países vizinhos que se sentiram ameaçados ou
desprestigiados com a união e constituíram o principal foco de resistência ao G4 –
México e Argentina se opuseram à candidatura brasileira; Paquistão foi contrário à da
Índia; China não aceitou a do Japão e a Itália não concordava com a alemã.
2.2 O Brasil e a reivindicação por um assento permanente
Em 1989, na abertura da 44ª sessão da Assembleia Geral, o Brasil se lançou como
candidato a um assento permanente no Conselho de Segurança pela primeira vez, e o
então presidente brasileiro, José Sarney, defendeu mudanças na estrutura do
Conselho. Na década de 1990, a gestão Fernando Henrique Cardoso manteve um
discurso menos intenso, provavelmente para evitar atritos com sua mais importante
sócia comercial no MERCOSUL, a Argentina.16 A questão foi retomada com vigor a
partir do governo Lula, em 2003. Desde então, o discurso da política externa
brasileira orienta-se em favor da democratização dos processos decisórios
internacionais, bem como de maior representatividade nos mesmos.
Além de estar entre os 15 países que mais contribuem para o orçamento da
ONU, o Brasil foi um dos países fundadores da organização e argumenta contribuir
sobremaneira para a paz e segurança mundiais. Desde 1956, quando enviou um
batalhão para o Oriente Médio, já participou de 25 operações de paz, em quase todos
os continentes. A concepção brasileira é voltada para um sistema de segurança
multilateral, no qual a força é utilizada somente depois de esgotados todos os recursos
diplomáticos.17 Ademais, a presidente Dilma Rousseff salienta, em seu discurso na
abertura da Assembleia Geral, o caráter pacífico das relações do país com seus
vizinhos há mais de 140 anos; os bem-sucedidos processos de integração e
16 Idem, p. 58 17 AMORIM, Celso. A ONU aos 60. Política Externa, vol.14, nº 2, setembro-novembro, 2005. p. 19
cooperação e a atuação como mediador em crises e conflitos regionais.18 Rousseff
relembra ainda como o Brasil, ao contrário dos atuais membros permanentes, abdicou
do uso da energia nuclear para fins que não fossem pacíficos. A temática do
desenvolvimento, aliada ao combate à fome e à pobreza, também vem ganhando
destaque desde o governo Lula, tanto interna quanto externamente.
As maiores resistências à candidatura brasileira, no âmbito regional, vêm do
México e Argentina, conforme mencionado anteriormente. Os vizinhos brasileiros
não acreditam em uma verdadeira representação regional e temem que a posição
privilegiada seja usada a título pessoal, possibilitando o surgimento de desequilíbrios
na região. Outro argumento constantemente utilizado por aqueles que rejeitam a
candidatura brasileira, inclusive alguns membros do P5, relaciona-se com as grandes
disparidades do país, relacionadas à má distribuição de renda e à pobreza, além das
denúncias de violação dos direitos humanos. Todavia, a presidente brasileira
reconhece tais problemas em seu discurso, mas assegura que todos os países, em
maior ou menor medida, sofrem com “o autoritarismo, a miséria, a pena capital, a
discriminação”, que seriam “algozes dos direitos humanos”. Por isso, o Brasil
condena quaisquer atitudes de um ou mais Estados que possam levar à violação dos
direitos humanos, conforme veremos ao analisar a “responsabilidade ao proteger”.
Desse modo, os argumentos pessimistas baseados na alegação de violações não são
suficientes para barrar uma possível entrada do país no grupo dos membros
permanentes do Conselho de Segurança.
Por todo o exposto, podemos afirmar que a reforma do Conselho de Segurança
das Nações Unidas parece ser a solução mais justa e eficaz para que a sociedade
internacional enfrente os novos desafios do mundo pós-Guerra Fria. Apesar da
complexidade do tema, é possível verificar mudanças graduais, porém lentas, de
posições das potências inseridas no P5. Um bom exemplo dessa transformação, no
caso específico de nossa análise, é a posição dos Estados Unidos, que em 1994 eram
contra a entrada do Brasil no grupo dos membros permanentes, porém, dez anos
18 VELASCO Jr., Paulo A, op. cit. p. 59
depois, já se mostravam favoráveis à ideia. Por fim, o discurso da presidente Dilma
Rousseff acerca da reivindicação brasileira por um assento permanente no Conselho
de Segurança pode ser sintetizado por sua vontade de que a reforma procure refletir o
mundo contemporâneo tal como ele é.
3. O Brasil diante das intervenções humanitárias
Outro ponto levantado pela presidente em seu discurso na Assembleia da ONU foi
aquele relativo ao posicionamento brasileiro diante das intervenções internacionais
baseadas no princípio da responsabilidade de proteger (R2P, em inglês).
Mencionando os levantes da Primavera Árabe, Rousseff expressou sua solidariedade
para com as populações que buscavam a emergência de uma ordem democrática e
social justa. Ao mesmo tempo, salientou seu posicionamento contrário a ingerências
externas irresponsáveis nesses contextos de instabilidade política, dado os efeitos
perversos que poderiam gerar. Nesse sentido, ela propõe que as ações internacionais
em defesa de populações civis, submetidas a governos que não querem ou não são
capazes de resguardar seus direitos humanos, sejam pautadas por uma
“responsabilidade ao proteger”.
Os levantes da Primavera Árabe, que despontaram no cenário internacional ao
longo de 2011, suscitaram diferentes respostas da sociedade internacional. Assim,
vislumbram-se casos em que se apoiou retórica e diplomaticamente as reivindicações
populares contra os regimes em vigor (como no caso do Egito e da Tunísia), mas
também estas foram por vezes ignoradas (como no caso do Bahrein). Houve ainda
posicionamentos internacionais mais diretamente contrários aos governos autoritários
instalados, buscando intervir para o fim dos conflitos internos através de uma ação
militar direta, como no caso Líbia, ou através da imposição de sanções, como no caso
da Síria.
Poucos meses antes do pronunciamento de Dilma na abertura da Assembleia
Geral, o Brasil havia explicitado seu posicionamento contrário à iniciativa de
autorizar uma intervenção na Líbia sob o capítulo VII da Carta da ONU19. Apesar da
abstenção brasileira, a Resolução 197320 foi aprovada no mês de março, e, ainda que
não se apresentasse literalmente como pautada no princípio do R2P, refletia seu
conteúdo ao permitir o emprego de “todas as medidas necessárias” para proteger os
civis dos ataques do governo de Muammar al-Gaddafi.
A declaração feita pela embaixadora Maria Luisa Viotti, representante
permanente do Brasil junto à ONU, na sessão do Conselho que aprovou a referida
Resolução foi bastante explícita em se opor a esse tipo de intervenção armada,
afirmando que:
Estamos (...) preocupados com a possibilidade de que tais medidas tenham os efeitos involuntários de exacerbar tensões no terreno e de fazer mais mal do que bem aos próprios civis com cuja proteção estamos comprometidos.21
Essa linha de conduta empregada pelo Brasil e sua proposição pela busca de uma
“responsabilidade ao proteger” têm gerado repercussões internacionais, o que se
reflete na mídia estrangeira. A seguir, buscaremos apresentar brevemente essas
repercussões, efetuando antes, porém, uma análise de como essa formulação se
relaciona com o princípio da não indiferença, defendido anteriormente pelo ministro
Celso Amorim durante os governos do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva.
19 O capítulo VII , sob o título “Ação Relativa a Ameaças à Paz, Ruptura da Paz e Atos de Agressão”, estabelece a possibilidade do CS aprovar que se leve a cabo “por meio de forças aéreas, navais ou terrestres, a ação que julgar necessária para manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais.” L.cO texto da Carta da ONU está disponível em http://unicrio.org.br/img/CartadaONU_VersoInternet.pdf (último acesso em maio, 2012) 20O texto da Resolução encontra-se disponível em: http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N11/268/39/PDF/N1126839.pdf?OpenElement (acesso em maio, 2012). 21Ministério das Relações Exteriores. “Aprovação da Resolução 1973 do Conselho de Segurança da ONU sobre a Líbia”, Nota Nº 103.http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/aprovacao-da-resolucao-1973-do-conselho-de-seguranca-da-onu-sobre-a-libia (acesso em maio 2012)
O princípio da não indiferença surgiu na África (SEITENFUS, ZANELLA &
MARQUES, 2007) a partir do massacre deflagrado em Ruanda, em 1994, no qual se
estima que teriam morrido cerca de um milhão de pessoas. A postura
internacionalmente consentida então apontava para a não intervenção em assuntos
internos dos países, respeitando sua condição soberana; o que pareceu, naquele
momento, inconveniente diante da tragédia humanitária e da real incapacidade de
países africanos, como Ruanda, de sustentarem sua condição como efetivamente
“soberanos”. A partir de então, estes países, reunidos na recém-instituída União
Africana (UA), passaram a adotar um novo corpo doutrinário para a política regional,
pautado no princípio da não indiferença, permitindo a intervenção em um Estado
africano em casos de golpe de Estado ou de circunstâncias humanitárias graves.
Ainda segundo SEITENFUS et al. (2007), a partir do governo Luís Inácio
Lula da Silva, o Brasil passa a sinalizar – dentre outras inflexões com o que vinha
sendo empreendido pelo governo anterior – que esse tipo de lógica solidária também
seria empregada pela política externa do país. A atitude de ruptura, nesse aspecto,
ultrapassa a relativa ao governo anterior, abrindo caminho para uma flexibilização do
princípio da não intervenção, consolidado desde a gestão do Barão do Rio Branco. A
participação brasileira na Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti
(MINUSTAH) foi justificada oficialmente pela chancelaria brasileira no governo Lula
como baseada no princípio da não indiferença, o que se exemplifica no seguinte
trecho da declaração proferida por Celso Amorim em 2010, durante a Sessão Especial
do Conselho de Direitos Humanos sobre o Haiti:
O respeito pela autodeterminação em conjunção com a decisão de ajudar aqueles extremamente
necessitados é o que chamamos de “não-indiferença", princípio que não afeta a não-intervenção,
mas traz nova perspectiva sobre ela.
Após ter visitado o Haiti nove vezes desde 2004, posso garantir: a não-indiferença trouxe
resultados em termos de maior segurança, de reforço da governança democrática, de progresso
sócio-econômico e de maior autoconfiança.”22
22Ministério das Relações Exteriores. “Discurso do Ministro Celso Amorim por Ocasião da Sessão Especial do Conselho de Direitos Humanos sobre o Haiti- Genebra, 27/01/2010”.
A partir disso, pode-se pensar a proposta feita por Dilma em seu discurso no que
concerne a “responsabilidade ao proteger” como uma atualização do pensamento e
posicionamento brasileiros diante de situações humanitárias drásticas. Todavia, as
linhas gerais da não indiferença foram mantidas, sobretudo no tocante à resistência
em intervir pela força. A diplomacia brasileira, tanto no governo Lula como no atual,
procurou não romper com o princípio de respeito ao direito internacional e à
soberania dos Estados, já que, como salienta Mariana Kalil (KALIL, 2011) e Kai
Kenkel (KENKEL, 2012), o Brasil tem buscado se envolver somente em missões de
manutenção de paz cujo limite de atuação seja o Capítulo VI da Carta da ONU. Outro
fator que a presidente critica, e que afastaria o Brasil de apoiar intervenções que
prevêem o uso da força em nome do R2P, é a falta de representatividade do Conselho
de Segurança (CS) enquanto instância decisória. Nesse sentido, a ausência de
legitimidade das decisões tomadas no âmbito do CS, dada a sua rígida configuração
desde o pós-Segunda Guerra Mundial, relaciona-se à demanda brasileira pela reforma
desse órgão, discutida anteriormente.
A responsabilidade de proteger foi proposta inicialmente em 2001, por um
relatório elaborado pela International Comission on Intervention and State
Sovereignty (ICISS)23, e tinha como motivação tentar evitar a repetição de genocídios
como aqueles verificados em Camboja, Ruanda e Bósnia. Quatro anos depois, o
World Summit da ONU resultou em um acordo entre os Estados (Resolução 60.1 da
AG24), pelo qual eles se comprometeriam com o R2P, implicando que a soberania dos
Estados passaria a ser considerada a partir da responsabilidade de proteger suas
populações de sérias violações de direitos humanos e quadros humanitários graves. A
http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/discursos-artigos-entrevistas-e-outras-comunicacoes/ministro-estado-relacoes-exteriores/494723400879-discurso-do-ministro-celso-amorim-por-ocasiao-da (acesso em maio 2012) 23ICISS “The Responsability to Protect”, dezembro de 2001. http://responsibilitytoprotect.org/ICISS%20Report.pdf (último acesso em maio 2012) 24General Assembly. “Resolution adopted by the General Assembly -60/1. 2005 World Summit Outcome”. http://unpan1.un.org/intradoc/groups/public/documents/un/unpan021752.pdf (acesso em maio 2012)
comunidade internacional deveria apoiar os Estados a cumprir essa tarefa e, quando
não fosse viável pela via pacífica, deveriam garantir a proteção da população contra
as violações e crimes de seu próprio governo através, em última instância, do
emprego coletivo da força autorizado pelo CS sob o Capítulo VII.
Quando da emergência do conceito, em 2001, o Brasil se posicionou de forma
claramente contrária à implantação do princípio no plano internacional. Como
assinalado acima, este ia de encontro aos valores estimados pela política externa
brasileira, tais como a não ingerência, o respeito à soberania dos Estados e a solução
pacífica das controvérsias. O uso da força previsto nesse novo conceito em debate
repelia o apoio da diplomacia nacional, que historicamente enfatiza a necessidade de
se investir na diplomacia e na negociação. A questão de a decisão do emprego da
força recair sobre uma instância que o Brasil não julga como verdadeiramente
multilateral e justa também pesa na oposição do país à operacionalidade do R2P.
Entretanto, como analisa Kenkel (2012), nos últimos anos, mais precisamente
desde 2005, o Brasil tem se inserido mais no debate acerca do R2P. Para o autor, essa
mudança na postura brasileira pode ser explicada pela sua condição de potência
emergente, o que expande suas considerações ao nível global e dificulta seu
isolamento em tais debates multilaterais. Rompendo com sua oposição inicial, o país
chega em 2011 à elaboração de uma proposta própria acerca do assunto, com a
“responsabilidade ao proteger”, lançada inicialmente no discurso aqui estudado.
Ao discurso da presidente na Assembléia Geral seguiu-se, dois meses depois,
no âmbito do Conselho de Segurança, a veiculação de um artigo conceitual elaborado
pelo chanceler Antonio Patriota em que ele desenvolve o conceito de
“responsabilidade ao proteger”25. Em linhas gerais, propõe-se que se estabeleçam
parâmetros para que uma intervenção militar em nome do R2P seja levada a cabo.
Para que esses parâmetros sejam implementados de fato, são necessários mecanismos
de monitoramento para que o mandato não seja extrapolado. Nas entrelinhas, critica-
se a intervenção na Líbia, que ultrapassou seu objetivo explícito de impor uma zona
25 United Nations Security Council. “Agenda items 14 and 117”. Disponível em: http://www.un.int/brazil/speech/Concept-Paper-%20RwP.pdf (acesso em maio 2012)
de exclusão aérea e se envolveu na guerra civil até obter a derrota definitiva de
Gaddafi, com seu assassinato. Dentre os parâmetros propostos, encontram-se o
recurso à força como última opção, ênfase na prevenção, limitações ao emprego da
força, proporcionalidade nas repostas, equilíbrio das conseqüências e prestação de
contas.
Assim como ao defender o princípio da não indiferença, a “responsabilidade
ao proteger” demonstra a preocupação da política exterior com violações graves de
direitos humanos, ao mesmo tempo em que procura impedir que esse tipo de
consideração abra espaço para a criação de um droit d’ingérence internacional, que
menospreza a soberania dos Estados e permite intervenções inconsequentes. Ao se
posicionar como potência emergente, o Brasil busca influir nesse debate premente na
agenda internacional, renovando seu vocabulário e atualizando sua conduta sem
perder de vista os princípios supracitados.
A proposta brasileira tem ganhado notoriedade internacional, em geral
positiva, o que se visualiza em alguns artigos midiáticos. A matéria veiculada em The
Guardian intitulada “Welcome to Brazil's version of 'responsibility to protect26'” é
bastante elogiosa à diplomacia que o Brasil vem desenvolvendo e que contribui para
discussões acerca de R2P em meio a dilemas como o enfrentado atualmente na Síria.
Na revista Foreign Policy27, o conceito brasileiro foi reconhecido como um indicativo
de que é necessário incluir os países do sul global para que as discussões e ações
internacionais acerca das intervenções humanitárias sigam em frente. A The
Economist28
já se posiciona na contramão dessas análises, publicando uma matéria
sobre as relações Brasil-EUA (no contexto da visita de Rouseff à Casa Branca), na
qual pontua seu ceticismo diante da nova proposta brasileira, já que o país não 26 The Guardian “Welcome to Brazil's version of 'responsibility to protect”. 10/04/2012. Disponível em: http://www.guardian.co.uk/commentisfree/cifamerica/2012/apr/10/diplomacy-brazilian-style.(acesso em abril 2012) 27 Foreign Policy. Syria’s Crisis and the Future of R2P. 16/03/2012. Disponível em: http://mideast.foreignpolicy.com/posts/2012/03/16/syrias_crisis_and_the_future_of_r2p (acesso em maio 2012) 28The Economist. Dilma Rousseff's visit to America: Our friends in the South. 07/04/12. Disponível em: http://www.economist.com/blogs/democracyinamerica/2012/04/dilma-rousseffs-visit-america (acesso em maio 2012)
costuma participar de intervenções que prevêem o uso da força e, que, assim, a
proposta não traria mudanças concretas de política externa.
Por fim, em meio ao debate suscitado pela proposta do governo Rousseff,
chama atenção também a matéria lançada em Project Syndicate29. Nela, Gareth
Evans, um dos principais mentores da doutrina de R2P no âmbito da ONU, enfatizou
a importância daquilo que o Brasil estava propondo como uma nova perspectiva a ser
considerada e desenvolvida pelos Estados para que uma ação conjunta possa ser mais
coerentemente encaminhada. Somente assim, para Evans, seria possível dar
prosseguimento ao caminho que vinha sendo trilhado pelos Estados no sentido de
impedir que atrocidades como as verificadas nos anos 1990 se repitam em meio à
inação global.
Considerações finais
Procuramos, através de uma análise do discurso de Dilma Rousseff na abertura da 66ª
Assembleia Geral da ONU, ressaltar pontos centrais concernentes à política externa
de seu governo. Em um momento em que o Brasil fortalece sua posição de potência
emergente, o país busca participar de maneira mais ativa e autônoma dos debates
globais, marcando sua posição e defendendo vias próprias para lidar com questões
que atravessam fronteiras. Nesse sentido, identificamos no discurso a perspectiva
brasileira para lidar com a crise econômica internacional, a proposta por uma
“responsabilidade ao proteger” e a reiteração da demanda por uma reforma do
Conselho de Segurança da ONU como questões nas quais o país busca influir de
maneira direta na arena global e que definem posicionamentos da política externa
brasileira no governo Dilma Rousseff.
A crise econômica global tem destaque em sua fala, que busca ressaltar a
perspectiva privilegiada de um país que continua crescendo em meio a um quadro de
29 Evans, Gareth. Responsability While Protecting. Project Syndicate, 27/01/12. Disponível em: http://www.project-syndicate.org/commentary/responsibility-while-protecting (acesso em abril 2012)
recessão e estagnação em grande parte dos países ricos. Assim, salientamos que as
ponderações, propostas e alternativas lançadas por Rousseff para lidar com a crise
mostram-se condizentes com o modelo do Estado logístico, já que, reconhecendo a
interconectividade entre as economias num contexto mundial globalizado, prega-se
uma participação do Estado para viabilizar o desenvolvimento socioeconômico.
No palco dos debates políticos e securitários internacionais, procuramos
fornecer um exame da defesa brasileira por uma “responsabilidade ao proteger” e da
necessidade de se reformar o Conselho de Segurança da ONU, temas estes
intimamente interligados. A diplomacia brasileira que, no governo anterior, pautava
seu posicionamento diante de intervenções humanitárias no princípio da não
indiferença, recicla seu vocabulário e adapta-o às novas discussões através da defesa
da “responsabilidade ao proteger”, sem abrir mão de sua contrariedade a intervenções
armadas arriscadas. A essa demanda, soma-se à da reforma do Conselho de
Segurança, mudança necessária para torná-lo efetivamente representativo ao incluir
membros permanentes provindos do mundo em desenvolvimento. Sem uma reforma
desse porte no Conselho, não haveria, segundo a diplomacia brasileira, como
encaminhar intervenções aprovadas em seu âmbito sob a justificativa da
responsabilidade de proteger populações civis de governos violentos e violadores dos
direitos humanos.
Em um momento em que o Brasil ocupa a posição de sexta maior economia
mundial, a política externa do governo Dilma busca demarcar os posicionamentos do
país nas discussões globais e influenciar na definição da agenda dos debates. Por fim,
percebe-se que embora mantenha uma linha de atuação mais discreta, se comparada a
do seu antecessor, podemos evidenciar atitudes e posicionamentos do governo
brasileiro que repercutem na pauta de discussões globais e na mídia.
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