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O FUNCIONAMENTO DISCURSIVO DA ESCRITA NO PROCESSO DE INSTITUCIONALIZAÇÃO DO SUJEITO - ESCOLAR. “Antes de ser o exercício de uma competência o ato de escrever é uma maneira de ocupar o sensível e de dar sentido a essa ocupação. Não porque a escrita é um instrumento de poder ou via real do saber, em primeiro lugar, que ela é coisa política. Ela é coisa política porque seu gesto pertence à constituição estética da comunidade e se presta acima de tudo a alegorizar essa constituição”. (RANCIÈRE, 1995, p.25) Olívia Ferreira Couto 1 RESUMO: Nesse artigo levantaremos algumas reflexões sobre as condições de produção da escrita nos instrumentos lingüísticos e didáticos de ensino de língua portuguesa. Desse modo, buscaremos compreender como se dá a formação de um sujeito social na sua relação com a língua num espaço determinado de produção – a escola. Nossa reflexão se debruçará sobre a escola enquanto lugar de legitimação da língua, concebendo o trabalho com a escrita/leitura, tal como materializada pelo livro didático (LD) como política e ética lingüísticas. Palavras-chave: Análise de Discurso, Escrita e Livro Didático. Abstract: This article we will raise some reflections on the conditions of production of linguistic tools written in and teaching of Portuguese language education. That way, we sought to understand how the formation of a subject in its relationship with the language in a given space – school production. Our reflection discuss school while legitimation place language, producing working with writing/reading, as embodied by textbook (LD) as language policy and ethics. Keywords: discourse analysis, writing and textbook Para entender a causa do péssimo desempenho lingüístico no ensino, é necessário compreender como acontece o processo de língua escrita no material pedagógico utilizado pela escola. Desse modo propomos uma abordagem discursiva da escrita, pensando na escrita legitimada pela escola enquanto lugar de funcionamento dos sentidos corroborados pelo Estado, onde o sujeito, atravessado pela ideologia, constitui-se através de sua relação com a língua. Segundo Pfeiffer (2002, p.10) a urbanidade de uma língua se dá, fundamentalmente pela escrita, que tem seu lugar legítimo de “aquisição” remetido à escola. 1 Mestranda em Jornalismo Científico pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

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O FUNCIONAMENTO DISCURSIVO DA ESCRITA NO PROCESSO DE

INSTITUCIONALIZAÇÃO DO SUJEITO - ESCOLAR.

“Antes de ser o exercício de uma competência o ato de escrever é uma maneira de ocupar o sensível e de dar sentido a essa ocupação. Não porque a escrita é um instrumento de poder ou via real do saber, em primeiro lugar, que ela é coisa política. Ela é coisa política porque seu gesto pertence à constituição estética da comunidade e se presta acima de tudo a alegorizar essa constituição”. (RANCIÈRE, 1995, p.25)

Olívia Ferreira Couto 1

RESUMO: Nesse artigo levantaremos algumas reflexões sobre as condições de produção da escrita nos instrumentos lingüísticos e didáticos de ensino de língua portuguesa. Desse modo, buscaremos compreender como se dá a formação de um sujeito social na sua relação com a língua num espaço determinado de produção – a escola. Nossa reflexão se debruçará sobre a escola enquanto lugar de legitimação da língua, concebendo o trabalho com a escrita/leitura, tal como materializada pelo livro didático (LD) como política e ética lingüísticas. Palavras-chave: Análise de Discurso, Escrita e Livro Didático.

Abstract: This article we will raise some reflections on the conditions of production of linguistic tools written in

and teaching of Portuguese language education. That way, we sought to understand how the formation of a

subject in its relationship with the language in a given space – school production. Our reflection discuss school

while legitimation place language, producing working with writing/reading, as embodied by textbook (LD) as

language policy and ethics.

Keywords: discourse analysis, writing and textbook

Para entender a causa do péssimo desempenho lingüístico no ensino, é necessário

compreender como acontece o processo de língua escrita no material pedagógico utilizado

pela escola.

Desse modo propomos uma abordagem discursiva da escrita, pensando na escrita

legitimada pela escola enquanto lugar de funcionamento dos sentidos corroborados pelo

Estado, onde o sujeito, atravessado pela ideologia, constitui-se através de sua relação com a

língua. Segundo Pfeiffer (2002, p.10) a urbanidade de uma língua se dá, fundamentalmente

pela escrita, que tem seu lugar legítimo de “aquisição” remetido à escola.

1 Mestranda em Jornalismo Científico pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

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Nossos questionamentos serão norteados pela Análise de Discurso materialista

(AD), que se consolidou, na França, nos anos 60, rodeada por um cenário de intensos debates

filosóficos sobre a epistemologia, no período em que fortes questões estruturalistas2

circulavam pelo país e a Europa passava por instabilidades econômicas devido às turbulentas

negociações da Guerra Fria.

Nesse contexto sócio-histórico, a análise do discurso se constituiu e se organizou na

contradição/ no entremeio de três ciências: o Marxismo, a Lingüística e a Psicanálise, o que a

caracteriza como “uma espécie de antidisciplina, uma desdisciplina, que vai colocar questões

da lingüística no campo da sua constituição interpelando-a pela historicidade que ela apaga,

[...] e interrogando a transparência da linguagem, questões sobre a quais outras ciências

sociais se assentam”. (ORLANDI, 2007, p.25)

Na perspectiva discursiva, a linguagem significa em sua inscrição histórica

mostrando-se como não transparente e carregada de gestos de interpretação, não se definindo

apenas como forma de comunicação, mas também de não comunicação.

De modo que, podemos tomar a linguagem como lugar de conflitos e confrontos,

onde há ausência de um sentido estabilizado, que só se constitui pela interação social. Esse

sentido é o modo do sujeito perceber as coisas do mundo, por isso, as significações não estão

materializadas nos atributos da língua e se constituem pelos sujeitos através das relações de

sentido. Relações essas que se interligam com outros discursos já pronunciados na base do

dizível, mostrando-nos a eterna incompletude da linguagem.

Nesse processo de incompletude, a linguagem não se define de maneira própria,

pois os sujeitos e os sentidos não estão constituídos definitivamente. Isto acontece porque

existe uma passagem do simbólico, o espaço do possível que apesar de encontrar-se na

abertura, também é conduzido pela institucionalização. “O sentido não existe em si mesmo.

Ele é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo histórico no

qual as palavras são produzidas” (PECHÊUX, 2006, p.27), se inscrevendo nas formações

discursivas.

As formações discursivas são representadas a partir de posições ideológicas que

administram o que pode ser dito. Aquilo que o sujeito diz se inscreve na formação discursiva

2 As questões estruturalistas ressoaram na França de tal forma, que muitos valores estabelecidos, na época, foram questionados por movimentos em debates políticos.

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que o filia a um sentido e não a outro, interligando-se intrinsecamente com as formações

ideológicas que são formações puramente heterogêneas constituídas na contradição onde re-

significam constantemente suas relações.

Orlandi (2005, p. 26), ressalta que “A análise do discurso visa a compreensão de

como um objeto simbólico produz sentidos, como ele está investido de significância para e

por sujeitos”. Dessa forma, não busca uma verdade na essência do signo, um significado

primeiro, original. O que ela pretende é produzir um conhecimento partindo do próprio texto,

buscando verificar as condições que permitiram o aparecimento do discurso e explicando por

que tomou esse sentido e não outro. Sempre relacionando o lingüístico com a história e com

o ideológico.

1.1 Da oralidade à escrita

Ao dizer o sujeito marca um gesto de significação, tudo que não é significado foi

marginalizado ao non sense. Mas, será que ao escrever o sujeito também causa um efeito de

acepção? Ora, escrever é configurar as palavras, dar contorno a elas, o que está na base da

formulação do próprio sentido, logo, da significação.

Entretanto, a escrita nem sempre foi entendida dessa forma, conforme a Mitologia

Grega, a escrita surgiu com o mito de Tamos, o rei do Egito, e Theuth, o inventor de várias

artes, entre as quais a da escrita. Quando Theuth se apresentou no palácio de Tamos para

enaltecer os méritos da sua descoberta, teve uma surpresa ao constatar que o rei não a

apreciava. Enquanto Theuth imaginou a escrita como um auxílio para a memória, Tamos

observou que ela produzida um efeito exatamente ao contrário, já que, “entregando-se

completamente à escrita, os homens aprenderão a evocar as recordações do exterior, sob a

ação dos signos estranhos, não do íntimo espontaneamente” 3. Com efeito, o rei não achou a

escrita interessante, porque através dela os homens começariam a registrar os

acontecimentos, os pensamentos, o que conseqüentemente, daria visibilidade às próximas

3 TRABATTONI, Franco. Oralidade e Escrita em Platão. Cap.8, p.120 O Fedro e a Retórica, Filosofia e o Modo Correto de Compor Discursos. São Paulo Discurso Editorial; 2003.

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gerações dos eventos de seu reinado, isso poderia deixar a população alerta sobre as atitudes

políticas de um regime monárquico.

Outro exemplo, sobre o receio do acesso à escrita, é apontado pelo escritor, filósofo

e lingüista italiano Umberto Eco, em seu livro O nome da Rosa, onde o autor denuncia os

interesses da Igreja católica, na Idade Média européia, em proibir os seminaristas de entrar

na biblioteca da instituição. Os livros de Aristóteles eram envenenados para que ninguém

ousasse assim, lê-los. Muitos aspirantes a padre morreram ao tentar ler suas obras.

Notamos que, a Igreja católica e o Estado sempre representaram os poderes

reguladores, responsáveis por manter a ordem.

É preciso se pensar a relação do sujeito com a linguagem como parte da relação do sujeito com o mundo, em termos sociais e políticos. Nessa perspectiva, a transformação do estatuto em relação ao saber e à linguagem corresponde à transformação das formas de assujeitamento do indivíduo à religião e ao Estado. [...] O Estado funda sua legitimidade e sua autoridade sobre o cidadão, levando-o a interiorizar a idéia de coerção ao mesmo tempo em que faz com que ele tome consciência de sua autonomia (de sua responsabilidade, portanto) [...] o sujeito religioso não interpreta, ele repete a interpretação que lhe é dada. (ORLANDI, 2007, p.90-91)

Nesse cenário, o sujeito relaciona-se com a linguagem, especificamente a escrita,

interpelado pela ideologia do Estado e da Igreja, que objetivam disciplinar seu corpo e suas

idéias.

Outro aspecto sobre a maneira de significação da escrita no passado nos é trazida

por Trabattoni (2003, p.125), o autor nos mostra o modo como os grandes filósofos - Platão e

Sócrates - discutiam a escrita. Na segunda parte do diálogo O Fedro e a retórica, Sócrates

faz a seguinte reflexão Qual é, pois a técnica que diferencia o escrever bem do escrever

mal? Para Sócrates, primeiramente, o bom orador precisa conhecer o tema que se propõe a

desenvolver, e afirma que a capacidade de falar e compor discursos é vinculada, de modo

direto, a habilidade de filosofar.

Platão (in TRABATTONI, 2003), afirma que o bom discurso deve ser o mais

verdadeiro e persuasivo e, ao mesmo tempo, levar em conta os numerosos condicionamentos

da comunicação oral.

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O autor destaca que em todo diálogo Sócrates e Platão não distinguem o discurso

oral do discurso escrito, parecendo entendê-los como pertencentes à mesma denominação. O

que nos indica que nessa época a escrita não era diferenciada da fala, logo sua importância

era silenciada.

Orlandi (1999) prefere não reduzir a significação de escrita e oralidade ao modo de

uma tipologia - mesmo porque, no interior do imaginário coletivo, são esses dizeres que

funcionam - o que realmente importa é que ambas produzem diferentes gestos de

interpretação.

Podemos então observar essas diferenças, procurando explicitar, por exemplo, o

modo de funcionamento da oralidade como arquivo (interdiscurso ou memória

institucionalizada) em relação aos gestos de interpretação, ou enquanto é ela mesma um

gesto de interpretação de uma certa natureza.( ORLANDI,1999)

Apesar de não termos registros do início do uso da oralidade, sabemos que as

primeiras expressões escritas podem ter surgido de ideogramas que representavam uma

forma de registrar as coisas do mundo e foram datadas em aproximadamente 3.200 antes AC

na Mesopotâmia.

Milhões de anos mais tarde, em meados do século XIX, com a constituição do

estado novo no Brasil, juntamente com as instituições, leis, produções, governo, vida civil,

surgiu a necessidade de impor uma língua modelo que mesmo seguindo os padrões do

Português de Portugal, tivesse características próprias o que desencadeou o processo de

gramatização no Brasil e a constituição de uma língua nacional.

Segundo Auroux (1992, p.47) alguns interesses práticos corroboraram para que a

gramatização ocorresse; a colonização, o acesso a uma língua de administração, o

desenvolvimento uma política lingüística de uso interno ou externo, a organização e

regulamentar uma língua literária.

1.2 A escrita para a análise de discurso

Pensar na escrita, através do discurso, significa pensar nos dizeres que a constituem

e que aparecem carregados de uma historicidade, na qual o sujeito capturado por uma

ideologia tenta mobilizar a língua e significar.

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Nesse processo de significação, o sujeito, movido pelos diferentes gestos de

interpretação, se relaciona com a língua e seus mecanismos de projeções imaginárias4.

Segundo Orlandi (2005), toda língua consegue se projetar de situação social para

posição no discurso. Logo, podemos trabalhar a língua como um fato social, compreendendo

a forma da língua como forma da sociedade, no imaginário.

Entretanto, é difícil pensar na escrita sem pensar na leitura. Mas de que forma

podemos definir essa escrita/leitura? Orlandi (1999, p.25) afirma que “a leitura não é uma

questão de tudo ou nada, é uma questão de natureza, de modos de relação, de trabalho, de

produção de sentidos, em uma palavra: de historicidade”. Ou seja, o sujeito na posição de

aluno precisa estabelecer redes de sentido, para que consiga historicizar sua escrita.

A Análise de Discurso (AD) trabalha com novas práticas de leitura que indicam

formas de elaboração de arquivos, nos mostrando a leitura da história, sua interpretação.

O próprio dessas práticas é relacionar o dizer com o não dizer, com o dito em outro lugar e com o que poderia ser dito. Essa escuta tem de particular o ser sensível às relações de sentido – seja pelo trabalho da memória (o interdiscurso) seja pela menção (a intertextualidade). O que praticamos, então, são novos gestos de leitura, percorrendo os caminhos dos sentidos. Em nosso caso, os sentidos que sustentam a produção de um conhecimento lingüístico que se foi produzindo junto à constituição de nossa língua. (ORLANDI, 2000, p.30)

Nessa perspectiva, entendemos a linguagem enquanto uma teia de sentidos, na qual

muitos gestos de interpretações são imaginariamente permitidos, enquanto outros

permanecem presos na materialidade discursiva, impedindo que os sentidos se configurem de

qualquer maneira, não se relacionando com a memória discursiva.

A memória no discurso é considerada como interdiscurso - que pode ser definido

como algo que mobiliza o sujeito em determinada situação discursiva atravessando sua

significação por meio dos já ditos e não-ditos. O dito e o não-dito se configuram

mutuamente, de modo que um implica o outro, pois, mesmo aquilo que não é dito indica um

pressuposto que carrega diversas significações daquilo que foi dito ou silenciado.

4 São essas projeções que permitem a mudança de lugares do sujeito para posições do sujeito no discurso.

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Temos aí dois importantes dispositivos para a AD: o silêncio e o esquecimento, os

quais precisam ser compreendidos para análise dos dados. Existem dois tipos de silêncio: o

silêncio constitutivo, no qual uma palavra silencia outra e o silêncio local, que se

potencializa na determinação do que não deve ser dito.

De acordo com a AD, esse esquecimento é necessário para que o sujeito possa

estabelecer novas filiações com as redes de sentidos. O esquecimento ideológico5 representa

o modo como o sujeito é interpelado pela ideologia, o que lhe dá uma autonomia imaginária

do dizer. O outro esquecimento6, que é de ordem da enunciação, se configura pelas ligações

parafrásticas que o sujeito realiza dependendo de suas condições de produção.

As condições de produção referem-se ao sujeito e à situação. Em seu sentido

dilatado, notamos a presença do contexto sócio-histórico e ideológico. Na percepção

imediata, podemos considerar as circunstâncias da enunciação, ou seja, perceber que as

palavras transbordam sentidos e são carregadas de dizeres. “O sujeito diz, pensa que sabe o

que diz, mas não tem acesso ou controle pelo modo com o qual o sentido se constituem nele”

(ORLANDI, 2005, p.32).

II - QUE LÍNGUA É ESSA QUE O LIVRO DIDÁTICO ENSINA?

É inquestionável a importância de um livro que direcione as aulas do professor,

auxiliando-o na elaboração dos planos de ensino, facilitando o acesso dos alunos ao

conteúdo. No entanto, observamos na escola uma grande deficiência de aprendizagem da

língua portuguesa o que nos dá visibilidade para existência de alguns silenciamentos a

respeito da elaboração e ultilização dos manuais de ensino, especificamente na produção

escrita que configura nosso corpus.

Não queremos fazer aqui um percurso histórico do livro didático (LD), já que o que

nos interessa é o LD, tomado na sua materialidade lingüística que o constitui como

instrumento de poder do Estado, suas condições de produção, circulação e recepção, que 5 Por esse esquecimento, também chamado de esquecimento nº1, temos a ilusão de uma certa autonomia do que dizemos, entretanto, para que nosso dizer faça sentido temos que relacioná-los os já ditos. 6 O esquecimento nº 2 nos faz acreditar que há uma relação direta entre o pensamento, a linguagem e o mundo, de tal modo que pensamos que o que dizemos só pode ser dito com aquelas palavras e não outras. (ORLANDI, 2005,p.35)

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estão definidas com referência à práticas sociais estabelecidas na sociedade. Enquanto tal, ele

carrega uma historicidade que não está desvinculada da própria história do ensino escolar, do

aperfeiçoamento das tecnologias de produção gráfica e dos padrões mais gerais de

comunicação na sociedade.

Uma questão importante a ser pensada é sobre a forma como o livro didático

trabalha os aspectos relacionados à linguagem. Podemos considerar que a linguagem é mais

do que um conjunto de recursos simbólicos de expressão e comunicação: é instância

constitutiva de identidades, de relações entre sujeitos, instituições e conhecimento. Por isso,

Pêcheux (2006, p.20) afirma que:

O sujeito não se apropria da linguagem num movimento individual. A forma dessa apropriação é social. Nela está refletido o modo como o sujeito o fez, ou seja, sua interpelação pela ideologia. O sujeito que produz linguagem também está reproduzido nela, acreditando ser a fonte exclusiva de seu discurso quando, na realidade, retoma sentidos preexistentes. A isso chamamos de “ilusão discursiva do sujeito”.

Vemos assim que a dimensão social da linguagem nos leva, portanto, a desconstruir

a idéia de que o sentido está na palavra, percebendo cada vez mais a opacidade da linguagem

problematizando a natureza histórica e social do processo de construção e negociação de

sentidos, que se dá nas práticas discursivas em interações de caráter dialógico, isto é, por

meio de diálogos entre indivíduos e de diálogos entre discursos. Entender o texto didático

sob esta ótica implica, então, compreendê-lo como produto de atividade social, vinculada a

temas e a contextos específicos de produção, circulação e recepção de textos por sujeitos

participantes em práticas discursivas e não como imagem especular destas práticas. Daí a

necessidade de problematizar as condições de produção da escrita materializada pelos

manuais de ensino e atravessada pelo poder do estado.

2.1 Análise da produção escrita no livro didático

Apresentamos a seguir algumas de nossas reflexões sobre o livro didático, que têm

sido orientadas sob a luz da Análise do Discurso. Nossos estudos significam o livro didático

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de Língua Portuguesa em relação às suas condições de produção e investigam as práticas de

produção textual a ele solicitadas em diferentes contextos.

Implantado em 2004, o Programa Nacional do Livro Didático do Ensino Médio

(PNLEM) prevê a distribuição de livros didáticos aos alunos do ensino médio público de

todo o País. A escolha do livro didático é feita através da internet ou do preenchimento do

formulário enviado pelo MEC às escolas cadrastadas.

O Catálogo do PNLEM/2009 contém a síntese das obras de Língua Portuguesa

avaliadas e aprovadas no processo de seleção do PNLEM/2007, a ser escolhida pelos

professores, como material de contribuição à prática pedagógica. As obras “escolhidas” em

2008 serão distribuídas para utilização a partir de 2009.

No entanto, sabemos que essa escolha passa por processos silenciados, visto que,

antes dos livros serem enviados à Escola eles são selecionados pelo MEC que envia à escola

uma opção máxima de cinco obras, e nem sempre o livro didático selecionado pelos

professores é o mesmo enviado para ser utilizado em sala de aula. Decorre que, na opacidade

dessa circularidade de alternativas de LD, está silenciado uma forma de seleção de livros

muito obscura, na qual as idéias ficam alijadas no espaço, tendo em vista que o professor

apenas acata as obras - de uma mesma editora- que o MEC muito anteriormente já escolheu.

O livro escolhido para análise é utilizado em algumas escolas públicas de ensino

médio de Cáceres-MT. Possui a autoria de Ernani Terra7 e José de Nicola8, intitulado O

Português de olho no mundo do trabalho, dividido em 24 capítulos de Produção de texto, 17

capítulos sobre Gramática subdivididos em 3 unidades: Fonologia, Morfologia e Sintaxe; e

Literatura com 19 capítulos.

7 Ernani Terra é professor de Português, formado pela USP e possui vários livros didáticos publicados pela Editora Scipione. 8 É professor de literatura desde 1968, tendo lecionado em diversas escolas particulares de Ensino Médio e também em cursinhos preparatórios para exames vestibulares. Tem se dedicado à produção de livros didáticos para o ensino de Língua Portuguesa, Literatura Brasileira, Literatura Portuguesa e Redação.

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Observamos que o sumário do livro é apresentado de forma bem fragmentada. A

literatura, a gramática e a produção de texto são trabalhadas de modo separado, como se não

existisse uma intrínseca ligação entre elas.

Uma outra reflexão se faz possível a partir do título do livro Português de olho no

mundo do trabalho que nos remete ao capitalismo desenfreado ao invés de dar ênfase à

língua portuguesa. Esse aspecto vai ao encontro do objetivo de criação do ensino médio, que,

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desde anos 60 possui uma política educacional na qual prioriza a formação de especialistas

capazes de utilizar maquinarias e dirigir processos de produção.

Mafra (2003) ressalta que o Ensino Médio (EM) priorizava uma sociedade de

estrutura taylorista-fordista9 própria das maquinarias, genuinamente direcionada à formação

profissional.

De acordo com PCNEM, (2002, p. 16), o aluno precisa desenvolver a “capacidade

de pesquisar, buscar informações, analisá-las e selecioná-las, capacidade de aprender, criar,

formular, ao invés do simples exercício de memorização”, ou seja, teoricamente utilizar os

conhecimentos de forma “autônoma” e “criativa”. Entretanto, percebemos que apesar do

discurso teórico dos PCNEM e as mudanças tecnológicas ocorridas o Ensino Médio continua

com a mesma finalidade de capacitar o aluno para sua função.

Nessa ínterim Paz (2006, p.186) afirma que “o trabalho sem fim, infinito,

corresponde à vida sem finalidade da sociedade moderna”, logo a escola transformou-se num

espaço de formação da “mão - de - obra qualificada”, não interessando o que esse sujeito

pensa, de que forma significa sua memória discursiva. O que realmente importa é que seu

corpo e suas idéias estejam “docilizados”, parafraseando Foucault (2000), o suficiente para

entrar no mundo do trabalho.

Nesse aspecto, Althusser (2007, p.57) nos alerta com alguns questionamentos:

Ora, vejamos como se dá esta reprodução da qualificação (diversificada) da força de trabalho no regime capitalista? Ao contrário do que se ocorria nas formações sociais escravistas e servis, esta reprodução da qualificação da força de trabalho tende [...] a dar-se não mais no “local de trabalho” (a aprendizagem na própria produção), porém, cada vez mais, fora da produção, através do sistema escolar capitalista e de outras instâncias e instituições. Ora, o que se aprende na escola? É possível chegar-se a um ponto mais ou menos avançado nos estudos, porém de qualquer maneira aprende-se a ler, escrever e contar, ou seja, algumas técnicas, e outras coisas também inclusive elementos [...] de “cultura científica” ou “literária” diretamente utilizáveis nos diferentes postos da produção (uma instrução

9 O princípio “taylorista/fordista”, de base eletromecânica rígida, caracteriza-se pela produção em massa e em série de mercadorias padronizadas, aspectos que demandavam dos trabalhadores capacidades cognitivas relacionadas à memorização de conhecimentos e repetição de procedimentos numa determinada seqüência; ademais, exigia-se ainda a uniformização de respostas, a separação entre tempos de aprender e tempos de repetir procedimentos práticos. Quanto à dimensão ideológica das relações de produção, o controle se dava mediante a fiscalização externa, através da presença de inspetores, gerentes, supervisores, presentes no interior do espaço produtivo. http://www.abed.org.br/bahia/a_03.html

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para operários, uma outra para os técnicos,uma terceira para os engenheiros, uma ultima para os quadros superiores, etc...) Aprende-se o “khow-how”.

Os desdobramentos que encontramos, na opacidade do ensino, é uma política

educacional com marcas positivistas, em que uma “elite dominante” regula a massa

dominada que tem acesso, na escola pública, a conteúdos direcionados apenas a sua função

específica de “eterno” servil, com discurso capitalista de amenização das desigualdades.

Ao final de um capítulo é apresentado no livro um quadro intitulado: De olho no

mundo do trabalho, que explica a função de alguns profissionais e algumas profissões.

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No entanto, as produções textuais propostas não ensinam o aluno a produzir o

gênero de texto que ele precisará saber nessa profissão exposta. Ocorre que não há uma

relação do que se teoriza no livro com as propostas de produção textuais, que acabam se

resumindo em receitas direcionadas por uma questão que espera uma resposta correta do

aluno, é o conteúdo posto podendo ser expresso em forma de paráfrase.

A AD não trabalha com a forma nela mesma, ela nos dá visibilidade a dicotomia

entre forma e conteúdo, tomando conteúdo enquanto efeito de sentido visto que, o suporte do

sentido é a cadeia de significante. A forma e o sentido vão se produzindo, já a materialidade

impõe limites.

Nas primeiras 186 páginas, os autores apresentam diversas maneiras de trabalhar

com a produção de texto. O primeiro capítulo é intitulado O texto: leitura e reflexão, na qual

a primeira sugestão de atividade é uma questão de um vestibular da Universidade Federal do

Amapá (Unifap), cujo tema é produção de texto na escola.

Os autores trazem cincos diferentes textos que abordam o assunto da dificuldade de

escrever e da falta de leitura dos estudantes brasileiros. É preciso, porém, refletir sobre a

proposta de produção feita aos estudantes, principalmente no que se refere à concepção de

escrita com a qual lida. Para os autores escrever é colocar idéias no papel de forma

organizada. Ora, para que as informações sejam organizadas é necessário antes organizar as

idéias que não surgem do nada, devemos pensar, então, de que maneira podemos incentivar

os alunos para que essas idéias apareçam. Os autores nos mostram também o conceito de

leitura que é de atribuir significado, construir significado para o texto lido (2002, p.13).

Após algumas reflexões sobre a escrita e a leitura, os autores fazem à proposta de

produção textual que nos direciona a seguinte reflexão do tema para o aluno: Que geração é

essa que não lê e disso não tem vergonha? Logo abaixo seguem as instruções para produção

do texto: Procure responder com um texto de vinte linhas, dando sua opinião sobre o papel

da leitura aqui e agora. Antes de redigir, selecione alguns argumentos e procure ser bem

convincente. Tal como segue no recorte abaixo:

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Notamos que a produção textual, geralmente, se norteia por uma pergunta, para que

o aluno direcione seus pensamentos à procura de uma resposta que já existe no próprio

enunciado. O aluno terá que copiá-la e convencer o leitor de seus argumentos em apenas

vinte linhas, desse modo o ato de escrever passa a significar para esse aluno algo como

convencer, responder perguntas, seguindo adequadamente as ordens. Entretanto, sabemos

que a escrita transcende as receitas didáticas, pois o ato de escrever convoca uma

historicidade, considerando que toda leitura precisa ser re-significada para que se realize, ou

seja, inscreve-se numa memória discursiva e em condições de produção determinadas.

Nesse aspecto, o sujeito precisa historicizar suas leituras para produzir sentido. Por

essa razão, muitas vezes, o aluno não consegue compreender algo escrito ainda que em

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língua nacional, fato que decorre de suas condições de interpretação em uma formação

discursiva dada, na qual, o sujeito se inscreve dependendo de sua formação ideológica que

determina o que pode e deve ser dito.

Numa perspectiva discursiva, a leitura é considerada como produzida e produtora de

sentidos e está regulada por condições de produção. Para Orlandi (1999, p.48), o texto é, por

definição, incompleto e sempre passível de novas leituras. Para a autora, “as palavras não

significam por si, mas pelas pessoas que as falam, ou pela posição que ocupam os que as

falam. Sendo assim, os sentidos são aqueles que a gente consegue produzir no confronto do

poder das diferentes falas”. Deste modo, a perspectiva discursiva desloca-nos de uma

concepção de leitura como relação entre sujeito e objeto (leitor/texto) para uma na qual ela

passa a ser interação entre sujeitos (autores e leitores) por meio do texto.

Ocorre que o livro didático carece de ser usado como elemento mediador em

interações discursivas entre os diferentes sujeitos que tomam parte na construção do

conhecimento sobre a escrita na escola.

Nessa outra proposição de escrita observamos as instruções dos autores para

formulação do texto: A partir da leitura do texto de apoio, produza um texto verbal

obedecendo as seguintes condições:

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Podemos perceber, logo de início, a presença do verbo obedecer no gerúndio, nos

remetendo às relações de poder, nesse caso, a de impor regras ao que o aluno deve fazer.

Portanto, nota-se que, nesse espaço de produção, não existe alternativa para o aluno

historicizar suas práticas de escrita, sua única escolha é obedecer prontamente às ordens para

formular seu texto; em síntese, obedecer ao comando. Se o aluno tenta transcender essa

imposição através de sua “criatividade”, provavelmente incorrerá no erro e,

consequentemente não obterá sucesso na sua produção escrita.

Segundo Orlandi (2005, p.37) “a criatividade implica na ruptura do processo de

produção da linguagem, pelo deslocamento das regras, fazendo intervir o diferente,

produzindo movimentos que afetam os sujeitos e os sentidos na sua relação com a história e

com a língua”.

Nesse sentido, para o aluno buscar sua criatividade ele precisa romper com o que já

está instituído, no entanto, muitas vezes o aluno não consegue colocar em conflito os

sentidos preexistentes e os que se vão configurando para re-significar sua escrita. Ocorre que

ele acaba perdendo sua individualidade, já que as produções escritas precisam direcionar

sempre a um mesmo ponto, a uma equivocidade lógica que caracteriza a resposta certa.

Outro aspecto é o fato de os autores utilizarem verbos no imperativo tais como:

coloque-se, dirija-se, tome e utilize o que nos permite perceber que a produção de texto

segue uma receita, isto é, descrevendo o modo como o aluno deve escrever o texto. Como já

sabemos, na língua portuguesa existem diversos tipos de textos, entretanto, não se especifica

o tipo de texto que o aluno deve escrever, ou seja, o gênero textual a ser produzido.

O texto, no livro didático, aparece como uma simples adaptação da tipologia para

efeito do ensino da escrita, exclusivamente por meio de transposições didáticas de conteúdos

de referência. Nesse sentido, tornam-se complexas as relações entre língua, cultura e

sociedade, comprometendo a formação do cidadão, por se constituir de interações situadas

unicamente em práticas típicas do ensino escolar. Nessa direção, o texto representa uma

instância articuladora na materialização do discurso científico-escolar.

Estas considerações sobre a utilização do LD, longe de culpabilizar o professor,

chamam a atenção para o potencial oferecido pela análise de discurso para “compreender

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como o simbólico e o político se conjugam nos efeitos a que ele [no nosso caso o professor],

enquanto sujeito da linguagem, está (as)sujeit(ad)o” (ORLANDI, 1999, p.95).

Nesse panorama, visualizamos o sujeito na posição de aluno imerso no mundo

capistalista voraz, instantâneo, que se depara com seu limite, constituindo-se por uma falta –

identidade, subjetividade, significação – nas suas relações de sentido, inscrevendo-se numa

formação imaginária em que interlocutor dificilmente o compreenderá, produzindo escritos

cujas relações de sentidos resultaram na incoerência textual.

Ao refletir sobre essas questões no texto, podemos compreender a dificuldade do

aluno de significar sua escrita, visto que ele não consegue constituir sua rede de sentido - seja

através da memória (o interdiscurso), seja pela menção (a intertextualidade), para estabelecer

novos gestos de leitura, novas conexões de significação, que é exatamente o ponto que

sustenta a produção do conhecimento lingüístico. A partir do momento que sua escrita não

tem valor, o sujeito se sente excluído das relações de sentido com o outro, ficando à margem

da linguagem.

No caso do ensino de Língua Portuguesa, o manual analisado constitui

essencialmente uma prática de escrita desviante - silenciada. A definição de livro didático,

como materialidade lingüística, dentro de uma abordagem discursiva, expande as discussões

sobre este para além dos estudos da escrita, na medida em que permite re-formular os

conceitos de escrita que estão funcionando como base de relação entre a língua e o sujeito.

Considerações Finais

Nossas análises revelaram que as produções textuais na escola, trazidas pelo livro

didático de língua portuguesa, demonstram a fragilidade no ensino da escrita, que se projeta

em todas as áreas de aprendizado. Assim, o sujeito/aluno não consegue interpretar a própria

escrita, ele não se identifica com suas produções, que, consequentemente, não significam. De

fato, observamos a tendência de a escola tentar homogeneizar os pensamentos, burlando a

criatividade do aluno.

Estas considerações podem ser instrumentais na busca do desenvolvimento de um

olhar crítico com relação ao livro didático pelos professores, de modo a perceber a

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representação de diferentes discursos, que condicionam a inserção dos conteúdos e a adoção

de determinadas abordagens, colaborando para a desconstrução do uso mecânico do livro

didático pelo professor, em sala de aula.

Antes de ser o exercício de uma competência o ato de escrever é uma maneira de ocupar o sensível e de dar sentido a essa ocupação. Não porque a escrita é um instrumento de poder ou via real do saber, em primeiro lugar, que ela é coisa política. Ela é coisa política porque seu gesto pertence à constituição estética da comunidade e se presta acima de tudo a alegorizar essa constituição. (RANCIÈRE,1995, p.25)

A definição de escrita de Rancière, a qual iniciamos nosso artigo, sintetiza nossas

argumentações e nos revela que não adianta só “aprender” a escrever, é preciso que esta

aprendizagem não seja mera transcrição, mas que inscreva o sujeito na estrutura social, pois

a escrita é um trabalho de memória que estrutura as relações sociais e reconhecer que os

alunos são sujeitos culturais e seu saber auxilia na construção de saberes, seria um primeiro

passo.

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