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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
O ENVELHECIMENTO E A RESSIGNIFICAÇÃO DA MATERNIDADE E DA
MATERNAGEM
SILVA, Tânia Maria Gomes da
RESUMO: Esse artigo apresenta um estudo comparativo que discute a ressignificação da
maternidade e da maternagem a partir de uma perspectiva geracional. O material empírico que
suporta as discussões são vinte entrevistas com mulheres-mães das camadas populares. Ancorada
nos estudos de gênero, oralidade e memória a pesquisa evidenciou que os discursos das mulheres
mais idosas sobre suas experiências maternas são mais idealizados do que os elaborados pelas mais
jovens. Na fala dessas últimas as dificuldades e angústias para a criação dos filhos numa situação de
pobreza são constantemente evidenciadas. Sabemos que toda rememoração sofre a influência do
tempo presente e defendemos que, nesses casos, a memória se vê tentada ao esquecimento daquilo
que possa vir a contrariar a ideia prevalente de que a maternidade é um dos melhores
acontecimentos da vida de uma mulher.
PALAVRAS-CHAVE: Maternidade. Envelhecimento. Gênero. Memória
INTRODUÇÃO:
Nesse trabalho discuto as representações da maternidade e da maternagem elaboradas por
vinte mulheres das camadas populares1, com idades variáveis entre 17 e 71 anos, valendo-me da
metodologia da história oral e dos estudos de gênero. O material analisado foi coletado em 2004.
Tratava-se de um trabalho de doutorado em que, discutindo uniões conjugais não legalizadas,
também chamadas consensuais ou, mais popularmente, amigamentos, busquei perceber como as
mulheres se comportavam dentro de um relacionamento informal num mundo em que tudo se busca
registrar.
As entrevistas versaram prioritariamente sobre o tema da conjugalidade, mas como sabe todo
aquele (a) que opta por esse trabalho de campo, a entrevista diz respeito a duas pessoas que se
colocam frente a frente numa “conversa”. Essa conversa pode escorregar para assuntos que não
exatamente os que gostaríamos. Por mais de uma vez, ouvi relatos sobre a vida dos vizinhos, uma
queixa contra algum parente ou reclamações contra os altos preços dos produtos nos mercados.
Nesse caso, é preciso que deixemos que o narrador fale.
1 A pesquisa foi desenvolvida na cidade de Mandaguari, noroeste do Paraná, localizada, no eixo Maringá-Londrina e
distante 325 km da capital Curitiba.
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A tese foi finalizada em 2007 e, em 2013, relendo-a num momento de distração, percebi as
mulheres haviam falado muito sobre suas experiências com a maternidade e julguei pouco
inteligente fechar os ouvidos a essas vozes que insistiam em se fazer ouvir. Assim, optei por
explorar o tema da maternidade num estágio de pós-doutorado, em 2014. Reutilizei as entrevistas e
busquei novos encontros apenas com quatro mulheres; duas mães e suas respectivas filhas
Os nomes são fictícios, a média de filhos foi de 3,5 filhos por mulher. Algumas integravam
famílias cujos membros possuíam uma razoável inserção no mercado produtivo formal, embora
com uma renda pequena2, outras estavam em núcleos muito pobres e se viam obrigadas a recorrer à
mendicância. Apenas uma era empregada doméstica, sem registro; as demais eram trabalhadoras
rurais, chamadas boias-frias; coletoras de material reciclável; diaristas, pensionistas ou viviam da
ajuda de parentes
Representação da maternidade:
As pessoas enfrentam muitas transformações em o passar dos anos. O corpo se torna mais
flácido, a pele enruga, os cabelos embranquecem e os passos se tornam mais lentos e cuidadosos.
Essas mudanças são inquestionáveis, mas há aquelas menos visíveis. Nossas representações de
mundo também se alteram com o passar dos anos. Sim, quando envelhecemos somos os mesmos,
mas somos também outros, resultado histórico de nossas vivências. Representamos o mundo e as
coisas de acordo com aquilo que nos foi dado viver, conhecer, experimentar.
O conceito de representação nasceu com a sociologia de Durkheim, mas foi Moscovici (2003)
quem se preocupou em entender como os indivíduos transformam suas ideias em práticas
cotidianas. Desde a validação da oralidade, da memória e das experiências singulares, o conceito de
representação vem sendo bastante utilizado na história. Justamente por isso vamos nos valer dos
pressupostos da corrente historiográfica que vinculam memória e representação. Isso significa dizer
que não estive em busca de uma “verdade” nas histórias das mulheres, mas antes de suas “versões”
do vivido (PORTELLI, 2016). Um discurso narrativo é perpassado tanto pelo que é dito quanto pelo
discurso sobre o que é dito, ou seja, tanto importa o acontecido, quanto a significação do acontecido
2 Apenas quatro famílias recebiam acima de 1 salário mínimo, cujo valor à época era de R$ 260,00. O Programa Bolsa
Família estava em seus primeiros momentos. Nenhuma das entrevistadas foi questionada quanto ao cadastro no
programa e, espontaneamente, não houve qualquer menção a esse respeito.
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(RICOUER, 2010) e a subjetividade que impera nesses casos não deve ser pensada como um
elemento negativo, mas antes como uma singularidade do fenômeno social (MINAYO, 2000).
Percebi não ser possível pensar as representações da maternidade sem levar em conta se a
entrevistada já havia passado a fase de gerar e maternar ou não. As memórias relacionadas à
maternidade e suas práticas tendem a ser reelaboradas, de modo que as dificuldades para parir e
criar os filhos numa situação de pobreza apareceram de modo mais explícito nos depoimentos das
mais jovens. Para aquelas com idade igual ou superior aos 50 anos ser mãe apareceu como uma
experiência não só naturalizada, mas principalmente uma benção de Deus. Quem casa quer casa, diz
o ditado popular. E filhos, eu completaria. As mães mais jovens eram mais críticas quanto à
maternidade, mas não sustentavam suas reclamações por muito tempo.
É preciso considerar que, enquanto fenômeno social, a maternidade é vivida de maneira
distinta por mulheres de acordo com classe, raça/etnia, religião (SCAVONE, 2001) mas também
coorte etária. Foi o desejo de desvendar esse universo de ambiguidades que me instigou a
incorporar a variável etária como elemento diferenciador buscando comparar narrativas de mulheres
jovens e as daquelas em processo de envelhecimento.
Memórias maternas na perspectiva geracional
No Brasil, considera-se que um indivíduo ingressou no grupo de idoso quando completa 60
anos. A Organização Mundial da Saúde (OMS), levando em conta variados aspectos, estabelece
esse marco como sendo 65 anos. Isso porque leva em conta as diferenças econômicas que separam
países desenvolvidos e os em desenvolvimento (SOUZA, 2013). Pesquisa do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística definiu que, no Brasil, a expectativa de vida é de 73 anos (apud RUIZ,
SENGIK, 2013).
Segundo Debert (1994), ao se analisar o envelhecimento deve-se levar em conta a questão
de gênero, que é ainda mais importante do que classe. Nesse trabalho vamos articular diferentes
variáveis: gênero, classe e faixa etária, a fim de obtermos um quadro, não uma fotografia3, mais
aproximada da realidade.
Nesse trabalho defini como em processo de envelhecimento as entrevistadas com idade
igual ou superior aos 50 anos, quando, via de regra, as mulheres raramente poderão ter filhos sem a
3 Demo, citado por Minayo (2000), afirma que o que se pode ter dos fenômenos sociais é menos um retrato e mais uma pintura.
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intervenção para a reprodução. Embora hoje mulheres acima dos 50 se tornando mães por meio das
novas tecnologias conceptivas (GROSSI; PORTO; TAMANINI, 2003) é raro que isso ocorra nas
camadas populares, devido aos custos envolvidos (MATTAR, DINIZ, 2012).
Para Aparecida, 29 anos, criar filhos é uma tarefa tão penosa que quase a deixa tererê, isso é,
louca: “(...) Ai meu Deus, com quatro crianças. Ih, eu prefiro mil vezes pegar uma roça prá carpir
no solão quente do que cuidar de criança”. Ela informa que seu dia é sempre arrumando ora o
menino, ora a menina para a escola, num corre-corre estressante que a deixa totalmente sem tempo
para “arrumar um cabelo, fazer uma unha”, além de deixá-la esquecida, a ponto de não conseguir
guardar um nome de uma pessoa ou um número de telefone. Afirma que o marido chega em casa e
logo senta para assistir televisão, deixando as crianças totalmente aos seus cuidados, além de
reclamar com ela por não ter autoridade sobre os pequenos. Observem, contudo, que o caráter
ideológico que reveste a maternidade e o discurso valorativo que a sustenta são muito fortes, e, por
isso, ela não consegue sustentar esse discurso crítico por muito tempo. Daí finalizar: “mas a única
coisa que não me arrependo são os meus filhos”. Porque Aparecida recua nas suas reclamações,
que são compreensíveis e legítimas? Com certeza, a dificuldade de negar a ideologia da
maternidade como sendo uma benção, ideia que está profundamente naturalizada pelo senso
comum.
As desigualdades de gênero no cuidado com os filhos penalizam todas mulheres mas, sem
dúvida, é mais cruel com as mais pobres. Rosário afirma que se um filho adoece durante a noite fica
sempre a cargo dela providenciar recursos porque o marido lhe diz: “levanta, vai levar fulano pro
pronto socorro,(...) está com febre e eu não posso ir, eu vou ter de trabalhar no outro dia, eu tenho
de descansar, amanhã cinco horas eu tenho de pular da cama”. Também Júlia, com indisfarçável
irritação, me conta que o marido não ajuda nem na doença das crianças, sendo sempre ela que tem
de levantar e procurar recursos mesmo o casal vivendo num bairro perigoso para uma mulher
transitar sozinha com uma criança no meio da noite: “É tudo eu, tudo eu”.
Vamos contrapor os depoimentos dessas jovens mulheres com o de Elza, 63 anos, também
mãe de quatro filhos: “Não deram muito trabalho. Só eu [para cuidar] e não achava difícil. Eu
comecei nova a ter filhos. A mulher de hoje não sabe criar” 4. Enquanto Aparecida, Júlia e
Rosário, em pleno processo de maternagem, não conseguem esconder sua insatisfação, Elza, já
distanciada dessa rotina, consegue ser bem menos crítica: “Eu tinha alegria com meus filhos
pequeno. Quanto mais eu tinha, mais eu não ligava. Mulher que não quer ter filho, não quer ter
4 Elza, entrevista realizada em 28 de março de 2013
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trabalho”5. Toda rememoração sofre a ação do tempo presente. Ao nos dar o depoimento, Elza se
encontrava com o marido aposentado e os filhos crescidos, portanto, descansada das atribulações.
Podemos pensar que a calma hoje vivida redimensiona os acontecimentos do passado, porque todo
relato varia, na forma e no conteúdo, dependendo das condições que determinam o momento de sua
coleta. O relato é acerca do passado, mas sua interpretação se faz no e pelo presente.
D. Ângela, 71 anos, se casou aos doze anos e criou sozinha seus nove filhos, desde que o
marido saiu uma noite, abandonando-as com as crianças por muitos meses. Quando voltou não foi
por muito tempo. Ela conta: “Meus filho foi criado debaixo de pé de café. Tem um aqui que com
quinze dia eu levei prá roça”. Hoje em dia, considera, “é mais difícil cuidar dos filhos”.
Vamos a Dinorá, 57 anos. Observem a semelhança do seu depoimento com outros de
mulheres da geração mais velha: “Ah, quando estava trabalhando assim por perto eu levava tudo.
Os dez. Levava tudo. Os maior ia carpir junto com nós, os outros cuidando dos mais pequeno”.
Mas também vê com outros olhos o momento atual: “Eu falo pras minhas menina. Deus me perdoe,
mas filho demais não pode. Antigamente era mais fácil de criar, agora cada vez ficando mais
difícil” (grifo meu). A ênfase na facilidade para criar filhos no passado se contrapondo às
dificuldades do presente foram recorrentes. Neusa, 42 anos, mãe de três filhas já casadas e que se
encontra num momento de transição entre o que eu denomino geração mais velha e mais nova,
ensina às filhas: “Agora arrumar criança está difícil, hoje está pior do que antigamente, porque
[antes]sempre de qualquer maneira criava uma criança.”. Na fala das mulheres há sempre um
antes e um depois a demarcar facilidade/dificuldade na maternagem.
Para entender essa percepção das mulheres de que, em tempos passados, era mais fácil ser
mãe, buscaremos suporte em Meyer (2006) e Martins (2008). Ambas afirmam que, ao longo dos
séculos XIX e XX, multiplicaram-se os discursos a respeito dos cuidados com os corpos femininos,
especialmente os das mães, visando à saúde dos filhos, à proteção à família e ao bem-estar da
sociedade, com a introdução dos discursos médicos intermediando práticas antes eminentemente
femininas. As mulheres da elite foram as primeiras a receber essas orientações, geralmente
transmitidas por meio de manuais diretamente endereçados à mães (MARTINS, 2008).
No século XIX, o surgimento da puericultura traria uma nova ordem a direcionar a vivência
da maternidade. O partejar deixaria de ser uma prática cultural feminina para se inscrever no âmbito
do conhecimento científico e masculino. Desde que o capitalismo precisava de cidadãos fortes e
capazes para a construção de um Estado rico, era preciso retirar das mãos das parteiras, primeiro das
5 Entrevista realizada em 28 de março de 2013.
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mais simples, depois mesmo das profissionais, o domínio sobre o nascimento, um aspecto tão
fundamental da vida. As mães das camadas populares mantiveram-se por certo tempo alheias aos
novos ensinamentos da puericultura, mas, consideradas as responsáveis pelo bem e pelo mal das
crianças, terminaram sofrendo um processo de culpabilização pelas doenças e pela morte dos filhos,
que as levaria, pouco a pouco a ceder. Segundo os médicos, muitas mulheres eram teimosas,
ignorantes e apegadas às práticas da medicina popular, fonte de abusos e de erros, cabendo,
portanto, a eles, com o apoio do Estado, orientá-las e conduzi-las pelo caminho da ciência,
disciplinando-as e fiscalizando as suas práticas. O importante era ensiná-las a ser mães (MARTINS,
2008).
Segundo Meyer (2006), foi o que fez com que se multiplicassem os discursos a respeito dos
corpos femininos, delimitando-se uma rede discursiva de cuidados específicos – do pré-natal, da
medicina, das tecnologias da nutrição, da psicanálise, dando ensejo ao que a autora denomina de
“politização da maternidade”, que atravessaria todo o século XX. O corpo feminino passa a ser
guiado por um poderoso regime de vigilância e de regulação. A esse controle sobre a vida e os
corpos dos indivíduos, monitorando nascimentos e mortes, duração e longevidade das pessoas,
investindo sobre “os corpos, a saúde, as maneiras de se alimentar e de morar, as condições de
vida, todo o espaço de existência” dá o nome de “bio-política” (FOUCAULT,1999, p.135). Esses
discursos moralizantes e normatizadores, longe de terem perdido força, ganharam fôlego e se
tornaram cada vez mais sofisticados em um mundo em que as tecnologias políticas têm cada vez
mais impacto na vida das pessoas. O corpo feminino, mais precisamente o corpo grávido, está no
centro desses procedimentos de poder e a maternidade tem sido transformada, desde os primeiros
instantes, em um campo quase técnico, descrevendo e monitorando, “antecipada e minuciosamente,
o desenvolvimento físico, cognitivo e emocional do feto, inscrevendo-se numa rede de controle e
regulação da vida” (MOREIRA E NARDI, 2009, p.574).
Essa intervenção na vida das mulheres, no que tange às formas de pensar e de viver a
maternidade, apresenta distinções conforme a classe social, afirmam Moura e Araujo, (2013). Para
as mais pobres é um processo custoso, pois a “maternidade responsável” envolve enxoval, pré-natal,
alimentação regrada, descanso, tranquilidade, disponibilidade para a amamentação, visitas
periódicas a pediatras, vacinas, múltiplos cuidados de higiene e, é claro, maior proximidade
possível entre a mãe e o bebê, sob pena de riscos para a saúde psicológica da criança. Tais
ensinamentos estão implícitos nas políticas públicas dos governos, em todas as esferas de poder,
além de serem reiteradamente transmitidos por grupos religiosos e assistenciais, dizem as autoras.
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Um exemplo é o “Guia do Líder da Pastoral”, da Pastoral da Criança, estrutura da Igreja
Católica que orienta os comportamentos das mulheres quanto aos cuidados e atitudes com seus
bebês recomendando que a mãe e o bebê se olhem nos olhos durante a amamentação, que os pais
peguem o bebê no colo para acariciar, falar e brincar, mesmo quando ele está chorando (ANJOS,
2007).
Bem na contramão desses preceitos, Elza, uma das entrevistadas que compõe o que
chamamos de “geração mais velha”, diz que não tinha o hábito de carregar os filhos: “Nem
conversar com criança que eles acostumam com a sua conversa e não deixa mais você fazer nada.
Também não carregava muito não”6. Mãe de cinco filhos, trabalhadora rural, é forçoso admitir que
essa mulher dispunha de pouco tempo livre para seguir tais ensinamentos que, nos dias de hoje,
Elisa, 18 anos, e Júlia, 22 anos, ambas mães de dois filhos, sentem pesar sobre seus ombros. Não
nos surpreende, portanto, que para elas “a coisa mais difícil na vida de uma mulher é cuidar dos
filhos” (Elisa) porque eles “tornam a vida mais difícil” (Júlia).
É comum que agentes comunitárias de saúde e visitadoras7 percorram bairros carentes, indo
casa por casa, a fim de que não lhes escape mulher alguma a ser ensinada nos modos de viver e
pensar a maternidade. É o que Castel (2011) denomina exclusão positiva, ou seja, políticas de
inserção elaboradas a fim de fazer mais por quem tem menos e concebidas para “salvar” as
populações em dificuldade, mas que terminam mantendo os estigmas sociais.
Creio poder dizer que as mulheres das camadas populares não desistem da maternidade
porque no universo cultural em que elas transitam o discurso valorativo da maternidade é muito
forte, mas não penso que isso, por si só, seja a única causa explicativa. O que eu pude perceber
numa análise das entrevistadas, é que todas elas foram mães muito cedo. Além disso, engravidaram
tão logo iniciaram os relacionamentos, evidenciando que filhos é uma consequência naturalizada do
relacionamento conjugal. Porém, como já pude afirmar em outra ocasião (SILVA, 2013; 2012), é o
fato de que a maternidade seja um dos poucos projetos que elas, então meninas pobres, puderam
realizar que me parece mais explicativo do fato de que, a despeito da pobreza e das dificuldades que
essa lhes impõe, nenhuma das mulheres desistiu de ser mãe. Mesmo Eni, a única que confessou que
nunca quis ser mãe, não seguiu outro caminho, pois teve 7 filhos.
6 Entrevista realizada no dia 04 de março de 2013. 7 As funções das visitadoras podem ser encontradas em KLEIN (2012) e em ANJOS (2007). Não há obrigatoriedade de
que essas atividades sejam desempenhadas exclusivamente por mulheres, ainda que prioritariamente o sejam.
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Não gostava de criança. Não gostava mesmo. E tive tanto filho.
Nunca sonhei ter filho. Aconteceu. Quando eu ganhei eu falei:
“Ah, meu Deus, eu pedi tanto pro cê [para não engravidar].”
O depoimento de Eni se distingue dos demais: “Nunca quis ter filhos. Minha mãe até ficava
brava comigo. Fora de brincadeira. Acho que Deus me deu esse castigo (grifo meu). Queria ficar
livre”. Achamos que, ao usar a palavra castigo para se referir aos filhos, ela desconstrói noções
naturalizadas do amor materno e pluraliza formas de significados da maternidade. Mas, tendo sido
mãe sete vezes, evidencia que esse rompimento se faz mais a nível simbólico do que na prática
vivencial.
Andrea ficou grávida com 14 anos. Vivia com a avó, um irmão e o pai alcóolatra. A mãe
abandonou a casa seguindo um amor que, segundo a filha, “a fez largar eu e meu irmão pequeno
para meu pai e minha avó criar. Mora aqui pertinho, em Jandaia, mas nunca veio ver a gente
mais”. Pergunto-lhe o que ela pensa dessa atitude e a resposta vem rápida: “eu penso que isso não é
mãe, porque fazer isso, largar os filhos por causa de um homem?”. De novo nos defrontamos com
os estereótipos que modelam a figura materna como assexuada e comprometida exclusivamente
com o amor e o zelo aos filhos.
Conclusão
Esse estudo pautou-se na análise de depoimentos de vinte mulheres das camadas populares,
com idades variáveis e que foram divididas em dois grupos: jovens e idosas. Considerou-se como
idosa as mulheres acima de 50 anos, em função de já terem finalizado ou estarem no término de
seus períodos reprodutivos.
A análise comparativa desses depoimentos em função de ainda estarem ou não gerando e
cuidados dos filhos, ou seja, exercendo a maternagem, evidenciou que as mulheres mais idosas,
com filhos crescidos, longe das atribuições que uma criança acarreta, falam sobre essa experiência
de maneira muito mais tranquila, não exatamente se esquecendo das dificuldades que vivenciaram,
mas ressaltando em primeiro lugar como conseguiram vencê-las. Sejam sozinhas ou com ajuda dos
companheiros, elas insistiram mais em dizer que filho é uma benção. Já as mulheres mais jovens,
mesmo quando terminavam seus discursos enfatizando que os filhos era uma presença importante
em suas vidas, não conseguiam deixar de mencionar o pesado encargo que eles lhes causavam.
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Tais distinções nos discursos nos levaram a elaborar uma tese explicativa que se sustenta na
seguinte argumentação: a maternidade é uma experiência profundamente naturalizada e com alta
carga de emotividade. É também uma zona As mulheres desde muito novas são instadas ao desejo
de serem mães. É quase um imperativo. Passam a infância embalando bebês ou, no caso das mais
pobres, cuidando dos irmãos menores, com os quais se fazem passar por mãezinhas. Jovens têm
sonhos como os de qualquer outra adolescente, mas grande parte desses sonhos envolvem aspectos
materiais que elas raramente podem fazer concretizar. Seus projetos de estudos, viagens, conquistas
profissionais se desvanecem como bolhas de ar numa sociedade marcada pelos diferenciais de
classe, pela oposição clara entre aqueles que tudo podem almejar e aqueles que mesmo os sonhos
precisam ser minimizados. Se os sonhos/projetos mais ambiciosos não se concretizam, há um que
só depende delas, o de ser mãe. Ter um filho só seu num mundo que lhes nega muitas outras
possibilidades não parece ser pouco.
Mulheres das camadas populares são mães muito cedo. Suas mães também foram. O círculo
da pobreza é o que de mais malvado há na própria pobreza. A reprodução da exclusão. As mulheres
pobres sofrem para ter e para criar seus filhos. A sociedade moderna, contemporânea, é hoje muito
exigente com as mães. As crianças não mais podem ser postas no mundo e nele deixadas sem
vacinas, escolas, alimentos específicos, presentes em datas um sem par de datas comemorativas. É
preciso buscar ajuda de psicólogos, pedagogos, psicopedagogos. Ser mãe nos dias de hoje implica
conviver com mudanças importantes, mas também um sem número de invencionices do consumo.
Para as mães que têm ainda filhos para cuidar todos os dias são de levantar e viver a maternidade
com todas as suas exigências. Já para as mulheres mais idosas esse tempo é tempo passado. Por isso
dele só restam as alegrias com os filhos, num evidente apagamento das dificuldades. A memória,
essa traiçoeira apaga todas as dores vivida e, do tempo de filhos criados debaixo de pés de café,
lembrança presente de uma coisa-tempo ausente, o que resta é a idealização da maternidade.
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Ageing and Re-signification of maternity and motherhood
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Abstract: This article presents a comparative study that discusses the re - signification of maternity
and motherhood from a generational perspective. The empirical material supporting the discussions
are twenty interviews with women-mothers of the popular strata. Anchored in the studies of gender,
orality and memory, the research has shown that the statements of older women about their
maternal experiences are more idealized than those elaborated by the younger ones. In the speech of
the latter the difficulties and anxieties for the raising of children in a situation of poverty are
constantly evident. We know that every remembrance suffers the influence of the present time and
we argue that in such cases memory is tempted to forget what may contradict the prevailing idea
that motherhood is one of the best events in woman's life.
Key-words: Motherhood. Ageing. Gender. Memory.