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O ferreiro e a forja no universo da escravidão: experiências de homens de cor nas Minas do ferro escravistas Maura Silveira Gonçalves de Britto 1 A introdução das atividades de produção e transformação do ferro em Minas Gerais está intimamente ligada ao desenvolvimento das atividades mineradoras nessa região durante o período colonial. Os núcleos populacionais que surgiram ao redor das minas no século XVIII, com as notícias das descobertas que se tornavam cada vez mais freqüentes, foram se tornando mais povoados. E esse contingente populacional abrigava indivíduos de vários segmentos: mineradores, agricultores, clérigos, artesãos, representantes da administração portuguesa, suas famílias e seus escravos. Uma população que passa exigir uma demanda de produtos e serviços. Entre esses, os produtos de ferro – e os serviços daqueles que sabiam produzi-lo. Essa situação provocou uma demanda de objetos de metal para diversos fins. Seja para a produção de ferramentas para a mineração, agricultura e demais ofícios, utensílios domésticos, seja para artigos de ornamentação dos templos religiosos e edificações que estavam sendo construídos. 2 Todavia, a proibição da produção de manufaturas no Brasil Colonial decretada no Alvará de 1775, em certa medida inibiria a prática de tais atividades de transformação do ferro. Contudo, a partir das primeiras décadas do oitocentos, a vinda da Corte portuguesa para o Brasil, fugindo do domínio napoleônico na Europa, e as ligações ampliadas no Centro-Sul, abrem novas demandas para a produção de transformação do ferro em Minas Gerais. Nesse artigo, discutiremos algumas questões ligadas ao significado da prática do ofício de ferreiro entre homens de cor, entre livres, libertos e escravos, em uma determinada área das Minas Gerais do oitocentos: as Minas do ferro. Chamamos aqui de Minas do ferro a região que compreende os atuais municípios de Santa Bárbara e Itabira, áreas cuja atividade ferrífera se desenvolveu em conjunto com a extração mineral do ouro no oitocentos e que deixou em 1 Mestre em História pela Universidade Federal de Ouro Preto. 2 Sobre as atividades de oficiais ferreiros em Vila Rica setecentistas, ver também: ALFAGALI, 2009.

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O ferreiro e a forja no universo da escravidão:

experiências de homens de cor nas Minas do ferro escravistas

Maura Silveira Gonçalves de Britto1

A introdução das atividades de produção e transformação do ferro em Minas Gerais

está intimamente ligada ao desenvolvimento das atividades mineradoras nessa região durante

o período colonial. Os núcleos populacionais que surgiram ao redor das minas no século

XVIII, com as notícias das descobertas que se tornavam cada vez mais freqüentes, foram se

tornando mais povoados. E esse contingente populacional abrigava indivíduos de vários

segmentos: mineradores, agricultores, clérigos, artesãos, representantes da administração

portuguesa, suas famílias e seus escravos. Uma população que passa exigir uma demanda de

produtos e serviços. Entre esses, os produtos de ferro – e os serviços daqueles que sabiam

produzi-lo.

Essa situação provocou uma demanda de objetos de metal para diversos fins. Seja para

a produção de ferramentas para a mineração, agricultura e demais ofícios, utensílios

domésticos, seja para artigos de ornamentação dos templos religiosos e edificações que

estavam sendo construídos. 2

Todavia, a proibição da produção de manufaturas no Brasil Colonial decretada no

Alvará de 1775, em certa medida inibiria a prática de tais atividades de transformação do

ferro. Contudo, a partir das primeiras décadas do oitocentos, a vinda da Corte portuguesa para

o Brasil, fugindo do domínio napoleônico na Europa, e as ligações ampliadas no Centro-Sul,

abrem novas demandas para a produção de transformação do ferro em Minas Gerais.

Nesse artigo, discutiremos algumas questões ligadas ao significado da prática do ofício

de ferreiro entre homens de cor, entre livres, libertos e escravos, em uma determinada área das

Minas Gerais do oitocentos: as Minas do ferro. Chamamos aqui de Minas do ferro a região

que compreende os atuais municípios de Santa Bárbara e Itabira, áreas cuja atividade ferrífera

se desenvolveu em conjunto com a extração mineral do ouro no oitocentos e que deixou em

1 Mestre em História pela Universidade Federal de Ouro Preto. 2 Sobre as atividades de oficiais ferreiros em Vila Rica setecentistas, ver também: ALFAGALI, 2009.

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seus núcleos urbanos e aspectos naturais os efeitos da atividade metalífera. Reflexos do

passado ainda presentes hoje em dia.

A delimitação de tal região se fez a partir de uma reconstrução histórica através de

relatos de viajantes que estiveram em Minas Gerais durante o século XIX e pelos indícios da

presença marcante de ferreiros nessa área. Observamos, nos relatos de viagem de Saint-

Hilaire e Eschwege, que esses dois núcleos populacionais continham algumas das

características fundamentais para o desenvolvimento da produção de transformação do ferro:

o subsolo ferrífero, fontes de água, matas e mão de obra disponível para se empregar em tais

atividades. A pesquisa em inventários post-mortem presentes no Arquivo Público Municipal

de Itabira, que se estendem pelo período de 1813 a 1888, e nas relações nominais de

habitantes de 1840 indica grande número de artífices dessa natureza em Itabira e Santa

Bárbara, núcleos centrais de povoamento de nossas Minas do ferro3.

O que nos propomos a fazer aqui é análise das trajetórias desses escravos ferreiros e

seus senhores, através das fontes cartoriais. Esse estudo de casos pode nos auxiliar na

identificação das relações estabelecidas entre tais artífices em função da prática desse ofício.

Uma investigação dessa natureza é frutífera no intuito de identificar as nuances dessa prática,

de sua transmissão e aprendizagem, assim como os efeitos que esse saber poderia ter gerado

na vida desses agentes históricos no âmbito da sociedade escravista mineira oitocentista.

Uma vez que nosso recorte se refere ao oitocentos, a ampla regulamentação camarária

setecentista que visava estabelecer normas para o exercício das artes mecânicas na Colônia

serão abordadas aqui apenas a título de contextualização. Seja para evidenciar a permanência

de determinadas práticas ou para destacar a ausência das mesmas.

A produção e transformação do ferro nas Minas Setecentistas teriam sido marcadas

pela presença predominante de trabalhadores livres. O oficio de ferreiro, como todos os outros

ofícios mecânicos, eram regulamentados pelas Câmaras Municipais, sendo exigida a

realização de exames e o registro de licença nestes órgãos de justiça para se ter permissão de

produzir, transformar ou vender peças em ferro. Em caso de escravos especializados, seus

senhores teriam que levá-los a Câmara para realizar o exame de ofício. Havia um regimento

3 Para um quadro mais detalhado a respeito do critério de regionalização utilização na nossa definição das Minas do ferro, assim como um panorama socioecômico da região no século XIX, ver: BRITTO, 2011.

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de cada ofício, nos quais constavam os serviços e preços praticados por esses oficiais

mecânicos. Essa regulamentação teria permanecido até a primeira década do século XIX.

Contudo, é o século XIX que abre novas perspectivas para a extração ferrífera e a

subseqüente transformação do metal. A diminuição da extração aurífera, – pelo menos em

parte da Capitania – a presença da Família Real no Brasil, as necessidades geradas pelo

crescimento de um mercado interno nas Minas e a abundância do ferro no subsolo mineiro

influenciariam tal processo. Eschwege, em visita às Minas nas primeiras décadas do

oitocentos, já destacava a presença de pequenas fundições que funcionavam a partir de um

“processo bárbaro” chamado de cadinhos. 4 Com o tempo, essas práticas, segundo o

engenheiro alemão, foram sendo melhoradas a partir de inovações trazidas pelos técnicos

europeus ou mesmo pela engenhosidade dos moradores locais.

Nas Minas do ferro encontramos algumas das iniciativas apontadas por Eschwege. De

acordo com os parâmetros da época tal área contou com significativas instalações: a Fábrica

do Morro do Pilar, a Fábrica do Girau e a Fábrica do Onça, sendo a primeira de maior

destaque. A ação de nossos ferreiros pode estar ligada à existência desses núcleos maiores,

mas também pode ser um indício de que a prática do ofício de ferreiro também atendia a

iniciativas de menor proporção, e/ou aos serviços prestados a terceiros através do trabalho por

jornal. Enfim, aspectos do cotidiano desses artífices que buscaremos desvendar aqui.

Em Itabira do Mato Dentro, foi notável a produção e transformação do ferro desde as

primeiras décadas do século XIX. Sobre essas atividades, Jussara França observa que

A atividade de exploração de jazidas de ferro itabiranas incrementou-se bastante no século XIX. Matéria prima abundante no local, sempre atraiu fortemente a população, mas seu aproveitamento manteve-se por muito tempo restrito ao fabrico de pequenos objetos para uso doméstico, já que a Coroa havia vedado a mineração do ferro afim de não desviar os esforços das minas do ouro. Em 1808, com a vinda da Família Real para o Brasil, sua exploração foi liberada. Surgiram então várias forjas em Itabira, que passaram a fabricar instrumentos para a mineração e para os trabalhos na lavoura, utensílios de uso doméstico e armas de pequeno porte. (...) Segundo Eschwege, um dos proprietários das forjas de Itabira foi o primeiro a estirar o ferro por meio de malho hidráulico, no ano de 1812 (sendo logo imitado por quatro pessoas do lugar, utilizando-se dos conhecimentos técnicos fornecidos por aquele mineralogista alemão). Apesar de sua atuação praticamente só para consumo, esses

4 Sobre este método e demais características dos processos de fundição empregados em Minas no século XIX, ver: CALÓGERAS, 1905, v. II; ESCHWEGE, 1978, vol. 1 e 02; GOMES, 1983; SENA, (1),1881.

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estabelecimentos foram muito relevantes para a economia local, e existiam em número considerável, contando Itabira em 1817 com treze forjas.5

De acordo com os parâmetros da época, Itabira contou com duas significativas

instalações: a Fábrica do Girau e a Fábrica do Onça, sendo a primeira de maior destaque. A

respeito delas, afirma Gomes

A primeira fábrica descrita nessa região é a do Girau, muito conhecida pela sua boa organização e por ter sido uma das que maior duração tiveram. Ela estava situada a 6 Km da cidade.O ferro era preparado em 4 cadinhos, que davam oito lupas de 10kg cada uma. Estavam instalados dois malhos movidos por uma roda de calhas cada um, um com 90Kg, outro com 120Kg. O carvão era preparado em medas. A uma distância de pouco mais de um Km , existia a forja do Onça, que empregava o sistema italiano. Sua produção era de 135 Kg diários, com um consumo de carvão de 720 Kg. Os dois malhos existentes, movidos por uma roda de Ariège, tinha respectivamente 105 Kg e 165Kg. O carvão era preparado em medas. Como minério se empregava o mesmo que o do Girau, isto é, o itabirito friável. 6

Quanto à mão de obra empregada nessas fábricas, Saint-Hilaire e Eschewege destacam

a presença de escravos conjugado ao emprego de homens livres:

(...) As forjas do Girau compunham-se de oito fornos, construídos como o do Coronel Antônio Tomás, e nos quais se podia fundir, de cada vez, uma arroba de metal (32 libras). O fogo era entretido nas forjas por foles movidos a água. Como o minério se encontra em Girau em massas muito compactas, começava-se a triturá-lo com auxílio de pilão movido por uma roda hidráulica. Outra roda do mesmo gênero fazia mover o martelo destinado a malhar o ferro. As forjas do Girau davam trabalho a cerca de vinte e cinco operários, cuja metade se compunha de escravos. Os outros, livres, e quase todos brancos recebiam alimentação e cerca de meia pataca de salários. Essa forja, como vemos, possuía elementos de prosperidade; o governo concedera ao proprietário, para a fabricação de carvão quatro sesmarias de matas; o ferro se encontra, por toda parte, nos arredores, e as águas, em abundância, fornecem os meios de movimentar a máquina de fundição; finalmente, as terras da vizinhança, vermelhas e argilosas, parecem ser férteis, e podem fornecer víveres aos operários. O estabelecimento do Girau é ainda um dos que atestam a indústria dos mineiros. O Capitão Paulo, seu proprietário, jamais vira nada de semelhante, e não teve outra guia para suas construções senão um pequeno número de desenhos deixados aos habitantes da região pelo viajante Mawe.7

Estão aí evidenciados os elementos necessários para o estabelecimento de fábricas de

ferro: além do mineral, a abundância de florestas, que forneceriam carvão para o preparo do

ferro, de fontes de água, como forja motriz para as forjas e a mão de obra a ser empregada

nessa atividade . 5 FRANÇA, s/d, p. 15. 6 GOMES, 1983, p. 96-7. É chamada de roda Ariége as rodas que possuem colheres planas voltadas para baixo. 7 SAINT-HILARIE, 1974, p.128. Não encontramos nenhuma referencia a esse episódio em MAWE. Cf: MAWE, op. cit.,1922.

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Houve outra instalação de maior importância: a fábrica que o francês João Monlevade

instalou no distrito de Piracicaba, na década de 1830, apontada pelos estudiosos como a que

obteve maior êxito. Esta empregava um processo mais elaborado, o método da forja catalã. O

próprio engenheiro Monlevade treinava seus escravos para essa técnica de fundição. Sena

observa que nesta fábrica

Existem 8 tendas onde o ferro é desmanchado, principalmente em enxadas, foices, machados, ferragens e outros objetos mais delicados, devidos ao trabalho de um escravo que, depois de ter feito 2 relógios de parede concluiu agora uma máquina de costura. Em cada tenda, um mestre ferreiro e um aprendiz fazem por dia 8 foices ou 15 enxadas. Fazem também puxavantes, bigornas, martelos, torquezes, freios, etc.8

Após a sua morte em 1872, a família contratou um mestre italiano que converteu tal

forja para o método italiano.

As informações sobre essas instalações maiores servem a nosso propósito, no sentido

de verificar as características dessa atividade de fundição de ferro na região das Minas do

ferro. Contudo, as pesquisas nos inventários nos apresentam outro quadro que se insere na

perspectiva do “espaço vivido”.9 Essas atividades estariam tão difundidas nessa parte da

Província que verificamos a presença de tendas de ferreiro ou máquina da ferraria em grande

parte das unidades produtivas pesquisadas, sejam elas de roceiros ou fazendeiros. 10 Isso nos

faz perceber o quanto a fundição e a forja do ferro estavam integradas ao sistema de produção

das unidades produtivas. É fato que algumas instalações tiveram um investimento e produção

maior, mas tais forjas, pela simplicidade de sua confecção, podiam estar presentes tanto em

uma grande fazenda quanto em uma roça. Libby observa que

Independentemente dos métodos empregados, dois fatores unificavam quase todas as fundições de ferro das Minas setecentistas e oitocentistas. Em primeiro lugar, as forjas representavam um dos elementos da estratégia de diversificação de investimentos de seus proprietários e, portanto, faziam parte das grandes fazendas típicas do período. Até mesmo Monlevade referia-se às suas propriedades como uma fazenda da qual a fundição era apenas um componente. Em segundo lugar, a siderurgia da época era quase inteiramente dependente do braço escravo. Quando há informações acerca da mão-de-obra empregada, a predominância do trabalhador escravo – inclusive entre os chamados mestres fundidores – fica muito clara. A

8 SENA, op. cit., 1881, p. 117. 9 Ver: MASSEY, op. cit,, 2008. 10 Estamos considerando aqui, a definição feita por Andrade entre roceiros e fazendeiros para classificar os proprietários de terras e escravos. ANDRADE, op. cit., 2008, p. 209-210. Trataremos como roceiros os não proprietários e aqueles que possuem até 10 escravos, e como fazendeiros os que possuem um plantel superior a 10 cativos, o indica uma propriedade agrícola com maior potencial produtivo.

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fábrica de Monlevade, que produzia 50 arrobas de ferro por dia, contava com cerca de 100 escravos devidamente treinados, sendo que o único “trabalhador” livre envolvido nas operações era o próprio dono. Nas forjas de cadinhos a média de produção era de apenas 3,75 arrobas por dia, empregando cerca de nove trabalhadores, sendo a participação dos proprietários na operação das pequenas fundições muito incerta. Têm-se notícias de forjas que tiveram de fechar após a morte dos fundidores escravos, demonstrando que os donos, tal como seus antecessores de séculos anteriores, pouco ou nada entendiam da arte de fundir o ferro. 11

É importante destacar que tais informações sobre o modo como se deu o processo de

produção e transformação do ferro em Minas Gerais, podem nos auxiliar no objetivo de

desvendar as relações sociais criadas em torno de escravos e libertos artesãos do ferro.

Relações que devem ser vistas no âmbito do processo de aprendizagem do trabalho manual e

dos significados que a prática do ofício de ferreiro poderia ter para estes artífices no âmbito da

sociedade escravista da América Portuguesa.

É preciso então pensar de que forma os escravos e libertos ferreiros foram inseridos em

uma sociedade escravista, como as Minas Gerais – especificamente as Minas do ferro – do

século XIX, aqui analisadas. Também deve-se investigar os efeitos que o trabalho manual

pôde representar para todos os grupos sociais que nele se envolveram: homens livres, forros e

escravos. Precisamos estar atentos para a natureza dessas relações no âmbito da sociedade

escravista.

Silvia Hunold Lara responde a algumas dessas questões ao se ater aos significados da

expressiva presença de escravos na América Portuguesa. Analisando as impressões deixadas

nos relatos de viajantes e na documentação da administração colonial, a autora apresenta

importante contribuição acerca de como a “multidão de pretos e mulatos” era percebida pelos

homens brancos e que representações faziam de si mesmos esses homens e mulheres de cor.

Reconhecendo as redes hierárquicas – aos moldes do Antigo Regime europeu – que se faziam

presentes no mundo colonial, ao analisar a documentação oficial que remete às relações de

poder no Brasil escravista, Lara não perde de vista as especificidades que caracterizavam a

vida em colônias:

No caso português e de suas colônias na América, há pelo menos duas dimensões importantes a considerar: a das relações constitutivas do Império colonial português e das relações escravistas propriamente ditas. Certamente elas nos levam para universos distantes da nobreza e dos grandes pela distinção e pela fortuna, mas não alheios a eles. O desafio (...) é caminhar de uma dimensão a outra, mostrando como

11 LIBBY, op. cit., 2003, p. 17

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estavam articuladas. Partindo das análises que contemplam as distinções baseadas no nascimento e na distribuição de privilégios, pretendo discutir a diferença imposta pela presença da escravidão em terras coloniais. 12

Lara observa que para os administradores coloniais a grande quantidade de pretos e

mulatos perambulando pelas ruas das cidades coloniais poderia ter resultados perniciosos.

Para esses administradores, a situação tornava-se cada vez mais grave, devido ao aumento de

homens de cor na América portuguesa. Aumento gerado pela própria demanda do tráfico

atlântico e pelo fato de que a prática das alforrias se tornava recorrente entre os senhores. 13 A

autora destaca que, nas fontes consultadas, não há em nenhum momento o questionamento

acerca da instituição da escravidão em terras coloniais. Há, em alguns documentos, uma

preocupação com a maneira como se deveria tratar os escravos, sejam por razões práticas,

jurídicas ou cristãs. Mas a escravidão é vista como legítima e necessária ao desenvolvimento

da colônia, desde que se praticasse o cativeiro justo.

Analisando a carta enviada pelo Conde de Resende ao Secretário dos Negócios

Estrangeiros e da Guerra, Souza Coutinho, Lara destaca que a preocupação do remetente era

maior quanto aos libertos. Para Resende, nada podia ser feito em relação aos escravos, uma

vez que estes estavam sob o poder senhorial, pertencendo ao domínio doméstico. Mas os

libertos que agiam no espaço público deveriam ser corretamente inseridos às normas de

posturas da sociedade colonial. O enquadramento dos libertos, segundo Resende, era

necessário para que se pudesse promover o bem comum. Para isto, ele propunha uma série de

medidas que visavam submeter os libertos residentes nas cidades ao poder do Estado:

(...) os que não tivessem ofício, fossem solteiros e de idade competente seriam recolhidos em uma “casa de correção”, onde residiriam, aprenderiam um ofício e trabalhariam para seu próprio sustento; os “vadios e viciosos” seriam remetidos para o continente do Rio Grande, Santa Catarina e Cantagalo, para serem empregados na agricultura e na criação de gado; os casados também seriam empregados “fora da cidade”, a semelhança do procedimento adotado com os casais vindos das Ilhas e enviados para as regiões do sul. As mulheres seriam igualmente registradas. As que fossem honradas e estivessem ligadas a uma família poderiam permanecer como estavam. As que vivessem “sobre si” seriam enviadas para outra casa de correção, para aprender “alguma ocupação própria do seu sexo”.14

12 LARA, 2007, p.81 13 Lara argumenta que, embora fossem alvo de preocupação frequente na documentação, a prática das alforrias seguiam uma lógica seletiva. Mulheres vindas da África Ocidental, envolvidas no comércio urbano, eram as maiores agraciadas. Entre os homens, havia um predomínio dos libertos entre os crioulos. LARA, 2007, p.128 14

Ibidem, p. 16

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Nota-se que a preocupação de Resende não se refere à escravidão em si, mas aos

libertos, que deveriam ter um modo de vida adequado ao dos homens de condição superior,

para que com eles pudessem conviver nas cidades. Pelas determinações de Resende citadas

por Lara, podemos inferir que possuir um ofício mecânico era uma maneira desses libertos se

adequarem às redes hierárquicas da sociedade escravista do Brasil, já que as correções se

destinavam, entre outras situações, para “os que não tivessem ofício”. Também aqui, observa-

se uma associação entre os artífices e o universo dos homens livres, ainda que indiretamente.

Isto é, o Conde Resende manifesta-se preocupado com as ações do Estado sobre os libertos,

para que esses pudessem portar-se adequadamente no espaço público junto aos livres. Dessa

forma, a solução encontrada para aqueles que não tivessem domínio sobre nenhum saber

mecânico, seria o recolhimento a casas de correção, onde “aprenderiam um ofício e

trabalhariam para seu próprio sustento”. Isto significa que o ofício é o que torna esse liberto

apto a frequentar o mundo dos livres.

Outra questão levantada por Lara se refere aos significados implícitos e explícitos da

cor pele nas relações sociais. A partir das definições encontradas no dicionário de Bluteau

para termos como “branco”, “preto”, “negro”, “pardo” e “mulato”, comparando-as com a

maneira como esses termos eram utilizados na documentação consultada, a autora busca

compreender os nexos existentes entre a cor da pela e a condição social do indivíduo na

sociedade colonial. Aponta que havia uma grande indefinição no significado desses termos,

especialmente aos “homens de cor”. Ao mesmo tempo em que o termo “branco” implicava

em uma identificação natural com o mundo dos homens livres, na distinção entre os termos

“preto”, “mulato” e “pardo” não havia critérios muito bem estabelecidos, o que dava a grande

complexidade a essas classificações. Complexidade semântica refletida na diversidade de

arranjos feitos por pretos, mulatos e pardos na sociedade do Brasil escravista.

Mas Lara afirma que apesar da indefinição dos termos não promover uma distinção

clara entre livre e não livre, o fato é que, nas falas coloniais, a cor da pele, direta ou

indiretamente associava esses homens e mulheres não brancos ao universo da escravidão. Por

isso, aqueles que conseguissem atravessar a linha tênue que separava escravidão e liberdade,

precisavam buscar meios de se distinguir, se diferenciar para afastar de si a experiência do

cativeiro. Uma maneira comum encontrada por esses libertos de se distinguir dos demais

pretos, mulatos e pardos ainda presos à escravidão era o uso de certos símbolos, como

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elementos de vestuários, espadas, ou outros objetos que ficassem visíveis à sua exposição em

público. Dessa forma, ao proibir o uso desses tipos de insígnias pelos libertos, a administração

portuguesa mostrava-se insensível aos significados que teriam tais símbolos de distinção em

uma sociedade marcada pela diversidade, como era a América portuguesa. O uso desses

elementos tornava-se necessário para homens e mulheres forros que tinham na cor da pele

uma perigosa relação o cativeiro.

Numa sociedade característica do Antigo Regime, na qual as redes hierárquicas

implicam em formas visuais de distinção, da mesma maneira que os homens brancos

buscavam se distinguir dos homens de cor, libertos tentavam se afastar dos escravos. Ainda

que a cor de sua pele denunciasse sua ligação como um passado escravo, seu ou de seus

ascendentes:

Evidentemente, os negros, pardos e mulatos, livres e ou forros, estavam bastante próximos da fronteira que separava a liberdade da escravidão; por isso, precisavam cuidar muito bem de suas roupas e adornos, para não serem identificados com os cativos. Os que se encontravam hierarquicamente mais acima exageravam nos trajes, nos gestos e nas distinções, para se afastarem ainda mais dos de menor qualidade e condição. (...) Se, por um lado, a presença massiva da escravidão, havia introduzido novas formas de distinção social, de outro, ela opera de modo a acentuar as desigualdades sociais. (...) no entanto, mesmo com tantos grupos intermediários entre a grande nobreza e os da mais ínfima condição, e apesar da superposição de critérios e marcas de distinção social, (...) para decodificar essa linguagem visual bastava fazer como aqueles homens que viviam nas colônias e associar a cor da pele das pessoas às marcas essenciais que separam os livres dos escravos. (...) aqui, as regras de exposição hierárquica precisavam incluir também as da dominação escravista. Eis aqui uma diferença significativa, imposta pela experiência colonial. 15

Dentro dessa lógica, pensemos que efeitos tais redes hierárquicas da sociedade

escravista teriam na prática dos ofícios mecânicos, como o ofício de ferreiro entre escravos e

libertos nas Minas do ferro oitocentista. Trata-se de uma sociedade que ainda traz algumas

das marcas das redes hierárquicas e da necessidade da distinção discutidas por Lara. Para o

escravo, o aprendizado de um ofício pode possibilitar ao cativo uma forma de adquirir

pecúlio, trabalhando por jornal, e abre condições para a compra de sua alforria. Além disso,

uma vez que tal saber artesanal não era transmitido a todos os escravos de um mesmo

proprietário, o ingresso em um ofício mecânico o torna distinto dos demais cativos de seu

senhor. Uma distinção marcada por uma possibilidade de se afastar do mundo da escravidão e

que oferece a esse escravo uma perspectiva de liberdade que não se estendia a todos os outros

15 LARA, 2007, p. 124-5

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cativos. Em caso da compra da alforria se confirmar, como forro poderia utilizar-se do

conhecimento técnico adquirido em cativeiro pra ganhar seu sustento e se inserir no mundo

dos livres. Lembrando as orientações do Conde de Resende para se adequar os libertos na

ordem da sociedade colonial, a prática de um ofício representaria para esse ex-escravo uma

forma de se integrar ao modo de vida considerado pelas autoridades adequado aos centros

urbanos.

Castro reforça nossa proposta ao considerar que, no mundo do escravismo brasileiro,

os cativos tinham o interesse em buscar alternativas que garantissem-lhes melhores condições

de sobrevivência dentro das possibilidades dadas pelo regime. Para além da discussão

referente à formação de laços de parentesco, seguindo ou não as características étnicas, a

autora aponta para a disputa existente entre os cativos na aquisição dos recursos disponíveis

para obter melhores resultados no enfrentamento da experiência do cativeiro. Assim, os

escravos que possuíssem tais recursos – a prática de um ofício mecânico pode ser vista como

um destes recursos – não veriam os demais escravos como parceiros. Buscariam

oportunidades de se aproximar do mundo dos livres, de acumular bem materiais que lhes

permitissem buscar a alforria, mas, ao mesmo tempo, atenuar seu caminho até esta. Sua

identificação seria muito maior então entre outros escravos que dispusessem dos mesmos

recursos.16

Menezes discute a questão do trabalho manual na sociedade escravista das Minas

setecentistas. O autor aponta para a criação de laços entre esses oficiais mecânicos,

considerando também as relações surgidas entre senhores e seus escravos praticantes do

mesmo ofício. Sua proposta considera que, embora em situação aparentemente contraditória,

uns senhores, outros escravos, entre esses homens unidos pelo fato de possuírem uma

especialização profissional, haveria uma relação menos desnivelada e mais solidária que entre

outros senhores e seus escravos que não tinham ofício.17 Mais que isso, Menezes apresenta

alguns elementos que nos levam a refletir sobre a experiência – vigente nas sociedades

16 CASTRO,1988. p. 27. 17 MENEZES, op. cit,, 2006. Também deste autor, ver: MENESES, op. cit., 2003. É preciso observar nessa solidariedade entres senhores e escravos oficiais mecânicos apontada por Menezes, se há relação com a própria dinâmica da oficina escravista, composta por poucos escravos.

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europeias de Antigo Regime – das atividades manuais serem percebidas como práticas

inferiores realizadas por gente inferior, também na América Portuguesa:

O trabalho mecânico ou os mesteres, como eram chamadas as atividades manuais no ambiente do Antigo Regime português, (...) construiu, no exercício de seus homens e de suas mulheres, forma de inserção e de representação no nível do poder local pouco consideradas pela interpretação historiográfica no Brasil. (...) A condição mecânica, evidente obstáculo à nobilização dos indivíduos no Antigo Regime, não impossibilitou que as categorias ocupacionais dos diversos trabalhos manuais se posicionassem socialmente de forma a reservar para as suas atividades um status que não se limitava a importância econômica de seus afazeres. (...) Nas Minas Gerais ou nas vilas e cidades do Reino, os artesãos buscaram participação na vida política de cada urbe, evidenciada por farta documentação, em alguns casos, e presumida, devido à ausência documental, em outros. Além de tudo, forma indivíduos importantes na configuração do tecido social e na sustentação da vida dos aglomerados urbanos e seus entornos rurais. Nessa busca participativa, enfrentaram resistências, conciliaram interesses e forjaram identidades. 18

Verifica-se aqui que as atividades manuais nas sociedades escravistas eram realizadas

por homens brancos, livres, por libertos e por escravos. Esta situação nos leva a considerar

que, em tais sociedades, o trabalho manual, em si, não representaria uma depreciação social e

moral de quem a praticava. Devemos considerar alguns aspectos nesse ponto. Uma visão

pejorativa das artes mecânicas pode ter sido verificada em Minas Gerais no caso de um

senhoriato branco, envolvido com outras atividades. Ainda assim, o ponto de vista do autor é

elucidativo nessa questão. Quando afirma que “a condição mecânica não impossibilitou que

as categorias ocupacionais dos diversos trabalhos manuais se posicionassem socialmente de

forma a reservar para as suas atividades um status que não se limitava a importância

econômica de seus afazeres”, Menezes mostra-se atento para o fato de que o trabalho manual

pode atender a interesses de diversos grupos no intuito de garantir-lhes distinção social. De

modo que, em nosso caso, a prática e aprendizagem do ofício se dava pela convivência com

os artesãos do ferro no exercício de seu trabalho. O ofício de ferreiro representava para os

escravos uma maneira de conquistar autonomia frente à rotina de suas atividades. Da mesma

forma, os libertos e crioulos livres ferreiros tinham a partir de seu saber mecânico uma forma

de reafirmar perante o mundo dos livres sua nova condição jurídica.

Assim, o argumento de Menezes de que existiria uma maior solidariedade entre os

senhores e seus escravos praticantes do mesmo ofício do que entre ele e os outros escravos

reforça a questão de que o saber mecânico poderia representar para um escravo uma forma de

18 Idem, 2006, p. 212.

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se distinguir dos demais. Uma distinção ligada à autonomia do trabalho que a prática de um

ofício permitia a esses cativos; seu trabalho passa a ser guiado pelo próprio ritmo da

produção; a fundição e a forja impõem a esse cativo uma experiência de tempo e de trabalho

que não é a mesma do outros integrantes do seu cativeiro. Experiências que os aproximavam

ao mundo dos livres, a partir de suas práticas e como um horizonte de expectativas.

Para evidenciar tais situações, trabalharemos aqui a trajetória de alguns desses

ferreiros, identificados em algumas de nossas fontes em busca da liberdade. São eles:

Custódio, Manoel, Cândido e Lauriano.

Os escravos ferreiros Custódio e Manoel foram encontrados no inventário do Capitão

José Carlos Marques. Seus herdeiros do primeiro matrimônio são Manoel Carlos Marques,

Joaquim Barboza Marques e José Carlos Marques. Do segundo casamento ficaram os filhos

Antonio Jorge Marques e Vicente Ferreira Marques. Falecendo em 1835, o Capitão foi

morador no arraial de São Gonçalo do Rio Abaixo e teve seus bens inventariados em 1837 por

seu filho Antonio Jorge Marques.

Entre esses bens, encontramos: uma parte numa fazenda de cultura em Socorro, no

valor de 120$000, metade da fazenda Galega, avaliada em 500$000. Outra fazenda

denominada Christina pela quantia de 150$000, uma morada de casas de sobrado no valor de

200$000, três praças na fazenda Paiol avaliadas em 100$000, doze escravos, entre eles, os

oficiais de ferreiro Custódio e Manoel. Custódio, crioulo, tinha então 31 anos, era solteiro e

foi avaliado em 600$000. E Manoel, também crioulo e solteiro, de 38 anos, avaliado em

700$000.

A dúvida sobre a quem caberia na partilha a posse desses dois escravos rende várias

páginas de declarações e petições no processo de inventário do Capitão Marques. O Capitão

Marques era também proprietário de uma morada de casas de sobrado em São Gonçalo do

Rio Acima, avaliada em 200$000. Em terras minerais, declara a posse de 3 (três) praças na

fazenda Paiol no valor de 100$000.

O destino dos dois escravos é diferente, mas ambos são pivôs de disputas entre os

herdeiros do finado Capitão. Entre esses herdeiros, temos Manoel Carlos Marques, Joaquim

Barbosa Marques e José Carlos Marques, filhos do primeiro casamento do Capitão Marques e

Antonio Jorge Marques – que foi o inventariante de seu pai – e Vicente Ferreira Marques,

filhos do segundo casamento.

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Custódio era crioulo, tinha 31 anos no momento do inventário de seu senhor, era

solteiro, foi descrito como oficial ferreiro e avaliado na quantia de 600$000. Ele seria um dos

motivos pelos quais o herdeiro José Carlos Marques promoveria uma execução contra seu

irmão e inventariante de seu pai, Antonio Jorge Marques.

O herdeiro José Carlos exige no processo de inventário o pagamento de parte de sua

legítima materna que ficara faltando no momento do inventário de sua mãe. Para tanto, exige

receber na partilha dos bens os escravos Serafim e Ambrósia e o ferreiro Custódio. A respeito

deste, nas palavras do reclamante José Carlos Marques:

Diz José Carlos Marques que promovendo uma execução contra seu irmão Antonio Jorge Marques pela quantia de 845$000 que lhe ficou devendo o falecido pai comum o Capitão José Carlos Marques da legítima materna que coube ao Supll. como herdeiro de sua falecida mãe Antonia Maria de Jesus, se acha contratado e convencionado com o dito Jorge e outros seus irmãos do 1º e 2º matrimônio em receber do Supp. por conta da mesma legítima o escravo Custódio oficial de ferreiro no preço de 600$000 em que foi avaliado no inventário e o resto que são 245$200 e mais 160$000 que concordaram lhe cabia na 4ª parte no valor de 2 escravos, Joam e Boaventura, que depois da morte de sua Mãe o Pai comum recebe como dote, que lhe prometera seu sogro, receberia em dinheiro das mãos de seus irmãos do 2º matrimônio Antonio Jorge e Vicente Ferreira Marques, adjudicando-se-lhe bens no inventário para indenização da referida quantia, logo, que nele apresentar recibo seo Suppl. e que assim mesmo lhe ficaria pertencendo uma praça e meia, metade da Fazenda do Gadejo, que foi inventariada no valor de 62$188 em compensação do que o dito seu pai recebeu pelos jornais dos mesmos escravos, e que quanto a herança deste aceitaria a benefício do inventariante para que assim se observe e fique constando nos autos.19

A contenda entre os herdeiros se refere a bens que teriam sido adquiridos pelo Capitão

Marques quando ainda era casado com Antonia Maria de Jesus: os escravos Joam e

Boaventura, dos quais José Carlos requer também a parte dos jornais pagos a seu pai, parte

em praças na Fazenda do Gadejo e o escravo Custódio. O interessante é que, na solução do

conflito, Antonio Jorge paga a seu irmão 62$499 pelas praças, 500$000 pela metade da

fazenda e um pecúlio de 308$000, mas o escravo Custódio fica em sua propriedade. Isto é,

mesmo fazendo parte da legítima materna dos herdeiros do primeiro casamento, Custódio,

oficial de ferreiro, na partilha, fica entre os bens que pertenceriam a Antonio Jorge. O

inventariante prefere pagar em dinheiro a parte que cabia ao herdeiro José Carlos sobre o dito

cativo que abrir mão de seus serviços. Não houve o mesmo interesse de Antonio Jorge em

ficar com os outros escravos Joam e Boaventura, nem mesmo em relação às terras agrícolas e

19

APMI, Inventários, Inventário de José Carlos Marques. 1837. Cx. 10. Fl. 38.

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minerais que estavam em disputa. Certamente fora o ofício de ferreiro praticado por Custódio

que direcionou a preferência do inventariante.

No mesmo processo de inventário, Antonio Jorge Marques, concede a alforria a

Manoel, pagando o valor do escravo a seus irmãos para que esses não contestassem a

liberdade do ferreiro:

Diz Antonio Jorge Marques e Vicente Ferreira Marques, herdeiros do casal dos falecidos seus pais Capitão José Carlos Marques e D. Antonia Maria de Jesus, que procedendo –se o inventário dos bens do mesmo casal foi avaliado o escravo Manoel crioulo, na quantia de setecentos mil réis, para que os Supll. tem motivos para o beneficiar lícita a quantia de cem réis sobre essa avaliação dele para forro, imputando-se o seu valor nos quinhões da herança dos Supll., e não duvida assinar o termo em que desde já o declaram forro e liberto. E para que assim se verifique. 20

Podemos apenas especular sobre as razões que os herdeiros Antonio e Vicente teriam

para conceder a liberdade ao ferreiro Manoel, uma vez que no processo de inventário não

encontramos nenhum elemento ou informação que explicasse claramente essa medida.

Nenhum dos outros 12 escravos inventariados foram agraciados dessa forma. Daí também se

justifica o empenho de Antonio Jorge em ficar com o ferreiro Custódio. Alforriava Manoel,

mas continuaria tendo sob suas ordens e interesses outro oficial ferreiro.

É possível que os serviços prestados por Manoel através de seu ofício tivessem

permitido a ele negociar com tais herdeiros sua liberdade. Não há indicações da existência de

tenda de ferreiro entre os bens listados no inventário do Capitão Marques, o que nos permite

considerar que Manoel exercia seu trabalho fora da unidade produtiva de seu proprietário.

Podia trabalhar para um dos herdeiros do capitão. Também poderiam trabalhar por jornal para

outros senhores, homens livres, convivendo, no exercício de sua prática, com diversos outros

artífices do ferro, entre brancos, crioulos, pardos e africanos, livres, libertos e escravos. A

experiência da liberdade, que já era algo vivenciado enquanto expectativa e pela autonomia de

trabalho que seu ofício de ferreiro permitia, estava intimamente ligada ao seu modo de vida.

Dava-lhes possibilidades que não estavam disponíveis para todos os outros escravos de seu

senhor. E consolida-se a partir da alforria declarada pelos herdeiros Antonio Jorge e Vicente

no referido processo de inventário.

20 APMI, Inventários , Inventário de José Carlos Marques.1837. Cx. 10. Fl. 35.

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Outro caso a ser discutido aqui é o do ferreiro Cândido, de cor preta, de idade de 44

anos, oficial de ferreiro. Trata-se de um contrato de locação de serviços e coartação,

registrado junto à Câmara Municipal entre o locatário Joaquim Veríssimo de Barcellos e o

locador, o escravo ferreiro Cândido, aos dez dias do mês de março de 1888. É importante

destacar que a expressão locatário usada para identificar o senhor Joaquim Veríssimo, indica

estar este alugando os serviços de um escravo que já era de sua propriedade. Situação um

tanto peculiar. Se Candido era escravo de Joaquim Veríssimo, porque o senhor precisaria

estabelecer um contrato para alugar seus serviços, suas habilidades como “perito oficial de

ferreiro”, como descrito na fonte? Por este contrato, Joaquim Veríssimo e Cândido assinam

entre si um termo de concessão de liberdade, através dos qual o último seria libertado pelo

pagamento da quantia de duzentos mil réis e por serviços prestados por dois anos a partir da

data do contrato. Pelo termo de locação, Cândido poderia substituir os dois anos de serviços a

serem prestados a Joaquim Veríssimo pelo pagamento em dinheiro de trezentos e setenta e

seis mil réis. Essa condição é expressa no contrato de maneira bastante sugestiva:

Aos nove dias do mêz de março de mil oitocentos de oitenta e oito, nesta Cidade de Itabira, em casas de residência do Senhor Pacífico Gusmão de Oliveira Lima, Juiz de Órphãos, onde eu escrivão vim e sendo ali presentes o Curador a ele nomeado, compareceu Joaquim Veríssimo de Barcellos , a companhia de seu escravo Cândido, de cor preta, de idade de quarenta e quatro anos, official de ferreiro, matriculado sobre os números hum mil e quarenta e nove da nova matrícula e dous da relação e diz que tendo contratado com o dito seo escravo ali também presente conceder-lhe a liberdade mediante o adiamento da quantia de duzentos mil réis (...) de prestar-lhe o mesmo serviço pelo prazo de dous anos a contar se da data deste contrato, dos quais poderá remunerar se preferir pagar lhe em dinheiro a quantia de trezentos e setenta e seis mil réis e tendo o mesmo escravo declarado pela pessoa de seo curador a dote que aceita esse contrato ficando lhe saber o direito de resgatar desse em qualquer tempo, pagando a seo senhor em dinheiro o tempo que falta proporcionalmente a quantia estipulada para todo (...) que lhe concede a sua liberdade, salvo as cláusulas do contrato e requer ao Meretíssimo Juiz, ouvidos a respeito o dito escravo e o curador (...) se lavrar esse termo passando por todos assignado e homologado pelo Juiz e pedindo se depois carta de liberdade. E pelo escravo Cândido que se achava ali presente foi dito que aceitava e promete cumprir o presente contrato, sujeitando se as penas legais se quebra lo e pelo curador deste foi dito que por sua parte concordava, pelo que ficou o Juiz por ser bom e válido esse contrato e por ter essa validade, mandou lavrar esse presente termo, que assigno com as pessoas presentes e (...) do escravo por não saber assignar seu nome assigna o advogado. Eu, Antonio Cezario da Costa Lage, escrivão de Órphãos que escrevi. 21

21 APMI, Fundo da Câmara. Documentos relativos à escravidão e outros, Contrato de Locação de Serviços e coartação. Cx. 03. O estado de conservação do documento impediu que algumas pequenas partes neste trecho fossem transcritas. Contudo, a compreensão do documento não foi prejudicada por este inconveniente.

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Embora o contrato tenha sido assinado no ano da abolição da escravatura, e, portanto

não tenha sido cumprido até o final, é inegável a importância que o ofício de ferreiro teve para

que Cândido o pudesse assinar. A concessão de sua liberdade pode ser imediata desde que

pague em dinheiro o valor de seus serviços pelo prazo de dois anos. Na verdade, Candido se

compromete, sob às penas da lei, em trabalhar por esta período para Joaquim Veríssimo.

Contudo, destaca-se que pelo contrato, visto ser perito oficial de ferreiro, Cândido teria

condições reais de se tornar livre e sem vínculos com o seu antigo senhor no momento da

assinatura deste. Por ser oficial de ferreiro Cândido acumulou, a partir de seu saber mecânico,

a quantia exigida por sua alforria neste termo de concessão de liberdade, a ponto de, após

isso, seu antigo senhor torna-se seu locatário, alugando seus serviços. Serviços esses que

Cândido prestaria então como homem livre.

Outra situação instigante é a do ferreiro Lauriano. O escravo ferreiro Lauriano foi

encontrado pela primeira vez em nossas fontes como parte dos bens listados no inventário do

Alferes Manoel da Costa Lage, em 1853. Senhor de muitas propriedades, residente em Itabira,

o dito alferes também deixou em seu inventário uma fazenda de cultura no valor de

3:500$000, um terreno de cultura avaliado em 400$000, um retiro de criar (400$000), duas

moradas de casas na Vila de Itabira, uma no valor de 600$000, outra em 400$000.

Em terras minerais, apresentou ser proprietário de três praças na Serra de Itabira no

valor de 3:000$000, uma praça na Serra de Itabira vista em 4:000$000, cinco datas na Serra

de Itabira, todas avaliadas na quantia de 3:000$000 e 1 praça na Conceição descrita pelo

valor de 180$000. De seus 43 escravos, apenas Lauriano era oficial ferreiro. Não havia tenda

de ferreiro ou elementos que pudessem indicar a existência de uma forja ou tenda de ferreiro

em seu inventário, o que sugere que Lauriano exercesse seu ofício fora da unidade produtiva

de seu senhor.

O conjunto dos bens do Alferes Manoel da Costa Lage atingia a invejável cifra de

52:421$840. Sua atuação na Vila fica evidenciada pela rede de créditos que deixou em seu

inventário: 12:936$500 empregados em dívidas que moradores da cidade tinham com ele. 22

22 APMI, Inventários, Inventário do Alferes Manoel da Costa Lage. 1853. Cx. 24

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Nesta ocasião, Lauriano tinha 28 anos, era casado com a crioula Luzia, de 23 anos,

também escrava do Alferes Manoel. Descrito como ferreiro, foi avaliado na quantia de

800$000, um valor superior à média dos outros escravos em idade próxima a ele. Ao final do

processo de inventário, Lauriano ficou como parte dos bens que couberam ao herdeiro José

Felipe da Costa Lage. 23Um ano depois, encontramos novamente Lauriano descrito entre os

bens do mesmo José Felipe da Costa Lage.

José Felipe, quando de seu falecimento, morava em Itabira e era possuidor de terras

agrícolas (entre elas: uma fazenda de cultura com 250 alqueires de milho avaliada em

2:044$000, outra fazenda de cultura no valor de 2:330$000; 30 carros de milho em 180$000,

20 alqueires de feijão em 16$000) e minerais (três praças na Serra de Itabira em 1:500$000,

uma praça na Serra do Espigão avaliada em 2:000$000, cinco datas e uma praça na Serra

de Itabira no valor de 1:500$000, e uma praça na Serra da Conceição em 90$000). Parte

desses bens herdados do finado Manoel da Costa Lage.

Neste inventário, encontramos descritos entre os bens a serem partilhados um jogo de

ferramenta de ferrar avaliado em 18$000, dez panelas de ferro em 37$200, nove machados,

por 9$000, duas cunhas 2$500, três dúzias de ferraduras 4$750, quatro arrobas e 12 libras de

ferro velho no valor de 8$250, sete arrobas e 10 libras de ferro em 9$940, e uma tenda de

ferreiro no valor de 16$000. Esses dados indicam que, quando o Alferes Manoel ainda era

vivo, Lauriano poderia exercer seu ofício de ferreiro na tenda existente nas propriedades de

José Felipe, o que explicaria também o fato de Lauriano ter ficado como parte deste na

herança de seu pai, mesmo sendo ele o sétimo filho. Além disso, pelo tipo de produto de ferro

identificado neste inventário, confirma-se uma das aplicações do oficio de ferreiro nas Minas

do ferro: a produção de utensílios e ferramentas para a lide agrícola.

23 APMI, Inventários, Inventário de José Felipe da Costa Lage. 1854. Cx. 25.

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A última das fontes em que encontramos Lauriano nos permite tecer algumas

hipóteses sobre o significado que o ofício de ferreiro pode representar em sua busca por

autonomia e experiência de liberdade na sociedade escravista das Minas do ferro oitocentista.

Lauriano aparece classificado na lista dos escravos classificados para serem libertados pela

Junta de Emancipação da cidade de Itabira de 1880. Então com 57 anos, Lauriano pertence a

Joaquim Lourenço da Costa Lage, irmão de seu falecido proprietário José Felipe da Costa

Lage. O escravo é descrito como ferreiro, com boa aptidão e boa moralidade. Tendo

acumulado um pecúlio de 105$000, era o 18º entre os 32 escravos classificados pela Junta

para serem libertados.

Na mesma lista, estavam 13 mulheres – todas listadas primeiro que os homens – e 14

homens – entre os quais Lauriano era o quinto classificado. A maioria dos homens era

composta de oficiais mecânicos24.

Da análise desses dados podemos inferir que a Junta de Emancipação tendeu a

favorecer os escravos e escravas que já exerciam certa liberdade no espaço da cidade, a partir

do trabalho mecânico. Muitos destes eram autônomos e tinham também uma família que

sustentavam com os frutos de seu trabalho.

À primeira vista, pode-se questionar o impacto que o ofício de ferreiro teve para a

conquista de alforria de Lauriano, uma vez que este viveu grande parte de sua vida como

escravo e conquistou sua liberdade já nos anos finais da vigência do sistema escravista no

Brasil, a partir de uma lista de emancipação financiada pelo governo do Império. Contudo,

quando analisamos os critérios de classificação utilizados por essa lista e as características dos

demais escravos nela presentes, outras informações são trazidas à tona. São esses os critérios

de seleção utilizados pela Junta de Emancipação:

1º Que não pode ser classificado escravo pertencente à ordem dos indivíduos (art. 27 § 2º do citado decreto n. 5135), enquanto houver no município escravos pertencentes à ordem das famílias (citado artigo § 1º) excetuando unicamente o caso de estarem excluídos os restantes desta última ordem por virtude das disposições do art. 32 do mesmo decreto.

2º Que dentro da mesma ordem não é licito passar da graduação superior a inferior da preferência em que a primeira seja esgotada, salvo a exceção declarada na regra precedente.

24 APMI, Fundo da Câmara. Documentos relativos à escravidão e outros, Relação dos Escravos Classificados pela Respectiva Junta do Município desta Cidade de Itabira em o ano de 1880. Cx. 03.

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3º Que toda a vez que a Junta passar de uma a outra graduação de preferência, declarará na casa das observações que se acha esgotada a precedente, ou nomeará os escravos preferidos por força das disposições do art. 32, especificando-as.

4º Que na ordem das famílias compreendem-se guardada a preferência conforme a numeração seguinte:

I – Os escravos casados com pessoa livre; II – Os cônjuges que forem escravos de diferentes donos, estejam ou não separados, pertençam aos mesmos ou a diversos condomínios. III – Os cônjuges que tiverem filhos ingênuos menores de 8 anos. IV – Os cônjuges que tiverem filhos menores de 21 anos. V – Os cônjuges com filhos menores, escravos. VI – As mães, viúvas ou solteiras, que tiverem filhos escravos menores de 21 anos. VII – Os cônjuges sem filhos menores ou sem filhos. 5º Que na ordem dos indivíduos compreendem-se, guardada a preferência, conforme a numeração seguinte:

I – A mãe, viúva ou solteira, com filhos livres. II – O pai, viúvo com filhos.

III – os escravos solteiros até 50 anos de idade, começando pelos mais moços, no sexo feminino e pelos mais velhos, no masculino.

6º Que os filhos de escravos, maiores de 12 anos e menores de 21 anos, tendo pais legítimos ou mãe escrava, devem ser sempre classificados conjuntamente com eles na mesma ordem e número enquanto residirem no mesmo município, em estado de solteiro.

7º Que em igualdade de circunstâncias, as mulheres preferem aos homens na ordem da emancipação.

8º Que os motivos de preferência especificados na ultima parte do artigo 27 do decreto, pecúlio e moralidade do escravo, concorrem juntos ou separados para estabelecer a preleção das famílias ou indivíduos, compreendidos na mesma ordem e graduação dos §§ 1º e 2º do art.17 do dito decreto, mas não para alterar a ordem e graus de preferência neles prescritos e explicados na 4ª e 5ª regras. 25

Segue abaixo a lista com a classificação dos escravos feita pela Junta de Emancipação

de Itabira em 1880:

25

APMI, Fundo da Câmara. Documentos relativos à escravidão e outros, Critérios para classificação dos escravos pela Junta de Emancipação. Cx. 03.

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Relação de escravos classificados pela Junta de Emancipação de Itabira - 1880

Nº Nº de

Matríc.

Nome Cor Ida. Estado Ocupação Aptid. Moralide Nome do Senhor Pecúlio Observações

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32

2728 3299 2099 1687 1707 3411 1550 5964 1207 2286 1229 1448 789 4507 5011 2105 109 271 5792 6242 3365 661 5347 5158 38

2179 2482 5077 2007 1280 64

1787

Maria Maria

Virginia Felícia

Maria Teresa Anna

Luciana Celestina Firminia Edwiges Joaquina Ignácia Suzana

Chrispim Luciano Antonio Manoel

Lauriano Manoel Jorge Adão

Germano José

Antonio Romão

Generosa Balbina Pedro

Vicente Carolina

Jacinto Cruz Juliana

Parda Preta

II II II II II II II II II II II II II II

Pardo Preta

II II II II II II

Pardo Preta Parda Preto

II II II II

14 29 43 40 41 42 47 31 36 38 46 56 38 20 41 62 35 57 38 19 40 44 54 38

26 35

35 64 33

Casada II II II II II II II II II II II II II II II II

Casado II II II II II II II II II II II

Casada II II

Costureira Cozinheira

S. doméstico II II II II II II II II II II

Pagem Arreeiro Carreiro Pagem

Ferreiro Lavrador

II II II II II

Arreeiro S. doméstico

II Lavrador

Carpinteiro S. doméstico

Lavrador S. doméstico

Ótima Boa II II II II II II II II II II II II II II II

Boa II II II II II II II II II II II

Boa II II

Ótima Boa II II II

Ótima Boa II II II II II II II II

Má Boa Boa II II II II II II II II II II II II

Má Boa

João Gabriel Mnz de Andrade Adolfo Monteiro Chassim

Vicente Augusto Raimundo Muniz Da C.

Francisco de Assis Drumond Theófilo Monteiro C. e filhos Ignácio Teixeira de Novaes

D. Joana Gonçalves M. Andrade Carlos Cassemiro de Pires

D. Joana Gonçalves Moraes D. Maria Barbana M. D. Tiburcia Pereira João da S. Fonseca José Antonio de Sá

João José da Silva Muniz Joaquim Constâncio

Joaquim Lourenço Theófilo Monteiro José Batista Muniz

D. Antonia Marinho Nicácio José Soares

Joaquim José Cônjuges de diversos senhores

Antonio Ignez Felippe D. Ana Teix. da Fonseca Duarte

José Felícimo D. Julia Tomazia de Miranda

Antonio Pereira de Sião Rita Maria de Jesus Lucinda de Barbosa

Antonio José M. de Menezes

200$000 200$000 205$000 200$000 150$000 105$000 100$000 60$000 50$000 50$000 50$000 50$000 25$000

205$000 200$000 200$000 110$000 105$000 100$000 50$000 50$000 50$000 400$00

120$000 100$000 100$000 100$000 100$000 50$000

200$000 200$000

Perfeita. educada, 1 filha menor livre

Tem 3 filhos menores de 21 anos Tem 1 filha menor

Tem 1 filha menor Tem 1 filha menor de 21 anos Tem filha menor de 21 anos

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Fonte: APMI, Fundo da Câmara. Documentos relativos à escravidão e outros, Relação dos Escravos Classificados pela Respectiva Junta do Município desta Cidade de Itabira em o ano de 1880. Cx. 03.

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Lauriano estava incluído na categoria de família, uma vez que era casado com a

crioula Luzia. Tinha preferência então junto aos escravos pertencentes à categoria de

indivíduos. Luzia também era escrava e ambos pertenciam ao mesmo senhor. Ela não fora

descrita na lista de classificação para emancipação e o casal não tinha filhos menores, o que

os excluía de primazia na classificação segundo o 4º artigo.

Considerando os demais escravos classificados, há o predomínio de mulheres, sendo

as primeiras classificadas mães de filhos menores, conforme os critérios já definidos. Apenas

quatro homens são descritos antes de Lauriano: Crispim, preto de 20 anos, casado, pagem,

escravo de José Antonio de Sá; Luciano, arreeiro, de 41 anos, casado; Antonio, de 62 anos,

carreiro, também casado e Manoel, pardo de 35 anos, casado, cuja ocupação é a de pagem.

Não sabemos as condições que fizeram com que estes escravos fossem classificados

antes de Lauriano, apenas há a indicação na lista de possuírem um pecúlio maior. Esse pode

ter sido o critério de classificação desses escravos: o valor do pecúlio. Poderiam também ser

casados com mulher livre ou escrava de outro senhor, ou por terem filhos menores, por

exemplo, mas não consta essa informação no campo “observações”. Mas sabemos que

Lauriano não atendia à maioria dos critérios de preferência utilizados pela Junta de

emancipação. Sua situação o colocava inserido nos critérios do artigo oitavo: ele tinha

pecúlio, boa moralidade e boa aptidão.

Que outros motivos poderiam ter colocado Lauriano entre os cinco primeiros dos 17

homens classificados pela lista de emancipação?

Podemos levantar algumas hipóteses a esse respeito. Pelo fato de ser ferreiro, Lauriano

esteve em contato com pessoas influentes, grandes proprietários de terras e minas, a quem os

seus serviços seriam bastante úteis. Os três proprietários de Lauriano que encontramos

pertencem a mesma família, herdeiros de uma das maiores fortunas da região. O próprio

escrivão de órfãos da Cidade de Itabira que assina e registra a dita classificação, Antonio

Cezário da Costa Lage, é irmão de José Lourenço, ambos irmãos do finado José Felipe da

Costa Lage, seu segundo proprietário. Para o escrivão Antônio Cesário, Lauriano não era

desconhecido, uma vez que o escravo servira a sua família desde antes de 1853, data do

inventário do Alferes Manoel da Costa Lage, a primeira fonte em que o encontramos. Neste

ano, Lauriano já aparecia entre os bens e escravos de Manoel da Costa Lage.

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Assim, é possível que a família tenha intercedido pela classificação de Lauriano para

ser alforriado pela Junta de Emancipação, mesmo que ele não atendesse aos principais

critérios de seleção por ela utilizados. Interferência esta, fruto das relações que Lauriano teria

conquistado pelos serviços prestados a pelo menos duas gerações da família Costa Lage como

oficial de ferreiro. Não há outro escravo de propriedade de nenhum dos herdeiros do Manoel

da Costa Lage na dita lista de classificação.

Os casos analisados aqui reforçam a proposta de que o ofício de ferreiro

proporcionava a esses artífices, escravos e libertos, uma maior autonomia de trabalho que

muitas vezes se convertia em experiências de liberdade, antes mesmo da conquista da alforria.

E consolidavam essa experiência quando se tornavam libertos.

Para os escravos, o ofício lhes permitia uma rotina de trabalho diferenciada dos outros

escravos de seu senhor. A fundição e a forja do ferro tinham ritmos próprios que os escravos

ferreiros seguiam; a partir disso, ganhavam autonomia. Pela prática do ofício conviviam com

outros artífices, muitas vezes de condição jurídica superior, e na figura destes vislumbravam

um horizonte de liberdade que o seu ofício poderia tornar possível. Para os libertos, o mundo

dos livres permanecia cheio de armadilhas, onde a cor de sua pele poderia associá-lo

perigosamente a seu passado escravo. Precisava mostrar-se apto ao convívio com os brancos,

garantir às autoridades que era capaz de ganhar seu próprio sustento. O ofício de ferreiro

abria-lhe essas possibilidades. A partir dele, a liberdade experimentada a partir do ritmo dos

trabalhos com o ferro, enquanto era escravo, consolidava-se quando liberto.

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