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Natália Balbi Amatto O Estranho e o Estrangeiro Monografia submetida ao Departamento de Línguas Estrangeiras Modernas da Universidade Federal de Juiz de Fora, como parte dos requisitos para a obtenção do grau de bacharel em Letras: ênfase em Tradução - Inglês, elaborada sob a orientação da Prof. Dra. Maria Clara Castellões de Oliveira. Juiz de Fora Faculdade de Letras Universidade Federal de Juiz de Fora Abril 2007

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Natália Balbi Amatto

O Estranho e o Estrangeiro

Monografia submetida ao Departamento de Línguas Estrangeiras Modernas da Universidade Federal de Juiz de Fora, como parte dos requisitos para a obtenção do grau de bacharel em Letras: ênfase em Tradução - Inglês, elaborada sob a orientação da Prof. Dra. Maria Clara Castellões de Oliveira.

Juiz de Fora

Faculdade de Letras

Universidade Federal de Juiz de Fora

Abril 2007

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AGRADECIMENTOS A Maria Clara:

Por não me deixar desistir. Pelo impenho, paciência, esíimulo e por tudo o que me ensinou, para a traducão e para a vida,

A meus pais, Carmelia e Antonio Carlos:

Por acreditarem em mim e me apoiarem em todas as minhas escolhas,

Faculdade de Letras Juiz de Fora

Abril de 2007

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SUMÁRIO

Introdução..............................................................................................4 Capítulo 1 Leituras em torno de Venuti..................................................................13 1.1. As leituras de Frota e Gentzler....................................................14

1.2. As propostas de Venuti diante do contexto latino-americano.....18

Capítulo 2 Testando Hipóteses……………………………………………………..23 Conclusão.................................................................................................34 Referências Bibliográficas........................................................................37

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Introdução

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Friedrich Schleiermacher, no ensaio "Sobre diferentes métodos de tradução"

(1813), detectou a existência de dois métodos básicos de tradução que, mais tarde,

Lawrence Venuti nomeou domesticação e estrangeirização em seu livro The

translator's invisibility (1995). Esses métodos se constituiriam a partir de motivações

a princípio excludentes, quais sejam, a de levar o texto até o leitor ou a de conduzir o

leitor até o texto. A esse respeito, Venuti fez o seguinte comentário:

Admitindo que a tradução nunca se adequará completamente ao texto estrangeiro, Schleiermacher permitiu que o tradutor escolhesse entre um método domesticante - uma redução etnocêntrica do texto estrangeiro aos valores culturais da língua de tradução, trazendo o autor de volta pra casa -, e um método estrangeirizante, - uma pressão para o afastamento desses valores, visando registrar as diferenças língüísticas e culturais to texto estrangeiro, enviando o leitor para o exterior (VENUTI,1995, p. 20, minha tradução).

Uma tradução estrangeirizante registraria diferenças lingüísticas ao ser mais

literal, ou seja, privilegiando a estrutura lingüística do original, enquanto uma

tradução domesticante seria aquela livre para transformar a estrutura do texto original,

adaptando-a às características lingüísticas da língua meta - priorizando o sentido e não

a forma.

Se relacionadas aos procedimentos técnicos da tradução propostos por Jean Paul

Vinay e Jean Darbelnet, abordados por Heloísa Barbosa em procedimentos técnicos

da tradução: uma nova proposta (1997, p 46-55) e a seus dois eixos - tradução direta

e tradução oblíqua - a tradução domesticante estaria relacionada à tradução oblíqua,

que produziria "um texto idêntico ao que sairia espontaneamente de um cérebro

monolíngüe" (BARBOSA, 1997, p. 47). Já a tradução estrangeirizante "implicaria em

uma tradução apenas literal – que nem sempre teria como resultado a forma mais

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natural" (BARBOSA, 1997, p. 48), ou seja, a forma como um falante da língua de

chegada escreveria aquele mesmo trecho.

Durante o curso de Bacharelado em Letras: Ênfase em Tradução - Inglês da

Universidade Federal de Juiz de Fora, porém, me deparei com traduções em que não

houve por parte dos tradutores a escolha pela adoção de um dos dois métodos com

exclusividade. Essa inconstância no uso dos dois métodos de tradução fora tema de

Milene Borges para a monografia de conclusão do mesmo curso (2002). Nela, Borges

constatou a existência de uma tendência de os tradutores de textos ficcionais se

valerem de ambos os métodos durante a realização da tradução de um mesmo texto,

tendência essa por ela denominada “instabilidade do tradutor”.

Diante de tal instabilidade, avaliada criticamente durante o curso, a primeira

impressão era a de que o tradutor não tomara o cuidado necessário para homogeneizar

seu texto, deixando-o anacrônico e não obtendo qualquer um dos efeitos propostos

pelos dois métodos. Assim, consideramos que nem a leitura se dava de maneira

fluente - como se fosse um texto escrito na própria língua de tradução -, nem ficava

marcada a cultura da língua original da maneira como esperávamos - levando em

conta nossos conhecimentos dessa língua e da cultura do original e da própria língua

de partida, além de nossos preconceitos sobre o assunto.

A proposta deste trabalho, a princípio, era a de avaliar como essa instabilidade,

nos níveis lingüístico e cultural, interferiria na compreensão dos leitores de um

determinado texto traduzido. Percebi, porém, que deveria levar em consideração que a

maneira crítica como conduzi a leitura dos textos em que considerei haver essa

instabilidade não era a maneira como um leitor não-profissional a faria e sim como

faria um tradutor ou estudante de tradução (enfim, um leitor especializado), como era

meu caso.

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Assim, a avaliação do impacto da instabilidade passou a ser apenas uma das

etapas para a validação de uma questão levantada durante as primeiras pesquisas a

respeito da dicotomia estrangeirização/domesticação: a de que essas noções deveriam

ser definidas a partir da recepção do texto traduzido por um determinado público-

leitor, ao invés de em função dos procedimentos tradutórios adotados.

Schleiermacher aborda a escolha e o impacto do uso de um dos dois métodos

levando em consideração a bagagem cultural do autor e do tradutor no

desenvolvimento de uma tradução, quais dessas bagagens o tradutor optaria por usar e

quais deixaria de lado, visando determinado efeito na recepção. Ele aborda o tradutor

enquanto leitor da obra original e a influência de sua bagagem sobre suas impressões

e interpretações da mesma, porém não enquadra o leitor do texto traduzido da mesma

maneira e sim como um ponto previsível envolvido no projeto de tradução.

Deve-se questionar, porém, a possibilidade de se definir o caráter

estrangeirizante ou domesticante de uma tradução tendo o autor, o tradutor e o leitor

uma relação distinta com a língua de chegada. Segundo Venuti, "uma tradução

domesticante inscreve nos textos estrangeiros valores lingüísticos e culturais

inteligíveis para comunidades domésticas específicas" (1995, p.20). Tomando como

base conceitos pós-estruturalistas, em que uma palavra pode dizer coisas diferentes

para pessoas diferentes em comunidades e em períodos históricos diferentes, somente

sendo possível construir ou desconstruir significados baseados nessas diferenças,

deve-se questionar a possibilidade de definir o que é inteligível ou não, uma vez que

cada leitor é um indivíduo dotado de uma formação lingüística e cultural bastante

específica e pessoal.

Ao usar a idéia de "inscrição", Venuti trata o caráter domesticante ou

estrangeirizante de um texto de forma prescritiva, algo sobre o qual o tradutor tem

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absoluto controle e escolherá as formas de fazê-lo. Acredito, porém, que a visão geral

do tradutor sobre determinado assunto ou mesmo sobre uma determinada língua

estrangeira pode diferir por completo da visão dos envolvidos no processo de leitura.

Assim, para dizer que o tradutor leva o autor até o leitor, o que representaria uma

tradução estrangeirizante, dever-se-ia, antes de tudo, considerar qual a bagagem

cultural, história e lingüística desse leitor e a influência das mesmas na recepção.

É preciso considerar que atualmente ocorre uma crescente diluição entre as

fronteiras do que seria considerado domesticante e do que seria considerado

estrangeirizante por parte do leitor de uma tradução, em especial quando uma das

línguas envolvidas nesse processo é a língua inglesa. Essa diluição pode ser atribuída

à aquisição do status de língua franca pelo inglês, uma vez que é ela que vem

dominando o mundo da Internet, do entretenimento (cinema, TV, música) e dos

negócios, por exemplo.

Assim, a reflexão de Schleiermacher sobre qual seria a função do tradutor ao

optar por um dos dois métodos, pensada no início do século XIX, não poderia ser

sustentada nos dias de hoje, pois pressupõe que o tradutor seja capaz de definir qual a

posição dos leitores em relação à língua original de um texto:

A diferença entre ambos os métodos e o fato de que esta sua relação seja contraditória ficam necessariamente evidentes. No primeiro caso, a saber, o tradutor está empenhado em substituir, através de seu trabalho, a compreensão da língua de origem, que falta ao leitor. Ele tenta transmitir ao leitor a mesma imagem, a mesma impressão que ele próprio teve através do conhecimento da língua de origem da obra, de como ela é, e tenta, pois, levá-los à posição dela, na verdade estranha para ele (SCHLEIERMACHER, 2001, p. 43)

Como dito, as redes de comunicação desenvolvidas nas últimas décadas, como as

comunicações por satélite, as telecomunicações móveis e, sobretudo, a Internet,

permitem uma fluidez da informação que Schleiermacher não poderia conceber. Com

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essas transformações, o perfil do tradutor em muito se transformou, não havendo, nos

dias de hoje, limites à quantidade e à variedade de informações às quais esse

profissional tem acesso. O mesmo se pode dizer dos leitores.

A globalização da informação, da comunicação e os movimentos migratórios

caracterizam, hoje, as sociedades atuais, transformando-as. Contudo, esse processo

não é democrático. É impossível supor a quantidade de informação que um

determinado leitor possui em relação a determinada língua, a determinado assunto, a

determinada cultura. Assim, é também impossível determinar se existe ou não - e em

que medida - essa falta de compreensão do original e se uma tradução dita

estrangeirizante causaria ou não estranheza a seus leitores.

O leitor precisa ser considerado enquanto um indivíduo inserido – e também

participante – nesse processo de globalização da informação. Com o aumento da

facilidade (real ou virtual) de deslocamento de um país para outro, as fronteiras do

conhecimento não são mais ditadas ou limitadas pelo país de origem ou pela língua

materna de um indivíduo. E tampouco podem ser supostas, uma vez que a

proximidade imposta pela globalização configura os tempos em que vivemos e gera

mudanças culturais a ritmos muito acelerados. Além disso, o desenvolvimento

científico e tecnológico, verificados no campo da informação, colocaram novas

necessidades de comunicação aos povos do mundo, valorizando-as, o que tem

repercutido, também, num expressivo estímulo à aprendizagem de línguas,

divulgando-as significativamente.

Assim, outro argumento de Schleiermacher que atualmente não procede é o de

que "assim como um país, a pessoa tem de se decidir a pertencer a uma ou outra

língua; ou oscila sem segurança em infeliz equidistância" (2001, p. 71). Esse

argumento de Schleiermacher pressupõe que cada língua seja simplesmente exterior à

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outra, existindo assim dois pólos opostos - a língua materna e a língua estrangeira -,

sendo possível optar por um deles exclusivamente. Essa concepção se encaixa no que

Jacques Derrida chamou de lógica do complemento, que segundo Silviano Santiago

em Glossário de Derrida (1976, p. 14): "está ligada ao pensamento da metafísica

ocidental, à lógica da identidade e da presença. Supõe, portanto, a presença das

dicotomias clássicas, como dentro/fora, bem/mal, etc".

Somente seria possível, no entanto, dizer que um termo é oposto ao outro se

cada um deles possuisse um significado transcendental isolado, alheio ao significado

de outros termos - da mesma língua ou não. Para Derrida, em Torres de Babel (2002,

p 44), "a existência de um nome absoluto em um idioma absoluto na sua pureza é

impossível [...] esta marca só pode ser o que ela é numa relação de diferenciação e,

portanto, de contaminação". Assim, estando as línguas "contaminadas" umas pelas

outras, a língua materna não seria oposta à língua estrangeira, e os métodos

estrangeirizante e domesticante não seriam opostos um ao outro, sendo a relação entre

esses métodos melhor definida pela lógica do suplemento: "o suplemento é uma

adição, um significante disponível que se acrescenta para substituir e suprir uma falta

do lado do significado e fornecer o excesso de que é preciso" (SANTIAGO, 1976, p.

88).

Ao invés de discutir o impacto da escolha de determinado método de tradução

no desenvolvimento de uma cultura - que aspectos da cultura estrangeira ou nacional

essa escolha valorizaria, sob quais interesses, etc - é preciso considerar como uma

cultura, desenvolvida de uma determinada forma, sob determinados interesses,

influenciará a maneira como uma tradução é feita e, principalmente, recebida. O

caminho a ser aqui percorrido tem o leitor como foco. O que determina a naturalidade

do uso de um determinado termo ou conceito é o que o leitor conhece ou o que

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reconhece neste termo ou conceito. O leitor atual lerá um texto traduzido de forma

atual, com uma multiplicidade de interpretações determinada por diferentes

influências.

Desta forma, só na fase de leitura do texto traduzido se poderia avaliar a

relevância ou não da bagagem cultural e lingüística de um dado leitor, que levaria ou

não à existência do estranhamento atribuído ao método estrangeirizante. O método

contrário, o domesticante, poderia incluir o uso de elementos do original se

considerarmos fazer juz à língua de tradução incluir elementos estrangeiros que a ela

já são naturais, especialmente em se tratando de países como o Brasil, que

tradicionalmente procuram dar conta das tradições estrangeiras que atuam sobre seu

contexto de forma crítica, contrastando-as com as tradições nativas.

Assim sendo, essa monografia passa a se construir como uma crítica à tipologia

tradutória sugerida por Schleiermacher e utilizada por Venuti, pois ao se definir o que

seria uma tradução "estrangeirizante" e o que seria uma tradução "domesticante" a

repercussão desses procedimentos para uma comunidade leitora - que possui

peculiaridades econômicas, políticas e sociais - não é considerada.

Schleiermacher, e posteriormente Venuti, não somente posicionou os métodos

estrangeirizante e domesticante como opostos, como também privilegiou o último -

sem considerar o sujeito leitor. Tais conceitos deveriam deixar de ser socialmente

construídos para constituir-se em função de comunidades de leitores bem menores do

que aquelas pretendidas por Schleiermacher e até mesmo por Venuti.

Este trabalho partirá de uma análise de como teóricos da tradução, ao realizarem

suas leituras e críticas sobre os principais pontos das teorias de Venuti que serviram

de base para sua definição de "dometicante" e "estrangeirizante", se aproximam do

que desejo demonstrar, sem, no entanto, incluir o leitor final da tradução em suas

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análises. Procurarei demonstrar a importância da inclusão desses leitores nessas

análises através de um levantamento que tem como principal objetivo mostrar a

impossibilidade de generalização, a necessidade de se considerar a singularidade -

cultural, social, lingüística - de cada um desses sujeitos-leitores, o que impossibilitaria

a definição de um texto como em si "domesticante" ou "estrangeirizante" durante a

realização de uma tradução.

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1. Leituras em Torno de Venuti

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No primeiro momento deste capítulo, procurarei mostrar em que aspectos as

leituras de Lawrence Venuti feitas por Maria Paula Frota e Edwin Gentzler se

aproximam do que busco questionar com este trabalho: a possibilidade de se aplicar

no contexto atual da tradução (século XXI, mundo globalizado) os conceitos de

estrangeirização e domesticação de Venuti.

Em seguida, analisarei os papéis do tradutor e leitor latino-americano em seu

contexto, em contraste com os papéis do leitor e tradutor tal como elaborados por

Venuti ao elaborar esses mesmos conceitos, valendo-me, para tanto, de pensamentos

de Ivone Benedetti e Silviano Santiago.

1.1. As Leituras de Frota e Gentzler

A análise da teoria da invisibilidade do tradutor de Lawrence Venuti realizada

por Maria Paula Frota, no livro A Singularidade da Escrita Tradutória (2000),

focaliza não só as críticas que Venuti tece às posturas teóricas tradicionais (como o

modo etnocêntrico de traduzir e a dicotomia liberdade/fidelidade), como também

algumas propostas que o teórico apresenta. Frota aborda a teoria da invisibilidade

proposta pelo autor e tematiza questões como a diferença e a subjetividade na

linguagem.

Segundo Frota, Venuti chama a atenção para a forma como as traduções são

escritas e lidas (p. 74). Porém, percebo que essa leitura se refere muito mais à leitura

do original por tradutores, críticos e estudiosos da tradução do que à leitura do texto

traduzido por leitores “comuns”. Assim, quando a autora analisa a relação sujeito-

linguagem, ela toma a noção de “sujeito” como sendo algo limitado e específico. Essa

noção fica clara quando a autora descreve o objetivo de sua análise: “mostrar como

uma abordagem da linguagem que prioriza sua dimensão histórico-ideológica acaba

por restringir o alcance da intervenção do tradutor e até mesmo concebê-la como uma

manifestação consciente que separa sujeito e linguagem” (p. 71).

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A autora trabalha sobre tudo aquilo que lhe "parece ser dito explicitamente ou

sugerido acerca do tradutor, da linguagem e das diferentes formas de pensar a relação

entre os dois” (p. 72). Como base de sua análise crítica, Frota propõe que se leve em

conta a subjetividade de cada sujeito-tradutor, sua relação singular com a linguagem,

buscando, assim, desvendar como se dão as inscrições do tradutor na tradução.

Segundo a autora, a singularidade seria “como uma diferença que, vinculada a

histórias próprias do sujeito que (se) escreve, extrapola diferenças vinculadas a

sistemas lingüísticos e a formações discursivas” (p. 19), marcando assim a

subjetividade inconsciente do “sujeito” nos desvios, na instabilidade que influencia a

leitura e, conseqüentemente, nesse caso, a produção.

Minha intenção vai além da de Frota, pois pretende considerar também um

"sujeito-leitor" que possui uma relação tão complexa e singular com o tradutor e com

o texto traduzido quanto este possui com o autor e o texto original. Noções de

domesticação e estrangeirização, da forma como são definidas por Venuti, não levam

em consideração esse sujeito-leitor.

O trecho abaixo, retirado do ensaio Sobre Diferentes Métodos de Tradução, uma

das principais bases para a teorização de Venuti sobre estrangeirização e

domesticação, parece-me contraditório nos termos atuais:

Cada pessoa é dominada pela língua que fala, ela e seu pensamento são um produto dela. Uma pessoa não poderia pensar com total certeza fora dos limites dessa língua; a configuração de seus conceitos, a forma e os limites de sua combinabilidade lhe são apresentados através da língua na qual nasceu e foi educada, inteligência e fantasia são delimitadas através dela. Mas, por outro lado, toda pessoa que pensa de uma maneira livre e intelectualmente independente também forma a língua a sua maneira (SCHLEIERMACHER, 2001, p.37).

O domínio sobre um indivíduo atribuído à língua materna é atestado como se esta

fosse algo isolado, fechado, ou como o próprio autor escreve, limitado. Isso vai

contra a última frase do trecho, que atribui a cada pessoa a liberdade de formar a

língua à sua maneira. Ao fazê-lo num mundo em que hoje vivemos, informado pela

Internet, por mensagens em tempo real, entre outras tecnologias, um indivíduo não

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seria o produto de sua língua materna, e sim de tudo a que fora exposto. É preciso

considerar que um mesmo conceito pode ser exposto de diferentes formas a

pessoas que possuem a mesma língua materna, não sendo possível definir como

cada um desses indivíduos assimilaria tal conceito e o usaria na formação de "sua

língua".

Muitas texturas, crenças, materiais e linguagens específicos nos são

apresentados desde sempre em uma língua estrangeira, contribuindo para a formação,

à nossa maneira, de nossa língua. Essa "mistura" faz com que, hoje em dia, não se

possa falar em delimitação de conceitos por uma única língua. Quanto mais exposto a

uma determinada língua estrangeira durante sua formação, mais um indivíduo

encarará com naturalidade sua possível influência na língua materna. Assim aponta a

citação abaixo, de Edwin Gentzler, retirada do livro Translation and Power (2002):

“A tradução se dá de um ambiente multilingual e multicultural A para um ambiente B

- que com frequência é igualmente multicultural e multilingual [...], envolvendo

encontros complexos com novas situações; e tradutores contemporâneos são

extremamente abertos à mistura de texturas, crenças, materiais e linguagens” (p. 217,

minha tradução ).

Desta forma, é preciso questionar o argumento de Venuti, firmado a partir de

Schleiermacher (1972, p.41), de que uma tradução domesticante proveria uma leitura

fluente, trazendo para o leitor a impressão de que a tradução não seria de fato uma

tradução, mas sim o original; e de que uma tradução estrangeirizante causaria uma

experiência de estranhamento ao leitor, que apontaria para a presença do tradutor

(VENUTI, 1995, p.5)

É preciso considerar que alguns aspectos de uma determinada língua estrangeira

não são reconhecidos - ou simplesmente não se destacam - como estrangeiros por

fazerem parte da formação de um indivíduo de maneira predominante ou até mesmo

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exclusiva (sem concorrer com a língua materna). Um exemplo disso seriam os termos

em inglês usados no contexto da informática. Eles não causam estranhamento porque

nos foram apresentados em uma língua estrangeira, de forma que se tornaram

naturais. Uma tradução desses termos é que causaria estranhamento, quando não uma

falta de compreensão. Nomes estrangeiros, por exemplo, não causariam

estranhamento a um adolescente que quando criança leu diversas histórias ou assistiu

a desenhos em que tais nomes eram comuns, ou a alguém que está acostumado a

encontrar tais nomes em filmes hollywoodianos. Ao tentar tirar de uma pessoa o que

ela cresceu ouvindo ou simplesmente se acostumou a encontrar - consciente de seu

contato e interação com uma cultura estrangeira - substituindo-o por um equivalente

na língua materna, um tradutor poderia parecer "forçado", causando, nesse caso,

estranhamento.

Muito foi dito a respeito da necessidade de se considerar as peculiaridades e

singularidades dos tradutores enquanto leitores, sua relação com a linguagem e com

os autores das obras originais, e como isso influenciaria sua interpretação e

conseqüente produção. Acredito, porém, que o mesmo crédito deveria ser dado aos

leitores finais da tradução. Assim, se dermos a esses leitores o mesmo status de

"singulares", não se poderia definir durante a realização de uma tradução o que seria

natural ou estranho para um determinado público leitor tomando como base somente

sua língua materna. Busco demonstrar, assim, que o mesmo pode ser dito com relação

aos conceitos de domesticação e estrangeirização e sua aplicação a certos tipos de

tradução.

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1.2. As Propostas de Venuti diante do contexto latino-americano

Ao defender a visibilidade do tradutor através do que ele denominou “tradução

estrangeirizante”, Lawrence Venuti (1995) busca ir contra a tendência de

“domesticação” predominante no contexto inglês e norte-americano. Porém, é preciso

levar em conta que os leitores latino-americanos, por exemplo, não foram "criados"

sob essa tendência à qual Venuti tanto resiste. Ivone Benedetti questiona, no posfácio

do livro Conversas com Tradutores (2003), organizado por ela e Adail Sobral, um dos

fatores determinantes do pensamento de Venuti, que é o posicionamento do autor em

um contexto cultural específico, contexto esse que não poderia ser tomado como regra

geral:

É preciso enxergar, por trás de teorias como as da ética da tradução (Berman) e da defesa da visibilidade do tradutor (Venuti), nos termos em que é exposta [sic] por tais autores ou divulgadores, fatores sociais políticos e ideológicos de grande importância e alcance. Seus defensores fazem parte de um grupo de teóricos extremamente lúcidos que se insurgem (na esteira dos teóricos alemães do século XIX) contra a manipulação cultural dos textos traduzidos por uma sociedade hegemônica que sempre foi capaz de aceitar o Outro (para usar terminologia corrente na área). Ora, a importação acrítica de uma teoria como essa certamente não veste como luva a nossa realidade. Nunca fomos cultura hegemônica no mundo, e, se no passado houve motivos políticos, religiosos, moralistas etc para a manipulação cultural de textos, hoje esses motivos não preponderam (BENEDETTI, 2003, p. 28).

Ao defender a visibilidade do tradutor, ou seja, que os tradutores mantenham

elementos culturais e lingüísticos do original (tradução estrangeirizante), produzindo

traduções "estranhas" ou que causem estranhamento, Venuti toma como base o

contexto anglo-americano. Porém, Benedetti aponta que, ao contrário do que acontece

na Inglaterra e nos Estados Unidos:

Vivemos em uma sociedade importadora de tecnologia e cultura, sociedade que sofre o afluxo constante de terminologia e idéias estrangeiras, que produz muito menos do que traduz tanto na área literária quanto na área técnica ou

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de ciências humanas; numa sociedade em que é preciso promulgar leis para impedir que seus próprios órgãos oficiais usem termos estrangeiros absolutamente dispensáveis (BENEDETTI, 2003, p. 29).

É preciso questionar a aplicação dos mesmos conceitos do que seria

estrangeirizante e do que seria domesticante em sociedades tão diferentes. Em uma

sociedade criada em meio a termos estrangeiros, uma tradução "estrangeirizante" não

apontaria para a presença de um tradutor, pois já espera-se dela algo de estrangeiro - o

que, para nós, não quer necessariamente dizer estranho. Uma tradução domesticante,

ao contrário, poderia surpreender por conter um excesso de termos nacionais, às vezes

específicos de apenas um segmento de nossa cultura, ou relativo a um dado momento

dessa cultura. Afinal, podemos perceber, na maior parte das vezes, pelo próprio nome

do autor se trata-se ou não de um falante de outra língua, de um habitante de outro

país, de alguém dotado de outra cultura. Encontrar esses termos ou construções

poderia chamar a atenção do leitor para o tradutor, uma vez que esse leitor

questionaria a possibilidade de o autor estrangeiro ser capaz de utilizar em sua obra

original tal termo, construção ou referência.

Embora a América Latina tenha se desenvolvido sob a influência de valores

culturais e sociais impostos pelos colonizadores - para os quais evitar o bilingüismo

significava evitar o pluralismo religioso e também impor seu poder colonialista -,

esses valores não foram renegados e tampouco adotados com exclusividade pelos

colonizados e sim assimilados e conciliados ao que era considerado sua própria

tradição.

O trecho abaixo, retirado do artigo "O Entre-Lugar do Discurso Latino

Americano" (1978), de Silviano Santiago, ilustra como se deu ao longo da história

essa relação entre a América Latina e seus colonizadores:

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A América Latina instituiu seu lugar no mapa da civilização ocidental graças ao movimento de desvio da norma, ativo e destruidor, que transfigura os elementos feitos e imutáveis que os europeus exportavam para o Novo Mundo [...] A maior contribuição da América Latina para a cultura ocidental vem da destruição sistemática dos conceitos de unidade e pureza: estes dois conceitos perdem o contorno exato de seu significado, perdem seu peso esmagador, seu sinal de superioridade cultural, à medida que o trabalho de contaminação dos latino-americanos se afirma, se mostra mais e mais eficaz (SANTIAGO, 1978, p. 18).

Não é necessário ir longe na história para exemplificar de forma concreta essa

assimilação. O Movimento Antropofágico, manifestação artística brasileira da década

de 1920, tinha por objetivo a deglutição (daí o caráter metafórico da palavra

"antropofágico") da cultura do outro externo - como a norte-americana e européia - e

do outro interno, a cultura dos ameríndios, dos afro-descendentes, dos euro-

descendentes, dos descendentes de orientais. O fato é que, depois de deglutido, a

origem de cada parte desse “bolo alimentar” não é relevante, e não cabe a um

indivíduo ou sociedade reconhecer uma ou outra parte desse todo como sendo “sua”,

pois essa idéia de posse, de separação, se perde.

Desta forma, a afirmação de Venuti de que "a tradução estrangeirizante é uma

prática cultural dissidente, que reafirma a recusa ao que é dominante através do

desenvolvimento de afiliações com valores lingüísticos e literários marginais no

contexto doméstico" (1995, p. 20, minha tradução), não pode ser aplicada ao nosso

contexto. Um tradutor brasileiro, por exemplo, não precisa lutar pela heterogeneidade,

não precisa afirmar que a literatura, por exemplo, vai muito além de nossa língua, de

nosso vocabulário, de nossas construções sintáticas. O uso de valores lingüísticos e

literários marginais ao nosso contexto não seria, portanto, uma prática dissidente.

Exemplo disso é a rejeição, ou até mesmo ridicularização, do projeto de lei

proposto na Câmara de Deputados, em 2001, no Brasil, pelo então deputado de São

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Paulo Aldo Rebelo, que, ao contrário de Venuti, considerava esses valores lingüísticos

e literários marginais no contexto doméstico como um aspecto negativo, defendendo

uma homogeinização da língua portuguesa.

O Projeto de Lei definiu como prática abusiva os casos em que a palavra ou

expressão em língua estrangeira utilizada tivesse equivalente em língua portuguesa.

Além disso, o projeto definiu como prática enganosa se a palavra ou expressão em

língua estrangeira pudesse induzir qualquer pessoa a erro ou ilusão de qualquer

espécie; e prática danosa ao patrimônio cultural se a palavra ou expressão em língua

estrangeira pudesse descaracterizar qualquer elemento da cultura brasileira.

Se uma tradução fosse realizada sob os preceitos dessa lei, o resultado seria uma

tradução que Venuti denominaria domesticante. Porém, não é necessária uma

tradução estrangeirizante para que uma pessoa seja induzida a erro ou ilusão de

qualquer espécie. O grande problema de se levantar uma questão desse tipo em torno

da língua é o mesmo encontrado em qualquer problema relacionado ao ser humano:

haverá sempre um lado que discordará ou que tentará se beneficiar daquilo. No caso

do projeto do deputado Aldo Rebelo, temos uma questão lingüística versus uma

questão política, que acabam se tornando questões sociais. Lingüísticamente, no

entanto, o posicionamento é óbvio: uma língua jamais se congela no tempo, pois está

sempre em perpétua mudança, assim como o próprio ser humano. Dessa forma, não

haveria propósito em tentar manter uma "pureza" que na verdade nossa língua nunca

teve, uma vez que se originou de outra língua.

Um dos pontos polêmicos do projeto é o uso constante de termos estrangeiros na

literatura científica e técnica. Segundo Aldo Rebelo, deputado de São Paulo na

época, estes neologismos da nomenclatura técnica e científica deveriam “ser

aportuguesados para adquirir a feição e a sonoridade de um verso de Camões”

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(Projeto de Lei n° 1676-D, 1999 ). Porém, não creio que as obras de Camões,

apesar de escritas em língua portuguesa, sejam alheias a erros de interpretação e

muito menos caracterizem a cultura brasileira. Um dentista brasileiro, por exemplo,

provavelmente lerá um texto de sua área repleto de palavras e expressões em

língua estrangeira, aos quais ele se acostumou durante sua formação, muito mais

fluentemente que um texto de Camões. E esse texto caracterizará muito melhor a

“sua cultura brasileira” do que os heróis e musas do escritor português.

Obviamente que todos esses problemas tem reflexo sobre a maneira como o

brasileiro encara sua língua: para este, habituado de tal forma a ser dependente de

outras nações (muitas vezes sem se dar conta dessa dependência), o empréstimo de

palavras estrangeiras de outras línguas, muito especialmente o inglês (atualmente),

é algo que se torna não só comum como até necessário em alguns contextos.

O que Venuti defende ser a "função" de um tradutor anglo-americano do século

XX não pode ser tomado como a função de um tradutor brasileiro do século XXI,

pois não há por que combater aqui um etnocentrismo cuja presença é criticamente

aceita. Como um tradutor é antes de tudo um leitor, tanto as relações do tradutor

com o texto original quanto as relações dos leitores de uma maneira geral com o

texto traduzido partirão de perspectivas muito distintas daquelas criticadas por

Venuti. E, uma vez que os conceitos de domesticação e estrangeirização foram

definidos nesse mesmo contexto, é preciso questionar o seu uso em caráter

prescritivo em outros diferentes contextos.

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2. Testando Hipóteses

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A fim de verificar o vínculo que Lawrence Venuti acredita existir entre os conceitos

que apresenta de traduções estrangeirizantes e traduções domesticantes e, respectivamente,

o efeito de estranhamento durante o processo de leitura da tradução e a prática de uma

leitura fluente da tradução, realizei um levantamento com alunos de uma escola de Juiz de

Fora em torno da tradução do livro Harry Potter e a Pedra Filosofal (2000), de J.K

Rowling, traduzido por Lia Wyler.

O levantamento foi conduzido na Escola Estadual Hermenegildo Vilaça, em uma

turma de 6ª série considerada pela professora, de uma maneira geral, interessada nas aulas

de língua inglesa.

Antes de tudo, solicitei à turma que preenchesse o seguinte formulário com algumas

informações pessoais:

Nome: _______________________________________________ Idade: _____ Série: ______ Sexo: ���� feminino ���� masculino Escola: _______________________________________________ Profissão do pai:_________________________ Profissão da mãe:_________________________ Quantos livros você lê por ano? ______ Qual o livro você mais gostou de ler? ____________________ Qual seu autor preferido? _____________________________

Qual personagem de que você mais gosta? _______________

Através dele, constatei que dos 35 alunos presentes, a maioria tinha idade de 12 e 13

anos (idade padrão para a série), e alguns (9 alunos) 14, 15 e 16 anos; e que 24 eram do

sexo feminino e 11 do sexo masculino. Dos 35 questionários, 2 foram anulados: um devido

a respostas propositalmente sem sentido e outro devido ao claro conhecimento prévio da

história em detalhes. Quanto à profissão dos pais, 26 apontaram a profissão da mãe e 23 a

do pai. Através das respostas, foi possível constatar um baixo nível sócio-econômico, uma

vez que a maioria das atividades exercidas pelos pais não exige formação superior e muitas

delas são informais. Entre as mães, 9 são 'do lar' e 17 trabalham fora, em atividades como

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empregada, faxineira, vendedora, acompanhante, telefonista, manicure, cozinheira,

operadora de caixa e técnica em enfermagem (a mais especializada). Entre os pais, um é

aposentado e 22 trabalham fora, como motorista, cozinheiro, carpinteiro, pedreiro, copeiro,

agricultor, tatuador, policial militar, mecânico e engenheiro (o mais especializado).

Outra questão do formulário se referia a seus hábitos de leitura. Em relação a quantos

livros em média liam por ano, 10 não responderam, 2 alegaram não gostar de ler e 23

responderam com números que variam entre 1 a 40 livros.

Questionados sobre qual o livro, autor e personagem favoritos, alguns alunos

responderam às três questões e outros apenas responderam a uma ou duas delas. Quanto ao

livro, 18 responderam à questão, sendo que 8 deram nomes de livros nacionais e 10 de

livros traduzidos (sendo um deles a Bíblia). Quanto ao autor, somente 16 apontaram um

nome, e. entre esses, 15 foram nomes de autores nacionais (Monteiro Lobato, Carlos

Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes, entre outros) e 1 traduzido (de um dos

"autores" da Bíblia, Moisés). Quanto aos personagens, 9 foram nacionais, enquanto 12

internacionais.

Dessa primeira fase do levantamento, constatei que, embora pertençam a uma classe

sócio-econômica baixa, a maioria dos alunos convive com livros e personagens

estrangeiros, com destaque para o número de personagens e livros favoritos de origem

internacional. Acredito que o número de autores nacionais muito superior ao número de

autores estrangeiros não seja relevante, uma vez que somente os autores nacionais são

estudados na escola e por isso seus nomes têm mais destaque, independentemente de seus

livros.

A segunda etapa do levantamento foi conduzida da seguinte maneira: foram

entregues aos alunos duas folhas, sendo que em uma delas havia três trechos da tradução do

livro Harry Potter and the Sorcere's Stone, e, na outra, questões relativas a cada um dos

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trechos. Foi explicado que eles deveriam responder a cada questão da maneira que fosse

imediatamente interpretada, o mais objetivamente possível, e que não havia resposta "certa"

ou "errada". Um tempo conveniente (algo em torno de 10 minutos) foi marcado para a

leitura e resposta das questões de cada texto.

A primeira questão colocada no levantamento abordou "nomes", e foi realizada a

partir do seguinte trecho:

O Sr. e a Sra. Dursley, da rua dos Alfeneiros, n° 4, se orgulhavam de dizer que eram perfeitamente normais, muito bem, obrigado. Eram as últimas pessoas no mundo que se esperariam que se metessem em alguma coisa estranha ou misteriosa, porque simplesmente não compactuavam com esse tipo de bobagem.

E Sr. Dursley era diretor de uma firma chamada Grunnings, que fazia perfurações. Era um homem alto e corpulento quase sem pescoço, embora tivesse enormes bigodes. A Sra. Dursley era magra e loura e tinha um pescoço quase duas vezes mais comprido que o normal, o que era muito útil porque ela passava grande parte do tempo espichando-o por cima da cerca do jardim para espiar os vizinhos. Os Dursley tinham um filhinho chamado Dudley, o Duda, e em sua opinião não havia garoto melhor em nenhum lugar do mundo.

Os Dursley tinham tudo que queriam, mas tinham também

um segredo, e seu maior receio era que alguém o descobrisse.

Achavam que não iriam agüentar se alguém descobrisse a

existência dos Potter. A Sra. Potter era irmã da Sra. Dursley, mas

não se viam havia muitos anos; na realidade a Sra. Dursley fingia

que não tinha irmã, porque esta e o marido imprestável eram o

que havia de menos parecido possível com os Dursley. Eles

estremeciam só de pensar no que os vizinhos iriam dizer se os

Potter aparecessem na rua. Os Dursley sabiam que os Potter

tinham um filhinho, também, mas nunca o tinham visto. O garoto

era mais uma razão para manter os Potter a distância; eles não

queriam que Duda si misturasse com uma criança daquelas (p.7).

A pergunta relativa a esse trecho foi a seguinte:

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1. Em que parte do mundo você acha que se passa a história?

Após lerem esse trecho do livro - que vem a ser o primeiro parágrafo deste - em que

aparecem vários nomes em inglês, os alunos deveriam responder onde se passa a história.

Dezessete alunos identificaram o contexto como sendo de um país de língua inglesa (12 nos

Estados Unidos - alguns especificamente em Nova Iorque -, 3 na Inglaterra e 2 em outros

países de língua inglesa). As outras respostas foram abstratas, como "algum lugar muito

longe", ou "em um lugar misterioso", ou muito específicas, como "na rua dos Alfeneiros,

n°4". Contudo, nenhuma apontou um lugar específico no Brasil.

O único aspecto desse trecho que aponta claramente para o fato de se tratar de um

texto estrangeiro é o dos nomes dos personagens, que foram reconhecidos como nomes de

pessoas falantes de língua inglesa por uma quantidade significativa de alunos. Acredito

que, a partir daí, mesmo que inconscientemente, boa parte desses alunos já esperaria

encontrar expressões e palavras referentes a esse contexto estrangeiro. Assim, um nome

traduzido, como o apelido de um dos Dursley, "Duda", se destaca como diferente dos

demais, diferente do esperado, chamando a atenção para a existência de algum falante de

português envolvido no processo de escrita daquele texto. Isso sim pode causar

estranhamento a um leitor mais atento.

A objetivo da segunda questão do levantamento era testar como se dava o

reconhecimento de uma determinada “situação ou momento”:

Harry estava fritando os ovos na altura em que Duda chegou à cozinha com a mãe. Duda se parecia muito com o tio Valter. Tinha um rosto grande e rosado, pescoço curto, olhos azuis pequenos e aguados e cabelos louros muito espessos e assentados na cabeça enorme e densa. Tia Petúnia dizia com freqüência que Duda parecia um anjinho – Harry dizia com freqüência que Duda parecia um porco de peruca.

Harry pôs os pratos de ovos com bacon na mesa, o que foi difícil porque não havia muito espaço. Entrementes, Duda contava os presentes. Ficou desapontado.

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_ Trinta e seis _ disse, esguendo os olhos para o pai e a mãe. _ Dois a menos do que no ano passado.

_ Querido, você não contou o presente de tia Guida, está aqui debaixo desse grandão do papai e da mamãe, está vendo?

_ Este bem, então são trinta e sete _ respondeu Duda ficando vermelho. Harry, percebendo que Duda estava preparando um enorme acesso de raiva, começou a engolir seu bacon o mais depressa possível, caso o primo virasse a mesa.

Tia Petúnia obviamente também sentiu o perigo, porque na mesma hora disse:

_ E vamos comprar mais dois presentes pra você quando sairmos hoje. Que tal, fofinho? Mais dois presentes. Está bem assim?

Duda pensou um instante. Pareceu um esforço enorme. Finalmente respondeu hesitante:

_ Então vou ficar com trinta...trinta... (p.23).

A pergunta foi a seguinte:

2. Em que parte do dia acontece a cena da cozinha?

O trecho engloba uma passagem da história que ocorreu na parte da manhã,

enquanto os Dursley tomavam o desjejum. Porém, a referência à parte do dia em que se

desenrolava a ação fora deixada de lado (ela fazia parte do trecho anterior ao trecho em

questão). Tudo o que se sabia da ambientação dessa passagem era que ela acontecia durante

uma refeição em que um dos personagens fritava ovos e depois os servia juntamente com

bacon.

Quando questionados sobre em que parte do dia acreditavam ter acontecido essa

passagem, dos 27 alunos que responderam à questão, 20 apontaram a parte da manhã, 5

apontaram a parte da tarde e 2 disseram se tratar da "hora do almoço". Acredito que isso

seja devido ao fato de que, embora no contexto brasileiro esse tipo de alimentação não seja

comum nessa parte do dia, é usual ver personagens de histórias ou desenhos se alimentarem

dessa forma pela manhã (se a intenção fosse ser fiel ao contexto doméstico, os ovos com

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bacon poderiam ter sido substituídos por algo como 'pão com manteiga'). Assim, para estes

alunos, os ovos com bacon não chamariam a atenção como algo incomum ao longo da

leitura do texto. Dessa forma, a leitura culturalmente estrangeirizante se daria de maneira

fluente, de forma que eles não dariam atenção especial a esse dado.

A questão 3 foi realizada a partir do seguinte trecho:

Harry veio se postar na frente do tanque e estudou a cobra com atenção. Não se

admiraria se a própria cobra morresse de tédio _ não tinha companhia a não ser

aquela gente idiota que batucava no vidro, tentando incomodá-la o dia inteiro. Era

pior do que ter um armário por quarto, onde a única visita era a da tia Petúnia

esmurrando a porta para acordá-lo, mas ao menos ele podia visitar o resto da casa.

A cobra inesperadamente abriu os olhos, que pareciam contas. Devagarinho, muito devagarinho, levantou a cabeça até seus olhos chegarem ao nível dos de Harry.

E piscou. Harry arregalou os olhos. E olhou depressa a toda volta

para ver se havia alguém olhando. Não havia. E retribuiu o olhar

da cobra, piscando também.

A cobra acenou com a cabeça na direção de tio Válter e de Duda, depois levantou os olhos para o teto. Lançou um olhar a Harry que dizia com todas as letras:

_ Isso é o que me acontece o tempo todo. _ Eu sei _ murmurou Harry pelo vidro, embora não

tivesse muita certeza se a cobra poderia ouvi-lo_, deve ser bem chato (p.28).

A pergunta feita foi a seguinte:

3. Onde dorme o personagem?

Nesse caso, a "estrangeirização" da sintaxe (ou seja, uma tradução mais literal, sem

adaptação à sintaxe da língua meta) promoveu um mau-entendimento ou um entendimento

incompleto por parte dos alunos. Somente 3 alunos foram capazes de responder com

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precisão onde o personagem dormia: no armário. A tradução de "having a cupboard as a

bedroom" como "ter um armário por quarto" parece não ter deixado claro o fato de o

personagem não ter um quarto de verdade, e sim dormir no armário (um lugar

improvisado). Contudo, talvez influenciados pela presença da palavra quarto ou pela

resposta mais provável, a maioria dos alunos respondeu "no quarto", o que não indica a

compreensão do fato de que o personagem estava mal instalado na casa daquela família.

Houve também duas questões à parte dos trechos entregues aos alunos. Na primeira

delas, o nome de vários personagens foi apresentado aos alunos de maneira aleatória. Entre

eles, nomes que foram traduzidos (Peter por Pedro, Edward por Eduardo, Alvus por Alvo,

George por Jorge, Vernon por Válter, e o apelido criado para Duddley, 'Duda') e outros que

foram mantidos em sua grafia original (Minerva, Hagrid, McGonagall, Petunia). Os alunos

deveriam separar os nomes como sendo de personagens de duas histórias diferentes,

"adivinhando" quais personagens pertenciam à mesma história, conhecendo apenas seus

nomes:

4. Se você fosse separar os nomes dos personagens abaixo em dois grupos, quais personagens você acharia que pertenceriam à mesma história? 1. Alvo 7. Hagrid 2. Dursley 8. Jorge 3. Pedro 9. McGonagall 4. Hagrid 10. Petúnia 5. Eduardo 11. Duda 6. Minerva 12. Válter História 1 História 2

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Entre os alunos que responderam à questão (28 alunos), 9 alunos separaram os

personagens de acordo com essa característica (ser um nome traduzido - comum no Brasil -

ou nome estrangeiro) e 19 usaram algum outro tipo de critério. Percebe-se que muitos deles

foram influenciados pelos trechos que haviam lido para responder as questões anteriores,

colocando em uma das histórias os personagens que haviam encontrado nesses trechos e

em outra os personagens "novos". De certa forma, esse alunos reproduziram algo com o

qual tiveram contato (um texto com nomes "comuns" e "incomuns" misturados como algo

possível de se encontrar em uma outra história qualquer). Dessa maneira, essa mistura não

representou algo estranho.

Na última questão, apresentei aos alunos duas versões por mim trabalhadas de um

mesmo trecho do livro em que misturei os dois métodos: uma que, a priori, seria

completamente domesticante, por apresentar nomes traduzidos e construções sintáticas e

colocações mais comuns em português e outra completamente estrangeirizante, em que

mantive nomes, aspectos culturais e sintaxe do original:

5. O mesmo trecho de uma mesma história é contado abaixo de duas maneiras diferentes. Na sua opinião, qual é mais agradável de se ler?

Era por isso que Harry passava tanto tempo quanto possível fora da casa, perambulando e pensando no fim das férias, no qual podia ver um minúsculo raio de esperança. Quando setembro chegasse, ele estaria partindo para a escola secundária e, pela primeira vez na vida dele, não estaria com Dudley. Dudley tinha sido aceito na antiga escola particular do tio Vernon, Smeltings. Piers Polkiss estava indo pra lá também. Harry, por outro lado, estava indo para Stonewall High, a escola pública local. Dudley achou que isso era muito engraçado. Por esta razão Harry passava a maior parte do tempo possível fora de casa, perambulando e pensando no fim das férias, no qual conseguia vislumbrar um raiozinho de esperança. Quando fevereiro chegasse, ele iria para a escola secundária e, pela primeira vez na vida, não estaria em companhia de Duda. Duda tinha uma vaga na antiga escola de tio Válter, Aliança. Pedro ia para lá também. Harry, por outro lado, ia para a escola secundária local. Duda achava muita graça nisso.

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Solicitei aos alunos que escolhessem qual deles lhes parecia mais natural, mais

agradável de ser ler. Dos 33 alunos, 12 (36,3%) escolheram a versão "estrangeirizante", 20

(60,6%) escolheram a "domesticante" e um não respondeu. Logo, um número significativo

de alunos considerou o primeiro texto, que segundo o conceito de estrangeirização não

deveria ser fluente, como o mais agradável de se ler.

Com esse levantamento, minha proposta era partir do ponto de vista dos leitores,

não considerados no desenvolvimento das definições do que seria um texto domesticante e

do que seria um texto estrangeirizante, para demonstrar a impossibilidade de se corroborar,

na prática e de maneira generalizada, as definições de Friedrich Scheleiermacher e

Lawrence Venuti sobre o assunto.

Se não foi possível definir o que seria mais “fluente” ou mais “natural” a um grupo

tão homogêneo como o que participou do levantamento – crianças de mesma faixa etária e

grupo social -, imagino que seria mais difícil ainda tentar definir algum padrão entre os

mais variados grupos que têm uma mesma língua como língua materna. Se 12 entre 32

alunos consideraram a tradução que, prescritivamente, seria considerada estrangeirizante

como a mais fluente, a mais agradável de se ler, não haveria como definir “fluência” entre

um grupo ainda maior de leitores, um grupo tão heterogêneo que forma uma mesma língua,

uma mesma cultura.

O fato de o número de alunos que apontaram a tradução domesticante como a mais

natural ser maior do que o número de alunos que apontou a tradução estrangeirizante como

tal já era esperado, porém não deveria ser definido previamente à leitura. Um tradutor, que

tem intimidade tanto com a língua de partida quanto com a língua de chegada, não pode

“medir” até onde vai essa intimidade de cada um de seus leitores.

O grupo avaliado pode ser considerado um grupo com um acesso relativamente

pequeno às tecnologias atuais e aos meios de comunicação cada vez mais globalizados. Se

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o mesmo levantamento tivesse sido realizado em uma escola particular, por exemplo, o

resultado poderia ir ainda mais contra as definições prescritivas de domesticação e

estrangeirzação. Infelizmente, por questões de tempo, esse levantamento não pôde ser feito

para fins da realização da presente monografia. No entanto, não descarto a possibilidade de

fazê-lo posteriormente.

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Conclusão

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Conclusão

Com esse trabalho, meu objetivo foi o de acrescentar às críticas feitas às teorias de

Lawrence Venuti, contruídas a partir de raciocínios teóricos de Friedrich Schleiermacher, o

ponto de vista do leitor. Os autores abordados, Maria Paula Frota, Edwin Gentzler e Ivone

Benedetti, perceberam a necessidade de uma releitura à luz do contexto cultural atual, a

necessidade de uma adaptação das teorias de Venuti a nosso contexto histórico e social,

porém, de uma maneira geral, o fizeram utilizando o ponto de vista do tradutor enquanto

leitor, e não do leitor final de um texto traduzido.

Meu principal objetivo foi o de questionar a possibilidade de os conceitos

"estrangeirizante" e "domesticante" serem atríbuídos - pelo seu próprio tradutor e pela

crítica em geral - a um texto que ainda não chegou às mãos de seus leitores. As noções de

"estranhamento", "fluência", "naturalidade", "desconforto", entre outras, segundo as quais

Venuti define esses dois conceitos, dependem da leitura de "alguém", e esse alguém deveria

ser cada leitor em particular, com seus conhecimentos específicos. Dessa forma, um texto

não deveria ser considerado "domesticante" ou "estrangeirizante" sem considerar esse leitor

final, pois, ninguém, além dele mesmo, poderia definir com certeza suas impressões de um

texto e tudo o que está por trás delas.

A partir desse ponto de vista, chego à conclusão da impossibilidade de se definir a

relação de um determinado leitor com um texto partindo da relação de um tradutor com

esse mesmo texto, simplesmente pelo fato de ambos possuírem a mesma língua materna.

Cada tradutor usará de suas singularidades (suas experiências e conhecimentos específicos)

para interpretar o texto original e produzir o texto traduzido. Creio que a mesma

singularidade deve ser atribuída ao leitor do texto pronto, para só então se definir o que o

texto representa para ele: algo “natural” ou não.

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Isso implica na impossibilidade de se definir aprioristicamente as traduções como

sendo estrangeirizantes ou domesticantes. Dessa forma, um texto traduzido que pode ser

considerado “estrangeirizante” por um tradutor, que optou por priorizar a forma ou alguma

peculiaridade cultural do texto original, poderia ser encarado como “domesticante” por um

leitor que, inserido na rede de comunicações mundial cada vez mais interligada, tem acesso

a essas formas e a essas peculiaridades de maneira contínua e natural, sem considerá-las

algo separado de sua própria língua, de sua própria identidade.

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Referências Bibliográficas

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