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O ESSENCIAL SOBRE...Vendo, uma noite, uma montagem de acaso de vários filmes ou cenas deles, projetada numa pa-rede ao ar livre de uma feira, algures no fundo da Pérsia, André Malraux

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O E S S E N C I A L S O B R E

Charles Chaplin

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O E S S E N C I A L S O B R E

Charles ChaplinJosé-Augusto França

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Índice

9 Introdução

117 Vida de Charles Chaplin

225 71 Curtas-metragens

341 De Opinião Pública a Luzes da Cidade

457 Tempos Modernos

565 O Grande Ditador

673 Monsieur Verdoux

785 Luzes da Ribalta e Um Rei em Nova Iorque

8101 O último gag de Charles «Charlot» Chaplin

113 Filmografia de Charles Chaplin

115 Bibliografia selecionada (cronológica)

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À memória de Manoel de oliveira

Páscoa de 2015. J.-A. F.

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Introdução

Em 1914 nasceu Charlot, em imagens de umasétima arte que na América terminava uma pro-longadainfânciadevinteanosjá:umapersonagemque dela seria emblema e, na cultura ocidental,último mito. Na cultura—ou da cultura? Finjohesitar,porretórica,masédela,danossacultura,que temos que falar, por entendimento da Histó-ria,esacrifícionosso,nocoraçãodoséculoxxqueCharlesChaplinpreencheu—comPicasso,emaisninguém, em artes de criação. Assim se disse àsua morte, quatro anos depois da do Outro—quenão «faltava morrer mais ninguém, dos sagradosmonstros do nosso século».

Charlot ou Charles Chaplin, criatura e criadorconfundidos,queoMito,comofoiditotambém,asi próprio se fez, self­‑made, que foi explicado, nomomento exato da sua perfeição, ao encarnar-se,sacrificado, em Monsieur Verdoux. Também dito,por isso, «Santo Verdoux, Monsieur». Levado àguilhotina, já não à cruz do Salvador…

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Em 1914, na véspera da guerra por enquantosó europeia, e quando começava a ler-se, emFrança, o princípio de À la recherche du temps perdu, de Proust, alguém, em Paris também,batizou de Charlot a personagem que vinha deHollywood, em filmes de 600m de imediata egeral popularidade que os exibidores, de salasfixas e ambulantes, se disputavam, pela Europae suas colónias. E em Portugal também, desdelogo,adotando-lheonomefrancêsquetraduzirao«Charlie»americano—comoCarlitosnoBrasile na América Latina.

Em 1927, André Gide poderá felicitar-se, noseu Journal, de que Charlot fosse «caso únicoem que se pode aceitar a opinião pública», «semmal entendido», como numa «comunhão» com a«multidão»—e, já antes dele, Almada Negreiros,em 1921, se gabara de conhecer, «de princípio afim», a obra de «Charlot, o único símbolo vivo decada um de nós»—«de todas as nossas manias eatribulações, todasas nossas ambições edesespe-ros», que «todos os nossos instantes de humanossão assinados por Charlot»!

Em1927ainda,quandoumdivórcioacarretouaChaplinumacampanhadeimprensaanimadaporfuriosas ligas de moral, os surrealistas tomaram,em Paris, a sua defesa, em manifesto vingadorqueBretoneosseusamigosassinaram:Hands of­f­ Love, abaixo as patas daqueles que contestavama vontade amorosa do ator-realizador, em seucrédito poético. E já desde 1917 o poeta BlaiseCendrars ou o historiador Élie Faure, ou BernardShaw, ou o próprio Freud, se interessaram pelasua obra, para além do campo cinematográfico

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em que Louis Delluc não hesitou a compará-loa Shakespeare—de cujos Hamlet e Macbeth eleimprovisou cenas. Como também, e ainda em1947,pensouencarnarNapoleãovencido;ecomo,visitando Picasso em Paris, no seu próprio ateliercompôs uma cena delirante com os dois lavató-rios que lá descobriu… Para Élie Faure, Chaplin«é o único poeta do nosso tempo que contemplaa vida de um ângulo constantemente heróico», e«no juízo (que formula) explodem as relações donosso destino real com os acontecimentos e osobjectos».

Vendo,umanoite,umamontagemdeacasodevários filmes ou cenas deles, projetada numa pa-rede ao ar livre de uma feira, algures no fundo daPérsia,AndréMalrauxcompreenderaqueassim«omitoapareciaemestadopuro»,libertadodetodososlimitesnarrativosdaficçãoqueporventuracadaumdelescontasse.CharlotcomoesócomoChar-lot, enfim, dado a ver à inocência de uma plateiafascinada! Ele era então como o imaginamos namemóriaquenosrestadecadavez,emcadasítio,em cada tempo…

Último dos Clowns (ParkerTyler,1947),Rei da Tragédia(GerithvonUlm,1940),The Little Fellow(Peter Cotes, 1951), The Tramp assim intituladojá em 1915—The Kid, simplesmente, como lhechamouEisenstein.Comosedeumalonga,eternainfância,feitadeinocênciaecrueldade,parasem-pre viesse. Num certo dos seus filmes teríamos aprova, por transmissão, desse estar na vida e denela se defender—e atacar, no mundo traiçoeirodos adultos em sociedade injusta, de polícias eladrões,poderososquesejam,institucionalmente.

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Nesse esquema dramático, em torno do pobrediabo,tramp,vagabundoeclown,secristalizouumasériede«mitemas»relativamenteconstante,cominovações e redundâncias retóricas. Charlot é, oufoi sendo um herói absoluto, em função do qualtodos os argumentos eram compostos, para umacamera que se pautava pelos seus movimentos.Com a exceção tentada na Opinião Pública de1923, em início de longas-metragens, e como quenumintervalodesipróprio,comoveremos.Ounoúltimo filme que realizou, já em 1967,A Condessa de Hong Kong, em duvidosa convicção, mas comum adeus-rábula a Charlot.

Na história do cinema, em sua dramaturgia,Charles«Charlot»Chaplinassumiu,logoem1914,uma posição inédita—entre a linha realista e alinha fantástica desta nova arte que em Françanascera e se dividira, antes da grande industria-lização americana. Pathé, documentando o realquotidiano, e Méliès dele se evadindo até à Lua,inventaramosdoiscaminhos—masMélièsperdeuasuaapostapoéticaem1914,eofogoquedeitouaoseu estúdio terá sido o último ato de uma criaçãopoética,nasimpossibilidadesespetacularesdaarteque passou a outra observação do mundo! Mélièspôs fim à sua carreira exatamente no ano em queCharlot iniciava a sua—dando, por assim dizer, aLua à Terra…

Orealismominuciosodasaçõesdapersonagemque surgiu no firmamento do cinema popularabriu-se a uma lógica tão fatal quanto irreal, deconsequências, e nisso ultrapassou ela a fantasiaformal de obra de Méliès, por dela afinal nãonecessitar. Com ele, as coisas não se passavam

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como com qualquer outra pessoa da vida corren-te, mas também não precisavam de se fantasiarem outros mundos. Ao mundo do real, Charlottrouxe as forças poéticas do irreal que mais realassim se tornava. Essa a originalidade de Charles«Charlot» Chaplin, que durante duas gerações deespectadores se modulou, mais que resistindo anovas temáticas, impondo a elas o sentido da suaprópriacriação,atravésdeduasguerrasedoispós--guerras,noentendimentomaiordoqueaHistóriaacarretava. E acarretaria!

Entre a «Cidade» e a «Ribalta» das «Luzes»que lhes deu ou sofreu, nos seus filmes de 1931 ede 1953, em vinte anos de um mundo em trans-formação histórica, Chaplin-«Charlot», conduzuma meditação epistemológica sem comparaçãopossívelnomundocinematográfico,paraalémdeMax Linder que lhe deu referências, ou com Tatie Étaix que a ele se referiram. Ator, encenador ecompositor da música dos seus filmes, Chaplin,seu próprio produtor, cedo pode assegurar-seuma independência que, no quadro da economiadaindústriacinematográfica, lhefoiessencial—eúnicadasuaespécie.Todaaconcorrênciaempre-sarial teve dependências comerciais que Chaplinnão conheceu—ou não quis (e pode não querer)conhecer, certo da confiança popular que rapida-mente alcançou e na consciência dos valores quelhe mostrava, em reconhecimento mútuo.

A observação de Gide, do acordo (único tam-bém, muito graças a peculiaridade do mediumemquestão)estabelecidoentreopopulareaeliteintelectualeuropeia(aamericanaacompanhá-la-ia,com o seu próprio calendário cultural marcado

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pelalost generationdeHemingway)manteve-seaolongo dos anos, numa fidelidade que teve neces-sáriareferênciaideológicanummundoque,entreas duas guerras, sofreu uma permanente ameaçaantidemocrática,institucionalizadaoufazendoporisso.EnaAméricatambém,apartirde1945,numamúltipla histeria anticomunista. Dela foi CharlesChaplin a sua mais ilustre vítima. E Charlot tam-bém, com ele.

Foi esta identificação que deu renovada forçahistóricaàobradorealizadorquenaAméricade-finira a sua arte e que, para a poder continuar, sevia obrigado a abandonar a América. Continuá-laemespírito—eemMito.Epôr-lhefisicamentefim.

Já veremos os pormenores da saga de Charles«Charlot» Chaplin em sua vida de jovem inglês,emigrado e retornado ao continente para morrerempaz,quasenonagenário(ounãomorrer,comoveremostambém);enosmomentossucessivosdasua obra de oitenta títulos, destacando aquelesque lhe deram o sentido maior e por isso maisperigoso. Para ele, seu criador, e para nós, seusdestinatáriosecúmplicesnecessáriosmassempreinsuficientes, nas voltas da nossa História. UmaHistóriaquecomeçanavésperadaGrandeGuerra(não o esqueçamos) e que termina sem terminar,no fim de outra e no terror de outras ainda quepudessem (e poderão) vir.

… Charlot como? Um chapéu de coco, umabadine, duas botas cambadas—e foi autógrafo dopróprio Charles Chaplin. São esses os elementosda indumentária inventada e aperfeiçoada desdeosprimeirosfilmes,nãoexatamenteosprimeirosem que um gentleman de sobrecasaca cinzenta

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se mostrava, fazendo pela vida de vigarista ouimpedindo uma corrida de automóveis em Vene-za, por se passear na pista diante da camera queprocura afastá-lo, ou cortejando Mabel—mas embreve, na degradação composta do trajo, até ser odotramp,vagabundocomosetraduz,masmelhorseriaentendê-locomquem,pelasestradas,procuratrabalhodeacaso.Alémdococodemelhoresdias,há um fraque descolorido, umas calças grandes elargasdemais,acamisarotamasdegravataexibi-da,rotatambém—e,nafacelunardealvaiadedosclowns, os olhos marcados a bistre, e um bigodetalhadoemquadrado—queseriaimitadoporquemse sabe, e ele soube-o, em charge incontornável,desde que Hitler apareceu no mundo político.

AssimseapresentaCharlot,paratodasasimita-çõescénicasdemilhentosamadores,paramáscarasde carnaval, desenhos e bonecos animados, paramarcas de indústria e comércio—para referênciaquotidiana, em substantivo comum que adjetivacomportamentos, sempre em simpatia e ternurasemescárnio,pelomundofora.Masnoatorotrajomotivaemodulaosmovimentos,osgestos,aação.O andamento que as botifarras tornam arrastado,este prodigioso passo de lado que trava e reparteoandar,oencolherdosombros…Asmímicasmaisvariadamente expressivas, de olhar, de nariz, deboca—ohmuda,numaarteemqueCharlotnasceueviveuquandoeraaindasilenciosa!Emuitoassimpara ele ficou, já em filmes que sujeitou à técnicadosonoro,equelhedeuprimeirapropositadavozparaummagnodiscursodepazearrependimento,nacenafinaldeO Grande Ditador—queacensuraportuguesa da altura naturalmente proibiu.

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Charlot pobre diabo, mas Diabo também, nasrazõesdaHistóriadonossomundo—vítimadele,queparasempredenunciará,enquantootivermose fizermos assim.

… Não se classificou Charles Chaplin, cercade 1950, «social-anarquista», é claro que no bomsentido das palavras?…

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1Vida de Charles Chaplin

Charles Spencer Chaplin nasceu em 16 deabrilde1889noEastEndpobredeLondres,filho,comoseuirmãomaisvelhoSidney,deumcasaldeartistasdemusic hall,espéciedeespetáculoentãode grande popularidade em Inglaterra mas comaltos e baixos de contratos, em cenas de teatrosde bairro ou em digressão pelo país, com acolhi-mentos aleatórios de caprichos ou acasos piores.Os cantores que seus pais eram nem sempre en-contravam emprego, e às vezes, muitas até, o pãofaltava, e o teto que abrigasse a família de poucomais que saltimbancos—que Sydney e Charleseram também, em números de dança, em que,desde os 10 ou 6 anos de idade, se apresentavam,tradição e obrigação de ganhar o pão quotidiano,que a morte do pai, tinha Charles 5 anos, tornavafatal. Do pai a que o álcool abreviara o tempo devida,e,depois,damãeHannah,deorigemjudaica,que a miséria levou à loucura e ao internamentoem hospício. Para os dois irmãos foi então outrointernamento, de orfanato, donde procuravam

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escapar—comonumromancedeDickens,emseusambientesehistóriasdemiséria.Relaçõeshavidaslevaramambosaumatrupeteatraldepeçaspopu-lares onde Charles teve o seu primeiro papel, degroomdeSherlockHolmes,ofamosíssimodetetivelondrino. Depois, aos 18 anos incompletos, com oirmão,teveentradanumacompanhiadepantomi-nacelebradaporseusucesso,deFredKarno,ecomelafoiemtournéeaosEstadosUnidos,empráticacorrente do ofício. Foi em 1910, e voltou a ir em1913;nesseanofoiconvidadoporumaempresajádecinema,aKeystone,dirigidaporMackSennett,emgrandeêxitodepequenosfilmesdefarsa,ondeFatty era a vedeta famosa, com responsabilidadede realização. Neles o jovem Charles teve acolhi-mento e concorrência de papéis (e até amores deficção), ao mesmo tempo aprendendo o ofício dedireção de cena, que logo dominou, inventando asua personagem, e desfazendo-se, pouco a pouco,como veremos, da sintaxe narrativa que Sennettimpusera, em corridas, perseguições e tartes decreme atiradas à cara do parceiro, como sinaisinfantilizados do gáudio popular.

Foram 35 filmes em contrato com a Keystonedurante o ano de 1914, mas, no ano seguinte,novocontratoo ligouaoutraempresaprodutora,a Essanay, para a qual realizou mais doze curtas--metragens, e ainda, no ano seguinte e dois anosdepois, quando já estava contratado por duasoutras companhias, mais três filmes, o primeirodos quais foi Carmen, paródia à ópera de Bizet,com maior ambição de produção, que o produtorporém reduziu. Entretanto, em 1916, Chaplinassinou outro contrato com a empresa Mutual,

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para 12filmes que lhe foram pagos por 670 mildólares,importânciaexcecionalquebemmostravaoêxitopopulardasuaobra;emaisaindaomilhãoque lhe valeu um contrato seguinte de dezoitomeses, com a empresa First National, para a qualrealizara,comgrandeatraso,até1923,novefilmes.Foram curtas-metragens para a Mutual e aindapara a First National, mas para esta já, ou outravez,duastentativasmaiores,4partesnoPeregrino,o último produzido, mas, em 1921, 6 partes emO Garoto de Charlot, o famoso The Kid, do títulooriginal. Entretanto, Chaplin, em 1919, já se asso-ciaraàsduasmaioresvedetasamericanasdaépoca:MaryPickfordeDouglasFairbanks,eaindaogran-de realizador D. W. Griffith, para fundar a UnitedArtists Corporation, que seria a produtora dassuas longas-metragens, desde Opinião Pública de1923.Edesde1918quesederaumestúdiopróprio,construído conforme suas ideias e práticas.

Chaplin-«Charlot»confirmava-senaaceitaçãodopúblicodedoiscontinentesjá,easrealizaçõesespacejavam-se também, sinal de maior atençãodada à própria obra—e de maior ambição dorealizador, na mensagem que entendia enviar aomundo inteiro. Que o admirava como nenhumaoutra vedeta do firmamento do espetáculo a quea projeção do cinematógrafo assegurava um vas-tíssimo espaço social!

Entretanto, mulheres passaram na vida deCharles Chaplin, integradas nos elencos dos seusfilmes,desdeaMabelNormanddaKeystone,parti-lhadacomFatty,aEdnaPurviance,numaconstân-ciadefidelidadequefoide1915atéaofimdasérieda First National, e para além dela, no filme que

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marcaráaindependênciadramáticadeChaplin,aOpinião Pública de 1923, como veremos.

Parceirade33filmes,abela«jovemlouraetími-daqueelesocorre,ajovemcorajosaquelheincuteesperança, nos azares do seu destino», colombinaque subitamente abandonou a uma sorte ingrata,Edna Purviance cedeu lugar na vida de Chaplin aoutrajovem,numcasamentoquedurouumanooudois,desfeitoemacusaçãode«crueldademental»da sua parte, sem papel cinematográfico, comotambémnãooutrocasamento,porobrigaçãolegal,em 1924, desfeito três anos depois, com grandeescândalo de indemnização e odienta exploraçãopública—que provocou a defesa dos surrealistasparisienses, em defesa do amor soberano contraas críticas moralistas da América!

Em 1923, Chaplin fizera vir para junto de si,em Hollywood, a mãe que deixara, de razão per-dida, em Londres. A ligação emotiva de Charlesà mãe é constatação dos seus biógrafos, e umaobservação psicanalítica foi ajustada pelo próprioFreud,notandotraumatismosdainfânciasofrida;e reparou-se também que a chegada da mãe cor-respondeu à partida de Edna Purviance da vidado filho, protetora que lhe fora, simbolicamentee mesmo mais, nos problemas da sua vida e pro-fissão.Jáumaeduasesposasdebrevíssimauniãotinham passado, à realização de Luzes da Cidade,quando, em 1929, a mãe Hannah morreu. Umanova companheira, esposada em 1933, vinda dasrevistasdeZiegfieldcomasuaapimentadabeleza,foi escolhida para o elenco de Tempos Modernos,terminado em 1936, a cinco anos de intervalodo filme anterior. Chamava-se Paulette Goddard

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evoltariaàcenacomChaplin,n’O GrandeDitador,em1940,edivórcionoanoseguinte.Nofilme,elateriaonome(queimerecidoseriamiticamente)deHannah, a mãe de Charles e do Charlot mudadono Hynkel-Hitler burlesco e trágico. Havemos devoltar à analogia significativa.

Os dois filmes tiveram mau acolhimento, porrecuo político, na América, e entusiástico na Eu-ropa, o primeiro, condicionado o segundo pelasocupaçõesnazis(deHynkel-Hitler…),ouporrepú-dio ideológico, até à vitória dos Aliados, e mesmodepois, à cautela, como em Portugal.

CharlesChaplinvoltara,entretanto,duasvezesàEuropaqueagoratantooadmirava,emduasvia-gensdeprazer,curiosidadeenegócio.Daprimeira,motivada também por perseguições políticas doFBI, em 1921, ele tirou um livro, My Trip Abroad (foitraduzidoemportuguês:A Minha Viagem pela Europa, s. d., c. 1930) de impressões e encontroscom gente famosa, e muita satisfação pelas rece-çõesdequefoialvo,entusiasticamente.Umapeloàpazuniversalterminaaspáginasdolivro—eesseapeloveremosrepeti-lo,em1940,noseuO GrandeDitador.Em1921,tratava-setambémdeapresentaro seu último filme, O Garoto de Charlot, The Kid, a média-metragem em que considerava ter dadomaiorexpressãoaosseussentimentosdeternuraeesperançanoHomem,queemcriançanascia—co-mo a si mesmo podia lembrar, Kid de si próprio…Chaplinvoltariaaviajarem1931,escrevendoentãopara o magazine The Woman’s Home Companionumasériedeartigos,comnovasimpressõesquesóseria publicada em volume, em 2014, em França,sob o título Mon tour du monde.

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Mas a razão principal da viagem de 1931, foimostrar na Europa Luzes da Cidade, em plenolançamento e vitória certa, por força industrial,do cinema sonoro, a que Chaplin resistia esteti-camente,assumindo,comosempre,acomposiçãomusicalqueacompanhaaobra—massemdiálogode«cinemafalado»,emqueonovosonoroprocu-ravacaminhos.Insistindonastabelasintercalares,comaspalavraspronunciadas,Chaplinsituava-sena arte que criara individualmente, no meio dapolémica ambiente que o respeitava.

Elefezentãouma«voltaaomundo»comPau-letteGoddard—edassuasobservaçõesnasceriaopróximofilme:Tempos Modernos,em1936,emquese reflete a grande crise financeira e económicado decénio, hesitando Chaplin (como veremos)na conclusão a dar à obra. Mas ela foi, então, eainda,otimista,apoiadanacompanhiamatrimonialque havia de lhe assistir só até ao filme seguinte,O Grande Ditador.

Divorciado de novo dois anos depois destefilme, Chaplin, aos 54 anos, em 1943, casou comuma jovem da caf­é society de Hollywood, OonaO’Neill, filha do célebre dramaturgo, prémio No-bel, Eugene O’Neill, e contra vontade dele. Mas,primeiro amor que fora de J. D. Salinger, o futurodiscutido romancista da nova geração americana,ela daria um quarto casamento feliz a Chaplin,commaisoitodescendentes:Geraldineseriaatrizfamosae,juntamentecomairmãJosephineetam-bémoseumeio-irmãoSydney(quelevoumedíocrecarreira,comojáotiohomónimo),participariam,meninos, no último filme americano de Chaplin,Um Rei em Nova Iorque, em 1952.

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Porque,nestemesmoano,comanovafamília,Charles Chaplin, de novo imigrante, veio fixar-sena Suíça—dando-se conta, por telegrama recebi-do a bordo do paquete, de que ficava interdito deregressar aos Estados Unidos….

Em 1942, ele participara na campanha para aintervenção do país que adotara na guerra euro-peia.Masagora,edesde1949,alisedesencadearacontra ele uma violenta perseguição nas páginasdoinfluentemagazineLif­e—pondo-o,aliás,aparde grandes refugiados da Alemanha nazi, comoEinsteinouThomasMannque,aomesmotempo,partiutambémparaestabelecer-senaSuíça.Numestado paranoico de «guerra fria» que tomavaconta da América, e muito do microcosmo deHollywood,fazendotantasvítimasdesignificativovalor,Chaplinvia-sesuspeitadodecomunistapelafamigerada Comissão de Atividades Antiamerica-nas,àqual,semserpessoalmenteconvocadoparaseexplicar(queatalnãoousouaindaentãooFBIde Edgar Hoover), ele dirigiu um telegrama, em1949, a declarar: «Não sou comunista, sou apenasumfautordepaz.»AoPrémioNobeldaPaztinhasido proposto no ano anterior, por iniciativa daAssociation Française de la Critique de Cinéma.Masaaçãoviolentado«maccarthysmo»aceleradaapartirdefevereirode1950,levoufinalmenteCha-plinapreferiroexílioe,em1952,desembarcandona Europa, declarou à imprensa ser «acima detudoumindividualista»,acrescentando:«CreionaLiberdade,eestaétodaaminhapolítica.»Nasuaobrabempatenteelaestavaejálhevaleracríticaspartidárias. Porque, na União Soviética (declarouele também), já teria ido parar à Sibéria…

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Instalado em 1953, em Vevey, à beira do lagoLéman,numavastapropriedade,CharlesChaplinpreparoulentamenteUm Rei em Nova Iorque,quefoiapresentadoem1957,e,dezanosdepois,asuaúltimaobra,A Condessa de Hong Kong.Entretan-to, foi escrevendo um volume de memórias, My Autobiography, editado em 1964.

Doctor Honoris CausaeleitopelaUniversidadedeOxford,doisanosantes,foitambémcondecora-do em França com a Légion d’Honneur. Em 1972,Hollywood,libertadadosseuscomplexospolíticos,conferiu-lheumOscarpeloconjuntodasuaobra,que,apóshesitação,foireceber—sobumaovaçãode doze minutos, «a maior jamais registada»…E, tendo conservado sempre a nacionalidade bri-tânica,foinobilitado,pelaCoroa,em1975—honraque estivera para lhe ser concedida já em 1956,masoGovernoinglêsreceouentãoumamáreaçãodiplomática dos Estados Unidos…

Doisanosdepois,SirCharlesSpencerChaplinfaleceu,nanoitedeNatalde1977.Como,dir-se-ia,lhe era devido!

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271 Curtas-metragens

Em 2 de fevereiro de 1914 foi apresentado emHollywood o primeiro filme, curta-metragem detwo realsou600metros,interpretadoporCharlesChaplin para a empresa Keystone, numa série de35obras nesse ano produzidas: Making a Living,queemFrançarecebeuotítulodeCharlot travaille, certamente posterior porque a personagem deCharlotnãosedefiniaaindanele,talcomoavería-mos pela primeira vez (?) onze filmes depois, emCaught in a Cabaret que em Portugal se intitulouCharlot Criado de Caf­é—entãoassimcaracteriza-do, pela primeira (?) vez.

Um falso gentleman, de sobrecasaca, chapéualto, bigode retorcido e monóculo, procura «fazerpela vida», fingindo trabalhar. A mesma persona-gem aparece no filme seguinte, Kid Auto Races at Venice, assistindo à partida de uma corrida deautomóveis,masdificultando-a,namedidaemqueseintrometenafilmagemdoacontecimento,pro-curando enquadrar-se na imagem, a todo o custo,com as desastrosas consequências que se tornam

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cómicas.Nosdoiscasos,arábuladoatorconstituia razão do filme, numa simplicidade de ação queentranoestiloKeystonedefarsaspopulares,comcorridas,perseguições,intervençõespoliciais(dosfamosos Keystone cops), tartes de creme frescolançadas pelo ar à cabeça dos figurantes, e outrosefeitos de grossa gargalhada.

Porém, a personagem do novo ator, com seutrajar de falso dandy revelava originalidade,rapidamente tomando assento nas produções daempresa,paraalémdosmaishabituaistruquesdoargumento,maisoumenosimprovisadodentrodametragemprogramada,eassimsedistinguindodogénero que Mack Sennett ordenava, e nos quaisum outro ator de reconhecida popularidade, ogordoRoscoeArbuckle,dito«Fatty»,seimpunha,desde o ano anterior—e com ele contracenandonoseusextofilme,Tango Tangles(eemmaistrês:The Masquerader e The Rounders, e sobretudoThe Knockout,batendo-senumringdeboxe),comele partilhando a vedeta feminina da empresa,Mabel Normand. Com ela Chaplin se encontrounoseuterceirofilme,Mabel’s Strange Predicament(e ainda em Mabel at the Wheel, Mabel’s Busy Day, Mabel’s Married Lif­e e Caught in a Cabaret,e numa média-metragem, Tillie’s Punctured Ro‑mance). São histórias de amores em que Chaplinpõe à prova os seus dotes de sedução. Mas eleprefere assumir, sozinho ou em principal papel,os filmes em que entra e vai tendo cada vez maisinfluência, por preferência do público; e assimFatty e Mabel saem da sua filmografia, ao longodeste chamado período Keystone do ano de 1914,emfunção,também,dacaracterizaçãodeCharlot,

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quedefinitivamenteseestabelecenoseutrajarderisível dignidade social.

Charlot amoroso será, porém, uma facetaimportante da sua personagem, de maneira porvezes equívoca e dotada de um estranho fascínio,ao mesmo tempo terno e cruel. Nas seis partesde Tillie’s Punctured Romance (As Bodas de Char‑lot) mais ele pode demonstrar o seu talento, maso argumento é frouxo—e é dois filmes depois,no último do seu contrato com a Keystone, queCharlot pode dar largas à sua imaginação, numahistória sonhada num (His)Prehistoric Past, masnisso mesmo encontrando os limites da atuaçãodo seu herói, fora do domínio da sua experiênciaquotidiana, e assim sendo menos apreciado.

No conjunto da série Keystone, duas vezes,como criado de café (Caught in a Cabaret) oucomo dentista (Laughing Gas), Charlot tem dasmelhoresoportunidadesdemostraroseutalentode improvisada perfeição, servindo atrabiliaria-mente às mesas que o reclamam, ou atendendoa um paciente, involuntariamente, pela força deinesperadas circunstâncias, e embrulhando-se nogás que aplica.

Charlot vítima dos acontecimentos, neles éjogado ridiculamente sem poder entender o quelhesucede,eassimsebatecomumguarda-chuvaindomável em Caught in the Rain, ou se atra-palha com os pastéis que fabrica em Dough and Dynamite—e,naverdadedosseusazares,emtodosestesfilmesdeagradocerto,eleacabaporganhar,porespertezaesaborosamaldade.Assimcontinuaele, na série seguinte produzida pela Essanay, em

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1915: doze filmes (com mais três, em 1916 e 1918,por razões contratuais, que vimos).

OprimeirodestesfilmeséHis New Job,emqueentratambém,emseusprincípiosdecarreiraqueserácélebre,GloriaSwanson(eBenTurpin,famo-soporseuestrabismocomoelementoburlesco,quecontracenará mais quatro vezes com Charlot, atéCarmen).Ofilmepassa-senumestúdiodecinema,filmedentrodefilmequeédesestruturadonasuaseriedadedramáticapelasintervençõesdesastrosasdo novo maquinista.

No filme seguinte, porém, Charlot desaparecee Chaplin é um cavalheiro rico que passa A Night Out,bembebidaedivertida(veremosquevoltaráa fazê-lo em One A. M. no ano seguinte), masCharlot logo volta ou tem que voltar para ser The Champion, boxeur involuntário que, para tomarvantagem,meteumaferraduranaluva—oupara,In the Park, procurar sorte amorosa, então, pelaprimeira vez significativamente, com Edna Pur-viance, já figurante nos dois filmes anteriores—equeseráseuparfielaté1923,comosabemos,numapresençaamorosamentecalmaqueodesafia,pre-tere ou consola. E é em The Tramp (o termo queficaracoladoàpersonagemalisurgecomotítuloedeuemPortugalCharlot Vagabundo)queEdnatemumpapeldramáticocontrastado,quando,salvadebandidosporCharlot,seucriadoagrícola,lhepre-fereumrivalrico,deixando-opartirsolitáriopelaestrada,numaimagemquecaracterizarásentimen-talmente a personagem. E infeliz Charlot volta asercomEdnaquando,emWork (Charlot Aprendiz), é desastroso colador de papel de parede (que a siprópriosecolaemgagfamoso)eseapaixonapela

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meninadacasa—contandoentão,numaadmirávelpantomina,ahistóriadasuavidatriste.By the Seapõe Charlot na praia, jogando, assustado, com asondaseosveraneantes,einventandoumafamosadançadepulgasquevoltaremosaveremLuzes da Ribalta.EmThe Bank, Charlotnãopodesersenãoempregadodalimpeza—mas,avassouraeobalde,vaielebuscá-losaointeriordeummajestosocofre--forte que abre para o efeito, usando o código desegurança, num gag anti-institucional… Isso nãoo impede de sonhar heroísmos no emprego, oude inventar outro gag famoso quando, levandouma carta ao correio, faz com que um conhecidotire a língua de fora, a pretexto de se interessarpela sua saúde, e nela humedece o selo que cola;e, voltando atrás, fecha-lhe a boca que o homemmantivera aberta… Em Shanghaied, Charlot vaipararàtripulaçãodeumbarco,depoisdetersidoatordoado, e é a bordo que ele, marinheiro invo-luntário, age como pode e o deixam. Foi no anoseguintequeCharlotapareceuemPolice (Charlot Ladrão) saído de prisão, e procurando resistir atentaçõesderouboqueselheoferecem.Umpastorevangélicoaconselha-o,maseleprópriooroubou…Só,finalmente,Ednaopodesalvar,amorosamente.Para o cineasta ilustre que é Jean Mitry, trata-seda «primeira obra-prima de Chaplin». Mas Ednaconfirma aí uma ação simbólica. Ela fora jáA Womaninacessível,etambémCarmen,emmaiorambição artística, que veremos.

Porquenessemesmoanode1916Chaplinassi-naracontratocomaMutual,ealidirigiráumasériede doze curtas-metragens até 1917, que merecemoapreçogeraldahistóriadocinema.Sejalogono

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primeirodeles,The Floorwalker,àsvoltasdesespe-radascomumescalator renitenteeperverso,sejaem The Fireman (Charlot Bombeiro), perseguidopeloseuchefeatésalvarheroicamenteEdnadeumincêndio.Colateralmente,umgagficoufamoso:umcavalheiro queixoso que não consegue convencerosbombeiros,noseuquartel,adeixarumapartidade cartas para lhe acudir…

Em The Vagabond (o que o distingue do The Tramp), Charlot é um violinista ambulante quedescobre em Edna uma criança outrora roubada.Mas em One A. M. (Charlot Boémio) Chaplin,cavalheiro regressado tarde, durante quase meiahora se bate com os objetos de casa que, pela suainstabilidade de ébrio, se tornam hostis, absur-damente, numa sucessão de gags de boa tradiçãobritânica de music hall em one man show—e que,em1948,PrestonSturges,comUnf­aithf­ully Yours (Odeio‑te, Meu Amor), admiravelmente lembrou,pondo Rex Harrison em vez de Chaplin…

EmThe Count (Charlot Aldrabão) Charlotfaz--seconvidadonumasoiréeelegante,emqueEdna,ricaherdeira,édisputada,sobafalsaidentidadedocondeBroko,clientedoalfaiateemquetrabalhaesobretudodestrabalha.Eumafestademassacreseestabeleceemconsequênciadoqui pro quo,entredanças, perseguições e pancadaria, num ritmoadmirável. Empregado de um penhorista em The Pawnshop (Charlot Prestamista),Charlotfazacortea Edna, filha do patrão—mas sobretudo compõeuma cena de antologia: um cliente vem deposi-tar um relógio despertador que Charlot observa,desmontando-ominuciosamente,e,acabandoporrecusar o penhor, devolve as peças desmontadas

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aocliente…Behind the ScreenpõeCharlotdenovonumestúdiodecinema,comomaquinistaedepoiscomoatorimprovisadoedesastrado;emThe Rink (Charlot Patinador),criadoderestauranteatraídoporEdnacliente,acabaporseacharnaobrigaçãode patinar, sem saber como, para fugir a clientesameaçadores.

Os quatro últimos títulos da série têm, já em1917,umamaisponderosaqualidadedramática—elogoEasy Street (Charlot na Rua da Paz),mostran-do um Charlot feito polícia, depois de convertidonuma missão religiosa, e assegurando a ordemnuma rua afligida por um brutamontes que todostemem e ele domina, com ajuda de um candeeirodeiluminaçãoagás:happy enddefelicidadepúblicaque é, muito agradecida e cumprimentado… The Cure (Charlot nas Termas) põe-no em situaçõesderisco,fugindoaummassagistamastodôntico,eprocurandoconquistar-lheasimpatiacomequívo-cas poses de bailarina, ou deixando cair na fontedaságuasterapêuticasassuasgarrafasdewhisky,e animando assim estranhamente a bebida recei-tada. Ou, num gag famoso, batendo-se com umaporta-tambor que o repele. Em The Adventurer (Charlot Evadido), fugido do campo prisional, eletem oportunidade de salvar uma velha senhora esuafilhaEdnademorreremafogadas,eérecebidonumareceçãodafamíliaagradecida,maslogoumrivalnaconquistadameninaoreconheceedenun-cia para uma perseguição policial animadíssima,a que Charlot consegue escapar. Mas, na festa, háumgagqueeleprópriojustificará,dosorvetequedeixatombarnovastoseiodeumaconvidadaluxuo-samente vestida: «se ele o fizesse cair no pescoço

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dumapobrecriadadeservir,emvezdoriso,teriaprovocado a simpatia…»

Antesdestefilme,epenúltimodasérieMutual,temos,porém,The Immigrant (Charlot Emigrante)em que Charlot chega à América ansiada, no seuportodeNovaIorque,àvistadacélebreEstátuadaLiberdade—maslogosevê,comotodososoutrosemigrantes, detido brutalmente por barreiras dapolícia para necessária identificação. Ele protegeemvãoumamãeeumajovemfilha,Edna,quemaistarde poderá esposar—mas,tramp miserável, ou-traspenasterádeatravessar,comoestaqueficoufamosa,noseu«suspense»,de,norestaurante,irapagarorepastocomumamoedaachadanaruamasentretanto perdida por um buraco da algibeira, eviraresolveraterrívelemergênciaqueumcriadograndalhão espia, pagando com a gorjeta deixadapor um cliente rico, na mesa do lado… O poetaAragoncomentaráosentidodestaemigração,edoencontrodeEdna,«mulhermaravilhosacujostra-çospurosserãoparasempreocéu»…OfilmeserácensuradonaprópriaAméricaedeledesapareceráaimagemdaEstátuadaLiberdade,inconvenienteno seu significado satírico…

Em1918,sobnovocontratocomaempresaFirstNational,ChaplinfaráaindaumúltimofilmeparaaEssanay,quelheficaradevido,efoiTriple Trou‑ble, em que multiplicou cenas de mal-entendidoeperseguição.Aomesmotempo,realizouA Dog’s Day (Uma Vida de Cão), todo um programa notítulo que, para Louis Delluc, é «a primeira obrade arte completa do cinema», média-metragemcom sequência de cenas cómicas e dramáticas.Otrampacordanumterrenovagoondeumpolícia

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o persegue, vai a um serviço de desemprego, éultrapassadopelosconcorrentesdetalmodoque,ao chegar ao guichet, este se lhe fecha na cara.Sememprego,Charlotadotaumcãoquealimentacom salsichas bem roubadas a um restaurante, eesse cão desenterra depois uma carteira cheia dedinheiroqueCharlotlevaaumatabernaondelharoubam e ele recupera, com astúcia, fugindo aosladrões. E tudo acaba com Charlot semeando umvasto campo, grão a grão, dono (talvez…) de umapequena casa onde, num berço, uma cadela aleitaos seus cachorros. E pelo meio, na taberna, umacantadeira canta canções sentimentais que fazemchorar toda a gente. É Edna…

Sobre The Bond não consta informação, masSunnyside (Um Idílio nos Campos), mais extensoque a curta-metragem dos outros, tem um va-lor especial, de encantamento pastoril, com umsonho‑balletemqueCharlotsevêdançandoentreninfas, e também com a realidade da sua vida detrabalhador agrícola, com saborosas invenções,mas sujeito a um patrão brutal, que o corre apontapés—emboradepoiselesesentealeraplica-damenteaBíblia…ECharlotaindaseencontraeminfeliz concorrênciaà jovem amada,Edna,contraumelegantedacidade,queeleprocuraimitaremseusademanes.Essaconcorrênciatomaumaformade dois sósias em The Idle Class, em que Charlotse vê envolvido, numa estância de luxo, viajandode borla no comboio e no porta-bagagens de umalimousine, ou, no relvado de golf­, aproveitandoas bolas alheias, com conflitos que provoca, ousalvando uma jovem dama (Edna, sempre) deum cavalo de freio nos dentes, ele montado num

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burro—mas, sobretudo, procurando, com umabre-latas, abrir a armadura medieval em que omaridodadama,ébriohabitual,semeteu,calandoaviseira.Expulsofinalmente,quandosedescobreasuaparecençacomocavalheiroacidentado,Ednaintercedeporele,quelhesalvaraavida,echegaraaconfundircomomarido,empazesinesperadas…Classe rica e sem ocupações, a sátira processa-seimpiedosamente. Em A Day’s Pleasure (Um Dia Bem Passado), Charlot tem boa compensaçãojunto da sua amada Edna, mas, em Pay Day (Dia de Pagamento), os desaires continuam na vida deCharlotquecortejaEdna,afilhadocapatazdaobraque se ri dele, enquanto ao pai, para se desculpardechegaratrasado,ofereceumaflor,erecebeumbofetão quando reclama da paga havida. O ritmoda obra vive num vertiginoso voo de tijolos queCharlot tem que ajustar na parede de que temencargo: é uma das melhores cenas do filme, quetemcontrapontonarelaçãodeCharlotcomasuamulher,queixosaeviolenta,dequesedefendeemalegre camaradagem de colegas, bêbados todos,em Clube de Celibatários, com hilariante cenade sobretudos vestidos e despidos; e regressandofinalmente a casa, em apertos de tramway, vaidormirnabanheira,cheiadeágua.Éopenúltimofilme que Chaplin fez, já em 1923, no contrato daFirstNational;oúltimo,The Pilgrim (O Peregrino), média-metragem,temespecialimportância—aparde dois anteriores, mesmo que distanciados notempo: Shoulder Arms (Charlot nas Trincheiras),ainda de 1918, e The Kid (O Garoto de Charlot).Aos quais, nestas sucessivas fases da obra chapli-niana,devejuntar-se,anterior,em1916(produção

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ainda da Essanay), Carmen. Este, como The Kid eThe Pilgrim, são médias-metragens, de quatro ouseispartes(The Kid),emanúnciodasobrasmaio-res que, a partir de 1923, integrarão a filmografiade Charles Chaplin.

Carmendesejou-secomoparódiaaofilmeentãorecente (1915) de Cecil B. DeMille, que alcançavagrandesucesso,rivalizandocomofilmedomesmoanorealizadoporRaoulWalshparaa20thCenturyFox, em concorrência com o produtor J. Laskyentão associado ao próprio DeMille (e a SamuelGoldwyn).ParaChaplin,avedetafoinaturalmente(mas, na verdade, não apropriada à sua persona-lidade) Edna Purviance, enquanto, para DeMille,foi uma ignorada Geraldine Farrar, e para WalshTheda Bara, «a primeira vamp do ecrã», como apublicitavaoprodutor,«Cleópatra»queserianes-se ano de 1916—mas o seu sucesso mitigado fezcomqueWalshinsistisse,em1927,numasegundaversãocomoutrafamosa(emaissalerosa)vedeta,a mexicana Dolores del Rio. Outras «Carmens»regista a história do cinema, e logo em 1918, a deLubitsch, contando com a famosa Pola Negri; acantora espanhola Rachel Meller para Feyder, ouapulposaVivianeRomanceparaChristian-Jaque,em 1926 e 1943, tentaram sempre a sorte… Maso romance célebre de Mérimée ou a ópera, maiscélebreaindadeBizet(amaiscantadanomundo!),resistiram bem às adaptações cinematográficas(até à Carmen Jones de Preminger, partindo dum«musical»dacenaamericana,emhistóriaadaptadade negros, já em 1954), podendo ver-se, no filmedeChaplin,paraalémdaparódiadiretaaDeMille,uma visão crítica do folclore da própria história

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franco-espanhola, em que, encarnando Don José,Chaplin se oferece um papel trágico—matando asuatentadoraeassimvencendoofelizrivalEsca-millo,numfimqueDellucclassificoude«magnífi-co».Devendonotar-sequeofilmefoireduzidodeumterçodasuaextensãopeloprodutor,deixandode ser, assim, a primeira longa-metragem queChaplin imaginou, e que ficou frustrada.

Nas trincheiras da Grande Guerra, na qual aAmérica estava intervindo, Chaplin vai bater-seinesperadamente, aprendendo o uso da espin-garda em Shoulder Arms — logo numa primeiracena que não deixa dúvidas sobre a sua incom-petência de manobra, num pelotão a que as suasgrandesbotasnãopodemadaptar-se…Maselevaiparar à frente de combate, então miseravelmen-te afundada em trincheiras donde saíam cargasinúteis de homens para morrer. A paródia deCharlot sublinha o ridículo mortal da guerra talcomo era travada, de modo igualmente inapto eabsurdo, no militarismo (alemão) ou na indife-rença (americana, francesa)—e são cenas e gagsde irrisão ou simplicidade humana, em que cabeum encontro fortuito com uma jovem francesa,Edna, que Charlot vem a salvar da brutalidadealemã,numacasaemruínasemqueseescondera.Com ela disfarçada, o soldado Charlot chegará apraticar uma façanha heroica que põe ponto finalao filme. Mas não sentido final, que ele sofreucorte como sabemos. Antes, porém, eis Charlot,que não tem correio na distribuição de cartas,e lê e se comove com a correspondência alheia.Ouei-loenviadoemmissãoinvoluntária,disfarça-donointeriordeumtroncodeárvoreederrotando

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um pelotão alemão surpreendido. Ou dormindona trincheira inundada, com o gag dos pés troca-dos com um camarada, na confusão da tarimba.Mas chega o fim da história e, vindo o Kaiser, oKronprinz e mais o general Hindenburg de visitaaof­ront,Charlotsozinhoosaprisiona,desfazendo--sedasuaescolta,eleva-osnopróprioautomóvelpara as linhas aliadas em que são recebidos comorefénsmilagrosos,comgrandesfelicitaçõesaosol-dado Charlot—que aproveita a situação para darum gostoso pontapé no traseiro de Guilherme II!Continuariaasequênciacomasfelicitaçõesoficiaisdadas pelos governantes aliados, que são Jorge V,WilsoneClemenceau,postosemcena,comCharlotaarrancar-lhes,comosouvenirs,osseusimportan-tes botões, o que os obriga a partir segurando ascalças…Nãocontinuouassim,porém,porproibiçãoda censura ou do próprio produtor receoso, queencurtou também de um terço a metragem dofilme, reduzindo-lhe o sentido pretendido.

The Kid, que ficou o popularizado O Garoto de Charlot,de1921,temambiçãomaiordemédia--metragem mais longa que as outras, com 80 mi-nutosdeprojeção,ecomotalficadanafilmografiachapliniana. Mas também, e sobretudo, pela suaqualidadeemocional.SeEdnaPurviancetemaíumpapelàsuamedidasentimentaldemãesacrificadapelo abandono do sedutor e, depois, enriquecidaporseutalentosenhorildecantoradeópera,pro-curandoacriançaquetiveraqueabandonaràsuasorte.FoientãoCharlotpostonasituaçãodelicadadedepositáriodeumbebéachadodequenãosabeque fazer, a não ser tentar livrar-se dele, até numcaixote de lixo… Acaba, porém, por o recolher e

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educar, como sabe e pode, com as suas míseraspossesdevidraceiroambulante.Oseuofíciotem,porém,frutuosacolaboraçãodorapazinhoprecoce,que voltamos a encontrar já de 5 anos de idade, apartir vidros de janela, à pedrada, para que o seuprotetor, chamado à reparação, ganhe a vida… Dequalquermodo,Charlotimpediraqueacriançalhefosse retirada para um orfanato, por iniciativa dedamasdeboasintençõespuritanasqueprocuramapoderar-se dela, por meios sempre antipatica-mentepoliciais.Játemsidosublinhadaasituaçãoautobiográfica, que destino assim teve o pequenoChaplin,órfãodepaiedemãeausentenumhospí-cio;esupõesaber-sequeoquarto,emqueCharlotvive com o seu «kid», reproduz o da sua própriainfância, na miséria londrina transplantada parauma América de miséria também, na identidadedo nenhures que cabe ao sentido também socialdofilme.MasamãeEdnaconseguesaberdofilhoperdido e vem vê-lo sem se declarar. E é a cenada boneca que lhe oferece, à porta da casa, paralhe obter as boas graças, e que o garoto defendena tentativa de outro garoto lha tirar, protegidoporumirmãomaisvelho,matulãodefamabrutal.O«kid»éentãoentregueàmãeparaseubem,porCharlot que, solitário, se consola sonhando-se noParaíso,comoshabitantesdaruamiserávelfeitosanjos mas não deixando por isso de se baterem,com plumas arrancadas pelos ares… O «kid» éJackie Coogan, que Chaplin descobrira, já emA Day’s Pleasure, de um ou dois anos atrás; terácarreira no cinema, logo num Oliver Twist, em1922, mas não filmou mais com Chaplin, e, atoradulto, apagou-se em papéis modestos.

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O fim de The Kid traz uma compensação àemotivacaridadedeCharlotqueaosespectadoresagradou econfirmou apopularidadedo filme queChaplin veio, como se disse, apresentar ao seupúblico europeu. Ao fim, a mãe, reconvertida noamor maternal, acolhe em sua casa Charlot, paraum destino melhor. Ilusório, como miticamenteo sabemos — que nos três filmes seguintes ele secontraria, como lhe é mister.

Já vimos como, em The Idle Class e no Pay Day, e mais significativamente na última realiza-ção feita para a First National, The Pilgrim. Aqui,Charlot é um forçado evadido que se disfarça empastorevangélico,roubandootrajoaoverdadeiropastor que se banhava, e é recebido como sendoele, na vila que o esperava. Apesar da sua supostacondição,Charlotnãopodeimpedir-sedecortejaruma bonita jovem, que é Edna; será descoberto econsegue fugir, mais uma vez — e veremos como,numacenafamosa.Entretanto,ofalsopastor,porexperiênciaprópria,edesconfiança,verificaopesodasmoedasdadasaoculto,depoisdeverobedeldotemplo cair, descobrindo uma garrafa clandestinade whisky,ede,às escondidas,beliscarumgarotoinsuportável.Esobretudo,numgagadmirável,elemima,emseusermão(naturalmentemudo)alutabíblicaentreDavideGolias,comajustiçavencen-do a tirania! O espírito estreito da população queo acolhe, a sua hipocrisia religiosa (e não só) sãoferozmentecombatidosnestefilme(queG.Sadoulcomparou ao Tartuf­f­e de Molière), e ainda maisse afirma a sua violência crítica na cena final emqueCharlot,paraescaparàperseguiçãopolicial,sepõeacaminhar,pédeumlado,pédooutro,sobre

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alinhaconvencionaldafronteiraEstadosUnidos--México! Por essas e por outras, esta última pro-dução da First National, marca, em certa medida,aativaçãodasperseguiçõesqueChaplinsofreudapartedoestablishmentpolíticoemoralamericano,quevimosculminar,pelaprimeiravez,em1927,atéà definitiva condenação, cerca de 1950.

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3De Opinião Pública a Luzes da Cidade

Após The Pilgrim e trabalhando para e coma empresa United Artists que o vimos cofundar,Charles Chaplin lançou-se numa operação iné-dita, do «drama sério» que ia tendo bom sucessona produção hollywoodiana, em concorrência decompanhias e mercados. Para isso, ele contavacom a sua vedeta fiel, Edna Purviance, então jáchegada aos 30 anos, e um galã de meia origemfrancesaenissojustificandooseupapeldef­rench lover,courreureleganteecínico,comosecaracte-rizava já com perto de vinte filmes no seu ativoiniciado, precisamente, com A Parisian Romance,em1916:AdolpheMenjou,quehaviadeprosseguirnamesmasendapormaisquarentaanos.Paraele,Chaplin,umabreveapariçãodebagageiro.Delefoio argumento que durante muito tempo preparou,e que, de certo modo, reatava outro que já em1915 sonhara e se intitularia Lif­e, com centenasde metros de película filmados, em tentativasabandonadas — cedo de mais que teria sido paracriar um drama of­ f­ate assim subintitulado, na

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abertura do qual pudesse, ele, Chaplin, inscrevera legenda:«Oshomenserramcegamente.Oigno-rantecondenaassuasfaltas,masosábioapieda-sedelas.»Porque«ahumanidadeécompostanãoporheróise traidoresmassimplesmenteporhomense mulheres, agitados por paixões boas e más quea natureza lhes deu». E assim vai a «ComédiaHumana» que a Balzac pode ser referida, comotambémaMaupassantpelacríticafrancesa.Melo-dramaassumidoemsuasregras,G.Sadoulafirmaque Public Opinion (que esteve para se intitularDestinyequerecebeufinalmente,naAmérica,masnãoemFrança,otítulodeA Woman of­ Paris),em1923, «introduz verdadeiramente a psicologia nocinema dramático».

Trata-se da história de dois jovens amorososque resolvem vir juntos da sua província, paraParis, viver o seu amor; mas ele é retido por umacidente familiar e, sozinha em Paris, ela (Edna)supondo-se abandonada, torna-se numa cortesãapreciada,protegidaporumricoadmirador,queéMenjou,equevaiabandoná-la,porfastio.Éentãoque ela reencontra o antigo namorado que vierafinalmente para Paris a dar-se a uma carreira depintor. Procura ele reatar, mas ela recusa-se, devergonhapelavidaquelevaeque,reveladaaoseujovem amoroso, o leva ao suicídio. E ao regressodelaàsuacidadedaprovíncia,acuidardepeque-nos órfãos, na solidão de uma quinta.

Os elementos da história (do f­ate, do destiny)estão reunidos e bem articulados numa narraçãosemtemposmortosedeelipsesperfeitas—comoa que ficou célebre, da passagem do comboio naestação em que Edna espera em vão o seu par, e

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que é mostrada apenas pelo reflexo das janelasiluminadas das carruagens (o que será adotado,vinte anos mais tarde, por David Lean no seu fa-mosoBrief­ Encounter).Oucomoarevelaçãoqueojovemtemdaligaçãodasuaamada,aoachar,numagavetadoseuquarto,umcolarinhodehomem,ouo saxofone que o amante rico toca, exprimindo odesinteresse que o ganha. E a morte grotesca dojovemsuicida,quetombanolagodecorativodumdancingemquetodaagentesediverte.Odesem-penhodeEdnaedeAdolpheMenjouénotáveldecontenção,emtermosdaépoca:otemafoitratado(di-loopróprioChaplin,certodaoriginalidadedoseutrabalho)«comummínimodeefeitos,evitan-do sublinhar ou forçar o que quer que seja, numatentativa consciente de mostrar pela sugestão».Embora com alguns comentários of­f­ em tabelasintercaladas, como a que, na cena do dancing,informa que as trufas são o regalo dos ricos e dosporcos, em feroz crítica social…

Opinião Pública não teve o sucesso dos filmesanteriores de Chaplin-«Charlot» porque o públi-co não esperava, da parte do autor, uma obra decaráter dramático, e reagiu de modo injusto paraChaplin — ou, pior do que isso, na América, onde15Estados lhe proibiram a exibição, por imorali-dadelogosublinhadapelasligasdevirtudepúblicaquefalaram de indecent love af­f­airs nocaso queoargumentoexplorava.Eapesardofimemanticli-max.Otimistaoupessimista?Chaplindiráqueestefim «não deixava qualquer esperança». Mas per-guntara,também,emirónicaambiguidade:«Oqueéquenosgarantequeaheroínaficanaquintamaisde uma hora depois de o filme terminar?…»

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É esta uma maneira de dizer mas, sobretudo,umamaneiradeentenderarealidadequeChaplinprocuravaexprimir,interrogando-aeinterrogando--se,nestemomentoemque,definitivamente,quisdar novo rumo à sua criação, ou nela tentar umaresponsabilidade julgada maior. Para isso, Opi‑nião Públicaestabeleceuumaseparaçãoevidente.E,comopropositadamente,malcompreendidaoucompreensível: assim, a obra ficou na filmografiadeChaplin,numaparte,eraramentesereexibiu,aolongodosanos,ousóemcuriosidadedecineclubes.Oquefoiumgrandeerroculturalecinematográ-fico também…

Doisanosmaistarde,em1925,Charlotvoltouaos ecrãs numa longa-metragem em que a per-sonagem renascida se multiplicou em aventuras,desastres e vitórias, numa variedade de situa-ções que fizeram de The Gold Rush (A Quimera do Ouro) o mais célebre dos filmes de Chaplin--«Charlot», um dos «mais completos» também(P. Leprohon). Catorze meses de produção nasmontanhas do Nevada, 650 mil dólares de custo,2milhõesemeioderesultadonaAméricaemaiso dobro na Europa — estes números fabulososrepresentam o sucesso do filme e do autor mi-lionário, exatamente no meio do escândalo doseu divórcio, perseguido pela ex-mulher como jásabemos, em exigência judicial de dois milhõesde indemnização… Em 1942, A Quimera do Ourofoi reeditada, comentada em of­f­ pelo realizador,e reduzida em cerca de 600m, para os 2150(72minutos) da versão que voltou ao mercado,como definitiva, devidamente sonorizada (masnão falada) para um êxito que se renovou.

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A Quimera do Ouro,centradanabuscarepenti-na e fervorosa de jazidas de ouro, nas montanhasorientais dos Estados Unidos, que, no fim doséculoxix, deslocou dramaticamente populaçõesinteirasdefamíliasedeaventureirossemescrúpu-los.Umfilmedewesternassimdefinido,e,emcertamedida,aproveitando-sedoêxitoenormedogéne-ro,aomesmotempoqueoridicularizando—paraalém da moralidade implícita, e finalmente dúbiada história do seu empático happy end.

Charlot, atraído pela quimera de tanto ourodisponível, parte também e, apanhado por umatempestade, ei-lo refugiado numa cabana à beiradeumprecipícioondecorreriscodetombar,se,noseu interior, o equilíbrio de peso não a sustentar.Equilíbrio que Charlot, escorregando pelo chãopõeemperigo,numacenadeaflitivosuspenseemque a angústia se mistura com o riso. Na cabana,ainda, Charlot é ameaçado por outro aventureiro,mas protegido por um terceiro, gigantesco — e éumelementofrequentenosfilmesdeCharlot,as-segurandocontrastecómicocomafigurafrágildonosso herói, que tem por ele, porém, mil astúciasde agilidade e charme. O matulão é Mack Swain,parceiro já em numerosas curtas-metragens, evindo também do burlesco de Mack Sennett; seráasuaúltima(emaisimportante)colaboraçãodadaa Chaplin.

Amigos se tornam, na circunstância, mas omomento chega em que, apertados pela fome, seolham suspeitosamente, cada um deles vendo nooutro uma apetitosa peça de carne viva, a abatere cozinhar. Felizmente que um urso autênticoaparece,pondopontofinalnacena…Nela,porém,

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cabe um episódio em que Charlot se vê obrigadoacomerocourodoseupardebotas,retirandoospregosdasola,delicadamente,comosedeossinhossetratasse;eengolindoosatilhoscomosefossemfios de esparguete, enrolando-os no garfo. Na se-quência seguinte, entra a nova parceira amorosade Charlot, que deve substituir Edna Purviance,heroína última da Opinião Pública, e abandonadadepois, por longuíssimo período, como veremos.Estamos numa taberna da cidade improvisada,com todos os seus perigos, e Charlot aproxima-setimidamente dela, espreitando pelas vidraças afestaquecalidamenteládecorre,emvoltadeumajovemcantoralogoamadaqueoolhamasnãovê:éGeorgiaHale,quenãovoltaráafilmarcomChaplin,eterádepoismodestíssimacarreira,namedidadeum talento curto que o realizador pode valorizar,com algum esforço lírico. Charlot, que a defen-dera absurdamente dum brutamontes, convida-aparajantar;elanãovemetroçadelecomcolegas;então, abandonado, ele improvisa um dos maisfamosos gags da sua obra: a dança dos pãezinhosque, espetados em dois garfos, faz evoluir sobre amesa, emprestando aos seus passos articulados aexpressão mímica do seu próprio rosto pintado.A antologia chapliniana tem, nesta pequena cena,um dos seus pontos mais altos, de emoção e in-teligência expressiva. A sorte vai, porém, rodar afavor de Charlot, na companhia do seu protetor,o latagão que recupera, de súbito (e depois deatravessarem grande perigo na cabana que cainum despenhadeiro), a memória do local em quedescobriraumfilãodeouro—que,postoemexplo-ração, riqueza lhes dá, a ambos, em boa amizade.

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Enfardadosluxuosamente,comgrandescasa-cos de peles e chapéus altos, viajam, então, paraa Europa a bordo de um paquete, em classe deluxo. Charlot tem, por brincadeira, a ideia de sevestir com os velhos trapos da sua miséria e desepassearabordo,assimdisfarçado,elogo,comoantigamente, é perseguido pelo comissário debordo. Então Georgia aparece, viajante tambémem classe pobre de retorno e, reconhecendo-o,consola-o no que julga ser o seu mau destino.Mas o engano é desfeito, com grandes desculpasdos oficiais de bordo e, reconhecidamente rico,Charlot convida então a bonita cantora de ta-berna que troçara dele, para uma possível vidade riqueza e prazeres — na expectativa da qualo filme otimisticamente se termina. Não, não éEdnaPurviancequembeneficiadodestinoassimmudado, como já entendemos…

Chaplin atingira uma completa maturidade,após dez anos de realizações, ao princípio apres-sadas no tempo obrigatório da produção, depoispodendo contar com mais tempo de reflexão eexperiências, na medida do reconhecimento dasua rentabilidade, como da consciência adquiri-da da própria criatividade. Se a Opinião Públicaconfirmou Chaplin na certeza da sua capacidadedramática,tratava-seagoraderecuperarapersona-gemqueotornarapopular,podendosituá-lamaisestruturalmente e em discurso alongado, de novode modo cómico. Não unicamente, porém, masjogando com elementos de seriedade dramática,de caráter psicológico que em Opinião Públicatinham sido verificados. Para além de cenas decurta-metragem,tratou-seentãodefazerumfilme

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«completo»,comoacríticaavaliou.Eassimconti-nuará a ser, nas duas produções seguintes.

The Circus (O Circo) foi terminado em 1928e oferece a Charlot um espaço dramático ideal,lembrado das suas experiências iniciais de music hall.Mas,enriquecidotambémcomoqueocinemalheensinara,àsuapersonagemeàsuaobservaçãodramática,Chaplinestavasenhordeumequilíbrionarrativo que a unidade de tempo e lugar (queJ.Mitrysublinhounoseuelogioaofilme)confirmaem rigor e em ritmo, no seu «crescendo», até aoanticlimaxfinal—quevaiopor-seaohappy enddeA Quimera do Ouro.NissocertamentetornandoadaraCharlotasuacaracterísticaamargaesolitáriaque várias vezes, nas suas curtas-metragens, sedefinira,comovimos—e importavavoltaraver…

Encontramo-nos num circo ambulante, detenda erguida ao acaso da viagem, e sem grandesucesso de público que não aprecia os númerosfatigados dos clowns. Charlot aproxima-se, vaga-bundo sem destino, a ver o que se passa — e umaimagemdele,decostas,esticando-separaespreitarpeloburacodeumabarraca,eparaissopuxandoasprópriascalçasabandalhadas,nailusãodeogestopoderelevá-lo,tornou-seumíconedapersonagem,gagdeagudoefeitopsicológico.Poucasorteasua,como pode esperar-se: Charlot vê-se implicadonumahistóriadegatunoe,inocente,fogeparaden-trodocircoemespetáculo,depoisdetercomidoobolo de um miúdo que o acusa também.

Ei-lo então na pista, ofuscado pelas luzes epelo público que julga estar a ver um númeronovo e aplaude. Vale-lhe isso um contrato e umaposiçãorelativadevedetadocirco,etambémuma

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paixãopelabelaejovemécuyèrequeéagoraMernaKennedy,umanovaparceiradeChaplinmasumavez só e não deixando mais rasto. Como sempre,na commedia, a jovem «colombina» prefere a«Pierrot»encolhidoum«Arlequim»funâmbulodebom físico — e Charlot procura exaltar-se a seusolhos imitando, nos riscos de uma corda bamba,o seu número. E os riscos aumentam quandouma chusma de macacos intervém agarrando-seao improvisado equilibrista que se vê obrigadoa bater-se, ao mesmo tempo sendo despido naconfusão — e é também uma cena de antologianas aventuras mais cómicas de Charlot. E não é aúnica situação que ele tem que enfrentar com osanimais do circo…

Maséoequilibristaqueajovemprefereequefaz com que Charlot seja despedido do circo quese levanta e parte para outra terra. Charlot, sozi-nho de novo, como seu verdadeiro fado? Temosentãoacenafinalcomestaimagemdotrampquecontempla o sítio em que o circo estivera e onderestamtristesmarcasdaocupação.UmadasmaisamargasimagensdeCharlot,senãoamaistrágicade todas…

O mundo ilusório do circo, em que supuserater lugaramoroso epor isso social, convémmito-logicamente a Charlot que nele pode evoluir comseustalentos,protegidodaagressividadedomundoambiente. Mas logo observamos que o circo temos seus próprios problemas, e a agressividade dosanimais,dosmacacosquelhecriamumasituaçãocatastrófica,correspondebemàdoshumanos.Eoamorbuscadoesquiva-sepordestino,numalógicade comportamentos sentimentais que não têm

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lugarparaumapersonagemcomoCharlot,noseulirismosuspeitodairrealidade.EmO Circoreúnem--se,assim,muitasdascondiçõesnecessáriasàsagade Charlot, ou à saga chapliniana, finalmente, desolidão em solidão.

Na sua perfeição, porém, a terceira longa--metragem de Chaplin (se incluirmos Opinião Pública),segundadeChaplin-«Charlot»,convidaaumdesenvolvimentodramáticoquesituedenovoa personagem, em seu mito individual e social.Eonde,também,ousobretudo,osentidoamorosotenha outra definição e outra conclusão — não aquefoiotimistaemA Quimera do Ouroetambémnão a pessimista que assiste aO Circo. E que teráque contar com nova vedeta feminina, excluídasas destes dois filmes, por, pelo menos, incompe-tência,etambém,oumais,deoutromodo,aEdnaPurviance,porassimdizer«queimada»,arrumadana história em que Chaplin a instalou.

A Quimera do Ouro e O Circo completam-secontradizendo-se, como era necessário — masnissomesmoapelandoparaumaterceiraobra,decerto modo de síntese das duas histórias, no quepode e deve ser tomado como o tríptico dos anos20 de Chaplin-«Charlot» que se terminavam natempestade técnica da aparição do sonoro.

City Lights (Luzes da Cidade) foi estreado em1931,comfracosucessonaAméricaemfacedoele-vadocustoqueChaplintinhaassumidocomopro-dutorindependenteefoinecessárioumaapresen-taçãonaEuropa,feitapeloprópriorealizador,paracomporasperdaselargamenteelasforamcompen-sadas pelo êxito pessoal, social e intelectual queChaplinconheceu,nestasegundaviagemàEuropa.

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A ponto de Luzes na Cidade vir a ser o maispopular dos seus filmes.

Um filme mudo no meio de uma produçãoque, na América como na Europa, procuravanovos trunfos de mercado com o sonoro que sepopularizava na exigência das plateias. Chaplinmantinha-se,porém,intransigentenasuaposiçãoestética, ele que, como para a Quimera do Ouro(e depois, até ao termo da sua filmografia) se en-carregara da composição musical que integravaa projeção—sonorizando-a assim, conforme suaideia de obra completa.

Mas falar, não, Charlot não falaria com pala-vras, mas sim com a sua mímica prodigiosa—e anovahistóriadotrampassimfoicontadaemcenasculminantes, de farsa e de amor…

OnovopardeCharlotfoimaisumavez,então,uma jovem estreante, Virginia Cherrill, que nãodeumaiscarreira,nocinema,àsuapresençasen-sível e amorável.

Porque à jovem florista que ela encarna cabeum papel determinante nas Luzes da Cidade,agente de redenção e de catarsis do pobre trampvítimadascircunstânciasdasuavida.Elacomeçou,nofilme,pelasuapresençaabsurdanosbraçosdeuma estátua que é solenemente inaugurada, comdescerramentodasuacoberturaaoacenoprogra-madodasautoridades.Trata-sedeummonumentoà«pazeprosperidade»,comseuselementosfigura-tivos,abundantesdecarnesesímbolos.Indignaçãodosoficiaisedaassistência,enviodepolíciasparafazerem descer o vagabundo que, surpreendido,procura escapar, cumprimentando polidamenteunseoutros,atrapalhadopelospróprioselementos

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escultóricos, um gládio heroico, sobretudo, que oprendepelofundodascalças…Asequênciadetém--se ali para que outra se organize, numa obra queécompostaporsketchesdistintosnasuaestrutura,ligadapelofiomaiordoheróicomum,noseventosqueatravessaouprovoca,ounosquaissofreodes-tino de Charlot que, em Luzes da Cidade, alcançaa sua definitiva imagem. A menos que…

Depois de ter escapado à perseguição policialà sua insólita presença no monumento em inau-guração, Charlot vai pela cidade, aprecia demo-radamente uma estátua de nu (feminino) numamontra,escapandoduasoutrêsvezesaumalçapãomecânicoqueseabree,quandoprotesta,dissosevê dissuadido pelo operário responsável, latagãoameaçador.Nacenaseguinte,umajovemflorista,junto a um gradeamento de jardim, vende a suamercadoria, e propõe uma flor a um cavalheiroquesaideumautomóvelqueelajulgaserCharlot,comosupõequeelesevai,quandoaportadocarro(alheio) se fecha. Ela é cega, e Charlot, dando-secontadisso,senta-sediscretamenteaseulado—eéensopadoporumbaldedeáguaqueela,habitua-da do sítio, vai encher numa torneira, ao seu ladopara regar as suas flores, e depois despeja. É elaa personagem de referência na cena seguinte, nacasa em que humildemente vive com a avó, tristede ver uma amiga partir com o namorado (é na-morado que então se diz…) Charlot, por seu lado,vaipassearporumcaissolitário,ànoite,evêqueumcavalheiroébriopreparaoseusuicídio,atandouma pedra ao pescoço—e vai ser uma sequênciaadmiravelmente ritmada de gestos frustrados emque Charlot acaba por também cair à água e ser

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salvo pelo suicida e vice-versa depois, daí resul-tando uma amizade súbita que leva o vagabundo(que, através das peripécias conseguira salvar aflor que a cega lhe oferecera) à casa luxuosa donovoamigo,recebidosporummordomoquelhesserve a mais beber. O que volta a dar ideias desuicídio ao cavalheiro, que a mulher abandonara,edenovoCharlotlheimpedeogestofatal,apósoquevãoambosaumdancingondenovasaventurasesperam o vagabundo, às voltas com um charuto,com um prato de esparguetes que se continuamem serpentinas, tombando do teto, ou na pistade dança, às voltas com um criado de mesa, e suabandeja. Regressados a casa, o amigo oferece-lheo grande automóvel, que ele admira, e dá-lheo dinheiro que lhe pede porque Charlot vira aflorista e corre a comprar-lhe todas as flores, e alevá-laacasadepois,nocarro,apaixonadoqueestá.Aoregressar,porém,omordomoquerimpedi-lodeentrar e, quando força a porta, o amigo, já sóbrio,nãooreconheceevê-selançadoàrua.Masguardaaindaoautomóvele,semdinheiro,énessacondi-ção que disputa a um mendigo atónito uma beataquealguémdeixaracairnopasseio…Contraponto:afloristapensanocavalheirogentilqueaacompa-nhara,Charlot,ele,denovovagabundo,encontraocavalheiroque,bêbadocomoantes,oreconheceelevaoutravezparacasaondeumafestaosespera,causa de novas aventuras e gags como o assobioque engole e, em soluços, apita, interrompendoumacantoracélebre,ouchamandoumamatilhadecães, ou metido a dormir na cama do amigo que,acordando, de novo o desconhece e faz expulsar;de resto ele vai partir em viagem para a Europa.

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Denovoabandonadoaoseudestino,Charlotvisitaafloristadoenteemcasa,eprocuratrabalhoparapoder ajudá-la; é então varredor de rua e acabaporserdespedido,porincompetência—semprenaânsiadearranjarodinheiroqueevitaráàjovemaexpulsãopelosenhorioemdívida,etambémparapoder pagar-lhe uma operação aos olhos doentes,comolhepromete.Aítentaeleoutroofícioeentranuma combinação de boxe falsificado mas, fugidoo parceiro à polícia, vê-se posto diante de umprofissionalquenãoaceitaacombinação,certodaevidência de ganhar—e é uma das mais famosascenas de Charlot (que já fora boxeur de ferradurana luva, como vimos; e o espectador vê-o agoraolharequivocamenteaferradura-talismã,àesperadeidênticaresoluçãosua…),numprodigiosoballetsobreoring,paraevitarosgolpesqueacabamporodeitarabaixo.Denovonaruadoseudesespero,eisqueCharlotvoltaaencontrarocavalheirosuicida,regressado da longa viagem e outra vez bêbado eamistoso. Levado para casa dele, obtêm-lhe mildólares para a operação da jovem florista—mas,nessa noite, a casa é assaltada por dois ladrões e,pretendendo defender o amigo agredido, Charlotvê-se apanhado pela polícia entretanto chamadapelo mordomo, fugidos os assaltantes.

O fantástico amigo outra vez não o reconheceeCharlotécondenado—mastevetempoaindadeiracasadajovemedar-lheosmildólaresquelhepagarãoaoperação.Comosaberemos,vendo-a,umanodepois,estabelecidacomumalojadeflorista,ajudada pela avó.

E é então o fim de Luzes da Cidade, que im-portava contar, cena a cena, na sua qualidade de

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invenção cómica, com intermédios sentimentaisque ao fim vão conduzir, ou mais do que isso, nointenso lirismo que nos espera.

Saído da prisão, Charlot arrasta mais uma vezospassospelasruasdacidadeeparado,diantedalojadaflorista,espreitandopelamontra,reconheceajovemqueamaraeprocurarasalvardacegueira.Ou salvara! Ela sente-se olhada pelo vagabundoque não pode reconhecer, mas tem dó dele e fazmençãodelheoferecerumaflor.Eleacenaquenãoevai-se,noseupassoindeciso.Maselavemàportaechama-o:temparaeleumafloreumamoedanamão.Charlotaceitaaflormasrecusaamoeda,elainsiste,algoperturbadapeloseuolhar.OlhartristedePierrot…Eentão,forçando-lheamão,reconhece--a pelo tato que, cega, afinara como sentido, e lheficara.«You?»dizalegendaintercaladanamudezdapelícula.«Sim,eu»,respondeovagabundo,queacrescenta: «Vê, agora?» As legendas aparecemrapidamente,emtabelas,maséamímicadeChar-lot que conta, a expressão com que diz e ouve aspalavrassilenciosas.«Sim,agoravejo…»respondeela—e é o fim de Luzes da Cidade.

O fim definitivamente dado ao filme, na suapropositada e dramática ambiguidade, que não é,nem pode ser, feliz ou infeliz. «Quem sabe o quevai acontecer ou pode acontecer depois?» Não odissera Chaplin a propósito da Opinião Pública?E,aqui,sabe-sequeelehesitaraentredoisoutrosfins:ajovemfloristaquecontinuaarir-sedopobretrampquenãoreconhece,ouCharlotquefilosofa,num longo discurso mímico explicando à jovem«a vida tal como é e não como ela a sonha»… Nãoconvém nenhum deles a Chaplin-«Charlot», e o

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tema musical que ele compôs sublinha a cena, deamor trágico que é—tal como os espectadoresnecessariamente o entendem, nesta obra funda-mental da sua filmografia.

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4Tempos Modernos

Demorou cinco anos a nova realização e pro-duçãodeCharlesChaplin:Modern Times (Tempos Modernos) foi apresentado em 1936, no mundo jádiferente daquele em que Luzes da Cidade foraestreado, e os dois títulos o demonstram, em seuvocabulário,relativamentecrítico,noespaçoenotempo,necessariamentehistórico,talcomoestavaa ser, senão entendido, vivido, no Ocidente, porsuas políticas de civilização.

Agrandecriseexplodidaem1929estavaaindaviva em 1931 e cinco anos depois procurava solu-ção no New Deal dos Estados Unidos, no Front Populaire de França, nas ditaduras que em Itáliae Portugal comemoravam «anos X» de existência,e em Espanha se preparava numa guerra civil emqueaAlemanhanaziconfirmavaoseupoder,enaUniãoSoviéticaseradicalizavanoestalinismo:ummundo prenhe de perigos em que não faltavamlúcidos diagnósticos de catástrofe. À falta de umaconsciência social e política de modernidade emque a economia industrial pudesse ter definição

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humana… Charles Chaplin estava atento aosproblemas da história, que auscultara na Euro-pa e experimentava nas reações americanas—ea sua personagem Charlot, vitimada nas Luzes (ilusórias) da Cidade não podia deixar de sofrerTempos Modernos ilusórios também, para conti-nuar a assumir a sua responsabilidade de reflexoe acusação da, por assim lhe chamar, história daHumanidade.

A máquina acusada de servidão capitalista, nasua mecanização inumana, fora divertido objeto,em 1931, do célebre filme de René Clair À nous la Liberté, que certamente Chaplin viu e neleprovavelmente se inspirou—como foi acusadopelosprodutores dofilmefrancêsdominados, em1936,porumaempresaalemãdeobediêncianazi,a Tobis, num processo que René Clair impediu,declarando-semuito honrado setaltivessesido ocaso.Quefoi,semdúvida,paraahistóriadoCine-ma, mas que se situou bem para além do espíritode opereta confessado pelo realizador francês,reconhecendo os seus limites.

Tempos Modernos afirma-se, em 1936, comoum filme de crítica social sem desculpas, e nissoé obra pioneira no cinema americano que só nopós-guerra de Joseph Losey assumiu tais respon-sabilidades e, então mesmo (1936), o simpáticoutopismo de Capra levava «Mr. Deeds» a dar osseus milhões ao povo…

Mas a máquina inimiga para Chaplin é so-bretudo sinal de desumanização, na taylorizaçãoimposta pela indústria concorrencial, reduzindoo homem-operário a uma escravatura minuciosa-mentecontabilizada,emtemposegestosrepetidos

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atéàparanoia.Orisoquetalsituaçãodespertanoespectadoréhorrivelmentecondicionadopelasuaprópriaexperiência,deprofissãoemprofissão—ese é a técnica que faz o homem, e não, em últimaanálise,omeiosocial,ooperárioamericanonãosedistingue,psicossocialmente,dooperáriosoviético,em transes de stakhanovismo… A frieza com queTempos Modernos foirecebidonosEstadosUnidosnãofoi,assim,diferentedasuspeiçãoqueacompa-nhouofilmenaRússia,mesmoqueacríticaoficiosacomalgummal-estar,procurassedistinguirasduassituações sociopolíticas, reduzindo à americana odestino da mensagem chapliniana. De qualquermodo,naAlemanhaenaItáliafascistas,ofilmefoiinterdito, considerado como de propaganda «ver-melha»;epassoucortadoemPortugal…Maisumavez coube à inteligentsia europeia o seu mais sig-nificativoacolhimento—easuarecuperação,maisdevinteanosdepois,aoserrepostoemcirculação,obraclássicajá,passíveldeumaleituracríticaquea história podia confirmar, quando os equívocospolíticos do pré-guerra começavam a dissipar-se.

Amáquinaconstitui,naeconomiadofilme,enaproporção das suas cenas, articuladas de gags emgags,asuaparteessencial:umamáquinaincomensu-rávelemonstruosaqueesmagaCharlot—equenãosó não está ao serviço do homem como para nadaserve, nela própria se satisfazendo, em seu podertautogénico,comoNaColónia Penal deKafka,vinteanosantes, foiminuciosamentedescrita.

Que o mundo de Chaplin ao do romancista dePraga se refere, contemporaneamente, em seusanos de formação—«processo» a «processo»,«castelo» a «castelo»…

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G. Sadoul, no seu Dictionnaire des f­ilms, contacomdemasiada(senãosuspeita)brevidadeaintrigade Tempos Modernos: «Charlot tornado operárionuma grande fábrica, depois desempregado.» As-sim se passam as coisas—mas, no meio delas, háummundodesituações,emmeiadúziadesequên-ciasqueimportadescrever,paraalémdamáquinaque concentra o significado da obra.

OoperárioCharlot,trocadootrajodevagabun-doporumfato-macacoapropriadoàssuasfunções,vê-se afetado a uma cadeia de montagem, longapassadeira em que os operários sucessivamentemetemumelementonumapeçaquevaipassandoperante as suas mãos diligentes; um atraso logocausaperturbação,eCharlot(vigiado,comotodosos outros operários, por um sistema de televisãointerno)embrulha-seemdificuldadesdemaneja-mento,interrompendoonormalfuncionamentodosistema—comoeradeesperar,esperando-setam-bém a intervenção do capataz, sempre o homemgrande que ameaça e persegue o tramp! Depois,ele recebe encargo de uma máquina monstruosa,de engrenagens misteriosas, com grandes rodasdentadas que se engrenam e exigem mínima vigi-lânciaqueCharlotnãoécapazdefornecer;eécomuma velha almotolia que ele procura resolver umproblemaquesepõe,achando-se,emconsequên-cia, apanhado pela engrenagem, e passando, emaflição,derodaemroda.Eleque,numapausa,comum colega, procurara humanamente comer o seualmoço…Ofactoéque,depoisdetantainabilidadecomprovada, Charlot é despedido—no resumode G. Sadoul que vimos. Mas não, porém, porquemuito pior lhe acontece, ao ser escolhido para

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experimentar uma outra máquina, de alimentar,destinadaafazerganhartempodeprodução.Nelaésentadoeligado,comonumacadeiraelétricadeexecuções. Grandeexpectativados patrões,masamáquina, por defeito da sua mecânica, avaria-se,e o que seria uma série de gestos perfeitos dealimentar, de prato e colher, torna-se numa sara-banda descontrolada e vertiginosa de elementosmecânicos que, sujeitando-lhe a cabeça, obrigamCharlot a receber os alimentos, esperneando deaflição.Etambémodespedimentotemoutramaisgraverazãoporque,enlouquecidocomarepetiçãodos movimentos a que se vê forçado, Charlot osvai repetindo em vão, pela fábrica fora, pela rua,depois, dançando e levando a sua chave-inglesaao corpo dos passantes, botões ou seios de damasanafadas; até que é detido e levado para um hos-pício de loucos. Libertado ou curado, por fim,não tem emprego o tramp que o espectador assazcruelmente esperava desde o princípio do filme,certo do destino que tem que cumprir…

Ele logo o alcança quando, pela rua fora,Charlot cruza uma manifestação de outros de-sempregadosqueoseguementusiasmadosporqueele, por inadvertência, apanhara do chão umabandeiravermelhadesinalizaçãodetrânsito,quetombara, e, visto como um leader revolucionárioisso lhe vale a prisão. Posto em liberdade (massofreraaintervençãodeumadamadeassistênciasocial—e um gag de soluços como o do apito deLuzes da Cidade ficou famoso), Charlot conti-nua vagueando e, também por descuido, larga aamarra de um barco que deveria ser lançado àágua, e mais depressa o é, em grande pânico das

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autoridades que solenizavam o ato. Escapa Charlotà sua vindicta, e encontra então uma jovem,fugitivatambém,perseguidaporterroubadoumpão, e logo resolve protegê-la, encantado com oseufrescodesembaraço—eumabelezaquepassaigualmente a atrair Charles Chaplin, até ao nómatrimonial. Em Tempos Modernos tem ela oprimeiro papel de destaque numa carreira já desete anos e que continuaria com brilho, mesmodepoisdodivórcioedofilmeseguintedeCharlot,O Grande Ditador, em 1940. É Paulette Goddard,no filme figurada mais nova do que realmente é.Vivem como podem, de expedientes, fugindo apagarumacontaderestaurante(gagassinalado),e arranjando ele emprego de guarda-noturnonuma loja de muitos andares e secções. É na demobiliário que Charlot esconde a jovem compa-nheira para passar a noite—e nas salas desertasanima-se então uma famosa sequência cómicaem que ele se revela (como já, vinte anos atrás)patinador arriscado, com os suspenses que nalógica da narrativa se resolvem. Outro empregoCharlot tem depois, para sustentar a sua vidacomuminstaladanumabarracaprovisóriaemqueambos imaginam e improvisam amorosamenteuma normalidade de existência, que a Paulettenãosatisfaz.Elaconsegueentãoempregodecan-toradecabaret,eelefaz(maisumavez)osketchdecriadodemesa—masagoracomobrigaçãodecantar, como os seus colegas de trabalho.

Cantar como?, se Chaplin remetera Charlotao silêncio da mímica, por princípio estético.OfimdeLuzes da Cidade nãooprovaracomoquedefinitivamente?

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A expectativa dos clientes do cabaret não édecerto menor que a dos espectadores, à beira deinstanteherético…ECharlotcanta,mas,tendoes-critoaspalavrasnumpunhopostiçodacamisa,umgestoquedeentradafazlançaopunhopelosares,eocantorvê-sesemletranemmemória,obrigadoaimprovisarnãopalavrasmasumalínguadesonsinéditos que se acordam à mímica que suporta acena.Linguagemcifrada,comotodasaslinguagenspoéticas,estaassumeaquiumpapelinédito,depoisdas práticas dadaístas de há vinte anos que nãofaziam certamente parte da cultura chapliniana.Na verdade, ele, Charlot, inventa ali, no domíniosimbólico que confirma o mito chapliniano.

Mas outra confirmação é necessária a Chaplinparapôrfimaofilme.Eaísabe-sequeelehesitou,pensando numa nova guerra para a qual Charlotdeveria outra vez, partir como soldado e Pauletteagora como enfermeira. Ao fim da guerra (tãodifícil de definir então!) ele regressava, mas ela,farta de tanta miséria vivida, abandonava-o; eCharlotpartiasozinhopelaestradadesempre,doseu destino… Não foi, porém, assim, e (segundo oseu biógrafo Villegas López em 1943) terão sidocineastassoviéticosqueolevaramacriarumoutrofim—partindoentãopelaestradafora,sim,masaoladodePaulette,«comocoraçãoalegreeasmãosnosbolsos»(Chaplin),paraumfuturosupostamen-te positivo. Mas lembre-se (sempre!) o comentá-rio dubitativo de Chaplin sobre o fim visível deOpinião Pública: «quem sabe o que os espera?…»

Tempos Modernosestes,àbeiradeumaguerrajáadivinhável—nosquaisamáquina(queaguerraiadesenvolvertecnicamenteatéàbombaatómica)

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dominava o Homem, em absurda ilusão progres-sistadoshomens—que,noiníciodofilme,vemosencaminharem-se para a fábrica do seu trabalhoobrigatório, sobrepondo-se-lhe a imagem de umrebanhodecarneiros.Imagemcómicaeincómodada realidade reinterpretada…

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5O Grande Ditador

The Great Dictator (O Grande Ditador) foiapresentadoem1940,nasuaevidenteintençãoan-tinazi, em troça descabeladaa Hitlere Mussolini.Ela provocou protestos das embaixadas alemã eitalianaemWashington(apesardasuásticadisfar-çada)ecampanhado«lobby»pró-naziamericano,dos isolacionistas e ameaças da Comissão dasAtividades Antiamericanas, logo que constou queChaplin preparava o filme, desde 1938. Grande epolémico sucesso o acolheu, e mais ainda após atragédiadePearlHarbour,emdezembrode1940,antes que passasse o famoso To be or not to be deLubitsch. Na Europa ocupada pelo III Reich (ounos países em cumplicidade ideológica), o filmefoi proibido—e só em dezembro de 1946, sobpressão diplomática, O Grande Ditador pode sermostrado em Portugal, para um êxito imediatode cinco semanas no Tivoli, apesar de amputadono seu fim e sob críticas de jornalistas do regimeque lamentaram a autorização da censura para«estatempestuosaondadeódio,depoisdoqueno

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mundo se passou»—obra evidente de um judeu«envelhecido»… Na América oficial a obra ficariacomo elemento de suspeita e acusação a pesarsobre a carreira do realizador, até ao seu exílio.E, na União Soviética, sabe-se que Estaline, gran-de amador de cinema, seu espectador quotidiano,detestou O Grande Ditador.

A troça feita às personalidades paranoicase risíveis dos dois ditadores desaparecidos nãoseria, porém, a essência das acusações lançadassobre Chaplin, ou só da parte de nostálgicosimbecis—mas sim a posição finalmente apregoa-da no discurso mensagem que põe ponto final aofilme,numainversãodeatitudeedeestilodramá-tico que inova radicalmente na obra chapliniana.A palavra «Liberty» posta na tribuna donde o ex--Hynkel/Hitler se dirige ao mundo inteiro (que ofilme poderá alcançar, na sua comunicação), porsobre o rebanho nazi dos seus seguidores, é umprograma de vida que só em paz pode ser vivida,desaparecidos(todos…)osditadoreseoseupoderdevolvido ao povo, recusando-se os soldados paraofensivasdeguerra—eunidosospovosemnomedademocracia,numasociedadeemquetodospos-samtrabalhar.E,sobretudo,quenãosedesespere,na vida que nos espera!

Aanáliseideológicadestetextoemvárioslocaispublicado (e em França sobretudo, onde um cré-dito marxista lhe foi dado, por G.Sadoul, apoiadono elogio do «nobre gesto» de Poudovkine e da«maturidade» de Einsenstein) não poderá deixarde sublinhar, sobre a consciência social que elerevela,umpartidoindividualistaquedelonge,oudesde sempre vinha ao tramp de todos os filmes

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anteriores. Porque há que observar que o tribunoda «Liberty» é, por debaixo da sua máscara deHynkel/Hitler,oCharlotqueassimseviratrocadopor efeito do argumento. No seu duplo discursodramático,Charloté(pelaúltimavez!)oheróirealde O Grande Ditador.

O Charlot vítima dos Tempos Modernos, comodas Luzes da Cidade, «imigrante», «peregrino»,«boxeur» ou «patinador», em cada um dos ofíciosdoseudestinomítico,éopobre«barbeiro»fugitivoaquemascircunstânciasdãoumpoderdiscursivoirreal—sem que se possa saber (ou isso interessenocaso)oquelheaconteceránosminutosseguin-tesaoseudiscurso.ComoChaplinsemprenosderaapensar…MasChaplindisseratambém,pouco(?)antes,que,sealgumdiativessedeintervirnavidapública, não o faria através de uma farsa mas «doaltodeumatribuna».Eagora,sobrepondoastrêsimagens,de«Charlot»-«Hynkel»-Chaplin,ofeznaconclusãodeO Grande Ditador, numacondensaçãodepersonagens,decriadorecriatura(s),queexpõeo seu carácter e destino míticos.

E também foi de notar que o discurso tem umprimeirodestinatáriomoral,queéamãejudiadopróprio Chaplin, Hannah de seu nome—que foipropositadamente atribuído à companheira amo-rosamenteachadanofilme,estaPauletteGoddardquevimosvirdosTempos Modernos, assegurando--lhe uma esperança final, por hipótese que emO Grande Ditador desejavaconfirmar-se.Hannah,a mãe morta com grande desgosto de CharlesChaplineanovamulheragoraamadapretendem--se garantias do futuro proclamado, no momentoem que o argumento lhe dá voz e aparente poder.

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Mas sabe-se que na vida pessoal de CharlesChaplinassimnãofoiemboraassimsejanoanodeO Grande Ditador.

Pauletteintervémnumasegundapartedofilmeque começa com uma sequência cómica passadana Grande Guerra (do Charlot Soldado) em que amesma personagem se encontra do lado alemão,no serviço de uma bateria de artilharia a que nãose adapta—e o enorme canhão, na sua mecânicapersegue-lhe os gestos canhestros, numa ameaçainumana. Charlot faz o que pode e vê-se a salvarum oficial aviador tombado nas linhas da frente,por um acaso que só a ele pode assim acontecer.Noarmistíciodaderrotaalemã,Charlotéreduzi-do à sua vida civil em que consegue um empregode barbeiro, no bairro judaico (a que pertence)de Berlim. E nessa situação (em segunda partedo filme), encontra-se a braços com um bandode SAS do novo Partido Nacional Socialista queentretanto tomara conta do poder na Alemanha.São milicianos brutais que assaltam a barbearia,indopelaruaforaamarcaroscomérciosjudaicoscom estrelas de David. A jovem filha do barbeirointervémentãoeCharlotquejáacortejacomjeitosde dandy no seu trajar de imitação social que delonge vinha (e agora, um quarto de século depoisdasuainvenção,acusaaidadequeaChaplinviera,numdesajustequetemincidênciadramática),vaidefendercomunhasedentesafamíliaagredidaembonsgagsnalutadesigualestabelecidanarua.Elevaiser,porém,apanhadonalevadosSAS,quandoumaaltapatentepassandonumcarro,oreconhececomo seu salvador na guerra, e o salva da prisão,dando simpática proteção à família do barbeiro.

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Em que situação se encontrava então a Ale-manha é tema da sequência seguinte, passadanos paços do governo todo poderoso de Hynkelque nos é mostrado, sósia de Charlot, no seu far-damento nazi entre sinais de temeroso respeito.Os gags sucedem-se então, com Hynkel correndoatrabiliariamente a dar ordens ou perseguindo assecretárias com suas fúrias sexuais, ou recebendoinventores de paraquedas milagrosos que não seabrem,oqueolevaaarrancarasmedalhasaoseubarrigudomarechaldoarquelhoapresentara(queé, evidentemente, o Goering), ou a obter emprés-timos de banqueiros judeus—e sempre assistidopelo protetor de Charlot-barbeiro, impávido mascrítico; por isso ele vai conspirar contra o tirano,como convém à moral do argumento.

Hynkel e o mundo? Ei-lo que dança com umglobo terráqueo, grande balão cheio de ar quesalta,obediente,nassuasmãos,atéestoirar,comoé destino previsto para o tirano da Tomânia—elho será, histórico… Porém um tirano nunca estásó, e Hynkel recebe a visita de Estado do déspotada Bactéria, Benzino Napolini (que é Mussolini,pintadoeescarradonomelhorpapelquecoubeaopopular ator Jack Oakie), mas logo se disputam aposse do mundo, numa cena filmada na saborosatradição antiga do Mack Senett das tartes de cre-me pelos ares… Depois dos gags da chegada docomboiooficialquepara-nãoparanosítiodevido,edascadeirasquecompetemaosdoischefes,pro-curando elevar-se mecanicamente uma mais altodo que a outra, por afirmação de poder, e depoisda parada militar oferecida e só mostrada elipti-camente pelos olhos oficiais dos assistentes. Para

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confirmaroseupoderanteorival,Hynkelresolveinvadir a vizinha Austerlich (e já o fora, então, aÁustria)—provocandoumaconspiraçãocontraele(quehistóricaserá,massódaíaquatroanos)quevaicontribuirparaodesenlacedofilme:afugadoconspirador chefe que vai aproveitar a semelhan-ça física de Charlot, seu protegido, para o fardarde Hynkel e, na confusão provocada na corte doditador, hesitante perante a situação equívoca, ereceandoenganar-se,anteasupostareabilitaçãodoconspirador em desgraça, o falso Hynkel é levadoà tribuna—para o seu antidiscurso, urbi et orbi!

QueHannah,refugiada(naSuíça?)escutacomos pais judeus, numa esperança que subitamentese abre—e será a do futuro de um mundo livre,sem ditadores e suas guerras e perseguições.Ecomoamorenfimpossívelentreovelhotrampbarbeiro e a sua jovem amorosa. Serão outros«temposmodernos»esses,nummundorecuperadoem liberdade e fraternidade! Para isso, ainda doisanosdepois,Chaplincontribuirá,empropaganda,para os Estados Unidos abrirem a segunda frentede guerra na Europa—numa coerência de ideiase comportamentos, e de ilusões também, comose verá, na América e na Europa onde fará viverMonsieur Verdoux. Será sete anos e uma guerradepois, que não foi como Chaplin-«Hynkel»--«Charlot» a desejara, nem o estava a ser o seuperíodo seguinte.

Charlot conhecera a outra guerra, o breveperíodo entre essa guerra e a nova, a que assistiae para o qual deixava uma mensagem humanista.«Hannah» mãe e esposa (sobre o que muito temsido escrito) também não foi o que ele desejou e

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supôs, e Paulette não pode ter sido a destinatáriaidealdas suas palavras deesperança,pois queembreve o casal apartou as vidas, mais uma vez emdisputa.ParafalarmosnavidaprivadadeChaplin,dadaareconhecidaimportânciaqueelatemnasuavidadecriador,lembremosquesóEdnaPurviance,companheira do princípio, arredada friamente doseuconvívio,lhemantevefidelidade,atéaopontodevirapoderterpapelnonovofilmeemprepara-ção,aumquartodeséculodedistância.Veremos,porém,quenãopodiatê-lo,naeconomiadoMito,sempre em questão.

Falhou, portanto, O Grande Ditador, de certomodosocialepolítico,epessoalmentetambém,easuaimportânciaretórica,reduzidaàintervençãodiscursivafinal,fezcomquepassasseaumsegundoplano, mais particularmente anedótico, na obrachapliniana—mau grado os divertidíssimos gags,domundo-balãodançado,comoimagemrepresen-tativadairresponsabilidadepolíticaquegeriaessemesmo Mundo, ou, mesmo que antiquado, o das«tartes»decremelançadasàsbochechaseminen-tes de dois desses gerentes. Na verdade dos atosburlescos,outrosgovernantes,aliás,poderiamservisados,comojávimos,nofimdeCharlot Soldado, anos atrás…

A caricatura de Hitler (com o argumentoevidente do bigode quadrado que ele copiou deCharlot) põe um cuidado psicológico na sua his-trionia,quesómuitosanosdepoisteriacomparávelsatisfação na notável encarnação de Bruno Ganz,numaQuedadeHitler,deO.Hirschbiege,em2004,depois que G.W.Pabst tivesse tentado, em 1955,um Último Acto na vida do ditador, com um ator

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menos capaz. Mas não esquecendo o pobre diabodeatorinterpretadoporFelixBressart,afazerdefalso Hitler no ácido imbloglio de Lubitsch, em1942,comodepropósitointituladoTo be or not to be.Enãoignorando,também,emtermosdecinefi-lia,que,logoem1945,umfilme(deJohnFarrow),durava ainda a guerra, pusera em cena The Hitler Gang, comumpoucoconhecidoRobertWatsonnopapel do título, entre os seus acólitos.

Falhado, de certo modo, O Grande Ditadore nele sepultadas as esperanças inocentes deCharlot,seteanosdepoisChaplinrealizouMonsieur Verdoux, para nossa difícil edificação.

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6Monsieur Verdoux

Monsieur Verdoux foi apresentado em 1947 naAméricaenaEuropa(nãoemPortugal,ondeestevelongamente proibido), com um real insucesso noprimeirocaso,profundamenteadmiradoemFran-ça,logonafundamentalcríticadeAndréBazinnosCahiers du Cinéma;500milespectadoresemParisconfirmam a inesperada receção.

Os Estados Unidos viviam então numa para-noiaanticomunistaeohumordestrutivodofilmefoi interpretado num primeiro grau antissocial,que as contabilizadas 1000 exibições que teve(menos de 10% de qualquer filme rotineiro desérieB)traduziram,emprimáriaindignação.Fil-mevistocomoantiamericano,emborapassadoemParis,porprudenteálibi(comojá,eporidênticasrazõesaOpinião Pública, em1923)eleviriaaali-mentaracampanhaque,hámuitojá,fervilhavanasociedadeamericanacontraChaplin,eagora,apósos Tempos Modernos e O Grande Ditador, maisprofundamente se radicava num subconscientesocial suspeitoso de tudo e de todos, no grande

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pânicohistóricodomundoocidental.Eofactodeahistóriadofilmesepassarantesdaguerra(Ver-douxtem,nasuapedratumular,adatade1937),pior terá sido porque a sua conclusão apontavao caminho inexorável que à guerra ia conduzir.E porque, ao termo dela, mais medo estava fa-zendo a mecânica demonstrada, com uma friezaque também antidemocrática devia parecer aosmaiscomunsmortais,emseudesejadobem-estarque importava então não questionar… Como oscarneirosdorebanhoquejánoiníciodosTempos Modernos fora mostrado simbolicamente, comumaironiaacusatória.Umsenador«republicano»eumdeputado«democrático»reclamaramentãoa expulsão do cineasta estrangeiro…

Monsieur Verdoux reunia todos os elementos,direta ou indiretamente, para provocar crítica erepúdio («afronta à inteligência», foi escrito!),situando-se como se situa num plano de para-doxo que só dificilmente os espectadores podiamalcançar-se—mesmoaquelesquetinhamseguidoo destino do tramp, ou talvez que esses especial-mente, na sua inocência…

OmitoqueCharlotcriaranasociedadeociden-talpareciaagredidoporestahistóriadeMonsieurVerdoux, que se apresentava como a comedy of­ murder. A sua inspiração primeira, nos crimes deum certo Landru, que impressionaram a Françaao fim da outra guerra quando, em 1921, foi jul-gado e condenado à guilhotina pelo assassinatocalculado de uma série de mulheres seduzidas eroubadas, numa história que C.Chabrol havia delevar ao ecrã em 1962. Mas quem trouxe a ideia aChaplin foi Orson Welles, como ficou registado e

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nãofoicertamentecircunstânciaatenuante,dadaapersonalidadetambémsulfurosadorealizadordeCitizen Kaneque,em1941,puseracriticamenteemcenaummagnatetemidodasociedadeamericana,igualmente com escândalo significativo… Crimescontracrimes,alinhaficcionalofereciacompara-ção e sujeitava-se a represálias que Orson Welleshaviadetambémsofrer,pelavidaforaatémorreroitoanosdepoisdeChaplin,emexíliotambém,rea-lizaraele,poucoantes,emFrançaenoIrão,F f­or Fake, seuúltimofilmedeautor—meditaçãosobre«amentiraquefazcompreenderarealidade»,numdiscursotidodiantedacatedraldeChartres.ComoMonsieur Verdoux, perante a guilhotina…

Porque Monsieur Verdoux é também uma re-flexão sobre a realidade e a ficção, ou seja, entrea história tal como ela é feita, em mentiras ecompromissos, e a sua transmutação poética oumitológica—comonocasoacontece,nasequênciada obra chapliniana, em que o filme de 1947 põeumaconclusãodeterrível lógica,devidaemorte,desaparecidojá,nosabismosdaHistória,otrampliricamente inocente que tivera um quarto deséculo de vida. Monsieur Verdoux, a personagem,já não é Charlot, na sua aparência de gentlemanque o período pré-Charlot assumira, mas ainda oé, na medida em que Charlot sempre ambicionarasê-lo, na sua caricatura de fraque, coco e ben-gala… E neste ser e não ser Charlot no duplode Monsieur Verdoux ganha o novo filme o seusentido maior—no «Mito de Monsieur Verdoux»(A.Bazin), que é finalmente o mito de Chaplin.Ou o self­‑made‑myth com que nos defrontamos,passoapassodasuaexistênciabiografada,eentão

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culminada de modo a poder sobre ela refletir ocriador, sem ilusão nem temor, e no momentohistórico apropriado.

Monsieur Verdoux é quadro superior de umbanco em Paris, ou era, que a crise financeiramundial o fizera despedir, e resta-lhe o aspeto eo estilo de burguês às ordens da sociedade, bemposto para apresentação, jaquetão, colete cruza-do, plastrão de gravata, chapéu debruado de seda(«à banqueiro» dizia-se), luvas e bengala—comoCharlotsedesejara,tambémtrampdesempregado…Masnãoantecipemosanarrativaqueelaéperfeitana estrutura minuciosa do filme.

Naprimeirasequênciadele,trêsirmãsdemeia--idade,numasaladeprovíncia, inquietam-sepelafalta de notícias de uma quarta irmã, desde quelhesanunciaraumperfeito,emboraserôdio,amor.

Um sobrinho tem comentários desagradáveismasvê-seobrigadoatratardocaso,acompanhandoas damas a um comissariado de polícia, onde semanifestamprimeirassuspeitas,arelacionarcomoutros casos similares de damas de meia-idadedesaparecidas em tempos recentes. O comissáriointeressa-se, como se verá, ficando o argumentoem suspenso e ameaça.

Na segunda sequência, Monsieur Verdoux,requintado e de flor na mão, mostra uma viven-da bem recheada que anunciara para venda, auma dama elegante, sempre de meia-idade, quevem acompanhada pelo agente imobiliário—eele procura abordar com jeitos de sedutor quenão deixam de a perturbar. E mais ainda quandoele passa a mandar-lhe insistentemente, de umaflorista da vizinhança da sua residência, ramos

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e mais ramos de flores, com cartões inflamados,que emocionam a própria e mais jovem floristaque o cliente olha com gula, lembrando Luzes da Cidadeemcircunstânciasdramáticasopostasequeassim como que têm réplica.

Emaisaindaquando,aotelefone,eapóstantainsistência, o cavalheiro obtém um rendez‑vous da dama cortejada. Mas não antecipemos, que,numa terceira sequência, Monsieur Verdoux pro-cura convencer uma velha e desconfiada esposaa retirar os seus haveres do banco em ameaçaocultada de falência. Para, depois, elipticamente,a assassinar.

As imagens de um comboio que corre veloz,significam as viagens do Monsieur Verdoux,queagora,comodevemosentenderquesempre,regressaà sua própria casa idílica, no campo— quartasequência, em que uma jovem esposa paralíticao espera alegremente, com um pequeno filho,queixando-se das suas frequentes ausências. Quevãoembreveterminar,anunciaele,quandopudercompraracasa,masnegóciossãonegócios(quesãosupostos serem de antiguidades, num vago arma-zém),emtemposdifíceis.Nãoimpedindoissoqueaboaeducaçãoministradaaofilhoenvolvacensurasevera aos maus tratos que o garoto inflige a umgato doméstico. Não se deve ser cruel, na vida!

Mas ele deve partir para nova prática, e, emquinta sequência, vemo-lo, capitão de marinhamercante,chegardeviagemacasadeoutraesposaque o espera amantissimamente, com exage-ros de comediante que Martha Raye interpreta(sabe-se que Chaplin afinou o papel pensandoespecialmente nela), atriz famosa de musicals e,

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sobretudo,doextravagantefilmeburlescoquefoi,em 1941, Hellzapoppin. Ela tem uma energia devidaquemalsuportaoseu«capitão»,cujafadigaderepente surge diante dos olhos do espectador—eé,simbolicamente,maisdoqueadopróprioator…

Mas Monsieur Verdoux tem que matar tam-bém esta esposa insuportável, rica e atenta à suafortuna,eéumatentativadeenvenenamentoqueresulta mal, ou duas vezes resulta, com troca decopose,depois,comacriadapeladapeloefeitodabebidatraficada,numasituaçãoburlescasemsaída;e ainda ao procurar afogá-la e caindo ele à água.Éporissoqueelevoltaaoassaltodadamadasflores,obtendoaansiadaentrevista,numanovasequência.

Naverdade,elejánãoselembrabemdadamacortejada (que é Isobel Elsom) e é à criada quelhe abre a porta que se atira, em amoroso elã…Desfeitooengano(eoutro,quesesegue,comumaamiga dela), a dama defende-se dos seus assaltos,mas,naverdade,interessada,encontra,semsaber,num restaurante a rival Martha, para aflição doduplo amoroso que tem que escapar à situação,para manter as duas hipóteses em que afanosa-mente trabalha—fatigado, fatigado, ou farto davida a que se vê obrigado… Sabe-se que o papelesteve para ser dado à antiga parceira de Charlot(e mais do que isso de Chaplin), a desaparecidaEdnaPurviance(foramfilmadosensaios),masnãoseria possível já…

E vem a aventura final, no acaso de uma noitede chuva e de uma jovem que se abriga num por-tal,aquemeleacodecomoseuchapéu-de-chuva.Ela segue-o a casa, por não ter aonde ir, saída daprisão,porumahistóriadeamoreviuvezquelhe

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conta, com isso evitando que ele a mate, para ex-perimentarumveneno,comopensarafazer.Entre-tanto,porém,arodadafalsafortunadeMonsieurVerdoux rodara, uma crise catastrófica se abatesobreasociedade,morre-lheamulhereofilho(oumata-osele,porcaridade?).Eénumaparagemdetrânsito,narua,queelevoltaaencontrarajovemque não quisera matar. Ela vai num automóvelde luxo, com motorista às ordens, chama-o pelajanela,semqueeleaprincípioareconheça,entretantasmulheresdasuaexperiência.Depois,sim,eéumdiálogodeduasdesilusões,dohomemvelhoe pobre e da mulher jovem e rica (por casamentocomumfabricantedecanhõesaquemacrisederavantagem). Ela anima-o, quando ele recusa o seuconvite de entrar no carro. Não podem ter nadaa dizer, um ao outro. A não ser, ele, dizendo que«avidaestáparaalémdarazão,porissodevemosir avante»…

Falta ainda uma (ou duas) sequências paraMonsieur Verdoux poder terminar, na parábolacumprida.

É num restaurante que ele é reconhecido porumadasdamasdaprimeirasequência,que,comosabemos, viera a Paris na busca da irmã desapa-recida. Surpresa e terror da dama, hesitação dele,aover-sedescobertoereaçãoprontaparaescaparà perseguição que a dama lhe move, chamando ocomissário da polícia que seguia o caso. Mas paraquê, afinal? E Monsieur Verdoux, cumprindo oseudestino,faztudoparaseentregar,confundidonuma pequena multidão que o procura, como eleobserva, divertindo-se no jogo. Desmaia a dama adardecarascomele—queéentãopreso,tranquila-

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mente,identificando-se.Oprocessoérápido,paraesteassassinoconfessodeumadúziademulheres,que enumera, para facilitar o trabalho da políciae se ver livre, o mais depressa possível, do seudestino. Como aliás acontecera, historicamente,com o seu modelo Landru…

Sequência do tribunal e da cela da prisão decondenadoàmorteé,naturalmente,aúltima,comas declarações que Monsieur Verdoux tem quefazer, por assim dizer (e que é!) en beauté…

Essa beleza, sinistra, está nas graves palavrasque sucessivamente pronuncia o condenado, ouChaplincomentandooprópriofilme,quandocitaClausewitz a dizer, na frase famosa, de a guerraser «a continuação da política por outros meios»,para que o seu Monsieur Verdoux possa conside-rar que «o assassinato é a continuação lógica dosnegócios»…

EChaplincontinua:«Verdouxéumprodutodanossaépoca:aspessoascomoelesãocriadaspelascatástrofes.Elesimbolizaasperturbaçõescriadaspelasgrandescrisessociaiseeconómicasdonossotempo.» No seio delas, Monsieur Verdoux afirmacalmamente que «as guerras não são mais do quenegócios».Eacrescenta,comodemonstração:«Umsó assassinato, e és um bandido, milhões e és umherói, que o número santifica…»

Tivesseele,emvezdoseuartesanato,montadouma indústria de munições! No limite dos seusmeios de circunstância, Monsieur Verdoux, nãosendoumsimplesbandido,nãopodechegaraoníveldos heróis—mas não poderemos nós dizer que oseu caminho é, por paradoxo, o da santificação?

De «São Verdoux, Monsieur» foi chamado…

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Respondendo ao sacerdote que oficiosamentedeveacompanhá-loaopatíbulo,erecusandoacon-fissãoquelheéproposta,equejáfizeraaotribunaldos homens, Verdoux está certo de que, como lhepromete o padre, Deus terá piedade da sua alma,porque tal é a Sua função, e ao seu ministro per-guntaquepodefazerporele—quedopecadodosoutros vive… E aproveita a situação para provar ocopoderumquelheétradicionalmenteproposto:nunca tinha bebido e não quer morrer sem fazertal experiência.

E o seu tempo é agora limitado, como diz aosjornalistas que tentam entrevistá-lo—como aopróprio Chaplin, em perseguições da imprensamaldosa…

Monsieur Verdoux tem que ser condenado àmorte pelo tribunal, que, como na condenaçãoantiga de Sócrates (que já foi citada a propósito),«a justiça é o que é vantajoso ao mais forte».

E, rendendo-se a essa justiça, voluntariamente,Monsieur Verdoux vai pô-la à prova, obrigando-aa exercer-se contra ele: é ele quem vai levar a de-monstraçãoatermo—e,quandocaialâminadagui-lhotina(paraaqualavançasozinho,repare-se,semmulherqueoacompanhe)podeentender-sequesesatisfezoquod erat demonstrandumdetodaalógicaque o filme transporta, metaforicamente— comoà arte convém. Numa situação crística, também…EoensaiodograndecríticocatólicoqueéA.Bazindeve ser aqui evocado.

MonsieurVerdouxfezoquefez,enãoéamaisobrigado!

«Eu disse o que devia ser dito. Mais tardeentenderãooqueeuquisdizer»escreveraChaplin,

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apropósito dascríticas ideológicas deEisenstein.Eletinhaaconsciênciadeter«ultrapassadoatota-lidadedoslimitesconvencionais»,nesta«bomba»que explodia—ao fim da trajetória parabólica dasuaobra,repita-se.Contraprovado«mito-Charlot»(como escreveu A. Bazin, nomeando o «mito--MonsieurVerdoux»),ofilmerealmentelhecom-pletava o sentido ontológico.

Depois da discussão cómica do Bem e do Mal,queCharlotsempreconduziranassuasaventurasburlescas, vítima ou em vinganças de pontapé notraseiro dos perseguidores, sempre encarnaçõesdo Mal (polícias ou Keystone cops; mas não os aquemseentregaMonsieurVerdoux),contraasuainocência de tramp que representa o Bem (que é,em outro plano, a desse «Monsieur»)—no novofilme,odilemaénecessariamentetomadoemou-traordemdeideiasedesentimentos.EondeestáoBemeondeestáoMal,oespectadornãosaberádizê-lo! Porque, neste espelho da realidade que éMonsieur Verdoux, a imagem reenviada não é dasua superfície, mas da sua essência ontológica…

O termo vem obrigatoriamente à reflexão (re-flexão do espelho…) do espectador, nesta comedy of­ murder, que, como comédia, não põe o crimeonde ele parece estar. Se a referência ao casoLandru foi trazida por Orson Welles a Chaplin,a cedência deve pensar-se que é momentânea,porque, dois anos mais tarde, Welles interpreta-ria uma personagem com evidentes semelhanças,n’O Terceiro HomemdeCarolReededelepróprio,e também (muito) do católico Graham Greene,na múltipla leitura moral que tem, em questio-namento de Bem e de Mal. Sulfuroso Welles, o

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fascínio da história de «Henry Lime» nas ruínasexpressionistas de Viena foi compensado comgrandes prémios cinematográficos, em Cannes, edepois, num êxito continuado que abafou o queforaimpossívelaMonsieur Verdoux — comedies of­ murder,ambas,masdeagressividadediferente,narealidade oferecida…

Outra dimensão tem, porém, o filme de Cha-plin, que foi mostrada em França (J.-A. França,F. di Dio) e diz respeito ao Marquês de Sade eà sua obra. Discussão importante, no quadro daculturaocidentalpeloseuimagináriopoéticoqueno século xviii do Enciclopedismo se punha, emcontrastedeluzesesombrasdamodernidade,emque o romantismo se abismava, por assim dizer.A crueldade do «Divino Marquês», buscando osfundos da «alma humana», em seus perigos eameaças,foitrazidaàcomparação,entendendo-se,também, com Lautréamont, que «o génio podeservir a pintar as delícias da crueldade», e que,comentando-o, se vê que «a crueldade pode tertodasasespéciesderazões,exceptoanecessidade»(G. Bachelard, 1939).

A «desgraça virtuosa» da Justine sadeana e as«prosperidadesdovício»desuairmãJuliettenãose encontram elas, cena a cena, nos desaires deCharlotenossucessosdeMonsieurVerdoux?Estemata«Charlot»(comofoiditoeredito,semsemprese perceber porquê, mas que importa perceber):a vítima encarna-se em algoz, mas é condenadopor isso. E, ao mesmo tempo, por isso também, ésalvo—emsantidade…Aliás,ohorrorqueChaplinexperimentou, ao observar um dia uma cadeiraelétrica da civilização americana, é semelhante

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ao horror por Sade experimentado perante aguilhotina da recente civilização francesa—a queMonsieur Verdoux é condenado, só por se passarem Paris a sua história…

E,levandoainterpretaçãodeMonsieur Verdouxao domínio da psicanálise, já foi lembrado, comAnne Freud, que a sua conclusão reúne as trêsangústias que a autora descreve, essencialmente:a angústia «moral», que a sociedade provoca, aangústia«real»dasolidãodesejadapeloherói,eaangústia«instintiva»relativaaumanãosatisfaçãoíntima.

Assim,Charles«Charlot»Chaplinseprojetaem«MonsieurVerdoux»—tãodifícilquefoientendê--lo imediatamente! Em Portugal, muito cortadopela Censura, o filme foi exibido (tardiamente…)sob o título O Barba Azul…

Aquémdomuitoquesobreaobrasefoiescre-vendo,deváriasperspetivascríticaseideológicas,aindanãohámuito(2005),resumindoofilmenoseuútilGuide des f­ilmes,comfichasdemuitosmi-lharesdeles,ohistoriadorJ.Tulardpodiaescreveralgo sucintamente: «Vezes demais desconhecido,este filme é, porém, uma obra importante deChaplinondeseencontramassuasideiasservidaspor gags ainda muito divertidos…»

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7Luzes da Ribalta e Um Rei em Nova Iorque

Noverãode1951,quatroanosapósarealizaçãode Monsieur Verdoux, numa sala da sua casa deBeverlyHills,emHollywood,osamigosdeCharlesChaplinpodiamver,«encadernadoemmarroquimvermelho»,emcimadeumamesa,oprojetomuitoestimado de um novo filme, que seria Limelight (Luzes da Ribalta).Noanoseguinte,emmenosdedoismesesdeprodução,ofilmefoidadoàluz—nopróprio sentido que o seu título carreava…

O argumento é só de Chaplin, não lhe foisugeridoporninguém,eteveinícionumromance,Footlight,queescreveuesófoidescobertoepubli-cadoemFrançaem2014.DeChaplinsãotambémamúsicaeacoreografia,eafotografiamaisumavezfoi entregue a Rollie Totherot, como desde 1923,n’O Peregrino, na colaboração constante que aquiseterminou.MasChaplinteveentãoaassisti-lo,narealização,RobertAldrich,queteriagrandenomenocinemaamericanoejáforaassistentedeRenoire de J. Losey. Entre os intérpretes, está seu filhoSydney, ali estreado, com o meio-irmão Michael

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e as meias-irmãs Geraldine (votada a uma carreiranotável)eJosephine,entãomeninoemeninasde5,8e3anossó,numapontamentofamiliarquetinhaavercomanovaefelizvidamatrimonialdeChaplin,que se conhece—e que, a seguir à produção deLimelight, como sabemos, se mudou, em exílio,paraaSuíça,ondejáorealizadorpreparouassuasduasúltimasproduções,Um Rei em Nova Iorque eACondessa de Hong Kong,daíacincoouquinzeanos.

Luzes da Ribaltaéenãoéumfilmede«Char-lot», em que a personagem é lembrada em suasexperiências de clown, e mesmo no antecedentelondrino de music hall em que se formou. E emLondressepassaahistóriadeCalvero,velhoclownalcoólico, de carreira perdida.

Em Londres ganha ela sentido, longe do am-bienteamericanoemqueotramppassaravinte(ouvinteedois)anosdevidaatéaosTempos Modernosque não podiam ser seus, como se verificou, foratambém da sua experiência equívoca de barbeirojudeu em O Grande Ditador da Alemanha, e ain-da menos, se diria, por razões da sua encarnaçãomítica, de Paris, de Monsieur Verdoux, em 1937.Em Londres, o velho Calvero está em 1914, comoCharlotnesseanochegaraàAmérica,alfaeomegadasuatrajetória.Mastambémdevereparar-sequeo jovem Charlot teria podido cruzar Calvero nospalcosmiseráveisdaLondrespobre,noqueéumareferênciabiográficaindiretaqueimportasempre,na obra chapliniana, a ponto de Limelight poderser dito «filme de memórias».

A história é simples e mais uma vez regrada,em duas horas e vinte minutos de duração. Umvelho clown em decadência salva do suicídio uma

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jovem dançarina que se julga paralisada, anima--a, faz com que ganhe confiança para se tratar eleva-aatriunfarnasuaprofissão,atéaoestrelato;enquanto ele desaparece e se afunda na miséria,tocadordebanjonumtriodemúsicos,exibindo-seem tabernas. Aí o descobre a dançarina estrela econvence o diretor do seu teatro a organizar uma«gala» a favor dele—que aí conhece um últimosucesso, e morre em cena.

PsicologiaemoralsecombinamnestahistóriaemqueCharlottemasuaprópriareabilitação,porinterposta pessoa, que só tangencialmente é umamor seu, sendo-o do filho Sydney, que no caso orepresenta,emajustadaidade.Protetor-protegidoecompensadodasuabondade,«Calvero»-Chaplin,podedarnajovemestrelarespostadramáticaàúl-tima personagem feminina de Monsieur Verdoux.

Para isso contratou ele Claire Bloom, atriz docélebreOldVicshakespeariano,ondecontracenaracomRichardBurton,eentãoseestreia(ouquase)no cinema, para uma carreira brilhante de que seretirarálentamente.QuesepossaacharparecençafísicaentreajovematrizeajovemnovaesposadeCharles Chaplin, não será displicente…

Salva da morte por Calvero, Terry torna-sesimbolicamente uma criatura sua—como EdnaPurvianceouPauletteGoddardnassuassucessivaspersonagens,arredada,uma,domundochaplinia-no, ingratamente, como se julga, arredando-se aoutra, por sua própria ingratidão—e sem que jásejanecessárioaChaplin,casadoefeliz,umanovaassimilação pessoal.

Encontramo-nos sempre perante uma obrariquíssima de referências que importa situar,

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significativamente, na gesta chapliniana, comCharlot e Monsieur Verdoux nos lugares que lhessão devidos, e que em Limelight têm, ao mesmotempo, continuação, recuperação e solução.

As sequências articulam-se com a mestriahabitual, em drama dialogado (e mesmo senten-cioso—a que o cinema falado assumidamentepredispõe,naartedeChaplin,formadanocinemamudo), pantomina, bailado e gags de burlesco.Oclowninventa,porsugestão,umadançadepulgas( já experimentada em By the Sea, em 1915). Mas,regressado a casa, ébrio, como em One A. M., assuas reações não são de demonstração da hosti-lidade dos objetos do mundo, e sim gestos tristesdo quotidiano desgraçado. E também o clownd’O Circo agora perdeu a graça involuntária porse ver obrigado a tê-la por ganha-pão difícil. E opolícia que aparece no ballet (tantos perseguemCharlot!), como suposta ameaça, afinal é umapersonagem de simpatia; e tanto o é, que o pró-prio filho do realizador o interpreta com a idade(quaseexatamente)queChaplintinhanoanoqueé atribuído a Limelight…

Mas outra cena mais gravemente relembraCharlot—quando Calvero, depois do seu fiasco,troçado pela plateia que já não lhe aprecia osvelhos truques de music hall, regressa ao cama-rim para se desmaquilhar e, a pouco e pouco, aface envelhecida de Chaplin-«Charlot»-«Calvero»aparece. Em The Masquerader, na série Keystonede 1914, foi o contrário que se passou, quando oator se disfarçava no «Charlot» que o espectadorjáesperava;eassimacontecedepois,quando,pelaúltimavez,Calverosepintaparaseapresentarao

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público,eoespectadordeLimelightassiste,transi-do,àmetamorfose.Quevaipassar-senopalco,queacolhimentopoderáterovelhoclown,queajovemprocura, por seu turno, salvar também de umamorte moral? Será o triunfo—mas a morte tam-bém,queCalverovaimorreremcena,executandooseunúmero,numapiruetafatal.Eapardequem?

Aqui, a presença de outro velho ator de génioe popularidade esquecida, e seu exato contempo-râneo, intervém, num propósito que é nostálgico,certamente, mas, mais do que isso, numa acerbapoesiadecrueldadequeocinema(esóele,naso-breposiçãotemporaldassuasimagens)podefazer.E é a intervenção do grande Buster Keaton (dequemDeMillejáselembraraemSunset Boulevard,filmedelembranças,de1946)queemparelhacomChaplin-«Calvero» no sketch final e necessaria-mentefatal.Amortede«Calvero»-«Charlot»trazcomelaasobrevivênciado«Pamplinas»deoutrorae que por isso voltará ao ecrã ainda uma dúzia devezes depois, até morrer, em 1966.

«A velhice deve ceder o lugar à juventude»,diz a legenda de abertura de Luzes da Ribalta eassim Chaplin filosofa—ele que declara algures,por então, «desejar voltar a fazer o seu Kid, massendoagoraeleogarotodofilme…»Eosseustrêsfilhos,meninoemeninasqueaparecemnaprimei-ra cena do filme, a dizerem as primeiras palavrasdodiálogo,comocorodassuasvozitastitubeantes,representam,ousadamente,paraalémdopudordeque Chaplin não precisa, essa mesma passagemde gerações—para que o seu cinema continue noinconsciente coletivo a que se destina, e no qualse cumpre, miticamente, de geração em geração.

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Chaplin-«Calvero»éo«anti-Fausto»(escreveuA.Bazin),nestaobranecessariamentefáustica,emque o criador não procura recuperar a juventude,mas dramaticamente a cede, nela se projetando.

Já vimos que Élie Faure falou de Montaigne aseupropósito,efê-locomoquepremonitoriamen-te,queavelhicedeanoscontadoséagoraChaplinquem a assume e usa. Mas haverá que sublinharque, nesse ano de 1952 em que preparava Luzes da Ribalta, Chaplin disse, numa entrevista, que«nenhumdosjuízosfeitossobreasuaobralheterásido mais precioso que o de Élie Faure»…

Em outra entrevista, em 1948, quando corriatoda a campanha americana contra Monsieur Verdoux, e contra ele, numa história de paterni-dadeinventadapeloFBIe levadaa juízo,Chaplinprotestoucomum«Queremapanhar-me,masnãohão de consegui-lo!»…

Mais do que o exílio, no domínio do símbolo,Luzes da Ribalta é a prova provada de a América(ou o Mundo inteiro…) não terem conseguidoapanhar—quem? Charles Chaplin, escapando àsmalhas da lei («do mais forte»), mas, por detrásdele,o«Charlot»quemorrequandoentendemor-rer,jánãonamensagemfinald’O GrandeDitadornemnavingativaencarnaçãodeMonsieur Verdouxmasnacenaterminaldestenovofilme—tombadode borco numa caixa de bombo, em pirueta fatal,para morrer em uma outra beauté…

As «luzes da ribalta» que lhe ficaram fiéis,repudiadas as «luzes da cidade», ferozes e inu-manas, a que escapou, iluminam-lhe a derradeiraatuação—que é (como depois se vê, na cena damorte, entre os seus fiéis, num canto do palco),

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uma ressurreição. Dir-se-ia que «Verdoux» forasacrificado para que «Calvero» ressuscite…

Não, como se deve, em si próprio, mas nacarne dos outros, de «Terry» e dos filhos postosem cena—e de todos nós, por assim dizer, nestemomento liturgicamente solene.

Se «a vida não tem sentido», como Calverodissera à jovem dançarina, ela «é desejo», e háque vivê-la dia a dia, mesmo sem esperança, que«hábemmomentosassim».«Tudooquefazemosparaviveréahistóriadecadaqual,nossahistória,escrita em água», e nela sumida. Nestas palavrasdodiálogodeLuzes da Ribalta, asagezadeChaplin--«Calvero»éamesmaquepoderiatersidoenten-didaemChaplin-«Charlot»,ou,maisdificilmente,no plano do paradoxo, em Chaplin-«Verdoux».Agora, no seu último opus, Chaplin situa-se, comautoridadedaidade,noplanododoxo,queoutrasdificuldades de entendimento tem.

Luzes da Ribalta («… e então Limelight vem»,escreveu-se) oferece uma soma de interpretaçõesereflexões,namedidaemqueé,comofoidito,um«filmepóstumo».«Filmemelancólico,crepuscularedeprodigiosooptimismo,entreopassado,queotempoenterrou,comasuacurvamitológicacum-prida em Monsieur Verdoux, e o futuro, Luzes da Ribaltaéumacharneira»(foiescrito,continuandoassim:) «E o que há-de vir baila na alegria de‘Tierry’, dançando, borboleta partida para a vidae para o amor, lançada pela crisálida que morre,no apogeu da sua glória.»

A glória de Charles Chaplin vinha de longe,perto de quarenta anos já, três gerações tocadaspeloseufascínio;elaéagoratristementeexpressa,

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se pensará. A J. Tulard (que já vimos desfazer emMonsieur Verdoux)achandoqueorealizador«nau-fragounopiordosmélos»,outrocríticorespondeu:«Doquepoderianãotersidomaisdoqueumbanalmelodrama,Chaplin,pelasuaforçadeinspiração,pelanobrezadoseucoração,muitosimplesmentepeloseugénio,ofereceu-nosumaobraque(conti-nuamos a olhar) com os mesmos sentimentos deadmiraçãoedeemoção.»Efoitambémescrito,noInstitut des Hautes Études Cinematographiques,deParis,que«estatragédiaestavaprofundamenteligada ao mundo e ao século». Assim se passou oentendimento da obra chapliniana, «tragédia deuma grandeza shakespeariana, de ressonânciasfilosóficas e humanas infinitas».

Assim o entendimento da obra de CharlesChaplin,nestemomentodasuamaturidade(«Coma velhice, adquirimos um sentido mais agudoda dignidade, que nos impede de ridicularizar ohomem»,diz«Calvero»),seperfaz,comaconsciên-ciadocumprimentodomitoqueCharlesChaplinseconstruiu.Asuaarquiteturaterminara-secruel-menteemMonsieur Verdouxeeraagoraprecisoqueoseualter egorenascesse—paramorrerempaz…

Filme«póstumo»nalógicadavidasucessivaesobrepostade«Charlot-Hynkel-Verdoux-Calvero»,Luzes da Ribaltaéobradeumcriadorquevenceuamarguras pessoais e ofensas da História, e vaiplantar-seàbeiradeumlagotranquilodaEuropadassuasorigensrecuperadasequenostrêsúltimosfilmes, de uma maneira ou de outra (mesmo emcontradição dramática), se confirmavam.

ANovaIorque,comometáforadaAméricaquedeixara para não mais regressar, Charles Chaplin

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sóvoltarásubspeciesdeumirónicoreidestronado,para lhe dizer ainda verdades que restavam, nospoderes da sua imaginação—póstuma.

Um Rei em Nova Iorquefoirealizadocomopro-dução inglesa em 1956 quatro anos após Luzes da Ribaltaeé,emcertamedida,um«contofilosófico»,como foi dito, algo na lembrança do Candide deVoltaire,oudasLettres PersanesdeMontesquieu,porque se tratava de perguntar como se era ame-ricano nos anos 50 do século xx, supondo-se quetudoiapelomelhornacivilizaçãodoapósguerra,instalada em desconfianças e paranoias…

«Chaplin ajusta as contas com a América» foiditoedecertomodoassimé,mas,maisdoqueissotambém, mesmo que tomemos em linha de contaasdificuldadesqueoestablishmentlhetinhapostoe continuava a pôr.

Ahistóriaébemimaginada(terásidooconhe-cimentodaex-rainhadeEspanhafixadatambémnaSuíçaquefezgerminaraideianoseuespírito):oreiShadowdaEstróvia,nosBalcãs,édestrona-do por uma revolução na primeira sequência dofilme, e consegue fugir com o tesouro real paraos Estados Unidos, mas logo o perde nas mãosde cortesão mais esperto do que ele em finan-ças, assim se encontrando exilado e pobre, emNova Iorque. As atenções oficiais de que é alvo,ao princípio, esgotam-se no tempo que passa, darealpolitik americana, e também a curiosidademais ou menos respeitosa que despertara a ca-tegoria do régio exilado—este cavalheiro bemposto, como Monsieur Verdoux, da sua mesmaidade, em cabelos grisalhos, mas não usando jáde bigode petulante.

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Oreivisitaorfanatosfalsamenteexemplares,aseupedido(eissovaiterimportânciafundamentalparaasuaexperiênciaamericana),éentrevistadonas grandes cadeias da televisão (e uma jorna-lista de espertezas o assedia, fazendo-se à cortediscreta da Majestade), e acaba por se prestara publicidades, que os fundos se esgotavam eas contas começavam a apertar, rei ou não rei…As ideias que trouxera e pensava poderem serfavoravelmente postas em prática nos EstadosUnidos, e logo a da energia atómica como ins-trumento de paz e progresso, e jamais bélico, sãomaltratadas por uma Comissão do Senado, outra(deAtividadesAntiamericanas)logodesconfiandodelas,comopropagandasoviética,entãoéverdadeque ativa contra o emprego provável da bombaatómica, na guerra que se perfilava nas ameaçasde «guerra fria».

Cadaumadestassituaçõesérazãodeexcelentesgags, àcustadopobrerei(comoforade«Charlot»)ouàcustadopróprioamerican way of­ lif­epostoemxequeeemcaricatura.Numserãodecinemaoreitemquesuportarosfilmesmedíocresquelheofe-receagrandeproduçãocomercial,numdancingemmoda,aqueéconvidado,orock and rollconfunde--o, na suite do hotel, o televisor da sala de banhotemumlimpa-para-brisasquecombateosvapores,naentrevista aque se deixa convidar,encartesdepublicidade interrompem tudo quanto pretendedizer e, quando se sujeita a reclamar uma marcadewhisky ou um novo processo de tratamento depelequedeverejuvenescer-lheoaspetofacial,tudocorre fatalmente mal—Charlot, Charlot, presonum mundo em que tudo é publicidade coletiva

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e agressão individual! Ou continua a ser, cada vezmais, num histerismo quotidiano…

A muito é o rei Shadow levado pela jovemjornalista, que lhe é par lembrado das aventurasantigas, ou de filmes mais recentes, mas tem queser agente de um logro publicitário, paga para opôr em situação, e é a última parceira de «Char-lot», a jovem inglesa Dawn Addams, de carreirasecundáriaparaosseusencantostabelados—nelepodendover-seoreversodassimpáticasjornalistasdoCapraidealistaqueacabamajudandoasutopiasde «Mister Smith» ou «Mister Deeds», que iampara Washington…

Elaatraiçoa,colombina,aconfiançadoreiquedeixaraarainhaaopartirparaoexílio,masperdoa--lhe ao fim, tal como volta à esposa.

Noorfanato,oreidestacouumpequenointer-nado que contrastava com a boa educação ameri-cana, debitando longas tiradas marxistas de seuspaisrecebidas,comespantoedesolaçãodoreiquesedeuagrandesconversascomele—equeacabouporsaberqueasautoridadesotinhamdetalmodomanipulado em interrogatórios, que ele tinha de-nunciadoosprópriospais,convencidodaboarazãotidaporamericanadeessência.OpequenoRuperté interpretado por um filho de Chaplin, Michael,quenãoteriacarreiracinematográfica.Maselefoi,nestefilmecómico,umkiddenovaespécie(dede-nunciantes,entenda-se).Espéciedequeteriafeitoparte (quem sabe?) o seu próprio filho, se tivesseficado nos Estados Unidos, paraalémdeopiniõesque Chaplin sempre tinha negado…

A Comissão que o escuta é a mesma que citao rei Shadow, sem grande consideração pela sua

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hierarquia.AelasesujeitaChaplin-«Shadow»,masnão, como se esperaria, para um diálogo irónico,género Monsieur Verdoux, nem (como não seriapossível)paraumdiscursomoral,ouumadiatribegéneroO GrandeDitador.Asequênciarealizadaéantesdogénero«Charlot»,emseusgagsclássicos.«Euquisapenasfazerrir»,disseerepetiuChaplin,a propósito do filme—mas…

O «mas» está no desenrolar perfeito da cena:o rei chega atrasado à audiência, toma o elevadordo majestoso edifício e, por inadvertência, apoiaa mão numa mangueira enrolada na cabine, paradefesa de incêndios, e um dedo fica-lhe preso naagulheta.Aotentarlibertá-lo,omaisqueconsegueé desenrolar a mangueira em que se embaraçacada vez mais e que leva atrás de si, pelo corre-dor fora, ao dirigir-se para a sala da audiência.Desolado, vexado, o rei tenta explicar o que lhesucede, perante os auditores ofendidos e a ajudaque procuram dar-lhe. E acontece então o quedeve logicamente acontecer, na cena portentosa:a mangueira liga-se automaticamente à condutade água, retesa-se como uma cobra, ganha corpo,saltanoare,desúbito,umpoderosoesguichopartedaagulheta,libertandoorégiodedo,ejorrasobreo tribunal, encharcando tudo e todos, juízes, Co-missão,assistência,comumacalamitosafúriaquenadadetémeassimlivrementeseexprime,numalavagem simbólica de todo o processo oficial, emsuamaldadeeestupidez!EassimrespondeChaplin--«Shadow»(comoChaplin-«Hynkel»,comoChaplin--«Verdoux»),àsociedadequeháanosopersegue…

O argumento de filme tem de ilibar o rei exi-lado de toda a presunção condenável (ou outro

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filme teria que suceder a este…) e Shadow deixaos Estados Unidos, com uma última cena de des-pedida triste do kid perdido na sua submissão aoestablishment.

A cena da mangueira, objeto infernal na in-dependência que adquire, deve ainda recordar ofilmeOne A. M. (Charlot Boémio),de1916,nasualutacomoutrosobjetosqueselibertam,maldosos,da normalidade do seu emprego, e outro gag dofilme leva à lembrança de The Cure (Charlot nas Termas), de1917,nacenadaporta-tamboremqueoreiShadoweCharlotseembrulham,comotam-bém Monsieur Verdoux, há que não esquecer. E adescriçãomímicadoesturjão,norestaurante,ouacenadodentista,simulada,sãopeçasdoreportóriodeCharlotqueserenovam—edemodoalgumosgags são «raros e pesados» como, mais uma vez,J.Tulardcriticou.Entreeles,masnãoemefeitodecomicidade,estáomonólogodeHamlet,queorei,a pedido, recita—e que é uma das pretensões deCharles Chaplin, que se conhece. O que interessana circunstância, mais do que a forma do recita-tivo, são as palavras existenciais de Shakespeare:este «ser ou não ser» em que Chaplin-«Shadow»se encontra, rei exilado, na Suíça residente, numlar recomposto, com perto de 70 anos de idadeagora…

Dequalquermodo,éoúltimofilmedeCharlesChaplin, segundo epílogo da sua obra, após o me-lancólicoLuzes da Ribalta.Emelancólicotambém,ao refletir, através da imagem propositadamenteequívoca do jovem escolar que vê retornado pelopensamentooficialamericano,novokidquejánãopodeeducar,eaquemdá,emaflitivacontraprova,

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apessoadoseuprópriofilhoMichael.PoderáessefimencobriracenadaComissãopolíticatratadaajato de mangueira, num banho de limpeza contratodas as situações antidemocráticas do mundo edasuaHistória—ouficaránanossamemóriaestederradeirogagcomosímbolodesejadodocompor-tamentolivreelibertadodoshomens?Lembremoso fim (censurado) de Charlot nas Trincheiras…

«Eu quis apenas fazer rir», disse Chaplin—como se dissesse que é no riso que está a nossasalvação…

* * *

Últimofilme,porém,nãofoiLuzes da Ribalta,que, no remanso de Vevey, Charles Chaplin foicongeminando lentamente um outro filme queseria, dez anos mais tarde, em 1967, A Condessa de Hong Kong.

Trata-se como não terá sido bem entendido,nahistóriadasespéciescinematográficas,deumasof­isticated comedy, como Chaplin vira produzirno Hollywood dos anos 30 e 40, tomado pelocinema sonoro desejoso de diálogos teatralmentevalorizados,comvedetasquenemsemprepodiamvir do tempo do mudo. Capra, em It Happened One Night (Uma Noite Aconteceu), de 1934,LaCavaemMy Man Godf­rey,de1936,ouCukoremThe Philadelphia Story, de 1940, títulos célebres,fixaram a espécie, que foi tendo exploração aindano pós-guerra, mas que se extinguira, na procurados espectadores, nos anos 60—quando Chaplinimaginou a sua história de um milionário ameri-canoque,noacasodeumaescalaemHongKong,

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passaumanoiteanimadadecabaretcomtaxi girl refugiadarussaqueconseguesegui-loclandestina-mentenopaquete,nodesejodechegaràAmérica.Daíasconsequências lógicasdoargumento—quelevamomilionárioaacabarporseapaixonarpelaincómoda aventureira que é, na realidade, umacondessarussa…Ahistóriaacabaembem,comasperipéciasqueasituaçãopromoveequeprofissio-nalmenteChaplinresolve,dirigindo,comevidentedificuldade,duascélebresvedetascontratadasparao efeito: Marlon Brando e Sophia Loren, vindo,um, do estilo do Actor’s Studio, já com um Oscar em 1954, outra do neorrealismo italiano, e já dezanos de carreira americana, oscarizada tambémem1961.Difícilseriasempreaintegraçãodosdois«monstrossagrados»numfilmequeoutro,deoutracategoria,dirigia,demaneiraincertacomoambossequeixaram.Ahistóriapassarademoda,eogéniode Chaplin não era apropriado a uma renovação,nem nela parecia interessado—e o filme sofreuum fiasco cuja explicação vai de uma própria eadmissível decadência dos dotes de Chaplin, atémenores acidentes de uma produção mal domi-nada.Nomeiodele,porém,Charlotaparecenumarábulaintroduzidanofilme,comocriadodebordoairromperdesastradamentenocamarote—comoapareceraem1923naOpinião Pública,nafiguradeumbagageiro.Éumsinal,somente,dapersonagemdefunta,paragáudio,ainda,dosespectadores.Umcurto papel dado ao filho mais velho, Sidney, essenãotemjá,certamente,significadofamiliar,comoteve no Um Rei em Nova Iorque.

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8O último gag de Charles«Charlot» Chaplin

… Carlos Chaplin, el últimopadre de la ternura en el mundo.

Pablo Neruda, Canto General

Charles Chaplin viveria ainda dez anos, comosabemos, e coberto de honrarias, até americanas,com um Oscar de honra, pela totalidade da suaobra ou um Leão de Ouro de Veneza (que a Mon‑sieur Verdouxnãopoderiatersidoatribuídonem,depois, a Luzes da Ribalta, se se tivesse pensadoemprudenteconsolação),eànobilitaçãobritânica.Paraalém,ouaquémnaverdadedetodooapreçoda crítica, universal apreço em que qualquer vozpoliticamente discordante não poderia contar, nahistória do cinema.

A sua tranquila morte foi um choque em todoo mundo da cultura — que «depois de Picasso ede Chaplin, não havia já ninguém para significa-tivamentemorrer,naculturaocidental»,comofoiescrito. Como se escreveu também que tal morte«deixou órfã a humanidade»…

Não morreu, porém, Charles Chaplin, que, namagia do cinema, a sua imagem mantém-se vivanosecrãsdoplanetaemreexibiçõessucessivas,ouDVD caseiros—que, para além das obras, em sua

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economia de ficção e sentido, sucessivas imagensdoseucriadorvivassereanimamnanossamemó-ria, como presença permanente.

Masdeoutromodotambém,eburlesco,comodevia ser, Chaplin teve um epílogo de carreira,único na história da cultura de todos os tempos,sediria—numainsólitaperipéciadehumornegro.ÚltimogagdeCharlot,sedisse,ecomorealmentefoi! E só dele poderia ter sido…

Falecido na noite de Natal de 1977, dormindo,comosabemos,eummêsapenasdepoisdeteridover,pertodesuacasa,umespetáculodecircoqueplantaratendanumaaldeiavizinha.Gag sepoderiaimaginar,nasuamorte,vendo-otomarasasnessedia litúrgico e voar pelo céu do seu destino…

Mas a imaginação chapliniana post mortemreassume toda a crueldade lógica de MonsieurVerdoux e realiza ainda um derradeiro e porten-toso gag.

Não três dias (enfim…) mas três meses após asuasepultura,ocorpodeCharlesChaplinfoirouba-do,noqueéumaformasimbólicaderessurreição.

Duraram dezassete dias as buscas da políciasuíça e da Interpol, chamada aflitamente emreforço,paraencontrarosdesaparecidosdespojos.Hipóteses (que poderiam dar rushes de Monsieur Verdoux) foram avançadas pela imprensa, rádiose televisões ávidas de sensacional. Os raptoresteriam sido um grupo neonazi a querer vingar amemória de Hitler-Hynkel, ou de antissemitasqueprotestavamcontraasepulturadeum«judeu»num cemitério cristão, ou de terroristas de qual-queroutrareferênciaideológica,paraobteremumaforte indemnizaçãocontraaentregado corpo; ou

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mesmo algum admirador fanático que desejasseconservar secretamente os restos do ídolo… Mastelefonemas insistentes dos raptores, que deslei-xaramprecauçõesprofissionais,permitiramasualocalização—tudo se resolvendo com a recupe-ração do cadáver e apreensão dos bandidos. Quebandidos afinal não eram, mas dois emigrantesbalcânicos (como o rei Shadow…) que planearamumgolpequelhespermitiriamontarumagaragem,como confessaram à polícia… Pobres diabos, dedesastrada incompetência, perdidos num sonhode êxito social, pobres charlots da sociedade deconsumoquelhesderaideiasdesucessoefortuna…O caso inspirou, já em 2014, o excelente filme La Rançon de la Gloire a Xavier Beauvois.

Quatro anos mais tarde, inaugurou-se, emLeicesterSquare,nocentromundanodeLondres,umaestátuadeSirCharlesChaplin,comadevidasolenidade—mas, desta vez, ao desvendar o mo-numento, o Lord Maire não descobriu, abrigadono seu seio, Charlot, o tramp de outrora… Ele vai,porém, protagonizar o museu de figuras de ceraque, em 2016, será inaugurado em Vevey.

Um renovamento de interesse por Charles«Charlot» Chaplin está a verificar-se nos últimosanos: depois de duas edições de escritos inédi-tos (ou esquecidos) realizadas em 2014, está empreparação a publicação dos volumosos arquivosconservados na propriedade de Vevey.

Se deve ser esquecida a ambiciosa (e longuís-sima) produção inglesa de 1992, assinada porRichardAttenborough(porémexcelenterealizadorde Gandhi, dez anos atrás) que, com defeituosoargumentoeumpoucocredívelRobertDowneyJr.

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a encarná-lo, pretendeu biografar Chaplin, desdea sua infância até ao O Grande Ditador—melhorserviço lhe fora prestado, em 1989, num coló-quio internacional organizado por A. Nysenholc,comemorando o centenário de nascimento deChaplin, realizado em Paris, na Cinemateca e naSorbonne—onde o seu «último gag» foi ampla-mentediscutido,aofalar-sedoseumundo,doseuhumor, e do «destino de um mito».

* * *

Porque, ao fim desta parada dos filmes deCharlesChaplin,deummitoháquevoltarafalar.

Asencarnaçõessucessivas,esóaparentementecontraditórias, de Chaplin-«Charlot» permitemtraçar a curva impecavelmente lógica de um des-tino imaginário, humano e de ficção, poético, emsuma,emavataresemqueasmitologiassejogam,mortalmente.«Amorterealizaodestinodetodooheróidemitologia,cumprindoasuaduplanature-za,humanaedivina.Realizaelaasuahumanidadeprofunda, que é de lutar heroicamente contrao mundo, de afrontar heroicamente uma morteque acabará por o destruir. Ao mesmo tempo, elarealiza o herói na sua natureza sobre-humana,diviniza-o, no sentido de lhe abrir as portas daimortalidade»—assimescreveuosociólogofamosoque é Edgar Morin, a outro propósito que aquiessencialmente se acerta.

«Luta heroica contra o mundo», foi-a tendoCharlot, na medida das suas pobres posses detramp a defrontar-se com os brutos da riqueza eda ordem estabelecidas; «afrontar heroicamente

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uma morte que acaba por o destruir», afrontou-aMonsieur Verdoux— alfa e omega do destino mi-tológico.Sobreelepodefinalmenterefletir,clownao morrer em apoteose, gerando simbolicamentequem,embelezadearte,ovaicontinuar,e,depoisainda,paranãodeixaralgoporentenderaosmenosentendedores, na demonstração do rei Shadow,de mangueira em punho, mesmo que (Charlotoblige…) involuntariamente!

E nesse périplo transoceânico ( já, agora,para além do mare nostrum de Ulisses…) sobre--humanamente se revela e cumpre o herói,divinizando-se Santo Verdoux a caminho do patí-bulo—como um certo marquês de Sade, «DivinoMarquês»chamado…Enissoabrindo-se«asportasda imortalidade»; ambos, aliás, no entendimentocultural do nosso mundo des Lumières, e des Om‑bres, necessariamente também. Que, «por efeitode uma relação sempre possível, na ordem dasbênçãos, excepcionais recursos são manifestadospelaenormidadedasfaltas»,escreveuoutrofilóso-fo, Roger Caillois, falando de L’homme et le sacré,e eu volto a citar, falando de Chaplin.

Tratando de Charles Chaplin (1889-1977),cineasta e ator dramático inglês, atuando pertode quarenta anos no centro cinematográfico dosEstados Unidos, estamos a falar de um «homemlucidíssimo e angustiado que produziu uma dasmais profundas obras artísticas do nosso tempo,queentendeuedisseestarnaimaginaçãoosegre-do da felicidade, (d’)este homem que faz parte danossapossibilidadedeentendimentodomundoedenóspróprios—equecontinuaahabitaranossaesperança». E também (há sessenta anos) escrevi

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que,namagiadocinema,«eleérealizadorporquetornareal.Porque f­az real. Porquenostornareais,anós,realizando-seasi».«Naordemdasbênçãos»,no«domíniodosagrado»emqueohomemsedeba-te,comopodeesabe,nasuaesperançanecessária,se souber, com Chaplin (que o disse em Luzes da Ribalta) que «a vida é desejo»…

EmTempos Modernos,Charlotlimitou-searidi-cularizaradesordemgeraldacivilizaçãodominadapela máquina e seus interesses capitalistas, emO Grande Ditador Charlot condenou o sistemapolíticodaíresultante, emúltimarazão do poder,nummanifestogritadodoaltodeumatribuna,emMonsieur Verdoux,aacusaçãofoifeitapeloabsurdo,eminvertidarazão.Nenhumaesperança,portanto?

Quesim!UmvelhoamigodeChaplincontaque,em Hollywood, em 1948, olhando ambos, de umaaltajanela,umamultidãodegentetratandodavidaquotidiana, esse amigo, referindo-se às persegui-ções que então visavam Chaplin disse:«sons of abitch!», e Chaplin respondeu que não, que eramtão-somente«poordevils»—não«filhosdaputa»,como pareciam, mas «pobres diabos», vítimas desi próprios… Esperança, então?

Não é certo—e as respostas melancólicas dosdois filmes posteriores, dos anos 50, em líricomelodrama ou em farsa de fazer rir (a cena damorte de Calvero num canto de palco de music hall, e a irreprimível rega aplicada às autoridadesmacarthistaseosseus12milhõesdeperseguidos,pelo rei Shadow) vão deixar ainda vinte anos devida e de exílio a Charles Chaplin.

Deenvelhecimentotambém,queA Condessa de Hong Kongtraduz,semdesculpaquedêouselhepeça.

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AmortedeCharlesChaplin,jávimoscomofoi(na noite de Natal, insista-se!), o que depois, emúltimo e terrível gag aconteceu, também.

Asuamortedisse-se(oudisseeu)que,comelae com a de Picasso, quatro anos antes, não ficavamaisninguémparamorrer,naculturaocidentaldeentão—ou, digamos também, que depois.

Lembre-se, porém, que Almada Negreiros,que sobre Charlot escrevera apaixonadamente,como vimos, em 1921, morrera três anos antesde Picasso—todos os três criadores da mesmageração que deu uma «arte moderna» ao mundo.Como Proust, se levarmos o rol significativo dasinvenções formais fundamentais, até ao domíniodaliteratura.Edepoesia?ElehátantapoesiaemChaplin e em Picasso!…

Mas Chaplin morreu também no ano em quedesapareceu o último dos irmãos Marx, Groucho,quefizeraMonkey Business,aomesmotempoqueChaplin Luzes da Cidade e Um Dia nas Corridaslogo depois de Tempos Modernos e Go West (quefoi A Quimera do Ouro dos famosos brothers) aotempo de O Grande Ditador. Os irmãos Marx,que deram ao cinema do seu tempo uma originaldimensão de disparate poético…

O«MundoNovo»queCharlotevocaranamen-sagem final de O Grande Ditador, em esperançavista para além das trevas do momento históricoatravessado,entremilíciasbrutaisdebraçolevan-tado berrando «vivas» de saudação mortal, essemundonãonasceudepoisdeHynkel-Hitlerterempodido ser enterrados, que outros viviam aindae operavam—como mostrou Monsieur Verdoux,recuandometaforicamenteaumperíodohistórico

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anterior,emidênticoprenúnciodecriseeconómi-ca, política e moral.

«A vida está para além da razão», diz Calvero.Entendaquempuder…«Sófaloàspessoascapazesdemeentender;essasmelerãosemperigo»,decla-raraSade,talcomoChaplin-«MonsieurVerdoux»enãosó,poderiaterdito,aospobresdiabosolhadosdo alto—formigas igualmente vistas por Lime--Orson Welles no Terceiro Homem, de simbólicasalturastambém—elequederaaideiadoargumen-to a Chaplin, e lha cedera, em boa camaradagemde réprobos de Hollywood…

Em 1927, na altura dos primeiros ataques daAmérica puritana contra a sua pessoa, que eramtambém, de causa a efeito, contra a sua criatura,os surrealistas de Paris escreveram sobre CharlesChaplinque«elepensoucomclareza,comacerto,tantascoisasmortaisdasociedade,eencontrouomeio de dar ao seu pensamento uma expressãoperfeita e viva, sem traição, uma expressão dehumor e de farsa, uma expressão poética».

Charlot, então, o quê? Um amoroso transido esemprerebuscandooamorouneledeclinando,porfim, a sua sucessão, «um sonhador, um poeta queamaascriançaseasrosas,quesabeoqueéoassas-sinato—quesabe,apenas,quedeveviverequetemmedo». É a própria definição que Charles Chaplinlhe dá — e neste amor buscado, e neste medo queo envolve, vítima permanente da sociedade, o mitose desenvolve, define e se assume, em própria (self­)criação.Comoemmaisnenhumcriadornalongahis-tóriadaculturaocidental,talvezpossamosterobser-vado.Como(ousareidizê-loaqui?—talvezbrincando,talvez não…) uma espécie de Zé Povinho universal!

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Foi isso, também, efeito da magia desta artevindadepoisdasoutras,doParnaso—7.ªdita,emsua ordem cronológica.

* * *

O Essencial de Charles Chaplin, para respon-der à questão posta pelo título da coleção, comoé dever dos signatários dela, bibliografando (oumuseografando ou cinematografando) os autoresescolhidos, em letras e artes, põe problemas deseleção, que são, sempre, de gosto e de memória,e de informação—que no caso em exame é, emlargamedida,facilitadopelaininterruptaexibiçãoe reedição da obra do autor, em cinemas, cine-matecas, televisões, DVD e disquetes, depois dasinocentes edições em 8 mm para sessões infantisedomésticas,daantigaPathé-Baby,jánosanos30disponíveis pelo mundo fora.

Apela então o signatário para as lembrançasdos leitores, ao propor-lhes os seguintes títulos,sem ordem cronológica que nos condicione, semrazões que já foram dadas, mas com ordem depreferências.

Elasitua,obviamente,emprimeirolugar,Mon‑sieur Verdoux, e depois, pelo seu encanto, diria,Luzes da Cidade. Mas essenciais são também, àdefinição do mito Chaplin, Tempos Modernos eO Grande Ditador, contando depois, se não igual-mente, A Quimera do Ouro e Luzes da Ribalta.E,apóseste,parapôrtermo,comoChaplinpôs,ànossa reflexão, Um Rei em Nova Iorque.

Assim se enumeram os principais filmes deCharles Chaplin, em longas-metragens. Não será

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O Circo tão essencial no seu todo, mas sobretudopor seus gags. No seu todo, porém, são essenciaisasmédias-metragensdeO Garoto de Charlot,estekid da sua ternura, e O Peregrino, pelo continuumperfeito do seu argumento.

Em todas as dezenas de curtas-metragens, umou outro filme mais se lembra, mas sobretudoficam na nossa memória, gag a gag, sejam nunssejam noutros.

E eles serão então essenciais ao nosso diver-timento e ao nosso gosto, por exemplos mais oumenosfamosos—elogonosininterruptosdesairesde Charlot Boémio (One A. M.). Mas Charlot éCriado de Caf­é,éDentista,abraçoscomoserviçodemesaoucomosgasesanestesiantes;etrabalhanum banco (The Bank) em limpeza e recados,guardando o balde e a vassoura no cofre-forte ecolando um selo na língua de um conhecido; oué Ladrão (Police), com tentações de reincidênciaao sair da prisão, ou D. José em Carmen, bate-secom Escamillo; é Patinador (The Rink) desas-trado, ou luta com a mecânica de um escalatore de um ascensor em The Floorwalker, e com osinstrumentos de Bombeiro (como a mangueiraquereaparecerá,edequemaneira!noUm Rei em Nova Iorque); é falso Conde, nas perseguições deuma receção mundana; é Prestamista, e é a cenado despertador que desmonta e depois recusa aocliente;éEvadido (The Adventurer) efogeaocercoda polícia. Na Rua da Paz (Easy Street), impõe-seà consideração do bairro, Nas Termas (The Cure)embrulha-se numa porta-tambor, defende-se deum enorme massagista, e deita aguardente nafontetermal;em1918encontra-seNas Trincheiras

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(Shoulder Arms), trocaospassosnasmanobras—eacabaporaprisionaroKaiser!…Emigrante, éarre-banhado diante da estátua da Liberdade do portodeNovaIorque,comenumpratoquevaideumaoutropassageirodaiiiclasse,consoanteobalouçodo paquete, vê-se em aflição de pagamento numrestaurante; acode a um mascarado preso numaarmaduramedieval,comumabre-latas,jogaogolfecom bolas alheias, e vinga-se do desprezo da The Idle Class;noDia de Pagamento,constróiacelera-damente uma parede de tijolo—e n’O Circo temquesehavercommacacosimpertinenteseoutrosanimaisdequedevetratar,presonumahistóriadeamor infeliz, que é já de 1928.

Cada leitor se lembrará destas e de outrascenas,hilariantesoumelancólicas,nasuaprópriaescolha,quedezenaspodemserrepertoriadas—etodas essenciais serão…

* * *

… Mas um dia (foi publicado em 1951) CharlesChaplincontou,comumesboçodeplanificaçãovi-sual,aideiaquetinhaparaumfilmequedesejava,oudesejariafazer—eeledeveservir-nos,hipoteti-camenteembora,entreosessenciaismencionados,eaocabodeles.Econfirmandoasituação«crística»evocada na morte de Monsieur Verdoux.

«Num night club, como todos os outros. Umpúblico de luxo. As mesas bem servidas de cham-panhe. Atracções, variedades—e a escuridão.A orquestra começa a tocar e o director aparecea anunciar o número principal do espectáculo,que atraía toda a gente. Levanta-se então o pano

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sobre um cenário representando o monte doGólgota, com as suas três cruzes. O Cristo e osdois comparsas adiantam-se, muito aplaudidos.Esãoentãocrucificadosnopalco.Cristomorre,eonúmerotermina.Osespectadoresvoltamadançarou pedem a conta.»

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Filmografia de Charles Chaplin

1914 (série Keystone — curtas‑metragens)

Making a Living, Kid Auto Races at Venice, Mabel’s Strange Pre‑dicament, Between Showers, A Film Johnnie, Tango Tangles, His Favorite Pastime, Cruel, Cruel Love, The Star Boarder, Mabel at the Wheel, Twenty Minutes of­ Love, Caught in a Cabaret (Charlot Criado de Caf­é), Caught in the Rain, A Busy Day, The Fatal Mallet, Her Friend the Bandit, The Knockout, Mabel’s Busy Day, Mabel’s Married Lif­e, Laughing Gas (Charlot Dentista),The Property Man, The Face on the Bar Room Floor, Recreation, The Masquerader, His New Prof­ession, The Rounders, The New Janitor, Those Love Pangs, Dough and Dynamite(Pastéis e Dinamite),Gentlemen of­ Nerve, His Musical Career, His Trysting Place, Tillie’s Punctured Romance (As Bodas de Charlot—6 partes), Getting Acquaited, His Prehistoric Past.

1915 (série Essanay — curtas‑metragens)

His New Job, A Night Out, The Champion, In the Park, The Jitney Elopement, The Tramp (Charlot Vagabundo), By the Sea, Work (Charlot Aprendiz), A Woman, The Bank, Shanghaied, A Night in the Show;1916—Carmen(4partes),Police (Charlot Ladrão); 1918—Triple Trouble.

1916 (série Mutual — curtas‑metragens)

The Floorwalker, The Fireman (Charlot Bombeiro), The Vaga‑bond, One A. M. (Charlot Boémio), The Count (Charlot Aldrabão),The Pawnshop (Charlot Prestamista),Behind the Screen, The Rink (Charlot Patinador); 1917—Easy Street (Charlot na Rua da Paz), The Cure (Charlot nas Termas),The Immigrant (Charlot Emigrante), The Adventurer(Charlot Evadido).

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1918 (série First National — curtas‑metragens)

A Dog’s Lif­e (Uma Vida de Cão), The Bond, Shoulder Arms (Charlot nas Trincheiras—4partes);1919—Sunnyside (Um Idílio nos Campos), A Day’s Pleasure (Um Dia Bem Passa‑do); 1921—The Kid (O Garoto de Charlot), The Idle Class;1922— Pay Day (Dia de Pagamento); 1923—The Pilgrim(O Peregrino—4 partes).

Série United Artists ( longas‑metragens)

1923—A Woman of­ Paris (Opinião Pública).1925—The Gold Rush (A Quimera do Ouro).1928—The Circus (O Circo).1931—City Lights (Luzes da Cidade).1936—Modern Times (Tempos Modernos).1940—The Great Dictator (O Grande Ditador).1947—Monsieur Verdoux (O Barba Azul).1953—Limelight (Luzes da Ribalta).1957—A King in New York (Um Rei em Nova Iorque).1967—The Countess f­rom Hong Kong (A Condessa de Hong

Kong).

[Títulos portugueses das quatro séries estabelecidos por Lauro António (1969), que f­oi possível «determinar com exati‑dão».]

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Bibliografia selecionada (cronológica)

DELLUC, Louis, Charlot, 1921.CHAPLIN, Charles, My Trip Abroad, 1922 (trad. portuguesa:

A Minha Viagem pela Europa, s. d.).____, My Autobiography, 1964.____, Mon tour du monde, 2014.____, Footlights, 2014.POULAILLE, Henry, Charles Chaplin, 1927.SOUPAULT, Philippe, Charlot, «La Grande Fable», 1931.ROBINSON, Carlyle T., La Vérité sur Charlie Chaplin, 1933.ULM, Gerith von, Charlie Chaplin: King of­ Tragedy, 1940.LEPROHON, Pierre, Charles Chaplin, 1946 (trad. port., 1962).TYLER, Parker, Chaplin: Last of­ the Clowns, 1947.BAZIN, André, Le Mythe de Monsieur Verdoux, 1948.HUFF, Theodore, Charlie Chaplin, 1951.COTES,P.,eNIKLAUS,T.,The Little Fellow,The lif­e and work

of­ Charles Spencer Chaplin, 1951.SADOUL, Georges, Vie de Charlot, 1952 (trad. port., 1962).FRANÇA,José-Augusto,Charles Chaplin, le «self­‑made‑myth»,

1954 (trad. port., 1963 e 1989—ed. Livros Horizonte).VIAZZI, Glauco, Chaplin e la Critica, 1955.MARTIN, Marcel, Charles Chaplin, 1966.ROBINSON, David, Chaplin, His Lif­e and Art, 1985.NYSENHOLC, Adolphe, Charles Chaplin ou la légende des

images, 1987.MITCHELL, Glenn, SANDRIN, Carole, e STOURDZÉ, Sam,

Charlie Chaplin, 2014.

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O Essencial sobre

1 Irene Lisboa Paula Morão

2 Antero de Quental Ana Maria A. Martins

3 A Formação da Nacionalidade

Ana Maria A. Martins

4 A Condição Feminina Maria Antónia Palla

5 A Cultura Medieval Portuguesa (Sécs. XI e XIV) Maria Antónia Palla

6 Os Elementos Fundamentais da Cultura

Jorge Dias

7 Josefa d’Óbidos Vítor Serrão

8 Mário de Sá Carneiro Clara Rocha

9 Fernando Pessoa Maria José de Lancastre

10 Gil Vicente Stephen Reckert

11 O Corso e a Pirataria Ana Maria P. Ferreira

12 Os «Bebés-proveta» Clara Pinto Correia

13 Carolina Michaëlis de Vasconcelos Maria Assunção Pinto Correia

14 O Cancro José Conde

15 A Constituição Portuguesa Jorge Miranda

16 O Coração Fernando de Pádua (2.ªedição)

17 Cesário Verde Joel Serrão

18 Alceu e Safo Albano Martins

19 O Romanceiro Tradicional J. David Pinto-Correia

20 O Tratado de Windsor Luís Adão da Fonseca

21 Os Doze de Inglaterra A. de Magalhães Basto

22 Vitorino Nemésio David-Mourão Ferreira

23 O Litoral Português Ilídio Alves de Araújo

24 Os Provérbios Medievais Portugueses

José Mattoso

25 A Arquitectura Barroca em Portugal Paulo Varela Gomes

26 Eugénio de Andrade Luís Miguel Nava

27 Nuno Gonçalves Dagoberto Markl

28 Metafísica António Marques

29 Cristóvão Colombo e os Portugueses

Avelino Teixeira da Mota

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30 Jorge de Sena Jorge Fazenda Lourenço

31 Bartolomeu Dias Luís Adão da Fonseca

32 Jaime Cortesão José Manuel Garcia

33 José Saramago Maria Alzira Seixo

34 André Falcão de Resende Américo da Costa Ramalho

35 Drogas e Drogados Aureliano da Fonseca

36 Portugal e a Liberdade dos Mares

Ana Maria Pereira Ferreira

37 A Teoria da Relatividade António Brotas

38 Fernando Lopes Graça Mário Vieira de Carvalho

39 Ramalho Ortigão Maria João L. Ortigão

de Oliveira

40 Fidelino de Figueiredo A. Soares Amora

41 A História das Matemáticas em Portugal

J. Tiago de Oliveira

42 Camilo João Bigotte Chorão

43 Jaime Batalha Reis Maria José Marinho

44 Francisco de Lacerda J. Bettencourt da Câmara

45 A Imprensa em Portugal João L. de Moraes Rocha

46 Raul Brandão A. M. B. Machado Pires

47 Teixeira de Pascoaes Maria das Graças Moreira de Sá

48 A Música Portuguesa para Canto e Piano

José Bettencourt da Câmara

49 Santo António de Lisboa Maria de Lourdes Sirgado

Ganho

50 Tomaz de Figueiredo João Bigotte Chorão

51/ Eça de Queirós52 Carlos Reis

53 Guerra Junqueiro António Cândido Franco

54 José Régio Eugénio Lisboa

55 António Nobre José Carlos Seabra Pereira

56 Almeida Garrett Ofélia Paiva Monteiro

57 A Música Tradicional Portuguesa

José Bettencourt da Câmara

58 Saúl Dias/Júlio Isabel Vaz Ponce de Leão

59 Delfim Santos Maria de Lourdes Sirgado

Ganho

60 Fialho de Almeida António Cândido Franco

61 Sampaio (Bruno) Joaquim Domingues

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62 O Cancioneiro Narrativo Tradicional

Carlos Nogueira

63 Martinho de Mendonça Luís Manuel A. V. Bernardo

64 Oliveira Martins Guilhermed’OliveiraMartins

65 O Teatro Luso-Brasileiro Duarte Ivo Cruz

66 Almada Negreiros José-Augusto França

67 Eduardo Lourenço Miguel Real

68 D. António Ferreira Gomes Arnaldo de Pinho

69 Mouzinho da Silveira A. do Carmo Reis

70 O Teatro Luso-Brasileiro Duarte Ivo Cruz

71 A Literatura de Cordel Portuguesa

Carlos Nogueira

72 Sílvio Lima Carlos Leone

73 Wenceslau de Moraes Ana Paula Laborinho

74 Amadeo de Souza-Cardoso José-Augusto França

75 Adolfo Casais Monteiro Carlos Leone

76 Jaime Salazar Sampaio Duarte Ivo Cruz

77 Estrangeirados no Século XX

Ana Paula Laborinho

78 Filosofia Política Medieval Paulo Ferreira da Cunha

79 Rafael Bordalo Pinheiro José-Augusto França

80 D. João da Câmara Luiz Francisco Rebello

81 Francisco de Holanda Maria de Lourdes Sirgado

Ganho

82 Filosofia Política Moderna Paulo Ferreira da Cunha

83 Agostinho da Silva Romana Valente Pinho

84 Filosofia Política da Antiguidade Clássica Paulo Ferreira da Cunha

85 O Romance Histórico Rogério Miguel Puga

86 Filosofia Política Liberal e Social

Paulo Ferreira da Cunha

87 Filosofia Política Romântica

Paulo Ferreira da Cunha

88 Fernando Gil Paulo Tunhas

89 António de Navarro Martim de Gouveia e Sousa

90 Eudoro de Sousa Luís Lóia

91 Bernardim Ribeiro António Cândido Franco

92 Columbano Bordalo Pinheiro

José-Augusto França

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93 Averróis Catarina Belo

94 António Pedro José-Augusto França

95 Sottomayor Cardia Carlos Leone

96 Camilo Pessanha Paulo Franchetti

97 António José Brandão AnaPaulaLoureirodeSousa

98 Democracia Carlos Leone

99 A Ópera em Portugal Manuel Ivo Cruz

100 A Filosofia Portuguesa (Séculos XIX e XX)

António Braz Teixeira

101/ O Padre António Vieira102 Aníbal Pinto de Castro

103 A História da Universidade Guilherme Braga da Cruz

104 José Malhoa José-Augusto França

105 Silvestre Pinheiro Ferreira José Esteves Pereira

106 António Sérgio Carlos Leone

107 Vieira de Almeida Luís Manuel A. V. Bernardo

108 Crítica Literária Portuguesa (até 1940)

Carlos Leone

109 Filosofia Política Contemporânea (1887-1939) Paulo Ferreira da Cunha

110 Filosofia Política Contemporânea (desde 1940) Paulo Ferreira da Cunha

111 O Cancioneiro Infantil e Juvenil de Transmissão Oral

Carlos Nogueira

112 Ritmanálise Rodrigo Sobral Cunha

113 Política de Língua Paulo Feytor Pinto

114 O Tema da Índia no Teatro Português

Duarte Ivo Cruz

115 A I República e a Constituição de 1911

Paulo Ferreira da Cunha

116 O Capital Social Jorge Almeida

117 O Fim do Império Soviético José Milhazes

118 Álvaro Siza Vieira Margarida da Cunha Belém

119 Eduardo Souto Moura Margarida da Cunha Belém

120 William Shakespeare Mário Avelar

121 Cooperativas Rui Namorado

122 Marcel Proust António Mega Ferreira

123 Albert Camus António Mega Ferreira

124 Walt Whitman Mário Avelar

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