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O grande russo também era um niilista: Dostoiévski à luz de Nietzsche
Le grand russe était lui aussi un nihiliste: Dostoiévski à la lumière de Nietzsche
Rodrigo Juventino Bastos de Moraes1
Resumo: Por mais que entre os comentadores se costume relacionar Dostoiévski e Nietzsche
principalmente em vista do quanto o primeiro, por meio de sua literatura, teria fornecido ao
último de material patético para a análise das pulsões convulsivas da negação e de
autoaniquilamento, úteis, sobretudo, para a formulação de sua “psicologia”, é preciso ter em
consideração que Nietzsche não apenas teria sido um profundo entendedor das implicações do
niilismo em Dostoiévski, como também, com base nisso, não teria negligenciado os rudimentos
de seu cristianismo, como afirmam alguns autores. O presente trabalho pretende, à luz d’Os
Irmãos Karamázov, perscrutar o modo como a temática do niilismo se desdobra no último
romance de Dostoiévski, partindo do tão debatido ateísmo de Ivan Karamázov e do cristianismo
renovado de Aliócha que, subsequentemente, emerge da confutação desse mesmo ateísmo —, e,
com base nisso, avaliar o quanto que desse desenlace poderia resultar nas implicações que não
teriam escapado ao filósofo alemão quando Dostoiévski é por ele posto na fileira dos decadentes
de seu século.
Palavras-chave: Nietzsche. Dostoiévski. Niilismo. Ateísmo. Modernidade.
Résumé: Même quand il s'agit, parmi les commentateurs, de mettre en rapport Dostoïevski et
Nietzsche, principalement considérant à quel point le grande russe, à travers sa littérature,
fournit à Nietzsche de matière essentielle pour l'analyse des impulsions de la négation, utile,
surtout, pour la formulation de sa “psychologie” — il faut considérer que Nietzsche, n’avait pas
été seulement un profond connaisseur des implications du nihilisme en Dostoïevski, mais aussi,
sur cette base, n'aurait pas négligé les rudiments de leur christianisme — comme certains
experts l’ont déclaré. Cet article cherche montrer, à la lumière des Les Frères Karamazov,
comment le thème du nihilisme se déroule dans le roman, sur la base du largement discuté
atheísme d'Ivan Karamazov et de l'immersion du christianisme d’Aliocha — après de réfuter ce
même athéisme — et ainsi évaluer comme tout cela n'aurait pas échappé au philosophe
allemand quand il comprend Dostoievski parmi les decadénts de son siècle.
Mots-clés: Nietzsche. Dostoiévski. Nihilisme. Athéisme. Modernité.
* * *
Na metade do século XIX uma importante rebelião social que na Rússia opôs a
descrente e rebelde “geração de Bazárov” à de seus pais é descrita por Turguêniev, em
1 Graduando em Filosofia pela Universidade de São Paulo - USP. Bolsista FFLCH-USP. Orientador: Prof.
Dr. Eduardo Brandão. E-mail: [email protected]
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sua obra prima, Pais e Filhos, como “niilista”2. Seria esse o momento em que o termo
passaria a integrar o léxico da opinião pública russa e ganharia os espaços da cultura
com um sentido datado e bastante particular: o de exprimir a atitude prática e teórica da
jovem geração de 1860, embebida no realismo literário do último Gógol, no
materialismo de Feuerbach, e prestamente obstinada em levar a termo uma completa e
radical destruição dos valores, da autoridade, de todo imperativo representado na
geração de 1840 — da estética romântica, do hegelianismo, do liberalismo e do
socialismo utópico de seus pais — tudo em benefício de uma onda revolucionária cujo
alcance, se vê mais tarde, seria o de ter posto os russos irreversivelmente na rota que os
conduziria à revolução comunista (FRANK, 1992, p. 219). Com Dostoiévski,
entretanto, é que a problemática do niilismo, que se espraiaria pela realidade social e
cultural da Rússia desde esses eventos descritos por Turguêniev em Pais e Filhos,
ganharia sua expressão literária mais bem acabada.
Isso, pois, além de insuflar vida às idiossincrasias de seus niilistas — e deitar
cores no quadro patético de seus dilemas — dá vida também às intuições e motivos
filosóficos que poriam em circulação a experiência niilista tanto na Rússia quanto na
Europa. Vistos pelo retrato de uma época, de todo seu pathos característicos — a
miséria dos modernos — seu ateísmo, sua crise de sentido, seu cansaço, — e que quase
nunca emergem, pelo prisma de suas personagens, sem que antes intervenha algum
lampejo de escárnio à aposta ingênua que os homens de seu século destinaram aos
poderes emancipatório da razão, ou sem irromperem as consequências do maior e mais
terrível parricídio da história da humanidade: a morte de Deus. Assim como Nietzsche,
a quem também devemos nossas reflexões sobre o niilismo, com suas lentes de grande
psicólogo da cultura sobre os novos ídolos erigidos no vazio pelos europeus, com seus
deliciosos elixires como remédio para todas as suas formas de narcóticos — em seu
hercúleo combate a tudo o que não deve ser confundido com as causas do niilismo, e
que compõe apenas seu quadro sintomático geral, mas de cujo revolvimento do solo de
suas causas depende toda sua filosofia, toda sua acuidade e alcance do olhar,
exatamente tudo o que teria feito de Nietzsche grande pensador da modernidade.
À temática do niilismo, portanto, todo o século XX terá, em ambos, seu débito
inequívoco. Em Nietzsche, por exemplo, as reflexões sobre “o mais indesejável dos
2 “O niilista é a pessoa que não se curva diante de nenhuma autoridade, que não admite nenhum princípio
sem prova, com base na fé por mais que esse princípio esteja cercado de respeito” (TURGUENIEV, 2011,
p. 48).
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hóspedes” é elevada a objeto explícito de investigação filosófica e passa a comportar
sentido chave aos demais temas correlatos de seu pensamento — o que se atesta pelo
modo como, a partir da década de 1880, o tema passa a ganhar em amplitude na
economia de sua obra — e de cujas reflexões Nietzsche teria como dívida suas leituras
da crítica que Paul Bourget dedica ao decadentismo literário europeu em seu Essais — à
leitura do próprio Pais e Filhos, bem como ao contato com outros escritores russos que
chegavam às mãos de Nietzsche pelas traduções francesas. Contudo, ao lado desses
todos, talvez nenhum outro autor tenha sido tão importante nesse quesito quanto
Dostoiévski, cujo impacto da leitura de obras como L’esprit souterrain se faz sentir em
Nietzsche principalmente a partir de 1887. O tormento e o pendor destrutivo que faz
ranger os dentes das grandes personagens de Dostoiévski frente à anunciada morte de
Deus é um traço marcante em sua literatura que, para alguns autores, alça o escritor
russo a tão elevadas alturas que mesmo Nietzsche nunca fora capaz de alcançar3.
Desse modo, por mais que entre os comentadores se costume relacionar
Dostoiévski e Nietzsche, principalmente em vista do quanto o primeiro, por meio de sua
literatura, teria fornecido ao último de material patético para a análise das pulsões
convulsivas da negação e de auto-aniquilamento, úteis, sobretudo, para a formulação de
sua “psicologia”, é preciso ter em consideração que Nietzsche, não apenas teria sido um
profundo entendedor das implicações do niilismo em Dostoiévski como também, com
base nisso, não teria negligenciado os rudimentos de seu cristianismo, como afirmam
alguns autores4. O presente trabalho pretende, à luz d’Os Irmãos Karamázov, perscrutar
o modo como a temática do niilismo se desdobra no último romance de Dostoiévski
partindo do tão debatido ateísmo de Ivan Karamázov e do cristianismo renovado de
Aliócha que, subsequentemente, emerge da confutação desse mesmo ateísmo —, e, com
base nisso, avaliar o quanto que desse desenlace poderia resultar nas implicações que
não teriam escapado ao filósofo alemão, quando Dostoiévski é por ele posto na fileira
dos decadentes de seu século. Embora não se saiba ao certo se Nietzsche realmente teria
lido essa obra5, sua escolha se justifica, não apenas por se tratar de um livro em que o
problema do niilismo é tratado com maior rigor e implicações filosóficas, mas por trazer
3 É o caso de Luigi Pareyson, que iremos analisar adiante. 4 Como ocorre em Miller (1978, p. 139-140). 5 Embora não sejam conhecidas quaisquer referências diretas de leitura de Os irmãos Karamázov por
parte de Nietzsche, a proposição famosa de Ivan Karamázov “nada é verdadeiro, tudo é permitido”, que
reiteradamente aparece nos fragmentos póstumos, talvez evidencie essa leitura. Muito embora em A
Genealogia da Moral Nietzsche atribua a expressão à Ordem dos Assassinos do Oriente, e não a
Dostoiévski (NIETZSCHE, 2010a, III, §24, p.129).
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à luz os movimentos que levaram Dostoiévski a concluir por seu cristianismo renovado.
Escolha que tanto mais se justifica também pelo exercício analítico do presente autor
que, por meio dessa hipótese, desse subterfúgio da antiguidade do próprio pensamento,
busca lançar luz sobre a intricada relação entre Nietzsche e Dostoiévski não pela via
habitual do material psicológico, mas apesar dele e em diálogo com ele — pelo modo
como Dostoiévski devia ser lido à luz do niilismo tal qual Nietzsche o teria pensando.
E aqui, precisamente, se inscreve nosso ingresso ao último romance de
Dostoiévski, Os Irmãos Karamázov — cujo percurso nos mostrará o que precisamente
teria permitido a Nietzsche colocar o escritor russo na fileira dos décadents de seu
século. Assim como no filósofo alemão, a morte de Deus também é sentida por
Dostoiévski com a força de um abalo cósmico, e o niilismo com o receio de um hóspede
indesejado — o que não deixaria de inserir o romancista russo na fila dos
frequentadores de seu século, enquanto filhos da “descrença e da dúvida” —
reproduzindo suas próprias palavras em famosa carta à sua esposa Fonvìzina
(DOSTOIÉVSKI, 2013, p. 49-53). Entretanto, é preciso que se dê a cabida distância
entre ambos frente à anunciada morte de Deus e ao ateísmo, visto que este último não
exatamente figure como algo que realmente tivesse interessado a Nietzsche6. Se a Morte
de Deus, expressão que, segundo Heidegger, em Nietzsche assinala sua crítica ao
dogmatismo em associação a uma perspectiva de superação do niilismo na modernidade
(HEIDEGGER, s/d, p. 250s), em Dostoiévski, entretanto, se desdobra como provação
do teísmo cristão pelo ataque virulento aos pressupostos dos quais dependem os
próprios sentido afirmativo de sua Teologia. Isso ocorre, com efeito, porque
precisamente desse crisol depende seu cristianismo renovado — do que poderia
sobreviver à mais radical crítica do teísmo, como adiante veremos n’Os Irmãos
Karamázov. Algo que foge completamente a Nietzsche, que não chega a se mover em
um registo de ateísmo por estar menos preocupado com a existência de Deus do que
com o valor dos valores amparados nele: — “A questão da mera ‘verdade’ do
cristianismo — seja com vistas à existência de seu Deus, seja com vistas à historicidade
da lenda de seu surgimento, para não falar da astronomia e da ciência natural cristã — é
uma questão totalmente secundária, enquanto não se toca no problema do valor da
moral cristã” (NIETZSCHE, 2012, p. 375).
6 “‘Deus’, ‘imortalidade da alma’, ‘redenção’, ‘além’, simples conceitos, a que não dediquei nenhuma
atenção, também nenhum tempo, nem sequer em criança — talvez eu nuca tenha sido bastante infantil
para tal? — Não considero o ateísmo como resultado, menos ainda como acontecimento; em mim decorre
do instinto” (NIETZSCHE, 2010b, §1, p. 37).
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Já para o grande russo, pôr em provação o teísmo, bem mais do que um truísmo
de época, se apresenta como a grande questão da qual depende o futuro dos homens.
Não à toa que a morte de Deus seja um tema tão familiar ao frequentador de
Dostoiévski — uma vez que se apresenta como o grande responsável por animar toda
sorte de dilemas pelos quais passam boa parte das principais personagens de sua obra —
seja no problema moral-filosófico que Raskólnikov suscita ao reivindicar sua própria
liberdade em Crime e Castigo; seja no poder corrosivo do luciferiano Stavrògin, ou na
licitude infinita, inclusive para o suicídio, de Kirillov em Os Demônios (VOLPI, 1999,
p.42). No entanto, falta um personagem d’Os Irmãos Karamázov sem o qual essa lista
estaria fatalmente comprometida — que mesmo sendo fruto da fantasia artística do
romancista russo, aos olhos de Luigi Pareyson, é merecedor inequívoco de um lugar
cativo na história da filosofia como grande pensador do niilismo, maior até do que o
“labiríntico Nietzsche”: Ivan Karamázov (PAREYSON, 2012, p.192). E ir à profundeza
desse niilismo é o que precisamente nos interessa com vistas a destacar, em meio a essa
massa de vozes que ruidosamente irrompe da prosa polifônica do romancista russo, o
lugar preciso do ateísmo de Ivan. Segundo o filósofo italiano, o tema do niilismo
alcançaria seu máximo estentor com Ivan, sobretudo no que perfaz suas considerações a
respeito do colóquio feito com Aliócha sobre o sofrimento inútil no episódio nomeado
“A Revolta”, e também na exposição que se segue com a lenda do “Grande Inquisidor”.
Aos olhos de Pareyson, entre os dois trechos haveria um vínculo construtivo sendo que
o primeiro denunciaria o fracasso da Criação, enquanto que o último, o da Redenção, e
de cuja soma resultaria uma negação radical do teísmo pela primeira via, e do
cristianismo pela segunda (PAREYSON, 2012, p. 202-203).
As tão conhecidas cenas de sofrimento inútil narradas por Dostoiévski em sua
obra, que dispõem animais, idiotas, e crianças, às barbáries das mais ignominiosas,
parecem ser as que Ivan têm em mente quando se recusa a aceitar a escatologia cristã do
juízo final em “A Revolta” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 329-330). Embora se exulte do
caráter triunfal da grande harmonia universal que no final dos tempos redimiria a tudo e
a todos, Ivan não pode deixar de repugnar o mal gosto de uma epopeia cósmica absurda,
dada sua licença ao sofrimento inútil dos inocentes. Que o preço do pecado seja pago
com sofrimento atroz, isso parece cabível, e até mesmo justo, aos adultos que comeram
do fruto proibido e subtraíram o fogo do céu. Absurdo, por outro lado, é o caso do
sofrimento das crianças que, assim como todo sofrimento inútil, aparece como
essencialmente paciente, posto que o ofendido aqui é naturalmente fadado a ser incapaz
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de resistir e de reagir ao ofensor — e sem sujeito, pois nele a dor não tem nenhum fim
construtivo7. Assim, todo sofrimento inútil seria aquele que, “pelo excesso da dor, ou
pela incapacidade do paciente, não pode transformar-se nem em via para a purificação e
para a redenção, nem em via de maturação interior” (PAREYSON, 2012, p. 185).
Desse modo, a harmonia universal, que perfaz a comédia cósmica, só pode
parecer repulsiva a Ivan: nenhuma harmonia infinita é capaz de redimir um sofrimento
inútil sem que com isso não se perca também para sempre o elo entre Bondade e
Criação. Isso, levado a sério, mostraria que a beatitude comprada ao preço da
instrumentalização do sofrimento inútil daria forma a uma teodiceia absurda, pois
revelaria a crueldade e a injustiça, ou, na melhor das hipóteses, a negligência,
subjacentes às intenções do supremo arquiteto de uma ordem cósmica fundada na
completa absurdidade.
Mas Ivan vai além no que se segue com a lenda do Grande Inquisidor —: se
Deus fracassa no plano da criação, o mesmo ocorre no plano da redenção, já que o
Calvário, ao invés de livrar o homem da dor da qual padece desde a queda, intensifica
nele o sofrimento e a infelicidade ao render-lhe sobre os ombros o fardo da liberdade.
Somada, então, a inexistência de Deus, pela teodiceia do sofrimento inútil, à impotência
de Cristo, pela boa nova que traz consigo o peso nefasto da liberdade, o resultado seria
um niilismo integral que, pela primeira via, nega o teísmo, e, pela segunda, o
cristianismo (PAREYSON, 2012, p. 202). Tanto mais destrutiva se mostra essa
negação, pois não é dada pela via habitual de um homem do século XIX ― não pela
costumeira, e fastidiosa, confutação científica e filosófica da existência de Deus, mas
pela negação radical do próprio sentido teológico da Criação: tanto mais virulento seu
ateísmo “religioso”, pois, operando no interior da própria visão tradicional da
divindade, expõe o crente ao seguinte dilema: ou se aceita Deus, ao custo de repugnar
sua obra, ou, caso triunfe a realidade absurda do mundo, a existência de Deus é que tem
que ser posta em cheque.
Entretanto, falta deixar falar Aliócha, porta-voz da réplica a Ivan. Embora esse
ateísmo seja um componente do pensamento de Dostoiévski, ele não se apresenta como
ponto de chegada, como o é em Ivan, que extrai das implicações teológicas profundas
7 “É precisamente o lado indefeso dessas criaturas que seduz os torturadores, e a credulidade angelical da
criança, que não tem onde se meter nem a quem recorrer, é o que inflama o sangue abjeto do torturador”
(DOSTOIÉVSKI, 2009, p.334).
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do teísmo sua negação radical8. O niilismo, como ponto de chegada de Ivan, torna-se
ponto de partida em Dostoiévski, por meio do qual encontra a via para uma afirmação
irrestrita da existência de Deus — para um novo teísmo renovado. A ideia de
Dostoiévski é vencer a argumentação de Ivan mostrando que ela é menos nociva que
vantajosa ao teísmo tradicional, pois, num só gesto, além de trazer a medida de validade
da existência de Deus, mostra que, caso seja capaz de resistir à crítica mais radical já
empregada ao sentido da Criação, pode sair daí, então, fortalecida, triunfante,
rejuvenescida, para sempre renovada (PAREYSON, 2012, p. 212-213). E isso seria
feito sobretudo por Aliócha, ponto alto da confutação do ateísmo de Ivan: embora aceite
o efeito repugnante de uma teodiceia sustentada no sofrimento absurdo dos inocentes,
para Aliócha, isso não devia comprometer a existência de Deus, mas, reforça-la, pois,
em Cristo houve alguém que, ainda que inocente, pudera perdoar mesmo abarcando
todo sofrimento humano (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 340). Ainda que, com isso, o
sofrimento em si permaneça insondável, o fato de o redentor tomar toda sorte de
sofrimento sobre si foi suficiente para libertar a humanidade da falta de sentido para
sofrimento. Com isso, o sofrimento inútil perde muito de seu caráter absurdo diante de
um escândalo infinitamente maior — de proporções colossais — o sofrimento do
redentor, do próprio Deus que quer sofrer: “ao escândalo do sofrimento inútil do puro
paciente, Aliócha contrapõe o escândalo do redentor, isto é, do Deus que sofre e morre”
(PAREYSON, 2012, p.221).
Essa passagem é profundamente esclarecedora em vista de Nietzsche não ter
poupado Dostoiévski ao tê-lo alocado na fileira dos décadents de seu tempo — de tê-lo
como mais uma daquelas vozes a professar uma moral de escravos. Todo problema aqui
giraria em torno da agonia, às margens da loucura, de Ivan frente ao sofrimento inútil e
da solução de Aliócha que elevaria todo sofrimento às dimensões titânicas de um
abismo sem fundo e insondável, incompreensível para os homens, pela ação do Deus
que quer sofrer — que envia seu filho para colher em si todo o sofrimento humano,
tornando-se ele mesmo o Deus sofredor. Aqui se veria o que, acima de tudo, fascinava
Nietzsche no escritor russo e que fazia também dele um típico décadent: em primeiro
lugar, o sentido profundo que emerge da simbologia do “Deus na Cruz” [Gottes Kreuze]
presente no gesto de Aliócha que, para salvar Deus dos escombros do ateísmo, precisa
8 Pareyson se afasta de uma certa linha de leitura de autores como Chestóv, Razúmnik e Camus que, à
revelia do próprio autor, tendem a identificar Dostoiévski mais em Ivan do que em Aliócha: “É preciso
lembrar que Ivan, de certo modo, é Dostoiévski, mais à vontade neste personagem do que em Aliócha”
(CAMUS, 1990, p.76, nota 13).
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conjugar Ser e Sofrer, Verdade e Valor. Ao fazê-lo, seria possível tomar em flagrante a
típica atitude teológico-valorativa de conferir maior realidade aos que sofrem, uma vez
que sua voz não representaria nada menos da própria ressonância do Ser —
precisamente aquilo que, para Nietzsche, estaria presente na simbologia do Deus
sofredor: “Deus na cruz — não se compreende ainda o terrível pensamento oculto por
trás desse símbolo? — Tudo o que sofre, tudo o que está na cruz é divino... todos nós
estamos na cruz, portanto somos divinos... somente nós somos divinos...”
(NIETZSCHE, 2009b, p. 62)9. Remeter a esse “Deus sofredor” [Leidenden Gottes]
traduz, inclusive, uma expressão usada por Nietzsche, em seu Zaratustra, para expressar
as idiossincrasias interpretativas de um corpo doente que, para salvar a natureza
hiperexcitável da vida declinante — em um esforço ardiloso de transvaloração —
denega o mundo pela criação de transmundos que lhes redimida do sofrimento
precisamente e em seu gesto habitual de conjugar Verdade e Valor: “Acreditai-me,
irmãos, Foi o corpo que desesperou da terra — que ouviu o ventre do ser a lhe falar”
(NIETZSCHE, 2011a, p. 32). Da mirada desse fino detrator da vida, todo o mundo pode
ser reduzido a tormento, e, tal como se vê no esforço angélico de Aliócha, só Deus
querendo o sofrimento, ou seja, só apelando à própria sensibilidade rastejante do tipo
que sofre, é que sua perspectiva cristã de redenção pode se manter de pé e triunfante.
Em segundo lugar, e o que, aos olhos de Nietzsche, de mais excelente e profícuo
se poderia extrair de Dostoiévski — precisamente a fineza e legibilidade presentes em
seu modo de apresentar um retrato psicológico —, aquilo que estaria por detrás do
esforço de Aliócha quando este, ao conjugar Ser e Sofrer, insufla novo fôlego nas
têmporas de uma divindade agonizando nos escombros da própria incongruência de sua
obra: um gesto que espelharia a atitude típica de um niilista incompleto/imperfeito [der
unvollständige Nihilismus] frente a esse expediente de salvar o cristianismo: — o de,
por meio de um esforço de Sísifo, buscar salvar o Deus cristão da cova que ele mesmo
cavara para si10, de adiar o desenlace inexorável da Morte de Deus e de tudo o mais o
9 O mesmo ressentimento com a vida que comportaria a simbologia do Deus na cruz [Gottes am Kreuze]
tal como Nietzsche o pensa a partir da força de atração que o Deus sofredor exercia aos mais fracos e
suscetíveis, tudo o que nele estaria embutido de vingança e rancor, de ressentimento e de negação da
energia predatória dos senhores de Roma, representada nos subterrâneos da sanha judaica, e que teria
feito o tipo sacerdote triunfar sobre Roma: “Certo é que, quando menos, que sub hoc signo [sob este
signo], com sua vingança e sua transvaloração dos valores, Israel até agora sempre triunfou sobre todos os
outros ideais, sobre todos os ideais mais nobres” (NIETZSCHE, 2010a, p. 24). 10 Conforme Nietzsche mostra, no famoso fragmento de Lenzer Heide, escrito em junho de 1888 (Cf.
KSA 5[71], op. cit, 2013, p.179ss), a experiência moderna do niilismo traz à tona a lógica de
autosupressão de si mesmas inerente a todas as grandes coisas, cujo desdobramento na história da
racionalidade ocidental instaura entre os europeus uma desconfiança com relação às antigas venerações
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que ela representaria —: “as tentativas de escapar do niilismo sem transvalorar aqueles
valores: produzem o contrário, intensificam o problema” (NIETZSCHE, KSA 10[42],
2013, p. 392) —. O que, com efeito, faria com que também Dostoiévski fosse não
apenas um niilista a mais, em vista do cansaço em relação ao mundo que por si só
comportaria seu cristianismo, mas também um décadent, afogado em melancolia pela
perda irreversível do Absoluto — tal qual o espírito deitando ânimo quando, diante do
céu alaranjando, banhando pelos últimos e vacilantes lampejos de luz, vê o Sol poente
aos poucos depor seu esplendor por detrás do horizonte.
Com efeito, embora não tenha tido acesso aos escritos em que Dostoiévski
tratasse mais diretamente de sua visão renovada do cristianismo, Nietzsche pôde
depreendê-lo de sua obra. Ao contrário, por exemplo, do que teria dito Pacini — para
quem, se Nietzsche tivesse conhecido mais de perto Dostoiévski, principalmente sua fé
e suas publicações não literárias, nada nele encontraria de originalidade que lhe pudesse
interessar (PACINI, 2001, p.74) — para Nietzsche bastou sua obra literária para ter
conseguido identificar Dostoiévski. Não à toa que em alguns momentos de seus
fragmentos póstumos inclua o escritor russo entre os demais pessimistas de seu século11.
O que inclusive confidencia diretamente a seu amigo e correspondente Georg Brandes:
Nietzsche faz coro a seu destinatário quando este, em carta anterior, se referia a
Dostoiévski como grande escritor, ao mesmo tempo em que não deixava de ser também
uma figura horrenda, absolutamente cristã, completamente sádica em seu interior —
cuja moral corresponderia ao que Nietzsche denominara “moral de escravo”. Apesar da
incondicional aceitação dessas conclusões, Nietzsche não deixa, entretanto, de
mencionar a Brandes o que, acima de tudo, admirava em Dostoiévski: ― o material
psicológico “mais valioso que conhecera” (NIETZSCHE, 2011b, p. 298).
que antes lhes traziam perspectivas de sentido e de uma vida equânime. Dentre as forças produzidas
juntamente da visão moral do mundo, cujo paradigma é o cristianismo, com seus dois mil anos de
educação que proíbe “a mentira de crer em Deus”, está o cultivo da veracidade, que na modernidade é
sublimada em consciência científica ― em “asseio intelectual a qualquer preço” (NIETZSCHE, 2009a, p.
256; também 2010a, III, 27, p.138). Essa vontade de verdade, em seu afã por uma verdade cada vez mais
depurada, faz perecer a visão moral do mundo ao levantar a questão dos fundamentos do cristianismo,
passando a corroer os próprios alicerces, a partir dos quais a verdade mesma viera a ser, no momento em
que converte a problemática da verdade, de uma questão epistemológica, em um problema moral. Isso,
pois, elevada à radicalidade investigativa, a vontade de verdade se vê constrangida a responder pelo
“porquê de si mesma” — trazendo à tona, com isso, sua origem interessada, moral. A moralidade aparece,
então, como perspectiva parcial da vida, condicionada por necessidades fisiológicas e psicológicas do
animal homem de impor forma e sentido ao mundo. 11 “Os pessimistas modernos como decadentes: Schopenhauer, Leopardi Baudelaire, Manländer
Goncourt, Dostoiévski” (NIETZSCHE, 2013, Vol.VII (KSA 14[222]), op. cit., p.356. Ver, também KSA,
9[126]) e 11[159]).
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O que pretende-se como ganho do presente artigo, com efeito, não é só reafirmar
a importância de Dostoievski em vista do quão fundamental teria sido o material
patético que entraria na composição de uma psicologia em Nietzsche, mas, insistir na
constatação de que, sendo, como se sabe, tão incondicionalmente elogioso nesse quesito
— o filósofo alemão o faz apesar de ter identificado em Dostoiévski os traços niilistas
de seu cristianismo — o que, naturalmente, não podia deixar de colocá-lo na fila dos
décadents de seu século. Conforme Nietzsche mesmo teria anotado em fragmento de
1888 —: “o oposto do pessimismo clássico é o pessimismo romântico: aquele no qual a
fraqueza, o cansaço, a decadência das raças é formulado conceitual e valorativamente: o
pessimismo de Schopenhauer, por exemplo, assim como o pessimismo de Vigny, de
Dostoiévski [grifo nosso] de Leopardi, de Pascal, de todas as grandes religiões niilistas
(do bramanismo, do budismo, do cristianismo — elas podem ser chamadas de niilistas,
porque todas elas glorificaram o conceito contrário à vida, o nada, como finalidade,
como bem supremo, como “Deus”)” (NIETZSCHE, KSA, 14 [25], 2012, p. 208).
Referências
CAMUS, A. Um homem Revoltado, Rio de Janeiro: Record, 1996.
DOSTOIÉVSKI, F. Os Irmãos Karamázov (v.1). Trad. Paulo Bezerra, São Paulo:
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______. Lettere sulla creatività. Tradução: G. Pacini, Feltrinelli Editore: Milano, 2013.
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