O Escritor Camara Cascudo

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    O ESCRITOR CMARA CASCUDO*Humberto Hermenegildo de Arajo

    (Ncleo Cmara Cascudo de Estudos Norte-Rio-Grandenses/UFRN)

    Uma retomada da brasilidade

    Um dos aspectos que caracterizam a vida intelectual do incio do sculo XX, no

    Brasil, a interao de elementos da tradio cultural e da imaginao literria, numa

    conjuntura onde as tradies regionais interagiam no processo de modernizao da

    sociedade, interferindo na construo do sentido do moderno. Antonio Candido

    sugere a observao desse aspecto no estudo do movimento modernista, quando o

    define como um movimento cultural (cf. CANDIDO, 1980). Tal problemtica parece

    ser a matriz geradora da obra cascudiana, especialmente aquela publicada no perodo

    modernista, de fundamental importncia para a compreenso da obra do autor.

    Os livros publicados por Cmara Cascudo, at a dcada de 1930, alm de uma

    extensa srie de textos esparsos publicados em jornais e revistas, apresentam temticas

    bastante variadas. Sobre elas, o ensasta se debrua para registrar uma brasilidade que

    deveria aparecer enquanto tradio, sob a forma de determinados temas permanentes e

    dominantes. Na maior parte dos casos, a leitura implica na observao de registros

    literrios e culturais onde o regional e o rural representados aparecem sob a perspectiva

    de um escritor moderno e urbano, sem que esta perspectiva resulte, contudo, em uma

    viso pitoresca sobre um mundo considerado atrasado.

    A brasilidade modernista surge, pois, como uma matriz temtica a deitar razes

    por toda a obra cascudiana, apontando para ampliaes e redirecionamentos, e

    revelando a presena de tradies ancestrais nos textos coletados pelo pesquisador. Tal

    aspecto, no entanto, no nico e convive com uma busca permanente da

    universalizao, elemento que daria ao Brasil um assento no patrimnio cultural do

    Ocidente.

    * Publicado em Continente: documento. Recife-PE, Companhia Editora dePernambuco, Ano IV, n. 48, p. 22-31, ago. 2006. ISSN 1807-7137. (Cmara Cascudo:a vida dentro da obra).

    Na verso publicada, foram suprimidas (sem consulta ao autor), as notas de rodap e asreferncias bibliogrficas.

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    A literatura no Rio Grande do Norte

    Cmara Cascudo responsvel pela primeira tentativa de sntese do movimento

    literrio do Rio Grande do Norte Alma patrcia(1921), uma crtica impressionista eadmirativa, segundo o prprio autor, com notas biobibliogrficas sobre dezoito

    escritores potiguares, escolhidos com o intuito de formao de um cnone local. Esse

    primeiro livro, e o seguinte (Joio, 1924), aparecem no momento em que predomina no

    meio potiguar um empenho no sentido da sistematizao da atividade literria local,

    movimento no qual se destaca, alm do prprio Cmara Cascudo, a figura mpar de

    Henrique Castriciano (1874-1947), idealizador da tradicional Escola Domtica de Natal e

    possuidor de uma experincia adquirida na famosa Escola do Recife, conhecedor da obra

    de Tobias Barreto, alm de ser poeta e biblifilo. Em torno de Henrique Castriciano existia

    um esboo de vida literria, uma espcie de convivncia acadmica rica em estmulos e

    marcada pelo intercmbio de leituras que certamente foram fundamentais para o

    surgimento da expresso original de Cmara Cascudo.

    Com tais precedentes, o autor deJoio aponta para a necessidade da pesquisa da

    realidade local, refletindo, de alguma forma, o iderio nacionalista que se desenhava na

    poca. Mas, ao mesmo tempo, procurava atingir um pensamento e uma prtica

    cosmopolitas. O contraponto dessa tentativa seria, no entanto, o ambiente provinciano

    acanhado e conservador, do estado e da regio. Neste sentido, vanguarda,

    cosmopolitismo, nacionalismo e regionalismo tomam forma na obra do nosso ensasta e

    se apresentam como elementos problematizadores para o seu entendimento.

    Com o subttulo "Pginas de literatura e crtica",Joiotraz nas suas pginas finais

    vrios Excerptos da crtica sobre oAlma patrcia. De Joo Ribeiro ao Conde Affonso

    Celso, de Rocha Pombo a Jos Amrico de Almeida, do argentino Lus Emlio Sotto ao

    Conde dEu, todos elogiam o mritodo primeiro livro de Cmara Cascudo. A mesma

    unanimidade no se daria em relao a Joio: pelo menos Mrio de Andrade no gostou

    muito do livro, e expressa claramente, em uma carta enviada ao seu autor (em 26 de

    setembro de 1924), a sua preferncia pelasHistrias que o tempo leva..., que formariam

    um livro, numa concepo mais inteiria e completa. necessrio, ento, informar que

    tanto Joioquanto Alma patrcia foram publicados a partir da juno de vrios textos

    cuja origem a contribuio jornalstica do seu autor imprensa potiguar, lugar de onde

    o ensasta ala o seu vo em direo ao reconhecimento da intelectualidade nacional.

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    Salta aos olhos, em Joio, o entusiasmo com que o autor descreve os renomados

    intelectuais que circulavam na vida literria carioca e que ele ir tomar como modelo

    cosmopolita. Diga-se de passagem, Cmara Cascudo conviveu plenamente naquele

    meio, quando da sua temporada carioca como estudante de medicina. A escritura do

    material referido fruto daquela experincia e ao mesmo tempo um esforo no sentido

    de recriar em Natal um ambiente propcio s letras. Numa linha elogiosa, desfilam em

    Joiopersonagens como Elsio de Carvalho, Agripino Grico, Medeiros e Albuquerque,

    Fidelino de Figueiredo. Na descrio de todas elas fica patente a preocupao com o

    exemplo de talento, genialidade, criao pessoal, renovao, erudio, elegncia e

    versatilidade; atributos que ficaro para sempre na personalidade de Cmara Cascudo

    como um ideal a perseguir pela via do cosmopolitismo.

    Faltaria, no entanto, autenticidade e verossimilhana nossa personagem, se no

    a vssemos pelo outro lado da medalha, qual seja, o sentimento localista que, de igual

    peso na cultura brasileira, permitir ao futuro autor de Vaqueiros e Cantadores uma

    viso das manifestaes regionais. Por esta via, o mesmssimo autor cosmopolita de

    Joio admira aqueles que falam do interior do pas: Gustavo Barroso, Roquette Pinto,

    Lucilo Varejo.

    No ensaio sobre o pernambucano Lucilo Varejo, Cmara Cascudo pratica a

    chamada crtica viva quando opina e informa sobre nomes e obras que, no calor da

    hora, nunca tinham antes aparecido aos leitores da provinciana Natal. Os trs primeiros

    pargrafos do ensaio caracterizam a literatura brasileira como em formao e,

    portanto, com vida e espaos abertos a qualquer planta. Aps se referir ao tumultuo

    das correntes estticas de hoje em meio perverso e criador de glrias efmeras, destaca

    a figura de Monteiro Lobato, cujo malabarismo clssico-brasileiro (...) realiza o

    milagre de ser lido duas vezes. A agitao modernista de So Paulo nomeada, mas o

    intuito do texto chamar a ateno para o abismo entre o Norte e o Sul do pas e,naqueles anos de poesia, clamar pela construo de um romance nacional... que sairia

    do Norte (leia-se Nordeste): "O romance, como a mais perfeita expresso de cultura

    ambiente, s representar o Brasil legtimo se sair do Norte. No separatismo.

    exclusivamente a construo artstica de um scenario que a Europa tem parcamente

    infludo" (CASCUDO, 1924, p. 90) perspectiva que retoma o tom de manifesto do

    prefcio de Franklin Tvora a O Cabeleira como um momento inaugurador do

    regionalismo no Brasil.

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    Sintomaticamente, se temos em mente a imensa fora do movimento regionalista

    nordestino j ativo naqueles anos, Pernambuco aparece para Lus da Cmara Cascudo

    como o mais brasileiro de todos os estados, raro momento em que se percebe uma

    sintonia perfeita entre o pensamento cascudiano e as idias regionalistas de Gilberto

    Freyre: ... Pernambuco de histria to vasta e to longa que a prpria histria do

    Brasil por muitos sculos, est na obrigao moral de agir fortemente (CASCUDO,

    1924, p. 90).

    A campanha modernista

    Tais leituras e tenses, com a correspondente perspectiva, refletem tambm a

    passagem de Cmara Cascudo pela Faculdade de Direito do Recife, a amizade com

    Gilberto Freyre e com Joaquim Inojosa (os dois nomes que disputavam a hegemonia do

    movimento cultural pernambucano), o incio da sua correspondncia com os principais

    nomes ligados ao movimento cultural da poca, e a sua posio como dirigente do jornal

    natalense A Imprensa (1914-1927). Tais fatos representam, localmente, as bases para o

    estabelecimento da literatura como atividade permanente, num esforo coletivo, dentro do

    qual o autor deJoiobuscava o apoio de alguns nomes ligados ao Rio Grande do Norte e

    que promoviam uma ao intelectual capaz de ultrapassar as fronteiras provincianas e

    desencadear a divulgao da produo cultural do estado junto aos principais intelectuais

    do movimento modernista. Destacaram-se, neste sentido, Jayme Adour da Cmara,

    Antnio Bento de Arajo Lima, e o maranhense Nunes Pereira. Ao mesmo tempo, a partir

    do ano de 1924, comeavam a chegar ao endereo da Rua Lopes Chaves, em So Paulo,

    as cartas enviadas por Cmara Cascudo ao autor de Paulicia desvairada.

    A partir de ento, Cmara Cascudo torna-se, juntamente com o poeta Jorge

    Fernandes autor do Livro de poemas de Jorge Fernandes, publicado em 1927

    representante da vanguarda modernista em Natal, em dilogo permanente com Joaquim

    Inojosa, como possvel verificar atravs do estudo da troca de cartas entre os dois (cf.

    INOJOSA, 1968-1969).

    A histria dessa campanha fortalecida com a publicao do texto Actos dos

    Modernos, na revista natalense Letras Novas, no ano de 1925, onde o autor declara a

    ruptura com a pacata vida provinciana. Na narrativa montada para o texto-manifesto,

    Cmara Cascudo surge como aquele que acusado de ter pervertido e envenenado a

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    fonte archi-purssima onde se dessedentaram os bardos da cidade, representados pela

    figura de Segundo Wanderley, o mais importante poeta potiguar at aquele momento.

    Com uma atitude herica, o autor do manifesto aceita a responsabilidade que o orgulha

    e avisa a inteira independncia dos Modernos.

    No mesmo contexto, outros fatos tambm podem ajudar na compreenso de

    trajetrias distintas, no obstante semelhantes enquanto processos de levantamento

    cultural de uma regio que se modernizava. Seja o caso da ausncia de Cmara Cascudo

    em dois momentos marcantes do movimento regionalista nordestino liderado por

    Gilberto Freyre: a organizao do Livro do Nordeste, em 1925, e a realizao do

    Congresso Regionalista do Nordeste, em 1926. Sobre o assunto, a correspondncia entre

    Mrio de Andrade e Cmara Cascudo esclarecedora, pois registra o envio de um

    convite, de Cmara Cascudo, para Mrio de Andrade participar do Congresso

    Regionalista do Nordeste. Em resposta, Mrio opina sobre o assunto, em carta de 06 de

    setembro de 1925:

    Em tese sou contrrio ao regionalismo. Acho desintegrante da idea denao e sobre esse ponto muito prejudicial pro Brasil j to separado.Alm disso fatalmente o regionalismo insiste sobre as diferenciaese as curiosidades salientando no propriamente o caracter individualpsicolgico duma raa porm os seus lados exticos. Pode-se dizerque exticos at dentro do prprio pas, no acha? (...) Acho oprograma um pouco acanhado e alm de regionalista regionalizante oque um perigo. Entre as teses dos "Problemas econmicos esociais" vocs se esqueceram inteiramente do Brasil o que achopositivamente um erro. A primeira de todas as teses devia de ser:Contribuio do Nordeste para a constituio da Brasilidadepsicolgica, econmico-social, lingstica e artstica.

    Em resposta, Cmara Cascudo afirma em carta de 12 de outubro do mesmo ano:

    Quanto ao Congresso... Que tenho eu com ele? As suas idas ficaram justinhas na

    minha cabea. Como se diz por aqui direito que nem dedo em venta (Cf. GOMES,

    1999, p.249). Significativamente, o assunto Congresso Regionalista no aparece mais

    na correspondncia referida e Lus da Cmara Cascudo no participa do evento.

    Com relao ao Livro do Nordeste, tambm enviado a Mrio de Andrade por

    Cmara Cascudo, interessou ao paulista, segundo consta na correspondncia entre os

    dois, as fotografias dos monumentos histricos nordestinos, os trabalhos de Manuel

    Bandeira (o desenhista), alm de, evidentemente, a novidade de "Evocao do Recife.

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    A ausncia de Cmara Cascudo, nestes dois momentos histricos, converge para

    uma leitura que observe, na obra do autor potiguar, a prtica de um regionalismo no

    programtico e no antagnico perspectiva modernista, em que pese o saudosismo

    presente no seu lamento pelo desaparecimento de um serto que sucumbia ante a

    modernidade avassaladora.

    necessrio esclarecer, inclusive, que diferentemente do plano dos programas, a

    produo das obras surgidas no terreno propcio ao Regionalismo nordestino, mas j

    situadas na esttica do Modernismo, contemplam tenses que do ao literrio a

    capacidade de revelar na forma artstica as articulaes de Esttica e Histria, como se

    percebe em Evocao do Recife, poema carregado de Histria e que foi justamente

    publicado por Manuel Bandeira no Livro do Nordeste, a pedido de Gilberto Freyre. O

    mesmo se d nas obras de um Joaquim Cardozo e de um Ascenso Ferreira, dois

    pernambucanos afins com as propostas editoriais do Livro do Nordestee daRevista do

    Norte, mas plenos de esttica modernista.

    A obra produzida por Cmara Cascudo, em tal conjuntura, passou ao largo da

    polmica Modernismo/Regionalismo, concentrada em Pernambuco, obviamente

    ocasionada pela fora da tradio conservadora que enfrentava os interesses mais

    imediatos da modernizao. Despregado de uma base slida, Cmara Cascudo adquiriu

    a agilidade moderna e tentou, com ela, dar movimento tradio que se formava no Rio

    Grande do Norte e, ao mesmo tempo, conferir aos resqucios de tradio existentes um

    valor positivo e articulado ao discurso modernista.

    Ao longo da dcada, o assunto modernismo reaparece em diversos textos,

    principalmente no ano de 1924, quando surge nos jornais locais o noticirio sobre o

    movimento1. O desfecho da discusso acontece em 1928, quando Cmara Cascudo

    publica o artigo Sobre a arte moderna (CASCUDO, 1928) como um balano sobre a

    dcada de 1920, insistindo no tema do individualismo como padro de julgamentoesttico e denunciando a insistncia da crtica em classificar com um rtulo o

    modernismo.

    Destaca-se tambm, na histria desse movimento, a passagem de Mrio de

    Andrade por Natal, acontecimento mpar que est registrado no livro O turista aprendiz

    1 Cf. o estudo Modernismo: anos 20 no Rio Grande do Norte (ARAJO, 1995), onde apresento umlevantamento de dados sobre a questo, destacando-se no documentrio coletado, em anexo ao estudo, ostextos O sr. Mrio de Andrade (A Imprensa, 11 jun. 1924), Registro bibliogrfico Arte Moderna (A

    Imprensa, 22 ago. 1924) e O que eu diria ao senhor Graa Aranha (A Imprensa, 24 ago. 1924), todos deautoria de Cmara Cascudo. Sobre o dilogo com Mrio de Andrade, destaco tambm a correspondnciados dois autores e o artigo Mrio de Andrade, publicado noBoletim de Arielem julho de 1934.

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    (ANDRADE, 1983). Daquela viagem etnogrfica ao Nordeste, sublinhamos um

    trecho percorrido no interior do Rio Grande do Norte, em janeiro de 1929, por Mrio de

    Andrade, Antnio Bento de Arajo Lima e Cmara Cascudo, numa espcie de ritual de

    pesquisa em busca dos dados locais que iriam fornecer ao modernismo uma viso de

    brasilidade.

    Alm do registro realizado por Mrio de Andrade, tambm Cmara Cascudo e

    Antnio Bento escreveram pequenos artigos sobre a viagem publicados no jornal

    natalense A Repblica,entre os dias 29 de janeiro e 03 de fevereiro de 1929, em cujos

    ttulos aparece a quilometragem percorrida: 1.104 km , produzindo um documento em

    que se destaca a viso do aspecto negativo da paisagem, e dos aspectos sociais, embora

    em gradaes diversas. Contudo, o importante a ressaltar que, por fora da realidade

    que se mostrava, os fatos apresentados j seguiam, de alguma forma, a linha neo-

    naturalista do romance que se desenvolveria ao longo da dcada seguinte, com vises

    sobre o Nordeste brasileiro.

    A partir dessa experincia modernista, Cmara Cascudo daria continuidade ao

    ritual de viagens etnogrficas como uma busca de conhecimento do pas, conforme se

    verifica em comentrios na sua correspondncia com Mrio de Andrade, no livro

    Viajando o serto(1934) e em relatos publicados em Vaqueiros e cantadores(1939) e

    Folclore do Brasil (1967). No entanto, a viagem reaparece na obra cascudiana, na

    dcada de 1930, j como recordao que se integra ao registro denominado por ele

    mesmo de Poesia tradicional sertaneja, cuja publicao teve o ttulo de Vaqueiros e

    cantadores. Na Apresentao desse livro, arma-se uma tenso entre o passado e o

    presente do autor. No tempo presente, moderno, ele se declara separado do seu passado,

    que representado pela infncia e visto como um tempo mtico, irrecupervel na sua

    totalidade: Vivi no serto tpico, agora desaparecido; Vivi essa vida durante anos e

    evoc-la apenas lembrar minha meninice (CASCUDO, 1984, p. 15).

    O legado cascudiano

    Surgida em uma poca especfica e no contexto de um Brasil que se construa

    com o auxlio extraordinrio da literatura enquanto forma de expresso do pensamento

    nacional, a obra cascudiana, assim como a de Gilberto Freyre, permanece, ao longo do

    sculo XX, sob a dominante literria. O que foi editado posteriormente experincia

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    modernista caracteriza-se como um caso especfico de registro documental que , ao

    mesmo tempo, uma permanente apropriao literria dos dados da cultura brasileira

    para efeito de elaborao esttica, uma vez que tal registro ganha uma forma que dada

    mais pelo escritor do que pelo pesquisador Cmara Cascudo. Talvez resida nessa

    condio a extraordinria admirao dos outros escritores pelo autor do Dicionrio do

    folclore brasileiro (1954).

    Enquanto referncia de tradio, o legado cascudiano consulta obrigatria em

    todos os processos de criao e de crtica que se voltarem para a especificidade de um

    Brasil que, desde sempre, parte ativa no sistema mundial. Refletir sobre tal fenmeno,

    na atualidade, significa levar adiante uma estratgia poltica de ao intelectual no

    contexto da globalizao, e significa, tambm, adotar uma perspectiva que permite

    encarar como elemento vivo um legado cultural e literrio que apenas na sua aparncia

    sinnimo de arquivo morto.

    O procedimento formal encontrado pelo autor de Literatura oral no Brasil

    (1952) aponta para a conciliao da aparente dicotomia entre o regional e o universal, e

    para o respeito, no texto escrito, aos ndices de oralidade, com o seu aproveitamento

    esttico. Assim, o escritor Cmara Cascudo aparece como um agenciador de solues

    literrias para o encontro de tradies regionais e universais, populares, no texto

    moderno que, por sua vez, se anuncia como registro culto.

    Pode-se concluir que a obra do escritor Cmara Cascudo traz uma viso que

    permite vislumbrar a singularizao de um modo de escrita que se constri no Brasil e

    cujo momento mais alto no est, inclusive, no texto cascudiano, e sim naqueles

    escritores que inventaram uma narrativa da nossa cultura em texto especificamente

    literrio: uma tradio que desemboca no palimpsesto de Guimares Rosa, com a

    convivncia conflituosa de oralidade e escrita moderna. Ento, para ler Guimares Rosa,

    por exemplo, assim como toda a tradio moderna, aconselhvel ler tambm CmaraCascudo. Em to comprido novelo, torna-se problemtica a definio das fronteiras

    entre o literrio e o cultural. Mas o sistema literrio, como uma fora civilizatria, s

    pode funcionar nessas fronteiras, e graas ao trabalho de escritores como Gilberto

    Freyre e Cmara Cascudo.

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    REFERNCIAS

    ANDRADE, Mrio de. Cartas de Mrio de Andrade a Lus da Cmara Cascudo. BeloHorizonte/Rio de Janeiro: Vila Rica, 1991.

    . O turista aprendiz. 2. ed. So Paulo: Duas Cidades, 1983.

    ARAJO, Humberto Hermenegildo de.Modernismo: anos 20 no Rio Grande do Norte.Natal: UFRN. Ed. Universitria, 1995.

    CANDIDO, Antonio.Literatura e sociedade. 6. Ed. Rio de Janeiro: Ed. Nacional, 1980.

    CASCUDO, Lus da Cmara.Alma patrcia: crtica literria. Natal: Typ. M. Victorino,1921.

    .Joio: pginas de litteratura e crtica. Natal: Off. Graph. dA Imprensa, 1924.

    . Histrias que o tempo leva... (Da histria do Rio Grande do Norte). So Paulo:

    Monteiro Lobato & Cia, 1924a.. Vaqueiros e cantadores. Belo Horizonte; So Paulo: Itatiaia; Ed. da Universidade

    de So Paulo, 1984.

    . Viajando o serto. Natal: Fundao Jos Augusto, 1984a.

    . Sobre a arte moderna.A Repblica, Natal, 3 mar. 1928.

    . Mrio de Andrade.Boletim de Ariel, Rio de Janeiro, 3 (9), p. 233-235, jul., 1934.

    . Actos dos Modernos. Letras novas, Natal, ns. 4 e 5, out. e nov, 1925.

    . Vaqueiros e cantadores. 3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo: Ed. da

    Universidade de So Paulo, 1984.. Literatura oral no Brasil. 3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo: Ed. da

    Universidade de So Paulo, 1984a.

    GOMES, Edna Maria Rangel de S. Correspondncias: leitura das cartas trocadas entreLus da Cmara Cascudo e Mrio de Andrade. (Mestrado em Literatura Comparada) Programa de Ps-Graduao em Estudos da Linguagem, UFRN, 1999.

    INOJOSA, Joaquim. O movimento modernista em Pernambuco. Rio de Janeiro: Tupy,1968-1969. 3 v.