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O FUNCIONAMENTO DISCURSIVO DA ESCRITA NO PROCESSO DE
INSTITUCIONALIZAÇÃO DO SUJEITO - ESCOLAR.
“Antes de ser o exercício de uma competência o ato de escrever é uma maneira de ocupar o sensível e de dar sentido a essa ocupação. Não porque a escrita é um instrumento de poder ou via real do saber, em primeiro lugar, que ela é coisa política. Ela é coisa política porque seu gesto pertence à constituição estética da comunidade e se presta acima de tudo a alegorizar essa constituição”. (RANCIÈRE, 1995, p.25)
Olívia Ferreira Couto 1
RESUMO: Nesse artigo levantaremos algumas reflexões sobre as condições de produção da escrita nos instrumentos lingüísticos e didáticos de ensino de língua portuguesa. Desse modo, buscaremos compreender como se dá a formação de um sujeito social na sua relação com a língua num espaço determinado de produção – a escola. Nossa reflexão se debruçará sobre a escola enquanto lugar de legitimação da língua, concebendo o trabalho com a escrita/leitura, tal como materializada pelo livro didático (LD) como política e ética lingüísticas. Palavras-chave: Análise de Discurso, Escrita e Livro Didático.
Abstract: This article we will raise some reflections on the conditions of production of linguistic tools written in
and teaching of Portuguese language education. That way, we sought to understand how the formation of a
subject in its relationship with the language in a given space – school production. Our reflection discuss school
while legitimation place language, producing working with writing/reading, as embodied by textbook (LD) as
language policy and ethics.
Keywords: discourse analysis, writing and textbook
Para entender a causa do péssimo desempenho lingüístico no ensino, é necessário
compreender como acontece o processo de língua escrita no material pedagógico utilizado
pela escola.
Desse modo propomos uma abordagem discursiva da escrita, pensando na escrita
legitimada pela escola enquanto lugar de funcionamento dos sentidos corroborados pelo
Estado, onde o sujeito, atravessado pela ideologia, constitui-se através de sua relação com a
língua. Segundo Pfeiffer (2002, p.10) a urbanidade de uma língua se dá, fundamentalmente
pela escrita, que tem seu lugar legítimo de “aquisição” remetido à escola.
1 Mestranda em Jornalismo Científico pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
Nossos questionamentos serão norteados pela Análise de Discurso materialista
(AD), que se consolidou, na França, nos anos 60, rodeada por um cenário de intensos debates
filosóficos sobre a epistemologia, no período em que fortes questões estruturalistas2
circulavam pelo país e a Europa passava por instabilidades econômicas devido às turbulentas
negociações da Guerra Fria.
Nesse contexto sócio-histórico, a análise do discurso se constituiu e se organizou na
contradição/ no entremeio de três ciências: o Marxismo, a Lingüística e a Psicanálise, o que a
caracteriza como “uma espécie de antidisciplina, uma desdisciplina, que vai colocar questões
da lingüística no campo da sua constituição interpelando-a pela historicidade que ela apaga,
[...] e interrogando a transparência da linguagem, questões sobre a quais outras ciências
sociais se assentam”. (ORLANDI, 2007, p.25)
Na perspectiva discursiva, a linguagem significa em sua inscrição histórica
mostrando-se como não transparente e carregada de gestos de interpretação, não se definindo
apenas como forma de comunicação, mas também de não comunicação.
De modo que, podemos tomar a linguagem como lugar de conflitos e confrontos,
onde há ausência de um sentido estabilizado, que só se constitui pela interação social. Esse
sentido é o modo do sujeito perceber as coisas do mundo, por isso, as significações não estão
materializadas nos atributos da língua e se constituem pelos sujeitos através das relações de
sentido. Relações essas que se interligam com outros discursos já pronunciados na base do
dizível, mostrando-nos a eterna incompletude da linguagem.
Nesse processo de incompletude, a linguagem não se define de maneira própria,
pois os sujeitos e os sentidos não estão constituídos definitivamente. Isto acontece porque
existe uma passagem do simbólico, o espaço do possível que apesar de encontrar-se na
abertura, também é conduzido pela institucionalização. “O sentido não existe em si mesmo.
Ele é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo histórico no
qual as palavras são produzidas” (PECHÊUX, 2006, p.27), se inscrevendo nas formações
discursivas.
As formações discursivas são representadas a partir de posições ideológicas que
administram o que pode ser dito. Aquilo que o sujeito diz se inscreve na formação discursiva
2 As questões estruturalistas ressoaram na França de tal forma, que muitos valores estabelecidos, na época, foram questionados por movimentos em debates políticos.
que o filia a um sentido e não a outro, interligando-se intrinsecamente com as formações
ideológicas que são formações puramente heterogêneas constituídas na contradição onde re-
significam constantemente suas relações.
Orlandi (2005, p. 26), ressalta que “A análise do discurso visa a compreensão de
como um objeto simbólico produz sentidos, como ele está investido de significância para e
por sujeitos”. Dessa forma, não busca uma verdade na essência do signo, um significado
primeiro, original. O que ela pretende é produzir um conhecimento partindo do próprio texto,
buscando verificar as condições que permitiram o aparecimento do discurso e explicando por
que tomou esse sentido e não outro. Sempre relacionando o lingüístico com a história e com
o ideológico.
1.1 Da oralidade à escrita
Ao dizer o sujeito marca um gesto de significação, tudo que não é significado foi
marginalizado ao non sense. Mas, será que ao escrever o sujeito também causa um efeito de
acepção? Ora, escrever é configurar as palavras, dar contorno a elas, o que está na base da
formulação do próprio sentido, logo, da significação.
Entretanto, a escrita nem sempre foi entendida dessa forma, conforme a Mitologia
Grega, a escrita surgiu com o mito de Tamos, o rei do Egito, e Theuth, o inventor de várias
artes, entre as quais a da escrita. Quando Theuth se apresentou no palácio de Tamos para
enaltecer os méritos da sua descoberta, teve uma surpresa ao constatar que o rei não a
apreciava. Enquanto Theuth imaginou a escrita como um auxílio para a memória, Tamos
observou que ela produzida um efeito exatamente ao contrário, já que, “entregando-se
completamente à escrita, os homens aprenderão a evocar as recordações do exterior, sob a
ação dos signos estranhos, não do íntimo espontaneamente” 3. Com efeito, o rei não achou a
escrita interessante, porque através dela os homens começariam a registrar os
acontecimentos, os pensamentos, o que conseqüentemente, daria visibilidade às próximas
3 TRABATTONI, Franco. Oralidade e Escrita em Platão. Cap.8, p.120 O Fedro e a Retórica, Filosofia e o Modo Correto de Compor Discursos. São Paulo Discurso Editorial; 2003.
gerações dos eventos de seu reinado, isso poderia deixar a população alerta sobre as atitudes
políticas de um regime monárquico.
Outro exemplo, sobre o receio do acesso à escrita, é apontado pelo escritor, filósofo
e lingüista italiano Umberto Eco, em seu livro O nome da Rosa, onde o autor denuncia os
interesses da Igreja católica, na Idade Média européia, em proibir os seminaristas de entrar
na biblioteca da instituição. Os livros de Aristóteles eram envenenados para que ninguém
ousasse assim, lê-los. Muitos aspirantes a padre morreram ao tentar ler suas obras.
Notamos que, a Igreja católica e o Estado sempre representaram os poderes
reguladores, responsáveis por manter a ordem.
É preciso se pensar a relação do sujeito com a linguagem como parte da relação do sujeito com o mundo, em termos sociais e políticos. Nessa perspectiva, a transformação do estatuto em relação ao saber e à linguagem corresponde à transformação das formas de assujeitamento do indivíduo à religião e ao Estado. [...] O Estado funda sua legitimidade e sua autoridade sobre o cidadão, levando-o a interiorizar a idéia de coerção ao mesmo tempo em que faz com que ele tome consciência de sua autonomia (de sua responsabilidade, portanto) [...] o sujeito religioso não interpreta, ele repete a interpretação que lhe é dada. (ORLANDI, 2007, p.90-91)
Nesse cenário, o sujeito relaciona-se com a linguagem, especificamente a escrita,
interpelado pela ideologia do Estado e da Igreja, que objetivam disciplinar seu corpo e suas
idéias.
Outro aspecto sobre a maneira de significação da escrita no passado nos é trazida
por Trabattoni (2003, p.125), o autor nos mostra o modo como os grandes filósofos - Platão e
Sócrates - discutiam a escrita. Na segunda parte do diálogo O Fedro e a retórica, Sócrates
faz a seguinte reflexão Qual é, pois a técnica que diferencia o escrever bem do escrever
mal? Para Sócrates, primeiramente, o bom orador precisa conhecer o tema que se propõe a
desenvolver, e afirma que a capacidade de falar e compor discursos é vinculada, de modo
direto, a habilidade de filosofar.
Platão (in TRABATTONI, 2003), afirma que o bom discurso deve ser o mais
verdadeiro e persuasivo e, ao mesmo tempo, levar em conta os numerosos condicionamentos
da comunicação oral.
O autor destaca que em todo diálogo Sócrates e Platão não distinguem o discurso
oral do discurso escrito, parecendo entendê-los como pertencentes à mesma denominação. O
que nos indica que nessa época a escrita não era diferenciada da fala, logo sua importância
era silenciada.
Orlandi (1999) prefere não reduzir a significação de escrita e oralidade ao modo de
uma tipologia - mesmo porque, no interior do imaginário coletivo, são esses dizeres que
funcionam - o que realmente importa é que ambas produzem diferentes gestos de
interpretação.
Podemos então observar essas diferenças, procurando explicitar, por exemplo, o
modo de funcionamento da oralidade como arquivo (interdiscurso ou memória
institucionalizada) em relação aos gestos de interpretação, ou enquanto é ela mesma um
gesto de interpretação de uma certa natureza.( ORLANDI,1999)
Apesar de não termos registros do início do uso da oralidade, sabemos que as
primeiras expressões escritas podem ter surgido de ideogramas que representavam uma
forma de registrar as coisas do mundo e foram datadas em aproximadamente 3.200 antes AC
na Mesopotâmia.
Milhões de anos mais tarde, em meados do século XIX, com a constituição do
estado novo no Brasil, juntamente com as instituições, leis, produções, governo, vida civil,
surgiu a necessidade de impor uma língua modelo que mesmo seguindo os padrões do
Português de Portugal, tivesse características próprias o que desencadeou o processo de
gramatização no Brasil e a constituição de uma língua nacional.
Segundo Auroux (1992, p.47) alguns interesses práticos corroboraram para que a
gramatização ocorresse; a colonização, o acesso a uma língua de administração, o
desenvolvimento uma política lingüística de uso interno ou externo, a organização e
regulamentar uma língua literária.
1.2 A escrita para a análise de discurso
Pensar na escrita, através do discurso, significa pensar nos dizeres que a constituem
e que aparecem carregados de uma historicidade, na qual o sujeito capturado por uma
ideologia tenta mobilizar a língua e significar.
Nesse processo de significação, o sujeito, movido pelos diferentes gestos de
interpretação, se relaciona com a língua e seus mecanismos de projeções imaginárias4.
Segundo Orlandi (2005), toda língua consegue se projetar de situação social para
posição no discurso. Logo, podemos trabalhar a língua como um fato social, compreendendo
a forma da língua como forma da sociedade, no imaginário.
Entretanto, é difícil pensar na escrita sem pensar na leitura. Mas de que forma
podemos definir essa escrita/leitura? Orlandi (1999, p.25) afirma que “a leitura não é uma
questão de tudo ou nada, é uma questão de natureza, de modos de relação, de trabalho, de
produção de sentidos, em uma palavra: de historicidade”. Ou seja, o sujeito na posição de
aluno precisa estabelecer redes de sentido, para que consiga historicizar sua escrita.
A Análise de Discurso (AD) trabalha com novas práticas de leitura que indicam
formas de elaboração de arquivos, nos mostrando a leitura da história, sua interpretação.
O próprio dessas práticas é relacionar o dizer com o não dizer, com o dito em outro lugar e com o que poderia ser dito. Essa escuta tem de particular o ser sensível às relações de sentido – seja pelo trabalho da memória (o interdiscurso) seja pela menção (a intertextualidade). O que praticamos, então, são novos gestos de leitura, percorrendo os caminhos dos sentidos. Em nosso caso, os sentidos que sustentam a produção de um conhecimento lingüístico que se foi produzindo junto à constituição de nossa língua. (ORLANDI, 2000, p.30)
Nessa perspectiva, entendemos a linguagem enquanto uma teia de sentidos, na qual
muitos gestos de interpretações são imaginariamente permitidos, enquanto outros
permanecem presos na materialidade discursiva, impedindo que os sentidos se configurem de
qualquer maneira, não se relacionando com a memória discursiva.
A memória no discurso é considerada como interdiscurso - que pode ser definido
como algo que mobiliza o sujeito em determinada situação discursiva atravessando sua
significação por meio dos já ditos e não-ditos. O dito e o não-dito se configuram
mutuamente, de modo que um implica o outro, pois, mesmo aquilo que não é dito indica um
pressuposto que carrega diversas significações daquilo que foi dito ou silenciado.
4 São essas projeções que permitem a mudança de lugares do sujeito para posições do sujeito no discurso.
Temos aí dois importantes dispositivos para a AD: o silêncio e o esquecimento, os
quais precisam ser compreendidos para análise dos dados. Existem dois tipos de silêncio: o
silêncio constitutivo, no qual uma palavra silencia outra e o silêncio local, que se
potencializa na determinação do que não deve ser dito.
De acordo com a AD, esse esquecimento é necessário para que o sujeito possa
estabelecer novas filiações com as redes de sentidos. O esquecimento ideológico5 representa
o modo como o sujeito é interpelado pela ideologia, o que lhe dá uma autonomia imaginária
do dizer. O outro esquecimento6, que é de ordem da enunciação, se configura pelas ligações
parafrásticas que o sujeito realiza dependendo de suas condições de produção.
As condições de produção referem-se ao sujeito e à situação. Em seu sentido
dilatado, notamos a presença do contexto sócio-histórico e ideológico. Na percepção
imediata, podemos considerar as circunstâncias da enunciação, ou seja, perceber que as
palavras transbordam sentidos e são carregadas de dizeres. “O sujeito diz, pensa que sabe o
que diz, mas não tem acesso ou controle pelo modo com o qual o sentido se constituem nele”
(ORLANDI, 2005, p.32).
II - QUE LÍNGUA É ESSA QUE O LIVRO DIDÁTICO ENSINA?
É inquestionável a importância de um livro que direcione as aulas do professor,
auxiliando-o na elaboração dos planos de ensino, facilitando o acesso dos alunos ao
conteúdo. No entanto, observamos na escola uma grande deficiência de aprendizagem da
língua portuguesa o que nos dá visibilidade para existência de alguns silenciamentos a
respeito da elaboração e ultilização dos manuais de ensino, especificamente na produção
escrita que configura nosso corpus.
Não queremos fazer aqui um percurso histórico do livro didático (LD), já que o que
nos interessa é o LD, tomado na sua materialidade lingüística que o constitui como
instrumento de poder do Estado, suas condições de produção, circulação e recepção, que 5 Por esse esquecimento, também chamado de esquecimento nº1, temos a ilusão de uma certa autonomia do que dizemos, entretanto, para que nosso dizer faça sentido temos que relacioná-los os já ditos. 6 O esquecimento nº 2 nos faz acreditar que há uma relação direta entre o pensamento, a linguagem e o mundo, de tal modo que pensamos que o que dizemos só pode ser dito com aquelas palavras e não outras. (ORLANDI, 2005,p.35)
estão definidas com referência à práticas sociais estabelecidas na sociedade. Enquanto tal, ele
carrega uma historicidade que não está desvinculada da própria história do ensino escolar, do
aperfeiçoamento das tecnologias de produção gráfica e dos padrões mais gerais de
comunicação na sociedade.
Uma questão importante a ser pensada é sobre a forma como o livro didático
trabalha os aspectos relacionados à linguagem. Podemos considerar que a linguagem é mais
do que um conjunto de recursos simbólicos de expressão e comunicação: é instância
constitutiva de identidades, de relações entre sujeitos, instituições e conhecimento. Por isso,
Pêcheux (2006, p.20) afirma que:
O sujeito não se apropria da linguagem num movimento individual. A forma dessa apropriação é social. Nela está refletido o modo como o sujeito o fez, ou seja, sua interpelação pela ideologia. O sujeito que produz linguagem também está reproduzido nela, acreditando ser a fonte exclusiva de seu discurso quando, na realidade, retoma sentidos preexistentes. A isso chamamos de “ilusão discursiva do sujeito”.
Vemos assim que a dimensão social da linguagem nos leva, portanto, a desconstruir
a idéia de que o sentido está na palavra, percebendo cada vez mais a opacidade da linguagem
problematizando a natureza histórica e social do processo de construção e negociação de
sentidos, que se dá nas práticas discursivas em interações de caráter dialógico, isto é, por
meio de diálogos entre indivíduos e de diálogos entre discursos. Entender o texto didático
sob esta ótica implica, então, compreendê-lo como produto de atividade social, vinculada a
temas e a contextos específicos de produção, circulação e recepção de textos por sujeitos
participantes em práticas discursivas e não como imagem especular destas práticas. Daí a
necessidade de problematizar as condições de produção da escrita materializada pelos
manuais de ensino e atravessada pelo poder do estado.
2.1 Análise da produção escrita no livro didático
Apresentamos a seguir algumas de nossas reflexões sobre o livro didático, que têm
sido orientadas sob a luz da Análise do Discurso. Nossos estudos significam o livro didático
de Língua Portuguesa em relação às suas condições de produção e investigam as práticas de
produção textual a ele solicitadas em diferentes contextos.
Implantado em 2004, o Programa Nacional do Livro Didático do Ensino Médio
(PNLEM) prevê a distribuição de livros didáticos aos alunos do ensino médio público de
todo o País. A escolha do livro didático é feita através da internet ou do preenchimento do
formulário enviado pelo MEC às escolas cadrastadas.
O Catálogo do PNLEM/2009 contém a síntese das obras de Língua Portuguesa
avaliadas e aprovadas no processo de seleção do PNLEM/2007, a ser escolhida pelos
professores, como material de contribuição à prática pedagógica. As obras “escolhidas” em
2008 serão distribuídas para utilização a partir de 2009.
No entanto, sabemos que essa escolha passa por processos silenciados, visto que,
antes dos livros serem enviados à Escola eles são selecionados pelo MEC que envia à escola
uma opção máxima de cinco obras, e nem sempre o livro didático selecionado pelos
professores é o mesmo enviado para ser utilizado em sala de aula. Decorre que, na opacidade
dessa circularidade de alternativas de LD, está silenciado uma forma de seleção de livros
muito obscura, na qual as idéias ficam alijadas no espaço, tendo em vista que o professor
apenas acata as obras - de uma mesma editora- que o MEC muito anteriormente já escolheu.
O livro escolhido para análise é utilizado em algumas escolas públicas de ensino
médio de Cáceres-MT. Possui a autoria de Ernani Terra7 e José de Nicola8, intitulado O
Português de olho no mundo do trabalho, dividido em 24 capítulos de Produção de texto, 17
capítulos sobre Gramática subdivididos em 3 unidades: Fonologia, Morfologia e Sintaxe; e
Literatura com 19 capítulos.
7 Ernani Terra é professor de Português, formado pela USP e possui vários livros didáticos publicados pela Editora Scipione. 8 É professor de literatura desde 1968, tendo lecionado em diversas escolas particulares de Ensino Médio e também em cursinhos preparatórios para exames vestibulares. Tem se dedicado à produção de livros didáticos para o ensino de Língua Portuguesa, Literatura Brasileira, Literatura Portuguesa e Redação.
Observamos que o sumário do livro é apresentado de forma bem fragmentada. A
literatura, a gramática e a produção de texto são trabalhadas de modo separado, como se não
existisse uma intrínseca ligação entre elas.
Uma outra reflexão se faz possível a partir do título do livro Português de olho no
mundo do trabalho que nos remete ao capitalismo desenfreado ao invés de dar ênfase à
língua portuguesa. Esse aspecto vai ao encontro do objetivo de criação do ensino médio, que,
desde anos 60 possui uma política educacional na qual prioriza a formação de especialistas
capazes de utilizar maquinarias e dirigir processos de produção.
Mafra (2003) ressalta que o Ensino Médio (EM) priorizava uma sociedade de
estrutura taylorista-fordista9 própria das maquinarias, genuinamente direcionada à formação
profissional.
De acordo com PCNEM, (2002, p. 16), o aluno precisa desenvolver a “capacidade
de pesquisar, buscar informações, analisá-las e selecioná-las, capacidade de aprender, criar,
formular, ao invés do simples exercício de memorização”, ou seja, teoricamente utilizar os
conhecimentos de forma “autônoma” e “criativa”. Entretanto, percebemos que apesar do
discurso teórico dos PCNEM e as mudanças tecnológicas ocorridas o Ensino Médio continua
com a mesma finalidade de capacitar o aluno para sua função.
Nessa ínterim Paz (2006, p.186) afirma que “o trabalho sem fim, infinito,
corresponde à vida sem finalidade da sociedade moderna”, logo a escola transformou-se num
espaço de formação da “mão - de - obra qualificada”, não interessando o que esse sujeito
pensa, de que forma significa sua memória discursiva. O que realmente importa é que seu
corpo e suas idéias estejam “docilizados”, parafraseando Foucault (2000), o suficiente para
entrar no mundo do trabalho.
Nesse aspecto, Althusser (2007, p.57) nos alerta com alguns questionamentos:
Ora, vejamos como se dá esta reprodução da qualificação (diversificada) da força de trabalho no regime capitalista? Ao contrário do que se ocorria nas formações sociais escravistas e servis, esta reprodução da qualificação da força de trabalho tende [...] a dar-se não mais no “local de trabalho” (a aprendizagem na própria produção), porém, cada vez mais, fora da produção, através do sistema escolar capitalista e de outras instâncias e instituições. Ora, o que se aprende na escola? É possível chegar-se a um ponto mais ou menos avançado nos estudos, porém de qualquer maneira aprende-se a ler, escrever e contar, ou seja, algumas técnicas, e outras coisas também inclusive elementos [...] de “cultura científica” ou “literária” diretamente utilizáveis nos diferentes postos da produção (uma instrução
9 O princípio “taylorista/fordista”, de base eletromecânica rígida, caracteriza-se pela produção em massa e em série de mercadorias padronizadas, aspectos que demandavam dos trabalhadores capacidades cognitivas relacionadas à memorização de conhecimentos e repetição de procedimentos numa determinada seqüência; ademais, exigia-se ainda a uniformização de respostas, a separação entre tempos de aprender e tempos de repetir procedimentos práticos. Quanto à dimensão ideológica das relações de produção, o controle se dava mediante a fiscalização externa, através da presença de inspetores, gerentes, supervisores, presentes no interior do espaço produtivo. http://www.abed.org.br/bahia/a_03.html
para operários, uma outra para os técnicos,uma terceira para os engenheiros, uma ultima para os quadros superiores, etc...) Aprende-se o “khow-how”.
Os desdobramentos que encontramos, na opacidade do ensino, é uma política
educacional com marcas positivistas, em que uma “elite dominante” regula a massa
dominada que tem acesso, na escola pública, a conteúdos direcionados apenas a sua função
específica de “eterno” servil, com discurso capitalista de amenização das desigualdades.
Ao final de um capítulo é apresentado no livro um quadro intitulado: De olho no
mundo do trabalho, que explica a função de alguns profissionais e algumas profissões.
No entanto, as produções textuais propostas não ensinam o aluno a produzir o
gênero de texto que ele precisará saber nessa profissão exposta. Ocorre que não há uma
relação do que se teoriza no livro com as propostas de produção textuais, que acabam se
resumindo em receitas direcionadas por uma questão que espera uma resposta correta do
aluno, é o conteúdo posto podendo ser expresso em forma de paráfrase.
A AD não trabalha com a forma nela mesma, ela nos dá visibilidade a dicotomia
entre forma e conteúdo, tomando conteúdo enquanto efeito de sentido visto que, o suporte do
sentido é a cadeia de significante. A forma e o sentido vão se produzindo, já a materialidade
impõe limites.
Nas primeiras 186 páginas, os autores apresentam diversas maneiras de trabalhar
com a produção de texto. O primeiro capítulo é intitulado O texto: leitura e reflexão, na qual
a primeira sugestão de atividade é uma questão de um vestibular da Universidade Federal do
Amapá (Unifap), cujo tema é produção de texto na escola.
Os autores trazem cincos diferentes textos que abordam o assunto da dificuldade de
escrever e da falta de leitura dos estudantes brasileiros. É preciso, porém, refletir sobre a
proposta de produção feita aos estudantes, principalmente no que se refere à concepção de
escrita com a qual lida. Para os autores escrever é colocar idéias no papel de forma
organizada. Ora, para que as informações sejam organizadas é necessário antes organizar as
idéias que não surgem do nada, devemos pensar, então, de que maneira podemos incentivar
os alunos para que essas idéias apareçam. Os autores nos mostram também o conceito de
leitura que é de atribuir significado, construir significado para o texto lido (2002, p.13).
Após algumas reflexões sobre a escrita e a leitura, os autores fazem à proposta de
produção textual que nos direciona a seguinte reflexão do tema para o aluno: Que geração é
essa que não lê e disso não tem vergonha? Logo abaixo seguem as instruções para produção
do texto: Procure responder com um texto de vinte linhas, dando sua opinião sobre o papel
da leitura aqui e agora. Antes de redigir, selecione alguns argumentos e procure ser bem
convincente. Tal como segue no recorte abaixo:
Notamos que a produção textual, geralmente, se norteia por uma pergunta, para que
o aluno direcione seus pensamentos à procura de uma resposta que já existe no próprio
enunciado. O aluno terá que copiá-la e convencer o leitor de seus argumentos em apenas
vinte linhas, desse modo o ato de escrever passa a significar para esse aluno algo como
convencer, responder perguntas, seguindo adequadamente as ordens. Entretanto, sabemos
que a escrita transcende as receitas didáticas, pois o ato de escrever convoca uma
historicidade, considerando que toda leitura precisa ser re-significada para que se realize, ou
seja, inscreve-se numa memória discursiva e em condições de produção determinadas.
Nesse aspecto, o sujeito precisa historicizar suas leituras para produzir sentido. Por
essa razão, muitas vezes, o aluno não consegue compreender algo escrito ainda que em
língua nacional, fato que decorre de suas condições de interpretação em uma formação
discursiva dada, na qual, o sujeito se inscreve dependendo de sua formação ideológica que
determina o que pode e deve ser dito.
Numa perspectiva discursiva, a leitura é considerada como produzida e produtora de
sentidos e está regulada por condições de produção. Para Orlandi (1999, p.48), o texto é, por
definição, incompleto e sempre passível de novas leituras. Para a autora, “as palavras não
significam por si, mas pelas pessoas que as falam, ou pela posição que ocupam os que as
falam. Sendo assim, os sentidos são aqueles que a gente consegue produzir no confronto do
poder das diferentes falas”. Deste modo, a perspectiva discursiva desloca-nos de uma
concepção de leitura como relação entre sujeito e objeto (leitor/texto) para uma na qual ela
passa a ser interação entre sujeitos (autores e leitores) por meio do texto.
Ocorre que o livro didático carece de ser usado como elemento mediador em
interações discursivas entre os diferentes sujeitos que tomam parte na construção do
conhecimento sobre a escrita na escola.
Nessa outra proposição de escrita observamos as instruções dos autores para
formulação do texto: A partir da leitura do texto de apoio, produza um texto verbal
obedecendo as seguintes condições:
Podemos perceber, logo de início, a presença do verbo obedecer no gerúndio, nos
remetendo às relações de poder, nesse caso, a de impor regras ao que o aluno deve fazer.
Portanto, nota-se que, nesse espaço de produção, não existe alternativa para o aluno
historicizar suas práticas de escrita, sua única escolha é obedecer prontamente às ordens para
formular seu texto; em síntese, obedecer ao comando. Se o aluno tenta transcender essa
imposição através de sua “criatividade”, provavelmente incorrerá no erro e,
consequentemente não obterá sucesso na sua produção escrita.
Segundo Orlandi (2005, p.37) “a criatividade implica na ruptura do processo de
produção da linguagem, pelo deslocamento das regras, fazendo intervir o diferente,
produzindo movimentos que afetam os sujeitos e os sentidos na sua relação com a história e
com a língua”.
Nesse sentido, para o aluno buscar sua criatividade ele precisa romper com o que já
está instituído, no entanto, muitas vezes o aluno não consegue colocar em conflito os
sentidos preexistentes e os que se vão configurando para re-significar sua escrita. Ocorre que
ele acaba perdendo sua individualidade, já que as produções escritas precisam direcionar
sempre a um mesmo ponto, a uma equivocidade lógica que caracteriza a resposta certa.
Outro aspecto é o fato de os autores utilizarem verbos no imperativo tais como:
coloque-se, dirija-se, tome e utilize o que nos permite perceber que a produção de texto
segue uma receita, isto é, descrevendo o modo como o aluno deve escrever o texto. Como já
sabemos, na língua portuguesa existem diversos tipos de textos, entretanto, não se especifica
o tipo de texto que o aluno deve escrever, ou seja, o gênero textual a ser produzido.
O texto, no livro didático, aparece como uma simples adaptação da tipologia para
efeito do ensino da escrita, exclusivamente por meio de transposições didáticas de conteúdos
de referência. Nesse sentido, tornam-se complexas as relações entre língua, cultura e
sociedade, comprometendo a formação do cidadão, por se constituir de interações situadas
unicamente em práticas típicas do ensino escolar. Nessa direção, o texto representa uma
instância articuladora na materialização do discurso científico-escolar.
Estas considerações sobre a utilização do LD, longe de culpabilizar o professor,
chamam a atenção para o potencial oferecido pela análise de discurso para “compreender
como o simbólico e o político se conjugam nos efeitos a que ele [no nosso caso o professor],
enquanto sujeito da linguagem, está (as)sujeit(ad)o” (ORLANDI, 1999, p.95).
Nesse panorama, visualizamos o sujeito na posição de aluno imerso no mundo
capistalista voraz, instantâneo, que se depara com seu limite, constituindo-se por uma falta –
identidade, subjetividade, significação – nas suas relações de sentido, inscrevendo-se numa
formação imaginária em que interlocutor dificilmente o compreenderá, produzindo escritos
cujas relações de sentidos resultaram na incoerência textual.
Ao refletir sobre essas questões no texto, podemos compreender a dificuldade do
aluno de significar sua escrita, visto que ele não consegue constituir sua rede de sentido - seja
através da memória (o interdiscurso), seja pela menção (a intertextualidade), para estabelecer
novos gestos de leitura, novas conexões de significação, que é exatamente o ponto que
sustenta a produção do conhecimento lingüístico. A partir do momento que sua escrita não
tem valor, o sujeito se sente excluído das relações de sentido com o outro, ficando à margem
da linguagem.
No caso do ensino de Língua Portuguesa, o manual analisado constitui
essencialmente uma prática de escrita desviante - silenciada. A definição de livro didático,
como materialidade lingüística, dentro de uma abordagem discursiva, expande as discussões
sobre este para além dos estudos da escrita, na medida em que permite re-formular os
conceitos de escrita que estão funcionando como base de relação entre a língua e o sujeito.
Considerações Finais
Nossas análises revelaram que as produções textuais na escola, trazidas pelo livro
didático de língua portuguesa, demonstram a fragilidade no ensino da escrita, que se projeta
em todas as áreas de aprendizado. Assim, o sujeito/aluno não consegue interpretar a própria
escrita, ele não se identifica com suas produções, que, consequentemente, não significam. De
fato, observamos a tendência de a escola tentar homogeneizar os pensamentos, burlando a
criatividade do aluno.
Estas considerações podem ser instrumentais na busca do desenvolvimento de um
olhar crítico com relação ao livro didático pelos professores, de modo a perceber a
representação de diferentes discursos, que condicionam a inserção dos conteúdos e a adoção
de determinadas abordagens, colaborando para a desconstrução do uso mecânico do livro
didático pelo professor, em sala de aula.
Antes de ser o exercício de uma competência o ato de escrever é uma maneira de ocupar o sensível e de dar sentido a essa ocupação. Não porque a escrita é um instrumento de poder ou via real do saber, em primeiro lugar, que ela é coisa política. Ela é coisa política porque seu gesto pertence à constituição estética da comunidade e se presta acima de tudo a alegorizar essa constituição. (RANCIÈRE,1995, p.25)
A definição de escrita de Rancière, a qual iniciamos nosso artigo, sintetiza nossas
argumentações e nos revela que não adianta só “aprender” a escrever, é preciso que esta
aprendizagem não seja mera transcrição, mas que inscreva o sujeito na estrutura social, pois
a escrita é um trabalho de memória que estrutura as relações sociais e reconhecer que os
alunos são sujeitos culturais e seu saber auxilia na construção de saberes, seria um primeiro
passo.
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