O Enigma Blavatsky - José Rubens Siqueira

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José Rubens Siqueira é um autor, tradutor, diretor teatral, cenógrafo e figurinista brasileiro. Ganhou destaque no teatro paulista a partir dos anos 1980

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    O ENIGMA BLAVATSKY

    de Jos Rubens Siqueira

    Direitos autorais registrados na Biblioteca Nacional sob no. 286.254

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    ABERTURA

    Diante da cortina fechada, uma longa mesa de conferncias coberta por uma pesada toalha de

    tapearia com franjas.

    Cinco cadeiras de espaldar alto atrs da mesa, de frente para o pblico.

    No centro, no cho junto mesa, um grande arranjo de flores naturais.

    Platia meia luz para a entrada do pblico.

    No h msica de espera.

    O que se ouve uma trilha sutil de rudo ambiente que, quase subliminar, contamina o

    ambiente com a sensao do sculo dezenove: o crepitar das rodas de uma carruagem e o

    bater dos cascos dos cavalos no calamento, vozes que passam e se distanciam, um cachorro

    que late ao longe, o bufar de um jato de vapor de alguma caldeira de aquecimento, etc.

    Depois de algum tempo de entrada do pblico, uma criada de libr entra no palco com uma

    bandeja, coloca sobre a mesa uma jarra de gua, distribui copos frente das cadeiras, sempre

    timidamente controlando a platia com o olhar. Sai.

    Depois de algum tempo, entra um jovem empertigado, distribui maos de folhas de papel sobre

    a mesa, olha a platia, sorri para algum, acena formalmente com a mo. Sai.

    Depois de mais algum tempo, a criada uniformizada retorna, confere as flores, ajeita a toalha,

    a cortina.

    Entram quatro homens, com o formalismo das roupas ocidentais de final do sculo dezenove:

    Olcott, Maitland e Sinnett. E um jovem indiano, altivo e srio, Mohini.

    A criada, tmida, sai depressa

    Entra uma mulher muito bonita e elegante, com um vestido preto e amarelo que parece as zebras

    da criao do Raj do Kashmir... rosas no cabelo que como um pr de sol flamejante, amarelo

    dourado.... e tilintantes brincos de lua crescente.

    Anna Kingsford, a Divina Anna.

    Olcott ocupa o lugar central, Anna sua direita.

    Todos se sentam, menos Olcott.

    Ele olha a platia e levanta as mos em um gesto sereno, pedindo que o pblico sente e se

    aquiete.

    As luzes da platia baixam de intensidade.

    Olcott dirige-se aos espectadores com voz mansa e firme.

    OLCOTT Senhoras e senhores, boa noite. Na qualidade de presidente da Sociedade

    Teosfica, meu dever era dar soluo controvrsia surgida na Loja de Londres

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    nos ltimos meses, envolvendo a ento presidente Mrs. Anna Kingsford e seu

    grupo, defendendo, de um lado, a superioridade dos ensinamentos egpcio-cristos,

    e Mr. Sinnett e os demais membros, fiis ao conhecimento indiano dos Mahatmas.

    Realizei uma consulta por carta a todos os membros e com alvio e prazer que

    vamos dar incio a esta reunio que tem por finalidade confirmar a eleio da

    diretoria do ramo britnico da nossa associao: Mr. Gerard Brown Finch,

    presidente, Mr. Alfred Percy Sinnett, vice-presidente e secretrio, e Miss Francesca

    Arundale, tesoureira. (a cada nome, gravao de vozes de protesto na platia,

    Olcott reage, abre as mos num gesto pedindo silncio) Depois de discutir...

    (vozerio na platia) Depois de discutir longamente com Mr. Charles Massey,

    amigo sincero da ex-presidente, Mrs. Anna Kingsford, e meu amigo tambm,

    propus a formao de um ramo independente que ser chamado de Sociedade

    Teosfica Hermtica (crescem as vozes vindas da platia)... a ser chefiado por ela e

    que dar continuidade aos estudos sobre o Cristianismo esotrico...

    ANNA (sorri, irnica) Por favor... (levanta-se, mais comoo na platia, um ou outro

    aplauso. Ela fala para o pblico) Gostaria de dizer que eu, Anna Kingsford, no

    tenho quaisquer poderes ocultos. (risos na platia) Nem sou clarividente. Sou

    apenas uma profetisa - algum que v e aprende intuitivamente, e no pela

    utilizao de qualquer faculdade treinada. Tudo que recebo me vem por

    iluminao. E esse dom nasceu comigo. (aplausos) Durante o meu breve

    perodo na presidncia, fiz o mximo ao meu alcance para tornar nossa Loja de

    Londres realmente influente, para reconstruir a religio numa base cientfica, e a

    cincia numa base religiosa, independentes de qualquer autoridade absoluta

    exterior. imprudente a nossa Sociedade se apresentar agora diante do mundo com

    a aparncia de uma seita, tendo os Mahatmas, ou Adeptos, ou Mestres de

    Sabedoria, como chefes supremos a quem se atribui poderes sobre-humanos de

    grandeza.

    SINNETT No, no, no. Ningum atribui o poder dos Mahatmas. inegvel que so

    mestres de sabedoria.

    ANNA - Inegvel no! Um ensinamento pode at vir da fonte alegada, mas quem garante

    que, na transmisso, esse conhecimento no alterado pelo receptor at ser

    totalmente deturpado?

    MOHINI Mrs. Kingsford no acredita, no tem o menor respeito pelos Irmos.

    OLCOTT Senhores, por favor...

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    ANNA - (para Mohini) No verdade que eu no acredito. S penso que preciso

    verificar as informaes. (para Sinnett) Por mais que eu estime o senhor, Mr.

    Sinnett, acho que um erro aplicar no nosso pas a mesma poltica que est sendo

    seguida pela Sociedade Teosfica na ndia. L, o conhecimento sobre os Adeptos

    uma coisa comum e essa poltica pode servir, mas em Londres esta conduta faria a

    Sociedade ser considerada um sistema que, para a mentalidade protestante daqui,

    muito parecido com o sistema catlico de mentores e confessores, com a exigncia

    de submisso ao superior, ao guru, ao Mahatma. Isso no sensato num pas onde

    o olho da crtica e da zombaria est sempre atento a qualquer novo movimento.

    SINNETT Ora...

    OLCOTT Senhores, tudo isso j foi discutido...

    ANNA - Isso vai acabar com a nossa esperana de chamar a ateno dos lderes de

    pensamento e de cincia, cuja cooperao inestimvel para ns. No queremos a

    Sociedade Teosfica comprometida s com o Orientalismo, com o bramanismo,

    com o budismo, mas sim com o estudo de todas as religies esotericamente.

    SINNETT Com a sua proposio a Loja de Londres corre o risco de se transformar em uma

    gelia, um grupo amorfo, sem identidade.

    MOHINI - Por isso que, desde o comeo, HPB foi contra a sua nomeao.

    Do fundo da platia, ouve-se uma voz grave feminina.

    VOZ - isso mesmo.

    Todos olham na direo de onde veio a voz.

    Pelo corredor, avana vigorosamente uma senhora muito corpulenta, vestida de preto.

    Todos mesa se levantam.

    Precipitadamente, Mohini salta para a platia e corre at a mulher.

    No corredor da platia, atira-se aos seus ps, deitado de cara no cho.

    A mulher se detm um instante, toca nele com a bengala e segue para o palco.

    Contrariado, Olcott abre os braos num grande gesto.

    OLCOTT Permitam que eu apresente Loja de Londres como um todo - Madame

    Blavatsky.

    Rudo de grande alvoroo na platia.

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    Mohini ajuda Madame Helena Blavatsky a subir penosamente para o palco.

    Uma mulher elegante vem correndo pelo corredor da platia.

    ELEGANTE - Madame! Madame!

    No meio da escada, apoiada em Mohini, Madame Blavatsky gira o corpo pesado com

    dificuldade e olha.

    A Mulher agarra sua mo e beija, devotamente. Em prantos, volta para o seu lugar.

    Helena tem um gesto de impacincia e batalha vigorosamente para subir ao palco.

    Olcott e Sinnett vm ao proscnio receb-la.

    Ela usa o apoio deles para se equilibrar e empurra os dois.

    Abre-se o espao para Anna Kingsford avanar at ela.

    Madame Blavatsky abre os braos.

    Anna desaparece nas dobras de tafet negro de seu abrao.

    Madame Blavatsky mantm Anna sob seu brao.

    BLAVATSKY - No, no. No diga nada. Eu estou simplesmente cumprindo a vontade de

    meu Chohan. A sua luta contra a vivisseco de animais e a sua dieta estritamente

    vegetariana, conquistaram completamente o nosso Mestre, sempre to severo. Foi

    ele quem props e elegeu Anna Kingsford como a nica Salvadora da Sociedade

    Teosfica Britnica. Bom, agora agradea a ele. Porque eu sabia desde o comeo

    que ia acabar nesta confuso. Eu no conhecia voc e pensava o tempo todo: que

    fmea esnobe insuportvel, que quer ser o Apstolo da Filosofia Esotrica Oriental

    e Ocidental na Europa. Por que, por que, a mstica do sculo tem que usar tantas

    jias? Como pode confabular com os deuses invisveis quando parece a vitrina de

    uma joalheria inglesa em Dlhi? Bom, voc me foi mostrada no plano astral. To

    bonita, as bochechas rosadas, os lbios vermelhos, e um nariz que fica mais largo

    quando fala. Eu pensei assim: ela fascinante... Mas continuei protestando at o

    fim, at que o meu Patro Morya me chamou de chata, de fmea de viso curta e

    me mandou calar a boca, uma expresso muito elegante que ele deve ter pegado do

    estoque de palavras ianques do Olcott ali (aponta Olcott, que assiste rgido,

    reprovador). O Mestre nunca me disse que eu estava errada, mas simplesmente que

    a Kingsford vestida de zebra tinha sido escolhida por Kut Humi e que Kut Humi

    sabia o que estava fazendo. Mesmo assim, escrevi para Sinnett (volta-se para

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    Sinnett): "Estamos fritos. Estamos fritos, sem esperana de salvao", no foi?

    (Sinnett no consegue esconder um sorriso)

    Acaricia o cabelo loiro de Anna, brinca com seu brinco, carinhosa, perigosa, dbia.

    No deu certo o meu plano de tirar de cena voc, a "Divina Anna", uma criatura

    egosta, ftil, medinica, que gosta demais de adulao, de vestidos, de jias

    cintilantes...

    Solta Anna com um gesto brusco que quase a derruba, fala para a platia, indicando Anna

    com um gesto largo.

    Como posso encarar uma Sociedade onde alguns membros alimentam essa

    desconfiana ofensiva com os Mestres e expressam esses pensamentos por escrito?

    por isso que eu no queria vir a Londres. Eu sabia que ia acabar arrebentando as

    barreiras do cu e do inferno, que ia explodir feito uma granada. No consigo

    manter a calma. Secretei e acumulei blis por mais de seis meses durante esta

    confuso cristianismo-budismo, Anna Kingsford-Sinnett, e calei a minha boca.

    Mas eu no nasci para a carreira diplomtica. Eu entorno o caldo. Eu... (ela corta a

    frase, como se tivesse sido interrompida e olha um ponto fixo no fundo da platia,

    suspendendo tudo por um breve instante. Todos aguardam, imveis. Ela retoma o

    discurso:) Cinqenta anos eu... (interrompe-se de novo, olha o mesmo ponto ao

    longe. Anna Kingsford olha tambm. A luz do palco diminui de intensidade.

    Retoma:) A minha vida inteira dedicada Sociedade Teosfica... (cala-se, olha o

    ponto ao longe, ouvindo o que lhe falam do nada. A luz do palco diminui mais,

    Sinnett e Mohini, recuam imperceptivelmente at sarem de cena. Madame

    conversa com o invisvel:) No, no... Certo. A minha vida inteira eu dediquei ao

    oculto. (explode, subitamente enfurecida, sem gritar, porm) No posso desistir

    agora e entregar a Sociedade Teosfica nas mos de... o meu esforo de muitos

    anos, o objetivo da minha vida, fruto de...

    Ela se cala e escuta.

    A luz do palco baixa ainda mais.

    Ao longo da fala seguinte de Madame Blavatsky, Anna Kingsford vai recuando

    imperceptivelmente at sair de cena, sem ser vista, no escuro.

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    S Madame Helena Blavatsky fica, dentro de um foco.

    Na penumbra, por mgica, a mesa desaparece debaixo da toalha que cai ao cho como um

    balo esvaziado e desaparece por baixo da cortina.

    A flores do arranjo se desmancham, formando um tapete que se espalha por todo o palco at

    desaparecer.

    O palco fica vazio.

    Helena Blavatsky escuta o invisvel que lhe fala de um ponto ao fundo da platia.

    Imperceptivelmente, muito lentamente, comea a soar msica, por baixo da fala dela.

    BLAVATSKY - O que? Eu sou difcil? Sou rude? Falo demais? No controlo o que penso, o

    que sinto? Mestre? (escuta, sempre olhando o infinito ao fundo da platia, as

    lgrimas correndo pelo rosto, sem soluar, porm) O que mais querem de mim?

    Que eu no seja eu? At hoje no passei de... uma agente submissa. Fiel

    mensageira. Desde criana vivendo entre dois mundos. Trs vezes dei a volta ao

    mundo, vestida de homem, sozinha tantas vezes, de navio, de trem, carroa, a

    cavalo, a p, dormindo ao relento, sem comer, sem beber... (escuta) Para entender...

    E agora... acho... que no entendi nada. Nada. Para que tudo isto? (longo tempo em

    silncio, d quase para ouvir a msica, mas ainda no se tem certeza se h msica.

    Algo muda dentro de Helena Blavatsky, ela escuta de ainda mais longe) Ie... Ka...

    Te... Iekaterinoslav... O Dnepr prateado, o mar... Negro...

    Quase imperceptvel, muito oscilante, como um filme muito antigo e escuro, a projeo de uma

    imagem pisca, quase invisvel, sobre toda a sala de espetculos, transbordando do palco sobre

    as paredes laterais, sobre o pblico das primeiras filas: um lento vo sobre uma paisagem

    russa de pinheiros em torno de um rio prateado que desemboca no mar, raras casas brancas

    pontuando as rvores aqui e ali.

    o comeo do delrio, do carrossel de imagens que narraro o incio da vida de Helena

    Blavatsky.

    Sobre a imagem quase invisvel da paisagem giram, flutuando, mulheres muito brancas de

    longos cabelos verdes, que logo se transformam em silhuetas verdes como rabiscos de fsforo,

    girando, girando, danando no ar.

    BLAVATSKY Russalka... russalka... russalka... eu no tenho culpa... no, no... eu tinha s

    quatro anos... (feroz como uma criana feroz ao imitar um monstro) eu chamo a

    russalka e ela vai fazer ccega e voc vai dar risada at morrer, , sim, vai dar

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    risada at morrer, o menino ficou com medo, pobrezinho, caiu no rio, acharam o

    corpo dele...

    Cinco ou seis servos vestidos com roupas russas caractersticas irrompem no palco cantando

    uma cano folclrica.

    Trazem tochas acesas, danam passos marcados e fortes.

    Cercam Helena Blavatsky, carregam-na nos ombros dos dois homens mais altos, do um breve

    giro com ela pelo palco.

    Uma mulher segue frente abraando ao peito um grande mao de ervas, aspergindo gua

    benta com a outra mo.

    Outra mulher, pobremente vestida, agarra a mo de Helena Blavatsky:

    SERVA (sussurra em russo) Sedmitchka, sedmitchka, proteo, menina-sedmitchka, para

    meus filhos e meu marido. No deixe nenhum domovoy roubar nossa comida,

    nenhum drasgo levar minha menina, ela tem a sua idade...

    BLAVATSKY (traduzindo ao mesmo tempo, as duas falando juntas) ...proteo, menina-

    sedmitchka, para meus filhos e meu marido. No deixe o domovoy roubar nossa

    comida, nem o drasgo levar minha menina, ela tem a sua idade...

    Os homens a pousam no cho.

    BLAVATSKY - (ordena em russo) Domovoy vai embora, drasgo no pega a filha dela...

    Todos saem, a cano russa cessa.

    A vasta projeo subitamente explode em som violento e imagem brilhante: a paisagem da

    estepe aberta vista de cima de um cavalo que galopa velozmente, rudo de cascos no cho de

    pedras, do resfolegar do animal, vozes masculinas gritando comandos.

    BLAVATSKY Pp... Papai que manda! Tambores, trombetas, carros, canhes, soldados

    (em russo) Seeeentido! (risos masculinos) Coronha, coice, delgado, fuste, cano,

    gatilho, cilindro, percussor, manejo, guia do co, noz do co, co, as peas de um

    fuzil so! Preparar! Apontaaar! Fogo! (mais risos masculinos)

    O campo do galope na vasta projeo transforma-se em um redemoinho de folhas secas.

    Sopra o vento, zunindo.

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    BLAVATSKY Mamuchka, mamuchka...

    A Me, num foco ao fundo, sentada a uma pequena escrivaninha, escrevendo, tossindo sem

    som.

    ME - A posio da mulher, colocada acima da turba pela prpria Natureza, a posio da

    mulher desesperadora. O monstro de cem cabeas da opinio pblica est sempre

    pronto a dizer que ela imoral, a jogar lama em seus mais nobres sentimentos... e a

    mulher acaba sendo considerada uma criminosa, rejeitada pela sociedade.

    BLAVATSKY Escreva, Mamuchka, escreva os seus livros to famosos. Mas no v embora,

    no morra, Mamuchka, no morra. Eu no desmaio mais, no ando mais dormindo.

    No fujo mais de casa. Juro!

    Enquanto ela fala, o foco da Me vai morrendo muito lentamente.

    A projeo avana sobre uma larga avenida arborizada de uma cidade antiga.

    Uma Governanta mais velha atravessa o palco ao fundo, falando.

    GOVERNANTA Com esse gnio no vai encontrar nunca homem que queira casar com

    voc! Nem aquele corvo velho do Blavatsky! (sai)

    BLAVATSKY Pois eu fao ele me pedir em casamento a hora que eu quiser. Hoje at!

    Ouve-se msica sacra muito ao longe.

    A projeo avana agora pelo corredor de uma igreja antiga, iluminada, decorada com flores.

    Nikifor Blavatsky entra, solene, com um buqu de flores, ajoelha-se diante dela, ela pega as

    flores.

    Pelo outro lado, a Governanta entra trazendo um vu de noiva.

    Coloca o vu na cabea de Helena Blavatsky.

    BLAVATSKY (ri, cochicha, moleca) Viu?

    A Governanta sai.

    Ouve-se a voz de um Padre, gravada, remota, da memria:

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    PADRE - Ielena Petrovna von Hahn aceita Nikifor Vassilyevitch Blavatsky como seu

    legtimo esposo e na riqueza e na pobreza, na sade e na doena, honrar e respeitar,

    e em tudo obedecer...

    BLAVATSKY (baixo, firme, mas sem provocao) Obedecer? No. Obedecer, no!

    Ela tira o vu e deixa cair ao cho, derruba mansamente o buqu.

    Nikifor Blavatsky pega do cho o vu, olha intensamente para Helena.

    Confusa, ela tapa a boca com uma mo, estende a outra mo para o rosto dele.

    BLAVATSKY Blavatsky, posso aceitar o seu nome, mas entenda, no posso obedecer...

    Tenho outro Mestre e senhor. Terei.

    Levando o vu e o buqu, Nikifor Blavatsky recua e sai.

    Helena Blavatsky est sozinha.

    Explode a msica, emocional, pungente, aberta, misturando ritmos e sonoridades do mundo

    inteiro.

    A projeo se expande ainda mais, voando rasante sobre diversas regies e paisagens da

    Terra:

    florestas tropicais, picos nevados, plancies, sobre cidades e desertos, sobre a terra e sobre o

    mar.

    Madame Blavatsky inclina o corpo para a frente como se flutuasse ao vento, na proa de um

    navio.

    BLAVATSKY (entoa, quase canta) - Iekaterinoslav, Odessa, So Petersburgo,

    Romankov, Oskol, Astrakhan, Poltava,

    Saratov, Malarossa, Gorov, Tiflis,

    Baku, Gerger, Ierevan, Kamenka,

    Poti, Kertch, Taganrog,

    Constantinopla

    a Sria, a Turquia

    o Egito

    a Grcia

    Paris

    Londres...

  • 11

    A projeo flutua em alta velocidade sobre Londres.

    A msica cessa num tombo.

    A luz do palco se acende, Helena Blavatsky vira as costas para a platia.

    No centro do palco, caminhando num passo cadenciado e irreal, no em cmara lenta, no

    marchando, mas com o movimento entrecortado, staccato, passa uma comitiva de prncipes

    indianos luxuosamente vestidos.

    Um deles, mais alto que os demais, o Mestre, vira a cabea e olha para Madame Blavatsky.

    Todo o corpo dela reage ao olhar dele, ela d um passo na direo dele.

    O indiano faz um gesto suave e se detm no centro do palco.

    Madame Blavatsky gira, fica de frente para a platia: est tomada de uma tremenda alegria,

    transportada para um espao sagrado.

    Os prncipes saem, o Mestre avana at ela, entra no foco.

    Ela se curva profundamente diante dele, sem ar.

    A luz vai ficando cada vez mais forte e branca, sempre num campo fechado sobre os dois, at

    eles reverberarem contra o escuro do fundo.

    BLAVATSKY (muito ofegante, entrecortando o texto) Protetor meu... Mestre!

    Que me amparou aos oito anos: subi em cima do banco em cima da cadeira em

    cima da mesinha em cima da arca... pra ver o retrato l em cima... ca.

    Que me sustentou no ar aos catorze: em Saratov... o cavalo disparado... meu p

    preso no estribo.

    Que me tirou ilesa de debaixo do corpo do cavalo, saltando barreiras...

    Constantinopla...

    O Mestre faz um gesto de silncio e ela se cala.

    MESTRE - Oua o chamado. Escute a voz do silncio.

    Depois de quase cem anos procurando

    um corpo europeu para o solo europeu,

    para fazer a ligao Oriente Ocidente,

    nossos chefes acham que s voc pode servir.

    No. No pense nisto como um elogio:

    forte o seu brilho na luz astral,

    mas ainda falta calma; controle; clareza; organizao.

    Eu sei. Sabemos que pode aprender.

  • 12

    Por isso foi escolhida.

    So fortes os defeitos pessoais, mas grande a sua coragem.

    E de sobrehumana coragem ser a sua misso.

    Na Amrica encontramos o homem que ser lder.

    No ainda. Ser.

    Homem de grande fora moral, altrusta.

    Ele e voc esto longe de ser o melhor, mas so o melhor possvel.

    BLAVATSKY Mestre...

    MESTRE (faz um sinal de silncio, como se lesse os pensamentos dela e no fosse preciso ela

    falar) Eu sei:

    aos 15 anos, j tinha lido todos os livros de

    alquimia, magia, de cincias ocultas da biblioteca de seu bisav.

    Eu sei. Acreditamos, sim, que seja capaz.

    Mas um duro destino, mais duro do que se imagina.

    Sempre. Nunca sozinha. E sempre sozinha.

    Nossos candidatos so tentados de mil maneiras,

    para puxar para fora a sua real natureza.

    Por vezes, vai sentir que no mais que uma casca.

    BLAVATSKY Mestre...

    MESTRE (repete o gesto de silncio) - O martrio agradvel de se olhar, de criticar,

    mas duro de sofrer.

    Poucas mulheres foram mais injustiadas do que voc ser.

    Oua e lembre o que diro de voc:

    ela conquistou um ttulo: a mais perfeita, engenhosa, interessante charlat e

    impostora da histria.

    BLAVATSKY Eu estou pronta.

    MESTRE - Eu sei. O seu destino est na ndia.

    BLAVATSKY (sussurra) ndia...

    MESTRE Mas no ainda. No ainda.

    Mais tarde, daqui a 28, 30 anos.

    Faa antes o que quiser, mas v para l, veja a terra.

    A ndia.

    Que o seu destino e cujo destino voc transformar. Para sempre.

    Sbito black out.

  • 13

    A msica explode.

    Madame Blavatsky desaparece na coxia.

    A projeo, rpida, brilhante e colorida domina todo o espao do teatro, palco, platia, teto,

    voando sobre paisagens, montanhas, lagos, templos, runas... vertiginosa, cada vez mais

    depressa.

    A voz gravada de Madame Blavatsky soa junto com a msica, viva, emocionada, pulsante:

    BLAVATSKY (na gravao, entoa, quase cantando) Quebec,

    Nauvoo, New Orleans, Texas

    Mxico, Honduras, Peru, Bolvia

    o Caribe

    o Cabo

    Ceilo, Bombaim, Nepal, Punkabaree,

    Darjeeling, Dinajpore,

    New York, Chicago

    o deserto, as Montanhas Rochosas,

    Salt Lake City, San Francisco,

    o Japo

    Kashmir

    o Tibet, o Tibet

    A projeo voa sobre os picos brancos do Himalaia.

    Aproxima-se de uma figura solitria no campo branco da neve.

    Aproxima-se mais. Mais. Mais.

    At um close de Helena Blavatsky contra a reverberao branca, cegante, da neve eterna.

    Sbito black out.

    Silncio.

    PRIMEIRO ATO

    No escuro, brilham, oscilantes, as chamas das velas de alguns candelabros.

    A luz se abre sobre uma sala ntima de uma confortvel casa de campo russa: diante de uma

    farta cortina adamascada, sobre um enorme tapete persa, um sof grande de veludo domina o

    espao, ladeado por duas mesinhas com dois lampies a querosene; h uma cmoda grande e

  • 14

    pesada, com gavetas, duas arcas de madeira escura, de alturas diferentes, muitas cadeiras

    desparceiradas, meio empilhadas num canto.

    H um certo desalinho de arrumao provisria.

    A trilha sonora sobe aos poucos: fora de cena, ouve-se msica e vozes masculinas e femininas

    de muitos convidados levantando brindes, seguidos de risos e breves discursos, aplausos, etc.

    uma festa em andamento.

    Sobre os mveis, alm dos candelabros acesos, bandejas arrumadas com taas de cristal, e

    outras bandejas de doces e arranjos de frutas.

    Vera, irm de Helena, coordena uma equipe de servos: uma Serva Moa, gil, uma Serva

    Velha, lenta, e um Servo, elegante como um mordomo, que entram e saem, com o ligeiro

    frenetismo das ocasies festivas.

    Soa forte o sino da porta de entrada.

    Vera tem um grande sobressalto, aperta o peito com a mo e agarra o brao da Serva Moa

    que est passando, fazendo tilintar as taas de cristal que leva na bandeja.

    Todos olham para ela e se imobilizam um instante.

    SERVA VELHA Eu vou abrir (vai para a porta arrastando os ps).

    SERVO Com tanta neve, muita gente vai chegar atrasada.

    VERA (recuperando-se do susto) No, no. Deixe que eu vou.

    Vera sai precipitadamente.

    Os servos se entreolham. O Servo sai com dois candelabros acesos.

    SERVA MOA Coitada. duro ficar viva to moa com dois filhos pequenos. Sozinha no

    mundo.

    SERVA VELHA Que sozinha? Besteira! Dona Vera tem pai, irmo. Irm...

    SERVA MOA Estou falando sozinha de marido. (tempo) Irm eu no sabia que ela tinha,

    no.

    SERVA VELHA Pois tem. Mais velha. Criatura mandona, voluntariosa, em menina se

    atirava no cho, revirava os olhos, tinha ataque quando contrariavam.

    SERVA MOA Nunca ouvi falar.

    SERVA VELHA Pra mais de dez anos j que ningum sabe dela. Casou, largou o marido,

    sumiu no mundo.

    SERVA MOA A senhora conheceu?

  • 15

    SERVA VELHA (tempo, o olhar fixo, passa a mo lentamente na face) Com onze anos,

    raivosa porque no botei nela a roupa que queria, me bateu na cara. A av dela,

    mais que princesa, dama, questionou, a menina confessou. No chorou, porm, no

    chorou, no. A av mandou tocar o sino, juntou os servos todos, que no era pouca

    gente, e diante de todo mundo pegou falou pra menina assim que o que ela fez no

    era ato de dama nobre, bater numa serva indefesa que nem eu, que por fora de

    condio no podia se defender, que se no pedisse perdo mandava a prpria neta

    embora de sua casa, no queria mais ela de neta, no. A pobrezinha ficou

    vermelha-vermelha, segurando as lgrimas de dar pena, onze anos s, eu at j

    tinha perdoado dentro do meu peito, quando por fim a menina se ps a chorar,

    diante de todo mundo, se ajoelhou na minha frente, beijou minha mo, nem falar

    no podia, a pobre. Levantei no colo, perdoei, porque se via que no fundo era boa

    criatura, corao de ouro, tendo de lutar com aquela fria que habita dentro dela,

    quem mais haveria de sofrer era ela mesma, ningum mais, pela vida afora.

    SERVA MOA Chamava como?

    SERVA VELHA Chamava, no! Chama, que h de estar viva ainda sabe-se l em que fim de

    mundo. Helena se chama. Helena Petrovna Blavatsky.

    Madame Blavatsky entra, com uma pequena mala, o casaco pontilhado de neve.

    Atrs dela, Vera, muito excitada, com outra bolsa menor.

    A Serva Velha deixa escapar um grito.

    Helena e Vera olham.

    SERVA VELHA Sedmichka! Lelinka!

    A Serva Velha corre at ela e se lana a seus ps.

    Madame Blavatsky a pega pelos ombros, faz com que se levante, olha atenta seu rosto.

    Sua expresso abre-se em enorme surpresa.

    Acaricia a face da Serva que estapeou.

    O rudo da festa fora de cena se alterou: interromperam-se as vozes dos convivas, a msica

    soa mais ntida.

    Helena Blavatsky vai abraar a Serva, quando Leonid entra correndo e estaca a certa

    distncia.

    LEONID (hesitante) Helena...?

  • 16

    Helena Blavatsky olha para Vera, que faz que sim com a cabea.

    Olha para Leonid, abre os braos.

    BLAVATSKY - Leonid! Meu irmozinho... Voc tinha sete anos quando eu fui embora! um

    homem!

    Abraam-se.

    Entra Pedro Hahn, o Pai.

    BLAVATSKY Pp!

    PAI - Lyolya!

    Abraam-se, ele chora copiosamente, mas sem perder o perfeito controle do soldado.

    PAI - Pensei que nunca mais ia te ver, filha.

    VERA - Como voc descobriu que a gente estava aqui em Pskof?

    BLAVATSKY (gira a mo no ar) Me contaram.

    VERA - Agora venha, venha! Quero que todo mundo veja voc. Vamos para a festa.

    Vera, sorridente, pega um candelabro aceso e lidera o caminho. Sai.

    A Serva Moa se adianta, vai atrs de Helena, tentando ajud-la a despir o casaco.

    SERVA MOA Mamoiselle... Mamoiselle...

    Leonid, sorridente, pe a mo no ombro do Pai que se empertiga.

    LEONID Vamos, pai.

    Saem todos, a Serva Velha por ltimo, equilibrando uma bandeja de taas em uma mo, o

    ltimo candelabro aceso na outra, resmungando contra a Serva Moa que continua

    infernizando Helena, fora de cena.

    Suave escurecimento.

    Os rudos de festa crescem, saudando Helena Blavatsky, e silenciam.

    Tempo.

  • 17

    Um isqueiro de pederneira solta fascas no escuro, Madame Blavatsky acende um cigarro.

    A luz se acende suavemente: a mesma sala, o sof arrumado como cama, com um excesso de

    almofadas e cobertas, babados e fitas.

    noite fechada, muito tarde, dois lampies de vidro com cpula iluminam o ambiente.

    Helena Blavatsky est de camisola, cabelos soltos, enrolada no sof, embrulhada numa manta

    grossa, fumando.

    Vera entra descala, tambm de camisola comprida, os longos cabelos quase tocando o cho.

    Vem rindo, moleca, trazendo duas canecas de bebida fumegante, cuidando para no fazer

    barulho.

    Enfia-se debaixo das cobertas, junto com Helena.

    As duas riem.

    VERA - Continue. Fale, fale.

    Bebem.

    VERA - Do que que a gente estava falando mesmo?

    BLAVATSKY De mame.

    VERA . Voc acha que mame foi infeliz com papai?

    BLAVATSKY Acho.

    VERA - Por isso que ela escrevia aqueles romances? Eu tenho todos, sabe? Voc j leu?

    (fecha os olhos, fala de cor) A posio da mulher, colocada acima da turba pela

    prpria Natureza, a posio da mulher desesperadora.

    BLAVATSKY E VERA (juntas, Helena com mais dificuldade para lembrar) - O monstro de

    cem cabeas da opinio pblica est sempre pronto a dizer que ela imoral, a jogar

    lama em seus mais nobres sentimentos... e a mulher acaba sendo considerada uma

    criminosa, rejeitada pela sociedade. (riem, meninas, molecas)

    VERA - Sempre doente... Tossindo... Escrevendo atrs do biombo de pano verde. Lembra?

    Era s uma cortina, mas nenhuma de ns duas tinha coragem de invadir aquele

    espacinho dela. Dias e dias escrevendo, escrevendo... Tive tanto cime em So

    Petersburgo: mame no meio daqueles homens elegantes, falando coisas que a

    gente no entendia. Lembra quando encontrou Pushkin? (imita a me) Pensei que

    fosse moreno, mas o cabelo dele no mais escuro que o meu, comprido at aqui,

    despenteado. baixo, com suas, no bonito, mas tem os olhos cintilantes: dois

    carves em brasa (riem juntas). E quando papai trouxe fsforos, lembra? Que

  • 18

    susto quando mame riscou aquele palito que a gente nunca tinha visto e

    apareceu aquele fogo azul no escuro (riem, Helena acende o isqueiro e desenha um

    crculo no ar). Ah, mas eu estou falando demais. Conte de voc. Dez anos, Lyolya,

    dez anos! (bate palmas, tapa a boca, ri, entre lgrimas, abraa Helena) Casei,

    fiquei viva, tive dois filhos e voc... Quanta coisa voc deve ter visto!...

    BLAVATSKY Vi.

    Ouvem-se delicadas campainhas tilitando pelo teatro inteiro, numa breve e incorprea

    sinfonia.

    Vera gira em torno de si mesma, olhando, intrigadssima.

    A msica cessa.

    VERA O que foi isso?

    BLAVATSKY O que?

    VERA - Voc no ouviu?

    BLAVATSKY Ouvi.

    VERA - Foi impresso minha? (d de ombros, agarra a irm, carinhosa) Helena, Helena!

    Por que voc foi embora? (tapa a boca de Helena) No, no. A pergunta outra.

    Por que voc casou com Blavatsky?

    BLAVATSKY - Voc sabe porque, Vera.

    VERA - Porque ele escutava quando voc ficava falando das suas coisas do alm?

    BLAVATSKY Ele ouvia, mas no era o melhor ouvinte.

    VERA (breve tempo, ela aspira o ar com rudo) Galitzin!

    BLAVATSKY - Galitzin. Ele, sim, tinha lido tudo o que eu li na biblioteca do vov, e mais.

    VERA - Ele era maom, no era?

    BLAVATSKY Maom, mago, adivinho, estudante do oculto, diziam tudo!

    VERA - Disseram que... No, no.

    BLAVATSKY Diga.

    VERA Disseram que quando voc fugiu de casa, foi com ele. Foi?

    BLAVATSKY - verdade.

    VERA - Quer dizer que vocs dois... (bate as mos no rosto vermelho de vergonha, riem)

    BLAVATSKY - O que voc acha?

    VERA - Mas voc no teve coragem de...!?!! Lyolya, voc tinha s dezesseis anos! Ento

    era verdade o escndalo?! Por isso voc casou com Blavatsky!

    BLAVATSKY Casei, mas nunca fui mulher dele.

  • 19

    VERA - Eu no sabia de nada. Rezei tanto quando voc foi embora. No ia ser feliz com

    ele...

    BLAVATSKY Nem com ele, nem com outro, Vera. No sirvo para o casamento, preciso da

    minha liberdade, para viajar pelo mundo, aprender, entender essas foras que eu

    sinto aqui (toca a cabea), aqui (toca o corao) aqui (faz um gesto como um sopro

    que sai da boca).

    Uma pesadssima cmoda de gavetas comea a deslizar suavemente pelo quarto.

    Vera no percebe, Helena continua a conversa com a irm e observa o deslocamento do mvel

    com o rabo dos olhos.

    VERA Ai! Conte, conte, conte, conte!

    BLAVATSKY (pensa um instante, envolta na fumaa do cigarro) Acho que voc no vai

    acreditar. Se eu pensar um pouco, nem eu acredito. Vera, esta sua irm aqui na sua

    frente, aos vinte e oito anos j deu a volta ao mundo duas vezes.

    VERA - Nossa!

    O mvel desliza e faz barulho.

    Vera se volta para olhar, o mvel para.

    VERA - Por que essa cmoda...?

    Vera levanta-se, vai at o mvel, o mvel se desloca velozmente at o lado oposto do palco.

    Vera d um grito, assustada, comea a tremer.

    Madame Blavatsky vai at ela, abraa a irm.

    BLAVATSKY No, Vera. Venha, sente aqui.

    Voltam para a cama no sof.

    VERA - Foi... Foi voc que...

    BLAVATSKY - Foi.

    VERA - No faa isso! Eu tenho medo dessas coisas. No faa mais!

    BLAVATSKY - Vou tentar, mas eu ainda no consigo controlar o tempo todo.

    VERA - A msica tambm?

  • 20

    BLAVATSKY - Tambm.

    VERA (olha intensamente a irm um tempo) - Lyolya... por que voc quer isso para voc?

    BLAVATSKY No quero. Eu no tenho querer. assim que eu sou, esses fenmenos fazem

    parte de mim. Desde criana. Sempre em dois mundos, visvel e invisvel, revelado

    e oculto. Voc lembra em criana...

    VERA (controlando o medo, fazendo voz infantil de terror) Russalka... Domovoy... (breves

    meios-risos)

    BLAVATSKY Meus amigos invisveis...

    VERA O menino corcunda!...

    BLAVATSKY Meu Protetor...

    VERA - O indiano!

    BLAVATSKY Ele existe, Vera. Em carne e osso! Encontrei com ele em Londres. ele que

    me guia agora. Por isso tenho de viajar tanto. Tanta coisa... Tanto conhecimento...

    Outras sabedorias!

    A luz de um lampio baixa de intensidade.

    Vera estende o brao, levanta a chama.

    Imediatamente, a luz do outro abaixa.

    Vera se volta, estende o brao para levantar a chama, mas antes que toque o lampio a luz

    volta a subir nesse e baixar no outro.

    Ela sente que algo fora do normal, encolhe as mos no peito.

    Soam campnulas no ar, melodiosas, espalhadas por todo o teatro.

    Ela e Helena ficam olhando enquanto as luzes dos lampies acendem e apagam num estranho

    bal, fazendo danar as sombras das duas pela sala.

    Os efeitos cessam, Vera se aninha no abrao de Helena.

    VERA - Isso foi bonito. No deu medo. Voc que fez isso?

    BLAVATSKY Mais ou menos.

    VERA - Como mais ou menos? Foi ou no foi?

    BLAVATSKY Sou eu, mas no a minha vontade. Minha energia provoca os fenmenos, mas

    minha vontade ainda no controla sempre. S s vezes. Estou aprendendo.

    VERA - Voc no tem medo, Helena? Nunca?

    BLAVATSKY (breve riso interno) Tive. Muito. At entender que morta ou viva eu fao

    parte do Absoluto, que cada um Um. E todos. Uma vez, em Londres, estava to

    confusa, to cansada de tudo, dividida entre esta fora maior e as exigncias do

  • 21

    mundo, que tive um desejo forte de morrer. Fazia tempo que eu sentia essa

    tentao chegando. Parei na ponte de Waterloo. A gua barrenta do Tmisa me

    pareceu uma cama deliciosa.

    VERA (faz o sinal da cruz ortodoxo e diz, em russo, algo como:) - Deus nos livre e guarde!

    BLAVATSKY (breve riso grave, com gosto) Mas no me matei, no.

    VERA - Foi a que voc encontrou seu Mestre?

    BLAVATSKY Foi. Primeiro, numa viso, depois em pessoa. Em Hyde Park. Eu sabia quem

    ele era, ele sabia quem eu era. E ele me deu um rumo, uma misso mesmo, de

    aprendizado. Sa pelo mundo.

    VERA - Sozinha.

    BLAVATSKY Sozinha? No. Acho que nunca estou sozinha, Vera. (aponta a cmoda e o

    lampio, gira o dedo no ar, riem) Vi tanta coisa. Misrias e maravilhas. No Egito,

    na Amrica Central, no Peru, aquelas runas belssimas, nos templos da ndia, do

    Tibet, um outro jeito de viver a vida, sem represso, sem violncia, sem hipocrisia,

    um jeito mais feminino e doce, mais perto da verdade da natureza.

    Repentinamente, ouvem-se batidas de um lado e de outro do teatro, e a manta que cobre as

    duas flutua no ar, como um tapete mgico.

    Apavorada, Vera se agarra a Madame Blavatsky.

    VERA - Lyolya!

    A luz dos lampies pisca loucamente, as canecas flutuam no ar, as pontas do tapete se

    empinam, uma cadeira atravessa velozmente a cena e tomba.

    Vera esconde a cara no peito de Madame Blavatsky.

    VERA (muito assustada, como uma menina) Faa parar, faa! Lyolya! (em russo) Valha-nos

    Deus!

    Madame Blavatsky ri, rouca.

    As duas descem abraadas do sof e saem.

    A pesada cmoda volta a deslizar, todos os objetos da sala se animam e danam pelo espao,

    numa confuso de batidas pelas paredes e campnulas dissonantes soando loucamente.

    De repente, os objetos saem todos, um para cada lado, e o palco fica vazio.

    Sbito silncio.

  • 22

    Black out.

    Um foco areo se acende. Por ele desce um grande lustre de cristal.

    Um momento de imobilidade e silncio.

    De repente, o lustre comea a tremer e tilintar.

    A luz se acende, lenta: diante de uma alta cortina de veludo vermelho escuro, uma saleta

    elegante, trs poltronas, uma pequena mesa de jogo de cartas, outra mesinha ainda menor que

    um tabuleiro de xadrs, com as peas pretas e vermelhas, uma grande pele de animal como

    tapete no cho.

    Pedro Hahn, o pai, absorto, est colocando as cartas para uma pacincia na mesa.

    Vera e a Tia esto sentadas, com os bordados suspensos na mo, olhando o lustre que treme.

    TIA (baixo, quase sussurrando) - ela. Coisa do diabo!

    PAI - Que bobagem!

    O lustre para de tremer, o Pai d uma breve olhada.

    Vera e a Tia olham ainda um instante, e voltam ao bordado.

    TIA - Essa menina sempre deu trabalho. Em criana ou estava com o nariz metido num

    livro, ou metida com gente que no era sua igual, moleques da rua, servos,

    curandeiros. Teve de ser exorcizada, trs, quatro, quantas vezes, Pedro, lembra?

    PAI - No.

    TIA (para Vera) Seu pai no lembra porque era tempo de guerra, estava sempre servindo

    fora. Voc no lembra porque era pequena. Que falta fez a me de vocs! Mas voc

    tambm tem culpa, Pedro. Levar a rf para o meio da soldadesca daquele jeito!

    Montando a cavalo feito homem, aprendendo a falar feito eles. Que boca! (O Pai

    ri) Nem com o casamento amansou. Eu tinha esperana que Nikifor Blavatsky

    fosse domar o gnio dela. Nada! Mas ainda est em tempo. Ele escreveu...

    VERA - Tia! Voc no fez isso!? Escreveu para ele contando que Helena est aqui?

    TIA (olha para ela um momento um pouco longo demais e continua de onde havia parado) -

    Na carta, Nikifor diz assim: o tempo tudo abranda, at cada lembrana.

    Bonito.

    O Pai interrompe a pacincia e olha para ela.

  • 23

    TIA - No me olhem assim, vocs dois. Eu s quero o bem dela. Desde que chegou

    aqui, acabou-se o sossego desta casa: estalo e batida para todo lado, sino que toca

    fora de hora ningum sabe onde, moblia que anda feito ser vivente. Isso contra

    natura.

    VERA - No culpa dela, tia.

    TIA - No? De quem ento?

    Um livro cai do teto com grande rudo.

    Todos se assustam, a Tia solta um grito, faz o sinal da cruz.

    TIA (em russo) - Jesus, Maria, Jos! (em portugus) Como que algum pode viver assim?

    Helena Blavatsky entra junto com Leonid e um Amigo dele, os trs fumando, conversando

    animados e encaminham-se para a saleta, onde esto os outros.

    No caminho, Madame pega o livro do cho e l o ttulo para si mesma.

    BLAVATSKY Achei que ia aprender muita coisa com os peles-vermelhas do Canad, mal

    cheguei em Quebec, eles me roubaram.

    LEONID Tudo?

    BLAVATSKY Tudo!

    LEONID (ri, juvenil, admirado) E voc vestida de homem.

    BLAVATSKY - Claro. Como que eu ia poder viajar sozinha?

    LEONID - Assim? Como ele e eu? Cala, colete, palet?

    BLAVATSKY Quando atravessei as Montanhas Rochosas numa caravana de carroas, foi na

    segunda vez na Amrica, fui como a minha graa feminina de sempre (breves

    risos), tinha outras mulheres de pioneiros tambm. S o sapato era de homem, uma

    botina (mais risos). . Para aguentar o cho do deserto. Cada terra com seu uso: no

    Egito, eu parecia um muulmano. Na ndia, para entrar no Tibet, um xam

    siberiano arrumou para mim uma cala de brocado, turbante, capa, um sabre do

    lado.

    LEONID (para o amigo, malicioso) J pensou? Sua noiva de cala, igual voc?

    AMIGO (ligeiramente gago por natureza, piora por timidez) Eu nano ia pepepermitir.

    Helena estaca e vira-se para os rapazes vivamente.

    Os dois se sobressaltam.

  • 24

    BLAVATSKY Permitir??!... No conheo sua noiva, mas tenho pena dela. Leia este livro.

    (estende para o rapaz o livro que pegou do cho)

    AMIGO (lendo o ttulo) Mimitos do Antitigo Egito.

    Ouvem-se vagas batidas no ar que passam de um lado para outro do teatro.

    Todos acompanham o rudo com o olhar, brevemente.

    BLAVATSKY No Cairo, Paulos Metamon, meu primeiro mestre, me iniciou no culto antigo

    de sis. J ouviu falar?

    AMIGO - Nano.

    BLAVATSKY Pois leia a. (encaminha-se para a poltrona entre Vera e a Tia)

    LEONID Conte.

    BLAVATSKY sis a deusa-me, o feminino universal, a geratriz, que vence a morte,

    entende?

    AMIGO - Nano muito bebem.

    VERA (prevendo tempestade) Lolya, a tia Caterina talvez...

    BLAVATSKY (ignora a interrupo) sis era irm e esposa de Osris...

    TIA (faz o sinal da cruz e diz em russo:) Creio em Deus padre!

    BLAVATSKY Osris foi morto e esquartejado pelo irmo, Set, que queria dominar o Egito.

    Ele cortou o corpo de Osris em catorze pedaos e jogou no rio Nilo. sis descobriu.

    Por amor, ela percorreu o Egito inteiro, encontrou os pedaos, refez o corpo do

    marido e trouxe Osris de volta vida. S no encontrou o pnis...

    A Tia d um pequeno grito, faz o sinal da cruz repetidas vezes, resmungando jaculatrias em

    russo.

    BLAVATSKY (cobrindo um riso maroto) - ... que foi comido por um caranguejo.

    VERA (quase rindo tambm) Lolya!...

    BLAVATSKY Usando todas as suas capacidades, sis consegue formar um novo falo...

    A Tia d outro gritinho abafado, atrapalha-se com o bordado, faz o sinal da cruz.

    Todos reprimem o riso.

  • 25

    BLAVATSKY - ...um falo potente, fecundador, e assim ela restaura o poder de Osris, na

    terra e no cu. A partir da, sis passou a dominar com seu poder os deuses e os

    homens. uma poderosa religio feminina.

    PAI - Lolya...

    LEONID - Ns somos homens do sculo dezenove, Ielena, homens racionais, cheios da

    sabedoria latina e alem da universidade, no temos tempo para essas crendices

    antigas.

    BLAVATSKY No crendice, nem antiga. eterna. Existe uma outra cincia no mundo,

    uma cincia sagrada com uma outra maneira de entender e controlar as leis da

    natureza, diferente da cincia ocidental, europia.

    LEONID S acredito no que pode ser comprovado objetivamente.

    BLAVATSKY Ver para crer?

    LEONID .

    BLAVATSKY O que tem de moderno nisso? Eu fui l ver, Leonid. E vi.

    AMIGO - Popode dadar um exexemplo?

    BLAVATSKY No Tibet. Vi um ritual de reencarnao impressionante. Achavam que um

    beb de quatro meses era a reencarnao do Lama, o Superior do Mosteiro.

    Colocaram o bebezinho em cima de um tapete no meio de um salo dentro de uma

    caverna. Os lamas todos sentados em crculo, concentrados, em profunda

    meditao. Com a fora do pensamento, o Grande Lama fez o beb ficar de p e

    andar. Um bebezinho de quatro meses, caminhando como um homem. At que

    parou na frente do Lama, e falou, com toda clareza: Eu sou Buda, sou o Lama que

    morreu, sou o seu velho esprito em um corpo novo. Um beb de quatro meses!

    Era assustador.

    LEONID - Hum. No sei, no.

    AMIGO - Eu estatava falalando de outro titipo outro tipo de exexemplo. Expeperimentatal.

    BLAVATSKY O que?

    AMIGO - Leonid didisse que vovocc cacapaz de produduzir fenonmenos contra a nanatu

    a nanatu contra a nanatatu...

    LEONID A natureza.

    BLAVATSKY Contra, no. Ningum realiza nada contra a natureza. O que existe outros

    jeitos de mexer com a natureza, com as leis da natureza.

    TIA (com extremo desdm) Ha!!! (sussurra)

    BLAVATSKY Eu j vi gente que capaz de reproduzir um objeto.

    LEONID - Do nada?

  • 26

    BLAVATSKY Do nada? No. De um objeto. Transformar um objeto em dois idnticos.

    Gente capaz de mudar o peso das coisas, deixar mais leve, mais pesado...

    AMIGO - E vovocc sassabe fazer isso?

    BLAVATSKY J fiz, mas nem sempre consigo quando eu quero. Ainda tenho muito o que

    aprender.

    LEONID Faz para a gente!

    VERA - Tia Caterina, acho...

    TIA (baixo) - No, no! Isso eu quero ver.

    BLAVATSKY Vou tentar, mas no garanto nada. Vamos ver. Essa mesinha de xadrs.

    TIA (alto, ctica) - Ha!!!

    LEONID Olha...

    BLAVATSKY V, Leonid, veja o peso dela agora.

    Leonid vai e levanta cuidadosamente a mesinha, sem nenhum esforo.

    AMIGO - Poposso?

    BLAVATSKY Por favor.

    Ele vai at a mesinha e levanta tambm, sem esforo.

    TIA - No vai nem tocar na mesa?

    BLAVATSKY No. Quer levantar tambm, tia?

    TIA - Humpf! No acredito em bruxaria.

    BLAVATSKY Papai.

    PAI - Vamos ver a mgica.

    Helena Blavatsky se acomoda melhor, relaxa as mos nos braos da poltrona, fecha os olhos.

    Um momento de intenso silncio. Todos olham da mesa para Helena e vice-versa, espera.

    Ela faz um gesto, sem nada dizer.

    Incrdulo, sorrindo, ctico e irnico, Leonid vai at a mesa.

    E no consegue levant-la.

    Tenta pegar o mvel de vrias maneiras, tremendo de esforo e a mesinha no se move.

    AMIGO Poposso?

  • 27

    Helena faz um gesto de concordncia, ele vai e tenta, diversas vezes, sem sucesso.

    Intrigados, Leonid e o Amigo ficam examinando a mesa, para ver se est pregada no cho.

    VERA - Titia?

    TIA - Ha! Isso nem bruxaria . Truque barato, coisa de circo.

    Lentos aplausos: o Pai que estava alheio cena, bate palmas.

    BLAVATSKY Quer tentar tambm, pai?

    PAI - No, filha. Melhor no.

    BLAVATSKY No acredita?

    PAI - O problema se eu comeo a acreditar. Daqui a pouco vou estar acreditando em

    demnio, em bruxas e feiticeiras, como algum que eu conheo. Vo ter de me

    trancar no asilo. (sorriem os dois, ele retoma a pacincia)

    LEONID - Como voc fez isso?

    BLAVATSKY Eu no fao nada. Eles fazem (gira o dedo no ar).

    AMIGO - Quequem?

    BLAVATSKY Kikimore.

    LEONID - Os duendes? No! Eu no acredito em duende!

    AMIGO - inti inti intiti

    LEONID - Intrigante, no ?

    AMIGO - Isso.

    LEONID inacreditvel!

    BLAVATSKY (aponta a mesa) Tente de novo.

    Leonid vai at a mesinha, firma os ps no cho, pega duas pernas da mesa e usando o corpo

    todo tenta levant-la.

    A mesa voltou ao seu peso normal e ele cai sentado no cho pelo excesso de fora: a mesa

    sobe no ar, as peas de xadrs voam e se espalham pelo palco.

    Tia Caterina ri. Descontrola-se, tem um pequeno ataque de riso, constrangedor.

    Ficam todos sem saber o que fazer, sorrindo perdidos uns para os outros.

    VERA - Tia, quer que eu acompanhe a senhora...?

    TIA - No. No!! Quero ficar aqui e ver mais. Mais.

    AMIGO - Leonid fafalou da adivim adivivim...

  • 28

    VERA (animada) - Adivinhao. Isso!

    LEONID Papai! Papai pensa alguma coisa.

    PAI - No, no...

    VERA - Ento, no pense, escreva.

    PAI (hesita um instante) - Est bom. Eu escrevo.

    LEONID Mas Helena no pode ver.

    BLAVATSKY No vejo.

    Vera vai at ela e carinhosamente tapa seus olhos.

    Helena fica acariciando a mo da irm, enquanto o Pai pega a pena que h no tinteiro sobre a

    mesa e rasbica uma frase rapidamente no bloco de papel, dobra a folha, guarda no bolso.

    E volta a mexer com as cartas do baralho sobre a mesa, afetando ausncia.

    VERA - Pronto.

    BLAVATSKY (breve tempo, concentrada) ... No sei. s uma palavra. Estranha...

    ZAITCHIK! isso. ZAITCHIK. Mas no sei o que quer dizer.

    LEONID - Pai?

    O Pai interrompeu no meio um gesto e est perplexo. Nada diz. Levanta-se, tira do bolso o

    papel que Leonid pega de sua mo.

    TIA - Me d isso aqui! (Leonid d, ela ajusta o pince-nez no nariz, desdobra o papel e l,

    sem qualquer dificuldade:) Qual era o nome do meu cavalo de guerra favorito,

    que montei na primeira campanha turca? ZEITCHIK. Ridculo! A menina devia

    saber! Vivia com voc no quartel!

    Leonid pega o papel da mo dela e vai ler junto com o Amigo.

    PAI - Caterina, a primeira campanha turca foi antes dela nascer!

    TIA - No interessa! Voc pode ter contado para ela! Viviam falando de cavalos, feito

    dois soldados!

    VERA - Seja como for, titia, Lolya no sabia o que papai ia escrever.

    TIA - . Mas... Mas podem ter combinado antes!

    PAI - Caterina! Por favor!

    TIA - Para me enganar.

  • 29

    BLAVATSKY Tia...

    TIA (pe-se de p, bravssima com Helena) No fale comigo! Enquanto eu no entender o

    que vi, no quero que fale comigo! Voc no vai me enfeitiar! No vai!

    Sbito black-out.

    TIA (no escuro) Mais essa agora!

    Segundos depois, a luz voltar a se acender: todos os mveis esto de pernas para o ar.

    Vera se amedronta.

    TIA - Eu no acredito! No acredito! No acredito!

    VERA - Tia! Tia Caterina, por favor...

    Saem Vera e a Tia.

    Leonid e o Amigo olham em torno, perplexos.

    LEONID - Tem de ter uma explicao, tem de ter!

    A rea iluminada se reduz a Helena Blavatsky e seu Pai.

    Leonid e o Amigo saem no escuro.

    PAI (para Helena) - isso que voc tem estudado?

    BLAVATSKY No exatamente. Isto s uma consequncia. A menor, acho, a menos

    importante, uma bobagem, pensando bem. Ningum fica ensinando a revirar a

    moblia. Junto com o conhecimento verdadeiro, vem essa fora. s vezes, fico

    desesperada, porque no sei controlar, porque ela cada vez maior e minha

    vontade ainda fraca. Tenho muito que aprender.

    PAI - O que, filha?

    BLAVATSKY - Ainda existe no mundo, pai, um conhecimento tronco, e mestres que

    controlam outros poderes que vo alm da matria, uma sabedoria divina que existe

    desde antes de toda religio, de toda cincia, de toda obra do homem. isso que eu

    quero para mim, isso que eu quero para o mundo.

    PAI - Ento... no vai ficar conosco?

  • 30

    BLAVATSKY No posso. Eu sinto chamados, Pai, de lugares estranhos. E vou. Tenho de

    ir. Minha misso eu nem comecei a cumprir ainda. Tenho de encontrar o meu tao,

    de abrir o meu caminho.

    A rea de luz fica ainda menor: s o Pai no foco.

    PAI - Vai embora?

    BLAVATSKY (no escuro) - Vou. Me esperam os kudiany nas florestas do Cucaso.

    Msica.

    A luz vai baixando muito lentamente sobre a figura solitria do Pai.

    Luz no primeiro plano, Vera anda de um lado para outro, esfregando as mos, nervosa,

    esperando.

    Ao fundo do palco vazio, um foco vertical ilumina uma alta cama.

    Helena Blavatsky est deitada, inconsciente.

    Curvado sobre ela, um jovem Mdico a examina.

    Subitamente, o Mdico se sobressalta, levanta as mos e olha a paciente, muito assustado.

    Afasta-se lentamente da cama e vem correndo na direo de Vera.

    MDICO (apavorado) A senhora vai me desculpar, mas no posso ficar sozinho no quarto

    com a paciente.

    VERA (alarmada) - Aconteceu alguma coisa?

    MDICO Eu no sei explicar, mas a moblia mexe sozinha, os objetos mudam de lugar, tem

    barulhos por todo lado. E agora... Agora... Passou dos limites.

    VERA (ri, nervosa) - Diga, doutor, diga.

    MDICO No foi engraado. Eu vi... uma mo... . Uma mo. Sem corpo. Uma mo escura,

    negra ou oriental, no sei, tocando o ferimento do peito, junto com as minhas mos.

    VERA (controlando o riso nervoso) - Doutor...

    MDICO Eu sou um homem de cincia, Madame...

    VERA - ... o que tem a minha irm?

    MDICO ...no acredito nessas coisas.

    Mdico sai, Vera vai atrs.

    VERA - Doutor! Doutor! Eu fico no quarto com o senhor! (saem)

  • 31

    A msica cresce.

    A cama vem deslizando do fundo do palco para a frente, passando por uma sequncia de focos

    verticais.

    Insconciente entre os lenis, Madame Blavastky delira, inquieta, agitando a cabea,

    entreabrindo os olhos, ofegante.

    Vera volta sozinha, preocupada, um leno amassado na mo, caminha de um lado para outro.

    Helena Blavastky abre os olhos.

    BLAVATSKY Vera?

    VERA (assusta-se, chora, faz o sinal da cruz, abraa a irm deitada) Lyolya! Lelinka!

    Graas a Deus. Voltou a si.

    BLAVATSKY No, eu nunca sa daqui. Tinha era mais algum aqui dentro de mim, uma

    outra pessoa, de outro lugar, de outro tempo at. Quando falavam comigo, o

    mdico, voc, a criada, eu entendia e respondia como eu mesma, mas a fechava os

    olhos e voltava o pensamento do outro na palavra onde tinha parado, no era mais

    eu, era outro dentro deste corpo. Acordada, e eu mesma, lembrava muito bem desse

    outro, de tudo o que fazia. Dominada pelo outro, no fazia a menor idia de quem

    era eu. (breve tempo) Vera, escute.

    VERA - O que?

    BLAVATSKY Escute. Os barulhos pararam.

    VERA - verdade!!!

    BLAVATSKY A partir de agora, nunca mais vou estar sujeita a influncias externas. Me

    livrei dos ltimos vestgios da minha fragilidade psicofsica. Para sempre. Estou

    limpa. Purificada e livre da terrvel atrao dos espectros. Graas aos Mestres, as

    foras (com certo esforo, gira o dedo no ar, as duas sorriem) no me controlam

    mais, agora sou eu que controlo a minha fora. Eu, Helena Pretovna Blavatsky.

    Grande msica.

    Black out.

    SEGUNDO ATO

    A msica muda.

  • 32

    Projeo: do centro do palco, globos de nvoa luminosa, azulada, rsea, esverdeada,

    deslizam suavemente para a platia, criando uma atmosfera mgica.

    Junto com os globos, surgem de uma abertura invisvel no centro do palco, fantasmas

    materializados reverberando na luz negra:

    uma moa indgena norte-americana jovem, esbelta, de belos movimentos, cheia de alegria

    corporal, entra e caminha curiosa, silenciosa, at a boca de cena, olha a platia como quem

    olha o mundo do alm por um espelho, sorridente e deslumbrada. Seu corpo estremece e ela

    faz uma breve dana indgena. Quando est saindo de cena, danando:

    entram duas velhas indgenas norte-americanas, uma mais corpulenta e rstica, amparando a

    outra, que parece estar chorando por trs das mos com que cobre o rosto. A mais rstica

    toca o ombro da outra e aponta o fundo da platia com o dedo, num gesto singelo e misterioso.

    A ndia que chora destampa o rosto e olha na direo apontada. Estende ambos os braos e

    sorri, entre lgrimas. A ndia mais velha a conduz embora. Enquanto esto saindo:

    entra um oficial do exrcito norte-americano dos anos 1850, fardado, com o rosto

    desfigurado, os dentes mostra pelo corte na face coberta de sangue. Mesmo assim, ele sorri

    para o fundo da platia, e faz um gesto amoroso, como se mandasse um sopro de seu corao

    para a pessoa que l viu. Enquanto ele sai:

    entra um gigantesco indgena norte-americano, com uma tnica de couro de antlope franjada,

    perneiras do mesmo material, uma pena na cabea, com algumas varas rgidas na mo. Ele

    olha a platia como quem no entende nada e vai saindo lentamente, sempre muito

    desconfiado.

    Enquanto ele sai, a projeo se transforma em uma reverberao luminosa, como o sol visto

    do fundo da gua agitada. Depois de duas ou trs dessas vibraes de luz, explodem novos

    globos de nvoa luminosa e colorida.

    Do centro do palco, surgem, em rpida sequncia, as aparies de:

    um menino servo georgiano com a roupa tpica dessa regio do Cucaso;

    um rabe to envolto em seus mantos que no se v seu rosto;

    uma camponesa russa com um beb novo enrolado em panos nos braos;

    um cavaleiro curdo armado com cimitarra, pistolas e uma lana ornada de fitas e franjas;

    um cavalheiro europeu fardado com alto chapu enfeitado de penas e o peito coberto de

    medalhas.

    Todos avanam para o proscnio e compem um grupo que olha a platia com a perplexidade

    de algum que foi transportado durante o sono e acorda em outro lugar.

  • 33

    Por fim, entra um feiticeiro da frica, de aspecto diablico, usando um adorno de cabea

    composto de quatro chifres de oryx com guizos nas pontas, presos a uma tira bordada muito

    colorida amarrada cabea, com uma franja que lhe cobre inteiramente o rosto.

    Em segundo plano, ele dana, silenciosamente, espasmodicamente, uma dana de possesso,

    enquanto o menino georgiano, o rabe, o cavalheiro europeu e o cavaleiro curdo saem de

    cena.

    A camponesa permanece na boca de cena, olhando a platia com os olhos apertados de

    ateno, a mo sobre a boca.

    Ela estende o brao num gesto de contato, fecha a mo no ar como se colhesse alguma coisa

    que traz para o corao, baixa a cabea e sai de cena.

    O feiticeiro africano sai em seguida, pelo lado oposto, sempre danando.

    A msica muda.

    As reverberaes da projeo fundem-se luz da lua cheia que brilha no cu estrelado.

    A princpio no se sabe se o homem e a mulher que surgem na noite so aparies ou pessoas

    reais.

    So Olcott e Helena Blavatsky.

    Ela coloca o cigarro na boca, ele acende.

    OLCOTT Permettez-moi, madame.

    BLAVATSKY O senhor est aqui faz quanto tempo?

    OLCOTT Quinze dias. E devo ficar mais um ms.

    BLAVATSKY Arh! Com essa comida?! (riem os dois) Gosta tanto assim das aparies?

    OLCOTT Quero ter certeza que no fraude.

    BLAVATSKY Devia perguntar para o coronel Henry Olcott. J leu o que ele escreve no

    Daily Graphic? Todo mundo l. Tive de pagar um dlar para conseguir um jornal.

    OLCOTT O que acha do que ele diz?

    BLAVATSKY Interessante. Eu tambm tenho as minhas dvidas sobre o espiritismo.

    OLCOTT - Tambm estudiosa do assunto?

    BLAVATSKY (ri) Digamos que sim. Mas minhas dvidas so diferentes das dele. Fiquei

    com medo de vir para c e encontrar com ele.

    OLCOTT - Por que tem medo do coronel Olcott, Madame?

    BLAVATSKY - Ah, tenho medo que ele fale de mim no jornal.

    OLCOTT Pode ficar sossegada. Garanto que ele no vai falar da senhora no jornal.

    BLAVATSKY Conhece o coronel Olcott?

    OLCOTT Eu sou o coronel Olcott.

  • 34

    BLAVATSKY (ligeiro sobressalto, talvez fingido, mas decerto sedutor. Ri) Desculpe.

    Helena. Helena Blavatsky.

    OLCOTT Russa.

    BLAVATSKY Russa. Mas no vivo na Rssia faz muitos anos. Achou que eu era francesa?

    OLCOTT Pela roupa, no. Pela fala. Seu francs perfeito.

    BLAVATSKY S prefiro o francs porque no falo bem ingls.

    OLCOTT . Vamos ter de escolher uma das duas: de russo eu no falo nada.

    Riem ambos, provocados e provocadores, sedutores e seduzidos.

    Formam um estranho casal:

    ela com uma esquisita camisa escarlate por cima da saia deselegante,

    ele um primor de convencionalismo discreto.

    Os dois continuam passeando pelo palco numa linha sinuosa, sem destino.

    BLAVATSKY O que tem a minha roupa? No gostou da camisa?

    OLCOTT Parece uma camicia rossa de Giuseppe Garibaldi.

    BLAVATSKY uma camisa de Garibaldi. Eu lutei ao lado dele.

    OLCOTT Na Itlia?

    BLAVATSKY . Em Mentana. Enfrentamos os soldados franceses e o exrcito do papa.

    OLCOTT Mulheres-soldado lutando pela liberdade da Itlia.

    BLAVATSKY Um batalho de mulheres da Europa inteira, ombro a ombro com os soldados.

    Eu fui ferida e me deixaram no campo, fui dada como morta. Um golpe de sabre

    aqui e aqui (estende o brao) Sinta. (Olcott toca o brao dela timidamente) E dois

    tiros de mosquete. Aqui (mostra o ombro, ele no toca) e aqui (levanta a saia e

    mostra a perna coberta de meia escura. Pega a mo de Olcott e coloca sobre a

    coxa, pouco acima do joelho) Sente a bala?

    OLCOTT (constrangido) Claro. Para mim, que fui soldado, curioso uma mulher ferida em

    batalha.

    BLAVATSKY (abrindo ligeiramente a camisa) Tenho aqui, no corao, uma outra cicatriz

    que sangra de novo sempre que alguma coisa importante me acontece.

    Pega a mo dele e enfia na abertura da camisa, num gesto audacioso, mas no vulgar.

    Por um momento, olham-se nos olhos.

    OLCOTT Outra batalha?

  • 35

    BLAVATSKY Outras batalhas.

    OLCOTT (retirando a mo, retomando o passeio) Acredita na mediunidade dos irmos

    Eddy?

    BLAVATSKY O senhor acredita?

    OLCOTT Estou aqui para investigar. Contratei um engenheiro, um marceneiro. Examinamos

    tudo. Tenho certeza absoluta de que no tem nenhum alapo secreto no salo

    deles. Os dois irmos so homens rudes, quase analfabetos. No tm nem

    conhecimento, nem dinheiro para comprar, nem lugar para esconder tantas

    fantasias. Hoje, por exemplo. At agora s tinha visto espritos de ndios e da gente

    simples, igual a eles. Foi a primeira vez que apareceram esses tipos estranhos.

    BLAVATSKY Eu sei.

    OLCOTT Como assim?

    BLAVATSKY Fui eu que chamei aquelas outras figuras.

    OLCOTT Como assim?

    BLAVATSKY No foi William Eddy. Fui eu.

    OLCOTT Como assim? Voc estava sentada na platia. Eu vi. No pode ter sido voc. No

    estava em transe.

    BLAVATSKY No preciso estar em transe.

    OLCOTT Como assim?

    BLAVATSKY No sofro nenhuma alterao corporal, nem de conscincia, no dependo de

    nenhuma condio especial, nem de escuro, nem de silncio. O mdium passivo,

    sujeito a influncias externas. Eu controlo essas foras com a minha vontade.

    OLCOTT No estou entendendo...

    BLAVATSKY (inflamando-se) Acha mesmo que esse mdium, Eddy, tem controle

    inteligente sobre essas formas que aparecem quando ele entra em transe?

    OLCOTT (tambm exaltado) Espritos. So espritos de mortos.

    BLAVATSKY So projees dele prprio. O duplo astral dele assume as formas que os

    espectadores sugerem mentalmente. As pessoas vm aqui em busca de consolao,

    querendo encontrar seus entes queridos que morreram...

    OLCOTT No! No pode ser uma mascarada. A aparncia dos espritos muito variada, a

    altura, o volume do corpo. No d para William Eddy parecer criana, por

    exemplo. Ou uma mulher magra.

    BLAVATSKY (acalorada) No! No com o corpo fsico. o corpo astral dele. Uma

    projeo que ele produz no akasha!

    OLCOTT Desculpe, mas no sei do que est falando. Eu acredito nos espritos.

  • 36

    BLAVATSKY (muito exaltada) - Um esprito uma essncia, um poder. No tem forma! A

    simples idia de forma implica materialismo. Os espritos, as almas astrais podem

    assumir muitas formas, mas a forma para eles no um estado permanente. Quanto

    mais material a nossa alma, mais materialista a nossa concepo de esprito. Esse

    o maior problema do espiritismo americano: materialismo, um circo de fenmenos,

    um deboche, completamente indiferente ao lado filosfico!

    OLCOTT Ento voc no acredita no espiritismo!

    BLAVATSKY Se para combater o progresso do materialismo, eu defendo o espiritismo.

    OLCOTT Mas no acredita.

    BLAVATSKY - No. No nessa forma de espiritismo.

    OLCOTT E existe outra, Jack?

    BLAVATSKY Jack!?!

    Blavatsky ri com gosto do apelido e continua caminhando at o extremo do palco.

    Olcott se detm e volta-se para a platia, no centro do palco, fala diretamente para o pblico.

    OLCOTT - Ns dois sentimos que ramos do mesmo mundo, cosmopolitas, livres pensadores.

    O que nos ligou foi uma simpatia comum pelo lado oculto superior do homem e da

    natureza; a atrao de alma para alma, sem nada de sexo. Nem naquele momento,

    no incio, nem depois, nenhum de ns dois jamais sentiu que o outro era do sexo

    oposto. ramos simplesmente parceiros, camaradas, e nos tratvamos assim.

    Blavatsky se detm junto coxia de um dos lados do palco.

    Faz um gesto de desconsolo com as ltimas palavras dele, decepcionada porque ele no a v

    como mulher.

    Repentinamente, no extremo oposto do palco, em um foco de luz de outra natureza, surge a

    figura do Mestre.

    BLAVATSKY (sussurra) Mestre!...

    MESTRE - Na Amrica encontramos o homem que ser lder.

    No ainda. Ser.

    Homem de grande fora moral, altrusta.

    Ele e voc esto longe de ser o melhor, mas so o melhor possvel.

    A sua obra comea.

  • 37

    Madame Blavatsky cobre a boca com ambas as mos, tomada por grande surpresa e intensa

    emoo.

    Enfia a mo na abertura da blusa vermelha, toca o corao.

    Retira a mo e olha o sangue na ponta dos dedos.

    Apagam-se de chofre as luzes de ambos.

    Sozinho em cena, Olcott traga o cigarro que acendeu durante o dilogo de Helena com o

    Mestre.

    OLCOTT (soprando a fumaa no ar) Nossa amizade, que comeou em fumaa, acendeu um

    grande fogo de amor fraterno. Conhecer Helena Blavatsky foi uma educao,

    trabalhar com ela e privar de sua intimidade, uma experincia mais que preciosa.

    Olcott sai.

    Msica.

    Mudana de luz.

    Do alto despenca uma grande cortina pintada com o mural da Lamaseria (ver referncia).

    Entram dois homens, que podem ser Judge e George Henry Felt, este muito pedante, e Olcott,

    logo depois dos dois.

    Junto com eles, Helena Blavatsky e as outras trs atrizes (Reprter, Dama 1 e Dama 2), todos

    com roupas cosmopolitas e elegantes.

    No h personagens muito definidos, os atores tm funes.

    Trazem consigo mveis esparsos e montam no palco a sala da Lamaseria.

    S uma das mulheres no participa da arrumao: coloca-se num canto do proscnio,

    anotando rapidamente num caderninho, enquanto se ouve a sua voz gravada.

    REPRTER (voz gravada) Os leitores do Spiritual Scientist gostaro de saber que um

    movimento de grande importncia acaba de ser inaugurado em Nova York, sob a

    liderana do coronel Henry Olcott. Trata-se da Sociedade Teosfica. A fundao se

    deu nos sales de Madame Blavatsky, onde um grupo de dezessete damas e

    cavalheiros se reuniu para assistir a uma palestra.

    Volta-se para o palco.

    A sala est pronta, todos com xcaras de ch, animados, inquietos, uma excitao no ar,

    falando ao mesmo tempo.

  • 38

    OLCOTT A posio do espiritismo nos Estados Unidos crtica, no vai muito alm de

    uma forma rasa de religio que s se interessa pelos fenmenos. Sem filosofia.

    DAMA 1 Mas nunca houve tanto interesse como agora. Todo mundo quer falar com os

    mortos!

    OLCOTT Existe um conflito de fundo entre cincia e religio, entre materialismo e

    espiritualismo.

    FELT - O espiritismo, isso que chamam de manifestaes, me interessa pouco. Meu

    interesse a matemtica, a cabala, as leis secretas da natureza, tudo que pode ser

    demonstrado com exatido: a cincia oculta que os egpcios e caldeus conheciam e

    que a cincia de hoje ignora.

    JUDGE - Uma sociedade de estudos desse tipo, hoje, s faz sentido se for um ncleo de

    intelectuais corajosos e esclarecidos, para difundir informao.

    DAMA 2 Uma sociedade que no seja religiosa...

    DAMA 1 ...nem beneficente.

    DAMA 2 Que respeite a f de cada um.

    JUDGE Um organismo cientfico, com o objetivo de investigar, no de ensinar. (pega um

    grosso livro sobre a mesa)

    DAMA 1 Como os Rosacruzes.

    DAMA 2 O Crculo Hermtico! Que tal?

    OLCOTT Estudos ocultistas o que a sociedade se prope a fazer...

    FELT Sociedade de Egiptologia.

    JUDGE (lendo) Teologia - Do grego: 'cincia dos deuses'. Estudo dos atributos da divindade

    e suas relaes com o mundo e com os homens. Vontade revelada de Deus.

    DAMA 2 Sociedade Teolgica?

    BLAVATSKY Nunca!

    DAMA 1 No! Teologia a cincia do requenteado: o sujeito tem de acreditar naquilo que

    outros viram e ouviram.

    JUDGE (lendo) Teosofia - Do grego: sabedoria divina. Conjunto de doutrinas religioso-

    filosficas que tem por objeto a unio do homem com a divindade, mediante a

    elevao progressiva do esprito at iluminao.

    BLAVATSKY Sociedade Teosfica...

    DAMA 2 Gostei.

    DAMA 1 Eu tambm.

    OLCOTT Sabedoria divina...

    BLAVATSKY Chega de tanto Deus! Que o ser humano veja e oua por si mesmo.

  • 39

    OLCOTT Seja ento: Sociedade Teosfica.

    Aplausos breves es esparsos, todos conversam animados e saem.

    Menos Helena Blavatsky.

    Ela fala diretamente para o pblico.

    BLAVATSKY Quando recebi ordens de comear a falar em pblico sobre os fenmenos e os

    mdiuns, comeou o meu martrio! Todos os espritas caram em cima de mim,

    alm dos catlicos, que j me detestavam porque falo mal da execrvel igreja deles,

    e dos cticos, porque falo mal da execrvel pessoa deles. (breve riso) Seja feita a

    sua vontade, El Morya, Mestre, eu disse. E baixei a cabea.

    Sem parar de conversar com a platia, vai para a mesa.

    Tive de me identificar com o espiritismo. Para isso fui mandada de Paris para a

    Amrica. Para comprovar os fenmenos, e, ao mesmo tempo, paradoxalmente,

    mostrar o equvoco que era a teoria dos espritos dos mortos.

    Acomoda-se mesa, manipula papis, livros, tinteiro, caneca de canetas e lpis, se

    preparando para comear a escrever.

    Escrevemos cartas e artigos infindveis para os jornais, expusemos nossas idias e

    nossos coraes. Ganhamos alguns amigos, muitos inimigos. Era preciso

    convencer primeiro que existem seres em um mundo invisvel, fossem esses seres

    espritos dos mortos ou elementais, no importa. E que existem poderes ocultos no

    ser humano, poderes capazes de fazer de ns deuses sobre a terra. Para isso

    fizemos, depois, a Sociedade Teosfica. Podem me caluniar e me ofender, podem

    me chamar de mdium, de esprita. Ou de impostora. Aos meus Mestres, os

    Mahatmas, jurei dedicar minha vida a mostrar a verdade. Satyat nasti paro

    dharmah - No h religio superior verdade. E serei fiel minha palavra.

    A luz geral se apaga, restando apenas um foco sobre a mesa.

    Blavatsky se pe a escrever concentradamente.

    A projeo se acende e nela vemos, em um close gigantesco, a mo dela que raspa o papel

    com a pena, escrevendo:

  • 40

    Com toda reverncia, entrei em esprito no templo de Isis, e levantei o vu

    daquele que , que foi e ser.

    Olcott entra com uma grande cabea de leoa empalhada, de olhos brilhantes, boca

    escancarada e dentes mostra.

    Apia o objeto na mesa, e mostra um jornal dobrado na mo.

    A projeo se apaga com a entrada dele.

    OLCOTT Escute (l no jornal): Madame riu. E quando dizemos que Madame riu como

    dizer que o prprio riso estava presente, pois o seu riso a prpria essncia da

    claridade, da jovialidade, da alegria. Essa a atmosfera que Madame, com suas

    frases inteligentes, sua conversao brilhante, sua carinhosa amizade, suas

    inesgotveis anedotas e, atrao principal para quase todos os visitantes, os seus

    fantsticos fenmenos psquicos, infunde j famosa Lamaseria, o salo mais

    atraente da metrpole de Nova York hoje.

    BLAVATSKY Madame o rabo dele! Madame era o nome da cadela lulu de minha prima

    em Paris. Me d esse jornal. Quero ver quem essa besta! Como eles sabem que a

    gente chama o apartamento de Lamaseria?

    OLCOTT As pessoas falam.

    BLAVATSKY No devem nem saber o que um lama, quanto mais uma lamaseria. Nem

    voc sabe.

    OLCOTT Sei, sim. Voc um lama!

    BLAVATSKY Hah!!! Me d esse jornal!

    Atira-lhe o jornal, divertido, e vai colocar a cabea de leoa empalhada em um canto da sala.

    BLAVATSKY (lendo o jornal) Isso a o que ?

    OLCOTT Bonito, no ? Para assustar as visitas.

    Helena ri.

    Olcott senta-se do lado oposto da mesa, diante dela.

    Helena atira para ele um mao de folhas escritas.

    BLAVATSKY Escrevi isto aqui ontem de noite, por ordens superiores, mas no tenho a

    menor idia do que vai ser. Talvez um artigo de jornal, talvez um livro, talvez nada.

    Seja como for, obedeci. Leia, por favor.

  • 41

    OLCOTT (lendo) Com toda reverncia, entrei em esprito no templo de Isis, levantei o

    vu daquele que , que foi e ser. A filia vocis, a filha da voz divina, respondeu do

    seu trono de misericrida, do outro lado do vu. O Deus vivo falou por seu orculo

    o homem. E me satisfez.

    BLAVATSKY Olcott, eles me mandam sentar e escrever. Eu obedeo. E sai tudo com a

    maior facilidade! Metafsica, psicologia, filosofia, religies antigas, zoologia,

    cincia natural... Eu nem me pergunto: Ser que eu sei escrever sobre o assunto?

    Simplesmente sento e escrevo.

    Os dois se olham um instante, em silncio.

    BLAVATSKY - No pense que eu estou louca, no.

    OLCOTT No! No penso isso!

    BLAVATSKY Jamais tinha escrito uma palavra em ingls, nem publicado nada, at os

    artigos de jornal sobre o espiritismo.

    OLCOTT Bom treino.

    BLAVATSKY - Se continuar com isso (aponta os papis) vou precisar da sua ajuda.

    OLCOTT Claro, Jack!

    BLAVATSKY - No tenho a menor noo das regras literrias. De preparar o texto para a

    impresso, correo de provas, no sei nada disso.

    OLCOTT Eu ajudo. Para mim vai ser um aprendizado.

    BLAVATSKY - Voc pode no acreditar, mas estou dizendo a verdade. O que me ocupa a

    prpria sis. Nunca fui to feliz, Olcott! Vivo num encantamento permanente, uma

    vida de vises e revelaes, com os olhos abertos. Bem abertos. Sento na frente da

    mesa e a bela deusa desfia diante de mim o sentido secreto de seus conhecimentos

    h tanto perdidos. A cada hora o vu de Isis vai ficando mais fino e transparente...

    Grande msica.

    A luz se apaga.

    Expande-se a projeo: uma ritmada composio das mesmas imagens de templos e runas

    antigas mostradas na projeo da primeira viagem dela, que agora se fundem em travellings,

    panormicas e zooms com imagens dos produtos do Homem nessas culturas antigas,

    cermicas, murais, esculturas, armas, utenslios, roupas, etc.

    [palavras de Blavatsly em carta para sua irm Vera:] as imagens do passado desfilam diante

    do meu olhar interior. Lentamente, silenciosamente, como imagens de um panorama

  • 42

    encantado, sculo aps sculo aparecem diante de mim... Raas e naes, pases e cidades,

    emergem de um sculo anterior, depois se apagam, se desmancham em outro perodo, cuja

    data precisa ento me revelada... A mais remota antiguidade cede espao a perodos

    histricos; mitos se explicam com acontecimentos e personagens reais, que existiram de fato; e

    cada acontecimento, importante ou no, cada revoluo, cada folha virada no livro da vida

    das naes, surge como uma fotografia em minha mente, impresso em cores indelveis...

    Depois de um breve momento s de projeo, acende-se um foco sobre a mesa, coberta por

    uma profuso de papis e livros.

    Blavatsky e Olcott esto sentados nos mesmos lugares, um na frente do outro.

    Ela escreve furiosamente, ele l com ateno, o lpis enfiado atrs da orelha, corrige o

    manuscrito, risca, reescreve coisas.

    A projeo prossegue em cima e em torno deles.

    msica, mescla-se a voz gravada de Blavatsky:

    BLAVATSKY (gravao, pausada, entrecortada, dividindo as informaes)

    A natureza triuna:

    uma visvel, outra invisvel,

    e, acima delas, o esprito,

    eterno, indestrutvel.

    O ser humano triuno:

    o corpo, a alma astral,

    e, acima deles, o esprito.

    Se a alma se funde ao esprito,

    o homem se faz imortal.

    A Magia, como cincia,

    o conhecimento desses princpios,

    para controlar as foras da natureza.

    A msica e a projeo cessam bruscamente, volta a luz geral.

    OLCOTT No posso deixar passar esta citao aqui. Tenho certeza que no pode ser como

    voc escreveu.

    BLAVATSKY Ah, no tem importncia, deixe assim mesmo. Ningum vai perceber no meio

    de tanta coisa...

    OLCOTT Voc no pode fazer uma coisa dessas.

  • 43

    BLAVATSKY (irritada) Posso fazer o que eu quiser.

    OLCOTT (duro) No, no pode. Ningum pode. Quem faz citao, tem de fazer direito.

    BLAVATSKY Escute aqui! O que eu sei de ingls aprendi na infncia, faz mais de trinta

    anos! Nunca estudei nada disso! Nunca fui para a faculdade! O que eu sei, aprendi

    sozinha!

    OLCOTT No desculpa! Isto est errado e d para corrigir.

    BLAVATSKY (explodindo) Ento corrija e no me amole!

    OLCOTT (respirando fundo, fazendo um esforo para se controlar) Se voc, ou os seus

    Mestres puderem indicar o livro...

    BLAVATSKY (violenta) No mexa com os Mestres! Voc tambm? Voc... voc...

    OLCOTT (explodindo tambm) Eu... (respira, controla-se, levanta-se) Voc est fora de si

    outra vez. Vou sair.

    Encaminha-se para a coxia.

    BLAVATSKY (no ltimo momento) Bom, espere um pouco. Eu tento conseguir o livro.

    Olcott se detm e olha para ela.

    Madame Blavatsky concentra o olhar em um ponto fixo da mesa, a luz fica mais intensa sobre

    a mesa.

    Msica.

    Os papis comeam a mexer sozinhos e sobem, empurrados por baixo por alguma coisa.

    Surge do meio deles sobre a mesa um grosso volume encadernado em couro.

    BLAVATSKY Pronto. Pode pegar o livro e corrigir o meu escrito.

    Olcott volta para a mesa, senta-se, e, deslumbrado, examina o livro.

    Helena pega uma tesoura e, afetando total concentrao, recorta uma pgina, depois outra, e,

    febrilmente, ao longo da sequncia seguinte, recorta e cola pedaos de seus prprios textos,

    formando pginas compridas, que transbordam da mesa.

    Mudana de luz e de msica.

    A projeo volta a envolver os dois com seus ritmos visuais: uma sequncia de pginas de

    livros antigos, em papiro, em pergaminho, em papis de diversas texturas, com iluminuras,

    mapas, diagramas, e sobretudo textos, textos e mais textos, escritos nos mais variados e

  • 44

    estranhos alfabetos, em escrita cirlica, em escrita cuneiforme, em hieroglifos, em

    ideogramas orientais, no alfabeto indiano, no rabe, no grego clssico...

    msica, mescla-se a voz gravada de Blavatsky.

    BLAVATSKY (gravao) - A Magia a Sabedoria espiritual.

    A Natureza o aliado material, pupilo, servidor do mago.

    Um nico princpio vital permeia todas as coisas,

    esse princpio pode ser controlado pela vontade.

    O conhecimento arcano mal aplicado bruxaria;

    seu uso benfico a magia verdadeira,

    a Sabedoria Divina.

    Ainda sob a projeo, ainda com a msica, comeam a entrar todos os outros atores.

    No h personagens definidos, so os frequentadores da Lamaseria que retornam.

    Todos falam ao mesmo tempo, h um clima de festa, de celebrao, de nimo e esperana,

    como nos anos 1960.

    BLAVATSKY (divertida, mostrando uma pgina-colagem) assim que eu escrevo. Olhe se

    isso aqui manuscrito que se apresente! (ri, sacode a pgina, nota a gordura do

    prprio brao e se auto-debocha) Escrevo, corto, colo e engordo (ri, muito alegre e

    animada).

    RABINO Pom, feja bem, meu querrida, pode ser que texto no est bonito, mas contedo

    decerto luminoso. Trrinta anos eu estuda cabala de meu religion, dois horas

    converrsa com Madame esclarrece os passaxens difcels mais que todos mestrres

    que conhece.

    [Olcott a respeito do mstico judeu, que era mdico: Homem estranho,

    muito estranho. Tem dotes de vidncia e percebe espiritualmente as

    doenas dos pacientes. Velho, magro, curvado, cabelo ralo, fino,

    espetando em todas as direes na nobre cabea. Passa rouge no rosto

    para disfarar a excessiva palidez. Tem o hbito de jogar a cabea para

    trs e ficar olhando vago no espao enquanto escuta. Sua pele

    transparente e extremamente fina. Usa roupas de vero em pleno

    inverno. Tem o peculiar costume de comear todas as suas respostas

    com: Pom, feja bem, meu querrida.]

  • 45

    DAMA ELEGANTE 1 No acredito em milagre. Milagre uma transgresso das leis da

    natureza.

    BLAVATSKY (alarmada, eloquente) - No existe milagre! Tudo o que acontece resultado

    da lei: eterna, imutvel, ativa. O que parece milagre s a ao de foras que vo

    contra aquilo que os cientistas, de grandes conhecimentos, mas pouca sabedoria,

    chamam de leis bem estabelecidas da natureza.

    SIGNOR B Si, si. I miracoli si fanno con il potere della volont. (olha Madame nos olhos,

    com intensidade) Hi-la-rion.

    BLAVATSKY (sobressalta-se com o nome dito assim to solto) Cosa c? Sono pronta!

    SIGNOR B (interrompendo a ligao) Guarda! Guarda!

    Signor B fecha os olhos, faz um gesto grandioso e uma borboleta branca entra voando.

    Todos olham, assombrados, num sbito silncio.

    BLAVATSKY Bonitinho! Mas isso eu tambm fao!

    Faz um pequeno gesto discreto, quase imperceptvel, e uma segunda borboleta branca entra

    voando. As duas revoam uma em torno da outra, subindo numa espiral at desaparecer.

    RABINO (baixo para Olcott) De onde vem tanto erudio dela?

    BLAVATSKY (ouvindo e respondendo antes de Olcott) - No Oriente, explorando os

    santurios desertos, duas perguntas me oprimiam: Onde est, quem , o que

    Deus? Quem jamais viu o esprito imortal do homem? Foi procurando essas

    respostas que entrei em contato com homens que tm poderes misteriosos e um

    conhecimento to profundo que podem ser chamados de sbios do Oriente. So os

    meus Mestres, que falam comigo distncia, que ditam na luz astral tudo o que eu

    tenho de escrever. Com eles aprendi que combinando cincia e religio, pode-se

    demonstrar como um teorema a existncia de Deus e a imortalidade do esprito

    humano. isso o meu livro.

    A Dama Elegante 2 traz da coxia uma prancha de madeira grande, com uma coleo de copos

    de cristal de diversas formas e tamanhos, todos semi-cheios de gua em alturas variadas.

    Ouve-se um ah! de deleite.

    Os dois cavalheiros ajudam e colocam a prancha com clices sobre a mesa.

    Todos se renem em torno.

  • 46

    A Dama Elegante 3 entrega a bolsa para a amiga, tira as luvas, estala os dedos, flexiona as

    mos.

    E nos copos de cristal, como numa harpa de vidro, toca uma breve cano russa: Katjusha.

    Ao terminar, todos aplaudem.

    OLCOTT (para Blavatsly) Agora voc.

    BLAVATSKY Eu?

    SIGNOR B - Si, si. (gira o dedo no ar) I campanelli.

    BLAVATSKY Lo faccia lei.

    SIGNOR B No, io no. Non ho orecchio. Lo faccia lei.

    Para anim-la, a Dama Elegante 3 toca as trs primeiras notas da cano russa.

    Helena se concentra, o olhar fixo num ponto.

    E se escuta soarem no ar campainhas que reproduzem as notas.

    Um oh de assombro dos convidados que olham em torno, perdidos.

    A Dama Elegante 3 toca mais um trecho.

    Helena reproduz no astral os mesmos sons.

    Todos escutam, suspensos numa atmosfera de extrema delicadeza.

    Quando termina a cano, o silncio perdura um momento, como se todos estivessem com a

    respirao suspensa.

    BLAVATSKY (rompendo o silncio) - O corao humano ainda no se mostrou inteiro...

    (breve tempo) E agora, vamos tomar ch! Que tal?

    OLCOTT Um momento! (vai at a mesa e pega uma tabuleta que pendura em algum lugar)

    CH

    Os convidados encontraro gua fervendo e ch na cozinha,

    talvez leite e acar,

    e faro o favor de servir-se sozinhos.

    Risos.

    Saem todos, levando cada um a pea de mvel que trouxe no incio da cena, sobra apenas a

    cortina pintada, uma cadeira tombada, uma mesinha com xcaras, papis e alguns objetos em

    desordem pelo cho.

  • 47

    OLCOTT (para a platia) - Durante dois anos, trabalhei com ela enquanto escrevia sis sem

    vu. O livro era considerado uma aventura literria perigosa, rido, pesado. Mas a

    primeira edio se esgotou em uma semana. Helena Blavatsky virou uma

    celebridade inernacional. Para ns, foram anos de trabalho duro. Nosso objetivo era

    aprender experimentalmente tudo o que fosse possvel sobre a constituio do ser

    humano, sua inteligncia, seu lugar na natureza. Principalmente a Mente, a Mente

    ativa. Testamos mdiuns, fizemos experincias de psicometria, telepatia,

    mesmerismo, escrevemos para jornais. O progresso era lento. Proibida pelos

    Mestres, Helena se recusava a realizar qualquer fenmeno nas reunies pblicas.

    Os membros da Sociedade Teosfica foram se desinteressando, at que depois de

    um ano e pouco o que restava era uma organizao de slida plataforma, uma

    ruidosa visibilidade, e a indestrutvel vitalidade de dois amigos, uma mulher russa e

    um homem americano, que nem por um momento duvidavam da existncia dos

    seus mestres e do grande futuro da Teosofia. A chamado dos Mestres, partimos

    para a India.

    Olcott sai.