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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS Diogo Jardim Quirim O FILÓSOFO E O SOFISTA, EM ISÓCRATES: UMA ANÁLISE DO DISCURSO “CONTRA OS SOFISTAS” Porto Alegre 2010

o filósofo e o sofista, em Isócrates

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    Diogo Jardim Quirim

    O FILSOFO E O SOFISTA, EM ISCRATES: UMA ANLISE DO DISCURSO CONTRA OS SOFISTAS

    Porto Alegre 2010

  • DIOGO JARDIM QUIRIM

    O FILSOFO E O SOFISTA, EM ISCRATES: UMA ANLISE DO DISCURSO CONTRA OS SOFISTAS

    Trabalho de Concluso de Curso, apresentado como requisito parcial para a obteno do ttulo de Bacharel em Histria, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul Orientador: Anderson Zalewski Vargas

    Porto Alegre

    2010

  • DIOGO JARDIM QUIRIM

    O FILSOFO E O SOFISTA, EM ISCRATES: UMA ANLISE DO DISCURSO CONTRA OS SOFISTAS

    Trabalho de Concluso de Curso, apresentado como requisito parcial para a obteno do ttulo de Bacharel em Histria, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

    Aprovado em ___ de _____________ de _______.

    BANCA EXAMINADORA

    ________________________________________ Professor Doutor Anderson Zalewski Vargas - UFRGS

    ________________________________________ Professor Doutor Jos Carlos Baracat Jnior UFRGS

    ________________________________________ Professora Doutora Mara Cristina de Matos Rodrigues UFRGS

    Porto Alegre

    2010

  • SUMRIO

    1 INTRODUO...............................................................................................................

    1

    2 ISCRATES E A SOFSTICA..................................................................................... 6 2.1 A EDUCAO ARISTOCRTICA E A SOFSTICA................................................ 6 2.2 OS SOFISTAS E A M REPUTAO....................................................................... 9 2.3 O FILSOFO E O NO-FILSOFO........................................................................... 11 2.4 DOXA X EPISTEME.................................................................................................... 13 2.5 CRTICAS DE ISCRATES AOS SOFISTAS............................................................ 15 2.6 NATUREZA E ENSINO............................................................................................... 17 3 ANTILGICA E CONHECIMENTO.......................................................................... 20 3.1 HITLER......................................................................................................................... 20 3.2 O CARTER ANTILGICO DO MUNDO FENOMNICO..................................... 21 3.3 PROTGORAS............................................................................................................. 25 3.4 CRTICA DE ISCRATES AOS ERSTICOS............................................................ 26 3.5 CONTEXTOS................................................................................................................ 28 4 O LOGOS O TRUNFO DO HOMEM...................................................................... 33 4.1 O DESAFIO CTICO................................................................................................... 33 4.2 A ONTOLOGIA E A LOGOLOGIA............................................................................ 35 4.3 A PHILOSOPHIA DAS DOXAI ................................................................................... 38 5 CONCLUSO................................................................................................................. 45 6 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................ 49

  • RESUMO

    Este trabalho tem como fonte o discurso Contra os sofistas, de Iscrates. Seu

    objetivo o estudo das implicaes do uso dos termos philosophos e sophistes por seu autor.

    Para isso, busco traar um panorama da sofstica, assim como explicitar elementos da filosofia

    platnica, maior rival da escola isocrtica em seu tempo. Por fim, farei algumas analogias

    com a problemtica da narrativa na histria, e sua relao direta com uma das causas da m

    reputao sofstica: a acusao de relativismo.

    Palavras-chave: Iscrates, sofstica, filosofia.

  • 1

    1 INTRODUO

    Nesta introduo, no pretendo elaborar um grande captulo terico introdutrio, j

    que a prpria operao historiogrfica no pode ser concebida como independente de algo que

    possamos chamar de teoria. Realizarei, por vez, uma aproximao do objeto, com um carter

    de prefcio, e apenas no decorrer do trabalho entrelaarei comentrios sobre o modo com que

    trabalhei as fontes, conjuntamente prpria argumentao.

    Sendo este texto um trabalho de concluso de curso, alm de o encerramento de uma

    etapa, ele o resultado de uma longa trajetria. Alm disso, em meu caso, resultado de um

    trabalho de pesquisa mais amplo, e de interesses que vo alm da sua prpria confeco.

    Ingressei na Universidade Federal do Rio Grande no Sul no ano de 2006, no curso de

    Bacharelado em Histria. Sendo eu bastante jovem no momento do ingresso, levei certo

    tempo para escolher os caminhos que tomaria dentro da disciplina histrica. Os estudos

    culturais e o pensar a prpria atividade historiogrfica sempre captaram mais o meu interesse.

    Alm disso, desde antes do comeo da minha graduao tenho apreo pela literatura e por

    assuntos relativos ao discurso. Ento, por volta da metade do curso, tive o interesse de

    envolver-me com alguma atividade de pesquisa e busquei algo que fosse de meu interesse.

    Tambm anterior graduao o gosto pela Grcia Antiga, e tal gosto eu nunca

    coloquei como objeto de anlise; a princpio, no tem uma causa to aparente. Creio que

    possa se dever a larga distncia temporal, que nos possibilita a entrar em contato com uma

    civilizao em muitos elementos diversa da nossa, e ao mesmo tempo pela grande dvida que

    o ocidente tem com ela, o que nos torna um tanto semelhantes aos gregos em diversos pontos.

    A aparente contradio no a de fato, sobretudo se buscamos uma histria que no tenha

    como nico objetivo a reconstruo de um passado, mas uma leitura do passado que dialogue

    com o nosso presente e que aceite que dele no pode e nem deve se libertar.

    Portanto, no momento em que eu imaginei que seria proveitoso ter a experincia da

    participao em um projeto de pesquisa, conheci o trabalho do Prof. Anderson Zalewski

    Vargas com o uso da retrica para anlise de fontes histricas. De certa forma, minhas

    predilees temticas estavam em grande parte inseridas tanto o gosto pela antiguidade,

    quanto pelas problemticas do discurso e fiz um pedido para fazer parte do trabalho, do

    qual participo desde comeos de 2009.

  • 2

    Essa pesquisa, no momento sob o nome de Retrica e Histria: reflexo e

    hermenutica. Sertes trgicos, farroupilhas retricos, estuda a utilizao da retrica como

    instrumento de anlise para a histria das idias e, com isso, para a leitura, interpretao, e

    construo de sentido em fontes histricas textuais. Os objetos com os quais nos deparamos

    para estudo foram tanto a obra Os Sertes, de Euclides da Cunha, quanto jornais do perodo

    farroupilha em nosso Estado. O estudo destes jornais possibilitou-me a experincia

    arquivstica, em busca de impressos no ligados aos revolucionrios. O principal objetivo era

    estudar a apropriao e a significao de elementos da Antiguidade Clssica nessas fontes.

    Neste projeto, fiz diversas leituras sobre a retrica, desde os antigos aos modernos,

    assim como fiz uma disciplina sobre a retrica aristotlica e outra sobre Euclides da Cunha.

    Essas reflexes acerca da natureza da retrica e os seus usos sempre me atraram, e, em certo

    momento, deparei-me com uma referncia a um intelectual grego do sculo V e IV a.C.,

    denominado Iscrates. A mnima ateno dada ao seu nome na contemporaneidade, se

    comparado a Aristteles e Plato, levou-me a buscar mais informaes a respeito da sua obra,

    sobretudo pelo fato de Iscrates apresentar uma via diversa para se pensar o lugar da retrica

    na sociedade e na educao, assim como uma valorizao do conhecimento ligado ao mundo

    humano, opondo-se a uma filosofia idealista.

    A primeira aproximao foi bastante casual, e eu ainda no tinha uma carga de

    conhecimento que me possibilitasse elaborar grandes questionamentos sobre Iscrates; mas,

    com um interesse por esse praticamente desconhecido, acabei buscando algumas informaes

    sobre sua vida. No podemos traar uma biografia detalhada, mas sabe-se que ele nasceu no

    ano de 436 a.C., em Atenas, no demos1 de Erqua, e teve uma vida muito longa, at 338 a.C..

    A principal caracterstica do seu pensamento poltico era o estmulo concrdia entre os

    gregos cujas relaes entre as poleis eram tensas desde a Guerra do Peloponeso e a luta

    comum contra os persas, tendo Atenas no comando da Hlade unida.2 Iscrates comps 21

    discursos e 9 cartas, tendo como alguns dos mais conhecidos o Contra os Sofistas, o

    Panegrico, o Panatenaico e a Antdosis. Muito provavelmente foi discpulo de

    Grgias, adotando elementos de sua prosa potica, embora evitando usos abusivos de figuras

    e seu lxico rebuscado.

    1 Transliterarei todos os termos gregos ao nosso alfabeto, grifando-os em itlico. Os nomes sero passados sempre para o nominativo, salvo indicao contrria. As medidas buscam a maior clareza possvel. 2 Para consideraes biogrficas sobre Iscrates, ver: CODOER, Juan Signes. Introduccin general. In: ISCRATES, Discursos. Traduo e notas de Juan Manuel Guzmn Hermida. Madrid: Editorial Gredos, 2002.

  • 3

    Ao que tudo indica, Iscrates era proveniente de uma famlia com bons recursos

    financeiros, mas que perdeu a sua fortuna durante a Guerra do Peloponeso, sendo que aquilo

    que sobrou foi gasto por seu pai em servios pblicos e na sua educao. Iscrates afirma ter

    recebido uma educao esmerada que o levou a ser bastante notvel e distinto entre a

    juventude de seu tempo.3 Entretanto, com a derrocada financeira de sua famlia, ele

    possivelmente se viu obrigado a trabalhar como um loggrafo, ou seja, um escritor

    profissional de discursos judicirios.4 Destes discursos, chegaram at ns apenas 6, intitulados

    Contra Lquito, Contra Eutino, Contra Calmaco, Sobre as bigas, Egintico e

    Trapectico, compostos entre o perodo de aproximadamente 403 a 390 a.C.. Aps

    abandonar a profisso de loggrafo, Iscrates no mais faz referncia a este perodo da sua

    vida e, inclusive, fez crticas a esta atividade.

    Por volta de 390 a.C., Iscrates fundou uma escola em Atenas, representando um novo

    momento que perdurar at o fim de sua vida com considervel coeso de idias. E com a

    fundao dessa escola, Iscrates escreve um discurso que o situa perante o contexto

    educacional ateniense e os seus rivais. Este discurso denominado Contra os Sofistas e,

    juntamente com a Antdosis, faz parte dos seus discursos programticos. Neles, ser feita

    uma defesa da educao isocrtica, as suas possibilidades e limites, uma crtica aos seus

    opositores, e algo prximo de uma definio da sua philosophia.

    O discurso Contra os Sofistas aquele que escolhi como fonte para a elaborao

    deste trabalho. Vrias foram as causas dessa escolha. De um lado, temos uma grande clareza

    na exposio das idias de Iscrates e o seu posicionamento no conflito pela paideia

    recomendvel ao cidado ateniense; por outro, a conciso do discurso permite que eu possa

    fazer um trabalho suficiente no curto espao de tempo de um semestre que se dispe na

    elaborao de um trabalho de concluso, o que no seria possvel se trabalhasse com a

    Antdosis texto muito mais completo e complexo, mas cujo estudo demandaria muito

    mais tempo e cuidado.

    Entretanto, no trabalharei com o Contra os Sofistas de modo isolado, e o

    compreenderei, o tanto quanto possvel, como inserido dentro de um corpus isocrtico: por

    diversas vezes farei referncias, sobretudo Antdosis, por ser um trabalho de carter

    semelhante ao Contra os Sofistas, e tambm por Iscrates j t-lo escrito com 82 anos e,

    3 ISCRATES, Antdosis, 161-162. 4 CODOER, Juan Signes. Introduccin general. In: ISCRATES, Discursos. Traduo e notas de Juan Manuel Guzmn Hermida. Madrid: Editorial Gredos, 2002. p. XII.

  • 4

    mesmo estando nessa idade avanada, o nosso autor ainda manter a coerncia de suas idias,

    inclusive citando o discurso que uso como objeto.5

    O meu interesse principal no Contra os Sofistas estabelecer qual a relao de

    Iscrates com o filsofo (philosophos) e o sofista (sophistes). Iscrates considerado, por

    muitos, como pertencente cultura sofstica; entretanto, se auto-intitula filsofo e considera a

    sua paidia como ensino da philosophia. Contudo, ele coloca um conjunto complexo de

    adversrios sobre a mesma alcunha de sofistas, assim como algumas de suas crticas aos

    sofistas recairiam plenamente sobre aspectos da filosofia platnica.

    Portanto, a escolha dos termos em Iscrates no banal, e tem peso poltico,

    argumentativo e intelectual. Plato fundar a sua Academia logo aps Iscrates fundar a sua

    escola, e na dcada de 380 a.C. escrever o dilogo Grgias, que faz uma ferrenha crtica a

    retrica e a situa no mundo das aparncias.

    Meu objetivo delinear a posio que Iscrates ocupa entre a filosofia e a sofstica, se

    que podemos falar nestes lugares. preciso considerar que a filosofia, enquanto a

    concebemos hoje, resultado de uma tradio de mais de dois milnios, onde alguns

    pensadores foram canonizados, e outros foram deixados de lado. Tambm preciso pensar

    que o termo filosofia est imerso na histria e tem nela uma variabilidade de significaes.

    O meu intento , no contexto de elaborao do Contra os Sofistas, situar as implicaes da

    contraposio entre o philosophos e o sophistes em Iscrates. Alm disso, analisar se

    possvel e sobretudo vlido situarmos Iscrates dentro de alguma das tradies, ou seja,

    enquanto um sofista ou um filsofo.

    Para isso, precisamos de trs passos. Em primeiro lugar, analisar o surgimento da

    cultura sofstica em oposio antiga educao aristocrtica, o pensamento dos sofistas, a

    validade de sua colocao margem da filosofia e, acima de tudo, entender como Iscrates se

    relaciona com esse grupo de pensadores. Em segundo lugar, preciso, aps traar um perfil

    da sofstica, pesquisar o que a paideia isocrtica, qual a sua relao com o conhecimento,

    com o discurso e quais so os limites que ela coloca para o ensino. E, por ltimo, contrapor o

    pensamento de Iscrates com o seu contemporneo cristalizado na tradio filosfica

    ocidental, ou seja: Plato. Desta forma, poderemos ter uma percepo maior de como

    Iscrates se colocou perante o seu passado e o seu presente e, talvez, entrever algum

    5 ISCRATES, op. cit., 193.

  • 5

    conhecimento que nos ajude a pensar as tenses atuais dentro da disciplina histrica e no

    modo como ela fundamenta o seu conhecimento.

    Embora a princpio a minha temtica de estudo parea um tanto distante, julgo que o

    conhecimento histrico sempre parte do presente e por inquietaes presentes. Se ele capaz

    ou no de fornecer-nos respostas, ou se esta a sua utilidade, no estou na circunstncia de

    discuti-lo. Por outro lado, creio que o estudo de um pensador como Iscrates, e de suas

    tenses com a filosofia e a sofstica, pode ser muito til para que agreguemos um capital

    cultural que nos ajude a significar de outras formas questes referentes epistemologia

    histrica, e o conflito entre aqueles que enfatizam a narrativa e os que enfatizam o carter

    cientfico da histria.

    Feitas estas breves e livres consideraes iniciais, voltemos poucos milnios sem sair

    do presente.

  • 6

    2 ISCRATES E A SOFSTICA

    2.1 A EDUCAO ARISTOCRTICA E A SOFSTICA

    No podemos pensar um texto sem considerarmos o dilogo que ele faz com o seu

    passado e com a sua contemporaneidade. O prprio nome do discurso coloca o seu alvo:

    Contra os sofistas. Para um leigo, a primeira questo a ser suscitada : quem foram os

    sofistas?

    Em primeiro lugar, sofista uma generalizao, que envolve um grupo complexo e

    heterogneo de intelectuais atenienses dos sculos V e IV a.C.. Muito do que significamos

    enquanto sofistas provm da crtica que perpassa todo o corpus platnico, e engloba nomes

    como Prdico, Protgoras, Grgias, Hpias e at o prprio Iscrates, para alguns. Aristteles,

    nas Refutaes sofsticas, sustentar que a sofstica uma sabedoria aparente, mas no

    real; e o sofista um negociante da sabedoria aparente, mas no real.6 A designao de

    sofista carregou e carrega, at os nossos dias, uma carga de negatividade que associa a sua

    atividade ao engano e a aparncia. Mas para podermos julgar se essa afirmao correta ou

    errnea, precisamos saber mais sobre a sua atividade.

    No sculo V a.C., Atenas passou por um grande processo de deslocamento das

    preocupaes intelectuais. O advento da histria, da medicina e da comdia, por exemplo,

    exemplificam um maior questionamento das questes humanas e da vida na polis. Esse o

    sculo da efervescncia cultural ateniense: Atenas sai das guerras mdicas com uma profunda

    respeitabilidade na Hlade, e com foras para impor o domnio dos mares e uma poltica

    imperialista que, atravs da Liga de Delos, possibilita obras monumentais como o Partenon.

    Com o crescimento da vida urbana e da democracia, a antiga educao aristocrtica que

    enfatizava a formao do guerreiro comea a perder espao para uma educao que visa

    formao do cidado enquanto ator determinante nos destinos da polis.

    A formao do homem segundo a educao aristocrtica era pautada pela manuteno

    do status social: a virtude era hereditria, com o auxlio de exemplos vindo dos ancestrais

    familiares e da tradio. Em detrimento a uma formao intelectual, os elementos de maior

    6 ARISTTELES, Refutaes sofsticas, 1 165a 21.

  • 7

    importncia nessa formao provinham dos atributos fsicos e da coragem, tpicos de uma

    sociedade guerreira. Mesmo com o florescimento da democracia e da urbanidade, estes

    valores continuaram a ser distintivos e muito cultuados na juventude ateniense.7

    Trs pilares sustentavam essa educao aristocrtica: o paidotribes, o kitharistes e o

    grammatistes. Destes trs professores, a maior importncia provinha do paidotribes,

    responsvel pelo treinamento do corpo. Esse treinamento era realizado na palaistra e incluam

    todos os esportes a serem disputados nos jogos, sobretudo as lutas. Mas tambm se incluam a

    corrida, o lanamento de dardo, entre outros. Essa educao era muito importante, pois o

    maior ideal aristocrtico era um corpo perfeito, forte e flexvel, belo e adequado ao combate.

    O kitharistes era o professor de msica. Embora o nome se refira a um instrumento em

    particular, a ctara, tambm ocupava-se do ensino da dana e do canto, sendo este quase

    sempre em coro. No apenas a competncia musical era o objetivo deste ensino, mas tambm

    o senso de disciplina e a harmonia.

    Por fim, o grammatistes era o professor mais prximo do ensino das humanidades.

    Ensinava a ler e a escrever, e tinha a menor parcela na formao aristocrtica. O estudo dos

    poetas tambm fazia parte das atribuies do grammatistes, contemplando a leitura de

    Homero e os lricos, principalmente. Os alunos copiavam algumas passagens, enquanto outras

    as aprendiam de cor.

    evidente que esse homem aristocrata educado para a manuteno da distino,

    valorizando a beleza do corpo e hbitos ligados a cultura artstica. Entretanto, durante o

    sculo V a.C., emergiu uma nova cultura, com um modelo de educao no to voltado para a

    distino, seno para a utilidade.

    Leiamos como Romilly define os sofistas:

    A prpria palavra significa profissionais da inteligncia. E eles certamente afirmam ensinar as pessoas sobre como usar a sua inteligncia. Eles no eram sbios, sophoi, uma palavra que conota no uma profisso, mas um estado de existncia. Nem eram eles filsofos, pois essa palavra sugere uma paciente busca pela verdade, antes do que uma confiana otimista em suas prprias habilidades. Eles sabiam certos mtodos e poderiam ensin-los. Eles eram mestres do pensamento, mestres da discusso. Conhecimento era a sua especialidade, assim como o piano a do pianista. Um deles, Trasmaco, elaborou uma frmula admirvel para transmitir isto.

    7 ROMILLY, Jacqueline de. The great sophists in Periclean Athens. Traduzido por Janet Lloyd. New York: Oxford University Press, 1998. p. 30-33.

  • 8

    O epitfio que ele comps para o seu prprio tmulo diz: Calcednia era a minha terra, conhecimento a minha profisso.8

    Considero importante a distino que Romilly realiza entre o sophos e o sophistes, ou

    seja, entre o sbio e o sofista. Segunda a autora, o sofista um profissional, e um profissional

    cuja especialidade o conhecimento. Portanto, ela no considera os sofistas enquanto

    intelectuais preocupados com o conhecimento, seno enquanto educadores preocupados em

    transmitir os seus mtodos. estabelecida uma clara distino entre os filsofos e os sofistas;

    por sua vez, os filsofos seriam os preocupados com a paciente busca da verdade.

    Aparentemente, h uma contradio no trecho, enquanto os filsofos buscam a verdade e os

    sofistas so profissionais cuja especialidade o conhecimento. Eu acredito que a

    diferenciao que Romilly almeja que o filsofo busca conhecer as coisas em busca da

    verdade, enquanto o sofista busca ensinar uma tcnica, para que tambm os seus alunos se

    tornem mestres no pensamento e na discusso.

    Euzbio, em sua dissertao Iscrates: a filosofia na penumbra9, retorna aos antigos

    usos da palavra sophia, para analisar o seu futuro desdobramento em sophistes. Ele coloca

    que a sophia era utilizada, em Homero, como a virtude do perito, como o domnio de uma

    habilidade, seja no uso da lira, da palavra, ou na conduo de barcos. Portanto, o sophos pode

    utilizar a sua habilidade tanto para o bem quanto para o mal; este problema no est nos

    limites da sophia.

    Contudo, ao mesmo tempo o autor d o exemplo de que, para Pndaro, a poesia era a

    mais alta sophia. Neste caso a sophia extravasa o sentido de habilidade, e est associada ao

    conhecimento, e a um conhecimento no habitual ao homem do povo.

    Os termos sophos e sophia, portanto, so polissmicos, e podem tanto estar associados

    habilidade, engenho ou a prpria sabedoria acima do comum. E nisso mesmo est cerrada a

    distino entre o filsofo e sofista: o sofista o homem da habilidade, e o homem da

    habilidade poltica; o filsofo o homem que busca a transcendncia do banal, buscando um

    conhecimento que se afaste do senso comum.

    8 ROMILLY, Jacqueline de. The great sophists in Periclean Athens. Traduzido por Janet Lloyd. New York: Oxford University Press, 1998. p. 1. 9 EUZEBIO, Marcos Sidnei Pagotto. Iscrates: a filosofia na penumbra. Tese de doutorado.Universidade de So Paulo. 2000.p. 18-20.

  • 9

    2.2 OS SOFISTAS E A M REPUTAO

    No discurso o qual o objeto privilegiado do meu estudo, Iscrates realiza um ataque

    aos sofistas. No primeiro pargrafo, ele j faz uma constatao acerca do contexto da

    educao ateniense:

    Se todos os que se ocupam da educao (paideia) quisessem realmente dizer a verdade (alethe), e no fazer promessas maiores do que as que poderiam cumprir, no seriam difamados pelos cidados. Mas os que, muito irrefletidamente ousam gabar-se, tm feito com que se acredite encontrar as decises mais sbias junto aos que nada fazem do que entre os que se ocupam da philosophia.10

    Trs colocaes chamam a ateno nesse exrdio do discurso isocrtico: a difamao

    que os cidados atenienses impem a alguns educadores; as promessas maiores do que a

    capacidade destes; e, por fim, a existncia de uma philosophia.

    Essas so as nicas consideraes gerais que Iscrates coloca em todo o texto, j que

    separar os sofistas em trs tipos. Antes de qualquer anlise de significao do discurso,

    precisamos entender a m reputao dos sofistas.

    Os sofistas eram, acima de tudo, professores que buscavam a formao do orador, do

    homem ativo na polis, o qual era capaz de ter e defender as suas prprias idias perante

    assemblias ou tribunais. Em Plato, tanto Grgias quanto Protgoras afirmam ser

    possuidores de uma arte (techne), sendo que este afirmava ser possuidor da arte poltica

    (politike techne)11 e aquele da arte retrica (rhetorike techne).12

    Enquanto especialistas nos discursos, os sofistas eram muito bons na argumentao, e,

    por conseqncia, no questionamento. A partir deles, nada mais aceito a priori; tudo est

    passvel a discusso e sempre existe a possibilidade de uma tese contrria. A oferta da

    educao sofstica era o sucesso nos assuntos que dependiam da inteligncia, e os sofistas

    eram muito confiantes em suas habilidades. No havia limite para a sua paideia e prometiam 10 ISCRATES, Contra os sofistas, 1. 11 PLATO, Protgoras, 319a. 12 PLATO, Grgias, 449a.

  • 10

    tornar qualquer pessoa apta s discusses nas assemblias e jris. A acusao de que os

    sofistas faziam promessas alm das suas capacidades reverbera em Xenofonte, no

    Memorveis: [Scrates] no discutia sobre a natureza de todas as coisas, como a maior

    parte dos outros, nem examinava como surge o que os sofistas chamam de cosmos nem por

    que leis naturais acontecem os fenmenos celestes.13 A capacidade de discutir acerca de

    todas as coisas, preocupando-se apenas com a efetividade e no com o conhecimento, causava

    muita desconfiana em relao aos sofistas.

    Mas a Atenas era um bero prspero para os sofistas. Toda a desconfiana com a sua

    atividade foi proporcional fama e o prestgio que tiveram. Atenas vivia o seu apogeu no

    sculo V a.C. e atraa pessoas de todos os cantos da Hlade. Curiosamente, grande parte dos

    sofistas no eram atenienses, embora tenha sido em Atenas que atingiram o pice da sua

    atividade. Atenas era um smbolo de liberdade poltica, alm de ser uma cidade que talvez

    por seus costumes martimos possua a fama de ser muito hospitaleira. Com a democracia,

    a capacidade de fazer prevalecer as suas prprias idias era prerrogativa para se exercer o

    poder, e era exatamente isso o que os sofistas ofereciam.14

    Um ponto de fortes crticas aos sofistas era o fato de cobrarem em troca do

    conhecimento. Hoje prtica banal, causava bastante escndalo entre os atenienses. Nesse

    sentido, refora-se o pensamento de que os sofistas eram os primeiros professores

    profissionais. O prprio Iscrates realizar uma crtica aos honorrios dos sofistas, afirmando

    que, mesmo prometendo bens grandiosos como a virtude (arete) e a felicidade (eudaimonia),

    cobravam muito pouco por eles.15 No caso de Iscrates, a crtica se relaciona mais s

    promessas excessivas dos sofistas do que com o fato da cobrana em si. Mas Xenofonte

    afirmar que, vendendo a sabedoria por dinheiro, os sofistas se prostituam.16

    Para entendermos o Contra os sofistas, um ponto fundamental: Iscrates quer

    afastar-se do grupo dos sofistas. No incio da Antdosis, Iscrates queixa-se da confuso

    entre ele e os sofistas, e afirma ser acusado de fazer a causa mais fraca parecer a mais forte, de

    modo contrrio justia.17 Essa era uma das acusaes freqentes, e tambm responsveis da

    m reputao daquele grupo. Contudo, ser que Iscrates est to distante deles?

    13 XENOFONTE, Memorveis, 11,11. 14 ROMILLY, Jacqueline de. The great sophists in Periclean Athens. Traduzido por Janet Lloyd. New York: Oxford University Press, 1998. p. 20-23. 15 ISCRATES, Contra os sofistas, 3-6. 16 XENOFONTE, op. cit., 6, 3. 17 ISCRATES, Antdosis, 3-5; 12-15; 88-92.

  • 11

    2.3 O FILSOFO E O NO-FILSOFO

    Como j vimos, o prprio nome do discurso, assim como as crticas ao exagero das

    promessas educacionais e o baixo preo cobrado por valores to altos como a virtude e a

    felicidade, so pontos de conflito entre Iscrates e os sofistas. Evidentemente, colocando o

    discurso Contra os Sofistas em seu tempo, e considerando que o texto programtico de um

    perodo muito prximo fundao de sua escola em Atenas, o objetivo de se afastar da

    sofstica questo de pura sobrevivncia. Se a separao est apenas nos termos ou tambm

    no pensamento se Iscrates pode ser considerado um sofista; se Iscrates afasta-se da

    sofstica simplesmente para se dissociar da carga negativa nela incrustada; se Iscrates de fato

    diverge das idias sofsticas e se aproxima da filosofia o que veremos no decorrer do

    trabalho.

    Werner Jaeger, autor de clssico livro sobre a paideia grega, situa Iscrates dentro da

    tradio sofstica:

    E o interesse que esta figura tem para ns cresce pelo fato de se manifestar expressamente desde o contra as exigncias de Plato e do crculo socrtico, abraando contra eles a defesa da cultura sofstica; o que significa que escrevia com a conscincia de no ter sido de antemo liquidado por aquela crtica. No fundo, Iscrates um sofista autntico, mais, o homem que verdadeiramente vem coroar o movimento da cultura sofstica.18

    Para o autor, Iscrates o opositor de Plato. Considerado como um sofista autntico,

    aquele homem que aperfeioa a cultura sofstica, sem dela se subtrair. A explicao para o

    uso do termo philosophia, por Iscrates, que as palavras ainda no haviam se cristalizado e

    estavam em plena efervescncia. Ainda adiciona que Jaeger considerando que Iscrates

    ataca Plato e ao crculo socrtico ele est mais prximo ao uso comum do termo,

    incluindo a Scrates na categoria de sofista (como faz Aristfanes, em As nuvens) e

    considerando a filosofia enquanto formao geral do esprito.

    18 JAEGER. Werner Wilhelm. Paidia: A formao do homem grego. So Paulo: Martins Fontes, 1986. p 729.

  • 12

    Concordo com a efervescncia dos termos, e tambm acredito que o uso das palavras

    philosophia e sophisthes por Iscrates tem um peso que ultrapassa a prpria diferena de

    pensamento: sophistes negativo; criar uma identidade intelectual enquanto um sofista

    comprar os ataques de prostituio intelectual, como o de Xenofonte, ou como o ataque que

    Aristteles far nas Refutaes sofsticas de manter-se apenas nas aparncias.

    Entretanto, isso seria contraditrio com a colocao de Iscrates entre a tradio

    sofstica. Coloc-lo a revelia em uma tradio que ele prprio nega parece ser resultado de um

    olhar ainda situado na crtica platnica aos sofistas. Seria desqualificar o pensamento de

    Iscrates enquanto objeto de conhecimento, reduz-lo ao mundo das aparncias, e conden-lo

    por visar apenas a persuaso em detrimento de qualquer possibilidade de conhecimento. Alm

    do mais, sob uma perspectiva moderna, o termo sofista ainda carregado de significao

    negativa, e identific-lo enquanto pertencente tradio sofistica a princpio tambm poderia

    ser perigoso, desqualificando a seriedade do seu pensamento.

    Maria Jos Vaz Pinto sugere a reviso da oposio entre filsofo e sofista, na qual o

    sofista seria considerado como o no-filsofo.19 Ela afirma que o sofista foi construdo pelo

    testemunho platnico como um adversrio do filsofo, e a sua associao ao relativismo no

    plano do conhecimento e dos valores, e do pragmatismo, onde o til prevalece em detrimento

    do bem, ajudou a reforar o seu carter pejorativo. Para a autora, preciso equacionar a

    importncia filosfica do pensamento dos sofistas, e consider-los como pensadores pioneiros

    em temticas acerca da vida do homem em sociedade. Os sofistas teriam se fixado em

    questes relativas praxis poltica, e no nos problemas que se relacionam physis,

    preponderantemente de interesse dos filsofos da natureza. A reproduo de uma passagem

    vlida para comearmos a situar o lugar de Iscrates entre a filosofia e a sofstica:

    Na contraposio introduzida pelo autor do Fdon e da Repblica entre o mundo visvel, correspondente ao devir e mudana, e o mundo invisvel, correspondente s idias, os procedimentos adotados pelos sofistas mostram-se adequados s aparncias fenomnicas, a que os prprios sofistas se reportam, se bem que inoperantes no plano superior das realidades em si mesmas. Os duplos discursos e a argumentao antilgica coadunam-se com a versatilidade das experincias relativas s impresses sensoriais acerca do mundo circundante, mas no podero nunca levar ao conhecimento das realidades imutveis, cuja identidade s pode ser objeto da dialtica. As coisas invisveis para os olhos corpreos s se tornam acessveis enquanto objeto da viso da alma, amante da sabedoria. O sofista surgir, ento, como filsofo imperfeito (em vez de ser reduzido ao no filsofo), como

    19 SOUSA, Ana Alexandre Alves de; PINTO, Maria Jos Vaz. Sofistas: Testemunhos e Fragmentos. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2005. p. 32-34.

  • 13

    aquele que se limitou a um nvel inferior de conhecimento (doxa) e no ascendeu apreenso da realidade em si mesma, atendo-se s realidades apenas tal como nos aparecem (phainomena). Nessa aproximao, na perspectiva de Plato, o sofista fica aqum da filosofia, enquanto conhecimento verdadeiro, necessrio e absoluto, coincidente com a episteme; mas no radicalmente excludo do caminho que a ela conduz, muito embora se detenha nas primeiras etapas do percurso.20

    Portanto, Maria Jos Vaz Pinto coloca uma diferena de objetos entre o filsofo e o

    sofista: este estaria preocupado com as questes humanas, relativas ao mundo da doxa, e

    aquele buscaria a episteme, em um mundo invisvel, correspondente s idias, onde o

    conhecimento verdadeiro seria possvel. Essa abordagem, ela mesma baseada na distino

    platnica entre doxa e episteme, estabelece uma diferenciao: partindo de Plato, os sofistas

    so fenomenologistas, e os filsofos so idealistas. Assim podemos considerar os sofistas

    como portadores de algum conhecimento: o conhecimento relativo ao mundo da doxa, daquilo

    que sensvel e caracterizado pelo devir e pela mudana. Entretanto, se existe um mundo

    onde um conhecimento estvel seja possvel, no pertence aos sofistas, e estes podem ento

    ser considerados como filsofos imperfeitos em vez de no-filsofos.

    2.4 DOXA X EPISTEME

    Realizemos, portanto, uma aproximao dos termos doxa e episteme.

    Segundo o dicionrio Bailly, o termo doxa tem os seguintes significados: opinio,

    sendo esta julgamento, sentimento, o que se cr possvel ou, particularmente, crena

    filosfica, por oposio verdade pura, aletheia (verdade) ou episteme (conhecimento)21

    Por outro lado, para episteme, temos como sentidos: cincia, sendo esta arte,

    habilidade, conhecimento em geral, ou cincia em oposio techne (arte, tcnica) ou

    empeiria (experincia).22

    20 SOUSA, Ana Alexandre Alves de; PINTO, Maria Jos Vaz. Sofistas: Testemunhos e Fragmentos. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2005. p. 34-35. 21 BAILLY, Anatole. Dictionnaire Grec-Franais. Paris: Hachette, 2000. p. 531. 22 Ibid. p. 775.

  • 14

    No discurso Contra os Sofistas, nos revela Iscrates que ser um intelectual que

    valoriza a dimenso das opinies humanas e das deliberaes. Quando realiza a sua crtica aos

    ersticos, Iscrates expe o seguinte:

    Ento, quando os leigos refletem sobre tudo isso, quando percebem que faltam muita coisa aos que ensinam a sabedoria (sophia) e transmitem a felicidade (eudaimonia) cobrando quase nada de seus discpulos; quando os vem espreitar as contradies nas palavras, mas ignor-las nos atos e, alm disso, fingirem conhecer o futuro, mas nada serem capazes de dizer ou aconselhar acerca do necessrio ao presente; quando veem os que seguem as opinies (doxai) concordarem entre si e terem melhor xito do que aqueles que se gabam de possuir a cincia (episteme), com razo, para mim, que desprezam tais ocupaes, julgando-as enrolao e mesquinharia (micrologia), e no cuidado da alma.23

    Outro argumento para tal aproximao encontra-se na Antdosis:

    Pois devido a no ser da natureza humana (phisis) alcanar uma cincia (episteme) daquilo que ns podemos saber precisamente o que fazer ou dizer, eu sustento que um homem para ser sbio deve ser apto por suas opinies (doxai) a chegar ao melhor caminho, e tambm afirmo que para ser um filsofo (philosophos) o homem deve ocupar-se com os estudos dos quais ele ganhar mais rapidamente esta sabedoria (phronesis).24

    Iscrates afirma que no prprio do homem a posse da cincia, uma cincia que

    possa nos dizer o que fazer e o que dizer. Contudo, ele no cai no relativismo afirmando que

    nenhum tipo de conhecimento possvel. Sua soluo para a impossibilidade de certeza no

    que concerne a esfera dos negcios humanos uma valorizao desta forma de conhecimento

    menos rigorosa, traduzida costumeiramente por opinio, que so as doxai aqui em

    Iscrates muito mais que a simples opinio comum, que seria apenas uma tomada de posio

    descompromissada perante algo, mas uma opinio filosfica, baseada em uma sabedoria.

    Contudo, se observarmos a citao supracitada de Maria Jos Vaz Pinto, Iscrates no

    seria um filsofo, caso tomemos como base a diviso platnica do que concerne ao mundo da

    doxa e da episteme. Estaria Iscrates nesta metade do caminho? Na Antdosis, Iscrates

    23 ISCRATES, Contra os sofistas, 7-8. 24 ISCRATES, Antdosis, 270-271.

  • 15

    afirma precisamente que no da natureza humana alcanar o conhecimento daquilo que

    devemos fazer ou dizer, e o sbio deve ser apto por suas doxai a chegar ao melhor caminho.

    Podemos considerar isto praticamente como uma definio isocrtica de o que a filosofia.

    Ento, mantm-se o problema: Iscrates situa o seu conhecimento no mbito da doxa, e

    afirma que o sbio aquele que chega ao melhor caminho. No h em Iscrates,

    aparentemente, um conhecimento verdadeiro de uma realidade imutvel. Estaria ele restrito ao

    mundo visvel colocado por Maria Jos Vaz Pinto, e ento se afastaria dos sofistas por uma

    simples questo discursiva para afastar-se da negatividade da definio de sofista? Antes,

    faamos uma aproximao das crticas realizadas no Contra os Sofistas.

    2.5 CRTICAS DE ISCRATES AOS SOFISTAS

    Apenas analisando as crticas aos sofistas internas ao discurso Contra os sofistas,

    poderemos definir o que, para Iscrates, especfico da sofstica. Uma coisa tentarmos

    definir o que foi a sofstica ou o que os sofistas tinham em comum. Outra coisa fazermos

    uma leitura do que Iscrates considerava sofstico, e o que Iscrates significou enquanto

    sofstico. Neste sub-captulo, no farei a contraposio de diversos textos antigos ou de

    estudiosos da sofstica, seno analisar a viso que o Iscrates enquanto autor de Contra os

    sofistas considerou especfico destes.

    Em primeiro lugar, durante todo o discurso, Iscrates no coloca uma definio clara

    do que um sofista. Pelo contrrio; ele estabelece trs tipos diferentes, os quais ele ataca. Os

    primeiros so os ersticos; os segundos, os que se ocupam dos discursos polticos; e por fim,

    aqueles que escreveram tratados (technai). Comearei pelos ltimos, visto que assim

    evoluirei em ordem de importncia para a resoluo de nossas problemticas.

    Os que escreveram tratados so abordados apenas no fim do discurso isocrtico, e a

    eles so dedicadas a eles apenas umas poucas consideraes.25 Iscrates afirma que estes

    sofistas vieram antes de ns, e que tiveram a ousadia de escreverem tratados. Afirmaram

    poder ensinar a arte de litigar. bastante difcil precisar a quem Iscrates se dirige; ele no

    tinha o costume de citar seus oponentes, o que prejudica bastante na identificao; alm do

    25 ISCRATES, Contra os sofistas, 19-20.

  • 16

    mais, no sobreviveram at ns tratados de retrica anteriores a Iscrates. Mas a informao

    relevante que aqui podemos encontrar que, para este, os escritores de tratados so ainda

    inferiores aos ersticos, pois mesmo estes podendo causar males, ao menos prometem o

    ensino da virtude (arete) e da sabedoria (sophrosyne), enquanto os que escrevem tratados no

    passam de professores de intriga e cupidez.

    A crtica aos que ensinam os discursos polticos j merece ser levada mais em

    considerao. Eis suas palavras:

    Devemos, no entanto, criticar no somente a eles [aos ersticos], mas tambm aos que prometem ensinar os discursos polticos. Pois estes, sem se preocuparem com a verdade (aletheia), pensam que a arte (techne) consiste em atrair o maior numero de pessoas possvel, por conta de sua baixa remunerao e da grandiloquncia de suas declaraes, e receber delas alguma coisa. Sendo ignorantes, acreditam que tambm os outros o sejam, a ponto de escreverem discursos piores do que aqueles que um leigo improvisaria. Prometem, entretanto, fazer de seus alunos oradores to hbeis que no deixaro escapar nenhum argumento possvel de qualquer assunto.26

    Podemos ler vrios elementos de grande importncia para a criao da imagem

    isocrtica do sofista. Em primeiro lugar, a sua crtica queles que fazem discursos polticos

    que eles no se preocupam com a verdade (aletheia). Logo aps, critica novamente a baixa

    remunerao solicitada por esses educadores e a grandiloquncia das suas promessas, visando

    apenas atrair mais e mais alunos. E, por fim, faz uma crtica pungente capacidade desses

    educadores e possibilidade de formar oradores cujos argumentos no escapem acerca de

    qualquer assunto.

    Se lembrarmo-nos das citaes de Xenofonte e de Aristteles, em Memorveis e nas

    Refutaes sofsticas, presenciaremos argumentos semelhantes em Iscrates: assim como

    Aristteles realiza uma censura sofstica por julgar que esta situa-se apenas no mundo das

    aparncias, tambm Iscrates censura a ausncia de preocupao com a verdade daqueles que

    ensinam os discursos polticos, e alerta para a completa despreocupao dos escritores de

    tratados com a virtude e a sabedoria. E, embora de modo praticamente oposto a Xenofonte

    este considera a atividade sofstica como uma prostituio pelo fato de vender a sabedoria;

    por outro lado, Iscrates considera uma promiscuidade vender to grande bem por custos

    26 ISCRATES, Contra os sofistas, 9.

  • 17

    baixos , Iscrates no concorda com a reduo da paideia a apenas uma atividade comercial

    lucrativa, onde o que realmente interessa atrair um grande nmero de alunos.

    A repulsa e a desconfiana com relao sofstica ainda podem ser encontradas de

    maneira muito clara no Cinegtico, de Xenofonte:

    Os sofistas falam para enganar e escrevem para o seu prprio benefcio e no so teis de forma alguma a ningum. No existe nenhum deles que se tenha tornado sbio, nem que seja sbio, mas basta a cada um ser chamado de sofista, o que junto dos que pensam bem como uma injria. Por conseguinte, aconselho-te a que te protejas dos ensinamentos dos sofistas e no desprezes as reflexes dos filsofos.27

    O termo filsofo, ao que tudo indica, sempre acompanhado de um significado neutro

    ou positivo. Por outro lado, o sofista est associado ao engano e a degradao moral. Creio

    que as duas coisas contam para o Iscrates que elaborou o Contra os sofistas: por um lado,

    Iscrates deliberadamente quis evitar o sentido negativo da definio do sofista; por outro,

    Iscrates realmente discordava e, mesmo que possusse algumas convergncias e heranas da

    tradio sofstica, acreditava-se realmente no pertencente a ela.

    2.6 NATUREZA E ENSINO

    Na crtica daqueles que ensinam os discursos polticos, novamente Iscrates censura o

    exagero das promessas desses sofistas. Na realidade essa crtica faz parte de uma discusso

    muito mais ampla: qual o papel da educao (paideia) e da natureza (physis) na formao de

    um indivduo?

    Segundo Romilly, os sofistas possuam uma confiana muito grande em suas

    habilidades. Como no tinham rivais em seu modelo intelectual de educao o que j no

    ser verdade no choque entre Iscrates e Plato consideravam-se capazes de prover toda a

    educao necessria nesse modelo. Suas lies tinham o intuito de produzir oradores

    brilhantes, com mentes aguadas. Com isso, no situam muitos limites para a sua paideia e

    27 XENOFONTE, Cinegtico, 13, 8.

  • 18

    diziam poder transmitir o seu ensino de forma direta e efetiva; alm disso, afirmavam ser

    capazes de falar tanto na techne oratria quanto nas particulares, a partir de regras que

    poderiam ser facilmente aprendidas.28

    Plato esboou um Grgias no dilogo homnimo capaz de responder a qualquer

    pergunta que lhe fizessem.29 Essa possibilidade da existncia de uma tcnica que fizesse

    qualquer homem capaz de falar e pensar de modo convincente causava um sentimento de

    hostilidade aos sofistas, tanto pela possibilidade de desvinculao entre o discurso e a busca

    pela verdade quanto ao poder que esses homens teriam de, em troca de uma remunerao,

    ensinar qualquer um a ser persuasivo acerca de qualquer coisa.

    A crtica realizada por Iscrates s promessas excessivas daqueles que ensinam os

    discursos polticos est vinculada discusso de at onde a educao pode alterar a natureza

    de um indivduo. A sociedade aristocrtica considerava a virtude inata, por causalidade do

    nascimento ou hereditariedade. A maneira de fortalecer a virtude na prtica era a imitao dos

    ancestrais. Com a educao sofstica, sobreveio uma inovao: a possibilidade de colocar o

    ensino em condies de alterar a natureza, considerando que a virtude poderia ser ensinada. A

    questo que se coloca : a natureza o elemento preponderante ou o ensino?

    Romilly sustenta ainda que, entre os primeiros sofistas, no deve ter acontecido uma

    substituio do ensino pela natureza30 O fato que Iscrates tinha uma posio muito firme

    acerca desse assunto, a qual ele j expe no Contra os sofistas:

    que a capacidade de fazer discursos e de todas as outras aes surgem naqueles que tem boas disposies naturais, e naqueles que se exercitaram pela prtica, mas a educao os torna mais hbeis e mais bem preparados para a investigao, porque so instrudos a procurar no lugar adequado aquilo que encontrariam por acaso. Os que tem natureza menos rica no poderiam, pela educao, chegar a ser bons debatedores nem fazedores de discursos, mas ela pode faz-los progredir e torn-los mais ponderados em diversos pontos.31

    Se pudermos falar de algo semelhante a uma operao educacional, ou seja, os

    componentes influentes no processo de formao de um indivduo ou filsofo para

    28 ROMILLY, Jacqueline de. The great sophists in Periclean Athens. Traduzido por Janet Lloyd. New York: Oxford University Press, 1998. p. 34-35. 29 PLATO, Grgias, 447d. 30 ROMILLY, op. cit., p. 45-50. 31 ISCRATES, Contra os Sofistas, 14-15.

  • 19

    Iscrates, dividiramos em trs partes: a natureza do indivduo (physis); a experincia

    (empeiria) e a educao (paideusis). A capacidade de fazer discursos pode aparecer tanto nas

    pessoas que so dotadas dessa capacidade por natureza quanto naquelas que tem experincia

    no assunto. O papel da educao limita a tornar essas pessoas mais hbeis e mais bem

    preparadas para procurar no lugar adequado o que poderiam encontrar por acaso. Portanto, a

    educao no pode alterar a natureza, mas pode fazer que os indivduos progridam em suas

    capacidades.

    Na Antdosis, Iscrates declara que nenhum professor tem a cincia (episteme) que

    permite formar atletas ou oradores capazes de fazer o que desejarem. O professor pode

    contribuir no resultado, mas para este ser considervel, necessrio que venha acompanhado

    da natureza bem disposta e do treinamento.32 Alm disso, Iscrates afirma que a natureza o

    elemento preponderante na formao do homem. A educao, para ele, tem a menor parcela

    entre os trs componentes do processo formativo, afirmando que se algum tomar lies de

    oratria e domin-las com perfeio, talvez possa tornar-se um orador mais agradvel do que

    a maioria; contudo, se frente multido lhe faltar a ousadia, no pronunciar uma palavra.33

    Portanto, Iscrates critica a sobrevalorizao do ensino no processo educativo: a isso

    que ele se refere quando fala dos excessos de alguns sofistas. O que Iscrates faz limitar a

    influncia da educao, para torn-la, por outro lado, mais segura de suas prprias

    capacidades. Mas ainda faltou uma anlise da censura de Iscrates aos ersticos; censura a

    qual eu considero ser capital para a resoluo da nossa busca pela imagem isocrtica dos

    sofistas, e a sua prpria relao com esta mesma tradio. Contudo, julgo adequado manter a

    questo suspensa por alguns instantes, para que possamos resolv-la com mais propriedade.

    32 ISCRATES, Antdosis, 185. 33 Ibid., 187-194.

  • 20

    3 ANTILGICA E CONHECIMENTO

    3.1 HITLER

    H algum tempo, tomei conhecimento de uma propaganda da Folha de So Paulo,

    produzida no ano de 1987, chamada Hitler. No sou nenhum grande conhecedor de

    comerciais televisivos e, sinceramente, eles me passavam um tanto quanto despercebidos.

    Todavia, o comercial Hitler tinha algo de importante que me chamou a ateno. A imagem

    surgia em pontilhados pretos, graves, sobre uma superfcie branca aos moldes da

    pigmentao de um jornal impresso; um narrador digno de documentrio histrico professa

    algumas frases, enquanto o plano da imagem distancia-se, lentamente, revelando uma figura:

    Este homem pegou uma nao destruda, recuperou sua economia e devolveu o orgulho ao seu povo. Em seus quatro primeiros anos de governo, o nmero de desempregados caiu de 6 milhes para 900 mil pessoas. Esse homem fez o Produto Interno Bruto crescer 102% e a renda per capita dobrar. Aumentou os lucros das empresas de 175 milhes para 5 bilhes de marcos; e reduziu uma hiperinflao a no mximo 25% ao ano. Esse homem adorava msica e pintura, e quando jovem imaginava seguir a carreira artstica. possvel contar um monte de mentiras dizendo s a verdade. Por isso, preciso tomar muito cuidado com a informao que voc recebe. Folha de So Paulo: o jornal que mais se compra e nunca se vende. 34

    Durante todo o discurso exposto pelo narrador, rufam tambores ritmicamente,

    fazendo-nos ser tomados por uma sensao de expectativa. E qual no a surpresa ao vermos,

    aps o afastamento do plano de imagem, a face de Adolf Hitler. Alm de uma grande idia,

    muito persuasiva, para reivindicar a necessidade de uma informao de qualidade, o

    comercial televisivo despertou-me outra reflexo.

    A frase por mim destacada o ponto de partida. As afirmaes colocadas pelo

    narrador so verdicas, e o choque incitado ao final do comercial devido ao rosto de uma

    figura que certamente dispensa apresentaes. No podemos dizer que este discurso acerca de

    34 HITLER. Dirigido por Washington Olivetto, Gabriel Zellmeinsteir, Andrs Bukowinski. ABA, 1987. Disponvel em: http://www.youtube.com/watch?v=6t0SK9qPK8M. Acesso em: 21 out. 2010.

  • 21

    Hitler seja falso; o que causa incomodo a informao oculta que, se no apresentada, altera

    o julgamento sobre dado objeto.

    Se associssemos Hitler ao Holocausto, ao autoritarismo e aos horrores da Segunda

    Guerra Mundial, teramos outra significao de sua personalidade. A relao entre o discurso

    e as coisas sobre as quais o discurso fala perigosa: ao mesmo tempo em que no podemos

    esgotar as possibilidades do que pode ser dito sobre algo, o que ocultamos ou aquilo que no

    sabemos pode prejudicar catastroficamente o nosso julgamento e o de outrem. E mais: nunca

    haver um discurso que esgote, para sempre e para todos, as possibilidades de um objeto

    seja Hitler, Gandhi, a classe operria, a Revoluo Francesa.... Por fim, esse objeto

    passvel das mais diversas significaes. E essas significaes podem at mesmo se opor,

    aparentemente: ao sermos questionados sobre a fineza de esprito de Hitler, podemos

    argumentar segundo a sua paixo pela arte, por um lado; por outro, podemos colocar a

    barbrie de um genocida. possvel que criemos dois discursos completamente distintos no

    que se refere a uma determinada questo, acerca de dado objeto, sem necessariamente

    afirmarmos algo que seja falso.

    Este problema da relao entre o discurso e as coisas as quais ele se refere no nem

    um pouco recente, e capital para estabelecermos as relaes entre a filosofia e a sofstica, se

    que podemos separ-las claramente.

    3.2 O CARTER ANTILGICO DO MUNDO FENOMNICO

    Como eu dissera no final do primeiro captulo, a questo da crtica isocrtica aos

    ersticos ficaria em suspenso. Aprofundare-me nela pouco a pouco, devido a sua

    complexidade e a sua importncia no entendimento da sofstica.

    O termo erstica derivado do substantivo eris, que significa luta, conflito, disputa ou

    controvrsia. Quando Plato usa o termo, ele significa a obteno da vitria atravs da

    argumentao. A erstica no uma tcnica de argumentao. Ela pode fazer o uso de

  • 22

    tcnicas de argumentao para atingir o seu objetivo prtico, ou seja, o sucesso no debate ou

    ao menos a aparncia de sucesso.35

    Tendo em vista o objetivo puramente pragmtico da erstica, ela poderia fazer uso de

    falcias, ambigidades lingsticas, monlogos longos e irrelevantes, visando conduzir o

    oponente ao silncio. Plato geralmente usa o termo erstica com tons de desaprovao.

    Em Kerferd, na sua obra O movimento sofista, uma das chaves para a compreenso

    do fenmeno sofstico a diferenciao entre a erstica, a antilgica e a dialtica. Vejamos a

    definio da antilgica. Kerferd afirma que, de acordo com Plato, a antilgica a arte que

    consiste em que uma coisa seja vista, pelas mesmas pessoas, possuindo predicados diferentes,

    sejam eles opostos ou contraditrios. Se que ela se trata de uma arte, ela se aplica a qualquer

    coisa sobre as quais falem os homens. Lembremos do exemplo dado acima da propaganda da

    Folha de So Paulo: sem entrarmos no mrito da validade dos discursos, possvel que, nos

    assuntos humanos, tenhamos discursos opostos sobre a mesma coisa, partindo de diferentes

    pontos de vista.

    Plato no tem em grande conta a antilgica, e a atribui aos sofistas. Contudo, no a

    prpria antilgica que define o sofstico em Plato.36 Em si mesma, ela no desonesta e nem

    visa o engano:

    A antilgica, usada por Plato em sentido tcnico, difere da erstica em dois aspectos importantes. Primeiro, seu significado diferente e, segundo, a atitude de Plato a seu respeito difere da sua atitude em relao erstica. Antilgica consiste em opor um logos a outro logos, ou em descobrir ou chamar ateno para a presena de uma oposio em um argumento, ou em determinada situao. A caracterstica essencial a oposio de um logos a outro, por contrariedade ou por contradio. Segue-se da que, ao contrrio da erstica, a palavra, quando usada numa argumentao, constitui uma tcnica bem especfica e bem definida, a saber, a de partir de um dado logos digamos da posio de um oponente, e passar a estabelecer um logos contrrio, ou contraditrio, de tal maneira que o oponente ter de aceitar ambos os logoi, ou pelo menos abandonar a sua primeira posio.37

    Em Plato, a antilgica a explorao das tendncias contraditrias da linguagem. Ele

    no a considera como o mtodo adequado de debate, achando-o inadequado, em detrimento

    35 KERFERD, G.B. O movimento sofista. Traduo de Margarida Oliva. So Paulo: Edies Loyola, 2003. p. 109. Ver tambm: PLATO, Teeteto, 167e. 36 Ibid., p. 106-107. 37 Ibid., p. 110.

  • 23

    da dialtica. Falta antilgica a capacidade de discusso partindo da tcnica de dividir as

    coisas em espcies, sendo insuficiente apenas o mtodo da explorao das contradies

    verbais. Alm disso, existe um receio do abuso que os jovens poderiam fazer da antilgica:

    entretanto, este receio envolveria tambm a prpria dialtica. Se este estudo fosse realizado

    de forma muito precoce, poderia haver uma banalizao dos questionamentos e uma

    supresso da autoridade como conseqncia.38 Plato enfatiza constantemente o perigo de se

    utilizar os mtodos de discusso apenas como em um jogo, e no com fins da busca pela

    verdade. Para Kerferd, Plato no est condenando a antilgica. Ela est inserida no prprio

    elenchus socrtico ou seja, uma tcnica de argumentao que busca a resposta de uma

    questo, como o que x?, onde Scrates questiona os seus interlocutores at conduzi-los a

    um estado de aporia, deixando-os sem sada diante de afirmaes contraditrias feitas por

    eles mesmos. O que Plato critica o uso desse elenchus com propsitos vulgares, que no a

    busca dialtica pelo conhecimento.

    A antilgica no apenas uma questo vinculada argumentao. Em Plato, o

    prprio mundo fenomnico est sempre em estado de mudana e fluxo, como se estivesse se

    revolvendo entre ser uma coisa e no s-la. Alm disso, essas mudanas, as quais o mundo

    fenomnico suscetvel, no ocorrem entre dois pontos no tempo, seno que

    simultaneamente:39

    Isso mostra duas coisas. Primeiro, a oposio entre logoi pode ser simultnea no sentido de que os logoi so opostos no um depois do outro mas ao mesmo tempo. Em qualquer dado momento, o mesmo homem, por exemplo, ao mesmo tempo alto e baixo, dependendo de com quem ele comparado. Segundo, a oposio entre logoi, que o ponto de partida para a antilgica, aplica-se no somente a argumentos opostos, mas tambm aos fatos do mundo fenomenal aos quais se referem os argumentos.40

    a partir do carter antilgico do mundo fenomnico, ou seja, da sua mutabilidade e

    fluidez, e da possibilidade de uma multiplicidade de discursos bastante diversos acerca de um

    mesmo objeto, que Plato expressa uma grande desconfiana neste mundo. Segundo Plato,

    este mundo incapaz de funcionar enquanto objeto de conhecimento seguro, graas a sua

    38 PLATO, Repblica, 537e- 539a. 39 KERFERD, G.B. O movimento sofista. Traduo de Margarida Oliva. So Paulo: Edies Loyola, 2003. p. 110-115. 40 Ibid., p. 115-116.

  • 24

    instabilidade. A viso platnica do conhecimento que este deve ser firme e imutvel,

    herana da tradio parmenideana.

    Tanto Plato quanto os sofistas parecem estar de acordo com o carter antilgico dos

    fenmenos. A discordncia entre eles se deve a que Plato no acredita que, com essa

    constatao, o conhecimento da verdade fique impossibilitado. Ele afirma que o

    conhecimento precisa ser buscado em outro lugar, onde possa haver entidades mais

    permanentes. Para isso, Plato sugere a existncia de um plano das Idias.41

    O Mundo das Idias, de certa forma, soluciona o problema entre a relao do logos

    com as coisas s quais ele se refere. Plato, deste modo, no deprecia completamente a

    linguagem, e nem abandona completamente o mundo da experincia, mas cria um outro

    mundo para alm dele, que satisfaa os requisitos de servir como objeto de referncia e

    significado lingstico. Essas idias, em Plato, no so deliberadamente imaginadas, mas tem

    existncia real. Os objetos do mundo sensvel, por outro lado, passam a servir como

    pertencentes a uma esfera de referncia secundria.42

    Agora momento de lembrarmos da oposio isocrtica entre doxa e episteme.

    Desconsiderando a possibilidade de ser da natureza humana um conhecimento seguro, ou

    seja, uma episteme, acerca dos assuntos que se referem ao mundo humano, e colocando a

    doxa como o tipo de conhecimento atravs do qual os homens devem guiar-se, Iscrates se

    depara com o problema supracitado da caracterstica antilgica do mundo fenomnico. No

    defendendo, a princpio, um mundo referencial com entidades estveis, como o Mundo das

    Idias platnico, Iscrates estaria perto de uma reduo de todos os objetos de conhecimento

    ao mundo fenomenolgico? E seria por isso que ele reduziria a possibilidade de conhecimento

    s doxai, ou seja, devido ao carter antilgico do mundo dos assuntos humanos?

    Isso o levaria a sofstica. Seria relativismo?

    41 41 KERFERD, G.B. O movimento sofista. Traduo de Margarida Oliva. So Paulo: Edies Loyola, 2003. p. 117. 42 Ibid, p. 133.

  • 25

    3.3 PROTGORAS

    Antes de concluir a imagem traada pelo Iscrates do Contra os sofistas a respeito

    dos prprios sofistas, senti a necessidade de regressar ao modo como estes percebiam a

    relao entre o discurso e as coisas, para ento descobrir o que h de divergente entre a

    filosofia platnica e os ditos sofistas. S assim creio que ser possvel entendermos o sentido

    que Iscrates confere aos ersticos, e assim poderemos ter um posicionamento mais claro

    acerca do distanciamento de Iscrates daquela cultura. A crtica aos ersticos de Iscrates est

    centrada na distino entre episteme e doxa, e parece fazer referencia a uma questo de cunho

    epistemolgico.

    Agora momento de nos adentrarmos mais profundamente naquilo que especfico

    dos sofistas. Plato, no Crtilo, atribui a Protgoras a j famosa frase o homem a medida

    de todas as coisas.43 Creio que ser produtivo analisar mais de perto o pensamento de

    Protgoras. Essa frase bastante ilustradora da suspeita de um relativismo sofstico.

    Protgoras nasceu em Abdera, no norte da Grcia. Acredita-se que chegou a Atenas

    por volta de 450 a.C., j que em 443 a.C. estava associado com Pricles. De acordo com o

    Menon, de Plato, ele lucrou mais do que Fdias e mais 10 escultores juntos.44 Afirmava ser

    mestre da politike techne, e ensinava a administrao dos prprios negcios e os da polis.

    Sexto Emprico, nos Esboos Pirrnicos, descreve algumas de suas idias, as quais

    reproduzirei:

    Tambm Protgoras pretende que o homem seja a medida de todas as coisas, das que so que so, e das que no so que no so. Com medida quer dizer critrio, e com coisas quer dizer objetos. Assim, ele pode afirmar que o homem o critrio de todas as coisas, das que so que so, das que no so que no so. Tambm por causa disto estabelece apenas o que aparece a cada um e assim introduz o princpio da relatividade. Este diz que a matria fluida e que, enquanto ela flui, se produz continuamente uma substituio dos eflvios e que as sensaes se modificam e se alteram de acordo com a idade e as outras disposies do corpo. Afirma tambm que as razes de todos os fenmenos se encontram na matria, de modo que a matria, na medida em que depende dela mesma, em potncia tudo enquanto aparece a todos.45

    43 PLATO, Crtilo, 385. 44 PLATO, Menon, 91d. 45 SEXTO EMPRICO, Escritos pirrnicos, 1, 216-218.

  • 26

    Segundo Sexto Emprico, portanto, Protgoras sustentava que as razes de todos os

    fenmenos encontram-se na matria, e que esta mesma matria fluida. As prprias

    sensaes daqueles que percebem essa matria se alteram, dependendo de fatores

    especficos desses perceptores. Se o homem a medida de todas as coisas, todas as coisas

    so como parecem aos homens, e a existncia de uma realidade exterior ao homem s se daria

    enquanto percepo dessa realidade. atribudo a Protgoras que todas as coisas que

    aparecem aos homens existem, as que no aparecem no existem.46 Enquanto em Plato a

    legitimao ontolgica est no Mundo das Idias, em Protgoras este mundo no existe, e

    existe apenas a percepo dos homens do mundo fenomenolgico. E essa percepo tudo.

    Plato, no Teeteto, tambm atribui a Protgoras a crena de que no haveria

    opinies verdadeiras e falsas, e sim opinies melhores e piores.47 H uma ntida

    diferenciao entre o critrio de utilidade e o de verdade. Iscrates, como j vimos, valoriza o

    mundo das doxai. Para melhor situarmo-no perante a sofstica, seria adequado que

    analisssemos a possibilidade de ele restringir o seu conhecimento ao mundo fenomnico ou a

    crena na existncia de uma verdade para alm da pura sensao. Alm disso, seria

    imperativo diferenciar se o seu interesse est na busca de uma verdade ou na busca de algo

    til.

    3.4 CRTICA DE ISCRATES AOS ERSTICOS

    Faamos finalmente o retorno crtica de Iscrates aos ersticos.

    Como vimos no Contra os sofistas, Iscrates no procede a uma crtica dos sofistas

    enquanto um grupo uniforme e coerente, mas divide-os em trs tipos: os escritores de

    tratados, aqueles que ensinam os discursos polticos e os ersticos. Aos primeiros a crtica

    realizada bastante breve, e o seu ponto fundamental est na despreocupao completa com a

    virtude. Aos que ensinam os discursos polticos, a principal crtica est em sua

    despreocupao com a aletheia, ou seja, a verdade. Estes tambm so criticados por terem

    46 SEXTO EMPRICO, 1, Escritos pirrnicos, 219. 47 PLATO, Teeteto, 167b.

  • 27

    como nico interesse agregar um grande nmero de alunos e lucrar com isso, alm de, sem

    tais capacidades, prometerem fazer de todos grandes oradores.

    Contra os ersticos, o primeiro argumento que eles fingem buscar a aletheia, mas

    desde o comeo do seu programa pem-se a mentir.48 Logo aps tal colocao, Iscrates

    afirma:

    Pois acredito ser evidente para todos que prever o futuro no prprio da nossa natureza, e estamos to longe de tal sabedoria que Homero, o homem mais reconhecido por sua sabedoria, representou algumas vezes os deuses deliberando sobre o futuro: no que ele conhecesse os seus pensamentos, mas porque queria nos indicar que para os homens isto impossvel.49

    Como j observamos, o estudo de Homero era parte fundamental na formao do

    homem aristocrtico. E a citao de Homero em um texto, alm do carter de argumento de

    autoridade, remete a uma cultura comum a provavelmente todos os leitores de Iscrates,

    certamente uma elite letrada capaz de pagar por suas aulas ou seus prprios adversrios. Com

    esta citao, Iscrates ilustra sua censura aos ersticos: acusa a sua promessa de verdade de

    ser falsa, devido aos ersticos prometerem o ensino do que fazer, de um conhecimento que

    garantisse a deliberao correta. De modo que os prprios deuses eram representados

    deliberando sobre o futuro, em Homero, sendo por natureza superiores aos humanos, como

    estes poderiam reivindicar um conhecimento de tal gnero?

    Outra censura aos ersticos a promessa de felicidade (eudaimonia) que estes fazem

    aos jovens, e o ensino da virtude (arete). Considerando Iscrates que estas promessas esto

    muito alm do que de fato qualquer ser humano capaz de ensinar, ele critica o fato de os

    ersticos cobrarem um preo muito baixo por bens to grandes, e, alm disso, afirmarem no

    ter necessidade de bens e de riquezas.50

    Portanto, Iscrates busca uma contradio no programa dos ersticos: embora estes

    afirmem ser possvel a transmisso do conhecimento da virtude, pedem fiadores aos seus

    alunos. Como algum que promete transmitir o conhecimento da virtude pode no confiar em

    seus prprios discpulos?

    48 ISCRATES, Contra os sofistas, 1. 49 Ibid., 2. 50 Ibid, 3-8.

  • 28

    A grande separao entre Iscrates e os ersticos est no fato de que estes se gabam de

    possuir a episteme, mas observam aqueles que utilizam as doxai concordarem entre si. Para

    Iscrates, portanto, o uso da doxa no indicador da sofstica, pelo contrrio.

    Em resumo, Iscrates caracteriza os ersticos por afirmarem possuir um conhecimento

    que possibilita o que fazer e o qual prov a felicidade (eudaimonia). Contudo, Iscrates

    considera que tal conhecimento no da natureza humana, e essa afirmao no passa de

    mentira. As prprias contradies em que os ersticos se colocam, com a desconfiana na

    integridade de seus alunos, desmerecem o seu ensino, o qual afirmaria muito mais do que a

    sua verdadeira capacidade.

    3.5 CONTEXTOS

    Uma coisa buscar uma reconstituio do que foram os sofistas de fato, assim como

    os filsofos. Outra coisa buscar as representaes ou os textos elaboradas sobre,

    contra ou para eles. Considerando que a histria sustenta-se por provas, e que as provas so

    discursos (em seu sentido mais amplo) feitos sobre um determinado passado, devemos estudar

    este sem a ambio de recuper-lo. O que almejo aqui que haja uma ntida separao entre o

    passado, por um lado, enquanto devir enquanto algo que existiu materialmente e j no

    mais da fonte histrica, por outro lado um sobrevivente do passado.

    Quando nos deparamos com uma fonte como o discurso Contra os sofistas, preciso

    pensar que ele constitui um texto escrito num presente, que para ns passado. Quando

    Iscrates redigiu o discurso, possua toda a carga de experincias de sua vida, toda a sua

    percepo cotidiana da sociedade ateniense; seus conflitos intelectuais com os seus rivais

    eram vivos, assim como a nossa vida. O texto Contra os sofistas se relaciona com aquele

    presente dos tempos de Iscrates, e no o representa como um todo: uma viso do autor,

    com as palavras por ele escolhidas, segundo o seu entendimento do mundo e segundo as suas

    intenes de se relacionar com ele.

    Como j dissera, o meu objetivo no traar uma definio sobre o que foi a

    sofstica, ou o que foi a filosofia nos tempos de Iscrates, e sim resolver a questo sobre

    por que Iscrates afirma-se enquanto philosophos e qual a conseqncia dessa afirmao,

  • 29

    assim como os seus contrrios, ou seja: por que Iscrates se afasta da sofstica, e quais so as

    implicaes dessa deciso.

    Mesmo que eu buscasse uma compreenso do que foi o movimento sofstico como um

    todo, deveria considerar que todas as fontes de que eu disporia, por mais variadas que fossem,

    responderiam a todas as prerrogativas que eu citei acima. Todos seriam discursos situados

    naquele passado que fora presente, e neste presente estariam mergulhados e maculados por

    desejos, intencionalidades e involuntariedades. Este o material da histria. E a produo

    historiogrfica um texto com base nestes textos do passado, maculados pelo pela produo

    do historiador no presente e pelo produtor da fonte no passado. Parece que, se diferenciarmos

    a histria enquanto discurso acerca do passado e como discurso, nunca passvel de uma

    apreenso total das coisas do passado enquanto o devir um presente que foi e que no

    mais o estudo das tenses isocrticas entre a filosofia e a sofstica, e o conflito entre

    diferentes pontos de vista a respeito do conhecimento e do discurso (como o homem medida

    de todas as coisas, de Protgoras, oposto ao mundo das Idias, platnico), no ficamos

    nada distantes dos nossos debates historiogrficos atuais acerca da epistemologia histrica e a

    questo da narrativa.51

    Para concluirmos a interpretao sobre a viso isocrtica dos sofistas, precisamos

    compreender que o discurso no um acontecimento isolado; ele est interligado com

    diversas questes as quais busca dar uma resposta. Leiamos uma passagem de Olivier Reboul,

    um dos responsveis pela reabilitao contempornea da retrica:

    Se a retrica a arte de persuadir pelo discurso, preciso ter em mente que o discurso no e nunca foi um acontecimento isolado. Ao contrrio, ope-se a outros discursos que o precederam ou que lhe sucedero, que podem mesmo estar implcitos, como o protesto silencioso das massas s quais se dirigem ao ditador, mas que contribuem para das sentido e alcance retrico ao discurso. A lei fundamental da retrica que o orador aquele que fala ou escreve para convencer nunca est sozinho, exprime-se sempre em concordncia com outros oradores ou em oposio a eles, sempre em funo de outros discursos.52

    51 Sobre o contexto histrico ser ele mesmo textualizado: LACAPRA, Dominick. Repensar la historia intellectual y leer textos. In: PALT, Elas Jos. Giro linguistico e histria intelectual. Buenos Aires: Univ. Nacional de Quilmes, 1998. p. 240-242. 52 REBOUL, Olivier. Introduo retrica. Traduo de Ivone Castilho Benedetti. So Paulo: Martins Fontes, 1998. p. XVIII-XIX.

  • 30

    Portanto, preciso inserir Iscrates em toda a discusso do relativismo sofstico, da

    possibilidade do ensino da virtude, dos limites da educao, da possibilidade do conhecimento

    da episteme ou da restrio a doxa. Alm disso, concordando com Reboul e considerando a

    possibilidade de uma funo hermenutica da retrica, preciso, sobretudo, captar o no-dito,

    aquilo que implcito ao discurso. As palavras por si mesmas no oferecem todas as

    respostas.

    H de se considerar que no processo da produo do discurso qualquer que seja,

    mas em nosso caso o Contra os sofistas existem, segundo a tradio retrica, trs

    elementos, a saber: o ethos, o pathos e o logos.

    Em primeiro lugar, na relao retrica, h sempre uma questo, que o motivo da

    diferena entre o orador-autor e o auditrio-leitor. O logos compreende tudo aquilo que est

    em questo, motivo do discurso existir. Todos os discursos provem de uma questo, no

    necessariamente expressa de forma explcita em seu interior. O pathos a fonte das questes,

    as emoes, as opinies ou as paixes. um conjunto de valores implcitos, que alimenta as

    indagaes dos indivduos. Por fim, o ethos a resposta, a capacidade de concluso de uma

    questo potencialmente infinita, a resposta oferecida para as questes levantadas pelo

    pathos.53

    claro que um discurso no contm necessariamente apenas uma questo que precisa

    ser negociada ou respondida. Contra os sofistas pode ser a resposta de Iscrates, enquanto

    ethos, questo o que so os sofistas?, assim como quais os limites da educao?, ou

    talvez principalmente porque a educao de Iscrates supera as outras?. Mas para a resposta

    da nossa questo, de como Iscrates percebe a sofstica, consideremos que seja esta a

    indagao.

    Alm disso, precisamos ter em mente os leitores de Iscrates: seu discurso

    claramente programtico, no tendo nem mesmo uma grande argumentao de suas idias.

    Quem estaria interessado em sua leitura certamente seriam seus candidatos a alunos, assim

    como as pessoas vinculadas ao crculo intelectual e educacional ateniense. Logo, a sua

    estratgia intensa de se separar dos demais tem a clara inteno de conquistar alunos para a

    sua prpria escola; o que explica o tom veemente do discurso.

    53 MEYER, Michel. A retrica. So Paulo: Editora tica, 2007. p. 34-45. Ver tambm: REBOUL, Olivier. Introduo retrica. Traduo de Ivone Castilho Benedetti. So Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 47-49.

  • 31

    Se lembrarmos, Iscrates subdivide os sofistas em trs categorias: os ersticos, os que

    ensinam discursos polticos e os que escreveram tratados.

    Englobando o conjunto dos sofistas, as crticas de Iscrates se dividem da seguinte

    maneira:

    Crtica s aspiraes exageradas dos sofistas e a supervalorizao de suas prprias

    capacidades enquanto educadores;

    Crtica despreocupao com a virtude (arete) e a sabedoria (sophrosyne);

    Crtica pouca importncia dada verdade (aletheia);

    Crtica aos educadores que se preocupam apenas com a conquista de uma grande

    quantidade de alunos e com o lucro proveniente disto;

    Crtica a aqueles que almejam a episteme; valorizao do conhecimento enquanto

    doxa.

    Todas estas censuras, e a razo de ser do prprio discurso, voltam-se para o objetivo

    de provar que o ensino da escola isocrtica superior s demais, e, com isso, conquistar os

    seus prprios alunos. Iscrates assume um ethos de bastante agressividade, como podemos

    perceber em diversos momentos do discurso: quem no desprezaria e no detestaria os

    ersticos?54; Sendo ignorantes, acreditam tambm que os outros o sejam, a ponto de

    escreverem discursos piores do que um leigo improvisaria55; gostaria que esses charlates

    se calassem56. Essa agressividade se esclarece simplesmente por um fato: Iscrates no

    escreve Contra os sofistas para que os seus opositores mudem de idia, e concordem com

    suas opinies; se assim o fosse, o discurso no seria to pequeno e traria consigo um processo

    argumentativo muito maior que a simples constatao de problemas na educao sofstica. Ele

    escreve esse discurso para a juventude aristocrtica ateniense, capaz de pagar por suas aulas, e

    que em certo momento deliberaria acerca de qual modelo de ensino gostaria para si e para a

    sua formao, ou para os responsveis pela educao dessa juventude. Se h algum texto onde

    Iscrates argumenta com mais preciso sobre suas posies e a sua filosofia, a Antdosis.

    54 ISCRATES, Contra os sofistas, 1. 55 Ibid., 9. 56 Ibid., 11.

  • 32

    Algo nos chama ateno nessa crtica sofstica realizada por Iscrates: se

    analisarmos o Contra os sofistas, perceberemos que, para Iscrates, nem todos os sofistas

    reduzem o seu objeto de conhecimento s doxai. Alguns acreditam na possibilidade da

    episteme. Iscrates desconfia desse conhecimento mais preciso, e ainda afirma claramente que

    a prtica da justia (dikaiosyne) no pode ser ensinada. Ele acredita que no existe nenhuma

    arte (techne) capaz de inspirar a sabedoria (sophrosyne) e a justia (dikaiosyne) em quem a

    natureza no disps para a virtude (arete).57 Talvez estes sejam pontos extremamente

    conflitantes com a filosofia platnica. E, alm disso, estes elementos, em Iscrates, seriam

    acusados de sofstica.

    Mesmo que Iscrates tenha reduzido a capacidade do conhecimento humano s doxai,

    isto no significa que ele no acredite na possibilidade da verdade. Como j abordamos, uma

    das crticas de Iscrates a aqueles que ensinam os discursos polticos o seu pouco caso com

    a verdade (aletheia). Como Iscrates sustenta as suas doxai? Ou seja: qual o critrio que torna

    uma doxa mais verdadeira que a outra?

    57 ISCRATES, Contra os sofistas, 21.

  • 33

    4 O LOGOS O TRUNFO DO HOMEM

    4.1 O DESAFIO CTICO

    O prprio lugar incmodo de Iscrates entre a filosofia e a sofstica e entre o

    conhecimento de um mundo platnico para alm dos prprios fenmenos e o homem medida

    de todas as coisas de Protgoras pode remeter-nos a discusses da prpria historiografia.

    O surgimento da disciplina histrica remonta antiguidade helnica. E suas origens

    no deixam de ter algum vnculo com a sofstica se no o tem em relao causal, o tem

    enquanto a movimentao intelectual do sculo V. a.C.

    Como j fora colocado anteriormente, esse um perodo em que o saber volta-se para

    o humanismo e para um certo racionalismo, e o surgimento da historiografia tambm

    devedor desse movimento. Torrano situa o surgimento da disciplina histrica como um

    antidoro ao mito; com isso, ele quer afirmar que a histria um contradom ao mito, em que

    se d contra o mito e, desta forma, possivelmente em vez de o mito.58

    O aspecto do mito que o historiador rejeita se denomina em grego mythodes,

    geralmente traduzido como fabuloso. As caractersticas elencadas por Torrano que

    situariam o especfico da histria so quatro:

    Poder-se-iam distinguir quatro traos, a saber: 1) a mudana de sujeito no princpio e como princpio do discurso; 2) a inverso da perspectiva temporal; 3) a atitude que a Histria exige de quem a escreve tendo em vista garantir a verdade mesma do discurso: essa atitude consiste no exame das palavras e das aes mesmas, segundo a aparente necessidade do nexo em que aparentemente se tem em cada caso os falantes, os agentes, as falas e as aes; e, 4) por fim, a explcita questo da causalidade.59

    A histria, ento, um discurso onde aquele que enuncia um homem preocupado

    com o estudo de aes humanas, no mundo humano; pelo contrario, o mito, como os poemas

    58 TORRANO, Jaa. O sentido de Zeus: o mito do mundo e o modo mtico de ser no mundo. So Paulo: Iluminuras, 1996. p. 155. 59 Ibid., p. 156.

  • 34

    homricos, tem como enunciador um aedo inspirado por uma divindade, o qual canta feitos

    em um tempo herico, diverso do nosso mundo cotidiano. Nesse ponto, a histria se constitui

    em oposio ao fabuloso, tendo um compromisso com o acontecimento humano, de fala e de

    ao humanas.

    Uma das grandes crticas aos sofistas era o seu descompromisso com a verdade, por

    possurem apenas uma tcnica que visava persuaso e efetividade, onde o parecer ser era

    prefervel ao ser: para os sofistas, segundo essa crtica, um discurso falso com aparncia de

    verdadeiro seria mais efetivo que um discurso verdadeiro com aparncia precria e inapta.

    A histria se constitui, segundo afirma Torrano, afastando o aspecto fabuloso do mito

    e preocupando-se com um discurso verdadeiro. A acusao de serem os sofistas

    despreocupados com a verdade os colocam no mbito do discurso falso, sem relao com

    alguma realidade, assim como o fabuloso no mito. O prprio Iscrates faz a mesma crtica aos

    sofistas, atacando-os por no se importarem com a verdade (aletheia).60

    O conflito entre o discurso falso e o verdadeiro ainda se mantm ativo na

    historiografia atual. Diante da aproximao da histria com a retrica e a anlise do discurso,

    decorrente do chamado linguistic turn, Carlo Ginzburg percebe uma tendncia de reduo do

    discurso historiogrfico a sua dimenso narrativa, distanciando-se da noo de prova,

    sustentculo do verdadeiro:

    As teses cticas baseadas na reduo da historiografia sua dimenso narrativa ou retrica circulam j h alguns decnios, ainda que as suas razes sejam, como se ver, mais antigas. Como de costume, os tericos da historiografia que as propem pouco se preocupam com o trabalho concreto dos historiadores. Mas estes, tambm, depois de fazerem uma homenagem convencional tendncia lingstica ou retrica em voga, se mostram bem pouco inclinados a refletir sobre as implicaes tericas da sua profisso. Raramente a distncia entre reflexo metodolgica e prtica historiogrfica efetiva foi to grande quanto nos ltimos decnios. Parece-me que o nico modo de super-la tomar a srio o desafio ctico, procurando expressar o ponto de vista de quem trabalha com os documentos, no sentido mais amplo do termo. A soluo que proponho transfere para o mago da pesquisa as tenses entre narrao e documentao. 61

    A crtica de Ginzburg queles que ele denomina cticos se coloca na sua demasiada

    nfase na questo narrativa, que acaba os apartando-os daquilo que consistiria o cerne da 60 ISCRATES, Contra os Sofistas, 9. 61 GINZBURG, Carlo. Relaes de fora: histria, retrica, prova. So Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 13-14.

  • 35

    legitimidade do conhecimento histrico: a prova. Problematizando a retrica dos cticos

    que pode ser associada retrica sofstica baseada na persuaso e criticada por Plato no

    Grgias, por sua nfase nas aparncias62 Ginzburg retorna tradio e resgata a

    Retrica, de Aristteles, para provar que, desde o princpio, a retrica esteve estreitamente

    vinculada ao conceito de prova, agora sob ameaa.63 a volta do fabuloso e do falso

    histria, dominada pela sofstica, reduzida s aparncias e desprovida do seu elemento

    legitimador.

    Carlo Ginzburg assume a crtica de Momigliano, segundo a qual Hayden White

    eliminou a busca da verdade como tarefa fundamental do historiador. Para Ginzburg,

    encontrar a verdade ainda o motivo fundamental de quem quer que se dedique pesquisa,

    inclusive os historiadores. Ainda de acordo com Momigliano, aquele sustenta que os

    historiadores so pagos pela sociedade para indagar sobre acontecimentos de interesse geral,

    cuja realidade e significado no podem ser estabelecidos sem um conhecimento. tarefa do

    historiador a definio dos fatos, incluindo tudo o que se inscreve, de alguma forma, na

    realidade. 64

    Essa analogia entre os historiadores cticos e os sofistas s se sustenta com uma

    premissa: a sofstica apenas logos, apenas discurso, visando efetividade assim como a

    retrica peithous demiourgos platnica , e no possui nenhuma preocupao

    epistemolgica.

    4.2 A ONTOLOGIA E A LOGOLOGIA

    Assim como o exemplo apresentado no captulo anterior, referente propaganda

    Hitler, da Folha de So Paulo se tivermos em mente as consideraes j feitas sobre a

    caracterstica antilgica do mundo fenomnico, em Kerferd, e os mltiplos predicados

    atribuveis a um personagem como o Hitler da propaganda , a histria tambm pode

    62 Plato, no Grgias, 452a-453a, coloca a retrica sofstica como tendo por fim nico a persuaso, qualificando-a de peithous demiourgos. 63 Aristteles, na Retrica, 1355b, define esta como a capacidade de descobrir o que adequado a cada caso com o fim de persuadir; diferentemente de Plato, Aristteles situa a retrica como uma tcnica, onde a sua finalidade ser encontrar os meios de prova, e no apenas a persuaso. 64 GINZBURG, Carlo. Relaes de fora: histria, retrica, prova. So Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 61-62.

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    construir sentidos diversos a partir de um mesmo objeto. Do mesmo modo que Ginzburg

    remonta a retrica aristotlica para iluminar a construo de uma epistemologia histrica, Paul

    Veyne a constri partindo de um campo geralmente oposto tradio retrica: a filosofia.

    Veyne afirma que Contra o historicismo e contra o cientismo em histria, preciso regressar

    filosofia clssica, para a qual a Histria no existe e os fatos histricos no so

    cientficos.65

    Parece-me que Veyne faz o caminho oposto de Ginzburg. Enquanto este se preocupa

    em sustentar uma epistemologia histrica com um mtodo, apropriando-se da teorizao

    aristotlica sobre as provas na retrica portanto, enfatizando o carter metodolgico como

    base da disciplina histrica , aquele edifica uma epistemologia