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O Espírito Santo no Evangelho de João Wilson Paroschi, PhD Existem importantes diferenças entre João e os Evangelhos Sinóticos com relação ao tema do Espírito Santo. O fato de João escrever a partir da perspectiva de seu próprio tempo, em vez do tempo de Jesus, como o fazem os demais evangelistas, talvez ajude a explicar algumas das diferenças. Para João, o advento do Espírito era um evento passado (Jo 7:39) e Sua presença na vida e missão da igreja, ainda mais fundamental que a do próprio Cristo encarnado (16:7), e por isso o que ele diz sobre o Espírito assume novas dimensões de detalhes e significado. Este ensaio consiste num breve estudo sobre o que o Quarto Evangelho diz acerca do Espírito. Ele está dividido em três partes: o ensino joanino sobre o Espírito nas seções narrativas do livro (caps. 1-13, 18-21); as passagens – exclusivas a João – que se referem ao Espírito como o Paracleto e que estão concentradas nos chamados Discursos de Despedida (caps. 14-17); 1 e as supostas evidências gramaticais relacionadas à personalidade e a divindade do Espírito Santo. Por fim, seguem-se algumas rápidas considerações sobre a relevância da discussão para a teologia e doutrina adventistas. O Espírito nas Seções Narrativas Conquanto não seja o escritor neotestamentário que mais mencione o Espírito Santo, João se destaca entre os evangelistas não apenas pelo maior número de referências como também pelas referências mais distintas e completas. 2 Nos Evangelhos Sinóticos, assim como no AT, o Espírito não é 1 Além de “Paracleto,” outras expressões utilizadas apenas nos Discursos de Despedida são “Espírito da Verdade” e “Espírito Santo.” Nas seções narrativas, João se refere quase que exclusivamente ao “Espírito,” sem nenhum qualificativo. A única exceção é Jo 1:33, onde João Batista anuncia que Jesus batizaria com “o Espírito Santo.” É interessante, portanto, que a única vez fora dos caps. 14-17 em que o evangelista utiliza uma terminologia que não seja “Espírito,” ele se refere a algo que Jesus faria em algum momento (não especificado) futuro. 2 São dezenove as referências, incluindo-se as quatro que dizem respeito ao Paracleto (14:16, 26; 15:26; 16:7), contra doze referências em Mateus, seis em Marcos e dezesseis em Lucas. Em se tratando dos autores individuais, Lucas é o escritor neotestamentário que mais se refere ao Espírito Santo (235 vezes, a grande maioria

O Esp. Sto. No Evangelho de Joao - Final

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Artigo sobre o Espírito Santo no Evangelho de João.

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O Espírito Santo no Evangelho de João Wilson Paroschi, PhD

Existem importantes diferenças entre João e os Evangelhos Sinóticos com relação ao tema do

Espírito Santo. O fato de João escrever a partir da perspectiva de seu próprio tempo, em vez do tempo

de Jesus, como o fazem os demais evangelistas, talvez ajude a explicar algumas das diferenças. Para

João, o advento do Espírito era um evento passado (Jo 7:39) e Sua presença na vida e missão da igreja,

ainda mais fundamental que a do próprio Cristo encarnado (16:7), e por isso o que ele diz sobre o

Espírito assume novas dimensões de detalhes e significado. Este ensaio consiste num breve estudo

sobre o que o Quarto Evangelho diz acerca do Espírito. Ele está dividido em três partes: o ensino joanino

sobre o Espírito nas seções narrativas do livro (caps. 1-13, 18-21); as passagens – exclusivas a João – que

se referem ao Espírito como o Paracleto e que estão concentradas nos chamados Discursos de

Despedida (caps. 14-17);1 e as supostas evidências gramaticais relacionadas à personalidade e a

divindade do Espírito Santo. Por fim, seguem-se algumas rápidas considerações sobre a relevância da

discussão para a teologia e doutrina adventistas.

O Espírito nas Seções Narrativas

Conquanto não seja o escritor neotestamentário que mais mencione o Espírito Santo, João se

destaca entre os evangelistas não apenas pelo maior número de referências como também pelas

referências mais distintas e completas.2 Nos Evangelhos Sinóticos, assim como no AT, o Espírito não é

1 Além de “Paracleto,” outras expressões utilizadas apenas nos Discursos de Despedida são “Espírito da

Verdade” e “Espírito Santo.” Nas seções narrativas, João se refere quase que exclusivamente ao “Espírito,” sem nenhum qualificativo. A única exceção é Jo 1:33, onde João Batista anuncia que Jesus batizaria com “o Espírito Santo.” É interessante, portanto, que a única vez fora dos caps. 14-17 em que o evangelista utiliza uma terminologia que não seja “Espírito,” ele se refere a algo que Jesus faria em algum momento (não especificado) futuro.

2 São dezenove as referências, incluindo-se as quatro que dizem respeito ao Paracleto (14:16, 26; 15:26;

16:7), contra doze referências em Mateus, seis em Marcos e dezesseis em Lucas. Em se tratando dos autores individuais, Lucas é o escritor neotestamentário que mais se refere ao Espírito Santo (235 vezes, a grande maioria

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tanto uma entidade separada ou distinta, mas o poder de Deus em operação. A ideia fundamental é a

de dotação ou capacitação para o desempenho de uma atividade específica.3 Assim, Jesus é dotado do

Espírito para o cumprimento de sua missão messiânica (Mt 3:16; 12:18, 28; Mc 1:10; Lc 3:22; 4:14, 18;

cf. At 10:38), a qual inclui o repasse desse mesmo poder (Mt 3:11; Mc 1:8; Lc 3:16; 11:13), sobretudo

aos discípulos, para que eles também possam levar a cabo a obra que lhes cumpria realizar (Lc 24:49; cf.

Mt 10:20; Mc 13:11; Lc 12:12).4

Em João o quadro é bem diferente, sem que haja, porém, qualquer contradição. Não que a ideia

de dotação não esteja presente; ela está, mas sempre em segundo plano e, mesmo assim, de maneira

implícita, como na descida do Espírito sobre Jesus por ocasião de seu batismo (Jo 1:32-34). Na versão

joanina, o fenômeno consiste mais num sinal para João Batista que na capacitação de Jesus para o

ministério. João é descrito como tendo recebido uma revelação divina para que pudesse identificar o

“Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (vs. 29), o qual viria logo em seguida (vs. 30) e batizaria

com o Espírito Santo: “Aquele sobre quem você vir o Espírito descer e permanecer, esse é o que batiza

com [en] o Espírito Santo” (vs. 33). À luz de 3:34, porém, é provável que o evangelista visse o episódio

também em termos de uma dotação sobrenatural. “Aquele que Deus enviou fala as palavras de Deus,

pois não é de forma limitada que ele *Deus+ dá o Espírito *ao Filho+.” Para que pudesse batizar com o

Espírito e dar o Espírito aos discípulos, é necessário que Jesus fosse cheio do Espírito, algo que João, no

delas em Atos); Paulo vem em seguida (114 vezes, incluindo-se Hebreus). “Lucas é certamente o teólogo do Espírito,” declara F. W. Horn, “não apenas em termos estatísticos, mas também em termos de sua reflexão sobre o testemunho e a ideia cristãos primitivos quanto ao Espírito a partir da perspectiva do conceito da história da salvação” (“Holy Spirit,” ABD, 6 vols. [New York: Doubleday, 1993]: 3:277). Nenhum autor individual, porém, contribui tanto para uma teologia do Espírito como João, especialmente no Evangelho.

3 “Deve ser aceito que o principal pano de fundo para a apresentação sinótica da obra do Espírito é o AT”

(Donald Guthrie, New Testament Theology [Downers Grove: InterVarsity, 1981], 525). Para o conceito básico de

rûa no AT, veja M. V. van Pelt, W. C. Kaiser Jr., e D. I. Block, “Rû

a ,” NIDOTTE, 5 vols. (Grand Rapids:

Zondervan, 1997): 3:1073-1078.

4 Esse conciso resumo não leva em consideração diversas questões importantes quanto ao Espírito nos

Evangelhos Sinóticos. Para discussão mais aprofundada, veja Guthrie, 514-526; C. K. Barrett, The Holy Spirit and the Gospel Tradition, 2

a. ed. (Londres: SPCK, 1966); e esp. Craig S. Keener, The Spirit in the Gospels and Acts: Divine

Purity and Power (Peabody: Hendrickson, 1997).

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entanto, parece apenas pressupor, possivelmente em conexão com o próprio batismo de Jesus.5 O fato

dele nunca mencionar que Jesus realizava milagres pelo poder do Espírito talvez tenha que ver

unicamente com sua ênfase na natureza divina de Jesus, assim como seu silêncio quanto ao nascimento

virginal talvez se deva à importância que ele atribui à encarnação, que melhor se harmoniza com o

conceito de pré-existência.6 João, porém, é cuidadoso o bastante para vincular os milagres (sēmeia) de

Jesus não só à Sua divina filiação (o pré-existente Filho de Deus), mas também ao Seu caráter messiânico

(20:30-31), o que de alguma forma preserva a ideia de dotação sobrenatural (cf. At 10:38). Mais uma

vez, o evangelista pode apenas estar pressupondo aquilo que é explícito nos demais Evangelhos.

É bem provável que a ideia de capacitação também esteja presente no ato de Jesus soprar o

Espírito sobre os discípulos no momento em que lhes confere a comissão evangélica (Jo 20:21-22). É

verdade que nada é dito acerca do propósito do envio e o comentário seguinte se refere ao perdão dos

pecados (vs. 23), mas é difícil não interpretar o episódio em conexão com Lc 24:45-49 (cf. At 1:8).7 A

passagem, porém, apresenta alguma dificuldade em vista da descida do Espírito por ocasião do

Pentecoste, o que tem levado diversos estudiosos a propor duas concessões do Espírito, uma aos

5 A frase “pois não é de forma limitada que ele dá o Espírito” (vs. 34b) é de difícil interpretação, visto que

nem o sujeito (se o Pai ou o Filho) nem o destinatário (se o Filho ou os crentes) do verbo “dar” é mencionado. Quando lida, porém, em conexão com a frase seguinte (vs. 35), a ideia de que é o Pai quem dá ilimitadamente o Espírito e que é o Filho quem o recebe parece preferível. Assim pensa a maioria dos comentaristas. Para referências, veja Craig S. Keener, The Gospel of John: A Commentary, 2 vols. (Peabody: Hendrickson, 2003), 1:582-583.

6 Não que não haja espaço para o nascimento virginal na teologia de João, mas “não existe nenhuma

sugestão de pré-existência como com o conceito de encarnação, por meio da qual Alguém que previamente estava com Deus Se torna carne” (Wilson Paroschi, Incarnation and Covenant in the Prologue to the Fourth Gospel (John 1:1-18), EUS [Frankfurt: Peter Lang, 2006], 9 n.4). Raymond E. Brown acrescenta: “Pensamento encarnacional é indicativo de uma cristologia que enfatiza a pré-existência ... e escritos que refletem tal cristologia [cf. Fp 2:7; Jo 1:14] revelam desconhecimento ou desisteresse na maneira como Jesus foi concebido” (The Birth of the Messiah: A Commentary on the Infancy Narratives in the Gospels of Matthew and Luke, ed. rev., ABRL [Nova York: Doubleday, 1993], 141).

7 Para Werner G. Kümmel, porém, o dom do Espírito de Jo 20:22 tem que ver unicamente com o perdão

de pecados. Ele acrescenta que João “não diz absolutamente nada acerca da capacitação pelo divino Espírito para a realização de feitos miraculosos” (The Theology of the New Testament according to Its Major Witnesses: Jesus, Paul, John, trad. John W. Steely [Nashville: Abindgon, 1973], 313).

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crentes em geral, aqui representados pelos discípulos, e outra dez dias após a ascenção (At 2). No

primeiro caso, como argumenta Brown, o ato de Jesus soprar (evmfusa,w) o Espírito consistiria numa

alusão ao sopro criador de Deus mencionado em textos como Gn 2:7 e Ez 37:5-6 (cf. Sab 17:11). O

significado da expressão joanina, portanto, seria que assim como no princípio Deus soprou o espírito de

vida sobre a humanidade, assim nesse momento da nova criação Ele sopra o Espírito Santo sobre os

discípulos, concedendo-lhes a vida eterna.8 Já Herman Ridderbos, conquanto concorde que a referência

seja à capacitação dos discípulos para a missão, nega que haja aqui qualquer alusão ao Pentecoste,

como em Jo 7:39. Para ele, 20:22 fala de uma concessão mais limitada do Espírito aos discípulos

somente, e não do seu derramamento sobre “toda carne” de forma indistinta como no episódio de At 2

(cf. vs. 17).9

A importância de Jo 7:39, porém, não pode ser minimizada. Para João, o Espírito não poderia ser

dado antes da ascenção e glorificação de Jesus (cf. At 2:32-33); a glorificação seria a confirmação do Pai

de que o Filho cumprira cabalmente Sua missão (Jo 17:4-5). É por isso que convinha que Jesus fosse para

o Pai (16:28), porque se Ele não fosse, o Espírito não viria (vs. 7).10 Isso explica a expectativa de Jesus de

8 Raymond E. Brown, The Gospel according to John, 2 vols., AB (Nova York: Doubleday, 1966-1970),

2:1037.

9 Herman Ridderbos, The Gospel of John: A Theological Commentary, trad. John Vriend (Grand Rapids:

Eerdmans, 1997), 643. Uma terceira hipótese é a de que João nada sabia sobre o Pentecoste: ao passo que Lucas registra o episódio como tendo ocorrido dez dias após a ascenção, João pensava que ele tivera lugar ao entardecer do dia da ressurreição (assim, C. K. Barrett, The Gospel according to St. John, 2

a. ed. [Filadélfia: Westminster, 1978],

570). Conquanto convenha a uma visão sectária de João, bastante comum em alguns círculos, essa hipótese não é a mais apropriada para se entender as peculiaridades da teologia joanina. Para o lugar de João em relação à tradição cristã preservada nos demais livros neotestamentários, veja Stephen S. Smalley, John: Evangelist and Interpreter, 2ª. ed., NTP (Downers Grove: InterVarsity, 1998), 187-229.

10 João frequentemente associa a glorificação de Jesus com Sua partida deste mundo (7:39; 12:16, 23;

13:31-32; 16:14; 17:1, 5, 24) ou então com Sua “hora” (12:23, 27-28; 17:1), o que é normalmente interpretado com relação à morte de Jesus (e.g., Rudolf Schnackenburg, The Gospel according to St. John, 3 vols., trad. Kevin Smyth et al. [Nova York: Herder & Herder, 1968-1982], 2:382-383). Godfrey C. Nicholson, porém, argumenta de maneira convincente que “a hōra de Jesus no Quarto Evangelho não é a hora de Sua morte, mas a hora de Seu retorno para o Pai, da qual a hora da morte é parte” (Death as Departure: The Johannine Descent-Ascent Schema, SBLDS 63 [Chico: Scholars, 1983], 147). Ele acrescenta: “Assim como a hōra de Jesus não é uma referência a Sua morte mas a Seu retorno para o Pai, assim também a ‘glorificação do Filho do Homem’ não se refere à morte de

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que os discípulos se regozijassem com Sua partida (14:28; cf. 17:13). Além disso, o propósito

missiológico do dom de 20:22 não pode ser negado (cf. vss. 21-23), ainda que a ênfase recaia sobre o

perdão dos pecados. E, por fim, não há qualquer evidência de que os discípulos tenham dado início à

missão apostólica senão após o Pentecoste. Pelo contrário, eles ainda nutriam dúvida (vss. 24-25),

temor (vs. 26) e vários deles pareciam tentados a retornar à antiga profissão (21:1-3). O sopro do

Espírito de 20:22, portanto, talvez deva ser interpretado meramente como uma antecipação simbólica,

uma espécie de parábola dramatizada de algo que se cumpriria de maneira efetiva apenas no dia de

Pentecoste.11 E há pouca ou nenhuma dúvida de que o relato contenha uma motivação teológica. De

acordo com James D. G. Dunn, ao colocar a concessão do Espírito naquele momento, o apóstolo

desejava tão-somente afirmar a imediata continuidade entre Jesus e o Espírito. “O Espírito,” diz ele, “é o

outro Paracleto (14:16-17), cuja vinda cumpre a promessa de Jesus de voltar e permanecer com os

discípulos.”12

As palavras de Jesus de que aqueles que nEle cressem fariam as mesmas obras que Ele fazia, e

mesmo maiores, porque Ele ia para junto do Pai (Jo 14:12), também parecem se referir à capacitação

provida pelo Espírito, especialmente quando lidas em conexão com 7:39 e 16:7. É verdade que o assunto

em 16:7 não é a operação de milagres (cf. vss. 8-14), mas isso unicamente reforça a observação de que a

Jesus mas a algo que o Pai faz para o Filho, no exato momento ou logo após o retorno de Jesus para cima” (ibid., 149). Para informação e referências adicionais, veja Paroschi, Incarnation and Covenant in the Prologue to the Fourth Gospel, 140.

11 George E. Ladd, A Theology of the New Testament, ed. rev. (Grand Rapids: Eerdmans, 1993), 325. D. A.

Carson acrescenta: “A menos que adotemos uma visão literalista e mecânica da ação, tomando o Espírito Santo como sendo nada mais que o ar expirado de Jesus, somos forçados a dizer que o sopro foi simbólico” (The Gospel according to John [Grand Rapids: Eerdmans, 1991], 652).

12 James D. G. Dunn, Christ and the Spirit, 2 vols. (Grand Rapids: Eerdmans, 1998), 2:214. Rudolf Bultmann

diz praticamente o mesmo, embora ele certamente vá longe demais ao afirmar que, ao combinar a ressurreição (ou o retorno) de Jesus com a concessão do Espírito (14:15-20, 21-26; 16:12-24), João está reinterpretando o “motivo tradicional da expectação da Parousia,” desvestindo-a de seu “caráter original e mitológico” (The Gospel of John: A Commentary, trad. G. R. Beasley-Murray [Filadélfia: Westminster, 1971], 585-586). Com base em textos como Jo 14:3 e 21:22 (cf. 1 Jo 3:2), todavia, Ladd conclui que “as palavras de Jesus acerca da vinda do Paracleto e Sua vinda escatológica apenas refletem a tensão entre escatologia realizada e futurística” (340).

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capacitação sobrenatural do Espírito em João não está presente senão apenas em segundo plano. Por

outro lado, não se pode realmente afirmar que as “obras” (erga) de 14:12 excluem sinais miraculosos,13

mas mesmo que a referência estivesse limitada a obras evangelísticas, isso já seria o bastante para que o

texto fosse interpretado em termos da vinda do Espírito. “O que Jesus quer dizer,” destaca Leon Morris,

“pode ser visto nos relatos de Atos.”14 E o que assegura essa interpretação é a referência à ida

(ascenção) do Filho para junto do Pai, porque o Espírito não podia vir enquanto o Filho não fosse (7:39).

A partida do Filho, portanto, era conveniente para os discípulos (16:7). Ela permitiria com que essa nova

fase da história da salvação fosse administrada diretamente do céu (14:28), evitando-se, assim, a

limitação imposta pela presença física de Jesus.15

A apresentação joanina do Espírito Santo assume contornos ainda mais distintos no diálogo

entre Jesus e Nicodemos (Jo 3:1-15). Ali, o Espírito é apresentado como fonte de regeneração espiritual,

função virtualmente ausente dos Evangelhos Sinóticos, embora presente na tradição judaica, tanto

bíblica (Gn 2:7; Ez 37:5-6, 14) quanto extra-bíblica (Sab 17:11). O ponto realçado por esses textos é o de

que Deus traz vida por meio da atuação do Espírito (cf. Ti 3:5; 1 Pe 1:3, 23). É nesse sentido que as

palavras de Jesus a Nicodemos – “quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no reino de

13 Há uma tendência de se limitar essas “obras” aos sucessos missionários da igreja apostólica (para

referências, veja Francis J. Moloney, The Gospel of John, SPS 4 [Collegeville: Liturgical, 1998], 399), mas em João o termo erga geralmente se refere aos sinais miraculosos de Jesus (5:20, 36; 7:3; 9:3-4; 10:25, 32-33, 37-38; 14:10-12; 15:24), ao passo que o singular ergon descreve Sua missão como um todo (4:34; 17:4). Veja discussão por Keener, The Gospel of John, 2:946-947.

14 Leon Morris, The Gospel according to John, ed. rev., NICNT (Grand Rapids: Eerdmans, 1995), 574. Veja

também C. K. Barrett, “The Parallels between Acts and John,” em Exploring the Gospel of John: In Honor of D. Moody Smith, ed. R. Alan Culpepper e C. Clifton Black (Louisville: WJK. 1996), esp. 171-172.

15 A frase “o Pai é maior do que Eu” (Jo 14:28) é difícil do ponto de vista trinitariano. A referência, porém,

não parece ser ontológica, mas ao estado encarnado de Jesus. Ou seja, ela deve ser vista em conjunto com 10:30: “Eu e o Pai somos um.” Ridderbos explica: “Que o Pai é maior que Jesus significa apenas que Seu retorno para o Pai é o início de uma nova dispensação da graça, agora baseada no céu e, portanto, vinda do Pai. Esta nova dispensação ultrapassará as limitações da dispensação representada pela presença de Jesus na terra (cf. vs. 12), assim como a glória que Jesus vai receber como o Filho que retorna para o Pai será maior que Sua glória terrena (17:5, 24), embora ambas provenham de Sua igualdade com o Pai” (512).

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Deus” (Jo 3:5) – devem ser entendidas.16 A explicação é dada no versículo seguinte: “O que é nascido da

carne é carne, e o que é nascido do Espírito é espírito” (vs. 6). “Carne,” portanto, é a realidade do

primeiro nascimento, ao passo que “espírito” é a realidade do novo nascimento (cf. vss. 3, 7).17 A ideia é

que, em si mesmo, o ser humano não possui vida espiritual; uma vida assim só é possível mediante a

operação interior do Espírito de Deus.18 E o final do diálogo destaca que a condição para a obtenção

dessa vida é crer em (pisteuō eis) Jesus Cristo (vs. 15). O crente, portanto, pertence a uma ordem

diferente daquela do homem natural. No prólogo do Evangelho, João antecipa o conceito das duas

ordens, a natural e a espiritual (1:13), bem como o papel exercido pela fé para que se possa passar de

uma para outra (vs. 12c). Na verdade, não se passa de uma para outra. Quem nasce na ordem natural

nela permanece a menos que nasça de novo.19 E essa mudança de ordem vem acompanhada de uma

mudança de status: os que a experimentam se tornam “filhos *tekna+ de Deus” (vs. 12b). Ambos,

portanto, novo nascimento e divina filiação são dons do Espírito àquele que crê em Jesus.20

As palavras de Jesus a Nicodemos associam “água” e “Espírito” (Jo 3:5), o que parece evocar o

16 O mais próximo paralelo sinótico é Mc 10:15 (=Lc 18:3): “Em verdade lhes digo: Quem não receber o

reino de Deus como uma criança jamais entrará nele.” Ao passo que a forma é similar, não há qualquer menção de renascimento espiritual, mas apenas o uso metafórico de “criança” para expressar o conceito de discipulado.

17 O grego anōthen (vs. 3) pode significar “de novo” ou “de cima.” Nicodemos o entendeu como “de novo”

(vs. 4), mas o sentido mais comum, inclusive em João (3:31; 19:11, 23), é “de cima;” esse é também o sentido que mais se harmoniza com o dualismo vertical do Evangelho (3:13, 31; 6:33, 38, 41, 50, 51, 58, 62; 8:23). De qualquer forma, nascer “de cima” implica em nascer “de novo,” embora não da forma entendida por Nicodemos. Há até quem diga que esse é um dos vários exemplos em que João utiliza de maneira intencional palavras com duplo significado (e.g., E. Richard, “Expressions of Double Meaning and Their Function in the Gospel of John,” NTS 31 [1985]: 96-112, esp. 103).

18 Ladd, 326.

19 “Não há evolução da carne para o espírito” (Edwyn C. Hoskyns, The Fourth Gospel, 2

a. ed., ed. Francis N.

Davey [Londres: Faber & Faber, 1947], 204).

20 Note como os vss. 12-13 combinam a ideia da divina filiação com a do (novo) nascimento, o que

significa que, para João, filho é aquele que nasceu de novo (“de Deus” ou “do Espírito”). A relação entre a divina filiação e o Espírito, porém, é mais explícita em Paulo que em João (cf. Rm 8:15-17; Gl 4:6).

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tema do batismo.21 Talvez seja por isso que o batismo é mencionado no mesmo contexto (vss. 22-26).22

Em Jo 7:38-39a, “água” e “Espírito” voltam a ser associados: “Quem crer em mim, como diz a Escritura,

de seu interior fluirão rios de água viva. Isso ele disse,” continua João, “com respeito ao Espírito que

haviam de receber os que nele cressem.” A diferença, porém, é que aqui água não acompanha o Espírito

(água + Espírito), mas consiste num símbolo do Espírito (água = Espírito), ao passo que o futuro do verbo

fluir aponta para a dispensação do Espírito, isto é, para o novo período histórico-salvífico que se seguiria

à ascenção e glorificação de Jesus: “pois até aquele momento o Espírito não havia sido dado, porque

Jesus ainda não fora glorificado” (vs. 39b). Seja qual for o significado específico das águas fluindo do

interior do crente (cf. 4:14), a noção de um poder vivificador e transformador não pode em absoluto ser

excluída.23 As palavras de Jesus se referem ao dom abundante do Espírito na vida dos que nele

cressem.24

Outra passagem que também parece estar relacionada com o diálogo com Nicodemos é 6:63:

“O Espírito é quem dá vida; a carne não vale nada; as palavras que lhes tenho dito são espírito e vida.” A

primeira parte do texo é de difícil interpretação, mas não pode haver dúvida de que pneuma aqui se

21 Assim, Kümmel, 312-313; Keener, The Gospel of John, 1:546-550.

22 É provável que Jesus estivesse aqui (vs. 5) fazendo alusão ao batismo de prosélitos praticado pelo

judaísmo, do contrário suas palavras não seriam compreensíveis a Nicodemos. Para o leitor do final do primeiro século, porém, que é quando se supõe que o Evangelho foi escrito, é impossível que essas palavras não fossem vistas em conexão com o batismo cristão. Para a discussão quanto a se o batismo de prosélitos já existia no primeiro século, veja Wilson Paroschi, “Acts 19:1-7 Reconsidered in Light of Paul’s Theology of Baptism,” AUSS 47 (2009): 80 n. 35.

23 “A referência é ao refrigério e renovação da pessoa interior” (Ridderbos, 274). Alguns estudiosos têm

proposto uma pontuação diferente para Jo 7:38-39 de tal modo que Cristo, e não o crente, represente a fonte dos “rios de água viva” (e.g., C. H. Dodd, The Interpretation of the Fourth Gospel [Cambridge: Cambridge University Press, 1953], 349). Mesmo assim, porém, a noção de um poder vivificador e transformador permaneceria inalterada.

24 Além da pontuação, os vss. 38-39 apresentam um segundo problema: não há nenhuma Escritura que

fale de água viva fluindo dos crentes (ou de Cristo, caso a pontuação alternativa seja adotada). O que há são apenas passagens como Ez 47:1-12, Jl 3:18 e Zc 14:8 que se aproximam um pouco, mas não nos moldes da declaração de Jesus. Para uma breve análise das várias soluções propostas, veja Kenner, 1:724-730. Para uma análise virtualmente completa e bem documentada, veja Germain Bienaimé, “L’annonce des fleuves d’eau vive en Jean 7:37-39,” RTL 21 (1990): 281-310, 417-454.

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refere ao Espírito Santo, e não ao espírito humano, visto que o espírito humano não tem em absoluto a

prerrogativa de “dar vida” (zōopoieō).25 Tal prerrogativa pertence unicamente ao Espírito de Deus (Is

40:6-8; 2 Co 3:6; cf. Jo 5:21; 1 Co 15:45). O assunto nos versículos imediatamente anteriores (Jo 6:60-62)

é a incapacidade dos ouvintes de compreender o ensino de Jesus acerca de Sua morte. É bem provável,

portanto, que Jesus quisesse apenas enfatizar que o homem natural (“carne”), ou seja, o homem não

vivificado pelo Espírito, é mesmo incapaz de compreender o significado de Sua morte, pois coisas

espirituais só se discernem espiritualmente (cf. 1 Co 2:6-16).26 Se as palavras de Jesus são “espírito e

vida,” então somente aqueles que foram vivificados pelo Espírito e que agora pertencem à ordem

espiritual são capazes de compreendê-las plenamente. O versículo seguinte (Jo 6:64) retoma o tema da

fé, deixando implícito que só pode haver regeneração na vida daquele que responde com fé. Em vez de

rejeitar a Jesus como “o pão que desceu do céu” (vs. 41, 51, 58), que é o único que de fato pode dar vida

ao mundo (vs. 51), aquele que responde com fé permite com que o Espírito opere seu novo nascimento

e o transforme numa pessoa espiritual, levando-o a compreender o significado salvífico da morte de

Jesus e a experimentar o antegozo da vida eterna e a certeza da ressurreição (vss. 27, 40, 47, 54).27

Em conclusão, portanto, nas seções narrativas do Evangelho de João o Espírito é um poder

vivificador por meio do qual Deus regenera e transforma aquele que nele crê. Pelo Espírito, o crente

nasce de novo (3:3, 5-6), agora como filho de Deus (1:12-13), recebe vida e pode compreender assuntos

25 Na ARA, “espírito” aparece em letra minúscula, consistindo numa referência ao espírito humano.

26 Assim, Andreas J. Köstenberger, John, ECNT (Grand Rapids: Baker, 2004), 219.

27 Marianne M. Thompson comenta: “Se o Espírito não é dado senão após a morte de Jesus, quais são as

implicações de se receber dEle vida durante o período de Seu ministério? Vale lembrar que Jesus se refere às Suas palavras como ‘espírito e vida’ (Jo 6:63) e fala da vida que Ele confere como uma realidade presente (‘quem crê no Filho tem a vida eterna,’ 3:36; cf. 5:24; 6:47). Ele adverte que a menos que alguém nasça do Espírito, jamais receberá vida. À medida em que Espírito e vida são identificados um com o outro, então o recebimento efetivo da vida parece ser adiado para depois da morte de Jesus. Consequentemente, quando fala em dar vida (e.g., 3:5-8; 6:63), ele fala prolepticamente de algo que acontecerá apenas após Sua morte. Da mesma forma, Seu dom do Espírito é subsequente à Sua morte e glorificação. A morte e a ressurreição de Jesus selam os efeitos de Seu ministério” (The God of the Gospel of John [Grand Rapids: Eerdmans, 2001], 178).

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espirituais (6:63; 7:37-38). Em alguns momentos, o símbolo da água é utilizado possivelmente em

associação com o batismo (3:5) e com a finalidade de ressaltar a abundância do dom do Espírito

disponível àquele que crê (7:38-39a). A ideia de capacitação sobrenatural, característica dos Evangelhos

Sinóticos, também está presente, mas sempre em segundo plano. Quando isso ocorre, a ênfase de João

é mais no testemunho do Espírito acerca de Jesus (1:32-34), bem como no perdão dos pecados pela

autoridade do Espírito (20:22-23). João também é muito claro quanto ao tempo da vinda do Espírito:

Jesus teria antes que ser glorificado (7:39b), do contrário o Espírito não poderia vir (16:7). Para o

evangelista, a dispensação do Espírito não pode começar enquanto Jesus não concluir Sua obra.28 A

questão, porém, não é apenas cronológica, mas principalmente teológica. A glorificação de Jesus

significa a confirmação do Pai de que a missão do Filho foi coroada de pleno êxito (17:4-5; cf. Ef 4:7-10;

Ap 5:1-14).29

O Espírito nos Discursos de Despedida

Nos Discursos de Despedida (caps. 14-17), há um grupo de cinco passagens que se referem ao

Espírito Santo como “Paracleto” ou “Espírito da Verdade” (14:16-17, 25-26; 15:26-27; 16:7-11, 13-15). O

que distingue essas passagens, além de sua localização e distinta terminologia, é que elas são exclusivas

a João, têm que ver com a vinda do Espírito e descrevem funções ou características completamente

diferentes daquelas encontradas nas seções narrativas do Evangelho.30 A ideia predominante é a de um

28 “O que o evangelista quer dizer *em 7:39+ é que o Espírito do reino que desponta vem como resultado –

na verdade, como legado – da obra concluída pelo Filho, e até aquele momento o Espírito não havia sido dado no sentido pleno e cristão do termo” (Carson, 329).

29 Duas outras passagens que por vezes também são interpretadas em conexão com o Espírito Santo são

Jo 4:23-24 (“em espírito e em verdade”) e 19:30 (“rendeu o espírito”) (assim, Andrew T. Lincoln, The Gospel according to Saint John, BNTC [Peadoby: Hendrickson, 2005], 177-178, 478). Em ambos os casos, porém, os argumentos não são suficientemente convincentes (veja Morris, 239-240, 720-721).

30 O fato do termo paraklētos ser encontrado apenas nos escritos joaninos, e em nenhum outro escritor

em todo o NT, tem gerado dúvidas quanto a se a tradição remonta mesmo ao Jesus histórico (e.g., Bultmann, 552-555). A questão, porém, é se os demais evangelistas não expressaram aspectos do ensino de João acerca do

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instrutor, testemunha e guia, o que sugere algo mais que apenas um poder capacitador e vivificador. Na

verdade, em se tratando do Evangelho de João, essas passagens “provêem a evidência mais forte para

se conceber o Espírito como uma figura distinta, um agente ou personagem independente,”31 e estão

entre as que mais contribuíram para o desenvolvimento da doutrina cristã do Espírito.

Dentre as funções ali atribuídas ao Espírito, destacam-se a de ensinar (14:26), guiar na verdade,

anunciar as coisas que hão de acontecer (16:13) e fazer lembrar o que Jesus disse quando aqui esteve

(14:26). O Espírito fala, ouve (16:13), glorifica (16:14), testemunha (15:26) e convence do pecado, da

justiça e do juízo (16:8). O Espírito também é descrito como “outro Paracleto” (14:16) que vem para

ocupar o lugar de Jesus (16:7), sugerindo que Ele tem atribuições semelhantes às de Jesus, com a

diferença de que Sua presença deveria ser ainda mais apreciada que a do próprio Jesus, talvez em

virtude da ausência de limitações espaciais (14:28; 16:7). O Espírito também seria livre de limitações

temporais, visto que poderia estar para sempre com os discípulos (14:16). Além disso, o Espírito vem de

Deus (15:26; 16:7), ou seja, é enviado por Deus (14:26; 15:26), da mesma forma como o foram João

Batista (1:6; 3:28) e o próprio Jesus (3:34; 6:29, 57; 7:29; etc). Por fim, o Espírito também pode ser

conhecido e recebido (14:17; cf. 7:39), como Jesus o pôde (1:12; 6:69; 10:14; 13:20).

Tudo isso aponta para uma figura distinta, independente, para não dizer pessoal, ao mesmo

tempo em que evidencia certas características divinas, como a capacidade de transcender as fronteiras

do espaço e do tempo.32 É verdade que em 14:18, ao falar da vinda do Paracleto (cf. vss. 16-17), Jesus

promete que Ele mesmo voltaria para os discípulos, e já houve quem dissesse que o Paracleto não é

Paracleto de outras formas. Para possíveis exemplos, veja G. Braumann, “Advocate,” NIDNTT, 4 vols. (Grand Rapids: Zondervan, 1986), 1:90-91.

31 Thompson, 149.

32 Note que a divindade do Espírito também pode ser inferida a partir da declaração de Jesus em Jo 6:63,

visto que dar vida (zōopoieō) consiste numa prerrogativa distintamente divina. Como dizem Andreas J. Köstenberger e Scott R. Swain, “embora João não diga que o Espírito é Deus, ele certamente mostra que o Espírito é Deus” (Father, Son and Spirit: The Trinity and John’s Gospel, NSBT [Downers Grove: InterVarsity, 2008], 135 n. 3).

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12

outro senão o próprio Cristo glorificado que voltaria para os discípulos de forma espiritual, invisível.33

Vários comentaristas vêem esse retorno de Jesus em conexão com a Parousia (cf. vss. 1-3) ou então com

Suas aparições após a ressurreição, em particular a de 20:19-23, quando Ele concede o Espírito aos

discípulos (cf. vs. 19).34 A menção de que os discípulos não ficariam “órfãos,” porém, deixa implícito que

Ele estava mesmo Se referindo à vinda do Espírito, pois é difícil ver como a distante Parousia

(considerando-se pelo menos o tempo em que o Evangelho foi escrito) ou umas poucas aparições pelo

intervalo de apenas quarenta dias (entre a ressurreição e a ascenção; At 1:3) pudessem resolver o

problema da orfandade dos discípulos. Parece mais natural, portanto, interpretar a promessa de Jesus

em conexão com a vinda do Espírito.35 De qualquer modo, Jesus e o Espírito não podem ser a mesma

pessoa, pois Jesus Se refere ao Espírito como “outro Paracleto” (14:16), o que, conquanto aponte para

uma identidade de função (cf. 1 Jo 2:1), preserva a distinção pessoal entre ambos.36 A mesma distinção

está presente em outras passagens onde Jesus e o Espírito são mencionados lado a lado (1:32-33; 7:39;

14:26; 15:26; 20:22). Na verdade, ao dizer que voltaria para os discípulos na pessoa do Espírito, é

provável que Jesus não estivesse senão evocando o mesmo conceito de quando disse: “Quem me vê a

33 E.g., George B. Stevens, The Theology of the New Testament, 2

a. ed. (Edimburgo: T&T Clark, 1906), 214-

220; Ernest F. Scott, The Fourth Gospel: Its Purpose and Theology, 2a. ed. (Edimburgo: T&T Clark, 1908), 343-349;

Ian Simpson, “The Holy Spirit in the Fourth Gospel,” Exp 4 (1925), 292-299.

34 Barnabas Lindars (The Gospel of John, NCB [Londres: Oliphants, 1972], 480) e F. F. Bruce (The Gospel of

John [Grand Rapids: Eerdmans, 1983], 303) preferem ver aqui uma referência à Parousia, ao passo que Morris (578-579), Keener (The Gospel of John, 2:973) e Lincoln (395) interpretam o texto em conexão com as aparições pós-ressurreição. Barrett faz o mesmo, embora ele acredite que o texto também possa incluir uma alusão à Parousia. “Não é de modo algum impossível,” ele declara, “que João conscientemente e deliberadamente possa ter utilizado linguagem aplicável tanto à ressurreição quanto à Parousia (The Gospel according to St. John, 464).

35 Assim, Dunn, 2:214. Veja também Hartwig Thyen, Das Johannesevangelium, HNT 6 (Tübingen: Mohr

Siebeck, 2005), 632; J. Ramsey Michaels, The Gospel of John, NICNT (Grand Rapids: Eerdmans, 2010), 785; Köstenberger e Swain, 96.

36 O grego allos paraklētos, de Jo 14:16, admite duas traduções: “outro Paracleto,” indicando que o

Espírito seria para os discípulos aquilo que o próprio Jesus havia sido até então, e “outro, [a saber] um Paracleto,” o que eliminaria a ideia de um Paracleto anterior. Cf. Lc 23:32, onde heteroi dyo kakourgoi significa “outros dois, *que eram+ malfeitores,” e não “outros dois malfeitores.” J. Behm, porém, argumenta que o uso pleonástico de allos não só é contrário ao estilo de João como também está em desacordo com a exegese dos pais gregos (“Paraklētos,” TDNT, 10 vols. [Grand Rapids: Eerdmans, 1964-1976], 5:800 n. 1).

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13

mim vê o Pai” (14:9; cf. vs. 11). Ou seja, assim como o Pai pode ser visto no Filho, o Filho pode voltar no

Espírito, ficando subentendido que a mesma unidade que existe entre o Filho e o Pai (10:30) também

existe entre o Filho e o Espírito.37

O significado do termo paraklētos é muito debatido. Não obstante, seja o que for que João

tivesse em mente ao empregá-lo, isso apenas corrobora a ideia de que o evangelista via o Espírito como

uma figura independente, ou virtualmente independente, enviada por Deus em substituição a Jesus e

para dar continuidade à obra por Ele iniciada. Do ponto de vista linguístico, paraklētos está relacionado

com o verbo parakaleō, que significa apenas “chamado para estar ao lado.” Quando utilizada como um

substantivo, paraklētos envolve a ideia de ajuda ou assistência. A evidência mais antiga disponível

mostra que o termo era utilizado em contextos jurídicos, envolvendo cortes de justiça e significando

algo como um “assistente legal.” Em latim, o termo equivalente era advocatus, e foi assim que o termo

foi entendido por muitos antigos escritores e tradutores latinos cristãos.38 Por influência do substantivo

paraklēsis, que significa “consolo” ou “conforto,” porém, alguns tradutores, bem como diversos pais

gregos, vieram a interpretar paraklētos com o sentido de “consolador,” sentido esse preferido por

Wycliffe, Tyndale e Lutero, entre outros, e ainda presente num bom número de versões modernas.39 A

questão é que nenhum desses sentidos é plenamente satisfatório para o paraklētos de João, exceto em

1 Jo 2:1, onde o termo se refere a Jesus, embora não como um título, e certamente significa “advogado”

(“intercessor” ou “mediador”). Com relação ao Evangelho, as coisas são bem diferentes.

37 E se o Filho e o Espírito são um, assim como o são o Filho e o Pai, não seria natural concluir que o Pai e o

Espírito também são um, ou que de fato existe uma unidade (trinitária) entre o Pai, o Filho e o Espírito? Note que em Jo 14:23, Jesus amplia o conceito de que Ele mesmo voltaria na pessoa do Espírito para incluir também o Pai nesse retorno. Ou seja, na vinda do Espírito, Filho e Pai voltariam e fariam morada no crente (cf. vs. 17).

38 Behm esclarece: “Não há qualquer exemplo em que paraklētos, à semelhança de seu equivalente latino

advocatus, seja utilizado como um termo técnico para o consultor jurídico ou defensor profissional de um acusado no mesmo sentido que syndikos ou synēgoros. Mas, o uso de paraklētos para um representante deve ser entendido à luz da assistência legal na corte, a defesa da causa de alguém” (5:801).

39 Em português, ARC, ACR, ARA, AR, AC, A21.

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A noção do Espírito como um defensor legal até pode estar presente em textos como Mt 10:20

e At 6:10, mas não no Quarto Evangelho, especialmente em Jo 16:7-11, onde o papel do Paracleto mais

se parece com o de um promotor ou advogado de acusação tentando provar a culpa do mundo. Além

disso, nas cortes de justiça judaicas o papel do advogado de defesa era nulo, visto que era o juiz que

conduzia o interrogatório e o réu, quando muito, dispunha de testemunhas para sua defesa. Em 15:26, o

Paracleto é retratado como uma testemunha de Jesus, mas não como advogado.40 Quanto à ideia de um

consolador, não há em João uma única passagem em que o Paracleto assume tal função. No máximo, o

elemento de consolo está presente no contexto imediato, como em 16:6 (cf. 14:18, 27; 16:20-22, 33),

que precede uma das passagens referentes ao Paracleto, mas, mesmo assim, o consolador é Jesus, não

o Espírito.41 John Ashton é enfático ao afirmar que “nenhum dos possíveis significados de parakaleō se

encaixa precisamente nas várias funções atribuídas ao Paracleto no Evangelho,” e que “essas funções

não podem ser reduzidas ou resumidas num termo único e abarcante o suficiente para que possa

substituir paraklētos.”42

A questão toda, portanto, é se João não teria utilizado o termo paraklētos por outras razões que

não seu significado etimológico. Se parakaleō não provê uma explicação satisfatória, então o sentido

joanino do termo talvez tenha que ser buscado em outro lugar. Vários intérpretes propõem uma solução

40 Veja Raymond E. Brown, “The Paraclete in the Fourth Gospel,” NTS 13 (1967): 116-117.

41 Ibid., 117-118. Bem poucos são os intérpretes contemporâneos que ainda insistem em ver no

paraklētos de João alguma noção de consolo (e.g., J. G. Davies, “The Primary Meaning of Paraklētos,” JTS 4 [1953]: 35-38; James M. Hamilton, Jr., God’s Indwelling Presence: The Holy Spirit in the Old and New Testaments [Nashville: B&H, 2006], 57-99). O sentido forense, por outro lado, já conta com bem mais apoio. Para uma recente defesa desse sentido, veja Lochlan Shelfer, “The Legal Precision of the Term ‘paraklētos,’” JSNT 32 (2009): 131-150.

42 John Ashton, “Paraclete,” ABD, 6 vols. (Nova York: Doubleday, 1993), 5:152. A solução proposta por

Ashton para o problema do termo em si é apenas manter a forma transliterada “Paracleto,” visto que ela “provê um nome distinto e reconhecível para o personagem identificado nos Discursos de Despedida como ‘o Espírito da Verdade’ (Jo 14:17; 15:26; 16:13) ou ‘Espírito Santo’ (14:26)” (ibid.). Essa foi, e.g., a solução encontrada por Jerônimo já no quarto século naquela que viria a ser conhecida como Vulgata Latina (Paracletus). Por causa de diferentes padrões fonéticos, a chamada Nova Vulgata (1974) optou por Paraclitus. Assim também a Bíblia de Jerusalém (“Peráclito”). Em 1 Jo 2:1, tanto Jerônimo quanto a Nova Vulgata mantiveram advocatus (Bíblia de Jerusalém: “advogado”).

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a partir do termo hebraico mēlîṣ, utilizado em Jó 33:23 com o sentido de “intercessor” e traduzido nos

targuns por peraqlîṭāʾ, que nada mais é senão uma transliteração aramaica do grego paraklētos. A ideia

de uma intercessão vindicativa, embora não a palavra mēlîṣ, também está presente em 16:2043 (cf.

19:25), onde o Targum de Jó novamente utiliza o termo peraqlîṭāʾ. Na verdade, peraqlîṭāʾ aparece

diversas vezes na literatura rabínica sempre com o sentido de alguém que intercede em favor de

outrem,44 o que demonstra que o termo era muito conhecido não apenas entre os judeus helenistas

mas também palestinos. O hebraico mēlîṣ é igualmente utilizado nos escritos de Qumrã para designar

um instrutor ou “intérprete de mistérios” (1QH10:13), além de um intercessor (1QH14:13).45 Ou seja,

mēlîṣ parece combinar as funções de intercessão e instrução. O mesmo acontece na literatura

intertestamentária em relação a anjos mediadores,46 e no Testamento de Judá, do terceiro ou segundo

século a.C., o “espírito da verdade” nos seres humanos “testemunha todas as coisas e faz todas as

acusações” (20:1-5).47 No pensamento judeu, portanto, há diversos precedentes que combinam as

funções forense e pedagógica de um modo muito próximo do papel atribuído ao Paracleto no Quarto

Evangelho. O Paracleto joanino, porém, não é um anjo ou outro ser celestial qualquer, mas o próprio

Espírito Santo (14:26). O emprego de um termo técnico de origem grega já previamente utilizado em

43 Veja o texto na NVI.

44 E.g., m. Ab. 4.11a; Exod R. 18.3; b. B. Bat. 10a; Sifra 277a. Para comentários, veja esp. Shelfer, 142-145.

45 As referências seguem a nova organização adotada por Geza Vermes em The Complete Dead Sea Scrolls

in English (Nova York: Allen Lane/Penguin, 1997).

46 E.g., 1 En. 9:3-11; 39:5; 40:6-7; 47:1; 68:4; 99:3; 104:1 (cf. 13:4-7; 15:2-3; 83:10; 89:76); T. Levi 3:5; Jub.

4:15; Tob 12:15. Para comentários, veja esp. Behm, 5:810.

47 Veja Howard C. Kee, “Testaments of the Twelve Patriarchs,” em The Old Testament Pseudepigrapha, 2

vols., ed. James H. Charlesworth, ABRL (Nova York: Doubleday, 1983-1985), 1:775-828. Em T. Jud., o “espírito da verdade” não é o Espírito de Deus, como em João, mas apenas um espírito bom que se opõe ao “espírito do erro” que atua sobre a humanidade.

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contextos judaicos não deve ofuscar a aplicação distinta que dele faz o evangelista.48

Algumas considerações sobre a função pedagógica do Paracleto. De acordo com João, o

Paracleto haveria de “ensinar [aos discípulos] todas as coisas” e fazê-los lembrar de tudo o que Jesus

dissera (14:26). Ele os guiaria em “toda a verdade” (16:13) e lhes anunciaria somente aquilo que

recebera do próprio Jesus (vs. 14). Ou seja, Ele viria como testemunha de Jesus (15:26) com o único

intuito de glorificá-Lo (16:14). A obra do Espírito, portanto, estaria inteiramente centralizada em Cristo,

ou quem sabe seria melhor dizer que Cristo mesmo seria o objeto de Sua obra, e esta, nos dizeres de

Gary Burge, “é a mais importante característica individual do Paracleto joanino.”49 Talvez isso ajude a

entender a origem da elevada e distinta cristologia encontrada em João, ainda mais se comparada com a

dos demais Evangelhos. Na promessa do Paracleto, fica implícito não só que haveria novas dimensões e

implicações cristológicas a serem compreendidas pelos discípulos (cf. 16:12), como também que ao

dizer o que diz, o evangelista não o faz senão pela autoridade do Espírito.

João foi um dos maiores gênios da igreja apostólica, mas em que pese sua habilidade como

intérprete e teólogo, seu próprio Evangelho é o resultado da atuação implícita do Espírito. É por isso que

ele não se limitou a recordar os fatos históricos envolvendo a pessoa de Jesus. Ele foi além, anexando

aos fatos o seu significado para a vida e a fé da igreja, pois onde quer que o Espírito atue, as palavras e

os eventos da vida de Jesus são repetidos e interpretados (14:26).50 Não foi João, portanto, que de

maneira arbitrária reescreveu as tradições evangélicas em face das necessidades de seu tempo,

apelando então para a figura do Paracleto para justificar sua própria cristologia como se esta tivesse

48 Para discussão adicional sobre o significado de paraklētos, veja A. R.C. Leaney, “The Johannine

Paraclete and the Qumran Scrolls,” em John and the Dead Sea Scrolls, ed. James H. Charlesworth (Nova York: Crossroad, 1990), 38-61.

49 Gary Burge, The Anointed Community: The Holy Spirit in the Johannine Tradition (Grand Rapids:

Eerdmans, 1987), 41.

50 Kümmel, 318.

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pouco ou nada que ver com o Jesus histórico.51 Mesmo que seu Evangelho seja diferente dos Sinóticos,

tenha sido produzido de acordo com seu próprio vocabulário e estilo – em vez dos de Jesus – e contenha

uma série de interpretações e reflexões pessoais, nada disso requer um parecer negativo quanto ao

caráter essencialmente histórico do relato.52 Pelo contrário, para João, os fatos só podem ser

significativos se forem autênticos (cf. 20:30-31; 1 Jo 1:1-4), e foi o Espírito, não sua própria iniciativa,

que o levou a compreender a Jesus de uma forma mais adequada que o fizeram aqueles que são

mencionados no drama do Evangelho. Isso explica sua ênfase de que plena compreensão de Jesus só foi

possível após a ressurreição (2:22; 12:16; 20:9). Na verdade, o Espírito é a contínua presença de Jesus

guiando, ensinando e conduzindo a igreja a uma percepção cada vez mais clara do significado de Si

mesmo e Sua obra salvífica para que ela também entenda a razão de sua própria existência (20:20-22;

15:26-27).53

Finalizando, não há dúvida de que nos Discursos de Despedida o conceito de João quanto ao

Espírito se amplia e alcança novos níveis de significado. O título “Paracleto,” possivelmente inspirado no

aramaico peraqlîṭāʾ – em si mesmo uma transliteração do grego paraklētos utilizada na literatura

judaica, às vezes em substituição ao hebraico mēlîṣ, para expressar noções de intercessão e instrução –

51 Lincoln, e.g., declara: “A função do Espírito é testemunhar do significado de Jesus e suas implicações e,

por meio disso, como o Espírito da Verdade, conduzir os crentes a toda a verdade (15:26; 16:13). A narrativa interpretativa contemporizante do evangelista é parte dessa verdade. E como o Espírito também toma aquilo que pertence a Jesus e o declara aos Seus seguidores (16:14-15), do ponto de vista do Evangelho é, na verdade, Jesus que fala na narrativa – nem tanto o Jesus terreno senão o Jesus exaltado é quem fala pelo Espírito às presentes necessidades de Seus seguidores” (47-48). Bastante comum nos meios acadêmicos, essa tese foi muito difundida por meio da aplicação de técnicas crítico-redacionais ao Evangelho de João. A bibliografia é muito vasta e inclui: J. Louis Martyn, History and Theology in the Fourth Gospel, 3

a. ed., NTL (Louisville: WJK, 2003 [1

a. ed., 1967]), esp.

136-143; Raymond E. Brown, The Community of the Beloved Disciple: The Life, Loves, and Hates of an Individual Church in New Testament Times (Nova York: Paulist, 1979), esp. 27-31; John Painter, “The Farewell Discourses and the History of Johannine Christianity,” NTS 27 (1981): 525-543.

52 Sobre a historicidade de João na pesquisa contemporânea, veja Wilson Paroschi, “Archaeology and the

Interpretation of John’s Gospel: A Review Essay,” JATS 20 (2009): 67-88.

53 “A visão ou interpretação de Jesus dada nesse Evangelho é obra do Espírito Santo. ... É apenas no

âmbito da vida e obra do Espírito que Cristo vive para o crente e, por conseguinte, é apenas nesse âmbito que o cristão ou a igreja vive e sabe quem ela é” (D. Moody Smith, The Theology of the Gospel of John, NTT [Cambridge: Cambridge University Press, 1995], 141-142).

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pode ter sido escolhido exatamente em virtude dessa ampliação conceitual. Em vez de apenas um poder

que regenera e capacita, o Paracleto mais parece um “agente de Deus”54 que vem para ocupar o lugar

de Jesus, o primeiro Paracleto (14:26), e dar prosseguimento à obra que Ele iniciara. Isso significa que o

Paracleto é comparável a Jesus em personalidade e atividade.55 O Paracleto também não é o próprio

Jesus glorificado, mas a unidade entre ambos, semelhante à que existe entre o Pai e o Filho (10:30;

14:9), é atestada ao Jesus dizer que Ele mesmo voltaria na pessoa do Paracleto (vs. 18).56 Além disso, a

vinda do Espírito é paralela à vinda de Jesus: assim como o ministério de Jesus trouxe condenação

àqueles que não creram (3:18-20; 9:39-41; 15:22-24), o ministério do Espírito convenceria o mundo do

pecado, da justiça e do juízo (16:8-11). Assim como o ministério de Jesus trouxe instrução e orientação

aos que O ouviam (6:63, 68; 7:16-18; 8:28; 18:20), o ministério do Espírito ensinaria todas as coisas aos

que nEle cressem e os guiaria em toda verdade, fazendo com que se lembrassem de tudo aquilo que

Jesus ensinara e compartilhando com eles novos conhecimentos (14:26; 16:13-15).57 Ou seja, “João

apresenta o Espírito como o sucessor de Jesus que continua Sua obra revelatória, sustentando os

discípulos depois da ruptura representada pela morte de Jesus.”58 Não é sem razão, portanto, que a

teologia cristã vê o Espírito como alguém com personalidade própria, e talvez não haja nenhum outro

livro no NT, ou em toda a Escritura, que mais contribua individualmente para essa visão que o Quarto

Evangelho.

O Espírito e a Gramática

54 Thompson, 149.

55 Burge relaciona dezesseis semelhanças entre Jesus e o Paracleto (141).

56 “O Paracleto é a presença de Jesus quando Jesus está ausente” (Brown, The Gospel according to John,

1:1141).

57 A interpretação da última parte de Jo 16:13 é controversa. Para detalhes, veja Keener, The Gospel of

John, 2:1039-1041.

58 Smith, 143.

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Em João, o Espírito é retratado não apenas como um poder ou a manifestação de Deus e de

Cristo, mas como um ser pessoal distinto tanto do Pai quanto do Filho. Desde os tempos da Reforma,

um dos mais recorrentes argumentos em favor da personalidade do Espírito se baseia no fato de que

oito vezes nos Discursos de Despedida a palavra pneuma (“espírito”), um substantivo neutro, vem

acompanhada de pronomes masculinos quando usada em conexão com o Espírito Santo. Isso ocorre nas

seguintes passagens: 14:26 (ekeinos); 15:26 (hos, ekeinos); 16:7-8 (autos, ekeinos), 13-14 (ekeinos[2x],

heautou). Em algumas das mesmas passagens, como seria de se esperar, há quatro instâncias em que

pronomes neutros são utilizados: 14:17 (ho, auto), 26 (ho); 15:26 (ho). O mesmo ocorre em 7:39 (ho). O

argumento típico é exemplificado por Ladd: quando João utiliza corretamente pronomes neutros em

conexão com pneuma, não há nenhuma implicação “a favor ou contra a personalidade do Espírito

Santo.” Mas, quando “pronomes que têm pneuma como antecedente imediato aparecem no masculino,

não se pode senão concluir que se pretende indicar a personalidade do Espírito.”59

A questão é relativamente simples, o que apenas faz aumentar o assombro diante da enorme

popularidade do argumento. No fim, o que mais impressiona é a forma ingênua com que ideias

interessantes podem acabar sendo disseminadas sem a devida avaliação. O que se diz é que onde o

pronome masculino ekeinos é utilizado, o substantivo mais próximo é pneuma, sendo, portanto, seu

antecedente. Mas, o antecedente de um pronome deve ser determinado pela gramática e não pela

proximidade, e em todas as vezes em que pronomes masculinos são utilizados, o antecedente

gramatical é paraklētos, nunca pneuma, que está presente no texto apenas como aposto de

59 Ladd, 331. As referências são extremamente abundantes. Exemplos incluem: J. H. Bernard, A Critical

and Exegetical Commentary on the Gospel according to St. John, ICC (Edimburgo: T&T Clark, 1929), 2:500; Louis Berkhof, Systematic Theology (Carlisle: Banner of Truth Trust, 1958), 96; Barrett, The Gospel according to St. John, 482; John Painter, Reading John’s Gospel Today, 3

a. ed. (Mitcham: Beacon Hill, 1986), 67; Morris, 583 n. 73;

Guthrie, 531; Donald G. Bloesch, The Holy Spirit: Works and Gifts (Downers Grove: InterVarsity, 2000), 67; Michael Green, I Believe in The Holy Spirit, 2

a. ed. (Grand Rapids: Eerdmans, 2004), 52. Entre autores adventistas, veja

Arnold V. Wallenkampf, New by the Spirit (Mountain View: Pacific Press, 1978), 9; Fernando L. Canale, “Doctrine of God,” em Handbook of Seventh-Day Adventist Theology, ed. Raoul Dederen, CRS 12 (Hagerstown: Review & Herald, 2000), 134; Woodrow Whidden, Jerry Moon e John W. Reeve, The Trinity: Understanding God’s Love, His Plan of Salvation, and Christian Relationships (Hagerstown: Review & Herald, 2002), 72.

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paraklētos.60 Além disso, é importante salientar que diversas vezes nesses mesmos versículos João se

utiliza de pronomes neutros para se referir ao Espírito, e ele o faz sempre que o antecedente gramatical

é pneuma. Ou seja, não há absolutamente nada de anormal ou significativo na utilização de pronomes

pelo apóstolo nos contextos referentes ao Espírito. O fato de paraklētos ser um substantivo masculino

também não tem nenhuma implicação no que diz respeito à personalidade (e muito menos à

masculinidade) do Espírito. O gênero de paraklētos, assim como o de pneuma, é apenas um acidente

linguístico e nenhuma conclusão teológica pode ser extraída de algo assim.61

Não muito diferente é o argumento que procura deduzir não a personalidade, mas a divindade

do Espírito a partir do adjetivo allos (“outro”) empregado em Jo 14:16 (“outro Paracleto”). Spiros

Zodhiates, por exemplo, declara: “Cristo Se refere ao Espírito Santo como Paracleto ... e Ele O chama de

allos ... ‘outro,’ que significa outro de qualidade igual (e não heteros, outro de qualidade diferente).

Portanto, o Espírito Santo é designado por Jesus como igual a Ele, ou seja Deus.”62 Também tradicional,

embora bem menos utilizado que o argumento da personalidade,63 esse argumento é ainda mais

equivocado à medida em que confunde atividade ou, quando muito, personalidade com divindade. Ao

60 Como declara Daniel B. Wallace: “O uso de ekeinos aqui [Jo 14-16] é frequentemente considerado por

estudiosos do NT como uma afirmação da personalidade do Espírito. ... Mas, isso não está correto. Em todas essas passagens joaninas, pneuma está em aposição a um substantivo masculino. O gênero de ekeinos, portanto, não tem nada que ver com o gênero natural de pneuma. O antecedente de ekeinos, em todos os casos, é paraklētos, não pneuma” (Greek Grammar Beyond the Basics: An Exegetical Syntax of the New Testament [Grand Rapids: Zondervan, 1996], 331-332). Para um tratamento mais detalhado, inclusive de outras passagens em que pneuma supostamente vem acompanhado de elementos gramaticais masculinos (Ef 1:14; 2 Ts 2:6-7; 1 Jo 5:7), veja idem, “Greek Grammar and the Personality of the Holy Spirit,” BBR 13 (2003): 97-125.

61 Note que em hebraico “espírito” (rû

a ) é uma palavra feminina; em português, masculina.

62 Spiros Zodhiates, The Complete Word Study New Testament: Bringing the Original Text to Life, WSS

(Chattanooga: AMG, 1991), 944. Assim também Richard C. Trench, Synonyms of the New Testament, 12a. ed.

(Londres: Trübner & Co., 1894), 358; Marvin R. Vincent, Word Studies in the New Testament, 4 vols. (Nova York: Scribner, 1887-1900), 2:244; Archibald T. Robertson, Word Pictures in the New testament, 6 vols. (Nashville: Broadman, 1930-1933), 5:252; Francis D. Nichol, ed., SDA Bible Commentary, ed. rev., 7 vols. (Hagerstown: Review & Herald, 1980), 5:1037; Wallenkampf, 14; Canale, 133.

63 O argumento parece remontar Gregório de Nazianzo, um dos principais articuladores da doutrina da

Trindade no quarto século, o qual dizia que a palavra allos em Jo 14:16 aponta para a co-igualdade e consubstancialidade entre o Espírito e Cristo (Or. Bas. 41.12).

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Se referir ao Espírito como “outro Paracleto,” Jesus sem dúvida estava chamando atenção para o fato de

que o Espírito haveria de dar continuidade à obra que Ele mesmo iniciara e estar “para sempre” com os

discípulos. A expressão também pode conter uma alusão à personalidade do Espírito, visto que Ele viria

para ocupar o lugar de Jesus, mas tomá-la de forma ontológica como referência à igualdade de natureza

entre Jesus e o Espírito é ir muito além da evidência e impor à palavra um significado que ela

definitivamente não tem.

O argumento comete um erro linguístico bastante elementar, o de achar que, porque heteros

geralmente envolve distinção qualitativa (e.g., At 4:12 [também menciona allos]; Rm 7:23; 1 Co 14:21; 2

Co 11:4 [também menciona allos]; Hb 7:11, 13, 15; Jd 1:7), allos também o faz. Mas, a noção

fundamental de allos é meramente quantitativa (e.g., “outra parábola” em Mt 13:24, 31, 33), a menos

que ele seja utilizado em oposição a heteros, que de qualquer modo é quem acaba exercendo o

principal papel na diferenciação qualitativa. É isso o que ocorre, por exemplo, em Gl 1:6-7, onde Paulo

diz que o falso evangelho pregado aos crentes gálatas na sua ausência não era allos, mas heteros.64

Joseph H. Thayer assim define a questão: “Allos, quando comparado com heteros, denota diferença

numérica e não diferença qualitativa; allos acrescenta (mais um), heteros distingue (um de dois); todo

heteros é um allos, mas nem todo allos é um heteros; allos geralmente denota mera distinção de

indivíduos, ao passo que heteros envolve a ideia secundária de uma diferença de tipo.”65

Conquanto tanto a personalidade quanto a divindade do Espírito possam ser demonstradas com

base em outras conexões textuais e interpretativas,66 ambos os argumentos acima são um constante

64 “Aqui *Gl 1:6-7], como em At 4:12, allos e heteros não são intercambiáveis; allos tem uma conotação

aditiva, enquanto heteros tem uma nuança adversativa” (K. Haacker, “Heteros,” EDNT, 3 vols. [Grand Rapids: Eerdmans, 1990-1993], 2:66).

65 Joseph H. Thayer, Thayer’s Greek-English Lexicon of the New Testament, 4

a. ed. (Edimburgo: T&T Clark,

1896; reimp., Peabody: Hendrickson, 1997), 29.

66 Sobre a personalidade do Espírito, Wallace declara: “A noção deve ser baseada na natureza do

paraklētos e as coisas ditas acerca do Consolador, não em supostas subtilezas gramaticais” (Greek Grammar

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lembrete de quão fácil é estar equivocado mesmo quando se reproduz conceitos tradicionais de ampla

aceitação. A popularidade de um argumento não é evidência de autenticidade, o que significa dizer que

nem sempre a maioria está correta. A teologia cristã pouco ou nada tem a ganhar com o uso de

argumentos inadequados ou a imposição ao texto de conceitos estranhos, ainda que em nome de uma

boa causa. Do ponto de vista hermenêutico, o uso forçado ou tendencioso das Escrituras para apoiar

doutrinas corretas em nada difere da prática correspondente por aqueles que promovem doutrinas

espúrias, contrárias à ortodoxia cristã. Como apregoa a sabedoria popular, os fins não justificam os

meios. Se a verdade não puder ser apresentada de forma clara e correta, nenhuma primazia poderá ser

reivindicada em relação ao erro.67

Considerações Finais

Qual é relevância da discussão acima para a teologia e doutrina adventistas? Apesar das muitas

perguntas ainda sem respostas, a crença adventista contemporânea na distinta personalidade do

Espírito não parece estar nem um pouco em desacordo com a evidência disponibilizada pelo Evangelho

de João, particularmente nos Discursos de Despedida. Conquanto medeie a presença espiritual de Jesus

no mundo, o Paracleto não é Jesus, muito menos mera força ou influência impessoal, mas uma pessoa;

na verdade, um agente de Deus enviado pelo Pai mediante solicitação do Filho (14:16, 26; 15:26; 16:7).

Assim, “ambos, o Filho e o Paracleto, têm a mesma origem, o Pai, mas o Filho exerce um papel no envio

histórico do Paracleto,”68 o qual é investido com prerrogativas e autoridade comparáveis à do Filho

(16:13-15; cf. 12:49; 14:31), porquanto vem para substituí-Lo. Em vez de falar em Seu favor, Deus o faz

Beyond the Basics, 332).

67 Wallace acrescenta: “Base gramatical para a personalidade do Espírito Santo está ausente no NT,

apesar disso, com frequência essa é ... a primeira linha de defesa dessa doutrina por muitos escritores evangélicos. Mas, se a gramática não pode de forma legítima ser utilizada para apoiar a personalidade do Espírito, então talvez tenhamos que reexaminar o resto da nossa base para esse compromisso teológico. É claro que não estou negando a doutrina da Trindade,” Wallace faz questão destacar, “mas estou dizendo que precisamos estabelecer nossas crenças sobre uma fundação mais sólida” (“Greek Grammar and the Personality of the Holy Spirit,” 125).

68 Rodney A. Whitacre, John, IVPNTCS (Downers Grove: InterVarsity, 1999), 357, 359.

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por meio de profetas e do próprio Filho (8:18, 26, 28, 38; cf. Hb 1:1-2); assim também, impossibilitado

de falar por Si mesmo no contexto de uma missão mundial (17:18-21; 20:21-23), o Filho o faz por meio

do Paracleto (16:14-15).69

No Evangelho de João, portanto, pneumatologia está atrelada a cristologia e é profundamente

influenciada por ela. É exatamente porque o Logos entrou na história como carne (1:14) que o Paracleto

pode vir como Espírito (14:26).70 Entre um e outro está a morte e a ressurreição de Jesus, assegurando o

sucesso de Sua missão e o direito do Espírito de vir e completar a obra (12:31-33; 17:4-5; cf. 7:39), que

não é nem de um, nem de outro, nem mesmo do Pai apenas, mas dos três, visto que os três trabalham

em conjunto para a salvação da humanidade (5:17, 19-21; 16:8-11). Daí que rejeitar o Espírito como

apresentado por João é rejeitar a Cristo que O prometeu, comissionou e garantiu Sua vinda. Por outro

lado, como já dito anteriormente, a cristologia do Quarto Evangelho também está atrelada a

pneumatologia e é profundamente influenciada por ela. É exatamente porque o Paracleto veio como

Espírito que Aquele que entrou na história como carne pode ser conhecido como realmente é, ou seja

como Deus (1:1; 20:28). Em João, não há dúvida de que é o Espírito, e não o próprio evangelista, que é o

responsável último pela elevada cristologia ali encontrada. É somente pelo Espírito que o sentido pleno

do ensino de Jesus acerca de Si mesmo pode ser apreendido (14:26; 15:26; 16:13), e é por isso que João

escreve da perspectiva pós-ressurreição e pós-Pentecoste. Sem isso, suas reinvindicações cristológicas

fariam pouco ou nenhum sentido (2:22; 7:39). O Espírito é o guia, o instrutor e a testemunha por detrás

de sua cristologia. Daí que não se pode rejeitar o Cristo que é Deus (1:1), igual a Deus (5:18) e um com

Deus (10:30) sem se rejeitar o testemunho do Espírito (15:26) e, em última análise, do próprio Deus

(3:31-34; 5:36-38; 8:16-18; cf. 1 Jo 5:6-10), que enviou a ambos (Jo 14:26; 17:8; cf. 6:29).

69 Veja John Ashton, Understanding the Fourth Gospel (Oxford: Clarendon, 1991), 423.

70 Stephen S. Smalley, “‘The Paraclete’: Pneumatology in the Johannine Gospel and Apocalypse,” em

Exploring the Gospel of John: In Honor of D. Moody Smith, ed. R. Alan Culpepper e C. Clifton Black (Louisville: WJK, 1996), 292.

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Por outro lado, visto que a missão pedagógica do Espírito está centralizada em Cristo, e não nEle

mesmo, talvez tenhamos que nos contentar com uma pneumatologia não tão bem definida ou

desenvolvida como a cristologia. Afinal, foi o Logos, e não o Paracleto, que Se tornou carne, e o

conhecimento cristológico que temos, conquanto operado pelo Espírito (14:26), baseia-se sobretudo

nas revelações trazidas pelo próprio Logos encarnado (20:30-31; I Jo 1:1-4), ao passo que nosso

conhecimento sobre a natureza do Espírito depende em boa medida de ilações e inferências

interpretativas. Numa citação que parece que nem sempre é levada suficientemente a sério, Ellen G.

White declara: “Não é essencial que sejamos capazes de definir exatamente o que seja o Espírito Santo.

... A natureza do Espírito Santo é um mistério. Os homens não a podem explicar porque o Senhor não

lho revelou. ... Com relação a tais mistérios – demasiadamente profundos para o entendimento humano

– o silêncio é ouro.”71 O Evangelho de João certamente ajuda, e muito, talvez mais que qualquer outro

livro na Bíblia, mas todo cuidado é pouco para que não se faça uma leitura dogmática do texto,

forçando-o a dizer aquilo que ele não diz mas que seria conveniente para uma formulação teológica. Os

supostos pronomes pessoais, a leitura ontológica de allos e a interpretação duvidosa de certas

expressões bíblicas são suficientes para exemplificar o ponto.72 A evidência cumulativa das Escrituras,

71 Ellen G. White, Atos dos Apóstolos (Tatuí: CPB, 1999), 51-52.

72 Mesmo as lições da Escola Sabatina têm contribuído para popularizar a ideia de que allos paraklētos em

Jo 14:16 aponta para a divindade do Espírito e que os pronomes masculinos nos Discursos de Despedida evidenciam Sua personalidade (veja The Holy Spirit, Lições da Escola Sabatina de Abril-Junho de 2006, Edição do Professor, 10, 14). Interessantemente, ao comentar Jo 14:26, o tradicional SDA Bible Commentary declara o seguinte: “O antecedente é ‘Consolador,’ que em grego é masculino e, portanto, pede o pronome pessoal ‘ele’” (5:1039). O comentário de Rm 8:16 é ainda mais enfático: “Quando o Espírito Santo é referido pelo substantivo masculino paraklētos, ... o pronome masculino é usado (veja Jo 15:26; 16:7, 13). É óbvio que a personalidade do Espírito Santo não pode ser defendida por meio do gênero dos pronomes empregados” (6:568). Exemplo de uma interpretação duvidosa é encontrado em Canale, que declara o seguinte acerca da chamada fórmula trinitariana de Mt 28:19: “A referência direta ao Pai, Filho e Espírito Santo mostra claramente a tríplice pluralidade das pessoas divinas, ao passo que as designações dos três como o ‘nome’ de Deus (no singular) mostra claramente a unidade do Ser divino” (138). É fato que Canale não é o único a extrair essa conclusão do texto, mas especificamente com relação ao segundo ponto, “a linguagem de Mateus,” destaca John Nolland, apenas “significa ‘no nome do Pai, no nome do Filho, e no nome do Espírito Santo’” (The Gospel of Matthew, NIGTC [Grand Rapids: Eerdmans, 2005], 1269). Em outras palavras, é pouco provável que o uso de “nome” no singular seguido de Pai, Filho e Espírito Santo deva ser interpretado ontologicamente, como se os três compartilhassem o único nome divino.

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em particular das passagens referentes ao Paracleto, aponta com clareza suficiente para o fato de que o

Espírito é uma pessoa. A ênfase de João, porém, não é na pessoa, mas na obra do Espírito, e é ali que

nós também devemos colocar a ênfase, até porque aprouve a Deus tornar-nos participantes dessa obra

(20:21-23). Na verdade, ao contrário do Logos encarnado, a consecução histórica da obra do Espírito

depende inteiramente de nós. Ou seja, não é senão por nosso intermédio que o Espírito manifesta Sua

presença no mundo. Em Sua promessa do Paracleto, Jesus Se referiu a Ele como “o Espírito da Verdade,

que o mundo não pode receber, porque não O vê, nem o conhece.” Então acrescentou: “Vocês O

conhecem, porque Ele permanece com vocês e estará em vocês” (14:17).73 Mais que um privilégio, esta

é uma santa vocação, o fato de sermos os instrumentos por meio dos quais o Espírito realiza Sua obra na

terra (cf. 15:26-27).

73 Para discussão do problema textual dessa passagem, veja Keener, The Gospel of John, 2:972-973.