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O ferreiro e a forja no universo da escravidão:
experiências de homens de cor nas Minas do ferro escravistas
Maura Silveira Gonçalves de Britto1
A introdução das atividades de produção e transformação do ferro em Minas Gerais
está intimamente ligada ao desenvolvimento das atividades mineradoras nessa região durante
o período colonial. Os núcleos populacionais que surgiram ao redor das minas no século
XVIII, com as notícias das descobertas que se tornavam cada vez mais freqüentes, foram se
tornando mais povoados. E esse contingente populacional abrigava indivíduos de vários
segmentos: mineradores, agricultores, clérigos, artesãos, representantes da administração
portuguesa, suas famílias e seus escravos. Uma população que passa exigir uma demanda de
produtos e serviços. Entre esses, os produtos de ferro – e os serviços daqueles que sabiam
produzi-lo.
Essa situação provocou uma demanda de objetos de metal para diversos fins. Seja para
a produção de ferramentas para a mineração, agricultura e demais ofícios, utensílios
domésticos, seja para artigos de ornamentação dos templos religiosos e edificações que
estavam sendo construídos. 2
Todavia, a proibição da produção de manufaturas no Brasil Colonial decretada no
Alvará de 1775, em certa medida inibiria a prática de tais atividades de transformação do
ferro. Contudo, a partir das primeiras décadas do oitocentos, a vinda da Corte portuguesa para
o Brasil, fugindo do domínio napoleônico na Europa, e as ligações ampliadas no Centro-Sul,
abrem novas demandas para a produção de transformação do ferro em Minas Gerais.
Nesse artigo, discutiremos algumas questões ligadas ao significado da prática do ofício
de ferreiro entre homens de cor, entre livres, libertos e escravos, em uma determinada área das
Minas Gerais do oitocentos: as Minas do ferro. Chamamos aqui de Minas do ferro a região
que compreende os atuais municípios de Santa Bárbara e Itabira, áreas cuja atividade ferrífera
se desenvolveu em conjunto com a extração mineral do ouro no oitocentos e que deixou em
1 Mestre em História pela Universidade Federal de Ouro Preto. 2 Sobre as atividades de oficiais ferreiros em Vila Rica setecentistas, ver também: ALFAGALI, 2009.
seus núcleos urbanos e aspectos naturais os efeitos da atividade metalífera. Reflexos do
passado ainda presentes hoje em dia.
A delimitação de tal região se fez a partir de uma reconstrução histórica através de
relatos de viajantes que estiveram em Minas Gerais durante o século XIX e pelos indícios da
presença marcante de ferreiros nessa área. Observamos, nos relatos de viagem de Saint-
Hilaire e Eschwege, que esses dois núcleos populacionais continham algumas das
características fundamentais para o desenvolvimento da produção de transformação do ferro:
o subsolo ferrífero, fontes de água, matas e mão de obra disponível para se empregar em tais
atividades. A pesquisa em inventários post-mortem presentes no Arquivo Público Municipal
de Itabira, que se estendem pelo período de 1813 a 1888, e nas relações nominais de
habitantes de 1840 indica grande número de artífices dessa natureza em Itabira e Santa
Bárbara, núcleos centrais de povoamento de nossas Minas do ferro3.
O que nos propomos a fazer aqui é análise das trajetórias desses escravos ferreiros e
seus senhores, através das fontes cartoriais. Esse estudo de casos pode nos auxiliar na
identificação das relações estabelecidas entre tais artífices em função da prática desse ofício.
Uma investigação dessa natureza é frutífera no intuito de identificar as nuances dessa prática,
de sua transmissão e aprendizagem, assim como os efeitos que esse saber poderia ter gerado
na vida desses agentes históricos no âmbito da sociedade escravista mineira oitocentista.
Uma vez que nosso recorte se refere ao oitocentos, a ampla regulamentação camarária
setecentista que visava estabelecer normas para o exercício das artes mecânicas na Colônia
serão abordadas aqui apenas a título de contextualização. Seja para evidenciar a permanência
de determinadas práticas ou para destacar a ausência das mesmas.
A produção e transformação do ferro nas Minas Setecentistas teriam sido marcadas
pela presença predominante de trabalhadores livres. O oficio de ferreiro, como todos os outros
ofícios mecânicos, eram regulamentados pelas Câmaras Municipais, sendo exigida a
realização de exames e o registro de licença nestes órgãos de justiça para se ter permissão de
produzir, transformar ou vender peças em ferro. Em caso de escravos especializados, seus
senhores teriam que levá-los a Câmara para realizar o exame de ofício. Havia um regimento
3 Para um quadro mais detalhado a respeito do critério de regionalização utilização na nossa definição das Minas do ferro, assim como um panorama socioecômico da região no século XIX, ver: BRITTO, 2011.
de cada ofício, nos quais constavam os serviços e preços praticados por esses oficiais
mecânicos. Essa regulamentação teria permanecido até a primeira década do século XIX.
Contudo, é o século XIX que abre novas perspectivas para a extração ferrífera e a
subseqüente transformação do metal. A diminuição da extração aurífera, – pelo menos em
parte da Capitania – a presença da Família Real no Brasil, as necessidades geradas pelo
crescimento de um mercado interno nas Minas e a abundância do ferro no subsolo mineiro
influenciariam tal processo. Eschwege, em visita às Minas nas primeiras décadas do
oitocentos, já destacava a presença de pequenas fundições que funcionavam a partir de um
“processo bárbaro” chamado de cadinhos. 4 Com o tempo, essas práticas, segundo o
engenheiro alemão, foram sendo melhoradas a partir de inovações trazidas pelos técnicos
europeus ou mesmo pela engenhosidade dos moradores locais.
Nas Minas do ferro encontramos algumas das iniciativas apontadas por Eschwege. De
acordo com os parâmetros da época tal área contou com significativas instalações: a Fábrica
do Morro do Pilar, a Fábrica do Girau e a Fábrica do Onça, sendo a primeira de maior
destaque. A ação de nossos ferreiros pode estar ligada à existência desses núcleos maiores,
mas também pode ser um indício de que a prática do ofício de ferreiro também atendia a
iniciativas de menor proporção, e/ou aos serviços prestados a terceiros através do trabalho por
jornal. Enfim, aspectos do cotidiano desses artífices que buscaremos desvendar aqui.
Em Itabira do Mato Dentro, foi notável a produção e transformação do ferro desde as
primeiras décadas do século XIX. Sobre essas atividades, Jussara França observa que
A atividade de exploração de jazidas de ferro itabiranas incrementou-se bastante no século XIX. Matéria prima abundante no local, sempre atraiu fortemente a população, mas seu aproveitamento manteve-se por muito tempo restrito ao fabrico de pequenos objetos para uso doméstico, já que a Coroa havia vedado a mineração do ferro afim de não desviar os esforços das minas do ouro. Em 1808, com a vinda da Família Real para o Brasil, sua exploração foi liberada. Surgiram então várias forjas em Itabira, que passaram a fabricar instrumentos para a mineração e para os trabalhos na lavoura, utensílios de uso doméstico e armas de pequeno porte. (...) Segundo Eschwege, um dos proprietários das forjas de Itabira foi o primeiro a estirar o ferro por meio de malho hidráulico, no ano de 1812 (sendo logo imitado por quatro pessoas do lugar, utilizando-se dos conhecimentos técnicos fornecidos por aquele mineralogista alemão). Apesar de sua atuação praticamente só para consumo, esses
4 Sobre este método e demais características dos processos de fundição empregados em Minas no século XIX, ver: CALÓGERAS, 1905, v. II; ESCHWEGE, 1978, vol. 1 e 02; GOMES, 1983; SENA, (1),1881.
estabelecimentos foram muito relevantes para a economia local, e existiam em número considerável, contando Itabira em 1817 com treze forjas.5
De acordo com os parâmetros da época, Itabira contou com duas significativas
instalações: a Fábrica do Girau e a Fábrica do Onça, sendo a primeira de maior destaque. A
respeito delas, afirma Gomes
A primeira fábrica descrita nessa região é a do Girau, muito conhecida pela sua boa organização e por ter sido uma das que maior duração tiveram. Ela estava situada a 6 Km da cidade.O ferro era preparado em 4 cadinhos, que davam oito lupas de 10kg cada uma. Estavam instalados dois malhos movidos por uma roda de calhas cada um, um com 90Kg, outro com 120Kg. O carvão era preparado em medas. A uma distância de pouco mais de um Km , existia a forja do Onça, que empregava o sistema italiano. Sua produção era de 135 Kg diários, com um consumo de carvão de 720 Kg. Os dois malhos existentes, movidos por uma roda de Ariège, tinha respectivamente 105 Kg e 165Kg. O carvão era preparado em medas. Como minério se empregava o mesmo que o do Girau, isto é, o itabirito friável. 6
Quanto à mão de obra empregada nessas fábricas, Saint-Hilaire e Eschewege destacam
a presença de escravos conjugado ao emprego de homens livres:
(...) As forjas do Girau compunham-se de oito fornos, construídos como o do Coronel Antônio Tomás, e nos quais se podia fundir, de cada vez, uma arroba de metal (32 libras). O fogo era entretido nas forjas por foles movidos a água. Como o minério se encontra em Girau em massas muito compactas, começava-se a triturá-lo com auxílio de pilão movido por uma roda hidráulica. Outra roda do mesmo gênero fazia mover o martelo destinado a malhar o ferro. As forjas do Girau davam trabalho a cerca de vinte e cinco operários, cuja metade se compunha de escravos. Os outros, livres, e quase todos brancos recebiam alimentação e cerca de meia pataca de salários. Essa forja, como vemos, possuía elementos de prosperidade; o governo concedera ao proprietário, para a fabricação de carvão quatro sesmarias de matas; o ferro se encontra, por toda parte, nos arredores, e as águas, em abundância, fornecem os meios de movimentar a máquina de fundição; finalmente, as terras da vizinhança, vermelhas e argilosas, parecem ser férteis, e podem fornecer víveres aos operários. O estabelecimento do Girau é ainda um dos que atestam a indústria dos mineiros. O Capitão Paulo, seu proprietário, jamais vira nada de semelhante, e não teve outra guia para suas construções senão um pequeno número de desenhos deixados aos habitantes da região pelo viajante Mawe.7
Estão aí evidenciados os elementos necessários para o estabelecimento de fábricas de
ferro: além do mineral, a abundância de florestas, que forneceriam carvão para o preparo do
ferro, de fontes de água, como forja motriz para as forjas e a mão de obra a ser empregada
nessa atividade . 5 FRANÇA, s/d, p. 15. 6 GOMES, 1983, p. 96-7. É chamada de roda Ariége as rodas que possuem colheres planas voltadas para baixo. 7 SAINT-HILARIE, 1974, p.128. Não encontramos nenhuma referencia a esse episódio em MAWE. Cf: MAWE, op. cit.,1922.
Houve outra instalação de maior importância: a fábrica que o francês João Monlevade
instalou no distrito de Piracicaba, na década de 1830, apontada pelos estudiosos como a que
obteve maior êxito. Esta empregava um processo mais elaborado, o método da forja catalã. O
próprio engenheiro Monlevade treinava seus escravos para essa técnica de fundição. Sena
observa que nesta fábrica
Existem 8 tendas onde o ferro é desmanchado, principalmente em enxadas, foices, machados, ferragens e outros objetos mais delicados, devidos ao trabalho de um escravo que, depois de ter feito 2 relógios de parede concluiu agora uma máquina de costura. Em cada tenda, um mestre ferreiro e um aprendiz fazem por dia 8 foices ou 15 enxadas. Fazem também puxavantes, bigornas, martelos, torquezes, freios, etc.8
Após a sua morte em 1872, a família contratou um mestre italiano que converteu tal
forja para o método italiano.
As informações sobre essas instalações maiores servem a nosso propósito, no sentido
de verificar as características dessa atividade de fundição de ferro na região das Minas do
ferro. Contudo, as pesquisas nos inventários nos apresentam outro quadro que se insere na
perspectiva do “espaço vivido”.9 Essas atividades estariam tão difundidas nessa parte da
Província que verificamos a presença de tendas de ferreiro ou máquina da ferraria em grande
parte das unidades produtivas pesquisadas, sejam elas de roceiros ou fazendeiros. 10 Isso nos
faz perceber o quanto a fundição e a forja do ferro estavam integradas ao sistema de produção
das unidades produtivas. É fato que algumas instalações tiveram um investimento e produção
maior, mas tais forjas, pela simplicidade de sua confecção, podiam estar presentes tanto em
uma grande fazenda quanto em uma roça. Libby observa que
Independentemente dos métodos empregados, dois fatores unificavam quase todas as fundições de ferro das Minas setecentistas e oitocentistas. Em primeiro lugar, as forjas representavam um dos elementos da estratégia de diversificação de investimentos de seus proprietários e, portanto, faziam parte das grandes fazendas típicas do período. Até mesmo Monlevade referia-se às suas propriedades como uma fazenda da qual a fundição era apenas um componente. Em segundo lugar, a siderurgia da época era quase inteiramente dependente do braço escravo. Quando há informações acerca da mão-de-obra empregada, a predominância do trabalhador escravo – inclusive entre os chamados mestres fundidores – fica muito clara. A
8 SENA, op. cit., 1881, p. 117. 9 Ver: MASSEY, op. cit,, 2008. 10 Estamos considerando aqui, a definição feita por Andrade entre roceiros e fazendeiros para classificar os proprietários de terras e escravos. ANDRADE, op. cit., 2008, p. 209-210. Trataremos como roceiros os não proprietários e aqueles que possuem até 10 escravos, e como fazendeiros os que possuem um plantel superior a 10 cativos, o indica uma propriedade agrícola com maior potencial produtivo.
fábrica de Monlevade, que produzia 50 arrobas de ferro por dia, contava com cerca de 100 escravos devidamente treinados, sendo que o único “trabalhador” livre envolvido nas operações era o próprio dono. Nas forjas de cadinhos a média de produção era de apenas 3,75 arrobas por dia, empregando cerca de nove trabalhadores, sendo a participação dos proprietários na operação das pequenas fundições muito incerta. Têm-se notícias de forjas que tiveram de fechar após a morte dos fundidores escravos, demonstrando que os donos, tal como seus antecessores de séculos anteriores, pouco ou nada entendiam da arte de fundir o ferro. 11
É importante destacar que tais informações sobre o modo como se deu o processo de
produção e transformação do ferro em Minas Gerais, podem nos auxiliar no objetivo de
desvendar as relações sociais criadas em torno de escravos e libertos artesãos do ferro.
Relações que devem ser vistas no âmbito do processo de aprendizagem do trabalho manual e
dos significados que a prática do ofício de ferreiro poderia ter para estes artífices no âmbito da
sociedade escravista da América Portuguesa.
É preciso então pensar de que forma os escravos e libertos ferreiros foram inseridos em
uma sociedade escravista, como as Minas Gerais – especificamente as Minas do ferro – do
século XIX, aqui analisadas. Também deve-se investigar os efeitos que o trabalho manual
pôde representar para todos os grupos sociais que nele se envolveram: homens livres, forros e
escravos. Precisamos estar atentos para a natureza dessas relações no âmbito da sociedade
escravista.
Silvia Hunold Lara responde a algumas dessas questões ao se ater aos significados da
expressiva presença de escravos na América Portuguesa. Analisando as impressões deixadas
nos relatos de viajantes e na documentação da administração colonial, a autora apresenta
importante contribuição acerca de como a “multidão de pretos e mulatos” era percebida pelos
homens brancos e que representações faziam de si mesmos esses homens e mulheres de cor.
Reconhecendo as redes hierárquicas – aos moldes do Antigo Regime europeu – que se faziam
presentes no mundo colonial, ao analisar a documentação oficial que remete às relações de
poder no Brasil escravista, Lara não perde de vista as especificidades que caracterizavam a
vida em colônias:
No caso português e de suas colônias na América, há pelo menos duas dimensões importantes a considerar: a das relações constitutivas do Império colonial português e das relações escravistas propriamente ditas. Certamente elas nos levam para universos distantes da nobreza e dos grandes pela distinção e pela fortuna, mas não alheios a eles. O desafio (...) é caminhar de uma dimensão a outra, mostrando como
11 LIBBY, op. cit., 2003, p. 17
estavam articuladas. Partindo das análises que contemplam as distinções baseadas no nascimento e na distribuição de privilégios, pretendo discutir a diferença imposta pela presença da escravidão em terras coloniais. 12
Lara observa que para os administradores coloniais a grande quantidade de pretos e
mulatos perambulando pelas ruas das cidades coloniais poderia ter resultados perniciosos.
Para esses administradores, a situação tornava-se cada vez mais grave, devido ao aumento de
homens de cor na América portuguesa. Aumento gerado pela própria demanda do tráfico
atlântico e pelo fato de que a prática das alforrias se tornava recorrente entre os senhores. 13 A
autora destaca que, nas fontes consultadas, não há em nenhum momento o questionamento
acerca da instituição da escravidão em terras coloniais. Há, em alguns documentos, uma
preocupação com a maneira como se deveria tratar os escravos, sejam por razões práticas,
jurídicas ou cristãs. Mas a escravidão é vista como legítima e necessária ao desenvolvimento
da colônia, desde que se praticasse o cativeiro justo.
Analisando a carta enviada pelo Conde de Resende ao Secretário dos Negócios
Estrangeiros e da Guerra, Souza Coutinho, Lara destaca que a preocupação do remetente era
maior quanto aos libertos. Para Resende, nada podia ser feito em relação aos escravos, uma
vez que estes estavam sob o poder senhorial, pertencendo ao domínio doméstico. Mas os
libertos que agiam no espaço público deveriam ser corretamente inseridos às normas de
posturas da sociedade colonial. O enquadramento dos libertos, segundo Resende, era
necessário para que se pudesse promover o bem comum. Para isto, ele propunha uma série de
medidas que visavam submeter os libertos residentes nas cidades ao poder do Estado:
(...) os que não tivessem ofício, fossem solteiros e de idade competente seriam recolhidos em uma “casa de correção”, onde residiriam, aprenderiam um ofício e trabalhariam para seu próprio sustento; os “vadios e viciosos” seriam remetidos para o continente do Rio Grande, Santa Catarina e Cantagalo, para serem empregados na agricultura e na criação de gado; os casados também seriam empregados “fora da cidade”, a semelhança do procedimento adotado com os casais vindos das Ilhas e enviados para as regiões do sul. As mulheres seriam igualmente registradas. As que fossem honradas e estivessem ligadas a uma família poderiam permanecer como estavam. As que vivessem “sobre si” seriam enviadas para outra casa de correção, para aprender “alguma ocupação própria do seu sexo”.14
12 LARA, 2007, p.81 13 Lara argumenta que, embora fossem alvo de preocupação frequente na documentação, a prática das alforrias seguiam uma lógica seletiva. Mulheres vindas da África Ocidental, envolvidas no comércio urbano, eram as maiores agraciadas. Entre os homens, havia um predomínio dos libertos entre os crioulos. LARA, 2007, p.128 14
Ibidem, p. 16
Nota-se que a preocupação de Resende não se refere à escravidão em si, mas aos
libertos, que deveriam ter um modo de vida adequado ao dos homens de condição superior,
para que com eles pudessem conviver nas cidades. Pelas determinações de Resende citadas
por Lara, podemos inferir que possuir um ofício mecânico era uma maneira desses libertos se
adequarem às redes hierárquicas da sociedade escravista do Brasil, já que as correções se
destinavam, entre outras situações, para “os que não tivessem ofício”. Também aqui, observa-
se uma associação entre os artífices e o universo dos homens livres, ainda que indiretamente.
Isto é, o Conde Resende manifesta-se preocupado com as ações do Estado sobre os libertos,
para que esses pudessem portar-se adequadamente no espaço público junto aos livres. Dessa
forma, a solução encontrada para aqueles que não tivessem domínio sobre nenhum saber
mecânico, seria o recolhimento a casas de correção, onde “aprenderiam um ofício e
trabalhariam para seu próprio sustento”. Isto significa que o ofício é o que torna esse liberto
apto a frequentar o mundo dos livres.
Outra questão levantada por Lara se refere aos significados implícitos e explícitos da
cor pele nas relações sociais. A partir das definições encontradas no dicionário de Bluteau
para termos como “branco”, “preto”, “negro”, “pardo” e “mulato”, comparando-as com a
maneira como esses termos eram utilizados na documentação consultada, a autora busca
compreender os nexos existentes entre a cor da pela e a condição social do indivíduo na
sociedade colonial. Aponta que havia uma grande indefinição no significado desses termos,
especialmente aos “homens de cor”. Ao mesmo tempo em que o termo “branco” implicava
em uma identificação natural com o mundo dos homens livres, na distinção entre os termos
“preto”, “mulato” e “pardo” não havia critérios muito bem estabelecidos, o que dava a grande
complexidade a essas classificações. Complexidade semântica refletida na diversidade de
arranjos feitos por pretos, mulatos e pardos na sociedade do Brasil escravista.
Mas Lara afirma que apesar da indefinição dos termos não promover uma distinção
clara entre livre e não livre, o fato é que, nas falas coloniais, a cor da pele, direta ou
indiretamente associava esses homens e mulheres não brancos ao universo da escravidão. Por
isso, aqueles que conseguissem atravessar a linha tênue que separava escravidão e liberdade,
precisavam buscar meios de se distinguir, se diferenciar para afastar de si a experiência do
cativeiro. Uma maneira comum encontrada por esses libertos de se distinguir dos demais
pretos, mulatos e pardos ainda presos à escravidão era o uso de certos símbolos, como
elementos de vestuários, espadas, ou outros objetos que ficassem visíveis à sua exposição em
público. Dessa forma, ao proibir o uso desses tipos de insígnias pelos libertos, a administração
portuguesa mostrava-se insensível aos significados que teriam tais símbolos de distinção em
uma sociedade marcada pela diversidade, como era a América portuguesa. O uso desses
elementos tornava-se necessário para homens e mulheres forros que tinham na cor da pele
uma perigosa relação o cativeiro.
Numa sociedade característica do Antigo Regime, na qual as redes hierárquicas
implicam em formas visuais de distinção, da mesma maneira que os homens brancos
buscavam se distinguir dos homens de cor, libertos tentavam se afastar dos escravos. Ainda
que a cor de sua pele denunciasse sua ligação como um passado escravo, seu ou de seus
ascendentes:
Evidentemente, os negros, pardos e mulatos, livres e ou forros, estavam bastante próximos da fronteira que separava a liberdade da escravidão; por isso, precisavam cuidar muito bem de suas roupas e adornos, para não serem identificados com os cativos. Os que se encontravam hierarquicamente mais acima exageravam nos trajes, nos gestos e nas distinções, para se afastarem ainda mais dos de menor qualidade e condição. (...) Se, por um lado, a presença massiva da escravidão, havia introduzido novas formas de distinção social, de outro, ela opera de modo a acentuar as desigualdades sociais. (...) no entanto, mesmo com tantos grupos intermediários entre a grande nobreza e os da mais ínfima condição, e apesar da superposição de critérios e marcas de distinção social, (...) para decodificar essa linguagem visual bastava fazer como aqueles homens que viviam nas colônias e associar a cor da pele das pessoas às marcas essenciais que separam os livres dos escravos. (...) aqui, as regras de exposição hierárquica precisavam incluir também as da dominação escravista. Eis aqui uma diferença significativa, imposta pela experiência colonial. 15
Dentro dessa lógica, pensemos que efeitos tais redes hierárquicas da sociedade
escravista teriam na prática dos ofícios mecânicos, como o ofício de ferreiro entre escravos e
libertos nas Minas do ferro oitocentista. Trata-se de uma sociedade que ainda traz algumas
das marcas das redes hierárquicas e da necessidade da distinção discutidas por Lara. Para o
escravo, o aprendizado de um ofício pode possibilitar ao cativo uma forma de adquirir
pecúlio, trabalhando por jornal, e abre condições para a compra de sua alforria. Além disso,
uma vez que tal saber artesanal não era transmitido a todos os escravos de um mesmo
proprietário, o ingresso em um ofício mecânico o torna distinto dos demais cativos de seu
senhor. Uma distinção marcada por uma possibilidade de se afastar do mundo da escravidão e
que oferece a esse escravo uma perspectiva de liberdade que não se estendia a todos os outros
15 LARA, 2007, p. 124-5
cativos. Em caso da compra da alforria se confirmar, como forro poderia utilizar-se do
conhecimento técnico adquirido em cativeiro pra ganhar seu sustento e se inserir no mundo
dos livres. Lembrando as orientações do Conde de Resende para se adequar os libertos na
ordem da sociedade colonial, a prática de um ofício representaria para esse ex-escravo uma
forma de se integrar ao modo de vida considerado pelas autoridades adequado aos centros
urbanos.
Castro reforça nossa proposta ao considerar que, no mundo do escravismo brasileiro,
os cativos tinham o interesse em buscar alternativas que garantissem-lhes melhores condições
de sobrevivência dentro das possibilidades dadas pelo regime. Para além da discussão
referente à formação de laços de parentesco, seguindo ou não as características étnicas, a
autora aponta para a disputa existente entre os cativos na aquisição dos recursos disponíveis
para obter melhores resultados no enfrentamento da experiência do cativeiro. Assim, os
escravos que possuíssem tais recursos – a prática de um ofício mecânico pode ser vista como
um destes recursos – não veriam os demais escravos como parceiros. Buscariam
oportunidades de se aproximar do mundo dos livres, de acumular bem materiais que lhes
permitissem buscar a alforria, mas, ao mesmo tempo, atenuar seu caminho até esta. Sua
identificação seria muito maior então entre outros escravos que dispusessem dos mesmos
recursos.16
Menezes discute a questão do trabalho manual na sociedade escravista das Minas
setecentistas. O autor aponta para a criação de laços entre esses oficiais mecânicos,
considerando também as relações surgidas entre senhores e seus escravos praticantes do
mesmo ofício. Sua proposta considera que, embora em situação aparentemente contraditória,
uns senhores, outros escravos, entre esses homens unidos pelo fato de possuírem uma
especialização profissional, haveria uma relação menos desnivelada e mais solidária que entre
outros senhores e seus escravos que não tinham ofício.17 Mais que isso, Menezes apresenta
alguns elementos que nos levam a refletir sobre a experiência – vigente nas sociedades
16 CASTRO,1988. p. 27. 17 MENEZES, op. cit,, 2006. Também deste autor, ver: MENESES, op. cit., 2003. É preciso observar nessa solidariedade entres senhores e escravos oficiais mecânicos apontada por Menezes, se há relação com a própria dinâmica da oficina escravista, composta por poucos escravos.
europeias de Antigo Regime – das atividades manuais serem percebidas como práticas
inferiores realizadas por gente inferior, também na América Portuguesa:
O trabalho mecânico ou os mesteres, como eram chamadas as atividades manuais no ambiente do Antigo Regime português, (...) construiu, no exercício de seus homens e de suas mulheres, forma de inserção e de representação no nível do poder local pouco consideradas pela interpretação historiográfica no Brasil. (...) A condição mecânica, evidente obstáculo à nobilização dos indivíduos no Antigo Regime, não impossibilitou que as categorias ocupacionais dos diversos trabalhos manuais se posicionassem socialmente de forma a reservar para as suas atividades um status que não se limitava a importância econômica de seus afazeres. (...) Nas Minas Gerais ou nas vilas e cidades do Reino, os artesãos buscaram participação na vida política de cada urbe, evidenciada por farta documentação, em alguns casos, e presumida, devido à ausência documental, em outros. Além de tudo, forma indivíduos importantes na configuração do tecido social e na sustentação da vida dos aglomerados urbanos e seus entornos rurais. Nessa busca participativa, enfrentaram resistências, conciliaram interesses e forjaram identidades. 18
Verifica-se aqui que as atividades manuais nas sociedades escravistas eram realizadas
por homens brancos, livres, por libertos e por escravos. Esta situação nos leva a considerar
que, em tais sociedades, o trabalho manual, em si, não representaria uma depreciação social e
moral de quem a praticava. Devemos considerar alguns aspectos nesse ponto. Uma visão
pejorativa das artes mecânicas pode ter sido verificada em Minas Gerais no caso de um
senhoriato branco, envolvido com outras atividades. Ainda assim, o ponto de vista do autor é
elucidativo nessa questão. Quando afirma que “a condição mecânica não impossibilitou que
as categorias ocupacionais dos diversos trabalhos manuais se posicionassem socialmente de
forma a reservar para as suas atividades um status que não se limitava a importância
econômica de seus afazeres”, Menezes mostra-se atento para o fato de que o trabalho manual
pode atender a interesses de diversos grupos no intuito de garantir-lhes distinção social. De
modo que, em nosso caso, a prática e aprendizagem do ofício se dava pela convivência com
os artesãos do ferro no exercício de seu trabalho. O ofício de ferreiro representava para os
escravos uma maneira de conquistar autonomia frente à rotina de suas atividades. Da mesma
forma, os libertos e crioulos livres ferreiros tinham a partir de seu saber mecânico uma forma
de reafirmar perante o mundo dos livres sua nova condição jurídica.
Assim, o argumento de Menezes de que existiria uma maior solidariedade entre os
senhores e seus escravos praticantes do mesmo ofício do que entre ele e os outros escravos
reforça a questão de que o saber mecânico poderia representar para um escravo uma forma de
18 Idem, 2006, p. 212.
se distinguir dos demais. Uma distinção ligada à autonomia do trabalho que a prática de um
ofício permitia a esses cativos; seu trabalho passa a ser guiado pelo próprio ritmo da
produção; a fundição e a forja impõem a esse cativo uma experiência de tempo e de trabalho
que não é a mesma do outros integrantes do seu cativeiro. Experiências que os aproximavam
ao mundo dos livres, a partir de suas práticas e como um horizonte de expectativas.
Para evidenciar tais situações, trabalharemos aqui a trajetória de alguns desses
ferreiros, identificados em algumas de nossas fontes em busca da liberdade. São eles:
Custódio, Manoel, Cândido e Lauriano.
Os escravos ferreiros Custódio e Manoel foram encontrados no inventário do Capitão
José Carlos Marques. Seus herdeiros do primeiro matrimônio são Manoel Carlos Marques,
Joaquim Barboza Marques e José Carlos Marques. Do segundo casamento ficaram os filhos
Antonio Jorge Marques e Vicente Ferreira Marques. Falecendo em 1835, o Capitão foi
morador no arraial de São Gonçalo do Rio Abaixo e teve seus bens inventariados em 1837 por
seu filho Antonio Jorge Marques.
Entre esses bens, encontramos: uma parte numa fazenda de cultura em Socorro, no
valor de 120$000, metade da fazenda Galega, avaliada em 500$000. Outra fazenda
denominada Christina pela quantia de 150$000, uma morada de casas de sobrado no valor de
200$000, três praças na fazenda Paiol avaliadas em 100$000, doze escravos, entre eles, os
oficiais de ferreiro Custódio e Manoel. Custódio, crioulo, tinha então 31 anos, era solteiro e
foi avaliado em 600$000. E Manoel, também crioulo e solteiro, de 38 anos, avaliado em
700$000.
A dúvida sobre a quem caberia na partilha a posse desses dois escravos rende várias
páginas de declarações e petições no processo de inventário do Capitão Marques. O Capitão
Marques era também proprietário de uma morada de casas de sobrado em São Gonçalo do
Rio Acima, avaliada em 200$000. Em terras minerais, declara a posse de 3 (três) praças na
fazenda Paiol no valor de 100$000.
O destino dos dois escravos é diferente, mas ambos são pivôs de disputas entre os
herdeiros do finado Capitão. Entre esses herdeiros, temos Manoel Carlos Marques, Joaquim
Barbosa Marques e José Carlos Marques, filhos do primeiro casamento do Capitão Marques e
Antonio Jorge Marques – que foi o inventariante de seu pai – e Vicente Ferreira Marques,
filhos do segundo casamento.
Custódio era crioulo, tinha 31 anos no momento do inventário de seu senhor, era
solteiro, foi descrito como oficial ferreiro e avaliado na quantia de 600$000. Ele seria um dos
motivos pelos quais o herdeiro José Carlos Marques promoveria uma execução contra seu
irmão e inventariante de seu pai, Antonio Jorge Marques.
O herdeiro José Carlos exige no processo de inventário o pagamento de parte de sua
legítima materna que ficara faltando no momento do inventário de sua mãe. Para tanto, exige
receber na partilha dos bens os escravos Serafim e Ambrósia e o ferreiro Custódio. A respeito
deste, nas palavras do reclamante José Carlos Marques:
Diz José Carlos Marques que promovendo uma execução contra seu irmão Antonio Jorge Marques pela quantia de 845$000 que lhe ficou devendo o falecido pai comum o Capitão José Carlos Marques da legítima materna que coube ao Supll. como herdeiro de sua falecida mãe Antonia Maria de Jesus, se acha contratado e convencionado com o dito Jorge e outros seus irmãos do 1º e 2º matrimônio em receber do Supp. por conta da mesma legítima o escravo Custódio oficial de ferreiro no preço de 600$000 em que foi avaliado no inventário e o resto que são 245$200 e mais 160$000 que concordaram lhe cabia na 4ª parte no valor de 2 escravos, Joam e Boaventura, que depois da morte de sua Mãe o Pai comum recebe como dote, que lhe prometera seu sogro, receberia em dinheiro das mãos de seus irmãos do 2º matrimônio Antonio Jorge e Vicente Ferreira Marques, adjudicando-se-lhe bens no inventário para indenização da referida quantia, logo, que nele apresentar recibo seo Suppl. e que assim mesmo lhe ficaria pertencendo uma praça e meia, metade da Fazenda do Gadejo, que foi inventariada no valor de 62$188 em compensação do que o dito seu pai recebeu pelos jornais dos mesmos escravos, e que quanto a herança deste aceitaria a benefício do inventariante para que assim se observe e fique constando nos autos.19
A contenda entre os herdeiros se refere a bens que teriam sido adquiridos pelo Capitão
Marques quando ainda era casado com Antonia Maria de Jesus: os escravos Joam e
Boaventura, dos quais José Carlos requer também a parte dos jornais pagos a seu pai, parte
em praças na Fazenda do Gadejo e o escravo Custódio. O interessante é que, na solução do
conflito, Antonio Jorge paga a seu irmão 62$499 pelas praças, 500$000 pela metade da
fazenda e um pecúlio de 308$000, mas o escravo Custódio fica em sua propriedade. Isto é,
mesmo fazendo parte da legítima materna dos herdeiros do primeiro casamento, Custódio,
oficial de ferreiro, na partilha, fica entre os bens que pertenceriam a Antonio Jorge. O
inventariante prefere pagar em dinheiro a parte que cabia ao herdeiro José Carlos sobre o dito
cativo que abrir mão de seus serviços. Não houve o mesmo interesse de Antonio Jorge em
ficar com os outros escravos Joam e Boaventura, nem mesmo em relação às terras agrícolas e
19
APMI, Inventários, Inventário de José Carlos Marques. 1837. Cx. 10. Fl. 38.
minerais que estavam em disputa. Certamente fora o ofício de ferreiro praticado por Custódio
que direcionou a preferência do inventariante.
No mesmo processo de inventário, Antonio Jorge Marques, concede a alforria a
Manoel, pagando o valor do escravo a seus irmãos para que esses não contestassem a
liberdade do ferreiro:
Diz Antonio Jorge Marques e Vicente Ferreira Marques, herdeiros do casal dos falecidos seus pais Capitão José Carlos Marques e D. Antonia Maria de Jesus, que procedendo –se o inventário dos bens do mesmo casal foi avaliado o escravo Manoel crioulo, na quantia de setecentos mil réis, para que os Supll. tem motivos para o beneficiar lícita a quantia de cem réis sobre essa avaliação dele para forro, imputando-se o seu valor nos quinhões da herança dos Supll., e não duvida assinar o termo em que desde já o declaram forro e liberto. E para que assim se verifique. 20
Podemos apenas especular sobre as razões que os herdeiros Antonio e Vicente teriam
para conceder a liberdade ao ferreiro Manoel, uma vez que no processo de inventário não
encontramos nenhum elemento ou informação que explicasse claramente essa medida.
Nenhum dos outros 12 escravos inventariados foram agraciados dessa forma. Daí também se
justifica o empenho de Antonio Jorge em ficar com o ferreiro Custódio. Alforriava Manoel,
mas continuaria tendo sob suas ordens e interesses outro oficial ferreiro.
É possível que os serviços prestados por Manoel através de seu ofício tivessem
permitido a ele negociar com tais herdeiros sua liberdade. Não há indicações da existência de
tenda de ferreiro entre os bens listados no inventário do Capitão Marques, o que nos permite
considerar que Manoel exercia seu trabalho fora da unidade produtiva de seu proprietário.
Podia trabalhar para um dos herdeiros do capitão. Também poderiam trabalhar por jornal para
outros senhores, homens livres, convivendo, no exercício de sua prática, com diversos outros
artífices do ferro, entre brancos, crioulos, pardos e africanos, livres, libertos e escravos. A
experiência da liberdade, que já era algo vivenciado enquanto expectativa e pela autonomia de
trabalho que seu ofício de ferreiro permitia, estava intimamente ligada ao seu modo de vida.
Dava-lhes possibilidades que não estavam disponíveis para todos os outros escravos de seu
senhor. E consolida-se a partir da alforria declarada pelos herdeiros Antonio Jorge e Vicente
no referido processo de inventário.
20 APMI, Inventários , Inventário de José Carlos Marques.1837. Cx. 10. Fl. 35.
Outro caso a ser discutido aqui é o do ferreiro Cândido, de cor preta, de idade de 44
anos, oficial de ferreiro. Trata-se de um contrato de locação de serviços e coartação,
registrado junto à Câmara Municipal entre o locatário Joaquim Veríssimo de Barcellos e o
locador, o escravo ferreiro Cândido, aos dez dias do mês de março de 1888. É importante
destacar que a expressão locatário usada para identificar o senhor Joaquim Veríssimo, indica
estar este alugando os serviços de um escravo que já era de sua propriedade. Situação um
tanto peculiar. Se Candido era escravo de Joaquim Veríssimo, porque o senhor precisaria
estabelecer um contrato para alugar seus serviços, suas habilidades como “perito oficial de
ferreiro”, como descrito na fonte? Por este contrato, Joaquim Veríssimo e Cândido assinam
entre si um termo de concessão de liberdade, através dos qual o último seria libertado pelo
pagamento da quantia de duzentos mil réis e por serviços prestados por dois anos a partir da
data do contrato. Pelo termo de locação, Cândido poderia substituir os dois anos de serviços a
serem prestados a Joaquim Veríssimo pelo pagamento em dinheiro de trezentos e setenta e
seis mil réis. Essa condição é expressa no contrato de maneira bastante sugestiva:
Aos nove dias do mêz de março de mil oitocentos de oitenta e oito, nesta Cidade de Itabira, em casas de residência do Senhor Pacífico Gusmão de Oliveira Lima, Juiz de Órphãos, onde eu escrivão vim e sendo ali presentes o Curador a ele nomeado, compareceu Joaquim Veríssimo de Barcellos , a companhia de seu escravo Cândido, de cor preta, de idade de quarenta e quatro anos, official de ferreiro, matriculado sobre os números hum mil e quarenta e nove da nova matrícula e dous da relação e diz que tendo contratado com o dito seo escravo ali também presente conceder-lhe a liberdade mediante o adiamento da quantia de duzentos mil réis (...) de prestar-lhe o mesmo serviço pelo prazo de dous anos a contar se da data deste contrato, dos quais poderá remunerar se preferir pagar lhe em dinheiro a quantia de trezentos e setenta e seis mil réis e tendo o mesmo escravo declarado pela pessoa de seo curador a dote que aceita esse contrato ficando lhe saber o direito de resgatar desse em qualquer tempo, pagando a seo senhor em dinheiro o tempo que falta proporcionalmente a quantia estipulada para todo (...) que lhe concede a sua liberdade, salvo as cláusulas do contrato e requer ao Meretíssimo Juiz, ouvidos a respeito o dito escravo e o curador (...) se lavrar esse termo passando por todos assignado e homologado pelo Juiz e pedindo se depois carta de liberdade. E pelo escravo Cândido que se achava ali presente foi dito que aceitava e promete cumprir o presente contrato, sujeitando se as penas legais se quebra lo e pelo curador deste foi dito que por sua parte concordava, pelo que ficou o Juiz por ser bom e válido esse contrato e por ter essa validade, mandou lavrar esse presente termo, que assigno com as pessoas presentes e (...) do escravo por não saber assignar seu nome assigna o advogado. Eu, Antonio Cezario da Costa Lage, escrivão de Órphãos que escrevi. 21
21 APMI, Fundo da Câmara. Documentos relativos à escravidão e outros, Contrato de Locação de Serviços e coartação. Cx. 03. O estado de conservação do documento impediu que algumas pequenas partes neste trecho fossem transcritas. Contudo, a compreensão do documento não foi prejudicada por este inconveniente.
Embora o contrato tenha sido assinado no ano da abolição da escravatura, e, portanto
não tenha sido cumprido até o final, é inegável a importância que o ofício de ferreiro teve para
que Cândido o pudesse assinar. A concessão de sua liberdade pode ser imediata desde que
pague em dinheiro o valor de seus serviços pelo prazo de dois anos. Na verdade, Candido se
compromete, sob às penas da lei, em trabalhar por esta período para Joaquim Veríssimo.
Contudo, destaca-se que pelo contrato, visto ser perito oficial de ferreiro, Cândido teria
condições reais de se tornar livre e sem vínculos com o seu antigo senhor no momento da
assinatura deste. Por ser oficial de ferreiro Cândido acumulou, a partir de seu saber mecânico,
a quantia exigida por sua alforria neste termo de concessão de liberdade, a ponto de, após
isso, seu antigo senhor torna-se seu locatário, alugando seus serviços. Serviços esses que
Cândido prestaria então como homem livre.
Outra situação instigante é a do ferreiro Lauriano. O escravo ferreiro Lauriano foi
encontrado pela primeira vez em nossas fontes como parte dos bens listados no inventário do
Alferes Manoel da Costa Lage, em 1853. Senhor de muitas propriedades, residente em Itabira,
o dito alferes também deixou em seu inventário uma fazenda de cultura no valor de
3:500$000, um terreno de cultura avaliado em 400$000, um retiro de criar (400$000), duas
moradas de casas na Vila de Itabira, uma no valor de 600$000, outra em 400$000.
Em terras minerais, apresentou ser proprietário de três praças na Serra de Itabira no
valor de 3:000$000, uma praça na Serra de Itabira vista em 4:000$000, cinco datas na Serra
de Itabira, todas avaliadas na quantia de 3:000$000 e 1 praça na Conceição descrita pelo
valor de 180$000. De seus 43 escravos, apenas Lauriano era oficial ferreiro. Não havia tenda
de ferreiro ou elementos que pudessem indicar a existência de uma forja ou tenda de ferreiro
em seu inventário, o que sugere que Lauriano exercesse seu ofício fora da unidade produtiva
de seu senhor.
O conjunto dos bens do Alferes Manoel da Costa Lage atingia a invejável cifra de
52:421$840. Sua atuação na Vila fica evidenciada pela rede de créditos que deixou em seu
inventário: 12:936$500 empregados em dívidas que moradores da cidade tinham com ele. 22
22 APMI, Inventários, Inventário do Alferes Manoel da Costa Lage. 1853. Cx. 24
Nesta ocasião, Lauriano tinha 28 anos, era casado com a crioula Luzia, de 23 anos,
também escrava do Alferes Manoel. Descrito como ferreiro, foi avaliado na quantia de
800$000, um valor superior à média dos outros escravos em idade próxima a ele. Ao final do
processo de inventário, Lauriano ficou como parte dos bens que couberam ao herdeiro José
Felipe da Costa Lage. 23Um ano depois, encontramos novamente Lauriano descrito entre os
bens do mesmo José Felipe da Costa Lage.
José Felipe, quando de seu falecimento, morava em Itabira e era possuidor de terras
agrícolas (entre elas: uma fazenda de cultura com 250 alqueires de milho avaliada em
2:044$000, outra fazenda de cultura no valor de 2:330$000; 30 carros de milho em 180$000,
20 alqueires de feijão em 16$000) e minerais (três praças na Serra de Itabira em 1:500$000,
uma praça na Serra do Espigão avaliada em 2:000$000, cinco datas e uma praça na Serra
de Itabira no valor de 1:500$000, e uma praça na Serra da Conceição em 90$000). Parte
desses bens herdados do finado Manoel da Costa Lage.
Neste inventário, encontramos descritos entre os bens a serem partilhados um jogo de
ferramenta de ferrar avaliado em 18$000, dez panelas de ferro em 37$200, nove machados,
por 9$000, duas cunhas 2$500, três dúzias de ferraduras 4$750, quatro arrobas e 12 libras de
ferro velho no valor de 8$250, sete arrobas e 10 libras de ferro em 9$940, e uma tenda de
ferreiro no valor de 16$000. Esses dados indicam que, quando o Alferes Manoel ainda era
vivo, Lauriano poderia exercer seu ofício de ferreiro na tenda existente nas propriedades de
José Felipe, o que explicaria também o fato de Lauriano ter ficado como parte deste na
herança de seu pai, mesmo sendo ele o sétimo filho. Além disso, pelo tipo de produto de ferro
identificado neste inventário, confirma-se uma das aplicações do oficio de ferreiro nas Minas
do ferro: a produção de utensílios e ferramentas para a lide agrícola.
23 APMI, Inventários, Inventário de José Felipe da Costa Lage. 1854. Cx. 25.
A última das fontes em que encontramos Lauriano nos permite tecer algumas
hipóteses sobre o significado que o ofício de ferreiro pode representar em sua busca por
autonomia e experiência de liberdade na sociedade escravista das Minas do ferro oitocentista.
Lauriano aparece classificado na lista dos escravos classificados para serem libertados pela
Junta de Emancipação da cidade de Itabira de 1880. Então com 57 anos, Lauriano pertence a
Joaquim Lourenço da Costa Lage, irmão de seu falecido proprietário José Felipe da Costa
Lage. O escravo é descrito como ferreiro, com boa aptidão e boa moralidade. Tendo
acumulado um pecúlio de 105$000, era o 18º entre os 32 escravos classificados pela Junta
para serem libertados.
Na mesma lista, estavam 13 mulheres – todas listadas primeiro que os homens – e 14
homens – entre os quais Lauriano era o quinto classificado. A maioria dos homens era
composta de oficiais mecânicos24.
Da análise desses dados podemos inferir que a Junta de Emancipação tendeu a
favorecer os escravos e escravas que já exerciam certa liberdade no espaço da cidade, a partir
do trabalho mecânico. Muitos destes eram autônomos e tinham também uma família que
sustentavam com os frutos de seu trabalho.
À primeira vista, pode-se questionar o impacto que o ofício de ferreiro teve para a
conquista de alforria de Lauriano, uma vez que este viveu grande parte de sua vida como
escravo e conquistou sua liberdade já nos anos finais da vigência do sistema escravista no
Brasil, a partir de uma lista de emancipação financiada pelo governo do Império. Contudo,
quando analisamos os critérios de classificação utilizados por essa lista e as características dos
demais escravos nela presentes, outras informações são trazidas à tona. São esses os critérios
de seleção utilizados pela Junta de Emancipação:
1º Que não pode ser classificado escravo pertencente à ordem dos indivíduos (art. 27 § 2º do citado decreto n. 5135), enquanto houver no município escravos pertencentes à ordem das famílias (citado artigo § 1º) excetuando unicamente o caso de estarem excluídos os restantes desta última ordem por virtude das disposições do art. 32 do mesmo decreto.
2º Que dentro da mesma ordem não é licito passar da graduação superior a inferior da preferência em que a primeira seja esgotada, salvo a exceção declarada na regra precedente.
24 APMI, Fundo da Câmara. Documentos relativos à escravidão e outros, Relação dos Escravos Classificados pela Respectiva Junta do Município desta Cidade de Itabira em o ano de 1880. Cx. 03.
3º Que toda a vez que a Junta passar de uma a outra graduação de preferência, declarará na casa das observações que se acha esgotada a precedente, ou nomeará os escravos preferidos por força das disposições do art. 32, especificando-as.
4º Que na ordem das famílias compreendem-se guardada a preferência conforme a numeração seguinte:
I – Os escravos casados com pessoa livre; II – Os cônjuges que forem escravos de diferentes donos, estejam ou não separados, pertençam aos mesmos ou a diversos condomínios. III – Os cônjuges que tiverem filhos ingênuos menores de 8 anos. IV – Os cônjuges que tiverem filhos menores de 21 anos. V – Os cônjuges com filhos menores, escravos. VI – As mães, viúvas ou solteiras, que tiverem filhos escravos menores de 21 anos. VII – Os cônjuges sem filhos menores ou sem filhos. 5º Que na ordem dos indivíduos compreendem-se, guardada a preferência, conforme a numeração seguinte:
I – A mãe, viúva ou solteira, com filhos livres. II – O pai, viúvo com filhos.
III – os escravos solteiros até 50 anos de idade, começando pelos mais moços, no sexo feminino e pelos mais velhos, no masculino.
6º Que os filhos de escravos, maiores de 12 anos e menores de 21 anos, tendo pais legítimos ou mãe escrava, devem ser sempre classificados conjuntamente com eles na mesma ordem e número enquanto residirem no mesmo município, em estado de solteiro.
7º Que em igualdade de circunstâncias, as mulheres preferem aos homens na ordem da emancipação.
8º Que os motivos de preferência especificados na ultima parte do artigo 27 do decreto, pecúlio e moralidade do escravo, concorrem juntos ou separados para estabelecer a preleção das famílias ou indivíduos, compreendidos na mesma ordem e graduação dos §§ 1º e 2º do art.17 do dito decreto, mas não para alterar a ordem e graus de preferência neles prescritos e explicados na 4ª e 5ª regras. 25
Segue abaixo a lista com a classificação dos escravos feita pela Junta de Emancipação
de Itabira em 1880:
25
APMI, Fundo da Câmara. Documentos relativos à escravidão e outros, Critérios para classificação dos escravos pela Junta de Emancipação. Cx. 03.
Relação de escravos classificados pela Junta de Emancipação de Itabira - 1880
Nº Nº de
Matríc.
Nome Cor Ida. Estado Ocupação Aptid. Moralide Nome do Senhor Pecúlio Observações
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32
2728 3299 2099 1687 1707 3411 1550 5964 1207 2286 1229 1448 789 4507 5011 2105 109 271 5792 6242 3365 661 5347 5158 38
2179 2482 5077 2007 1280 64
1787
Maria Maria
Virginia Felícia
Maria Teresa Anna
Luciana Celestina Firminia Edwiges Joaquina Ignácia Suzana
Chrispim Luciano Antonio Manoel
Lauriano Manoel Jorge Adão
Germano José
Antonio Romão
Generosa Balbina Pedro
Vicente Carolina
Jacinto Cruz Juliana
Parda Preta
II II II II II II II II II II II II II II
Pardo Preta
II II II II II II
Pardo Preta Parda Preto
II II II II
14 29 43 40 41 42 47 31 36 38 46 56 38 20 41 62 35 57 38 19 40 44 54 38
26 35
35 64 33
Casada II II II II II II II II II II II II II II II II
Casado II II II II II II II II II II II
Casada II II
Costureira Cozinheira
S. doméstico II II II II II II II II II II
Pagem Arreeiro Carreiro Pagem
Ferreiro Lavrador
II II II II II
Arreeiro S. doméstico
II Lavrador
Carpinteiro S. doméstico
Lavrador S. doméstico
Ótima Boa II II II II II II II II II II II II II II II
Boa II II II II II II II II II II II
Boa II II
Ótima Boa II II II
Ótima Boa II II II II II II II II
Má Boa Boa II II II II II II II II II II II II
Má Boa
João Gabriel Mnz de Andrade Adolfo Monteiro Chassim
Vicente Augusto Raimundo Muniz Da C.
Francisco de Assis Drumond Theófilo Monteiro C. e filhos Ignácio Teixeira de Novaes
D. Joana Gonçalves M. Andrade Carlos Cassemiro de Pires
D. Joana Gonçalves Moraes D. Maria Barbana M. D. Tiburcia Pereira João da S. Fonseca José Antonio de Sá
João José da Silva Muniz Joaquim Constâncio
Joaquim Lourenço Theófilo Monteiro José Batista Muniz
D. Antonia Marinho Nicácio José Soares
Joaquim José Cônjuges de diversos senhores
Antonio Ignez Felippe D. Ana Teix. da Fonseca Duarte
José Felícimo D. Julia Tomazia de Miranda
Antonio Pereira de Sião Rita Maria de Jesus Lucinda de Barbosa
Antonio José M. de Menezes
200$000 200$000 205$000 200$000 150$000 105$000 100$000 60$000 50$000 50$000 50$000 50$000 25$000
205$000 200$000 200$000 110$000 105$000 100$000 50$000 50$000 50$000 400$00
120$000 100$000 100$000 100$000 100$000 50$000
200$000 200$000
Perfeita. educada, 1 filha menor livre
Tem 3 filhos menores de 21 anos Tem 1 filha menor
Tem 1 filha menor Tem 1 filha menor de 21 anos Tem filha menor de 21 anos
Fonte: APMI, Fundo da Câmara. Documentos relativos à escravidão e outros, Relação dos Escravos Classificados pela Respectiva Junta do Município desta Cidade de Itabira em o ano de 1880. Cx. 03.
Lauriano estava incluído na categoria de família, uma vez que era casado com a
crioula Luzia. Tinha preferência então junto aos escravos pertencentes à categoria de
indivíduos. Luzia também era escrava e ambos pertenciam ao mesmo senhor. Ela não fora
descrita na lista de classificação para emancipação e o casal não tinha filhos menores, o que
os excluía de primazia na classificação segundo o 4º artigo.
Considerando os demais escravos classificados, há o predomínio de mulheres, sendo
as primeiras classificadas mães de filhos menores, conforme os critérios já definidos. Apenas
quatro homens são descritos antes de Lauriano: Crispim, preto de 20 anos, casado, pagem,
escravo de José Antonio de Sá; Luciano, arreeiro, de 41 anos, casado; Antonio, de 62 anos,
carreiro, também casado e Manoel, pardo de 35 anos, casado, cuja ocupação é a de pagem.
Não sabemos as condições que fizeram com que estes escravos fossem classificados
antes de Lauriano, apenas há a indicação na lista de possuírem um pecúlio maior. Esse pode
ter sido o critério de classificação desses escravos: o valor do pecúlio. Poderiam também ser
casados com mulher livre ou escrava de outro senhor, ou por terem filhos menores, por
exemplo, mas não consta essa informação no campo “observações”. Mas sabemos que
Lauriano não atendia à maioria dos critérios de preferência utilizados pela Junta de
emancipação. Sua situação o colocava inserido nos critérios do artigo oitavo: ele tinha
pecúlio, boa moralidade e boa aptidão.
Que outros motivos poderiam ter colocado Lauriano entre os cinco primeiros dos 17
homens classificados pela lista de emancipação?
Podemos levantar algumas hipóteses a esse respeito. Pelo fato de ser ferreiro, Lauriano
esteve em contato com pessoas influentes, grandes proprietários de terras e minas, a quem os
seus serviços seriam bastante úteis. Os três proprietários de Lauriano que encontramos
pertencem a mesma família, herdeiros de uma das maiores fortunas da região. O próprio
escrivão de órfãos da Cidade de Itabira que assina e registra a dita classificação, Antonio
Cezário da Costa Lage, é irmão de José Lourenço, ambos irmãos do finado José Felipe da
Costa Lage, seu segundo proprietário. Para o escrivão Antônio Cesário, Lauriano não era
desconhecido, uma vez que o escravo servira a sua família desde antes de 1853, data do
inventário do Alferes Manoel da Costa Lage, a primeira fonte em que o encontramos. Neste
ano, Lauriano já aparecia entre os bens e escravos de Manoel da Costa Lage.
Assim, é possível que a família tenha intercedido pela classificação de Lauriano para
ser alforriado pela Junta de Emancipação, mesmo que ele não atendesse aos principais
critérios de seleção por ela utilizados. Interferência esta, fruto das relações que Lauriano teria
conquistado pelos serviços prestados a pelo menos duas gerações da família Costa Lage como
oficial de ferreiro. Não há outro escravo de propriedade de nenhum dos herdeiros do Manoel
da Costa Lage na dita lista de classificação.
Os casos analisados aqui reforçam a proposta de que o ofício de ferreiro
proporcionava a esses artífices, escravos e libertos, uma maior autonomia de trabalho que
muitas vezes se convertia em experiências de liberdade, antes mesmo da conquista da alforria.
E consolidavam essa experiência quando se tornavam libertos.
Para os escravos, o ofício lhes permitia uma rotina de trabalho diferenciada dos outros
escravos de seu senhor. A fundição e a forja do ferro tinham ritmos próprios que os escravos
ferreiros seguiam; a partir disso, ganhavam autonomia. Pela prática do ofício conviviam com
outros artífices, muitas vezes de condição jurídica superior, e na figura destes vislumbravam
um horizonte de liberdade que o seu ofício poderia tornar possível. Para os libertos, o mundo
dos livres permanecia cheio de armadilhas, onde a cor de sua pele poderia associá-lo
perigosamente a seu passado escravo. Precisava mostrar-se apto ao convívio com os brancos,
garantir às autoridades que era capaz de ganhar seu próprio sustento. O ofício de ferreiro
abria-lhe essas possibilidades. A partir dele, a liberdade experimentada a partir do ritmo dos
trabalhos com o ferro, enquanto era escravo, consolidava-se quando liberto.
Referências bibliográficas:
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Fontes Manuscritas:
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