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FERNANDO MARCEL KOWALSKI O FILHO ILEGÍTIMO, A HIERARQUIA SOCIAL E A SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA NA AMÉRICA PORTUGUESA (COMARCA DE PARANAGUÁ, SÉCULO XVIII) Monografia apresentada à disciplina de Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica como requisito parcial à conclusão do Curso de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Dr. Sergio Odilon Nadalin CURITIBA 2005

o filho ilegítimo, a hierarquia social e a sucessão testamentária na

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FERNANDO MARCEL KOWALSKI

O FILHO ILEGÍTIMO, A HIERARQUIA SOCIAL E A SUCESSÃO

TESTAMENTÁRIA NA AMÉRICA PORTUGUESA (COMARCA DE

PARANAGUÁ, SÉCULO XVIII)

Monografia apresentada à disciplina de Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica como requisito parcial à conclusão do Curso de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Dr. Sergio Odilon Nadalin

CURITIBA

2005

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SUMÁRIO

RESUMO ...................................................................................................................... iii

INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 1

1. UMA ESCADA PARA O CÉU, OU PARA O INFERNO: A SOCIEDADE

COLONIAL LUSO-AMERICANA E SUA HIERARQUIZAÇÃO ......................... 3

1.1. O FILHO ILEGÍTIMO NA SOCIEDADE COLONIAL. A “CRIAÇÃO” DO

BASTARDO..................................................................................................................... 7

2. A LEGISLAÇÃO PORTUGUESA E O ILEGÍTIMO ........................................ 13

2.1. A IGREJA, SUA LEGISLAÇÃO E A ILEGITIMIDADE .................................... 13

2.1.1. A Igreja, a família, a sexualidade e a ilegitimidade ............................................. 17

2.2. O CASAMENTO, O FILHO ILEGÍTIMO E A LEGISLAÇÃO CIVIL ............... 20

3. O FILHO ILEGÍTIMO E A SUCESSÃO ............................................................. 23

3.1. O FILHO ESPÚRIO ............................................................................................... 23

3.2. O TESTAMENTO E A BUSCA DO “BEM MORRER” ...................................... 24

CONCLUSÃO .............................................................................................................. 31

FONTES UTILIZADAS ............................................................................................. 32

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 35

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RESUMO.

A historiografia especializada tende a considerar o filho ilegítimo como um personagem, até certo ponto, privilegiado dentro da sociedade colonial. O próprio impulso colonizador tendia a incorporar facilmente tais indivíduos e, mesmo as autoridades os viam como um “mal necessário”. Entretanto, uma pergunta deve ser feita no que concerne à integração do ilegítimo nas comunidades luso-americanas: até que ponto tal elemento humano era considerado uma peça ordinária dentro da teia de sociabilidades coloniais? Foi feita uma análise de um total de vinte documentos entre testamentos e inventários encontrados nos arquivos responsáveis e relacionados, principalmente, à antiga Comarca paulista de Paranaguá. Tais documentos foram produzidos durante o decorrer do século XVIII e citam filhos ilegítimos e mesmo crianças expostas no rol dos beneficiados isso, quando estes não se encontravam entre os próprios testadores.

Dessa maneira, transparece, nesse trabalho, a busca de um melhor entendimento da condição cotidiana do ilegítimo em plagas paulistas durante o setecentos. Uma comparação de tal documentação, com as legislações vigentes, tanto civil (Ordenações Filipinas), como eclesiástica (Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia), se confirmou uma regra, já constatada pela historiografia, em outras regiões: o ilegítimo era privilegiado nos testamentos apenas quando o testador não possuía filhos legítimos. No caso de constar em um testamento, ou inventário, que contenha filhos legítimos como herdeiros, os ilegítimos tendiam a receber simples “esmolas”, o que pouco representava das posses do testador, o que bem ordenava o Código Filipino, prudente em defender a família legitimamente constituída.

Enfim, mesmo privilegiado em varias situações, devido, principalmente, à falta de elemento humano na empresa da colonização, o ilegítimo tendia a ser visto como elemento secundário, mesmo que necessário, no interior da sociedade luso-americana.

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A documentação [, testamentos e inventários,] [...] Constitui também generoso manancial de notícias relativas à organização da família, vida íntima, economia e cultura dos povoadores. 1

INTRODUÇÃO.

O ponto de partida dessa pesquisa foi um debate iniciado há três anos durante o

decorrer de minhas duas bolsas de Iniciação Científica. 2 O plano de trabalho consistia

na discussão da dualidade do termo “bastardo”, pois esse, além do sentido moderno, de

filho nascido fora do matrimônio, poderia se relacionar, também, aos indivíduos

mestiços, notadamente o mameluco. Dessa forma, pude, durante o período de vigência

das ditas bolsas, averiguar diversas possibilidades para a temática do “bastardo”, tanto

ilegítimo como mestiço.

O rol de fontes documentais que nomeavam tais indivíduos é, pois, bastante

considerável. Registros paroquiais (atas de batismos, casamentos e óbitos), censitários

(Listas Nominativas de Habitantes), processos de foro misto, mixti fori, (processos-

crime que implicariam nos interesses, tanto da Igreja quanto do Estado), registros

cartoriais (contratos de compra e venda, empréstimos, testamentos e inventários), são

exemplos dos documentos que podem vir a se referir aos indivíduos bastardos. Destes,

apenas não foram explorados, durante minha Iniciação Científica, as fontes cartoriais.

Aproveitando-me, então, do rico filão ainda inexplorado, até então por mim, resolvi

averiguar a condição do ilegítimo na sucessão testamentária. Para isso, aproveitei-me do

trabalho feito pelo Centro de Documentação e Pesquisa de História dos Domínios

Portugueses, séculos XV a XIX (CEDOPE) que, com afinco, vem arquivando e

1 MACHADO, José de Alcântara. Vida e Morte do Bandeirante. São Paulo : Martins; Brasília : INL, 1972, p. 16. 2 Tal plano de trabalho, “A Semântica da Ilegitimidade” estava enquadrado em dois projetos de maior monta. O primeiro foi intitulado “Formação da Sociedade Paranaense: população, administração e espaços de sociabilidades (1648-1853)”, vinculado ao Centro de Documentação e Pesquisa de História dos Domínios Portugueses (CEDOPE-DEHIS), sendo realizado entre setembro de 2002 e julho de 2004. O segundo plano de trabalho estava vinculado ao projeto do Professor Doutor Sergio Odilon Nadalin (CEDOPE-DEHIS), “Pus os Santos óleos a Francisco innocente ‘pater incognitus’. Bastardia e Ilegitimidade, murmúrios dos testemunhos paroquiais durante os séculos XVIII e XIX”, tendo uma duração de um ano, entre agosto de 2004 e agosto de 2005. Esse plano de trabalho auxiliou em muito minha formação científica e acadêmica e rendeu alguns trabalhos apresentados em eventos de boa envergadura, como a V Jornada Setecentista (organizada pelo Departamento de História da UFPR) e a I Jornada Internacional de História da Família (organizada pelo Centro de Estudos de Demografia Histórica da América Latina, CEDHAL), ocorridos em 2003 e o XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, organizado, e realizado em 2005, pela Associação Brasileira de Estudos Populacionais, ABEP, da qual sou sócio e membro do Conselho Fiscal durante o biênio 2005-2006.

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processando volume considerável de fontes produzidas nos vastos domínios do Império

colonial português. Foi feita uma análise de um total de treze testamentos e oito

inventários encontrados nos arquivos responsáveis e relacionados à antiga comarca de

Paranaguá e já explorada, em outros aspectos, em dissertação de mestrado defendida por

Milton STANCZYK FILHO3, nesse mesmo ano, aqui, no departamento de História da

Universidade Federal do Paraná.

Tal análise demonstrará que, ao contrário do que imaginava inicialmente, ao

estudar uma “peculiaridade curitibana” do século XVIII4, as conclusões feitas ao

verificar a documentação, corroboraram resultados já obtidos em outras regiões luso-

americanas.

3 STANCZYK FILHO, Milton. À Luz do Cabedal: acumular e transmitir bens nos sertões de Curitiba (1695-1805). Curitiba, 2005. Dissertação de Mestrado. Departamento de História. Universidade Federal do Paraná. 4 Tal peculiaridade é, justamente, relacionada ao duplo conceito de bastardia, que acabou gerando uma forma alternativa de registrar os batismos na Matriz de Nossa Senhora da Luz de Curitiba. A criação de livros próprios para o registro de mestiços (bastardos) foi necessária. Dessa forma, um exemplo a ser dado, e que diferenciava a vila de Curitiba das demais estudadas na América Portuguesa colonial, é o caso desses bastardos que, mesmo livres, acabavam sendo registrados no mesmo livro destinado aos escravos.

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1. UMA ESCADA PARA O CÉU, OU PARA O INFERNO: A SOCIEDADE

COLONIAL LUSO-AMERICANA E SUA HIERARQUIZAÇÃO.

Remetemo-nos, pois, ao século XVIII, tempos de glória para a América

Portuguesa, cuja vida dependia, direta ou indiretamente, das lavras de ouro e diamantes,

tanto das Minas Gerais como das Minas dos Goiazes e do Mato Grosso. Focos

centralizadores do esforço colonizador luso, que centralizam, aos menos as Gerais, boa

parte da historiografia brasileira concernente ao período colonial.

Estabelecido nos domínios sócio-culturais do Antigo Regime, o Império

Colonial Português, mais especificamente, sua sociedade foi “transportada” para o Novo

Mundo e adaptada. Devido às particularidades encontradas (e também criadas) pelo

colono lusitano em terras brasileiras, sua sociedade não conseguiu ser simplesmente

repetida. A falta do elemento feminino europeu foi de vital importância para que esse

processo não ocorresse. Dessa forma, uma interação muito maior entre autóctones e

alienígenas – tanto portugueses como demais europeus, além do elemento africano –

pôde acontecer. Além do mais, a cultura européia/portuguesa que seria passada pelas

mulheres aos seus filhos não conseguiu se difundir em sua totalidade. Aos

desbravadores lusos tendo

Vindo ao Brasil sem suas mulheres, faltaram-lhes condições de desdobrar, integralmente, a cultura familiar lusitana. E, sem dúvida, a miscigenação alterou a rígida organização social, tal como era prevista pelas leis e costumes portugueses (...). Na composição e reelaboração das tradições lusitana e autóctone, foi urdida uma outra forma de viver – o modo caipira. 5

Modo caipira, ou, como explanado por Sérgio NADALIN, 6 captado de Luiz

Felipe de ALENCASTRO, um “processo social de mestiçagem”, 7 que “estaria de

acordo com a política portuguesa de criar novas ‘raças’ de mestiços fiéis a Portugal”. 8

Não esquecendo das tradições africanas que, junto com os escravos, arrancados

de suas pátrias natais, aportaram para auxiliar no trabalho de construção e edificação de

um Império intercontinental.

5 TRINDADE, Etelvina Maria de Castro; ANDREAZZA, Maria Luiza. Cultura e Educação no Paraná. Curitiba: SEED, 2001, p. 15-16. 6 NADALIN, Sergio Odilon. A população no passado colonial brasileiro: mobilidade versus estabilidade. Curitiba : mimeo, s/d, passim. 7 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul; séculos XVI e XVII. São Paulo : Companhia das Letras, 2000, p. 351. 8 Interessante notar uma distinção dos planos portugueses para a Índia, como verificado por Andréa DORÉ (2002), onde a própria Coroa investia na não-aproximação entre portugueses e autóctones.

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Administrado pelo lusitano, e mais tarde, pelo luso-brasileiro, esse Império era,

mesmo com sua diversidade, parte de Portugal. “Ao implementar câmaras municipais e

freguesias, a Coroa portuguesa estabelecia mecanismos que permitiam às leis de

Portugal e ao catolicismo controlar o ordenamento social”. 9 Na verdade, a criação da

municipalidade tende a ser mesmo anterior a tal ordenamento social10, a política do

Marquês de Pombal tende a ser emblemática no que diz respeito a isso. A elaboração de

vilas parte por iniciativa metropolitana e, mesmo quando os núcleos humanos já estão

desenvolvidos, “[...] é poder central que toma a iniciativa de dar à população os órgãos

de sua administração. Esta não é formada, como nos nucleos saxônios e germanicos,

pela acção espontanea da propria collectividade; é uma apparelhagem dativa, vinda de

fóra e do alto”. 11 Vê-se, dessa maneira, que a hierarquia administrativa acaba por

dirigir a sociedade de forma a se refletir nesta, seus princípios estruturais.

Mas como se deve descrever esse mundo? Estudar as sociabilidades e as formas

de regulamentação da sociedade não apenas parece, como realmente é, de uma

complexidade plena. Muito difícil para o historiador contemporâneo seria compreender

o espírito que regia as sociabilidades dessa sociedade pertencente ao Antigo Regime.

“Cada frase expressa uma consciência estranha tentando ordenar um mundo que não

existe mais. Para penetrar nessa consciência, precisamos concentrar-nos mais nos

modos de descrever do que nos objetos descritos”. 12 Indiciar os mais insignificantes

detalhes, como demonstra Carlo GINZBURG13 seria uma forma bastante eficiente.

Sabe-se que a sociedade do Ancien Régime era herdeira da sociedade medieval.

Esta, dividida em estamentos quase que inalteráveis, foi transferida, transmutada em

uma forma mais branda, para a Idade Moderna. Mesmo com o advento do

Mercantilismo e a crescente monetarização da sociedade, a hierarquia continuava

arraigada às mentes e pensamentos de seus indivíduos. E, é através da segmentação

dessa sociedade que, o homo hierarchicus, citado por Louis DUMONT14, vicejava. E,

como parte integrante do império colonial português, a vila de Curitiba, mesmo sendo

9 Ibid. p. 18. 10 VIANNA, F. J. Oliveira. Populações Meridionais do Brasil. Historia, Organização, Psycologia. Vol. I. Populações Ruraes do Centro-Sul. Paulistas, Fluminenses, Mineiros. São Paulo : Companhia Editora Nacional, 1933, p. 349 et seq. 11 Ibid. p. 351. 12 DARNTON, Robert. Um burguês organiza seu mundo: A Cidade como Texto. In : _____. O grande massacre de gatos, e outros episódios de história cultural francesa. Rio de Janeiro : Graal, 1986, p. 144. 13 GINZBURG, Carlo. Sinais. Raízes de um paradigma indiciário. In.: _____. Mitos, Emblemas, Sinais. Morfologia e História. São Paulo : Companhia das Letras, 1989. p. 143 et seq. 14 DUMONT, Louis. Homo Hierarchicus. São Paulo : EDUSP, 1992, passim.

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uma de suas áreas periféricas, uma verdadeira fronteira, não foge de uma interpretação

padrão para sua sociedade.

Como herdeira da sociedade lusa, sua análoga curitibana não perde seu caráter

plástico, fator característico das instituições do Antigo Regime. Adaptando-se às

particularidades geográficas e populacionais, a sociedade “lusotropical” 15 pouco se

diferenciará de região para região, desde as ilhas atlânticas até a Ásia. Existirão

analogias, caso se compare suas sociedades, em todas as possessões lusitanas

ultramarinas.

A grande característica dessas comunidades plásticas será sempre a profunda

hierarquização destas. O que se verifica é que os ideais linhagísticos estabelecidos pela

nobreza medieval e que acabariam por permear os demais estamentos da sociedade

cristã européia permaneceriam presentes durante séculos, mesmo em terras do Novo

Mundo.

Muitos são os autores que debatem sobre a sociedade brasileira e sua

hierarquização. Comecemos com os arroubos eugenistas de Oliveira VIANNA16, em

livros onde termos como “raça” e conceitos como “ariano” ou “arianização” surgem

implícita ou explicitamente no texto. Ou, mais anteriormente, com Nina RODRIGUES, 17 que, na realidade estudou o seu dia-a-dia18, e seus escritos médico-etnológicos sobre a

“cultura negra” e uma possível “sobrevivência psíquica na criminalidade dos negros no

Brasil”. 19 Também lembrando da iminente degradação da raça, tanto branca quanto

negra, através da mestiçagem. 20 O que gerou, desde o início da colonização, uma

sociedade repleta por uma “(...) ralé pullulante de cabras, cafusos, mamelucos, índios e

negros fôrros”. Sem os quais “(...) a maravilhosa e rápida penetração dos sertões pelos

‘bandeirantes’ ao sul e pelos ‘criadores’ ao norte não se teria operado”. 21

15 O caráter elástico das sociedades moldadas pelos ibéricos em seus domínios ultramarinos, exposto por Gilberto Freyre em 1951 no Instituto de Goa (Índia), sob a égide de uma nova disciplina, o Lusotropicalismo, mais tarde desdobrado na Tropicologia foi amplamente debatido pelo sociólogo em suas obras, principalmente em Casa Grande & Senzala, seu ponto de partida em sua aventura de compreensão da colonização ibérica. (FREYRE, 2002, passim.) 16 VIANNA, F. J. Oliveira. Raça e Assimilação. São Paulo : Companhia Editora Nacional, 1932; _____. Populações Meridionais...; _____. Evolução do povo brasileiro. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938. 17 RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. São Paulo : Nacional, 1977. 18 Nina Rodrigues não atuou no campo da história colonial, limitando-se a relembrar as passagens contemporâneas, geralmente citadas pelos africanos e seus descendentes, durante a virada dos séculos XIX e XX. Entretanto, seu estudo pode ser perfeitamente usado, pois sua interpretação psicopatológica do negro e do mestiço pode ser considerada atemporal. 19 RODRIGUES, Nina. Op. Cit. 20 Ibid., p. 272-275. 21 VIANNA, 1938, p. 93.

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Seriam esses elementos capazes de galgar os mais altos escalões da sociedade

colonial? Algo bastante provável, justamente onde a carestia populacional fazia com

que os grandes desertos surgissem entre os, explanados, “organismos autônomos”,

sesmarias independentes umas das outras, verdadeiras “autarquias” – possivelmente

fossem as verdadeiras divisões políticas do Império Luso-americano -, como

conceituadas por Caio PRADO JR. 22 Comandadas por patriarcas cuja pele, muitas

vezes, não era tão clara quanto desejaria a Coroa. É necessário não esquecer o exemplo

citado por Luís da Câmara CASCUDO, em seu Made in África:

Henry Koster em 1810 perguntava se um determinado Capitão-Mor, pernambucano de pele fusca, era mulato. Ouviu a resposta tranqüila: Era, porém já não é! O poder administrativo atuava como fórmula arianizante. He was, but is not now! Can a Capitam-Mor be a mulatto man? 23

Quão importante, então, não foi a primorosa apresentação da sociedade colonial

feita por FREYRE? 24 A hierarquia, cujo ápice estava representado pelo grande senhor,

pelo patriarca, o dono de engenho, é tratada em toda a extensão do livro Casa-grande &

Senzala, contudo, de maneira mais abrandada que em Oliveira VIANNA. Sua visão

“amorenada” da hierárquica sociedade lusotropical faz com que essa característica passe

quase que despercebida pelo leitor descuidado.

Uma sociedade paradoxal, onde a administração coibia os desejos arrivistas dos

elementos menos favorecidos, a “ralé”. Ao mesmo tempo, “(...) os governadores não os

punem com o rigor permittido; ao contrário, se fazem tolerantes para com elles, porque

dada a situação da colônia, elles são verdadeiramente úteis”. 25 Mas estes membros da

sociedade são realmente reconhecidos por seus contemporâneos? Quão anatematizado é

o índio, ou o negro, ou o mestiço, ou até mesmo figuras que feriam a moral cristã, como

o concubinário, a feiticeira, aprostituta ou o bastardo?

Eugene GENOVESE, em seu livro O Mundo dos Senhores de Escravos (1979),

vê a sociedade colonial como o resultado dos desmandos do senhor de escravos, um

lugar onde nada seria feito sem sua intervenção – um “freyreanismo latente”, talvez. 26

Os escravos e, muitas vezes, os demais “estamentos”, não seriam capazes de tal empresa

22 PRADO JÚNIOR, Caio. Evolução política do Brasil e outros estudos. São Paulo : Brasiliense, 1961, p. 19. 23 CASCUDO, Luís da Câmara. Made in Africa. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1965, p. 43. 24 FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: formação da sociedade brasileira sob o regime patriarcal. Rio de Janeiro/São Paulo : Record, 2002, passim. 25 VIANNA, 1938, p. 93. 26 GENOVESE, Eugene D. O Mundo dos Senhores de Escravos. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1979.

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– a da colonização. Mesmo atrelado a conceitos marxistas, esse autor acaba por

subestimar a capacidade de atuação das demais camadas da sociedade colonial

americana, relegando seus representantes a uma posição de inferioridade, sob o jugo do

grande senhor branco, o que corrobora, mais de 40 anos depois, o discurso de FREYRE

e Oliveira VIANNA. Seriam tais camadas, pois, apenas a massa vilipendiada, explorada

pela figura, um tanto inadequada, do “burguês” / senhor de escravos.

Tão arraigados conceitos poderiam ser realmente seguidos pelos afro-luso-

americanos? Essa hierarquia poderia ser realmente seguida? A sociedade do Antigo

Regime, com sua grande plasticidade farão com que se burle, quando possível, essa

“hierarquização atípica”, verdadeira “instituição” social. Instituição tênue, velada, a

hierarquização da sociedade, entretanto existente e sempre presente.

O caso é que, defendendo ou não a posição freyreana quanto à família brasileira

colonial, deve o historiador, considerá-la como sendo patriarcal. Não nos moldes

estipulados pelo “homem de Apipucos”, uma família extensa – comum no antigo

nordeste açucareiro -, onde uma complexa estrutura social orbita em torno do grande

senhor de engenho, o patriarca, mas, algo menos pretensioso, menor em tamanho,

porém, igualmente patriarcal.

1.1. O FILHO ILEGÍTIMO NA SOCIEDADE COLONIAL. A “CRIAÇÃO” DO

BASTARDO.

A história do filho ilegítimo em terras luso-americanas se inicia com os

primeiros intercursos sexuais entre europeus e mulheres indígenas. Tamanha era a

liberdade encontrada pelos europeus perante as índias que muitos acabavam se

amancebando com várias ao mesmo tempo.

Tal costuma horrorizava os religiosos que circulavam pelas plagas americanas.

Em pouco tempo, as hostes de crianças ilegítimas era tão numerosa que o próprio termo

bastardo passou a designar, também as crianças mestiças, filhos dos enlaces irregulares

de brancos e mulheres indígenas.

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John Manuel MONTEIRO27 desenvolve o raciocínio de que ambos os fatores

citados da bastardia (racial e social) foram importantíssimos para a fixação do colono

europeu em terras americanas. Mais que uma saída para a falta de mulheres brancas, “a

poligamia e o concubinato [geradores de crianças ilegítimas e mestiças,

concomitantemente] refletiam, às vezes, as alianças, pactuadas entre portugueses e

índios, conferindo aos colonos certo prestígio dentro das estruturas indígenas”. 28

Enfim, uma tática para conviver harmoniosamente com o elemento indígena.

O fato, é que a bastardia passou a designar os dois sentidos apresentados com o

início da colonização lusa. Os portugueses fizeram do concubinato marca registrada da

teia de relações com os indígenas. Por achar demais ofensivo contrair matrimônio

legítimo com as chamadas “negras da terra” e, também, por muitos não o poderem

devido ao fato de já serem casados em Portugal, os colonos brancos preferiram adotar

os “hábitos matrimoniais” dos americanos. Adotavam o “costume da terra” 29, passando

a gerar grande contingente de filhos mestiços e ilegítimos. Logo, como por regra o

mestiço era também bastardo, o termo passou a ser utilizado para designar o híbrido

entre branco e indígena. 30

Um tanto precipitadamente, FREYRE, em entrevista à TV Cultura, acaba por

delegar à mulher indígena um papel mais liberal do que a antropologia atual direciona a

esta personagem. Corroborando, é claro, mais uma vez, seu discurso explicitado em

Casa-Grande & Senzala.

A grande presença índia no Brasil não foi a do macho, foi a da fêmea. Esta foi uma presença decisiva, a mulher índia tomou-se de amores pelo português, talvez até por motivos fisiológicos, porque, segundo pude apurar quando escrevi Casa Grande & Senzala, as sociedades ameríndias ou índias, inclusive a brasileira, eram sociedades que precisavam de festivais como que orgiásticos para provocar nos homens, nos machos, desejos sexuais. O que há de acentuar é o grande papel da índia fêmea na formação brasileira, essa índia fêmea não só através do relacionamento mencionado sexual, mas através do papel social que ela começou a desempenhar magnificamente, tornou-se uma figura capital na formação brasileira. 31

27 MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo : Companhia das Letras, 1994. 28 Ibid., p. 34. 29 Carta de Manuel da Nóbrega a Luís Gonçalves da Câmara. LEITE, Serafim, S. J. (org.). Monumenta

brasiliae. Roma : Archivum Romanum Societatis Iesu, 1956-1960. Vol. I, p. 524. 30 Nosso primeiro historiador, Frei Vicente do SALVADOR (1627), cita o adjetivo bastardo ligado a nomes de personagens importantes da história por ele narrada. Mas não se refere a ele como sinônimo de mestiço, preferindo o termo mamaluco (sic), “[...] porque mamalucos chamamos mestiços, que são filhos de brancos, e de índias [...]”. (SALVADOR, 1627, XX). 31 Palavras de Gilberto Freyre à TV Cultura, expostas em Casa-Grande & Senzala, na sessão Alô Escola, no sítio da própria emissora. Disponível em http://www.tvcultura.com.br/aloescola/estudosbrasileiros/casagrande, acessado em 8 de novembro de 2005.

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Ou seja, foi, para FREYRE, a permissividade, a lubricidade da mulher indígena

que teria gerado uma sociedade brasileira tão sexualizada. Afinal,

O europeu saltava em terra escorregando em índia nua; os próprios padres da Companhia precisavam descer com cuidado, senão atolavam o pé em carne. Muitos clérigos, dos outros, deixaram-se contaminar pela devassidão. As mulheres eram as primeiras a se entregar aos brancos, as mais ardentes indo esfregar-se nas pernas desses que supunham deuses [...].

“Lãs mujeres andam desnudas y no saben negar a ninguno mas aun ellas mismas acometen y importunan los hombres hallandose com ellos em las redes; porque tienen por honra dormir com los Xianos”, escrevia o Padre Anchieta [...]. 32

Confundiu FREYRE, cultura alheia com “desvio” de sua cultura. Mas, mesmo

com o etnocentrismo freyreano, sua interpretação da sociedade nordestina foi, como já

dito, primorosa. Seu único problema foi a generalização, tão presente no ensaísmo,

tendência em voga no início do século XX.

Esqueceram autores do quilate de Gilberto FREYRE e Oliveira VIANNA que,

as “deturpações morais”, tão características da sociedade colonial luso-americana,

foram herança da sociedade portuguesa. O ilegítimo, o padre e a mulher “devassos” já

estavam presentes em plagas do velho Portugal continental, como verificado por

Antônio Amaro das NEVES33:

O número de pais clérigos oferece também lugar a algumas reflexões. Em primeiro lugar, está longe de confirmar a convicção popular bastante arreigada nesta região, que tende a associar os bastardos a filhos de padre, partindo da ideia de que a maioria dos ilegítimos que vinham ao mundo nestas terras nos tempos antigos seriam fruto da falta de continência dos membros da Igreja. Se esta presunção está longe de corresponder à realidade, os nossos indicadores revelam com nitidez que uma boa parte dos clérigos não renunciava a uma vida sexual activa, apesar disso implicar a quebra do voto de castidade, sendo aparentemente protegidos pela desvalorização da importância das violações a essa obrigação religiosa. 34

A própria “lenda” citada pelo autor, de que se “tende a associar os bastardos a

filhos de padre” derruba por terra a hipótese defendida pelos ilustres ensaístas

brasileiros. O europeu não se corrompe em terras americanas, na verdade, este é que

corrompe o americano. A própria idéia de se fazer alianças entre tribos possuía sua

análoga européia nas uniões familiares dirigidas por patriarcas europeus. Na verdade,

32 FREYRE, G. Casa-Grande & Senzala..., p. 164-165. 33 NEVES, Antônio Amaro das. Filhos das Ervas. A ilegitimidade no norte de Guimarães, séculos XVI-XVIII. Guimarães : NEPS/Universidade do Minho, 2001. 34 Ibid., p. 197.

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foi a ojeriza do europeu à união com um elemento que mal dissociavam do animal a

principal criadora da ilegitimidade.

É da própria região estudada por NEVES, o Minho que se origina a grande

maioria dos emigrados portugueses. Terra citada por Oliveira VIANNA, dominada pela

herança germânica e seus representantes “dólico-louros”, que resistiram à pressão

islâmica e que, com o avanço ultramarino, ocuparia enormes regiões do Novo Mundo,

onde implantaria a civilização européia. Essa mesma região exportadora de gente para

terras americanas. O fato é que, ao contrário do que afirmaria Oliveira VIANNA, o

planalto paulista não recebe

[...] representantes das grandes casas peninsulares, nem da burguesia dinheirosa. Certo que alguns se aparentam com a pequena nobreza do reino. Mas, se emigram para província tão áspera e distante, é exatamente porque a sorte lhes foi madrasta na terra natal. Outros, a imensa maioria, são homens do campo, mercadores de recursos limitados, artífices aventureiros de toda a casta, seduzidos pelas promessas dos donatários ou pelas possibilidades com que lhes acena o continente novo. 35

Gente acostumada aos infortúnios da vida na Europa. Desacostumados aos

entraves legais impostos pela instituição matrimonial sacramentalizada. Afetados, ainda

mais, pelo regime de organização agrária que imperava na região minhota, que dividia

as propriedades em pequenas porções e impedia o estabelecimento das novas gerações

que, em contrapartida, exportava o elemento masculino para as demais possessões do

Império Português.

Quantos casamentos realizados sob os cânones cristãos devem ter sido

realizados entre europeus e indígenas durante os primeiros anos de colonização?

Arrisco-me a afirmar que estes deveriam ser realmente bastante raros. O progressivo

avanço do europeu em terras americanas, promovendo a criação de vilas e instalando

definitivamente seus ideais sócio-culturais, não garantiu o crescimento expressivo no

número de enlaces legalmente celebrados, entre essas etnias. Representativo foi “[...] o

fato de o concubinato ser geralmente ignorado tanto pelas autoridades civis, quanto

eclesiásticas, ao ponto de, no ano de 1769, o concubinato simples entre parceiros não-

casados deixar de ser considerado crime”. 36

35 MACHADO, José de Alcântara. Op. Cit., p. 25-26. 36 SCOTT, Ana Sílvia Volpi. Desvios morais nas duas margens do Atlântico: o concubinato no Minho e em Minas Gerais nos anos setecentos. Separata Revista População e Sociedade. Porto/Portugal : CEPESE, 2001, pp. 129-158, p. 130-131.

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Entretanto, a carestia populacional37, sempre verificada pelas autoridades

coloniais, acaba por transformar o ilegítimo, o mestiço, como elemento decisivo para a

estruturação social dos domínios portugueses na América. A saga de João Ramalho,

talvez o principal responsável pela fundação da vila de São Paulo de Piratininga, pode

servir de exemplo.

Quando Martim Affonso de Sousa em 1532 pela primeira vez desembarcou na praia de Bertioga, já encontrou em terra vivendo entre os índios dois portugueses, que lhe serviram de intérpretes, e foram João Ramalho e Antonio Rodrigues: o 1.º estava ligado maritalmente com - Mbicy - filha do chefe índio Tevereçá ou Tebiriçá que tinha sua sede em Inhapuanbuçú nas vizinhanças de S. Paulo [...]. De um antigo manuscrito descoberto pelo doutor Ricardo Gumbleton, que o fez publicar na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, do Rio de Janeiro (V. 51, pág. 93) tiramos os nomes desses portugueses, que, casando com as ditas índias, procriaram essa raça audaz e belicosa de sertanistas e bandeirantes, que, explorando os longínquos sertões, foram plantar os marcos que atestam a vastidão de nossa pátria. 38

Ou seja, João Ramalho e seus filhos ilegítimos auxiliaram em muito a

penetração dos valores europeus, e consequentemente, sua cultura, na América

portuguesa.

O proprio governo metropolitano parece querer expurgar destes cruzados qualquer tisna depreciativa. O alvará de 4 de abril de 1705 declara que o casamento com indios não traz a menor infamia; dá até preferencia pelos cargos publicos: ‘seram preferidos para aquelles lugares e occupações que couberem na graduaçam das suas pessoas’. 39

Entretanto, a situação do elemento ilegítimo na sociedade colonial era bastante

complicada. Mesmo sendo necessários, tais indivíduos tendiam a ser preteridos quando

seus interesses viessem a bater com o de elementos gerados dentro de uma “legalidade

cristã”, ou mesmo quando questões de raça estavam envolvidas. Toda essa questão ia de

encontro à afronta que tais atitudes faziam ao Sacramento do Matrimônio. As próprias

Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia, legislação eclesiástica em vigor na

América portuguesa a partir de 1707, consideravam o concubinato (principal gerador da

ilegitimidade) como sendo um ato torpe, um “arremedo” da sagrada instituição

37 Tal carestia apenas se verificava na sociedade “civilizada”, enquadrada nos moldes europeus, já que, até o início do século XVIII o elemento indígena deveria ser bastante comum em terras luso-americanas. A constante presença de administrados (índios “domesticados”) entre a população curitibana setecentista, verificada nas Listas Nominativas de Habitantes, corrobora tal afirmação. 38 LEME, Luiz Gonzaga da Silva. Genealogia Paulistana. Vol. I, p. 1. Disponível em http://www.geocities.com/lscamargo/gp/introducao.htm, acessado em 6 de novembro de 2005. 39 VIANNA, Oliveira. Populações Meridionais..., p. 148.

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matrimonial. 40 Segue a Igreja portuguesa, dessa forma, a ordenação estabelecida no

Concílio de Trento.

Grave pecado é aquele que os solteiros tenham concubinas, porém é muito mais grave aquele cometido em notável desprezo deste grande sacramento do Matrimônio, pelos casados vivam também neste estado de condenação, e se atrevam a manter e conservar as concubinas, muitas vezes em sua própria casa, e juntamente com sua própria mulher. Este Santo Concílio para concorrer com remédios oportunos a tão grave mal, estabelece que se fulmine com excomunhão contra semelhantes pecadores, tanto casados como solteiros, de qualquer estado, dignidade ou condição que sejam, sempre depois de advertidos pelo Ordinário por três vezes sobre esta culpa e não se desfizerem das concubinas, e não se apartarem de sua comunicação, sem que possam ser absolvidos da excomunhão até que efetivamente obedeçam à correção que lhes tenha sido dada. 41

Afinal, data do Alvará de 12 de setembro de 1564 a “[...] observancia do

Sagrado Concilio Tridentino em todos os Dominios da Monarchia Portuguesa [...]”. 42

Nesse caso, pode-se afirmar que, foi a Igreja grande inimiga e estigmatizadora do

elemento ilegítimo. Característica que, nem sempre foi presente no discurso da Coroa,

essa, bastante preocupada na ampla posse e dominação dos territórios ultramarinos.

40 CONSTITUIÇÕES PRIMEIRAS DO ARCEBISPADO DA BAHIA [1707]. São Paulo : Typographia 2 de Dezembro, 1853, Livro V, Tít. XXII. 41 O SACROSSANTO E ECUMENICO CONCILIO DE TRENTO em Latim e Portuguez. Lisboa : Officina de Francisco Luiz Ameno, 1781. 2 Vol. Disponível em: <http://purl.pt/360>, acessado em 20 de julho de 2004, Sessão XXIV. Decreto de Reforma do Matrimonio, Cap. VIII. 42 Alvará de 4 de abril de 1564. In.: Codigo Philippino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal, recopiladas por mandado d’El Rei D. Philippe I. 14.a edição. Rio de Janeiro : Typographia do Instituto Philomathico, 1870. Disponível em: <http://www.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ORDENACOES.HTM>, acessado em julho de 2004, aditamentos ao Livro II.

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2. A LEGISLAÇÃO PORTUGUESA E O ILEGÍTIMO.

2.1. A IGREJA, SUA LEGISLAÇÃO E A ILEGITIMIDADE.

A história do cotidiano, não existe sem mencionar as práticas da religiosidade

coletiva das pessoas durante o tempo. Em nosso caso, durante o Brasil Colônia, onde

Igreja e Estado eram instituições uníssonas e indissociáveis, percebe-se a presença

marcante da religião como um dos arautos do comportamento humano.

Se é fácil perceber que desde o começo da colonização há um afrouxamento na aplicação das regras canônicas referentes ao casamento, sempre que interesses maiores estão envolvidos, é possível também observar que a implantação da disciplina cristã foi uma forte estratégia de controle utilizada pelo Estado português na ocupação do novo território, embora esse controle tenha sido muitas vezes usado pela Igreja em proveito próprio e contra os interesses do Estado colonizador. 43

A religiosidade no Brasil colonial pode ser considerada tanto individual como

coletiva. Dessa forma permitimo-nos verificar tanto quanto as pessoas compreendiam os

dogmas, preceitos e mandamentos da Igreja, participavam da vida religiosa comunitária,

de missas e procissões, de irmandades, festas e outras datas do calendário litúrgico. A

religião funciona também como demarcadora da evolução de suas vidas a partir de ritos

sociabilizantes: nascimento, batismo, confirmação, casamento e morte são registros

sociais da vida de cada indivíduo onde o caráter sócio-religioso está presente, impondo

suas representações e regras.

Não se deve esquecer, entretanto, que boa parte da população da América

colonial, e não apenas brasileira, fugia, parcial ou totalmente, dos padrões sociais

impostos pela Igreja. Hereges, usurários, alcoviteiras, bígamos, sodomitas, prostitutas,

teúdas e manteúdas, bastardos, cada infrator em sua categoria, eram os responsáveis

pela deflagração de verdadeira guerra imposta a eles pela Igreja. Feridos e, ainda

aturdidos, com as “espetadas” dos protestantes, os eclesiásticos providenciariam uma

saraivada de ataques contra qualquer espécie desviante dentro da sociedade.

Essa guerra oficializou-se com o Concílio de Trento (1545-1563) e, no Brasil,

materializou-se na codificação denominada Constituições Primeiras do Arcebispado da

Bahia, compilado após o sínodo ocorrido a 12 de junho de 1707 e editadas em 1719,

sob a responsabilidade de Dom Sebastião Monteiro da Vide, “nome immemorial nos

43 CORRÊA, Mariza. Repensando a Família Patriarcal Brasileira. In.: ARANTES, Antonio Augusto et al. Colcha de Retalhos: estudos sobre a família no Brasil. Campinas : UNICAMP, 1994, pp.15-42, p. 30.

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fastos da Igreja Brasileira”44, quinto Arcebispo Metropolita do Brasil. Até o ano de

1822, essa legislação permaneceria inalterada e serviu para “(...) o bom governo do

Arcebispado, direcção dos costumes, extirpação dos vícios, e abusos, moderação dos

crimes, e recta administração da Justiça (...)”. 45

O Concílio Tridentino foi de uma complexidade tamanha devido, justamente, a

força que o principal inimigo da Igreja na época: a Reforma proposta e posta em ação

por Matinho Lutero após a preparação de suas 95 Teses, que punham em dúvida o valor

religioso da venda de indulgências pelo Vaticano. Apoiados pelos inimigos dos

Habsburgos, diversos príncipes alemães acabam por tomar partido das novas idéias

religiosas, atitude que, devido à importância destes, acaba por preocupar sobremaneira a

Igreja. Fatores financeiros também estavam envolvidos, pois os príncipes protestantes

acabavam por confiscar os bens da Igreja para fortalecer suas posições políticas. Assim,

tanto a revolta frente à posição autoritária, e até então inconteste, da Igreja no mundo,

como queestões financeiras favoreceram a dispersão dos ideais protestantes na Europa,

pregados por líderes como João Calvino, Ulrich Zwinglio e Lutero.

O Concílio de Trento foi convocado pelo Papa Paulo III, após pressão do

Imperador Carlos V, afinal, as circunstâncias o favoreciam, já

[...] que em tempos tão revoltosos e que em circunstâncias tão mesquinhas de quase todos os negócios, foi eleita nossa solicitude e vigilância Pastoral; desejávamos por certo aplicar soluções aos males que há tanto tempo tem afligido, e quase oprimido a república cristã [...]. Então, como entendêssemos que se necessitava de paz, para libertar e conservar a república de tantos perigos que a ameaçavam, achamos ao contrário que tudo estava cheio de ódios e contradições e em especial, opostos entre si aqueles príncipes aos quais Deus havia confiado todo o gerenciamento das coisas. Assim sendo, tomando-se por necessário que fosse apenas um o redil, e um só o pastor do rebanho do Senhor, para manter a unidade da religião cristã, e para confirmar entre os homens a esperança dos bens celestiais; se achava quase quebrada e despedaçada a unidade do nome cristão com cismas, contradições e heresias. 46

A observância dos ditames tridentinos é imposta, aos portugueses, durante o

reinado de D. Sebastião, através, como já ressaltado, do Alvará de 12 de setembro de

1564. Segundo tal documento

Eu El-Rey faço saber aos que este meu Alvará virem, que, considerando a obrigação, que todos os Fieis Catholicos devem ter em guardar a observancia das cousas, ordenadas pelos Santos

44 FERREIRA, Ildefonso Xavier. Prologo. CONSTITUIÇÕES PRIMEIRAS DO ARCEBISPADO DA BAHIA [1707]. São Paulo : Typographia 2 de Dezembro, 1853, XV. 45 CONSTITUIÇÕES PRIMEIRAS DO ARCEBISPADO DA BAHIA [1707]. São Paulo : Typographia 2 de Dezembro, 1853, Apresentação. 46 O SACROSSANTO E ECUMENICO CONCILIO DE TRENTO, Bula Convocatória.

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Concilios Ecumênicos Geraes, legitimamente approvados por autoridade e ordenança da Santa Sé Apostolica e do Summos Pontífices, que presidem nella, por serem dirigidos e governados pela direcção e assistência do Espirito Santo [...]. E vendo a mercê, que Nosso Senhor houve por bem de fazer a toda a Christandade em nossos tempos no ajuntamento, progresso e conclusão do Sagrado Concilio Tridentino, Geral, Ecumenico [...]. 47

Além dos Concílios, a Igreja apresentava legislação complementar, que

ordenava a conduta ordinária da instituição. Em terras luso-americanas, tal

complemento apenas foi surgir em início do século XVIII.

As Constituições Primeiras constavam de um compêndio de procedimentos

ideais para cada situação, normal ou desviante, que ocorresse dentro das comunidades

supervisionadas pela Igreja. Além destes procedimentos, penas eram estipuladas para

quem ferisse o correto modo de viver, também conhecido como “bem viver”. Esse

policiamento executado pelas figuras eclesiásticas deveria ser exemplarmente

registrado.

Além das pastorais, que eram provimentos estabelecidos pela Igreja para a

comunidade em geral, os Sacramentos do Batismo, Confirmação e Casamento, além dos

óbitos, deveriam ser registrados, na medida do possível, em livros apropriados. Cada

sacramento deveria possuir seu respectivo livro de registros. A própria morte do

indivíduo era registrada e, na ata respectiva constava as particularidades do falecimento

e a realização ou não dos Sacramentos que estavam relacionados a tal ocorrência: a

Penitência (confissão) e a Unção (no caso, a Extrema-Unção).

Para um perfeito registro destes sacramentos, os padres deveriam seguir uma

fórmula pré-estabelecida nas Constituições Primeiras. E, como já dito, a cada um dos

ditos sacramentos, dever-se-ia recorrer ao respectivo livro, como no caso do batismo:

[...] o qual será numerado e asignado no alto de cada folha por nosso Provisor, Vigário Geral, ou Visitadores, e na primeira folha se declarará a igreja d’onde é, e para o que há de servir; e na ultima se fará termo por quem o numerar, em que se declare as folhas que tem, e estará sempre fechado na arca, ou caixões da Igreja debaixo de chave, e os assentos dos baptisados se escreverão na forma seguinte:

Aos tantos de tal mez, e de tal anno baptizei, ou baptizou de minha licença o Padre N. neste, ou em tal Igreja, A N. filho de N. e de sua mulher N. e lhe puz os Santos Oleos: foram padrinhos N. e N. casados, viuvos, ou solteiros, freguezes de tal Igreja, e moradores em tal parte. E ao pé de cada assento se assignará o Parocho, ou Sacerdote, que fizer o Baptismo, de

seu signal costumado: eeste fará logo depois de sahir da Igreja sob pena de mil réis por cada falta, escrevendo tudo ao comprido, e não por breves, nem por conta [...]. 48

47 Alvará de 4 de abril de 1564. In.: Codigo Philippino..., Aditamentos ao Livro II. 48 Ibid., Livro I, Título XX, § 70.

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Neste caso, a fórmula era utilizada nos registros de nascimentos legítimos, frutos

do matrimônio sacramentado.

Do outro lado, os transgressores da moral cristã: de acordo com essa legislação,

sabe-se que a codificação levava à proibição em nomear os pais de crianças ilegítimas

sempre que houvesse risco de “escândalo”. 49 Mesmo um tanto a contragosto, o batizado

de crianças ilegitimamente nascidas deveria ser realizado, do contrário, se perderiam

essas almas. Fato que, em hipótese alguma, agradaria à Igreja, principalmente na

situação de conflito entre esta e os, cada vez mais numerosos, protestantes.

E quando o baptizado não for havido de legitimo matrimonio, tambem se declarará no mesmo assento do livro o nome de seus pais, se for cousa notoria, e sabida, e não houver escandalo; porém havendo escandalo em se declarar o nome do pai, só se declarará o nome da mãi, se também não houver escandalo, nem perigo de o haver. E havendo algum engeitado, que se haja de baptizar, a que se não saiba pai, ou mãi, tambem se fará no assento a dita declaração, e do lugar, e dia, e por quem foi achado. 50

Estas regras eram seguidas com uma regularidade um tanto ineficaz. Havia

diferenças entre alguns termos e, sempre que havia uma mudança no vigário titular da

Matriz, o padrão do registro da Ata de Batismo mudava - às vezes, drasticamente. É

possível que o grau de erudição de cada vigário ou responsável, determinasse o

procedimento padrão para a escrita da Ata. O fato é que termos novos apareciam

enquanto outros eram abandonados para, anos após ressurgirem em alguns registros.

“Esquecimentos” eram comuns em certas atas, nomes dos padrinhos, data de

nascimento, eram omitidos. Às vezes, o contrário ocorria: era o nome do pai que surgia

em alguma ata de ilegítimo. Lapsos que, despropositadamente ou não, aparecem em

registros de batismos e que podem nos ajudam a traduzir o perfil social curitibano e

brasileiro durante o século XVIII.

49 A noção de escândalo é característica das culturas judaica e helênica. Segundo seu conceito, a única forma de se corrigir um “delito” público seria com uma reparação pública, de forma a dar um exemplo à comunidade. Devido às condições específicas da sociedade colonial, alguns problemas poderiam ocorrer caso nomes de certos indivíduos se tornassem explícitos nos registros paroquiais, relacionados a uma condição que geraria escândalo. Logo, para que houvesse uma certa proteção dessas figuras coloniais, a Igreja luso-americana, através das Constituição do Arcebispado da Bahia estabeleceu a regra de se omitir seus nomes dos respectivos registros. (TORRES-LONDOÑO, 1999, passim.) 50 CONSTITUIÇÕES PRIMEIRAS DO ARCEBISPADO DA BAHIA, Livro I, Título XX, § 73.

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2.1.1. A Igreja, a família, a sexualidade e a ilegitimidade.

Jean-Louis FLANDRIN e Jacques DONZELOT 51 já bem analisaram a

estruturação familiar européia, mais propriamente francesa. Aqui, do outro lado do

Atlântico, figuras como FREYRE 52, Eni SAMARA, Luciano FIGUEIREDO 53, dentre

outros, colocaram em foco uma realidade um tanto diferente da realidade da família

européia.

“(...) pesquisadores têm produzido e explorado séries de ‘ilegitimidade’ em

vários locais, para diversas épocas, realizando comparações nem sempre apropriadas e

ou pertinentes”. 54 Muitas vezes, interpretações apressadas acabam por definir a

sociedade colonial como sendo permissiva, de moral maleável, pois acabam por julgar

uma determinada época pelos padrões comportamentais de outra.

Contrariando o conceito freyreano de família patriarcal extensa, cuja estrutura

favoreceria a licenciosidade masculina, nota-se que na Curitiba colonial, essa regra era

exceção, pois preponderavam famílias pequenas – mais corretamente seria usar o termo

domicílio -, com muito poucos ou mesmo nenhum escravo e, muitas vezes, chefiadas

por mulheres. 55 Características que, aliadas ao equilíbrio entre os sexos na composição

da sociedade curitibana, delegariam a esta um perfil marcado pela legitimidade das

uniões matrimoniais e dos filhos daí gerados.

O que vemos, entretanto, quando estudamos mais de perto a sociedade colonial

curitibana, é justamente o contrário. Um perfil ímpar se desenha na documentação de

época, particularidades se sobressaem e uma figura diferente, o “curitibano”, o

51 FLANDRIN, Jean-Louis. Famílias. Parentesco, casa e sexualidade na sociedade antiga. Lisboa : Editorial Estampa, 1992; DONZELOT, Op. Cit. 52 Boa parte da obra de Gilberto Freyre busca estabelecer e dar uma identidade a uma “família brasileira” e a um tipo padrão de brasileiro. 53

SAMARA, Eni de Mesquita. A Família Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983; FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Barrocas Famílias. Vida familiar em Minas Gerais no século XVIII. São Paulo : HUCITEC, 1997. Além de vários outros, como: ALMEIDA, Angela Mendes de et al. Pensando a família no Brasil; da colônia à modernidade. Rio de Janeiro : Espaço e Tempo/UFRJ, 1987; _____. O gosto do pecado: casamento, sexualidade nos manuais de confessores dos séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro : Rocco, 1992; CORRÊA, Op. Cit.; TORRES-LONDOÑO, Op. Cit. e VENÂNCIO, Renato Pinto. Nos limites da sagrada família. Ilegitimidade e casamento no Brasil Colonial. In. VAINFAS, Ronaldo (org.). História e sexualidade no Brasil. Rio de Janeiro : Graal, 1986, pp. 107-123. 54 GALVÃO, Rafael Ribas & NADALIN, Sergio Odilon. Bastardia e ilegitimidade: murmúrios dos testemunhos paroquiais durante os séculos XVIII e XIX. (Nota prévia). Trabalho apresentado no XII ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, Caxambu, outubro de 2000. (Versão dos autores), p. 2. 55 TORRES-LONDOÑO, Fernando. A Outra Família: concubinato, igreja a escândalo na colônia. São Paulo : Edições Loyola, 1999.; BRÜGGER, Sílvia Maria Jardim. Legitimidade e Comportamentos Conjugais (São João Del Rei, séculos XVIII e primeira metade do XIX). XII ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, Caxambu, outubro de 2000; SAMARA, Op. Cit.

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“brasileiro” – não apenas o nascido aqui, mas também o imigrante, voluntário ou

compulsório – acaba por surgir. Personagem que se amolda ao território, ao seu clima,

sua geografia, sua disponibilidade de bens alimentares. Enfim, indivíduo sem analogia

alguma capaz de ser de ser feita, individual em suas peculiaridades.

Hierarquizada como a sociedade do Antigo Regime, a sociedade brasileira

possuía, como na Europa, a família como base.

No Antigo Regime a família era, ao mesmo tempo, sujeito e objeto de governo. Sujeito pela distribuiçào interna de seus poderes: a mulher, os filhos e os aderentes (parentela, serviçais, aprendizes) devem obrigação ao chefe de família. Objeto, no sentido em que também o chefe de família se situa em relações de dependência. Por seu intermédio a família se enontra inscrita em grupos de pertinência que podem ser redes de solidariedade, como as corporações e comunidades aldeãs, ou blocos de dependência do tipo feudal ou religioso, freqüentemente os dois ao mesmo tempo. A família constitui, portanto, um plexus de relações de dependência indissociavelmente privadas e públicas, um elo de liames sociais, que organiza os indivíduos em torno da posse de uma situação (ao mesmo tempo profissão, privilégio e status) outorgada e reconhecida por setores sociais mais amplos. É, portanto, a menor organização política possível. Incrustada diretamente nas relações de dependência ela é atingida globalmente pelo sistema das obrigações, das honras, dos favores e desfavores que agitam as relações sociais. 56

Família apresentada de duas maneiras diferentes. A primeira, oficializada,

sacramentada, representada pelo chefe de família. A “outra”, como já explanado,

marginal, presente, mas anatematizada, caracterizada pela ilegitimidade, tanto no que

concerne à relação conjugal, como os frutos gerados desta. 57 Com efeito, durante o

século XVIII, muitas das que chamaríamos hoje de famílias, fugiam da ordem legal

estabelecida, pois a união não era legitimada por um sacerdote.

Mas mesmo não se apresentando em índices tão elevados como em Minas

Gerais58 a ilegitimidade está presente no Planalto Curitibano.

Durante o século XVIII, muitas das que chamaríamos hoje de famílias, fugiam

da ordem legal estabelecida, pois a união não era legitimada por um sacerdote.

Pois é esta a “família” 59 típica do Planalto Curitibano durante os séculos XVII e

XVIII: uma estrutura simples e, graças a esta característica, extremamente mutável.

Mutável como a população do Planalto em geral, errante, sempre em trânsito. Nota-se, 56 DONZELOT, Jacques. A Polícia das Famílias. Rio de Janeiro : Graal, 1986, p. 49. 57 TORRES-LONDOÑO. Op. Cit. , passim. 58 FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. O avesso da memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século XVIII. Rio de Janeiro : José Olympio; Brasília : EDUNB, 1993; _____. Barrocas Famílias...; LUNA, Francisco Vidal; COSTA, Iraci Del Nero da. Minas Gerais: Economia e Sociedade. São Paulo : FIPE / PIONEIRA, 1982. 59 Deve-se perceber que, no que diz respeito à Curitiba setecentista, principalmente durante o início do referido século, não existia uma família curitibana típica. Havia pouco tempo que o povoado recebera o status de Vila (1693). Dessa maneira, um modelo pré-existente de família – provavelmente o modelo paulista – foi importado, imperceptivelmente, à medida que as levas de migrantes chegavam à localidade.

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no entanto, que essa simplicidade estrutural familiar era contrabalançada por uma

extrema complexidade social da comunidade, onde certos ditames legais do Antigo

Regime, ou eram ignorados, ou simplesmente não eram seguidos. Como se referiu

TORRES-LONDOÑO, a simplicidade dessa família era adequada a regiões que eram

(...) atravessadas por caminhos, espaço caracterizado por uma população livre, sem vínculos muito permanentes, racial e socialmente complexas. Nessa população havia brancos de diferentes condições sociais e patrimônio, mestiços descendentes de índios e mulatos e negros forros. Alguns eram donos de bens e de escravos, enriquecidos nas tropas ou nas minas, artífices, comerciantes. Outros eram pobres e miseráveis e deambulavam à procura de uma situação melhor, vivendo de biscates, entre eles o contrabando do ouro e o banditismo. Vivendo em espaços onde pobres, forros e índios, à procura de sua sobrevivência, tinham facilidade em aceitar formas mais simples de relacionamento do que um casamento, cheio de entraves, exigências e custos (...). 60

Marca dessa, ao mesmo tempo simples e complexa sociedade, a ilegitimidade

percorria suas diversas camadas. Desde o escravo, até o viril senhor branco, sempre

interessado na sensualidade da mulher negra, deixaram marcas peculiares na sociedade

colonial derivadas, única e exclusivamente, de intercursos sexuais “ilícitos”. Intercursos

que, comum a toda bibliografia afim, fazem parte de relacionamentos divididos em

casuais ou fortuitos, e os relacionamentos estáveis. 61 Raros eram os casamentos

sacramentados, por isso, o enorme interesse da Igreja em combater qualquer

ajuntamento ilícito. Da mesma forma, é necessário grifar que tal prática podia variar no

tempo e no espaço, em função das diferentes regiões da América portuguesa.

Por falta de condições financeiras, legais – pois muitas vezes a Igreja impunha

impedimentos ao casamento – e mesmo por comodidade, muitos casais não

sacramentavam suas uniões. Vivendo ilicitamente, consensualmente reunido, o casal

podia viver normalmente na maioria das localidades brasileiras. Mas, é claro que, sendo

uma união ilícita, estava exposta, tanto à lei eclesiástica, como ao repúdio da

comunidade. Por isso, a Igreja vigiava, sempre que possível, a vida dos fiéis em cada

paróquia, supervisionando seus costumes e informando aos temidos visitadores

eclesiásticos qualquer falta ao modo cristão de se viver, e ser exemplarmente punida,

inclusive, delitos contra o sagrado matrimônio.

Entretanto, a união consensual não era a única falta ao sacramento do

matrimônio, o adultério também estava muito presente na sociedade colonial. Estes

60 TORRES-LONDOÑO. Op. Cit., p.58-62. 61 Vide, dentre outros, ALMEIDA, Angela Mendes de. O gosto do pecado...; TORRES-LONDOÑO, Fernando. Op. Cit.; BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Op. Cit.; VENÂNCIO, Renato Pinto. Op. Cit.

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somados eram os principais produtores de uma figura bastante peculiar, mesmo que

comum, e estigmatizada pelas sociedades que o “acolhiam”: a criança ilegítima.

Mesmo não fugindo dos conceitos sociais que a estratificam em classes, a

sociedade apresentava bastardos que, muitas vezes, continuam o nome da família,

inclusive quando descendente de clérigo62 não raro conseguindo, ao menos abrandar o

anátema da ilegitimidade. Eliane Cristina LOPES 63

aponta que, muitos fatores

contribuíram para o crescimento - e melhor aceitação - das relações ilegítimas e das

crianças ilegítimas. Entre eles, destaca-se a carência de população em relação às

aspirações da Coroa em povoar o território, seja no intuito de defesa ou na exploração

de recursos naturais de suas posses. Aliado a isso se encontra a questão da

miscigenação, pois houve, durante boa parte do período colonial, uma representativa

falta de mulheres brancas, em contraste com uma abundância de índias e negras. Outro

fator importante para esta discussão é a migração masculina na Colônia, isto é, o fato de

muitos homens deixarem seus domicílios - e muitas vezes suas esposas - para se

aventurarem no sertão, seja à caça de índios ou à procura de ouro. Salienta-se também,

como fator fundamental, a suavidade das penas e punições dirigidas pela Igreja - e pela

Coroa - às pessoas que mantivessem relações ilegítimas, consideradas como “crimes”,

porém nem sempre vistas assim pela população.

2.2. O CASAMENTO, O FILHO ILEGÍTIMO E A LEGISLAÇÃO CIVIL.

Um dos aspectos positivos da administração espanhola foi a abundante legislação promulgada para o governo de Portugal Não têm conta os regimentos, provisões e alvarás que saíram da chancelaria dos Filipes para regular os vários domínios da vida nacional. E ainda que muitas disposições mergulhem no espírito das Ordenações Manuelinas e não contenham doutrina nova para o direito português, impõe-se reconhecer que foram quase sempre inspiradas pela ânsia de bom governo que define a actuação de Filipe II e do sucessor. 64

62 Não esqueçamos que, naquela época, as “fraquezas da carne” na eram tão mal interpretadas como contemporaneamente. Não era raro que filhos de padres alcançassem posições de destaque na comunidade luso-tropical. Gilberto FREYRE aborda o caso dos “filhos de padre”, e dos ilegítimos em geral, de maneira interessante: “Não é sem razão que a imaginação popular costuma atribuir aos filhos de padre sorte excepcional na vida. Aos filhos de padre, em particular, e aos ilegítimos, em geral. ‘Feliz que nem filho de padre’, é comum ouvir-se no Brasil. ‘Não há nenhum que não seja...’, diz a gente do povo. Querendo dizer: ‘Não há nenhum filho ilegítimo (...) que não seja infeliz’.” (2002, p. 449). 63 LOPES, Eliane Cristina. O revelar do pecado : os filhos ilegítimos na São Paulo do século XVIII. São Paulo : Annablume/FAPESP, 1998. 64 SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal. Vol. IV. Governo dos Reis Espanhóis (1580-1640). Lisboa : Editorial Verbo, 1979, p. 256.

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Mesmo com os diversos erros encontrados no corpo da legislação filipina, seu

valor foi reconhecido a ponto de D. João IV, ao subir ao trono, manter em vigor tal

código durante bom tempo. 65

Como dito anteriormente, as legislações civil e eclesiástica, mesmo concordando

em diversas questões, tendiam a certas divergências de idéias. A questão do ilegítimo é

uma delas. No Código Filipino, a questão da colonização e posse definitiva de enormes

territórios fazia com que o crescimento vegetativo fosse elevado entre os vassalos de El-

Rei. Nesse caso, os inúmeros filhos gerados fora da união sacramentada, e já

enquadrados nos moldes europeus de civilização, seriam de uma importância decisiva

durante todo o período colonial. Ao contrário do Estado, a Igreja repudiava qualquer

intercurso sexual fora da instituição matrimonial.

O status legal do filho natural, aquele gerado da união entre dois indivíduos sem

impedimentos para um possível matrimônio posterior, era equiparado, pelo Código, ao

dos filhos legítimos. Tal fato provém de uma antiga tradição, em vigor na Europa cristã

desde tempos imemoráveis, abolida com o Concílio de Trento66: o casamento

presumido. 67 Esse “casamento” consistia na simples coabitação de um casal, que

deveria “pública e notoriamente” viver como marido e mulher. Mesmo o Código não

coibia tal prática, determinando, mesmo assim, que os integrantes do casal assim

consistido, “[...] serão meeiros, provando que estiveram em casa teúda e manteúda [...],

baste que para presumir Matrimonio entre elles, posto se se não provem as palavras de

presente”. 68

Destarte que, mesmo com o advento do Concílio tridentino e a consequente

proibição do casamento presumido, a legislação civil continuou a verificar sua

ocorrência, daí sua liberalidade frente ao evento. Entretanto, a Igreja estabelecia que,

àqueles que não agissem de acordo com os ditames tridentinos deveriam ser castigados

severamente.

Os que tentarem contrair Matrimônio de outro modo que este, da presença do pároco ou de outro sacerdote com licença do pároco, ou do Ordinário, e das três testemunhas, ficam absolutamente inábeis por disposição deste Santo Concílio para contrai-lo e, além disso, decreta que sejam

65 Ibid. p. 257-258. 66 Afirmava o Concílio, na Sessão XXIV, Decreto de Reforma do Matrimônio, Capítulo I: “Quem contrair Matrimônio de outro modo que não seja com a presença do pároco e duas ou três testemunhas, o contrai invalidamente”. 67 Costumes, [segundo Viterbo], “[...] adquiridos no domínio dos Muçulmanos”. (Apud., CODIGO PHILIPPINO..., Livro IV, Título XLVI, § 2, Nota 2, Coluna 1ª. 68 CODIGO PHILIPPINO..., Livro IV, Título XLVI, § 2.

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indignos e nulos semelhantes contratos, e com efeito os torna indignos e os anula pelo presente decreto. Manda também que sejam castigados com graves penas à decisão do Ordinário, do pároco ou qualquer outro sacerdote que assista semelhante contrato com menor número de testemunhos, assim como os testemunhos que concorram sem o pároco ou sacerdote, e do mesmo modo os próprios contraentes. 69

Mesmo encontrado na sociedade portuguesa, a própria legislação filipina via, no

casamento presumido, “[...] uma disposição morta [...] que nem podia vigorar depois da

reforma do Concilio Tridentino [...]”. 70 Dessa forma, acabava tal legislação, por

enquadrar tal regime de casamento, no rol dos concubinatos.

Verificado mas não combatido, o casamento presumido, chamado, a partir do

Código Filipino, de “verdadeiro comombinato” 71, continuou a desempenhar papel

importante em toda a sociedade portuguesa, desde a Europa, até os mais recônditos

rincões luso-americanos. E, como ocorria com os frutos dessa forma de casamento pré-

tridentina, os filhos naturais, fruto do concubinato simples, continuaram a ser

equiparados juridicamente aos filhos legítimos.

69 O SACROSSANTO E ECUMENICO CONCILIO DE TRENTO..., Sessão XXIV, Decreto de Reforma do Matrimônio, Capítulo I. 70 CODIGO PHILIPPINO..., Livro IV, Título XLVI, § 2, Nota 1, Coluna 2ª. 71 Id.

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3. O FILHO ILEGÍTIMO E A SUCESSÃO.

Tolerado pela sociedade e pelas legislações civil e eclesiástica, o filho natural

acaba por se tornar um personagem aparentemente normal do cotidiano colonial. Seu

nascimento muitas vezes era comemorado por pais que, mesmo não estando

legitimamente casados, constituíam verdadeiras famílias. Os ritos religiosos e

sociabilizantes, como o Batismo, a Confirmação e mesmo o Matrimônio legalizado,

faziam parte de suas vidas como da maior parte dos integrantes das comunidades luso-

americanas.

Se status jurídico é aproximado ao do indivíduo nascido de legítimo casamento

e, como este, poderia herdar o patrimônio de seus genitores e de parentes que, mesmo

não estando ligados oficialmente, eram realmente seus, como afirmava o Código

Filipino.

Se algum homem houver ajuntamento com alguma mulher solteira, ou tiver huma só manceba, não havendo entre elles parentesco, ou impedimento, por que não possam ambos casar, havendo de cada huma dellas filhos, os taes filhos são havidos por naturaes. E se o pai for peão [isto, é, sem distinções sociais de vulto ou nobiliárquicas], succeder-lhe-ão, e virão á sua herança igualmente com os filhos legitimos, se os o pai tiver. E não havendo filhos legitimos, herdarão os naturaes todos os bens e herança de seu pai, salvo aterça, se o pai tomar, da qual poderá dispor, como lhe aprouver. 72

O testamento e os inventários são uma boa forma de se encontrar o filho natural

interagindo com o restante da família do testador e a própria comunidade circundante.

3.1. O FILHO ESPÚRIO.

O filho adulterino provém de um casal no qual um ou os dois indivíduos são

legitimamente casados. O filho adulterino é um caso de ilegitimidade espúria, ou seja, a

criança é gerada por uma cópula proibida pelas leis civil (Ordenações Filipinas) e

eclesiástica (Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia).

Segundo o Código Filipino, os frutos dessa cópula são tratados de maneira

diferente dos filhos naturais (aqueles nascidos de ajuntamentos de pessoas que não

72 Ibid., Título XCII.

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possuíam nenhum impedimento ao matrimônio – no caso, de indivíduos solteiros). Ao

contrário dos últimos, os filhos adulterinos seriam herdeiros insucessíveis, ou seja, estes

não entrariam na partilha.

Entretanto a “[...] qualquer momento, o pai poderia declarar a sua paternidade e

reconhecer um indivíduo como filho natural, concedendo ao quaesito [o filho espúrio]

direitos sucessórios plenos idênticos aos dos filhos legítimos”. 73 Em caso do pai não

apoiar essa idéia, à criança e sua mãe cabiam a possibilidade de se mover um processo

de reconhecimento de paternidade no qual testemunhos variados e, até mesmo, a

aparência física poderiam alterar o status legal do filho espúrio. “Depois de legitimado

[sentença chamada de ‘perfilhação solene’], um indivíduo espúrio seria chamado à

sucessão como herdeiro por testamento, podendo suceder o pai de forma legítima”. 74

A perfilhação solene transformaria, assim, o filho espúrio em filho natural,

através do reconhecimento do juiz, ou, no caso do pai ser clérigo ou nobre, através de

sentença da Mesa do Desembargo do Paço, órgão diretamente ligado à Coroa.

Entretanto, este processo se iniciaria no tabelião como qualquer outra perfilhação, daí a

pesquisadora Maria Beatriz Nizza da SILVA75 encontrar a referência a uma carta datada

de 1795. Nessa escritura, o Padre José Joaquim Monteiro de Matos e Morais, morador

da vila de Castro, no território da 5ª. Comarca de São Paulo pedia à rainha D. Maria I, a

perfilhação do filho que tivera com uma mulher solteira. A resposta é reebida em 1798,

de forma positiva, transfomava Francisco Pinto de Morais Lima, o filho-do-padre, em

filho natural, logo, passível de receber a herança paterna. 76

3.2. O TESTAMENTO E A BUSCA DO “BEM MORRER”.

A sucessão testamentária, durante o século XVIII, apresentava uma importância

muito maior no âmbito social do que é atualmente. O “bem viver” e o “bem morrer”

sempre foram privilegiados pelo Cristianismo. A crença na sobrevivência do espírito ao

73 LEWIN, Linda. Repensando o Patriarcado em Declínio: de “De Pai Incógnito” a “Filho Ilegítimo” no direito sucessório brasileiro don século XIX. Ler História. N.o 29 (1995), pp. 121-133, p. 124. 73 Essa função legitimadora do Desembargo do Paço era necessária devido à grande importância em se controlar esses indivíduos tão salientes dentro da sociedade portuguesa. 75 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. História da Família no Brasil Colonial. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1998. 76 Ibid., p. 85.

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corpo e o compartilhamento dessa vida pós-morte junto a figuras como os diversos

santos e mártires, a maternal intercessora Nossa Senhora e o próprio Cristo fez com que

a busca de uma morte exemplar fosse, sempre que possível seguida à risca.

Como materialização das últimas vontades do indivíduo, o testamento foi

ferramenta privilegiada para atingir a tão esperada “boa morte”, “[...] quase todos

tentavam e muitos conseguiam fazer testamento, pois era um procedimento previsto

pelos manuais de ‘bem morrer’, muito populares na época”. 77 A criação do Purgatório78

deve ser lembrada como uma das principais responsáveis por essa busca, afinal, de uma

hora para outra, aquelas almas que tinham faltas a serem purgadas, acabariam por

desviar dos portões infernais em direção a um caminho de salvação. Mesmo sendo um

ambiente espiritual notadamente duro, o Purgatório ainda é uma saída para a grande

maioria da população católica setecentista.

Mesmo por baixo de tais mistérios, a crença no Purgatório foi a salvadora, senão

de almas, de diversos testamentos que simplesmente não teriam sido produzidos caso

apenas os motivos financeiros estivessem envolvidos. Ou seja, em nosso rol

documental, os aspectos religiosos devem ser tão explorados quanto os financeiros. E é

justamente tal aspecto que faz com que o ilegítimo apareça mencionado entre os

herdeiros. A atitude de “desencaRegar minha conSienSia”, como citado no testamento

de Antonio da Fonseca79, de 1720, é bastante comum em tais documentos. Sendo assim,

esse arrependimento que se verifica antes mesmo da morte, no caso de um possível

desampara por parte da família legítima a sua prole ilegítima, acaba por auxiliar no ato

do Julgamento de sua alma.

Atitudes benevolentes apresentam boa parte dos testadores analisados, para com

criaturas geradas em situações “ilegais”, como concubinatos, incestos, estupros,

adultérios ou simples fornicações aleatórias. Visão semelhante a dos testadores

apresenta o Estado português que, em sua legislação, no caso o Código Filipino, em

vigor durante o período encampa uma política de amparo aos filhos ilegítimos, mesmo

tendo uma posição de concordância com as atitudes intempestivas da Igreja frente a esse

casos. Todavia, a família regularmente formada continua a ser privilegiada, ou seja, em

caso de existência de familiares diretos, o ilegítimo acaba por ser preterido na sucessão.

77 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de Casamento no Brasil Colonial. São Paulo : EDUSP, 1984. p.98. 78 LE GOFF, Jacques. O Nascimento do Purgatório. Lisboa : Estampa, 1993. 79 Centro de Documentação e Pesquisa de História dos Domínios Portugueses (CEDOPE-DEHIS). 1720 – Traslado de Testamento e Codicilo de Antônio da Fonseca.

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É o que averiguamos após análise das fontes e, confirmamos resultados já

obtidos pela historiografia, também para os domínios da antiga comarca paulista de

Paranaguá. O bastardo é herdeiro legítimo e recebe a totalidade da herança apenas

quando não existem filhos e mesmo outros familiares diretos vinculados à família legal. 80 Quando a situação acontece, o filho ilegítimo acaba por receber pequenas esmolas ou,

muito raramente, a terça intocada. Situação que ocorre com Jerônimo da Veiga Cunha

que, em seu testamento, datado de 1752, agracia seus filhos naturais, José Veríssimo e

Antonio. Além da terça, Jerônimo deixa, para cada um dos filhos naturais, as

espingardas que usavam, isso “[...] pellos Seus bons ServiSos que me tem feito [...]”. 81

E ainda, forrava Jerônimo, dois homens, Carijós, dos quais tratam, o Promotor e o

testamenteiro, mais tarde, no inventário. Mesmo sendo proibida a escravização de

indígenas sem que seja através de uma “guerra justa”, o testador tratava seus

administrados dessa forma, a ponto de “forrá-los”, e pior, deixava-os na obrigação de

servir seus filhos naturais:

[...] Declaro que deixo ao Sirillo forro com obrigação do Seu [ileg.] a meu filho VeriÇimo e andar em Sua Companhia a Ventura tambem deixo forro mas Com obrigação de andar na Comp.a de meu filho Antonio ou veriçimo ou Jozeph [este, filho legítimo] qual delles elle quizer ja Sem Demenistrador [...]. 82

Atitude bastante simpática do pai para com seus filhos naturais, se levarmos em

conta que a maior parte dos pais de ilegítimos não deixava quase nada para esses

membros de sua “família bastarda”. Entretanto, atitude bastante equivocada, mesmo

sendo comum, para com seus administrados.

Outra ocorrência que pode se verificar nos testamentos é a do abandono de

crianças. A exposição, como é mais conhecida na historiografia, era bastante comum

sendo fruto de diversos fatores, tanto sociais como econômicos. A pobreza extrema em

que vivia a maior parte da população deve ser salientada, porém, o aspecto moral não

deve ser esquecido.

O abandono de um filho ilegítimo, devido o risco de escândalo, era também

comum e, muitas vezes, esse fruto do pecado era exposto na casa da própria mãe ou do

80 Tal resultado é constatado por LOPES, Op. Cit., MACHADO, Op. Cit. e FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1998. 81 Arquivo Metropolitano Dom Leopoldo e Silva, da Mitra Arquidiocesana de São Paulo. Caixas 05-01-05 – Processos Gerais Antigos – Processos de Auto de Contas – 1727-1777. 1752 – Auto de Contas de Jerônimo da Veiga Cunha. Testamento em anexo de 1745. 82 Id.

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pai. As mulheres eram as principais usuárias desse subterfúgio. Izabel Fernandes Buena,

em seu testamento, registrado em 1800, afirma ser filha legítima do Capitão Amador

Boeno da Rocha e de sua esposa Maria Leme da Costa. O fato de ser filha de um

Capitão de Ordenanças não a impossibilitou de macular sua honra através de cópulas

ilegais que gerariam, não apenas um, mas quatro filhos naturais. Diz ela:

Declaro que no Estado em me acho Soltr.a ter tres filhos, e huma filha a Saber que ocultam.te forão expostos que por nomes São Fran.co este foi exposto em Caza de Maria das Neves, e Là Se criou aonde Se acha Fellisberto, foi exposto em Caza de Escolástica Maria, e Lá Se acha, e Manoel exposto em caza de Jozé da Rocha dantas, e Onde Se criou, e Là se acha, e Antonia exposta em Caza de Bento de Freitas, que depois de paSsadostempos procurei por maiôs oCultos, e a Recebi para minha Comp.a aonde Se acha [...]. 83

Mesmo tendo irmãos legítimos, para “[...] descargo de minha Comciençia e

querer que D.s [Deus] Salve [minha] Alma e conhecer, e Saber que os Sobre dittos São

Meos filhos que por tais os declaro, e instituo, e nomeyo por meo Legítimos e

oniverçais Erdeiros de todos os meos bens’ [...]. 84 A iniciativa de trazer sua filha para

perto de si, após a exposição, não facilitaria sua salvação, já que ainda tinha outros três

filhos relegados em casas de terceiros. A legação de seus bens para todos estes filhos

acabaria por ser sua única alternativa para alcançar a “boa morte”.

Inácia Maria Botelha, moradora na Vila de Antonina, cujo testamento foi

registrado no dia 13 de outubro de 1796, se reconhece, “[...] por grande pecadora [...]”. 85 Filha legítima de Domingos Botelho Mosqueyra e de sua esposa Dona Marianna do

Rozario, chegou a ser casada com um Capitão de Ordenanças do qual se divorciou.

Casada com Capitão, filha de uma Dona, Inácia também sofreu com sua “fraqueza” e

afirmou em testamento:

Declaro que tenho em minha Companhia hum MoSso chamado Manoel de JESUS o qual por dezencargo da minha Consiencia deClaro que [ileg.] Sempre foý meu filho [cor.] Digo que Suposto [exposto] em Caza de Maria [...] foý por que aSim hera percizo a minha honra mas hoje deCLaro a verdade por que veýo dar contas a Deos e Conheço q’elle meu único e verdadeiro erdeiro e Como tal o Constituo de todos os meus bens que poSsuo por não ter mais filhos do que o dito aSsima deClarado DeClaro que de [cor.] dezacette de Meýo do prezente anno por [ileg.] de algumas peSsoas íleg.] huá escritura nos ritos [...] por ser esta Escritura paSsada em prezenca de varias peSsoas deClarey ao dito meo filho por exposto Sem dizer que era verdadeiro filho e

83 Arquivo Metropolitano Dom Leopoldo e Silva, da Mitra Arquidiocesana de São Paulo. Caixas 05-01-06 – Processos Gerais Antigos – Processos de Auto de Contas – 1789-1805. 1800 – Auto de Contas de Izabel Fernandes Buena. Testamento em anexo de 1799. 84 Id. 85 Centro de Documentação e Pesquisa de História dos Domínios Portugueses (CEDOPE-DEHIS). 1804 – Auto de Contas de Inácia Maria Botelha. Testamento em anexo de 1796.

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quero que aquella deClaração lhe não poSsa em tempo algum fazer lhe mal ao verdadeiro dominio que tem e deve ter nos meus bens [...]. 86

Após a exposição de um filho ilegítimo, Inácia o recebe em casa, mas o cria

como enjeitado. E confirma a ponto de ter que negar tal declaração (além da escritura

passada!), em seu testamento. Sua culpa é tão pesada que não se esquece de, com uma

escritura, negar outra. E ainda, afirma que este seu filho é único herdeiro por não ter

outros filhos. Basta se perguntar se sua consciência lhe permitiria expropriar seus filhos

legítimos (caso os tivesse) delegando alguns de seus bens a um filho bastardo.

Outros casos podem, ao menos, ser especulados. Jozé Luiz da Silva e o Sargento

Mor Simão Gonçalves de Andrade têm histórias parecidas quanto ao seu apego cristão a

crianças expostas em casas alheias. Ambos deixam “esmolas” a enjeitados. Jozé deixa o

serviço de um casal de escravos pelo período de 15 anos para “[...] huma menina por

nome Escolástica Maria que Se acha em caza do Capitam Ignácio Jozé [Puppo] [...]” 87.

O Sargento Mor, que declara ter duas filhas legítimas, de seu casamento com Dona

Escolastica Soares do Valle, deixa informações mais completas e, mesmo um pedido:

[...] declaro, que em poder de Joze Ribeiro [...] do Prado morador que he hoje na Iraritaguava Se acha hú Rapas emgeitado per nome Jozê de quem o dito e Sua mulher São Padrinhos, ao dito Rapas deixo de minha terça Sincoenta mil Reis, e Se o dito morer antes de Ser Capas Se lhe entregarem ficarão para as duas minhas filhas, ou para Seos Erdeiros, e meos genrros e Testamenteiros lhe meterão no Cofre a dita importancia athe o dito Ser Capaz de Se lhe entregar, e peço as ditas minhas Filhas Recolham Logo Logo ao dito Rapas donde quer que Se achar e o mandem emSinar a ler e a Escrever, e tendo Capacidade lhe mandem emSinar algum officio, e o tratem Com toda Caridade [...]. 88

Em ambos os casos, os testadores não declaram possuir nenhum tipo de laço

parental entre si e as crianças expostas, mas a especulação pode muito bem deixar a

curiosidade assumir.

Por mais interessante que sejam as informações deixadas pelo Sargento Mor

Simão Gonçalves de Andrade a sua filhas, tais procedimentos são ainda mais marcantes

quando deixados às próprias esposas. É o que faz Antonio da Fonseca, natural da Bahia

[Salvador?] e morador da Vila de Nossa Senhora das Graças do Rio de São Francisco,

este é casado com Caterina Rodrigues da qual possui três filhos e duas filhas. No

86 Id. 87 Centro de Documentação e Pesquisa de História dos Domínios Portugueses (CEDOPE-DEHIS). 1788 – Testamento de José Luiz da Silva. 88 Arquivo Público do Paraná – Juízo de Órfãos de Curitiba, 10ª Vara Cível. Caixa PJI-02 – Processos Judiciários Inventários nº 02. 014 – 1783 – Auto de Inventário do Sgto-Mór Simão Gonçalves de Andrade. Testamento em anexo de 1771.

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entanto, declara, também ter “[...] tres crianSas bastardas duas femias e hum macho a

mais velha Maria e outra Margarida e macho Simiam Esta mais velha tem onze para

doze annos de que tratamos Eu e minha mulher ambos com mês a cazala vindo um

ManSebo pardo pedrero que mandei vieSe [...]”. 89 Sua esposa, Caterina o auxiliou na

criação de Maria que, dentre outras “benesses” paternas, recebeu um dote para casar

com um oficial pedreiro: pardo, mas pedreiro! Mais um fato digno de menção é o

casamento de uma de suas filhas legítimas com um de seus administrados! Especular-

se-ía a provável origem mestiça do testador, já que não se interessaria tanto em arranjos

matrimoniais com elementos declaradamente brancos. Caterina Rodrigues, esposa do

testador, acabaria por receber instruções para que

[...] ponha os olhos nesta criaturas dando lhe Ensino como espero não lhe faltara com ella [...] e as ditas criaturas deixo forras e libertas conforme a vontade que minha mulher tem Eu [peso] o mesmo e a todo tempo ponha os olhos nelles e ao macho dito Simiam deixo de esmola hús tais e hú termo E peSo a sua mai a minha mulher que sendo homem que poSa servir ao ofiSio e ser Soficiente para ferrero peso a minha mulher o ajude para o mais que faltar para o [aniamento] da dita tenda [...]. 90

Carinho raro despendido pelo pai aos seus filhos bastardos. Contudo, muitas

vezes, não era a família que recebia como um verdadeiro filho a determinada criança.

Muitas vezes, a criança ganhava o status de filho quando era acolhida em uma casa

devido ao fato de ter sido exposta. Porém, esse filho não o era legalmente, apenas era

assim considerado (e não por todas as famílias receptoras de expostos) devido,

geralmente, aos longos anos de convívio.

Uma documentação que privilegia esse mecanismo de adoção informal são as

Listas Nominativas de Habitantes. 91 Esses censos anuais continham dados importantes

sobre a população como nomes, idades funções na milícia e até mesmo as rendas e

atividades realizadas pelos indivíduos.

Pode-se, com o estudo de várias listas, observar a mudança do status familiar de

uma criança exposta recebida pelo fogo (domicílio). Nesse caso, um exposto pode ser

transformado, de simples agregado na casa, em um filho. Entretanto, nem sempre essa

transformação era realizada pelo chefe da família, mas pelo próprio recenseador. Ou

89 Centro de Documentação e Pesquisa de História dos Domínios Portugueses (CEDOPE-DEHIS). 1720 – Traslado de Testamento e Codicilo de Antônio da Fonseca. 90 Id. 91 Essas listas eram os censos da época. Mecanismos de controle adotados pela política do Marquês de Pombal e cuja correta freqüência foi obedecida pelo governador pelo Morgado de Mateus, o governador da Capitania de São Paulo na época.

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seja, ao menos para a comunidade circundante, aquela criança abandonada transformar-

se-ia em indivíduo da família.

Situação interessante a se levantar, é o agraciamento de viúvas ou órfãs

“honestas” com esmolas nos testamentos. Tal atitude, uma verdadeira arma contra a

multiplicação de crianças ilegítimas, é observada mesmo em testamento feitos por filhos

bastardos. O Capitão Antonio Gomes de Campos, seria filho natural de João Gomes de

Campos, como lhe afirmava sua própria mãe. Em seu testamento, afirma não reconhecer

o dito como seu pai (em represália pelo mesmo não ter o reconhecido), negando-lhe,

dessa forma, parte de seus bens. Mas, o que mais se deve notar é que o Capitão, ele

mesmo filho natural, deixa esmolas para “[...] moSsas pobres onestas e Viúvas [...] da

mesma qualidade [...]” destinadas “[...] para Seus melhores Cazamentos [...]”. 92

Tal atitude acaba por reiterar a premissa de que os filhos ilegítimos eram

preteridos dentro da sociedade colonial. Os arraigados valores cristãos fortaleciam o

preconceito frente a tais indivíduos, mesmo que estes conseguissem, duramente, galgar

altos patamares na rígida sociedade setecentista.

Ou seja, por mais necessários que fossem dentro de uma sociedade com carestia

de material humano, os ilegítimos acabavam, sempre que possível, sendo relegados a

papéis subalternos dentro desta. A consciência de seus indivíduos fazia com que até

mesmo filhos ilegítimos acabassem por se excluir socialmente ao explicitar desejos

últimos que, na verdade, fortaleciam a família legalmente constituída. Nesse caso a

própria sociedade faria com que suas máculas morais fossem extirpadas através dessas

iniciativas.

Obviamente, a ilegitimidade continuou sendo comum dentro da sociedade luso-

americana. Contudo, o que vale destacar é o discurso moralizador expresso pela Igreja

e, até mesmo, pelo Estado em vigor durante todo o período colonial e demonstrado em

uma simples análise de testamentos e inventários setecentistas.

92 Arquivo Público do Paraná – Juízo de Órfãos de Curitiba, 10ª Vara Cível. Processos de Inventários – Avulsos . 138 – 1797 – Auto de Inventário do Cap. Antonio Gomes de Campos. Testamento em anexo de 1797.

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CONCLUSÃO.

A historiografia especializada tende a considerar o filho ilegítimo como um personagem, até certo ponto, privilegiado dentro da sociedade colonial. 93 O próprio impulso colonizador tendia a incorporar facilmente tais indivíduos e, mesmo as autoridades os viam como um “mal necessário”. Feita uma pergunta: até que ponto tal elemento humano era considerado uma peça ordinária dentro da teia de sociabilidades colôniais?, desenvolveu-se uma análise simples de um apanhado de fontes cartoriais (nesse caso, testamentos e inventários) e se chegou a conclusão de que a vida do ilegítimo na Comarca de Paranaguá seguia uma regra estabelecida e já encontrada pela historiografia especializada.

Analisou-se um total de vinte documentos entre testamentos e inventários encontrados nos arquivos responsáveis e relacionados, em sua maioria, à Comarca citada. Tais documentos foram produzidos durante o decorrer do século XVIII e citam filhos ilegítimos e mesmo crianças expostas no rol dos beneficiados isso, quando estes não se encontravam entre os próprios testadores.

Dessa maneira, transpareceu, nesse trabalho, a busca de um melhor entendimento da condição cotidiana do ilegítimo em plagas paulistas durante o setecentos. Uma comparação de tal documentação, com as legislações vigentes, tanto civil (Ordenações Filipinas), como eclesiástica (Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia), se confirmou uma regra, já constatada pela historiografia, em outras regiões: o ilegítimo era privilegiado nos testamentos apenas quando o testador não possuía filhos legítimos. No caso de constar em um testamento, ou inventário, que contenha filhos legítimos como herdeiros, os ilegítimos tendiam a receber simples “esmolas”, o que pouco representava das posses do testador, o que bem ordenava o Código Filipino, prudente em defender a família legitimamente constituída.

Salienta-se que a exigüidade do tamanho da amostra acaba por transformar qualquer conclusão tirada desse estudo, de uma precariedade marcante. Entretando, essa é a totalidade dos testamentos e inventários registrados no território da antiga Comarca paulista de Paranaguá durante o século XVIII e que mencionam o ilegítimo em alguma circunstância: como testadores, testamenteiros, herdeiros legítimos ou beneficiados em geral.

Enfim, mesmo privilegiado em varias situações, devido, principalmente, à falta de elemento humano na empresa da colonização, o ilegítimo tendia a ser visto como elemento secundário, mesmo que necessário, no interior da sociedade luso-americana.

93 FREYRE, Op. Cit.; VIANNA, Op. Cit.

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FONTES UTILIZADAS.

1. Arquivo Público do Paraná – Juízo de Órfãos de Curitiba, 10ª Vara Cível.

• Documentos Manuscritos:

Caixa PJI-01 – Processos Judiciários Inventários nº 01.

007 – 1781 – Auto de Inventário de João Cordeiro Matoso.

Caixa PJI-02 – Processos Judiciários Inventários nº 02.

014 – 1783 – Auto de Inventário do Sgto-Mór Simão Gonçalves de Andrade.

Testamento em anexo de 1771.

Caixa PJI-03 – Processos Judiciários Inventários nº 03.

024 – 1786 – Auto de Inventário de Manoel Ribeiro Lopes. Em anexo “Lembrança q’

faço da m.ª vida p.ª q não me Corra em debaLde.” Sem data.

027 – 1785 – Auto de Inventário de José Rodrigues. Testamento em anexo de 1776.

Codicilo em anexo de 1784.

Processos de Inventários – Avulsos.

138 – 1797 – Auto de Inventário do Cap. Antonio Gomes de Campos. Testamento em

anexo de 1797.

Processos de Auto de Contas – Avulsos.

JP5033 CX 169 0002 – Processo de Auto de Contas de José Dias Cortes – 1773.

Testamento em anexo de 1767.

[SEM NUMERAÇÃO] – Processo de Auto de Contas de Maria do Nascimento de Jesus

– 1804. Testamento em anexo de 1801.

Libelo.

012 CX 002 – 1782 – “Libelo cível entre Antonio José Teixeira, como tutor dos órfãos

de Francisco de Linhares, e os Protetores da Irmandade.” Testamento de Francisco

de Linhares, de 1767, em anexo.

2. Arquivo Metropolitano Dom Leopoldo e Silva, da Mitra Arquidiocesana de São

Paulo. *

• Documentos Manuscritos:

* Tais documentos foram digitalizados por membros do Centro de Documentação e Pesquisa de História dos Domínios Portugueses (CEDOPE-DEHIS-UFPR) e estão arquivados em suas dependências.

Page 36: o filho ilegítimo, a hierarquia social e a sucessão testamentária na

33

Caixas 05-01-05 – Processos Gerais Antigos – Processos de Auto de Contas – 1727 -

1777.

1727 – Auto de Contas de Izabel Fernandes da Rocha.Testamento em anexo de 1725.

1740 – Auto de Contas de Paula Luiza Tigre.Testamento em anexo de 1737.

1752 – Auto de Contas de Jerônimo da Veiga Cunha.Testamento em anexo de 1745.

1768 – Auto de Contas de Catarina da Costa Rosa.Testamento em anexo de 1766.

Caixas 05-01-06 – Processos Gerais Antigos – Processos de Auto de Contas – 1789 -

1805.

1789 – Auto de Contas de Simão Gonçalves de Andrade.Testamento em anexo de 1771.

1795 – Auto de Contas de Sebastião Cardoso Serpa.Testamento em anexo de 1789.

1800 – Auto de Contas de Izabel Fernandes Buena.Testamento em anexo de 1799.

3. Acervo do Centro de Documentação e Pesquisa de História dos Domínios

Portugueses, séculos XV-XIX (CEDOPE-DEHIS-UFPR).

Vila de Iguape.

1788 – Testamento de José Luiz da Silva.

Vila de Paranaguá.

1757 – Auto de Contas de Felício Vieira.

1804 – Auto de Contas de Inácia Maria Botelha. Testamento em anexo de 1796.

Vila do Rio de São Francisco.

1720 – Traslado de Testamento e Codicilo de Antônio da Fonseca.

4. Documentos Impressos.

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