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“O ESPÍRITO DA EDUCAÇÃO PETISTA”: USOS E DESUSOS DA TRADIÇÃO E FIGURA DE PAULO FREIRE NO DISCURSO DO MOVIMENTO ESCOLA SEM PARTIDO Elvis Patrik Katz 1 Mestrando em Educação/FURG [email protected] Andresa Silva da Costa Mutz 2 Doutora em Educação/FURG [email protected] Considerações iniciais O Escola Sem Partido, apesar da fama recente, já se apresenta como movimento atuante desde o ano de 2004. Desde então é possível demarcar três momentos bem distinguíveis na sua história: a) uma fase reprodutivista na qual os textos do seu website são copiados de outras fontes e a identidade do movimento ainda está em construção; b) um segundo momento em que o Escola Sem Partido começa a tornar-se notícia e a repercutir negativamente por alguns blogs ou sites sindicais, especialmente pelos imbróglios judiciais no qual a sua principal liderança, Miguel Nagib, acaba envolvida devido sua atuação através do escolasempartido.org; c) o terceiro e atual período iniciado em 2014 quando, a partir da primeira tentativa de propor a lei que modifica a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), o Escola Sem Partido fica bem mais conhecido e atuante, e quando o próprio Nagib passa a conceder diversas entrevistas em emissoras de televisão e rádio, além das conteúdos destinadas à divulgação pela web (KATZ; MUTZ, 2016). Nesse sentido, há toda uma série de mudanças ao longo dos últimos quase 12 anos em que o movimento se fortaleceu estabelecendo críticas muito duras à categoria docente e aos governos de esquerda, em especial aos mandatos dos presidentes Lula e Dilma, do Partido dos Trabalhadores (PT). O que parece, portanto, é que o Escola Sem Partido foi precedido por toda uma tradição intelectual liberal e conservadora que já fazia a crítica aos modos de ensinar dos professores antes mesmo da virada do século. Alguns desses personagens, inclusive, afirmavam que a prática de “doutrinação 1 Licenciado em História - FURG. Membro do Grupo de Estudos em Educação, Cultura, Ambiente e Filosofia - GEECAF/FURG. 2 Licenciada em História, mestre e doutora em Educação. Membro do Núcleo de Estudos sobre Currículo, Cultura e Sociedade (NECCSO - UFRGS) e do Grupo de Estudos Educação, Cultura, Ambiente e Filosofia (GEECAF - FURG). Professora Adjunta do Instituto de Educação na Universidade Federal do Rio Grande.

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“O ESPÍRITO DA EDUCAÇÃO PETISTA”: USOS E DESUSOS DA TRADIÇÃO

E FIGURA DE PAULO FREIRE NO DISCURSO DO MOVIMENTO ESCOLA

SEM PARTIDO Elvis Patrik Katz1

Mestrando em Educação/FURG [email protected]

Andresa Silva da Costa Mutz2 Doutora em Educação/FURG

[email protected]

Considerações iniciais

O Escola Sem Partido, apesar da fama recente, já se apresenta como movimento

atuante desde o ano de 2004. Desde então é possível demarcar três momentos bem

distinguíveis na sua história: a) uma fase reprodutivista na qual os textos do seu website

são copiados de outras fontes e a identidade do movimento ainda está em construção; b)

um segundo momento em que o Escola Sem Partido começa a tornar-se notícia e a

repercutir negativamente por alguns blogs ou sites sindicais, especialmente pelos

imbróglios judiciais no qual a sua principal liderança, Miguel Nagib, acaba envolvida

devido sua atuação através do escolasempartido.org; c) o terceiro e atual período

iniciado em 2014 quando, a partir da primeira tentativa de propor a lei que modifica a

Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), o Escola Sem Partido fica bem

mais conhecido e atuante, e quando o próprio Nagib passa a conceder diversas

entrevistas em emissoras de televisão e rádio, além das conteúdos destinadas à

divulgação pela web (KATZ; MUTZ, 2016).

Nesse sentido, há toda uma série de mudanças ao longo dos últimos quase 12

anos em que o movimento se fortaleceu estabelecendo críticas muito duras à categoria

docente e aos governos de esquerda, em especial aos mandatos dos presidentes Lula e

Dilma, do Partido dos Trabalhadores (PT). O que parece, portanto, é que o Escola Sem

Partido foi precedido por toda uma tradição intelectual liberal e conservadora que já

fazia a crítica aos modos de ensinar dos professores antes mesmo da virada do século.

Alguns desses personagens, inclusive, afirmavam que a prática de “doutrinação

1Licenciado em História - FURG. Membro do Grupo de Estudos em Educação, Cultura, Ambiente e

Filosofia - GEECAF/FURG. 2Licenciada em História, mestre e doutora em Educação. Membro do Núcleo de Estudos sobre Currículo,

Cultura e Sociedade (NECCSO - UFRGS) e do Grupo de Estudos Educação, Cultura, Ambiente e

Filosofia (GEECAF - FURG). Professora Adjunta do Instituto de Educação na Universidade Federal do

Rio Grande.

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ideológica” ocorria mesmo nos tempos de Ditadura Militar; os militares teriam se

preocupado em censurar jornais, mas não as salas de aula (ESP, SILVA, 2005). Eu

poderia tentar explicar a emergência do movimento apenas a partir do desenvolvimento

desses saberes, mas seria insuficiente. Um aspecto fundamental para o surgimento do

Escola Sem Partido foi a chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) ao Governo

Federal; e não afirmo isso para comprovar as teses do próprio ESP3, na qual o Estado

teria passado a instituir uma prática de doutrinação, senão para perceber que a existência

de um inimigo institucional e de esquerda acabou sendo uma condição de possibilidade

para que Nagib e seus apoiadores fundassem o movimento. Além disso, o próprio

crescimento das ações do Escola Sem Partido dependeu dessa situação, afinal de contas,

a crítica sempre foi direcionada a doutrinação de esquerda, marxista, freireana.

É pensando nesse foco dado a doutrinação de esquerda, marxista, freireana,

comunista, socialista, etc, que buscarei analisar nesse artigo as formas pelas quais o

Escola Sem Partido fabricou uma imagem de Paulo Freire que correspondesse aos seus

objetivos de poder. Para situar o leitor, explico que este foi um trabalho paralelo ao da

minha Dissertação, na qual venho estudando as investidas de poder do mesmo

movimento sobre as identidades docentes. Ao longo desse trabalho, fui percebendo a

importância dada pelo ESP a Paulo Freire e como há, dentro do movimento, a

necessidade de combatê-lo a todo instante. Com isso em mente, e levando em

consideração a forte penetração desse autor nos círculos intelectuais ligados a educação

em todo Brasil, considerei importante tentar mostrar como a figura e a tradição freireana

foram incorporadas ao discurso do Escola Sem Partido e, nessa mesma linha, pensar os

objetivos ou as necessidades dessa ação para a composição e ampliação das táticas de

poder do movimento. Quer dizer, qual papel desempenha Paulo Freire dentro do

discurso do ESP? Porque vale a pena combatê-lo e qual a necessidade de (re) fabricá-lo

incessantemente? Essas foram algumas questões que motivaram a análise que se inicia.

Para melhor distribuir as discussões do artigo, considerei importante fazer uma

primeira descrição de como a figura de Paulo Freire vem se apresentando na história

recente da educação brasileira. Ou seja, procuro mostrar como o pensamento do autor

parece ter obtido grande sucesso ao longo dos anos 80 e 90 e, nesse sentido, começar a

3 Utiliza-se a sigla “ESP” no intuito de substituir “Escola Sem Partido” e, dessa forma, tornar o texto mais

fluente e menos repetitivo.

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entender os motivos do ataque do ESP. Em segundo lugar, descrevi as formas pelas

quais Paulo Freire está presente nos ditos do movimento, tentado especificar ao máximo

as diferentes maneiras como o autor e sua tradição são tratadas no interior das

enunciações analisadas. O corpus para tal análise foi constituído de um conjunto de

aproximadamente dez textos publicados no website do Escola Sem Partido, dos quais os

mais relevantes e estão aqui citados.

Quem tem medo de Paulo Freire?

Na edição de número 43 da Pedagogia da autonomia, o texto da contracapa

anuncia o vulto que a obra de Paulo Freire tomou nas últimas décadas: o autor teria sido

“um dos maiores intelectuais do século XX”. Um artigo no site Wikipédia, atualmente

um recurso largamente usado para a obtenção de informações, vai ainda mais longe ao

dizer que Paulo Freire é “considerado um dos pensadores mais notáveis na história da

Pedagogia mundial”4. O que se percebe, seja pelas incontáveis republicações de suas

obras ou pelo que seu nome representa nos meios intelectuais, escolares e até populares,

é que o autor tornou-se uma referência tão importante no campo da educação que é

praticamente impossível travar qualquer debate, atualmente no Brasil, acerca do tema

sem que Paulo Freire seja, no mínimo, mencionado. Assim como Demerval Saviani,

talvez em medida ainda maior, Freire pode ser considerado condição de possibilidade

para que a educação brasileira busque tanto, na nossa época, uma educação crítica,

cidadã e transformadora.

São autores e textos que possibilitaram e forneceram as regras de formação

de outros discursos e outros textos no campo da pedagogia brasileira,

tornando possível não só um certo número de analogias como também de

diferenças. Ao lado desses, trabalho com outros poucos autores e textos que

estão, ora mais, ora menos, ligados a essas pedagogias, e que repetem,

divulgam, e ao seu modo inovam, esses saberes pedagógicos, fornecendo

regras, conselhos, normas e exercícios de como as professoras, os professores

e outros guias pedagógicos devem ser e comportar-se. [...] Lido com textos

acadêmicos e didáticos, como livros e artigos, discursos que vêm circulando

nos meios educacionais brasileiros nas décadas de 80 e 90 do século XX,

fundamentando debates e reformas curriculares na formação docente e no

ensino fundamental e médio (GARCIA, 2001, p. 32).

4 https://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Freire. Acesso em 22.05.17 às 10h24min.

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De certa maneira, podemos afirmar que Paulo Freire é o autor mais importante

na educação contemporânea, sendo um dos maiores representantes, senão o maior, da

educação que se proclama como crítica e emancipatória. Segundo Garré:

[...] Paulo Freire é um autor muito potente no campo da educação, da

formação de professores e especialmente da Pedagogia. Vale ressaltar que em

pesquisa prévia, acerca das obras mais utilizadas em cursos que formam

professores, identificamos o autor Paulo Freire com grande força nos Planos

de Ensino analisados por diferentes instituições de Ensino Superior de nosso

País. Entre os cursos, como: Pedagogia, Ciências Biológicas, Química e

Matemática foram analisadas disciplinas referentes à formação de

professores. Esse estudo foi realizado, fazendo análise dos Planos de Ensino,

em diferentes Instituições de Ensino Superior no Brasil (GARRÉ, 2013, p.

277).

Ao menos quantitativamente, portanto, é perfeitamente demonstrável a

influência de Freire na educação brasileira. Mesmo assim ainda poderíamos nos

perguntar: em que medida esse dado quantitativo é representado de fato como a

apropriação da obra de Freire nos meios intelectuais e escolares do País? Ou seja, será

que a recorrência da menção a figura de Paulo Freire repercute na sua real utilização

enquanto fundante de pesquisas em educação e bases para projetos políticos

pedagógicos, por exemplo? Penso que essa seja uma pergunta interessante, mas é bom

lembrar que, sozinho, o dado quantitativo já nos diz muito. Quer dizer, mesmo que

fosse para ser criticado, é quase inevitável não falar de Paulo Freire. O exemplo do

Escola Sem Partido é quase perfeito: na impossibilidade de ignorá-lo, o movimento

precisou reconstruir sua imagem e legado, conforme veremos adiante. De qualquer

forma, não queremos tomar essas afirmações como definitivas, senão pensá-las como

possibilidades que explicam, ao menos em parte, tanto o ódio manifestado pelo Escola

Sem Partido a obra desse autor, como o sucesso que conquistou entre os educadores

brasileiros.

Fabricando o “espírito da educação petista”: saber e poder nos ditos do Escola

Sem Partido

Depois de mostrar sucintamente a extensão da obra de Paulo Freire no

pensamento educativo, temos agora que fazer uma breve descrição das ferramentas

teóricas e metodológicas que usamos nesse trabalho. Em primeiro lugar, portanto, é

necessário referenciar a importância dos estudos de Michel Foucault, especialmente no

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que concerne aos seus escritos a respeito da relação muito próxima entre o saber e o

poder. Sobre isso, inclusive, uma passagem presente em Vigiar e Punir é muito

elucidativa:

“Temos antes que admitir que o poder produz saber (e não simplesmente

favorecendo-o porque o serve ou aplicando-o porque é útil); que poder e

saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem

constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e

não constitua ao mesmo tempo relações de poder” (FOUCAULT, 2010, p.

30)

O que o autor está dizendo é que, em nossa sociedade, diferentemente do que a

tradição filosófica (e sobretudo científica) vem ensinando historicamente, a construção

de saberes (o conhecimento, no caso da ciência moderna) não pode se ver livre das

relações de poder que atravessam a sociedade. Nesse sentido, assume-se, e isso é de

grande valor para o presente artigo, que ao se falar em uma fabricação de saberes a

respeito de Paulo Freire há, muito provavelmente, que se articular tais questões com o

que Foucault chamou de analítica do poder. É a analítica do poder que permite a

pesquisa não apenas pensar os discursos como fechados em si mesmos, mas como

acontecimentos discursivos que apelam ou são resultados de acontecimentos não

discursivos, tais como os econômicos, sociais e ligados as relações de poder.

Contudo, é preciso pensar o que seria esse poder de que fala Foucault, se ele

obedeceria aos tradicionais ditos e teorias do poder ou se pode ser entendido de outra

forma. Segundo Foucault, portanto, o pode não pode confundir-se com algo digno de

posse, ele não é uma propriedade ou um bem, mas uma relação. No caso do Escola Sem

Partido, estabelecem-se certas relações de poder na medida em que o movimento visa

controlar as identidades docentes e suas práticas. Ele faz isso, e assim venho percebendo

em minha dissertação, através do que chamei de “investidas de poder”.

De fato, se aceitarmos que as relações de poder buscam se estabelecer na

sociedade, que são ações sobre ações teremos que o poder se exerce. Seguindo esse

raciocínio, seria incoerente pensar na existência de poderes totalizantes ou

hegemônicos, dado que sua existência está condicionada a liberdade e, portanto, a

possibilidade de resistência. Assim, faz muito mais sentido pensar o poder como

“relação que é, ao mesmo tempo, incitação recíproca e de luta; trata-se, portanto, menos

de uma oposição de termos que se bloqueiam mutuamente do que de uma provocação

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permanente (FOUCAULT, 2013, p. 290, grifo nosso)”. As investidas, assim entendidas,

interpelam os sujeitos, os grupos sociais e as instituições para lhes conduzir as condutas.

Como parte fundamental da prática de governo do ESP, são ações que visam ações

alheias. E como fazem isso? Ora, uma investida de poder é acompanhada de uma

produção de saberes que são, ao mesmo tempo, sustentação e resultado de suas

atuações. Logo, a hipótese básica que sustenta as perguntas da presente pesquisa é a de

que o interessa em falar de Paulo Freire, no caso do Escola Sem Partido, não pode ser

algo desinteressado ou puramente analítico, senão que tem objetivo bastante definidos

de atingir a figura e a tradição de um intelectual que, na visão do movimento, está na

base dos problemas educativos brasileiros.

Balizados alguns conceitos que usaremos no decorrer da análise, pode-se agora

descrever mais detalhadamente a presença de Paulo Freire no discurso do Escola Sem

Partido. Nesse sentido, começaremos por pensar a seguinte questão: como o movimento

apresenta a figura, o indivíduo, o personagem Paulo Freire? Quer dizer, em primeiro

lugar há que se abordar a forma pela qual o movimento fabrica o seu objeto de crítica.

Num segundo ponto, tentaremos vislumbrar como o ESP “descreve” a tradição de Paulo

Freire; ou seja, quando tenta-se demonstrar não apenas as ideias freireanas, mas seu

impacto no campo da educação.

Quem foi Paulo Freire, então? Segundo o Escola Sem Partido, Freire é, num

primeiro aspecto, uma espécie de farsante. Vejamos como isso se apresenta no texto

publicado pelo historiador David Gueiros Vieira no site do movimento:

“As cartilhas de Laubach foram copiadas pelos marxistas em Pernambuco,

dando ênfase à luta de classes. O autor dessas outras cartilhas era Paulo

Freire, que emprestou seu nome à "nova metodologia" como se a ela fosse de

sua autoria [...] “As novas cartilhas, utilizando idêntica metodologia, davam

ênfase à luta de classes, à propaganda da teoria marxista, ao ateísmo e a

conscientização das massas à sua ‘condição de oprimidas’ [...] A oposição ao

Método Laubach ocorreu desde a introdução do mesmo, em Pernambuco, no

final da década de 1950. Houve tremenda oposição da esquerda ao

mencionado programa da Cruzada ABC, em Pernambuco, especialmente

porque o mesmo não conduzia à luta de classes, como ocorria nas cartilhas

plagiadas do Sr. Paulo Freire. Os que assim procederam não apenas

mudaram o seu nome, mas também o desvirtuaram, modificando inclusive

sua orientação filosófica. Concluindo: o método de alfabetização de adultos,

criado por Frank Laubach, em 1915, passou a ser chamado de "Método Paulo

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Freire", em terras tupiniquins. De tal maneira foi bem-sucedido esse embuste,

que hoje será quase que impossível desfazê-lo” (ESP, VIEIRA, 2016).

Como se vê, a tese de Vieira é de que Paulo Freire teria copiado, sem dar

maiores créditos, o método de alfabetização de Laubach. Nesse sentido, Laucach não é

visto como uma influência de Freire, mas como vítima de sua ação usurpadora. De

qualquer forma, é necessário dizer que, ao contrário de primeiro, Freire não pretendia

apenas oferecer habilidades de aprimoramento da leitura e da alfabetização como um

todo. Ao contrário, “o objetivo era re-significar a alfabetização de jovens e adultos,

respeitando a sua cultura e história, trazendo para os ‘Círculos de Cultura’ todo o

universo social de ‘leitura de mundo’ desses educandos. Um método de alfabetização

sem leituras ‘infantilizadas’ e/ou alienadas, mas construído por experiências vividas”

(LIMA, 2014, p. 43). Em parte, o autor do artigo do ESP quer mostrar que, ao contrário

de ser uma influência no pensamento freireano, Laubach foi essencial para a existência

do Método Paulo Freire. Tudo isso, é claro, para provar que este último seria esse

farsante que promete o que não pode cumprir (o Método Paulo Freire é tomado como

um fracasso evidente), e porque copia teses que não são suas sem referenciá-las e sem o

menor pudor. Com isso, ele não seria criador de nada novo, na medida em que o seu

famoso Método Paulo Freire na verdade seria simples uma cópia do Método Laubach;

além disso, o fato dele ter “desvirtuado” as orientações filosóficas básicas do Método

Laubach não indica a originalidade ou a inovação de seu pensamento, mas uma espécie

de profanação do método original.

O ato de profanação desse método primeiro, no discurso do ESP, consistiu em

tornar “marxista” o Método Laubach. Agora, além de um farsante, Freire também seria

um militante. Olavo de Carvalho, em entrevista publicada no sítio do movimento,

exemplifica muitíssimo bem como Freire é encarado por afirmar-se politicamente:

“Paulo Freire é um sujeito oco, o tipo acabado do pseudo-intelectual

militante. Sua fama baseia-se inteiramente no lucro político que os

comunistas obtêm do seu método. Esse método, aliás, não passa de uma

coleção de truques para reduzir a educação à doutrinação sectária. Um dia

teremos vergonha de ter dado atenção a essa porcaria” (ESP, CARVALHO,

2016).

Em outro texto, ironicamente intitulado Viva Paulo Freire, Carvalho recorre a

outros autores para justificar seus argumentos. Dentre eles, um jornalista chamado John

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Egerton 5 , que numa obra de 1973 “Searching for Freire” teria dito que: “Não há

originalidade no que ele [Paulo Freire] diz, é a mesma conversa de sempre. Sua

alternativa à perspectiva global é retórica bolorenta. Ele é um teórico político e

ideológico, não um educador” (ESP, CARVALHO, 2016, grifo nosso). Luiz Lopes

Diniz Filho reforça tais asserções ao afirmar que Freire “não passava de um doutrinador

ideológico dogmático e autoritário (mas de fala mansa)” (ESP, FILHO, 2016).

Sintetizando, portanto, a forma pela qual a figura de Paulo Freire foi fabricada pelo

movimento Escola Sem Partido tem-se que o autor é, antes de tudo, um “falso profeta”,

plagiador de trabalhos que não são seus e um fazedor de promessas que não pode

cumprir. Somado a isso, o que é ainda pior, ele se configuraria como intelectual

militante, o que coloca em cheque todas as suas proposições na medida em que elas não

estariam interessadas na formação dos estudantes, mas apenas na cooptação para as

causas marxistas ou comunistas.

Outro elemento nomeado no discurso do Escola Sem Partido é a tradição

freireana no campo da educação. Nesse sentido, busca-se apresentar o legado de Paulo

Freire como um número de proposições simplistas e totalitárias ligadas do marxismo e

ao comunismo. Simplista, em primeiro lugar, pois vê “o trabalho de ensinar como uma

simples modalidade de proselitismo ideológico ao qual ele dá o nome de

‘conscientização’ dos alunos” (ESP, FAQ, 2016). Ao contrário do campo educativo

especializado, que enxerga no engajamento político uma fator agregado por Freire, os

partidários do movimento compreendem que politizar a educação é reduzir sua

importância. Daí, inclusive, poderia sair debate bastante longo, afinal de contas, o que é

mais “simplista”: tratar a educação apenas como transmissão do conhecimento ou

considerá-la uma forma de engajamento político e de posicionamento frente ao mundo?

Pergunta difícil de precisar, então partirei para o próximo tema. Num segundo

momento, a pedagogia freireana é considerada autoritária. E assim seria porque,

segundo o ESP, ela não objetiva aquilo que se supõem ser uma real autonomia do

educando, nem mesmo uma ação crítica do estudante, senão o convencimento deste por

seu professor. Seria autoritária, também, por cultuar líderes da esquerda que, na

concepção do movimento, foram responsáveis por totalitarismos diversos.

5 No texto de Olavo de Carvalho, a referência aparece da seguinte forma: “John Egerton, ‘Searching for

Freire’, Saturday Review of Education, Abril de 1973”.

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Por fim, vale lembrar de uma última caracterização presente do discurso do

Escola Sem Partido acerca da tradição de Paulo Freire: sua obra seria um “manual de

autoajuda marxista” (ESP, SILVA, 2016). Como um manual, ela teria espalhado entre

os professores e instituições da educação brasileira o marxismo com um sucesso

espetacular. No quadro geral de crítica feita pelo Escola Sem Partido teremos, portanto,

que sem Paulo Freire e suas ideias a doutrinação ideológica nas escolas não seria o que

é. Daí o fato de Freire ser narrado como o monstro fundador dos problemas

educacionais do movimento: observando a distância, vemos que a grande difusão de sua

obra foi condição de possibilidade para o próprio nascimento do Escola Sem Partido.

O ensino — também em boa parte das escolas privadas, note-se — está

corroído por uma doença ideológica. Boa parte dos “educadores” acredita

que sua função não é ensinar português, matemática e ciências, mas

princípios de cidadania, com o objetivo de formar “indivíduos conscientes”.

Alunos seriam pessoas “oprimidas”, que precisam passar por um processo de

“libertação”. O mal que a paulo-freirização fez à escola levará gerações para

ser superado (ESP, AZEVEDO, 2016).

Tal concepção, aliada a ideia de que Freire é um intelectual militante (e isso não

deve ser entendido como algo positivo, segundo o ESP) devem funcionar para

desqualificar as asserções freireanas. Assim apresentadas, elas não são métodos

possíveis, análises parciais ou, proposições discordantes. Quer dizer, muito mais do que

um simples adversário intelectual, Freire é atacado pessoalmente por fazer da educação

muito mais do que transmissão do conhecimento. Não apenas criticado, Paulo Freire é

parece ser odiado pelo Escola Sem Partido. Quando Olavo de Carvalho chama o autor

de “espírito da educação petista” (ESP, CARVALHO, 2016) ele não está apenas

tentando abalar a tradição freireana pela associação a um partido criticado por muitos,

mas fazendo o possível para esvaziar Paulo Freire de qualquer outra proposição além do

“proselitismo político” tão

Considerações finais

Esquematicamente, o que tentei mostrar com a descrição de algumas

enunciações do Escola Sem Partido é que, longe de fazer afirmações neutras ou análises

descompromissadas da educação, o movimento está muitíssimo preocupado não apenas

com a defesa de suas ideias, mas também com o combate a seus rivais. Esses

adversários, dentro os quais Paulo Freire ocupa uma posição central, são fabricados

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como indivíduos nocivos para a sociedade pelo discurso do ESP com o objetivo de

desqualificar seus ditos. Nesse sentido, o movimento analisado busca muito menos

criticar os textos de Paulo Freire, mas antes, sim, combater sua figura e sua história.

Com o legado de Freire o sistema é o mesmo: pouco se menciona as ideias de Freire e

seus problemas no que concerne a educação; pelo contrário, o foco é mostrar que tais

concepções são “ideológicas”, “autoritárias”, “simplistas”, etc, e por isso sem valor, já

que representam um projeto político e não uma teoria da educação preocupada com os

estudantes. Implicitamente, o que se sugere é que Paulo Freire é tão descartável que não

deve nem ser lido, sob pena de acabar convencendo o leitor de suas supostas

maluquices. Assim, na impossibilidade de ignorar Freire e seu legado na educação, o

Escola Sem Partido parece tentar apagar sua importância, mostrando seus sucesso

apenas sob o prisma da vitória da propaganda política.

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