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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X O ENVELHECIMENTO E A RESSIGNIFICAÇÃO DA MATERNIDADE E DA MATERNAGEM SILVA, Tânia Maria Gomes da RESUMO: Esse artigo apresenta um estudo comparativo que discute a ressignificação da maternidade e da maternagem a partir de uma perspectiva geracional. O material empírico que suporta as discussões são vinte entrevistas com mulheres-mães das camadas populares. Ancorada nos estudos de gênero, oralidade e memória a pesquisa evidenciou que os discursos das mulheres mais idosas sobre suas experiências maternas são mais idealizados do que os elaborados pelas mais jovens. Na fala dessas últimas as dificuldades e angústias para a criação dos filhos numa situação de pobreza são constantemente evidenciadas. Sabemos que toda rememoração sofre a influência do tempo presente e defendemos que, nesses casos, a memória se vê tentada ao esquecimento daquilo que possa vir a contrariar a ideia prevalente de que a maternidade é um dos melhores acontecimentos da vida de uma mulher. PALAVRAS-CHAVE: Maternidade. Envelhecimento. Gênero. Memória INTRODUÇÃO: Nesse trabalho discuto as representações da maternidade e da maternagem elaboradas por vinte mulheres das camadas populares 1 , com idades variáveis entre 17 e 71 anos, valendo-me da metodologia da história oral e dos estudos de gênero. O material analisado foi coletado em 2004. Tratava-se de um trabalho de doutorado em que, discutindo uniões conjugais não legalizadas, também chamadas consensuais ou, mais popularmente, amigamentos, busquei perceber como as mulheres se comportavam dentro de um relacionamento informal num mundo em que tudo se busca registrar. As entrevistas versaram prioritariamente sobre o tema da conjugalidade, mas como sabe todo aquele (a) que opta por esse trabalho de campo, a entrevista diz respeito a duas pessoas que se colocam frente a frente numa “conversa”. Essa conversa pode escorregar para assuntos que não exatamente os que gostaríamos. Por mais de uma vez, ouvi relatos sobre a vida dos vizinhos, uma queixa contra algum parente ou reclamações contra os altos preços dos produtos nos mercados. Nesse caso, é preciso que deixemos que o narrador fale. 1 A pesquisa foi desenvolvida na cidade de Mandaguari, noroeste do Paraná, localizada, no eixo Maringá-Londrina e distante 325 km da capital Curitiba.

O ENVELHECIMENTO E A RESSIGNIFICAÇÃO …...Por mais de uma vez, ouvi relatos sobre a vida dos vizinhos, uma queixa contra algum parente ou reclamações contra os altos preços dos

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

O ENVELHECIMENTO E A RESSIGNIFICAÇÃO DA MATERNIDADE E DA

MATERNAGEM

SILVA, Tânia Maria Gomes da

RESUMO: Esse artigo apresenta um estudo comparativo que discute a ressignificação da

maternidade e da maternagem a partir de uma perspectiva geracional. O material empírico que

suporta as discussões são vinte entrevistas com mulheres-mães das camadas populares. Ancorada

nos estudos de gênero, oralidade e memória a pesquisa evidenciou que os discursos das mulheres

mais idosas sobre suas experiências maternas são mais idealizados do que os elaborados pelas mais

jovens. Na fala dessas últimas as dificuldades e angústias para a criação dos filhos numa situação de

pobreza são constantemente evidenciadas. Sabemos que toda rememoração sofre a influência do

tempo presente e defendemos que, nesses casos, a memória se vê tentada ao esquecimento daquilo

que possa vir a contrariar a ideia prevalente de que a maternidade é um dos melhores

acontecimentos da vida de uma mulher.

PALAVRAS-CHAVE: Maternidade. Envelhecimento. Gênero. Memória

INTRODUÇÃO:

Nesse trabalho discuto as representações da maternidade e da maternagem elaboradas por

vinte mulheres das camadas populares1, com idades variáveis entre 17 e 71 anos, valendo-me da

metodologia da história oral e dos estudos de gênero. O material analisado foi coletado em 2004.

Tratava-se de um trabalho de doutorado em que, discutindo uniões conjugais não legalizadas,

também chamadas consensuais ou, mais popularmente, amigamentos, busquei perceber como as

mulheres se comportavam dentro de um relacionamento informal num mundo em que tudo se busca

registrar.

As entrevistas versaram prioritariamente sobre o tema da conjugalidade, mas como sabe todo

aquele (a) que opta por esse trabalho de campo, a entrevista diz respeito a duas pessoas que se

colocam frente a frente numa “conversa”. Essa conversa pode escorregar para assuntos que não

exatamente os que gostaríamos. Por mais de uma vez, ouvi relatos sobre a vida dos vizinhos, uma

queixa contra algum parente ou reclamações contra os altos preços dos produtos nos mercados.

Nesse caso, é preciso que deixemos que o narrador fale.

1 A pesquisa foi desenvolvida na cidade de Mandaguari, noroeste do Paraná, localizada, no eixo Maringá-Londrina e

distante 325 km da capital Curitiba.

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A tese foi finalizada em 2007 e, em 2013, relendo-a num momento de distração, percebi as

mulheres haviam falado muito sobre suas experiências com a maternidade e julguei pouco

inteligente fechar os ouvidos a essas vozes que insistiam em se fazer ouvir. Assim, optei por

explorar o tema da maternidade num estágio de pós-doutorado, em 2014. Reutilizei as entrevistas e

busquei novos encontros apenas com quatro mulheres; duas mães e suas respectivas filhas

Os nomes são fictícios, a média de filhos foi de 3,5 filhos por mulher. Algumas integravam

famílias cujos membros possuíam uma razoável inserção no mercado produtivo formal, embora

com uma renda pequena2, outras estavam em núcleos muito pobres e se viam obrigadas a recorrer à

mendicância. Apenas uma era empregada doméstica, sem registro; as demais eram trabalhadoras

rurais, chamadas boias-frias; coletoras de material reciclável; diaristas, pensionistas ou viviam da

ajuda de parentes

Representação da maternidade:

As pessoas enfrentam muitas transformações em o passar dos anos. O corpo se torna mais

flácido, a pele enruga, os cabelos embranquecem e os passos se tornam mais lentos e cuidadosos.

Essas mudanças são inquestionáveis, mas há aquelas menos visíveis. Nossas representações de

mundo também se alteram com o passar dos anos. Sim, quando envelhecemos somos os mesmos,

mas somos também outros, resultado histórico de nossas vivências. Representamos o mundo e as

coisas de acordo com aquilo que nos foi dado viver, conhecer, experimentar.

O conceito de representação nasceu com a sociologia de Durkheim, mas foi Moscovici (2003)

quem se preocupou em entender como os indivíduos transformam suas ideias em práticas

cotidianas. Desde a validação da oralidade, da memória e das experiências singulares, o conceito de

representação vem sendo bastante utilizado na história. Justamente por isso vamos nos valer dos

pressupostos da corrente historiográfica que vinculam memória e representação. Isso significa dizer

que não estive em busca de uma “verdade” nas histórias das mulheres, mas antes de suas “versões”

do vivido (PORTELLI, 2016). Um discurso narrativo é perpassado tanto pelo que é dito quanto pelo

discurso sobre o que é dito, ou seja, tanto importa o acontecido, quanto a significação do acontecido

2 Apenas quatro famílias recebiam acima de 1 salário mínimo, cujo valor à época era de R$ 260,00. O Programa Bolsa

Família estava em seus primeiros momentos. Nenhuma das entrevistadas foi questionada quanto ao cadastro no

programa e, espontaneamente, não houve qualquer menção a esse respeito.

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(RICOUER, 2010) e a subjetividade que impera nesses casos não deve ser pensada como um

elemento negativo, mas antes como uma singularidade do fenômeno social (MINAYO, 2000).

Percebi não ser possível pensar as representações da maternidade sem levar em conta se a

entrevistada já havia passado a fase de gerar e maternar ou não. As memórias relacionadas à

maternidade e suas práticas tendem a ser reelaboradas, de modo que as dificuldades para parir e

criar os filhos numa situação de pobreza apareceram de modo mais explícito nos depoimentos das

mais jovens. Para aquelas com idade igual ou superior aos 50 anos ser mãe apareceu como uma

experiência não só naturalizada, mas principalmente uma benção de Deus. Quem casa quer casa, diz

o ditado popular. E filhos, eu completaria. As mães mais jovens eram mais críticas quanto à

maternidade, mas não sustentavam suas reclamações por muito tempo.

É preciso considerar que, enquanto fenômeno social, a maternidade é vivida de maneira

distinta por mulheres de acordo com classe, raça/etnia, religião (SCAVONE, 2001) mas também

coorte etária. Foi o desejo de desvendar esse universo de ambiguidades que me instigou a

incorporar a variável etária como elemento diferenciador buscando comparar narrativas de mulheres

jovens e as daquelas em processo de envelhecimento.

Memórias maternas na perspectiva geracional

No Brasil, considera-se que um indivíduo ingressou no grupo de idoso quando completa 60

anos. A Organização Mundial da Saúde (OMS), levando em conta variados aspectos, estabelece

esse marco como sendo 65 anos. Isso porque leva em conta as diferenças econômicas que separam

países desenvolvidos e os em desenvolvimento (SOUZA, 2013). Pesquisa do Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística definiu que, no Brasil, a expectativa de vida é de 73 anos (apud RUIZ,

SENGIK, 2013).

Segundo Debert (1994), ao se analisar o envelhecimento deve-se levar em conta a questão

de gênero, que é ainda mais importante do que classe. Nesse trabalho vamos articular diferentes

variáveis: gênero, classe e faixa etária, a fim de obtermos um quadro, não uma fotografia3, mais

aproximada da realidade.

Nesse trabalho defini como em processo de envelhecimento as entrevistadas com idade

igual ou superior aos 50 anos, quando, via de regra, as mulheres raramente poderão ter filhos sem a

3 Demo, citado por Minayo (2000), afirma que o que se pode ter dos fenômenos sociais é menos um retrato e mais uma pintura.

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intervenção para a reprodução. Embora hoje mulheres acima dos 50 se tornando mães por meio das

novas tecnologias conceptivas (GROSSI; PORTO; TAMANINI, 2003) é raro que isso ocorra nas

camadas populares, devido aos custos envolvidos (MATTAR, DINIZ, 2012).

Para Aparecida, 29 anos, criar filhos é uma tarefa tão penosa que quase a deixa tererê, isso é,

louca: “(...) Ai meu Deus, com quatro crianças. Ih, eu prefiro mil vezes pegar uma roça prá carpir

no solão quente do que cuidar de criança”. Ela informa que seu dia é sempre arrumando ora o

menino, ora a menina para a escola, num corre-corre estressante que a deixa totalmente sem tempo

para “arrumar um cabelo, fazer uma unha”, além de deixá-la esquecida, a ponto de não conseguir

guardar um nome de uma pessoa ou um número de telefone. Afirma que o marido chega em casa e

logo senta para assistir televisão, deixando as crianças totalmente aos seus cuidados, além de

reclamar com ela por não ter autoridade sobre os pequenos. Observem, contudo, que o caráter

ideológico que reveste a maternidade e o discurso valorativo que a sustenta são muito fortes, e, por

isso, ela não consegue sustentar esse discurso crítico por muito tempo. Daí finalizar: “mas a única

coisa que não me arrependo são os meus filhos”. Porque Aparecida recua nas suas reclamações,

que são compreensíveis e legítimas? Com certeza, a dificuldade de negar a ideologia da

maternidade como sendo uma benção, ideia que está profundamente naturalizada pelo senso

comum.

As desigualdades de gênero no cuidado com os filhos penalizam todas mulheres mas, sem

dúvida, é mais cruel com as mais pobres. Rosário afirma que se um filho adoece durante a noite fica

sempre a cargo dela providenciar recursos porque o marido lhe diz: “levanta, vai levar fulano pro

pronto socorro,(...) está com febre e eu não posso ir, eu vou ter de trabalhar no outro dia, eu tenho

de descansar, amanhã cinco horas eu tenho de pular da cama”. Também Júlia, com indisfarçável

irritação, me conta que o marido não ajuda nem na doença das crianças, sendo sempre ela que tem

de levantar e procurar recursos mesmo o casal vivendo num bairro perigoso para uma mulher

transitar sozinha com uma criança no meio da noite: “É tudo eu, tudo eu”.

Vamos contrapor os depoimentos dessas jovens mulheres com o de Elza, 63 anos, também

mãe de quatro filhos: “Não deram muito trabalho. Só eu [para cuidar] e não achava difícil. Eu

comecei nova a ter filhos. A mulher de hoje não sabe criar” 4. Enquanto Aparecida, Júlia e

Rosário, em pleno processo de maternagem, não conseguem esconder sua insatisfação, Elza, já

distanciada dessa rotina, consegue ser bem menos crítica: “Eu tinha alegria com meus filhos

pequeno. Quanto mais eu tinha, mais eu não ligava. Mulher que não quer ter filho, não quer ter

4 Elza, entrevista realizada em 28 de março de 2013

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trabalho”5. Toda rememoração sofre a ação do tempo presente. Ao nos dar o depoimento, Elza se

encontrava com o marido aposentado e os filhos crescidos, portanto, descansada das atribulações.

Podemos pensar que a calma hoje vivida redimensiona os acontecimentos do passado, porque todo

relato varia, na forma e no conteúdo, dependendo das condições que determinam o momento de sua

coleta. O relato é acerca do passado, mas sua interpretação se faz no e pelo presente.

D. Ângela, 71 anos, se casou aos doze anos e criou sozinha seus nove filhos, desde que o

marido saiu uma noite, abandonando-as com as crianças por muitos meses. Quando voltou não foi

por muito tempo. Ela conta: “Meus filho foi criado debaixo de pé de café. Tem um aqui que com

quinze dia eu levei prá roça”. Hoje em dia, considera, “é mais difícil cuidar dos filhos”.

Vamos a Dinorá, 57 anos. Observem a semelhança do seu depoimento com outros de

mulheres da geração mais velha: “Ah, quando estava trabalhando assim por perto eu levava tudo.

Os dez. Levava tudo. Os maior ia carpir junto com nós, os outros cuidando dos mais pequeno”.

Mas também vê com outros olhos o momento atual: “Eu falo pras minhas menina. Deus me perdoe,

mas filho demais não pode. Antigamente era mais fácil de criar, agora cada vez ficando mais

difícil” (grifo meu). A ênfase na facilidade para criar filhos no passado se contrapondo às

dificuldades do presente foram recorrentes. Neusa, 42 anos, mãe de três filhas já casadas e que se

encontra num momento de transição entre o que eu denomino geração mais velha e mais nova,

ensina às filhas: “Agora arrumar criança está difícil, hoje está pior do que antigamente, porque

[antes]sempre de qualquer maneira criava uma criança.”. Na fala das mulheres há sempre um

antes e um depois a demarcar facilidade/dificuldade na maternagem.

Para entender essa percepção das mulheres de que, em tempos passados, era mais fácil ser

mãe, buscaremos suporte em Meyer (2006) e Martins (2008). Ambas afirmam que, ao longo dos

séculos XIX e XX, multiplicaram-se os discursos a respeito dos cuidados com os corpos femininos,

especialmente os das mães, visando à saúde dos filhos, à proteção à família e ao bem-estar da

sociedade, com a introdução dos discursos médicos intermediando práticas antes eminentemente

femininas. As mulheres da elite foram as primeiras a receber essas orientações, geralmente

transmitidas por meio de manuais diretamente endereçados à mães (MARTINS, 2008).

No século XIX, o surgimento da puericultura traria uma nova ordem a direcionar a vivência

da maternidade. O partejar deixaria de ser uma prática cultural feminina para se inscrever no âmbito

do conhecimento científico e masculino. Desde que o capitalismo precisava de cidadãos fortes e

capazes para a construção de um Estado rico, era preciso retirar das mãos das parteiras, primeiro das

5 Entrevista realizada em 28 de março de 2013.

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mais simples, depois mesmo das profissionais, o domínio sobre o nascimento, um aspecto tão

fundamental da vida. As mães das camadas populares mantiveram-se por certo tempo alheias aos

novos ensinamentos da puericultura, mas, consideradas as responsáveis pelo bem e pelo mal das

crianças, terminaram sofrendo um processo de culpabilização pelas doenças e pela morte dos filhos,

que as levaria, pouco a pouco a ceder. Segundo os médicos, muitas mulheres eram teimosas,

ignorantes e apegadas às práticas da medicina popular, fonte de abusos e de erros, cabendo,

portanto, a eles, com o apoio do Estado, orientá-las e conduzi-las pelo caminho da ciência,

disciplinando-as e fiscalizando as suas práticas. O importante era ensiná-las a ser mães (MARTINS,

2008).

Segundo Meyer (2006), foi o que fez com que se multiplicassem os discursos a respeito dos

corpos femininos, delimitando-se uma rede discursiva de cuidados específicos – do pré-natal, da

medicina, das tecnologias da nutrição, da psicanálise, dando ensejo ao que a autora denomina de

“politização da maternidade”, que atravessaria todo o século XX. O corpo feminino passa a ser

guiado por um poderoso regime de vigilância e de regulação. A esse controle sobre a vida e os

corpos dos indivíduos, monitorando nascimentos e mortes, duração e longevidade das pessoas,

investindo sobre “os corpos, a saúde, as maneiras de se alimentar e de morar, as condições de

vida, todo o espaço de existência” dá o nome de “bio-política” (FOUCAULT,1999, p.135). Esses

discursos moralizantes e normatizadores, longe de terem perdido força, ganharam fôlego e se

tornaram cada vez mais sofisticados em um mundo em que as tecnologias políticas têm cada vez

mais impacto na vida das pessoas. O corpo feminino, mais precisamente o corpo grávido, está no

centro desses procedimentos de poder e a maternidade tem sido transformada, desde os primeiros

instantes, em um campo quase técnico, descrevendo e monitorando, “antecipada e minuciosamente,

o desenvolvimento físico, cognitivo e emocional do feto, inscrevendo-se numa rede de controle e

regulação da vida” (MOREIRA E NARDI, 2009, p.574).

Essa intervenção na vida das mulheres, no que tange às formas de pensar e de viver a

maternidade, apresenta distinções conforme a classe social, afirmam Moura e Araujo, (2013). Para

as mais pobres é um processo custoso, pois a “maternidade responsável” envolve enxoval, pré-natal,

alimentação regrada, descanso, tranquilidade, disponibilidade para a amamentação, visitas

periódicas a pediatras, vacinas, múltiplos cuidados de higiene e, é claro, maior proximidade

possível entre a mãe e o bebê, sob pena de riscos para a saúde psicológica da criança. Tais

ensinamentos estão implícitos nas políticas públicas dos governos, em todas as esferas de poder,

além de serem reiteradamente transmitidos por grupos religiosos e assistenciais, dizem as autoras.

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Um exemplo é o “Guia do Líder da Pastoral”, da Pastoral da Criança, estrutura da Igreja

Católica que orienta os comportamentos das mulheres quanto aos cuidados e atitudes com seus

bebês recomendando que a mãe e o bebê se olhem nos olhos durante a amamentação, que os pais

peguem o bebê no colo para acariciar, falar e brincar, mesmo quando ele está chorando (ANJOS,

2007).

Bem na contramão desses preceitos, Elza, uma das entrevistadas que compõe o que

chamamos de “geração mais velha”, diz que não tinha o hábito de carregar os filhos: “Nem

conversar com criança que eles acostumam com a sua conversa e não deixa mais você fazer nada.

Também não carregava muito não”6. Mãe de cinco filhos, trabalhadora rural, é forçoso admitir que

essa mulher dispunha de pouco tempo livre para seguir tais ensinamentos que, nos dias de hoje,

Elisa, 18 anos, e Júlia, 22 anos, ambas mães de dois filhos, sentem pesar sobre seus ombros. Não

nos surpreende, portanto, que para elas “a coisa mais difícil na vida de uma mulher é cuidar dos

filhos” (Elisa) porque eles “tornam a vida mais difícil” (Júlia).

É comum que agentes comunitárias de saúde e visitadoras7 percorram bairros carentes, indo

casa por casa, a fim de que não lhes escape mulher alguma a ser ensinada nos modos de viver e

pensar a maternidade. É o que Castel (2011) denomina exclusão positiva, ou seja, políticas de

inserção elaboradas a fim de fazer mais por quem tem menos e concebidas para “salvar” as

populações em dificuldade, mas que terminam mantendo os estigmas sociais.

Creio poder dizer que as mulheres das camadas populares não desistem da maternidade

porque no universo cultural em que elas transitam o discurso valorativo da maternidade é muito

forte, mas não penso que isso, por si só, seja a única causa explicativa. O que eu pude perceber

numa análise das entrevistadas, é que todas elas foram mães muito cedo. Além disso, engravidaram

tão logo iniciaram os relacionamentos, evidenciando que filhos é uma consequência naturalizada do

relacionamento conjugal. Porém, como já pude afirmar em outra ocasião (SILVA, 2013; 2012), é o

fato de que a maternidade seja um dos poucos projetos que elas, então meninas pobres, puderam

realizar que me parece mais explicativo do fato de que, a despeito da pobreza e das dificuldades que

essa lhes impõe, nenhuma das mulheres desistiu de ser mãe. Mesmo Eni, a única que confessou que

nunca quis ser mãe, não seguiu outro caminho, pois teve 7 filhos.

6 Entrevista realizada no dia 04 de março de 2013. 7 As funções das visitadoras podem ser encontradas em KLEIN (2012) e em ANJOS (2007). Não há obrigatoriedade de

que essas atividades sejam desempenhadas exclusivamente por mulheres, ainda que prioritariamente o sejam.

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Não gostava de criança. Não gostava mesmo. E tive tanto filho.

Nunca sonhei ter filho. Aconteceu. Quando eu ganhei eu falei:

“Ah, meu Deus, eu pedi tanto pro cê [para não engravidar].”

O depoimento de Eni se distingue dos demais: “Nunca quis ter filhos. Minha mãe até ficava

brava comigo. Fora de brincadeira. Acho que Deus me deu esse castigo (grifo meu). Queria ficar

livre”. Achamos que, ao usar a palavra castigo para se referir aos filhos, ela desconstrói noções

naturalizadas do amor materno e pluraliza formas de significados da maternidade. Mas, tendo sido

mãe sete vezes, evidencia que esse rompimento se faz mais a nível simbólico do que na prática

vivencial.

Andrea ficou grávida com 14 anos. Vivia com a avó, um irmão e o pai alcóolatra. A mãe

abandonou a casa seguindo um amor que, segundo a filha, “a fez largar eu e meu irmão pequeno

para meu pai e minha avó criar. Mora aqui pertinho, em Jandaia, mas nunca veio ver a gente

mais”. Pergunto-lhe o que ela pensa dessa atitude e a resposta vem rápida: “eu penso que isso não é

mãe, porque fazer isso, largar os filhos por causa de um homem?”. De novo nos defrontamos com

os estereótipos que modelam a figura materna como assexuada e comprometida exclusivamente

com o amor e o zelo aos filhos.

Conclusão

Esse estudo pautou-se na análise de depoimentos de vinte mulheres das camadas populares,

com idades variáveis e que foram divididas em dois grupos: jovens e idosas. Considerou-se como

idosa as mulheres acima de 50 anos, em função de já terem finalizado ou estarem no término de

seus períodos reprodutivos.

A análise comparativa desses depoimentos em função de ainda estarem ou não gerando e

cuidados dos filhos, ou seja, exercendo a maternagem, evidenciou que as mulheres mais idosas,

com filhos crescidos, longe das atribuições que uma criança acarreta, falam sobre essa experiência

de maneira muito mais tranquila, não exatamente se esquecendo das dificuldades que vivenciaram,

mas ressaltando em primeiro lugar como conseguiram vencê-las. Sejam sozinhas ou com ajuda dos

companheiros, elas insistiram mais em dizer que filho é uma benção. Já as mulheres mais jovens,

mesmo quando terminavam seus discursos enfatizando que os filhos era uma presença importante

em suas vidas, não conseguiam deixar de mencionar o pesado encargo que eles lhes causavam.

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Tais distinções nos discursos nos levaram a elaborar uma tese explicativa que se sustenta na

seguinte argumentação: a maternidade é uma experiência profundamente naturalizada e com alta

carga de emotividade. É também uma zona As mulheres desde muito novas são instadas ao desejo

de serem mães. É quase um imperativo. Passam a infância embalando bebês ou, no caso das mais

pobres, cuidando dos irmãos menores, com os quais se fazem passar por mãezinhas. Jovens têm

sonhos como os de qualquer outra adolescente, mas grande parte desses sonhos envolvem aspectos

materiais que elas raramente podem fazer concretizar. Seus projetos de estudos, viagens, conquistas

profissionais se desvanecem como bolhas de ar numa sociedade marcada pelos diferenciais de

classe, pela oposição clara entre aqueles que tudo podem almejar e aqueles que mesmo os sonhos

precisam ser minimizados. Se os sonhos/projetos mais ambiciosos não se concretizam, há um que

só depende delas, o de ser mãe. Ter um filho só seu num mundo que lhes nega muitas outras

possibilidades não parece ser pouco.

Mulheres das camadas populares são mães muito cedo. Suas mães também foram. O círculo

da pobreza é o que de mais malvado há na própria pobreza. A reprodução da exclusão. As mulheres

pobres sofrem para ter e para criar seus filhos. A sociedade moderna, contemporânea, é hoje muito

exigente com as mães. As crianças não mais podem ser postas no mundo e nele deixadas sem

vacinas, escolas, alimentos específicos, presentes em datas um sem par de datas comemorativas. É

preciso buscar ajuda de psicólogos, pedagogos, psicopedagogos. Ser mãe nos dias de hoje implica

conviver com mudanças importantes, mas também um sem número de invencionices do consumo.

Para as mães que têm ainda filhos para cuidar todos os dias são de levantar e viver a maternidade

com todas as suas exigências. Já para as mulheres mais idosas esse tempo é tempo passado. Por isso

dele só restam as alegrias com os filhos, num evidente apagamento das dificuldades. A memória,

essa traiçoeira apaga todas as dores vivida e, do tempo de filhos criados debaixo de pés de café,

lembrança presente de uma coisa-tempo ausente, o que resta é a idealização da maternidade.

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Ageing and Re-signification of maternity and motherhood

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Abstract: This article presents a comparative study that discusses the re - signification of maternity

and motherhood from a generational perspective. The empirical material supporting the discussions

are twenty interviews with women-mothers of the popular strata. Anchored in the studies of gender,

orality and memory, the research has shown that the statements of older women about their

maternal experiences are more idealized than those elaborated by the younger ones. In the speech of

the latter the difficulties and anxieties for the raising of children in a situation of poverty are

constantly evident. We know that every remembrance suffers the influence of the present time and

we argue that in such cases memory is tempted to forget what may contradict the prevailing idea

that motherhood is one of the best events in woman's life.

Key-words: Motherhood. Ageing. Gender. Memory.