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Letras de Hoje. Porto Alegre, v. 42, n. 4, p. 49-76, dezembro 2007 LETRAS DE HOJE LETRAS DE HOJE LETRAS DE HOJE LETRAS DE HOJE LETRAS DE HOJE O fantasma de Luís Buñuel, de Maria José Silveira: da repressão política aos dramas existenciais de uma geração Maria Zaira Turchi Vera Maria Tietzmann Silva UFG Maria José Silveira é hoje uma das mais competentes vozes do romance goiano contemporâneo, trajetória que iniciou em 2002, com a publicação de A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas, livro que recebeu o prêmio de melhor romance de autor estreante, concedido pela Associação Paulista dos Críticos de Arte – APCA. No ano seguinte, publicou uma biografia romanceada, Eleanor Marx, filha de Karl, em 2004, O fantasma de Luís Buñuel, que recebeu menção honrosa do Prêmio Nestlé de Literatura, e em 2006, Guerra no coração do cerrado. Nesses quatro romances, evidencia-se sua preferência em mesclar matéria histórica e ficcional. Desde o seu romance de estréia, a escritora tem se voltado para a esfera da ficção histórica e seus romances abrangem desde fatos históricos romanceados até obras que buscam refletir sobre os dramas de uma geração. Paralelamente a esta produção para adultos, Maria José Silveira vem publicando, também desde 2002, narrativas destinadas a crianças e jovens. Entre os títulos até agora editados, incluem-se narrativas juvenis e infantis. Como ocorre em seus romances, suas obras de literatura infantil e juvenil manifestam a linhagem estilística e temática que envolve pesquisa histórica no domínio da ficção literária. Uma característica importante da ficção contemporânea é a retomada do romance histórico que se desdobra em múltiplas formas de narrar alheias às dicotomias excludentes. Dissolvem-se as fronteiras claras entre ficção e não-ficção, e são introduzidos no

O fantasma de Luís Buñuel, de Maria José Silveira: da repressão

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Letras de Hoje. Porto Alegre, v. 42, n. 4, p. 49-76, dezembro 2007

LETRAS DE HOJE LETRAS DE HOJE LETRAS DE HOJE LETRAS DE HOJE LETRAS DE HOJE

O fantasma de Luís Buñuel, deMaria José Silveira: da repressãopolítica aos dramas existenciais

de uma geração

Maria Zaira TurchiVera Maria Tietzmann Silva

UFG

Maria José Silveira é hoje uma das mais competentes vozes doromance goiano contemporâneo, trajetória que iniciou em 2002, coma publicação de A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas, livro querecebeu o prêmio de melhor romance de autor estreante, concedidopela Associação Paulista dos Críticos de Arte – APCA. No anoseguinte, publicou uma biografia romanceada, Eleanor Marx, filhade Karl, em 2004, O fantasma de Luís Buñuel, que recebeu mençãohonrosa do Prêmio Nestlé de Literatura, e em 2006, Guerra no coraçãodo cerrado. Nesses quatro romances, evidencia-se sua preferência emmesclar matéria histórica e ficcional. Desde o seu romance deestréia, a escritora tem se voltado para a esfera da ficção histórica eseus romances abrangem desde fatos históricos romanceados atéobras que buscam refletir sobre os dramas de uma geração.

Paralelamente a esta produção para adultos, Maria José Silveiravem publicando, também desde 2002, narrativas destinadas acrianças e jovens. Entre os títulos até agora editados, incluem-senarrativas juvenis e infantis. Como ocorre em seus romances, suasobras de literatura infantil e juvenil manifestam a linhagemestilística e temática que envolve pesquisa histórica no domínio daficção literária.

Uma característica importante da ficção contemporânea é aretomada do romance histórico que se desdobra em múltiplasformas de narrar alheias às dicotomias excludentes. Dissolvem-seas fronteiras claras entre ficção e não-ficção, e são introduzidos no

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universo literário materiais concretos e experiências vividas nocruzamento entre a recepção interpretativa e o impacto da expe-riência direta. O romance histórico contemporâneo afirma sempreque o seu mundo é fictício e, ao mesmo tempo, inegavelmentehistórico. Não importa o relato dos acontecimentos em si, mas apossibilidade de abrir novas direções para pensar os acontecimentos.Além disso, o romance histórico contemporâneo realiza experiênciasde formas híbridas dos gêneros literários e não-literários, misturandonotícias de jornal, cartas, poemas, filmes, numa profusão de discursose vozes. Por diversos motivos, o terceiro romance de Maria JoséSilveira é representativo dessa tendência.

A análise de O fantasma de Luis Buñuel pretende mostrar comoessa obra se insere na ficção histórica contemporânea, revelando aidentidade autoral dessa romancista e lançando luzes ao conjuntode sua obra ficcional. Pretende mostrar, também, como a escritorase vale da mistura de discursos e de linguagens, desde a utilizaçãode múltiplos narradores até a inclusão de cenas de filmes, defragmentos de notícias de jornal, de trechos de poemas e de cartasno espaço da narrativa literária, traços evidentes do romancecontemporâneo.

As relações entre literatura e história estão hoje no centro dodebate e apresentam-se no cerne de questões que caracterizam acontemporaneidade: a crise dos paradigmas de análise da realidade,o fim da crença nas verdades absolutas legitimadoras da ordemsocial, a compreensão da história como discurso, a perspectiva dainterdisciplinaridade como caminho para o diálogo da literaturacom as ciências humanas e com as diversas expressões artísticas. Aperspectiva da Nova História Cultural tem estreitado a relação entreliteratura e história e tem contribuído para a crítica da literatura naconstrução de uma teoria do romance histórico contemporâneo, ouda metaficção historiográfica da pós-modernidade, na denominaçãode Linda Hutcheon (1991).

Neste romance, a história está presente nas referências a pessoasreais, que a autora conheceu direta ou indiretamente (entre as quaisinclui-se o goiano Honestino Guimarães, até hoje desaparecido),segundo ela mesma depõe:

os personagens às vezes convivem com pessoas que existem navida real e minha opção foi dar a elas seus nomes verdadeiros.Achei que essas pessoas, que existiram e existem, ajudam a compora pequena parte real desse painel de uma geração que viveu, comsuas felicidades e angústias, tentando muito e conseguindo bemmenos do que tentou, mas deixando com muita força a marca desua juventude (SILVEIRA, 2004, p.333).

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Também no âmbito das ações, há diversos fatos verídicos, comoa invasão da UnB, o fechamento do Congresso, o treinamento deguerrilheiros em Cuba, a edição do AI-5. São fatos que aparecemcom grande impacto na primeira parte de O fantasma de Luís Buñuel,ambientada em 1968. Contudo, o leitor não está diante de umagrande reportagem, mas de um romance, de uma obra cujas açõesse equilibram, ou deslizam, entre a história e a ficção. Aliás, a suaestrutura sugere, o tempo todo, um movimento de oscilação, umvaivém, ou um deslizar entre margens, bem em sintonia com o climade insegurança, de instabilidade que se instalou no país nos anos60 e 70.

Por um lado, a peculiar construção do texto, que traz recortesde jornal relativos ao dia em que inicia a ação na abertura de cadasegmento, reforça esse caráter documental e, pois, histórico doromance, amarrando a ação ficcional aos fatos verídicos de seutempo. Por outro, ao focalizar os personagens centrais, a autorarevela seu mundo interior, envolvendo o leitor emocionalmente emseus dramas pessoais, o que reforça o caráter ficcional da narrativa.De onde se conclui que também o conjunto dos personagens sofreum processo de deslizamento entre o real e o inventado, entre ohistórico e o ficcional.

Em O fantasma de Luís Buñuel, os acontecimentos históricos estãopresentes, mas importam menos os fatos e mais o efeito que elescausam sobre os personagens que os vivenciam. Ou seja, o foco nãoincide prioritariamente sobre as ações em si, mas sobre as reaçõesque provocam nos personagens. Além do título enigmático, umaspecto que imediatamente chama a atenção do leitor é o modopeculiar como este romance se organiza. A narrativa se divide emcinco partes, seguidas por um breve epílogo. Cada parte situa-senuma década diferente e tem como centro das ações um dos cincoprotagonistas. Outro dado inovador é o fato já mencionado de cadaparte (e também o Epílogo) abrir-se com uma seleção de notícias dejornais de circulação nacional (JORNAL DO BRASIL, FOLHA DESÃO PAULO e O GLOBO). São notícias contemporâneas à açãoficcional, garimpadas pela autora em pesquisa feita junto aperiódicos da época.

A justificativa para tal procedimento, assim como para o títulodo volume, vem explícita no texto, relaciona-se ao livro de memóriasde Luís Buñuel, Meu último suspiro, em que o cineasta espanhol nãolamenta morrer, mas, sim, ficar sem saber o que se passa no mundo.Por isso, planeja voltar à vida, de dez em dez anos, passar numabanca e comprar alguns jornais. Diz, então, Buñuel: “Com os jornaisdebaixo do braço, [...] retornaria ao cemitério e leria os desastres do

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mundo, antes de tornar a dormir, satisfeito, na proteção tranqüi-lizadora da sepultura” (BUÑUEL apud SILVEIRA, 2004, p.135-136).

O encontro casual dos amigos Dina, Tonho e Esmeralda em umcinema no Rio de Janeiro, durante a exibição de um filme de Buñuel,e a coincidência de haver transcorrido uma década desde o seuúltimo encontro leva-os a adotar a mesma prática imaginada pelocineasta e justifica a inclusão das notícias do dia no início de cadasegmento narrativo.

A ação do romance se estende por 36 anos, repartidos em cincodécadas diferentes, e que podem agrupar-se em dois tempos,definidos pela situação histórico-política do país. O primeiro dessestempos é o da repressão, incluindo o seu abrandamento, que seanunciou gradual e progressivo (a “abertura” de 1979), e que cobreos dois primeiros segmentos – os relatos de Edu e Tadeu. O segundotempo, um tempo de liberdade, compreende os três últimos seg-mentos narrativos do livro e o seu epílogo, que acontecem após arestauração da democracia.

Por um lado, a sucessão das cinco partes e do epílogo quecompõem O fantasma de Luís Buñuel ordena-se linear e cronolo-gicamente, seguindo sempre adiante e com lapsos temporais re-gulares, de 1968 a 2004. Essa previsível marcha dos anos, que imitao fluxo da história, dá ao leitor uma sensação confortável, deestabilidade, de previsibilidade. É a sua margem de segurança. Maseste é um enredo que se constrói na instabilidade – e a segurançaé rompida subitamente quando o último segmento narrativo seantecipa à data prevista com a chegada da carta-confissão deEsmeralda e, em seguida, o Epílogo traz a notícia de seu destinotrágico.

Além dessa súbita ruptura, ao longo de cada relato o tempoapresenta um constante deslizar entre o presente e o passado danarração, ora atendo-se aos acontecimentos vivenciados na décadaem foco, ora retomando cenas do passado, seja do passado próximo,compartilhado com os amigos (os anos 60 em Brasília), seja de umpassado mais remoto, pessoal e secreto (a infância e a puberdadeno Estado de origem de cada protagonista). Nas suas idas e vindas,consciência e memória vão revelando simultaneamente ao leitor,pela via da ficção, a história da vida política e a história da vidaprivada brasileira.

Os cinco protagonistas de O fantasma de Luís Buñuel ficam seconhecendo na UnB, onde estudam, e, juntos, formam uma espéciede amostragem da juventude brasileira. Eles vêm de diversosquadrantes do país, têm histórias de vida distintas, pertencem aclasses sociais diferentes. Edu vem do Recife, Tadeu de Salvador,

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Dina de Goiás, Tonho de Manaus, Esmeralda do Rio de Janeiro.Brasília amarra suas histórias, produz a síntese de suas diferenças.

Brasília exerce sobre os jovens universitários sua força deatração e transforma em unidade a diversidade do grupo. É lá queeles compartilham, além da juventude, o fervor pelas causas sociais,a luta pela liberdade, os laços afetivos que os unem e a paixão pelocinema, especialmente pelos filmes do diretor espanhol Luís Buñuel.Contudo, o clima de repressão que se instala na capital logo faz comque ela inverta sua força, que de centrípeta passa a centrífuga. Équando, um a um, todos saem de Brasília, Edu em primeiro lugar.Esse movimento de fluxo e refluxo irá repetir-se a cada década, nosencontros casuais ou marcados do grupo, cada vez mais reduzido.

Esses encontros, ainda que postos em destaque visto cons-truírem a estrutura mesma do romance, são aproximações transi-tórias, pouco mais do que vazias celebrações rituais, que repetemcom os personagens a mesma impressão de instabilidade verificadano tratamento do tempo. Apesar de tudo, quando outros laçosestiverem desfeitos ou, pelo menos, esgarçados, a magia do cineastaespanhol ainda continuará a unir o grupo, como o leitor podeverificar no final do romance.

É curioso, além disso, constatar que esse movimento oscilatóriode idas e vindas não se efetiva em Brasília, onde os amigos viveramsua juventude, mas no Rio de Janeiro, a antiga capital do país,sugerindo obliquamente um retorno também no tempo, para antesdos funestos eventos dos anos 60 – uma década que havia começadocom a auspiciosa inauguração da nova capital. Nesse mesmomovimento de oscilação pode-se incluir o tratamento dado ao foconarrativo.

A divisão de O fantasma de Luís Buñuel em partes, cada qualidentificada a um dos cinco protagonistas, naturalmente deveriadesembocar na opção pelo foco de primeira pessoa, dando voz aoprotagonista, o que Maria José Silveira faz, mas não com exclusi-vidade. O primeiro segmento (Edu) é narrado só em primeira pessoae o terceiro (Dina), em terceira, escolhas bem de acordo com o perfildos protagonistas – Edu mais sensível e Dina mais objetiva, etambém com a coerência e solidez de caráter e de comportamentoque ambos apresentam. Nos outros três segmentos, relacionados aTadeu, Tonho e Esmeralda, a voz narrativa alterna-se constan-temente entre a primeira e a terceira pessoa. Nesses relatos, comfreqüência o foco desliza da voz do protagonista para uma voz defora, que prossegue contando a história do personagem emdestaque, aderida ou não à sua consciência. Isso contribui paracompor o perfil instável desses personagens e, indiretamente, para

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reforçar o clima também instável que perpassa outras instâncias daconstrução do romance. No Epílogo, o foco volta a afastar-se paraa voz de um narrador de terceira pessoa, um isento observadordos fatos.

O foco narrativo repartido entre primeira e terceira pessoasintoniza-se com a oposição história/ficção e também indiretamentecom o cinema, paixão maior do grupo de amigos. O ir e vir dopanorama histórico do país à história individual dos estudantes,assim como da visão de alguém que está fora do palco das ações àvisão de quem está vivendo essas ações sugere um duplo movi-mento, de afastamento e de aproximação. Isso, em cinema, temseu paralelo no movimento de câmera, que recua nas tomadaspanorâmicas e se aproxima nos closes. A escritora demonstra plenaconsciência do papel determinante da visão dos narradores nainterpretação dos eventos, explorando no foco narrativo a tensãoentre discurso e diegese.

Essas múltiplas sugestões de oscilação, ou de deslizamento, sãoreforços sutis, fios de uma tênue rede significativa que, combinados,ajudam a recriar para o leitor o clima de insegurança que tomouconta do Brasil nos chamados “anos de chumbo”, um tempo quemarcou para sempre toda uma geração – neste romance, a gera-ção dos cinco jovens universitários: Edu, Tadeu, Dina, Tonho eEsmeralda.

O tempo de EduEdu centraliza as ações do primeiro segmento narrativo, inti-

tulado “A noite do princípio” e datado de 1968. O romance, pois,principia no apagar das luzes da década de 60, período queimprimiu grandes alterações no comportamento, na mentalidade enos produtos culturais do mundo todo.

Os anos 60 podem ser definidos como um tempo de mudança.Muitos hábitos, conceitos e comportamentos que hoje nos parecemnormais e rotineiros tiveram sua gênese nessa década. É o tempo daeclosão do feminismo, da liberação sexual, da disseminação dasdrogas entre a juventude, do movimento hippie e das bandas de rockque alucinaram jovens de todo o mundo. Tempo de informalidade,de ousadia, tempo de liberdade, de paz e de amor. Mas também deguerras (quente e fria) e, na América do Sul, de governos auto-ritários, com seu caudal de violência.

No Brasil, a década começou com a inauguração de Brasília,obra de arquitetos, urbanistas e paisagistas brasileiros, uma cidadeúnica, cópia de nenhuma outra, construída em tempo recorde. Ca-pital surgida do chão agreste, oásis em meio ao sertão, Brasília

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representou, no imaginário nacional, a possibilidade de um temponovo, de uma vida política passada a limpo. Este primeiro segmentodo livro de Maria José Silveira recupera a atmosfera febril daconstrução da nova capital por meio das lembranças de Edu e deseu pai, engenheiro de estradas e companheiro de trabalho deBernardo Sayão. O menino Edu acompanhou o nascimento dacidade junto com o pai. São cenas de um passado que o jovemrevisita pela memória. Um passado de luz, como o nome do palácio-residência do Presidente, Alvorada.

Mais do que registrar as mudanças libertadoras dos anos 60, esteprimeiro segmento registra o apagar das luzes e a escuridãoinstalada (pelo menos no Brasil) nesse final de década, com aditadura militar e seus desmandos. Nas palavras de Edu: “Foi ociclo se cumprindo: esplendor e noite escura. Fica faltando oamanhecer”.

O tempo de Edu, pelo menos para o leitor, encerra-se com ofindar de 1968, quando ele some de cena e entra na clandestinidade,em busca do “amanhecer” a que ele alude. Pela voz dos outrospersonagens, fica-se conhecendo um ou outro fragmento de sua vidadali para a frente, apenas retalhos esparsos, que Esmeralda recebeem cartas postadas de países diferentes a cada vez, nas quais Edufaz planos de voltar ao Brasil.

No início da década de 70, ele efetivamente volta, para serdetido e morto pela repressão. Seu tempo foi bem escasso, mas suaimagem se mantém ao longo dos anos na memória de todos osamigos. Como o cineasta que eles tanto amavam, Edu tambémpermanece na narrativa no decorrer das décadas, cosendo ashistórias de vida e as lembranças com que O fantasma de Luís Buñuelé construído.

O grupo de cinco amigos caracteriza-se pela diversidade,manifestada principalmente no fato de eles procederem de diversosquadrantes do país, o que implica também serem portadores deheranças culturais diferentes. Se observarmos a constelação familiarde cada um dos cinco amigos, veremos que o único a ter uma famíliarelativamente bem estruturada é Edu, e também é ele, por força daprofissão do pai, quem há mais tempo vive em Brasília.

Como a maioria dos candangos, o pai de Edu migrou doNordeste para a nova capital, deixando para trás o passadismo e adecadência do latifúndio do avô, senhor de engenho. Desligar-sedo passado e integrar-se com entusiasmo ao canteiro de obrasfavoreceu o fortalecimento dos laços afetivos entre pais e filhos,laços que vinham sendo minados pela avó autoritária, matriarca dafamília em Pernambuco.

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Como o pai, ao tempo da construção de Brasília, também Eduestá empolgado com a perspectiva de construir o novo. Não estradasde concreto que levam à nova capital, mas seu equivalente sim-bólico: em seu idealismo adolescente, Edu se prepara para ajudar aconstruir os caminhos da revolução, capazes, segundo acredita, delevar o Brasil a um novo tempo e a um novo modelo de sociedade,mais justa e fraterna. Por fazer parte de uma família bem construída,que acredita no amanhã, uma família que participou da construçãoda utopia de JK, Edu está mais capacitado a perceber a guinadaradical sofrida pelo país com a instalação da ditadura e de sofrerum impacto maior com a mudança dos rumos políticos. Some-se aisso a sua extrema juventude – 19 anos em 1968 –, sua lucidezintelectual e a sensibilidade de seu temperamento bastante intros-pectivo e teremos o retrato do herói, tornado completo e acabadocom seu precoce assassinato pela causa da revolução. Sem dúvida,o papel de herói que Edu desempenha prolonga-se ao longo de todaa trama, apesar de ele estar presente, de fato, apenas neste primeirosegmento, relato do último dia de sua permanência em Brasília antesde entrar na clandestinidade. No imaginário dos amigos, suaimagem ganha contornos míticos.

Aliás, um dado digno de nota é a inversão que ocorre naconstrução de O fantasma de Luís Buñuel no que se refere à orga-nização das ações. Ao contrário do que acontece em muitos ro-mances, em que as ações vão somando-se num crescendo até atin-girem seu clímax próximo do final, com a concomitante reso-lução de seu conflito maior, neste romance de Maria José Silveiratudo acontece neste primeiro segmento, inclusive o desapareci-mento do protagonista-herói.

As ações subseqüentes decorrem dessa primeira seção e a elasempre aludem. Inclusive o desfecho da trama, a longa carta deEsmeralda, assim como o Epílogo, dando conta de seu destino fatal,atam as pontas da história de Esmeralda com a de Edu, ao retomaros acontecimentos ligados à saída do jovem guerrilheiro de Brasíliaem dezembro de 68, rumo a Cuba, no auge da crise provocada peloAI-5. Com o final retomando o início, arredonda-se, pois, o romance.Esta história, com o enredo organizado às avessas e com umandamento circular, sempre voltando ao ponto de partida e reto-mando os acontecimentos de 68, tem um ritmo obsessivo, peculia-ridade que também está em sintonia com esse tempo “fora doseixos”, tempo que os cinco amigos percebem como surreal.

Em 1968, no início do romance, Brasília não vive mais seu climaépico e seus dias de festa. A edição do AI-5, a feroz repressão aosdescontentes, a resistência dos grupos que se organizam e picham

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paredes à noite, a violenta invasão do campus da UnB, as blitzen dapolícia, resultando em prisão e tortura, o fechamento do Congresso– tudo isso transforma a alvorada da nova capital em noite deopressão. A cidade deixa de ser um oásis para transformar-se emcampo de guerra, e isso é retratado em cenas impressionantes nesteprimeiro segmento, que inicia com uma referência do protagonistaao filme “O cão andaluz”, de Luís Buñuel. O romance se inicia coma primeira cena desse primeiro filme de Buñuel: “A navalhacortando aquele olho em dois, como se fosse um ovo cozido meiomole, cara. Aquilo não me sai da cabeça” (SILVEIRA, 2004, p. 11).No filme, a cena inicial mostra uma mulher que tem seu olho cortadopor uma navalha de um homem e vai encadeando uma série deimagens oníricas, como se fossem um pesadelo. As imagens finaisdo romance referem-se, também, às cenas finais do último filme docineasta: “Labaredas de fogo, vermelhas, alaranjadas, pretas, sobeme envolvem os cacos, pedaços e fragmentos, tudo que foi explodido.A tela é chama” (SILVEIRA, 2004, p. 331).

Este cineasta espanhol, fortemente influenciado pelo surrea-lismo de Dali, comprazia-se em chocar as platéias com cenas deinsólita violência. Sua presença neste livro, nem sempre explícita,pode ser percebida desde o título até as últimas páginas, costurandoo texto, mantendo sua unidade. Edu reflete sobre o fascínio que ossurrealistas exerciam sobre o grupo ressalvando que ele e seusamigos queriam “ir além do escândalo surrealista.” Diante das cenasde violência presenciadas em Brasília, dentro e fora do campusuniversitário, com a prisão e tortura de tantos militantes jovenscomo eles mesmos, o bizarro mundo de Buñuel já não parecepertencer apenas a pesadelos. Ou, por outra, também o oposto éválido: a vida no Brasil tornara-se surreal, deixando os domínios doplausível para ingressar nas trevas de um pesadelo que parecia nãoter fim. Na esperança de contribuir para o fim desse pesadelo, Eduvai embora de Brasília na noite de 31 de dezembro de 1968.

O tempo de TadeuO relato de Tadeu, como comprova o recorte de jornal que abre

o segmento, ocorre em 16 de outubro de 1978, dez anos depois dapartida de Edu de Brasília. Ou seja, há um lapso de praticamentedez anos de silêncio interpondo-se entre a fala de Edu e a de Tadeu.Um tempo assim definido por Tânia Pellegrini em seu livro Gavetasvazias: ficção e política nos anos 70:

Os anos 70, na verdade, iniciaram-se com o AI-5, em 68, eterminaram com a anistia e a “abertura”, em 79, caracterizan-

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do-se, assim, como um período francamente marcado pelamilitarização do Estado e por todas as conseqüências resultantesdesse fato para a vida econômica, política, social e cultural do país.(PELLEGRINI, 1996, p.5).

No que se refere à vida cultural, a repressão se fez princi-palmente por meio da censura, que atuava de maneira drástica,implacável e não raro obtusa sobre jornalistas, professores, literatos,cineastas, produtores de TV, compositores, dramaturgos, sejaimpedindo a divulgação de suas idéias ou de seus produtos, sejaperseguindo-os como cidadãos. O exílio voluntário foi a saída demuitos intelectuais e artistas nesse período. Muitos romancistasencontraram a válvula de escape para sua insatisfação na literaturafantástica, como fez José J.Veiga, em A hora dos ruminantes (1966) eSombras de reis barbudos (1972), ou Érico Veríssimo, em Incidente emAntares (1971). São produções análogas, em sua estranheza, aosfilmes surrealistas de Buñuel, que os protagonistas deste romancede Maria José Silveira tanto amavam.

Tanto na atmosfera fantástica como na surreal espelha-se asituação anômala, violenta e incompreensível que tomou conta doBrasil durante os anos negros da ditadura militar. No romance deMaria José Silveira, contudo, Tadeu não parece interessar-se poresse lado engajado e insubmisso de sua geração – e especialmentede seu grupo de amigos – diante da repressão política. Seu desejode libertação é mais pessoal e restrito. Diz respeito apenas a simesmo.

Para falar de Tadeu, é preciso considerá-lo em relação aorestante do grupo – ele era o diferente, por ser rico e ser ho-mossexual (ainda que não assumido, nos seus tempos de Brasília).É preciso, sobretudo, considerá-lo em relação a Edu e Esmeralda, jáque formavam um triângulo amoroso bastante peculiar. Edu morrevítima da repressão ignorando a paixão de Tadeu e ignorandoigualmente o resultado de sua única noite de amor com Esmeralda.Tempos depois, em décadas diferentes, Tadeu e Esmeralda tambémtêm destinos trágicos, ele vítima da Aids, ela, de uma ação terroristano exterior. Não se trata, na verdade, de um triângulo de trêsamantes em disputa erótica, mas de três indivíduos encarcerados,cada um, em sua irreparável solidão.

Um aspecto crucial na diferença de perfil de Edu e Tadeu dizrespeito às suas maiores preocupações. Edu, interiormente bemresolvido, volta seu olhar para fora, para o social, para a vidapolítica do país e adere ao movimento de resistência ao regime. JáTadeu volta seu olhar para dentro de si mesmo, pois o cerne de seus

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problemas está na sua busca de identidade. No início de seu relato,lembra a composição do grupo:

Dali, além do Edu, só Dina tinha militância; nós, os outros, éramosda famosa, leviana, irresponsável e maravilhosa esquerda festiva.Tonho era o cineasta, Esmeralda, a artista, e eu, o que era eu?

A bicha. (SILVEIRA, 2004, p.74).

Apesar da propalada liberdade sexual e quebra de barreirasdiscriminatórias da década de 60, Tadeu se debate com suaorientação sexual. Sabe-se homossexual, mas quer impressionar osoutros – e a si mesmo – como heterossexual (chega até a simular umnamoro com uma menina de “corpo hermafrodita” chamada Darcy,“um nome unissex”). O grande trauma que guarda do tempo emBrasília é seu amigo Tonho, num acesso de destempero, havê-loxingado de “Bicha patética”.

Depois de um confronto com a polícia – que só vai ser escla-recido mais adiante, no relato de Tonho – decide abandonar o cursode Arquitetura no começo dos anos 70 e ir embora. Vai para o Rio, ésua segunda fuga. A primeira fora de Salvador para Brasília, anosantes. Não vai, como Edu, ao encontro da Revolução, mas vai aoencontro de si mesmo. De fato ele se encontra, ao deixar emergirsua natureza feminina, que ele assume como Mirley, codinome comque enfrenta suas guerrilhas noturnas pessoais pelas ruas einferninhos do Rio.

O segmento dedicado a Tadeu tem por subtítulo “Os arautosnegros”, nome do poema que dá nome ao volume de estréia dopoeta peruano César Vallejo. É o livro preferido de Tadeu, comoconfirma Dina mais adiante, livro que vai acompanhá-lo sempre, àcabeceira de sua cama, até a morte. É pelo menos curioso observaros muitos aspectos que identificam o poeta e seu leitor. Vejamosalgumas dessas aproximações.

Ambos são caçulas, inseguros e desajustados. Ambos têm pro-blemas de identidade, o poeta, por não saber a data exata de seunascimento; Tadeu, por não sentir-se apto a definir-se sexualmente.Um e outro aderem ao comunismo e ao movimento revolucionárioapenas cerebralmente, sem se comprometerem. Preferem resguardaruma certa independência, mantendo-se livres de jugos. Outroelemento curioso a uni-los é a ascendência religiosa em suas fa-mílias. Vallejo era filho de um padre, enquanto Tadeu era filho demãe carola. Aliás, no que se refere à presença de padres nas suashistórias de vida, vê-se que, no caso de Vallejo, o padre era seu paibiológico; no de Tadeu, o padre em cena é um sedutor, que osodomiza quando menino.

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O poeta e seu leitor são fruto de mestiçagem, ainda que bastantediversa, pois o peruano era mestiço racial, filho de espanhol e deíndia, mas Tadeu era (se poderíamos assim dizer) um mestiço social,filho de um homem sem fortuna e sem caráter que se casa com umamoça rica e religiosa. Sendo baiano, além disso, a mestiçagem racial,tão disseminada na região, talvez também se estendesse a seusantepassados, o que, se não é declarado, tampouco é desmentido.Também a morte irmana Vallejo e Tadeu, tendo ambos morridoainda relativamente jovens, de doenças então pouco conhecidas, oimpaludismo e a Aids, respectivamente.

Existem muitos fios que unem as histórias de vida dos cincoamigos, seja nas suas semelhanças, seja nas suas diferenças.Vejamos, por enquanto, as que ligam Edu, Tadeu e Esmeralda, oslados do mencionado triângulo. A constelação familiar de Tadeumantém pontos de semelhança e de contraste com a de Edu. Sendode Salvador, é nordestino como o amigo, mas sua posição na famíliaé oposta: enquanto Edu é o primogênito, Tadeu é o caçula. Edu temum irmão bem mais novo, que ainda só se interessa por esportes;Tadeu tem dois irmãos bem mais velhos, já definidos na vida e queo desdenham. Esmeralda, que mora num subúrbio do Rio, é filhaúnica.

Na família de Tadeu, o relacionamento com os pais mostra umfranco desequilíbrio: a frieza e opressão do pai é contrabalançadapelo protecionismo e devotamento da mãe, atitudes que se opõemao equilíbrio saudável dos pais de Edu. Esmeralda, o leitor ficasabendo bem mais tarde, vive uma situação aparentemente normal,mas, de fato, bem mais dura do que Tadeu, pois, à revelia da mãe, opai dispõe dela como de uma mercadoria para agradar seu superiore dele obter favores.

Entrando por esta seara, é interessante notar que, de mododiscreto, a autora estende um fio sutil unindo as três histórias,costurando a infância desses três amigos com um mesmo tipo deepisódio, com variações de intensidade e de conseqüências. Trata-se das cenas de voyeurismo presenciadas por Edu, Tadeu e Esme-ralda quando crianças. A avó de Edu, em sua fazenda, e o pai deTadeu, em sua casa na Bahia, são espreitadores de fechaduras, altashoras da noite. Ambos têm em comum serem representantes de umasociedade arcaica e patriarcal em decadência, mas que, nem assim,perdem a pose e o autoritarismo. Some-se a essa pose a hipocrisiaencobrindo a devassidão e teremos uma imagem metafórica dopróprio regime.

Essa metáfora fica um pouco mais nítida quando se chega àhistória de Esmeralda, ela própria testemunha e objeto do olhar

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lascivo do superior do pai, um militar de alta patente, a quem opróprio pai facilita investidas pedófilas. Percebe-se, pela compa-ração, que há uma gradação nessas exposições precoces dos trêsamigos à luxúria. Os efeitos em sua vida emocional também foramdistintos: Edu esqueceu completamente o teor dos casos escabrososcontados pela avó e apenas menciona as andanças da velha pela casanoite adentro; Tadeu, em sua orientação sexual mal resolvida,guarda viva lembrança de cenas noturnas, de deboches de colegase de abusos na sacristia; Esmeralda reage pela negação, nadarevelando de sua infância, criando uma fantasia de iniciação sexuale uma imagem de si mesma “pelo avesso”, professando-se liberada,adepta do amor livre. Com sua carta, ao final, o leitor fica sabendoque toda essa liberação não passava de máscara, um recurso deautodefesa.

A propósito, outra convergência entre Tadeu e Esmeralda refere-se justamente às fantasias que ambos entretêm sobre seu respectivo“desvirginamento”. Esmeralda cria uma ficção envolvendo um vagoprofessor do ginásio, e Tadeu, uma fantasia que se aproxima bas-tante do que realmente aconteceu com Esmeralda:

Bem que gostaria de ter sido deflorado de uma maneira única, rara,quem sabe por um coronel machão e autoritário, um coronelvestido de terno branco, meias brancas, perfume de gardênia,alguém assim como tio Antenor, de bigodinho à Carlos Gardel,lencinho branco de cambraia com as iniciais bordadas, e ar deirresistível sedutor barato e autoritário, chegando e dizendo, Vemcomigo, cabrinha da peste! (SILVEIRA, 2004, p.82-83).

Tadeu e Esmeralda têm, ainda, outra aproximação, as obras quecriam e que sobrevivem a eles, seus escritos e seus produtos de artesplásticas. Mais uma vez, são semelhanças divergentes. Formada emArtes, Esmeralda instala-se em Nova Iorque, onde tem um estúdioe é conceituada; Tadeu faz objetos que chama de “armações”, a quenão dá importância, mas que acabam sendo valorizados depois desua morte. De ambos ficam textos escritos, de Esmeralda, a cartaem que revela tudo o que escondera dos amigos durante tantos anos;de Tadeu, seus escritos reunidos em um livro póstumo.

E aqui há um nó a mais atando firmemente esses dois catetos àimagem de Edu – o livro, dedicado a ele, traz sua foto, em plenajuventude, sobre um relvado de Brasília. A carta de Esmeraldarevela que, na noite de despedida, sobre a relva de Brasília,concebera um filho de Edu, filho que repete, nos traços e no caráter,aquele jovem guerrilheiro idealista. Como o pai, seguiu Medicina e,como ele também, esteve em Cuba, não para treinar o manejo dasarmas, mas para especializar-se como médico.

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Um último comentário sobre esse triângulo diz respeito à esco-lha do foco narrativo com que a autora construiu seus relatos. Vi-mos que o primeiro segmento narrativo é totalmente realizadoem primeira pessoa, pela voz de Edu, escolha que se afina com asinceridade e transparência do jovem revolucionário. A história deTadeu, ao contrário, alterna os focos entre a primeira e a terceirapessoa, esta aderida à sua consciência, ainda que se expressandocom uma linguagem mais contida e formal. Esse recurso serviupara sublinhar a duplicidade do personagem, dividido entre a perso-nalidade de Tiago e a de Mirley. No caso de Esmeralda, o seu relato sefaz em forma de carta, com pequenos trechos explicativos ou des-critivos inseridos pela voz de um narrador de fora de cena, comoalguém que a observasse por cima do ombro enquanto escreve.

A carta implica um teor de distanciamento que a simplesnarrativa em primeira pessoa, como a de Edu, não tem. Trata-se,evidentemente, de uma ilusão do leitor, que imagina estar rece-bendo uma confidência em primeira mão, de viva voz. Essa pre-sentividade não é sentida numa carta, pois que ela necessariamentesupõe distância física e temporal. Uma carta sempre é passado.Também este recurso revelou-se uma escolha feliz da escritora, poisque reforça a impressão de distanciamento que Esmeralda semprecultivou em torno de si, não se permitindo aproximações demasiadoafetivas. O Epílogo, que fecha a história de Esmeralda e dos ami-gos que restaram, retoma o foco de terceira pessoa, como umacâmera cinematográfica que se afasta lentamente para o estampar apalavra FIM.

O tempo de DinaO terceiro segmento narrativo deste romance, dedicado a Dina

e datado de outubro de 1988, tem como subtítulo “O ciclo daságuas”. O leitor fica sabendo que, a essas alturas, ela superou ospercalços enfrentados durante a ditadura e lidera uma ONGambiental, cuja maior preocupação é a preservação dos recursoshídricos. O subtítulo, então, aponta para um dado objetivo e realista,bem de acordo com a cabeça dessa ex-guerrilheira, também alta-mente realista e objetiva. À frente de sua ONG, Dina promovepalestras, que ela costuma iniciar assim: “Um dos fenômenos maisbonitos da natureza talvez seja o ciclo das águas, o ciclo contínuo econstante de renovação da água que existe no planeta” (SILVEIRA,2004, p.185).

Esse preâmbulo, aparentemente informativo, científico e racio-nal pode ser entendido metaforicamente como uma representação

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da própria vida de Dina, feita de renovação desde sua volta doexílio. Esmeralda, artista que é, percebe essa sua aproximaçãosimbólica com as águas correntes. Junto com a carta de 2003, envia-lhe uma pintura sua, retratando um rio, e diz à amiga: “A imagemmais duradoura que tenho de você é junto a um rio, o seu rio à beirada infância que, tenho certeza, é parte fundamental do que há demais genuíno em você” (SILVEIRA, 2004, p.314). Por isso mesmo,não se pode descartar um viés simbólico na escolha do subtítulodesse segmento narrativo. A expressão “ciclo” sugere imagensdinâmicas, águas em movimento, em processo de troca ou reno-vação. Rios, mares, chuvas são imagens logo suscitadas à mente doleitor, e isso é significativo no contexto das intenções que corremsubterraneamente reforçando o enredo deste livro.

As águas correntes do rio constituem a clássica representaçãodo tempo que passa e segue sempre adiante, sem retornar. É o rio,então, a fiel representação do tempo cronológico, linear e irre-versível. Vimos que o tempo que encadeia os segmentos narrativosde O fantasma de Luís Buñuel é exatamente esse tempo cronológico,apresentando as ações linearmente de 1968 a 2004. Dentro de cadasegmento, contudo, a consciência de seu narrador ou protagonistaliberta-se dessa inexorabilidade e flutua entre o passado recente e oremoto, em busca de suas lembranças. Também esse tipo de recursoé nomeado com uma alusão às águas, é o fluxo de consciência.

De forma indireta, essa imagem do rio-tempo também é sus-citada nas lembranças que Dina traz da sua infância em Goiás Velho,lembranças que sempre põem em destaque o fato de sua antiga casasituar-se às margens do Rio Vermelho, como a famosa casa de CoraCoralina. Além disso, o presente de sua narrativa – o ano de 1988 –se passa no Rio de Janeiro, cidade que ela escolheu para morar.Como se vê, a alusão às águas e ao tempo está contida de mo-do quase imperceptível nos “rios” desses dois nomes geográficos(“vermelho” e “de janeiro”). Sem dúvida, esse é um dado menor,mas também ele contribui discretamente para a formação de umarede de significados amarrando os diversos elementos que com-põem este romance.

Desde o relato inicial de Edu, exatos vinte anos transcorreram.Este também é um dado significativo, ainda que sutil. Isto porque“vinte” não é um número qualquer. Ele se reveste de pelo menosduas conotações, uma convencional, outra simbólica. Duas décadasé o que se convenciona identificar como o tempo de uma geração,ou seja, o período necessário para uma família ou uma sociedaderenovar-se. Numa dimensão mítica, é também o tempo que Ulissespassou fora de casa, metade na Guerra de Tróia, metade perdido no

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mar. Quer dizer, é o tempo de um ciclo completo, de uma viagemde retorno, o prazo de uma volta às origens, de um recomeço devida.

Tendo em mente essas aproximações que a água mantém com otempo, é preciso lembrar outros dois atributos das águas, que são oseu poder de limpeza e a sua força de fecundação. Da combinaçãodesses dois atributos decorre associarmos a água a rituais derenovação, de renascimento, de perdão, de vida nova. Sob essaperspectiva, a atividade ecológica de Dina faz sentido. A volta doexílio, em 1978, com a anistia, marca um recomeço em sua vida, comum redirecionamento de suas metas.

É provável que a morte do pai, contaminado por mercúrio numgarimpo de rio, assim como sua própria esterilidade, decorrente datortura que sofreu na prisão estando grávida, tenham pesado na suaescolha, definida longe do Brasil, na França, onde começara atrabalhar com questões ambientais. O fluir e o renovar da vida,realizados naturalmente pela sucessão de gerações familiares, Dinavai concretizar metaforicamente, pela salvação das águas na Terra.Do fogo da revolução socialista, que ela acreditava salvadora, Dinavolta-se agora, findo o exílio, para a água, como meio de salvaçãodo planeta. O idealismo e o empenho são os mesmos, mudou a corda sua bandeira de luta: de vermelha passou a verde.

A sua mira não está mais assestada na vida político-socialbrasileira, mas vai mais além: na vida em si mesma, na sobre-vivência da humanidade. O espectro de suas preocupações amplia-se, depois das amargas experiências com a prisão, a tortura e oexílio. Sua chama não está extinta, mas, ao contrário, passa a brilharmais alto. Não é sem motivo, portanto, que Dina, juntamente comTonho, cinegrafista na sua ONG, sejam os sobreviventes do grupo,os únicos que permanecem até o final do livro.

Na reedição de Literatura e História no Brasil contemporâneo,Nelson Werneck Sodré faz breves acréscimos, já sob a perspectivada ditadura encerrada, num dos quais se lê, a propósito da per-seguição aos intelectuais durante o regime militar: “Boa parte delespassou pelos cárceres, optou pelo exílio, muitos sofreram vexamesde toda natureza, inclusive a tortura física e moral mais inominável.Um furacão de violência varreu a cultura brasileira” (SODRÉ, 1999,p.55-56).

O leitor reconhece nesse trecho uma parte da história de Dina, aparte mais escura, iniciada em Brasília, quando ela foi inespera-damente capturada pela polícia. Esse incidente – a prisão de Dina,pouco depois de Edu entrar na clandestinidade – reaparece comoalusão por diversas vezes ao longo dos relatos, sempre de modo

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incompleto, cheio de hiatos e subentendidos. A primeira alusãoaparece bem no início da fala de Tadeu, quando ele declara que nãoquer mais ver ninguém, muito menos o Tonho, que ele “só toleravapor causa do Edu”, arrematando: “Depois, então, daquele entreveronosso, aí sim, o ódio se declarou”. Três parágrafos depois, relata:“Quando a Dina também foi presa – barbaridade! Não posso nempensar nisso – e depois se mandou, a Esmeralda se formou e foimorar nos States, aí então não nos vimos nunca mais” (SILVEIRA,2004, p.74).

Ao leitor não ocorre relacionar o “entrevero” e o “ódio” de Ta-deu à prisão de Dina. Pouco depois, uma voz narrativa de terceirapessoa informa que Tadeu se mudou para o Rio no começo dos anos70 “por causa de Edu e do que aconteceu em Brasília” (SILVEIRA,2004, p.80), sem entrar em detalhes. Mais adiante, “o incidentehorroroso”, que resultou na “abominável prisão de Dina” é re-tomado, ainda de forma vaga. Tadeu diz ter dado carona a Tonhouma noite, quando teve o carro cercado pela polícia:

Desceram cinco meganhas.

E pronto, pronto, pronto! Acabou! Sai pra lá, desconjuro, vaderetro, Tadeu não quer pensar naquilo, mas foi aí que aconteceu aprisão de Dina. [...] Ele não pôde mais suportar Brasília, depois.(SILVEIRA, 2004, p.87).

No reencontro com Esmeralda, quando ela lhe diz que Dinachegaria do exílio no dia seguinte e comenta que, com a anistia, oBrasil começava “a refazer um pouco do que perdeu”, Tadeu ficaindignado e pensa para si: “Refazer seu cacete! [...] Como se fossepossível refazer os horrores que fizeram! As vidas destruídas, asvergonhas, os caminhos fechados, o [...] filho da puta do Tonho!”(SILVEIRA, 2004, p.94). Adiante, Tadeu tem um pesadelo, emque vê

Tonho agarrado por dois milicos e apanhando. Tonho berrando,seus filhos da puta, me soltem, cornos. Tonho quebrado, depoissentado, sangue na cara, um ódio horrendo nos olhos, escorpiõesgrandes e peludos subindo pela trilha do sangue que escorre dasua cara até os pés com meias de seda preta, mas sem sapatos, ossapatos escapuliram de seus pés na surra. (SILVEIRA, 2004, p.104).

Ora, como o leitor até então presume que só os dois militantes,Edu e Dina, tivessem sido presos e torturados, ele interpreta essepesadelo como um desejo secreto de Tadeu, querendo vingar-se dasgrosserias de Tonho. O texto não autoriza nem descarta essahipótese, e Tadeu nada mais adianta sobre o caso. No relato de Dina,esse sentimento troca de lado. É Tonho que aparece sempre com

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comentários ácidos sobre Tadeu, e ela pensa ser doentio esse ódio:“essa inveja que não o deixa em paz, mesmo depois de anos do caramorto” (SILVEIRA, 2004, p.153).

A questão se mantém obscura até o relato seguinte, quando opróprio Tonho revela haverem sido, ele e Tadeu, torturados naquelafatal noite em Brasília e mais, que Tadeu resistiu, mas ele delatou aamiga. Logo ele, o macho, se acovardou, deu parte de fraco eentregou Dina. O peso dessa culpa, ao longo dos anos, vinha sendoseu cárcere particular, sua tortura pessoal. A longa experiência devida e o conhecimento do ciclo das águas levam Dina a umainesperada reação, pega na mão de Tonho e lhe diz: “Você foi umavítima tanto quanto eu. O torturador é o único responsável porsua vítima; e a vítima é vítima, apenas isso, vítima. Em nenhummomento pode ser culpada pelos atos de seu algoz” (SILVEIRA,2004, p.222). Põe, em seguida, “uma pedra definitiva sobre isso” ereata a amizade, purificada pelas águas do perdão.

O tempo de TonhoO segmento dedicado a Tonho intitula-se “As metamorfoses”,

tem data de 14 de outubro de 1998 e principia com um encontro dostrês amigos, Tonho, Dina e Esmeralda, agendado dez anos antes.Este é, de fato, o único encontro marcado pelo grupo, uma vez que osanteriores haviam sido casuais, obra do destino, e o seguinte não chega aconcretizar-se. Apesar de tudo, esses encontros são emblemáticos,porque servem para reforçar vínculos antigos, de natureza afetiva,fortemente enraizados em cada um dos quatro amigos.

Retomando a constelação familiar dos protagonistas, observa-se que Edu constitui um caso isolado, por ter uma família que atendeaos padrões de união e afetividade idealmente esperados. Sua morteprematura e cruel também é um caso único no grupo, alçando-o auma categoria acima da banalidade do cotidiano. Por isso, mesmoausente de fato, ele continua vivo na lembrança dos amigos ao longode todo o romance. Como na fotografia preservada por Tadeu, Edupermanece vivo, idealista e belo, imune à ação devastadora dotempo, revestido de uma aura de herói. A seguir, observaremos asconstelações familiares dos outros quatro amigos, que podem serconsiderados dois a dois, pelas suas semelhanças.

As famílias de Tadeu e de Esmeralda apresentam um fortecomponente de prepotência, enquanto as de Dina e Tonho marcam-se pela passividade. Aliás, essas características têm seu contrapontosocial, respectivamente, no governo autoritário e na submissão dopovo durante os anos de repressão.

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Percebe-se que nas famílias dos quatro amigos sempre há umdesequilíbrio entre as figuras paterna e materna. No caso do pai,põe-se em destaque ora o seu autoritarismo, ora a sua ausên-cia. Quanto à mãe, ora ela é protetora, ora é carente de proteção.Trata-se de um mesmo padrão, trabalhado em suas variações.Vejamos:

Tadeu tem um pai prepotente e rancoroso. O senador Lamartineé um político corrupto, com todas as manhas e vilanias de um típico“coronel” patriarcal. A mãe, em contraste, é carola e ingênua.Contudo, há uma forte ironia no fato de ela não ser exatamenteaquilo que aparenta ser. Como é rica, mantém sob rédeas o marido(que casara com ela por interesse), conservando a fachada de esposadócil e submissa.

Vê-se que o pai de Esmeralda contrasta com o pai de Edu noque se refere à sua vinda para Brasília. Enquanto o de Edu par-ticipou ativamente da construção das estradas em torno da novacapital, o de Esmeralda locupletou-se em negociatas imobiliárias –ao pai construtor, então, opõe-se o pai predador. Este último tam-bém repete o padrão do pai de Tadeu. É igualmente um políticocorrupto e, desta vez, a ironia tem por alvo o sistema, visto que,além de político, ele é militar, faz carreira na Marinha – e, pior,dispõe-se a vender a própria filha em troca de favorecimentos deseu superior hierárquico. Esmeralda e Tadeu são, ambos, vítimasdesse autoritarismo exacerbado e são vítimas da violência familiare social, uma forma de violência que começa no seio da família e seexpande para o convívio social.

No comportamento dos dois protagonistas, isso vai manifestar-se sob duas espécies de reações, uma destrutiva, outra construtiva.A primeira se evidencia nas relações sexuais promíscuas, quedisfarçam uma forte carência afetiva, enraizada na infância. Poroutro lado, a reação construtiva se faz pela expressão artística, sejapor meio de formas plásticas (quadros e esculturas/“armações”) oude palavras (a longa carta confessional/o livro póstumo e as peçasteatrais inéditas).

As mães desses dois protagonistas são protetoras, cada uma aseu modo. A de Esmeralda toma uma atitude enérgica ao ver o queacontecia quando deixava a menina sozinha com o pai; a de Tadeudedica-se a ele integralmente, quando ele é acometido de Aids. Sãomães ativas e protetoras (ainda que a de Esmeralda tenha seusmomentos de insegurança), dotadas de amor incondicional, mãescom quem se pode contar. Sabe-se depois, com as revelações de sualonga carta, que Esmeralda pôde contar com a mãe até mesmo paracumprir o papel que lhe caberia na criação de seu filho.

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Dina e Tonho, por sua vez, também apresentam perfis familiaressemelhantes, marcados pela passividade. Na vida familiar dosquatro amigos a violência está presente desde a infância: Esmeraldae Tadeu são vítimas de violência ativa (o autoritarismo do pai e, nocaso da menina, do assédio do superior do pai; a chacota dosmeninos na escola, o assédio do padre e o desprezo do pai, no casode Tadeu), enquanto Dina e Tonho são vítimas de outro tipo deviolência, menos exposta, mas igualmente danosa, a violênciapassiva, feita de omissões e de ausências.

A mãe de Dina é cardíaca e depende da filha para tudo, a deTonho é humilde e a tudo se submete em troca de seu magro saláriode costureira. Dina, ainda criança, aprende a arcar com respon-sabilidades próprias de um adulto, nos cuidados com a mãe doente.A solidariedade é um traço de seu caráter que vai acompanhá-lavida a fora, como quando, reencontrando-o, acompanha Tadeu emsua doença.

Esmeralda, nos momentos de depressão de sua mãe, tambémassume com ela um papel protetor. Tonho, por sua vez, acom-panhando a mãe nas casas das clientes ricas, aprende em duraslições as primeiras noções de desigualdade social, servilidade edependência econômica.

O pai de Tonho morreu jovem, o de Dina foi embora quandosua mãe faleceu. Portanto, ambos são órfãos desde a infância – eisso reforça, na sua exemplaridade e pela via da metáfora, o climade orfandade instaurado no país ao tempo da ditadura. São os sutisfios que cosem a ficção à História.

Pode-se dizer que Tonho e Dina apresentam-se como umaoposição, com a peculiaridade de serem opostos e complementares,como o direito e o avesso de um mesmo tecido. As semelhanças,que incluem a origem pobre, a orfandade, o abandono da cidadenatal, a paixão pelo cinema, a convivência na UnB, são o direitodesse tecido metafórico; as diferenças de gênero (masculino/feminino), o engajamento político (“esquerda festiva”/militânciaativa), o caráter diante da adversidade (delação/resistência), adeterminação em perseguir metas definidas (atividades variadas/canalização de objetivos na ONG) são o seu avesso. Não é deestranhar, então, que o relacionamento entre eles seja um misto deódio e afeto. Trata-se de um sentimento incômodo, mas inarredável,que os une ao longo de toda a vida. É significativo, então, que, detodo o grupo, somente esses dois sobrevivam até o fim do romance.

Um dado menor, mas que também se sintoniza com essasausências familiares é o local de origem de Tonho e Dina. Ambosprovêm de regiões que no passado tiveram papel de destaque na

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economia nacional, mas que atualmente vivem um tempo dedecadência. Dina vem de Goiás Velho e Tonho, de Manaus, cidadesdestacadas ao tempo dos ciclos do ouro e da borracha, respecti-vamente, mas que hoje perderam seu lugar no centro econômico dopaís e se tornaram periféricas. Essa conjunção de orfandade e faltade oportunidades em seu próprio meio motivou Dina e Tonho aemigrarem, a buscarem novos horizontes. Saídos de cidades deextintas glórias, é bastante natural sua escolha por Brasília, anovíssima capital do Brasil, onde tudo ainda estava por ser feito eonde não pesavam as tradições de nomes pomposos e de famíliasseculares. Brasília, ainda sem um passado próprio, era para osrecém-chegados um lugar onde seria possível construir a própriaidentidade e deixar sua marca pessoal.

O padrão de desencontro familiar é retomado com variações navida adulta dos protagonistas. Passadas mais de duas décadas – otempo de uma geração, o tempo de uma ditadura e o tempo de umajuventude – vemos que os desencontros se repetem e, com eles,ressurgem de sob as cinzas questões vinculadas à identidade e àpermanência, cruciais na vida de qualquer pessoa.

A questão da identidade admite diversas nuanças, como, porexemplo: saber com certeza a identidade familiar (a filiação, agenealogia); definir-se como gênero (masculino/feminino); conse-guir realizar suas metas na vida (ser alguém). A questão da iden-tidade está fortemente associada à da permanência. Buscar o paidesconhecido ou o filho que se extraviou é procurar, na linhagenealógica, a continuidade da vida que corre no sangue da família.É tentar encontrar a garantia da eternidade nos antepassados epreservá-la nas gerações futuras.

A identidade como gênero, entendido aqui como orientaçãosexual, vincula-se obliquamente à identidade familiar, ou de sangue,porque é fator determinante para a continuidade ou o estancamentodas gerações familiares. É uma questão de permanência ou de fim,de vida ou de morte.

A terceira espécie de busca de identidade, que é realizar asmetas de vida, alcançando notoriedade pela ciência ou pela arte, éoutra maneira de vencer o tempo e as limitações humanas. Em Ofantasma de Luís Buñuel, os personagens principais lidam com ques-tões relacionadas a esses três tipos de busca de identidade.

A identidade familiar não se coloca como tal para nenhumpersonagem. Todos são filhos legítimos, com nome e sobrenome.Contudo, a figura do pai aparece “desfocada” em graus diversos norelato de cada um deles. Tadeu é rejeitado pelo pai, que não admiteter filho homossexual. Como vingança, tem sua imagem ridicula-

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rizada numa peça teatral que Tadeu escreve. Dina teve na infânciaum pai calado, honesto, cumpridor. Mas, com a morte da mulher eo regresso da cunhada a Goiás, desaparece de cena e nunca mais dánotícias. Dina nada sabe dele ou de sua origem, guarda, em seulugar, o anel cujo brilhante fora por ele garimpado. Tonho perde opai muito cedo e, para os amigos, às vezes inventa uma biografiafantasiosa para esse pai perdido. Esmeralda também, como osoutros, “esconde” o pai, pois ele faz parte de uma parte dolorosa desua infância, que ela prefere apagar da memória.

A identidade de gênero é problema somente para Tadeu e eleassocia esse seu drama pessoal às três cidades onde viveu: Salvador,onde sua natureza se manifestou e onde sofreu a chacota doscolegas, o assédio do padre e o desprezo do pai e dos irmãos;Brasília, onde treinou o disfarce, tentando parecer heterossexual,sem sucesso; o Rio de Janeiro, cidade onde conseguiu, afinal,assumir sua verdadeira natureza, mantendo, embora, a ambi-güidade da personalidade dupla Tadeu/Mirley.

Nessa questão da identidade sexual, é interessante ver que osdois “catetos” têm pontos de semelhança. Enquanto Tadeu, assu-mindo-se homossexual, vive de fato com sucessivos namorados,Esmeralda, que é hetero, não se importa que os outros pensem queela é lésbica, ao manter uma longa e estranha convivência com umaartista plástica tida como homossexual: “Cida só era diferente comEsmeralda, por quem foi platonicamente apaixonada” (p.294).

A permanência, que é a outra face da identidade, veremos aseguir, nos comentários às partes finais de O fantasma de Luís Buñuel,relativas a 2003 e 2004.

O tempo de EsmeraldaBela e criativa, mas sempre com um ar meio ausente, Esmeralda,

a quem se refere o quinto segmento narrativo deste romance, é umaespécie de musa do grupo. Ela encarna o comportamento liberadodos novos tempos, entrega-se a quem lhe apetece, sem nada exigir,sem se submeter a vínculos ou compromissos. Objeto da paixãojuvenil de Edu, ela parece não se interessar por ninguém e conservauma aura de mistério em torno de si. Residindo no exterior, fazvisitas periódicas ao Brasil, em algumas das quais revê os amigos.Tadeu assim descreve Dina e Esmeralda:

[elas] formavam uma duplinha de amigas bem bizarra, vamos serfrancos. Dina cheinha, baixinha, mignon,e Esmeralda, a bela, amajestosa, a vestal que só não era vestal porque dava pra todomundo. Mas alheia, lá no alto, no seu ar rarefeito, sempre na dela,Esmeralda, nossa Passionária Libertária, nossa Anita Garibaldi(SILVEIRA, 2004, p.73)

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O segmento narrativo dedicado a ela surpreende o leitor, poisrompe o padrão mantido nos relatos anteriores com relação à data,ao formato e ao tom. O intervalo de uma década entre cada encontroé antecipado em cinco anos, e Esmeralda assim se justifica paraDina: “Tenho muitas coisas para lhe contar [...] A primeira é cancelardefinitivamente nosso encontro marcado para o distante outubro de2008. Por um motivo apenas: esse encontro para mim virou umpesadelo” (SILVEIRA, 2004, p.277).

Como o encontro, também o texto muda de formato. O leitornão mais recebe de um narrador o relato de uma conversa de barentre amigos, mas compartilha com Dina a leitura de uma longacarta, enviada de Nova Iorque por Esmeralda. Essa não é uma cartacomum, é uma confissão. Os textos de natureza confessional, sejameles cartas, memórias, romances ou outras modalidades narrativas,costumam ter um certo padrão de estrutura, que esta parte doromance de Maria José Silveira confirma. Em primeiro lugar, umaconfissão costuma corresponder a uma combinação de segredo,angústia e culpa. Portanto, a confissão consiste na revelação dealgum fato grave em si, que provoca no indivíduo sentimentos demal-estar, como vergonha, pudor, culpa, remorso, arrependimentoou perplexidade.

Quem conta um segredo costuma fazer isso em voz baixa, emtom confidencial, em local reservado, ao ouvido atento de um amigoou de uma pessoa em quem confia. Mesmo assim, confessar não éfácil, é um ato que demanda esforço, que se faz vencendo barreirasde inibição. Essas características das confissões têm suas corres-pondências na estrutura narrativa deste segmento de O fantasma deLuís Buñuel.

Ainda no começo da missiva, Esmeralda encarrega a amiga Dinade repassá-la a Tonho, pois, segundo ela, depois de tanto tempotambém deveria saber. Será uma segunda sessão confessional,intermediada por Dina, dando à remetente a segurança de um duploafastamento. Ao longo de todo o texto mantém-se um tom intimista,que é sugerido até pela descrição que Esmeralda faz de si mesmaao escrever: “certas coisas só podem ser ditas por cartas, escritassem pressa, como agora escrevo esta, nesta manhã fria de outono,deitada no sofá do meu ateliê, apoiando o papel numa pequenaprancheta” (SILVEIRA, 2004, p.277)

Talvez a característica mais marcante das narrativas confes-sionais seja a hesitação, a dificuldade em revelar aquilo que pesa àconsciência. Essa impressão é obtida por dois procedimentosestilísticos. Um é a protelação. O narrador nunca vai direto aoassunto, mas anuncia-o repetidas vezes, intercalando sempre outras

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informações menos importantes. Com inúmeros rodeios, o narradorconcentra-se primeiro nos assuntos periféricos para só depois chegarao episódio central, aquele que o enche de angústia. Esse artifíciopode ser percebido com clareza, por exemplo, à p. 279 (segundo eterceiro parágrafos). Imagina-se que Esmeralda vai contar algo dostempos de Brasília, envolvendo os amigos do grupo, e ela tentacomeçar por aí, para logo fugir para o terreno da infância e daadolescência e desvelar suas primeiras e amargas experiênciasafetivas. São os segredos de seu passado mais remoto que ela vaiprimeiro revelar.

O segundo artifício é a mudança do foco narrativo, que oscilaentre a primeira e a terceira pessoa, ora afastando-se para uma visãobem externa, ora aderindo à consciência do personagem. Essemovimento de voz e de olhar também sugere o afastamento ou aaproximação de uma câmera cinematográfica, conforme já seapontou em relação ao tratamento dado ao tempo.

É próprio das cartas serem escritas na primeira pessoa, o quecria para o leitor a ilusão de ouvir o missivista contar suas históriasde viva voz, como se estivesse ali presente. Isso confere ao textoepistolar uma impressão de verdade e de sinceridade dificilmenteobtida por outro formato de texto. Escrever uma carta é expor-se, éentregar-se de peito aberto. Ocorre que é doloroso expor-se assim, épenoso colocar o dedo na ferida. A instintiva reação de recuo donarrador se manifesta, então, por uma fuga da primeira para aterceira pessoa do verbo. Observe-se como a autora procede à p.293,recriando a insegurança de Esmeralda:

Esmeralda pára de escrever e levanta os olhos do papel.Essa carta é certamente uma confissão, mas nem por isso é precisoque abra tão completamente sua alma, que se dispa de todos osvéus. Aprenda a ser mais equilibrada, mulher, diz a si mesma.[...]Não precisa, nem vai, contar tudo. (SILVEIRA, 2004, p.293).

Note-se que o excerto acima e seus desdobramentos no texto nãofazem parte da carta que Dina lê. São comentários à margem,confidências a que somente o leitor tem acesso. Ou seja, também oleitor é alçado à categoria de confidente de Esmeralda nesses hiatosque ela cria enquanto escreve sua longa carta. A virtualidade desseleitor sem rosto e a opção pela terceira pessoa criam as condiçõesnecessárias para Esmeralda seguir adiante com sua confissão.

Assim, passo a passo, ora em primeira, ora em terceira pessoa,ela começa a revelar a Dina suas pequenas e grandes mentiras,principalmente o fato que ocultou de todos os amigos por 34 anos:que teve um filho de Edu, concebido na noite em que ele saiu deBrasília para viver na clandestinidade.

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A carta revela-se um grande processo de catarse, uma retomadaavaliativa de sua vida, esclarecendo e passando a limpo com olharcrítico e sem auto-condescendência todo o seu passado. A preo-cupação em colocar suas obras à venda, fechar o ateliê e sair emviagem sem destino ou prazo preparam o desfecho que aguardaEsmeralda, encontrando a morte. A viagem, então, que é um lugar-comum de representação da morte é, para ela, a morte mesma, semmetáfora de permeio, e a notícia do atentado que a vitimou chegaaos amigos poucos meses depois da carta.

No segmento dedicado a Tonho, viu-se como a questão da buscada identidade mobilizou todos os amigos do grupo. Conquistar aprópria identidade corresponde, em geral, a assegurar a perma-nência para além dos limites humanos. Assim como a identidade, apermanência do indivíduo pode se dar pela genealogia, pela históriafamiliar. Conforme se viu, a definição como gênero pode invia-bilizar esse tipo de perenidade, como foi o caso de Tadeu, assu-midamente homossexual e sem descendência. Com relação aosdemais amigos, essa linha de permanência também ficou preju-dicada em maior ou menor grau.

Dina, apesar de estéril devido a torturas na prisão, garante suadescendência via adoção. Seus dois filhos não levam seu sangueadiante, mas levam seu nome e seu sentimento de família. Tonho,por sua vez, casa e tem uma filha, mas, devido a rixas com a famíliada mulher, tem de contentar-se em tê-la à distância, em outro país,vendo-a em visitas de férias. Ela leva seu sangue, mas a convivênciafamiliar fica destruída.

Edu e Esmeralda têm um filho, mas Edu morre sem saber desua existência e Esmeralda só torna público aos amigos esse filhopouco antes de morrer. Negando-lhe o amor do pai e o seu, Es-meralda impõe ao jovem Pedro o status de filho adotivo da avó. Elalhe concede a permanência pelo sangue, mas nega-lhe o afeto.

A outra forma de superação da morte é pela notoriedade, échegando a ser alguém. Edu alcançou esse patamar muito cedo,morrendo jovem e encarnando a imagem de herói – ou, se sepreferir, de mártir revolucionário. Morto, ele prossegue sendoeternamente jovem, belo e idealista.

Tadeu e Esmeralda asseguram sua imortalidade pela arte. Alémde algumas incursões na literatura, Tadeu produz o que chama de“armações”, experimentos com materiais fora do convencional, queele faz mais por desfastio, mas que acabam ganhando sucesso ealcançando boa cotação no mercado artístico. Esmeralda temformação acadêmica, cursou Belas Artes e emigrou para os EstadosUnidos, onde montou seu ateliê e produziu regularmente obras

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reconhecidas. Ao fazer um balanço de sua vida, porém, ela ques-tiona esse seu sucesso e sente necessidade de explicar para Dina“que não é a grande artista que Dina e Tonho pensam que é. Temalgum talento, sim, mas teve sobretudo sorte. Conheceu as pessoascertas nos lugares certos e soube jogar esse jogo, o jogo daspanelinhas do planetinha Arte” (SILVEIRA, 2004, p.303).

Dina e Tonho também garantem sua permanência pelo seutrabalho: Dina, dando sua parcela de contribuição para a salvaçãodo planeta, assegura a permanência coletiva, não apenas a indi-vidual. Ela continua, pois, em outro contexto, sua ação guerrilheirada juventude. Tonho é seu parceiro de trabalho, produzindo do-cumentários e filmes de preservação ambiental – também elemantém a postura mais “festiva” do que combatente de seus temposde estudante. É ele, no entanto, que com mais clareza e destaquecumpre sua meta de vida, que é a de produzir um filme de longametragem, desejo acalentado desde a universidade.

Na estréia, em fevereiro de 2004, conforme a autora narra noEpílogo deste romance, Tonho alcança simultaneamente sua iden-tidade e sua permanência. Pela primeira vez, ele aparece nomeadocomo um adulto, com nome e sobrenome – ele é Antônio Silvério –abandonando o hipocorístico, redução do nome original e marca dainfância. A abertura do filme arremata a história dos cinco amigos,ao trazer à cena o amado cineasta espanhol, numa referência queprovavelmente só esse seleto grupo de fãs de Buñuel seria capaz dereconhecer:

Na primeira imagem, antes dos letreiros, a câmara se detém namanchete de um jornal. Focaliza em close a manchete e depois seafasta, aos poucos deixando ver um homem de sobretudo echapéu, sentado de costas em um banco de praça perto de umabanca de revistas, lendo o jornal. Do alto, a câmera acompanha ohomem solitário que dobra o jornal, levanta-se e dirige-sevagarosamente para um cemitério. (SILVEIRA, 2004, p.329).

Como Edu emerge na produção póstuma de Tadeu (a foto nolivro), Buñuel emerge no longa de Tonho. Aliás, a menção explícitaàs manchetes do jornal aproxima o filme de Tonho ao livro de MariaJosé Silveira que o leitor acaba de ler. Também Edu emerge da cartade Esmeralda sob a forma do filho revelado. São os “produtos” queirão permanecer além da vida de seus criadores. O produto maisvalioso é Pedro – unindo, finalmente, Esmeralda e Edu e atando aspontas do romance.

Com a carta de Esmeralda e com o Epílogo, o romance se fecha,unindo os fios que haviam ficado soltos. Os subtítulos dossegmentos narrativos de Edu e de Esmeralda se completam, “A

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noite do princípio” (p.11) soma-se à “Manhã do fim” (p.277), su-gerindo a plenitude de um ciclo completo.

Ao longo de cada um dos cinco relatos, há ambigüidades, pontosobscuros, perguntas que ficam sem respostas, mistérios no ar. Tudo,porém, vai-se encaixando e as dúvidas todas se aclaram com aprogressiva entrada em cena de cada um dos protagonistas. O leitorpercebe, ao final da leitura, que tudo se encaixa, que o equilíbriodesejado se estabelece, nem sempre de acordo com os anseios decada personagem, mas de acordo com o possível e com os mis-teriosos desígnios de seus destinos.

O longo lapso temporal coberto por este romance (36 anos)também é significativo. Observando como o tema da repressãopolítica têm sido recorrente na ficção dos últimos anos, conclui-seque esse longo período foi também o prazo necessário para que osbrasileiros que viveram esse tempo pudessem “digeri-lo” e, final-mente, pudessem falar sobre ele.

No que diz respeito à construção do romance e à utilização dosrecursos estilísticos, constata-se que a autora se valeu de toda a sortede meios para tentar expressar, seja de forma clara ou disfarçada, oclima emocional instalado durante o governo militar, uma atmosferade medo, de hesitação, de instabilidade e os dramas existenciais detoda uma geração.

Com esse significado, é emblemática a imagem do fantasma deLuís Buñuel. Tendo a consciência crítica de quem viveu os anos 60e 70 em alerta, o velho cineasta vem conferir a cada década osnoticiários para ver como andam as coisas no mundo dos vivos. Asnotícias de 20 de fevereiro de 2004, estampadas na página de jornalque antecede o Epílogo, dão conta de que a tortura ainda persisteno meio policial – os “anos de chumbo” deixaram seu vício, comose vê. Pode-se arriscar dizer que este romance de Maria José Silveira,que vai permanecer vivo muito depois que sua autora tiver partido,está dando sua parcela de contribuição, como o fantasma do cineastaespanhol, para manter um olhar atento e crítico sobre a situaçãosocial e política de nosso país.

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SILVA, Vera M. T. O conto contemporâneo em Goiás. In: SILVA & TURCHI(Org.). Antologia do conto goiano II. Goiânia: Editora da UFG, 1994. p.11-20.SILVEIRA, Maria José. A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas. São Paulo:Globo, 2002.______. Eleanor Marx, filha de Karl. São Paulo: Francis, 2003.______. O fantasma de Luís Buñuel. São Paulo: Francis, 2004.______. Guerra no coração do cerrado. Rio de Janeiro: Record, 2006.SODRÉ, Nelson Werneck. Literatura e História no Brasil contemporâneo. Riode Janeiro: Graphia, 1999.VALLEJO, César. Poemas humanos/España, aparta de mi este cáliz. Madrid:Clásicos Castalia, 1987.