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A vida num sambaqui há 10 mil anos Ciência e Tecnologia e no Brasil Junho 2005' N° 112 FAPESP SÃO FRANCIS~O, UM MAR DE DUVIDAS VINHO E LONGEVIDADE JUROS ALTOS: PARA QUÊ? o homem

O homem de Capelinha

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Pesquisa FAPESP - Ed 112

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A vida num sambaquihá 10 mil anos

Ciência e Tecnologia e no Brasil

Junho 2005' N° 112 FAPESPSÃO FRANCIS~O,UM MAR DE DUVIDASVINHO E LONGEVIDADEJUROS ALTOS:PARA QUÊ?

o homem

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I

Sua iniciativa' socialpode ganhar um prêmio.E o Brasil inteiro,uma solução, Tecnologia Social

Prêmio U)Fundação Banco· do Brasil 8

de Tecnologia Social N

Apoio Institucional: ----"------

~

UnESCO - pmCEWA7fRHOusE(mPERS I

Soluções efetivas e reaplicáveis nos temasreferentes a alimentação, educação, energia,. .

habitação, meio ambiente, recursos hídricos,renda e saúde concorrem a prêmios de R$ 50 mil,

. totalizando R$ 400 mil. Serão. concedidos: umprêmio para empresas, cinco para instituiçõessem fins lucrativos e dois. prêmios especiaisvoltados aos direitos da criança e do adolescentee à qestão de recursos hídricos.

Inscrições: de 14 de abril a 30 de junho de 2005

Consulte o regulamento e inscreva-se:www.fundacaobancodobrasil.org.br

Realização: -----.,.-----------;---

SFUNDAÇÃO

BANCO DO BRASILPETROBRAS

o MELHOR DO BRASIL

É O BRASILEIRO"O melhor do Brasil é o brasileiro" provém de obra de Câmara Cascudo.

I~

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A IMAGEM DO MÊS

o ROSTO DO JOVEM FARAÓ

Três equipes de especialistas em reconstrução facial apresentaram suasversões para a fisionomia do faraó adolescente Tutancamon, com baseem imagens de tomografia de sua múmia. As imagens coincidiram nas linhasgerais: o monarca tinha o queixo retraído e o crânio alongado para trás.A mais rica em detalhes (acima) foi feita por uma equipe de pesquisadoresfranceses, liderada pelo antropólogo forense lean-Noél Vignal, do (entreTechnique de Ia Gendarmerie Nationale. Tutancamon morreu há 3.3 mil anos.

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PesqerecnüisaFAPESP

38 CAPACrânio encontrado em sambaquide rio do Vale do Ribeira revelaa cultura mais antiga de São Paulo

www.revistapesquisa.fapesp.br

26 ENGENHARIATransposição do rioSão Francisco divideopiniões e instigapolêmica entregoverno e pesquisadores

REPORTAGENS

POLfTICA ClENTfFICAE TECNOLÓGICA

30 MEDICINA NUCLEAR

Governo quer criar empresade radiofármacos paraampliar o uso do diagnósticopor imagem

4 ' lU NHO DE 2005 ' PESQUISA FAPESP 112

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Si«o

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~

12 ENTREVISTACarlos Henrique de Brito Cruz,novo diretor científicoda FAPESP,analisa a políticade ciência e tecnologiado Estado de São Pauloe o papel da Fundação dentrodela. E dá indicaçõesdas mudançasque pretende promover

CI~NClA

48 ECOLOGIAAquecimento das águasdo Pacífico coloca emsituação crítica as populaçõesde lobos-marinhosdo litoral do Peru

52 BIOLOGIADescobertasno litoral paulista sugeremampla distribuiçãode inverte bradosque habitamos sedimentosno fundodo mar

54 FíSICA

Grupos de Minas e São Paulosolucionam falhase aprimoram manipulaçãoe transmissão de dadosem computadores quânticos

TECNOLOGIA

68 RECICLAGEMNovos processos simplificamlimpeza e recuperaçãode garrafas plásticasdescartáveis

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44 MEDICINAEstudos sugeremque compostosdo vinho tintoaumentama longevidade

72 RESTAURAÇÃOTécnicas de análise revelamescritos de papiros e antigosdocumentos deteriorados

74 ENERGIA

Equipamento feito de materialcerâmica transformahidrogênio em eletricidade

78 ENGENHARIA MECÂNICASoftware ensina alunosa planejar a fabricaçãode peças industriais

64 ENGENHARIA QUíMICAMaterial vítreopoderá armazenardados digitaisem três dimensões

HUMANIDADES

86 CULTURAPesquisadora mostra o projetocivilizado r de Manuel AraújoPorto-Alegre, artista do Império

90 ARQUITETURA

Livro dimensiona a importânciada Escola Politécnica na SãoPaulo do começo do século 20

80 ECONOMIAProjeto discute a delicadarelação entre a autoridadedo Banco Central e a política

SEÇÕES

A IMAGEM DO MÊS ........•......... 3CARTAS .............•......•...... 6CARTA DO EDITOR 9MEMÓRIA ..........•............. 10ESTRATÉGIAS ....•......•......... 20LABORATÓRIO 34SCIELO NOTíCIAS .........•........ 58LINHA DE PRODUÇÃO 60RESENHA························94

LlVRoS··························95

FICÇÃO··························96CLASSIFICADOS 98Capa: Hélio de AlmeidaFoto: Marcello Casal Jr./ABRTratamento de imagem: José Roberto Medda

PESQUISA FAPESP 112 • JUNHODE2005 • 5

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[email protected]

Parasita no cérebro

Quero parabenizar Pesquisa FA-PESP e, sobretudo, o editor especial

~ Fabrício Marques pela reportagem"Parasita dissimulado" (edição 111).A clareza na escrita e o excelente tra-balho de pesquisa proporcionaramuma idéia clara sobre o problema daneurocisticercose, mesmo para umleigo no assunto como eu.

CHARLES OZANICK

Instituto de Biologia/UFRJRio de Janeiro, RJ

Parabéns pela reportagem e pelodestaque à neurocisticercose (edição111). Eu diria que "a neurocisticer-cose, moléstia escamoteada pelodescaso e pela falta de diagnóstico"não apenas agora começa a mostrarsua real dimensão. Publicações eeventos científicos, que, respectiva-mente, poucos lêem e assistem, hámuito tempo tentam amenizar essedescaso - ou seria desdém? É umapatologia que incomoda muito, quan-do se pensa no seu diagnóstico, portratar-se de uma verminose que fereos brios socioculturais. Nem corpoum diagnóstico diferencial obriga-tório por ser endêmica ela é lembra-da. Sua importância possui destaqueflutuante no decorrer do tempo, mas,afortunadamente, costuma deixaralguma nova contribuição para suamelhor e maior compreensão. O pro-blema é que a comunidade médica,ou não, insiste em pouco se lembrardesta neuroparasitose. E o que maisse pode dizer se a própria saúde pú-blica, dentro ou fora das universida-des, considera-a mais uma entre ou-tras tantas verminoses que, segundoexplicam, por já estar inserida emprogramas de saúde relacionados àsverminoses, não merece destaqueespecial.

SVETLANA AGAPEJEV

Faculdade de Medicina/UnespBotucatu, SP

Gás

Excelente a reportagem "Corpocom mais gás" (edição 111). Além dotítulo sugestivo, o texto traz entrevis-tas e esclarecimentos dos professoresDouglas Franco e Elia Tfouni. Meussinceros cumprimentos aos dois pes-quisadores e a toda sua equipe pelotrabalho que vem sendo realizado. Osdois pesquisadores prestam, ainda,um ótimo trabalho de divulgação daquímica entre nossos jovens. Os cum-primentos são extensivos ao jornalis-ta Carlos Fioravanti, responsável pelareportagem.

ANTONIO CARLOS MASSABNI

Instituto de Química/UnespAraraquara, SP

Lobby

O tema abordado na reportagem"O lobby sobe a rampa" (edição 111)é bastante oportuno nestes temposde abertura de "caixas pretas". Toda-via parece um brutal contra-senso aconclusão apresentada de que olobby da indústria vem tendo suces-so desde os anos 1990, sabendo-seque a maior carga tributária do pla-neta foi se construindo exatamentenesse período!

JOSÉ EUAS LAIER

São Carlos, SP

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Reforma universitária

A edição 110 traz uma matériaimportante na página 36 sobre a re-forma universitária proposta peloMinistério da Educação. O assuntofoi bem abordado pela revista, con-templando opiniões de docentes,pesquisadores e reitores. Ao que pa-rece, a reforma sinaliza mais parauma discussão das estruturas buro-cráticas que propriamente para amelhoria da qualidade do ensino eda pesquisa. Muitas universidades,privadas e até públicas, ainda apre-sentam problemas sérios sem pers-pectivas de solução mesmo em lon-go prazo, que afetam diretamenteseu desempenho, como docentes de-satualizados, com pouca produçãocientífica e ainda sem titulação dedoutor. Por outro lado, o Brasil temdespejado anualmente no mercadointerno, cada vez em maior número,recém-doutores de perfil totalmenteoposto. Praticamente inexiste noBrasil um plano sólido e eficaz deabsorção dessa mão-de-obra. Seráque essa reforma universitária tam-bém busca equalizar esse antagonis-mo? Há mecanismos para atender àrenovação do corpo docente, pratica-mente assegurado pela estabilidadeprofissional e protecionismo inter-no das instituições? Não se discuteaqui preenchimento de vagas ocio-sas, como a abertura das 6.500 vagasnas instituições federais, mas simmuitas vagas mal ocupadas, por ve-zes ratificadas até por alunos de gra-duação! Até quando esse paternalis-mo tomará lugar das oportunidadesde trabalho dos recém-doutores,que têm cada vez mais se agarrado abolsas de pós-doutorado ou outraspoucas equivalentes como formaderradeira de sobrevida? Para aque-les cujas pretensões sustentam-se nacarreira acadêmica, após anos de in-vestimento intelectual em prol de simesmos e do país, o que fazer de-pois? O futuro dos doutores forma-

dos no Brasil foi considerado na re-forma universitária proposta pelogoverno? Sem dúvida, ele tambémditará o que se espera da universida-de no futuro.

ANA PAULA COELHO

São Paulo, SP

Células-tronco

Gostei do exemplar que ~ala so-bre células-tronco e transgênicos(edição 110). Isso mostra que o brasi-leiro tem talento para escrever assun-tos que mexem com o cotidiano daspessoas de forma séria e competen-te. As pessoas por aqui desconhecema importância de Pesquisa FAPESP.Seria bom se a revista pudesse divul-gar que 46 alunos do curso de licen-ciatura plena e específica em biolo-gia da Universidade Estadual Valedo Acaraú - Instituto Dom José deEducação e Cultura desejam inter-câmbio com outras faculdades paratrocar informações e receber revistasna área de biologia e outros subsídiosque nos auxiliem na iniciação da pes-quisa científica.

ANTONIO LUIZ B. VIEIRA

[uazeiro do Norte, CE

Quadrinhos

Parabéns pela bela reportagem"A nona arte" (edição 110). É isso aí:quadrinho também é cultura! Eu,como "gibizeiro" inveterado há maisde 40 anos, com mais de 8 mil revis-tas em quadrinhos, adorei o artigo.Cheguei ao Brasil 50 anos atrás,com 10 anos de idade, vindo dePortugal. Nessa época, a campanhacontra os quadrinhos era terrível.Pais, professores, padres, imprensa,todos unidos contra esse "terrívelmal", como eram vistas as revistasem quadrinhos. Só melhorou umpouco quando a Ebal - com seu di-retor Adolfo Aizen - lançou as ditasrevistas educativas, como Ciênciaem quadrinhos, Epopéia, Série sagra-da, Grandes figuras em quadrinhos,e os clássicos nacionais na revistaEdição maravilhosa. Foi nos quadri-nhos (e não na escola) que conheciBernardo Guimarães, Machado deAssis, José de Alencar, José Lins doRego e tantos outros mestres brasi-leiros. É com pena que vejo nas ban-cas apenas quadrinhos norte-ameri-canos com os super-heróis ianquesimperando absolutos, acabandocom os quadrinhos nacionais. Nos-sas crianças estão tão viciadas nosquadrinhos importados que os comtemas brasileiros não têm aceitação!Para não ser injusto, o meu consoloé o Maurício de Sousa, que tem umagrande tiragem com os seus perso-nagens infantis, tanto no Brasil comoem Portugal.

ANTONIO ARMANDO AMARO,

São Paulo, SP

Conselho de Cultura

Temos a honra de comunicar oregistro feito pelo conselheiro LuísHenrique Dias Tavares, na últimasessão plenária deste colegiado, dia18 de abril em curso, inserido na atade seus trabalhos e aprovado porunanimidade: "Registro o n= 110,

PESQUISA FAPESP 112 • JUNHO DE 2005 • 7

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CARTAS

abril, da melhor revista de informa-ção científica do Brasil, Pesquisa FA-PESP, publicada pela Fundação deAmparo à Pesquisa do Estado deSão Paulo (FAPESP). Este númeroda revista publica uma entrevistacom a cientista brasileira MayanaZatz. Ela fala de sua vida decientista, das conquistas dapesquisa genética e do seuengajamento na campanhadas células-tronco. Acreditoque os esclarecimentos daprofessora Zatz são claros epermitem que se conheça ecompreenda a importânciada pesquisa genética. A se-ção Memória é dedica da aofísico brasileiro César Lat-tes, a quem a física deve adeterminação da partículaméson pio É igualmente degrande interesse o que selê nas outras seções de Pes-quisa FAPESP, como 'Cé-lulas-tronco', página 28,"Transgênicos, página 34,'Assinatura molecular', pá-gina 56, 'As belas e as feras', página58, e 'O frio e o calor que vêm dosímãs', página 62".

EUSTORGIO LIMA CAVALCANTI

Diretor do Conselho Estadualde Cultura da Secretaria da Cultura

e Turismo da BahiaSalvador, BA

lambari

Li uma nota na edição llO sobrea nova espécie de lambari (Astyanaxbiotae) e minhas lembranças vieramà tona. Sempre gostei de pescar equando garoto, nos finais de sema-na, pescava no ribeirão denominadode Engenho Velho, afluente do rioCapivari (SP). Freqüentemente pe-gava alguns exemplares semelhantesao da foto ilustrativa da nota. Naépoca as margens do ribeirão eramcobertas de mata nativa, ele apresen-

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tava um bom volume de água, sempoluentes, cristalina. Lamentavel-mente, hoje está assoreado, com al-gumas poças d'água até a metade doseu leito, pois quando chega a Capi-vari já começa a receber esgotos do-mésticos. Parabéns pelas reportagens

EMPRESA QUE APÓIAA PESQU ISA BRASILEIRA

lJ) N OVARTI STroplNet.org

exibidas em todas as revistas, contri-buindo para aumentar o conheci-mento dos leitores.

ANTONIO PEDRO RlCOMINI

Rafard, SP

Comunicação

Leitora assídua da revista Pes-quisa FAPESP, sou daárea de humanas, maisespecificamente de co-municação social, e sintoimensa falta de reporta-gens relacionadas à co-municação. Sabemos quea comunicação permeiaas relações sociais e que aprópria revista é um veí-culo de comunicação ede divulgação de informações. Nes-se sentido, será que poderíamos termais matérias sobre comunicaçãona revista? Creio que os aspectos teó-

rico-científicos da comunicação so-cial têm muito a contribuir para asciências sociais brasileiras e para acomunidade científica em geral.

CAROLINA TERRA

São Paulo, SP

Correções

O nome correto do pes-quisador que integra o pro-jeto temático Missionárioscristãos na Amazônia brasi-leira: um estudo de mediaçãocultural, tema da reporta-gem "Em nome de Deus"(edição 111), é Marcos Pe-reira Rufino.

A foto no alto da páginada reportagem "Entre asestrelas" (edição llO) é deabril de 1972 e a pessoa quenela aparece não é CesarLattes, mas sim o físico Ar-mando Turtelli, também daUniversidade Estadual deCampinas (Unicamp), em

uma de suas viagens ao laboratóriomontado no monte Chacaltaya. Ooriginal encontra-se no arquivo pes-soal do físico.

A foto na página 39 do teste dePCR na reportagem "O parasita dis-simulado" (edição 110) foi publicadade cabeça para baixo.

-Cartas para esta revista devem ser enviadas para° e-mall [email protected], pelo fax (1~ 3838'4181ou para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP,CEP 05468'9°1. As cartas poderão ser resumidaspor motivo de espaço e clareza.

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Pesquisa CARLOS VOGT

PRESIDENTE

MARCOS MACARI VICE-PRESIDENTE

CONSELHO SUPERIOR

ADILSON AVANSI DE ABREU, CARLOS VOGT, CELSO LAFER, HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, HUGO AGUIRRE ARMELIN,

IOSÉARANAVARELA. MARCOS MACARI, NILSON DIAS VIEIRA JÚNIOR, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO

RICARDO REN20BRENTANI DIRETOR PRESIDENTE

IOAQUIM |. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO

CARLOS HENRIQUE DE 8RITO CRUZ DIRETOR CIENTÍFICO

PESQUISA FAPESP

CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADORCIENTÍFICO),

CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTÔNIO BEZERRA COUTINHO,

IOAQUIM I. DE CAMARGO ENGLER, LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO,

PAULA MONTERO, RICARDO RENZO BRENTANI, WALTER COLU

DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA

EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN

EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS

DIRETOR DE ARTE HÉLIO DE ALMEIDA

EDITORES CARLOS FIORAVANTI (CIÊNCIA), CARLOS HAAG (HUMANIDADES),

CLAUDIA IZIQUE (POLÍTICA C&T), HEITOR SHIMIZU(VERSÃOON-UNE), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA)

EDITORES ESPECIAIS FABRÍCIO MARQUES, MARCOS PIVETTA

EDITORES ASSISTENTES DINORAH ERENO, RICARDO ZORZETTO

CHEFE PE ARTE TÂNIA MARIA DOS SANTOS

DIAGRAMACÃO JOSÉ ROBERTO MEDDA, MAYUMI OKUYAMA

FOTÓGRAFOS EDUARDO CÉSAR, MIGUEL BOYAYAN

COLABORADORES ALESSANDRA PEREIRA, ANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS

(BANCO DE DADOS), DANIELA MACIEL PINTO, EDUARDO GERAQUE (ON-LINE). GONÇALO JÚNIOR, LAURABEATRIZ,

MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO, PEDRO PUNTONI, RENATA SARAIVA, RODRIGO GURGEL, SÉRGIO L. OLIVEIRA,

SÍRIO ]. B. CANÇADO, THIAGO ROMERO (ON-LINE) E YURI VASCONCELOS

ASSINATURAS TELETARGET

TEL (u) 3038-1434 - FAX: (11) 3038-1418 e-mail: [email protected]

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TEL: (11) 3865-4949 [email protected]

GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP

FAPESP

RUA PIO XI, N*1.500, CEP 05468-901 ALTO DA LAPA - SÃO PAULO - SP

TEL (11) 3838-4000 - FAX: (11) 3838-4181

http://www.revtstapesquisa.fapesp.br [email protected]

NÚMEROS ATRASADOS TEL. (li) 3038-1438

CARTA DO EDITOR

De travessias e transposições

Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP

t PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL

DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

FUNDAÇÃO DE AMPARO A PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

SECRETARIA DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA. DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E TURISMO

GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Tudo indica que os primeiros ha- bitantes do atual Estado de São Paulo já se encontravam aqui há

10 mil anos, um ou dois mil anos antes do que até então se imaginava. Difícil decidir, por ora, se eram homens do mar ou do mato, porque se seus traços físicos lembram os de outros habitan- tes pré-históricos do interior do Brasil, alguma coisa em seu comportamento traz evidências de uma vida social pró- pria dos moradores primitivos do li- toral. Por exemplo: embora vivendo distantes do mar alguns quilômetros, esses personagens intrigantes, ao en- terrar seus mortos, os cobriam com uma grossa camada de conchas, provi- dência típica das populações da costa - que foi, aliás, exatamente o que per- mitiu a travessia até nós dos vestígios arqueológicos desses túmulos, os cha- mados sambaquis. A reportagem de ca- pa desta edição trata justamente dessa descoberta fascinante de uma equipe de pesquisadores de São Paulo, relata- da a partir da página 38 pelo editor es- pecial Marcos Pivetta.

É o próprio Pivetta o autor de ou- tra reportagem de destaque nesta edi- ção e que, com certeza, vai encher de alegria quem gosta de extrair da vida e do cotidiano a maior dose de prazer possível, sem os riscos que às vezes a ele estão associados. É que, conforme se pode verificar a partir da página 44, novos estudos sugerem que compostos do vinho tinto aumentam a longevida- de. Mas não é recomendável concluir que quanto mais copos de vinho inge- ridos, tanto mais anos garantidos à frente, porque as coisas não funcionam assim. A recomendação, para se benefi- ciar bastante dos poderes terapêuticos da mais saborosa das bebidas, continua a ser de bebê-la com moderação - se possível, celebrando sempre a vida.

Do vinho para a água: o debate so- bre a transposição do rio São Francis- co, ainda que tomado só do ponto de

vista técnico - embate de interesses po- líticos aqui um tanto à parte, na me- dida do possível -, parece um saco sem fundo, porque há argumentos que soam plausíveis tanto do lado da- queles que defendem vigorosamente o projeto quanto entre os que a ele se opõem de modo ferrenho. A repor- tagem da editora de política, Claudia Izique, a esse respeito, a partir da pági- na 26, joga um pouco mais de luz so- bre a natureza da polêmica que coloca em campos opostos governo e pesqui- sadores.

Dá para imaginar memória arma- zenada em vidro? Não, nada a ver com manuscritos bem guardados em velhas garrafas atiradas ao mar. O caso aqui é a inserção de dados digitais em larga escala e em três dimensões num novo tipo de material vítreo, produzido com alta concentração de oxido de tungs- tênio. Se a equipe de pesquisadores responsável pelo projeto for bem-suce- dida em seus próximos passos, a infor- mática e a indústria eletroeletrônica, entre outros setores, como relata o re- pórter Yuri Vasconcelos a partir da pá- gina 64, terão muito a ganhar.

No campo das humanidades, esta edição embrenha-se por um tema que, embora esteja há muito enfiado no co- tidiano dos brasileiros, provoca sem- pre polêmicas terríveis, produz qui- lômetros de discussões e discursos ácidos, cria irritação indisfarçável e um mau humor sem fim. Deste tema cen- tral para a atual democracia brasileira, que é a questão da autoridade monetá- ria como uma modalidade específica de autoridade política nacional, trata a reportagem do editor de humanida- des, Carlos Haag, a partir da página 80. Sim, Banco Central, inflação, juros, es- tá tudo ali submetido à investigação im- piedosa de respeitados pesquisadores. Vale a pena.

MARILUCE MOURA - DIRETORA DE REDAçãO

PESQUISA FAPESP 112 -JUNHO DE 2005 -9

Page 10: O homem de Capelinha

MEMóRIA %

Ávida nos trilhos

Estação Central do Brasil começou a ser construída há 150 anos

NELDSON MARCOLIN

Primeiro, o cônego Chaves abençoou as três locomotivas da Imperial Companhia de Navegação a Vapor e Estrada de Ferro de Petrópolis, no então município de Estrela, atual Magé (RJ). Depois, a comitiva

imperial embarcou no trem para a viagem de 14,5 quilômetros até o vilarejo de Fragoso, próximo à raiz da serra de Petrópolis. Para assombro dos presentes, o trajeto foi realizado em pouco mais de 20 minutos, na então impressionante velocidade de 36 km/h. Essa foi a primeira viagem de trem ocorrida no Brasil, em 30 de abril de 1854, na pequena ferrovia construída por Irineu Evangelista de Souza, o "empresário do Império" - a primeira ferrovia pública com tração a motor havia sido construída na Inglaterra, em 1825. Ocorre que essa estrada de ferro, a E.F. Mauá, trazia poucos benefícios econômicos

10 ■ JUNHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP112

Page 11: O homem de Capelinha

Vista da Central do Brasil por volta de 1960 (esq.) e estação da Quinta Imperial (acima), construída para uso do imperador

Trem sobre o canal do Mangue

e av. Francisco Bicalho, em 1907

Cobertura das plataformas da estação Central no início do século 20

por não atingir a região produtora de café no Vale do Paraíba e sua estação inicial não chegava na capital do país. Com o transporte de cargas feito por tropas de mulas, o governo decidiu construir uma linha que atendesse os cafeicultores do interior e criou a Companhia Estrada de Ferro D. Pedro II em maio de 1855. A ferrovia teria dois ramais: um até o povoado de Cachoeira, em São Paulo, e outro para Porto Novo do Cunha, em Minas Gerais. As obras começaram há 150 anos, em Io de junho do mesmo ano. O terminal ficaria na Prainha (praça Mauá), onde havia

embarcadouro e depósitos para carga. Mas logo se reconheceu a conveniência de construir a estação terminal a partir do Campo de Santana, em razão da proximidade do centro do Rio. "A estação Central da E.F. D. Pedro II, que depois da Proclamação da República virou E.F. Central do Brasil, foi o maior desenvolvimento tecnológico daquele período e o principal fator de movimentação da riqueza do país na época", afirma Hélio Suêvo Rodriguez, engenheiro ferroviário da Companhia Estadual de Engenharia de Transportes e Logística (Central), pesquisador

da memória das estradas de ferro brasileiras e autor do recém-lançado A formação das estradas de ferro no Rio de Janeiro - O resgate de sua memória (Memória do Trem, 192 páginas). A igreja de Sant'Ana, de 1735, foi demolida para dar lugar ao primeiro edifício, inaugurado em 1858. Nas décadas seguintes o prédio da estação Central sofreu reformas e ampliações. A estrutura atual começou a ser erguida em 1935, com um corpo principal, de sete pavimentos, uma torre com 28 andares, 134 metros de altura e plataformas de trem. O relógio, de quatro faces, só perde em tamanho

para o londrino Big Ben. No entorno foram criados terminais para ônibus e metrô integrados à ferrovia. O local é um dos mais movimentados do Brasil - diariamente passam por lá cerca de 600 mil pessoas da própria capital fluminense, dos subúrbios do Rio e de todo o país. O hábito de chamar a ferroviária de Central não mudou após a criação da Rede Ferroviária Federal S.A., em 1957. "Ir à estação da Central, andar nos trens da Central ou trabalhar na Central são expressões que pertencem ao inconsciente coletivo e afetivo do carioca", diz Rodriguez.

PESQUISA FAPESP 112 ■ IUNHODE2005 ■ 11

Page 12: O homem de Capelinha

ENTREVISTA: CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ

Um otimista^ - com método

MARILUCE MOURA

az já algum tempo desde que o físico Carlos Henrique de Brito Cruz, nascido no Rio de Janeiro em julho de 1956,

mas paulista por adoção desde os 4 anos, revelou-se um analista atento como poucos das políticas contemporâne- as de ciência e tecnologia e de seus in- dicadores de crescimento, nacionais e internacionais. Mais ainda: há cerca de 15 anos ele ultrapassou a categoria de espectador engajado para meter as mãos diretamente nos desafios da ges- tão da ciência e da educação. Desde en- tão ocupou, entre outras, as posições de diretor do Instituto de Física Gleb Wataghin, por duas vezes (1991-1994 e 1998-2002), e reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), de 2002 a 2005. Foi o mais jovem presi- dente da FAPESP até hoje - tinha 40 anos ao tomar posse em setembro de 1996 -, e duas reconduções sucessivas ao cargo, num momento fervilhante da vida da instituição, marcado por pro- funda transformação e crescimento ja- mais visto, parecem ser um claro reco- nhecimento a sua competência.

No final de abril último, Brito Cruz retornou à FAPESP, desta vez nomeado diretor científico, em substituição ao também físico José Fernando Perez, que ocupou o cargo durante 11 anos. A di- retoria científica da Fundação é uma

das posições de liderança mais exigen- tes no sistema paulista de ciência e tec- nologia e, possivelmente, também uma das mais gratificantes, porque nela pode-se fazer muito pelo estado e - por que não? - pelo país. Brito Cruz pro- mete trabalhar com método científico neste novo posto de sua carreira.

O que agora será difícil para este engenheiro eletrônico formado pelo Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), em 1978, mestre (1980) e doutor (1983) em física pela Unicamp, é con- ceder uma atenção mais que marginal à pesquisa de fenômenos ultra-rápidos aplicada ao estudo de materiais, para a qual se voltou desde 1980. Vale o mes- mo para seu trabalho como professor no Instituto de Física da Unicamp, onde está desde 1982. As duas ativida- des lhe agradam muito. Mas, como diz, há que se fazer escolhas.

Nesta entrevista Brito Cruz mostra sobretudo sua visão - otimista - sobre o desenvolvimento da ciência e da tec- nologia no Brasil e dá indicações claras de como pretende conduzir seu traba- lho à frente da diretoria científica da FAPESP.

■ Qual a sua visão sobre o papel da FA- PESP no sistema de ciência e tecnologia de São Paulo? — O sistema precisa de três pilares para sua sustentação adequada e para que possa contribuir para o desenvolvimen-

to econômico e social do estado. Um dos pilares é a formação de recursos hu- manos, importante para que se tenham as pessoas necessárias para fundamen- tar a capacidade tecnológica no pró- prio estado. O segundo pilar é o da pes- quisa acadêmica, em geral feita em instituições universitárias, às vezes em institutos de pesquisa, que é muito im- portante para fazer avançar o conheci- mento humano e para formar os recur- sos humanos. O primeiro e o segundo pilares conectam-se por causa da pós- graduação, especialmente, mas tam- bém por causa da graduação. E o tercei- ro pilar é a pesquisa e desenvolvimento no mundo industrial - na verdade, o mais certo hoje seria falar no mundo empresarial, porque inclui a indústria e os serviços. Em todas as nações do mundo os dois primeiros pilares são de responsabilidade principalmente do Estado, do ponto de vista do financia- mento. E a pesquisa e desenvolvimento no mundo empresarial é parcialmente da responsabilidade do Estado. A razão - tem aí uma razão conceituai impor- tante - é a seguinte: os resultados da formação de recursos humanos e da pesquisa acadêmica são de difícil apro- priação privada. Quando um pesqui- sador na universidade faz uma desco- berta ou publica um artigo científico revolucionário, raramente consegue se apropriar em termos exclusivos daque- le resultado, até porque, em geral, para

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que a pesquisa acadêmica avance, pre- cisa não ter dono, ou melhor, precisa ter muitos donos, porque é uma ativi- dade social, não individual. Essa difi- culdade de apropriação faz com que o investimento privado nessas ativida- des seja reduzido e, portanto, o Estado precisa suprir este financiamento. Já os resultados do investimento em pesqui- sa e desenvolvimento no mundo em- presarial são apropriáveis privadamen- te, portanto faz sentido que aqueles que vão se apropriar do resultado fa- çam a maior parte do investimento.

■ Epor que o Estado ainda teria que ban- car uma parte disso? — Porque é parte intrínseca da ativida- de de pesquisa e desenvolvimento um nível de risco que freqüentemente é alto demais para que o setor privado consi- ga bancá-lo. Assim, é comum, em todos os países do mundo, que o Estado sub- sidie de alguma forma essa atividade pa- ra reduzir um pouco seu risco. Quando falo dos três pilares, estou também fa- lando da minha visão sobre a FAPESP, que tem um compromisso primordial e inabalável com eles. Os dois primei- ros são mais específicos e mais até da tradição da Fundação, que precisa man- ter seu compromisso com essas ativida- des, até porque, como disse antes, elas não têm alternativas de financiamento e, além disso, são fundamentais para que haja uma base no Estado de São Paulo capaz de trabalhar com o conhecimen- to para transformá-lo em riqueza.

■ Na verdade, em termos históricos, sem- pre houve total clareza da ação da FA- PESP nesse sentido. — Exatamente. E, na parte da pesqui- sa empresarial, a FAPESP tem também um papel a cumprir e uma contribui- ção a dar, que é a de ser um dos agentes estatais que podem estimular a intensi- ficação dessa atividade. Um dos agen- tes, enfatizo, porque há vários outros relevantes, e eu listaria pelo menos a Fi- nep (Financiadora de Estudos e Pro- jetos) e o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), que têm capacidade de financiamen- to bem maior do que a FAPESP. Acho que a atividade dos agentes estatais tor- nou-se mais relevante, mesmo que não tenha se tornado quantitativamente maior, nos últimos anos.

■ Uns dez anos, por aí? — É, uns dez anos. Quer dizer, tem dois pontos de virada nesse sentido. Tem um primeiro, de natureza mais or- gânica, que foi a abertura da economia brasileira, no início da década de 1990. Essa abertura, mesmo com todas as crí- ticas que possamos fazer a ela — e há mesmo muitas críticas a serem feitas, pela maneira descontrolada, pouco planejada, com que foi feita —, trouxe como resultado a exposição da indús- tria brasileira ao mundo. Com isso, dois temas tornaram-se essenciais no debate sobre o futuro da indústria bra- sileira: qualidade e tecnologia. O desa- fio da qualidade, a indústria brasileira atacou com muita efetividade já no começo dos anos 1990. A estratégia de abertura do governo brasileiro naquela época, por razões que eu não saberia explicar, incluiu cuidar da qualidade, mas não incluiu cuidar da tecnologia.

■ Isso ficou bem representado naquele mo- mento, por exemplo, pela corrida das em- presas rumo à certificação ISO 9000. — Isso. Teve vários movimentos, o Es- tado brasileiro apoiou e financiou as empresas para que fizessem ações para ter qualidade certificada internacional- mente em seus processos e produtos, e ISO 9000 virou uma paixão nacional. De tal modo que hoje a indústria pau- lista é reconhecida internacionalmente como uma das que apresentam um dos maiores índices de qualidade em seus processos e em seus produtos. Muito competitiva. O segundo desafio, o da tecnologia - de forma simplificada, po- demos dizer que o desafio da qualida- de refere-se ao como produzir e o da tecnologia ao que produzir -, demo- rou um pouco mais para ser percebido. O professor [José] Goldemberg, que foi ministro da Ciência e Tecnologia na- quela época, falava da importância de le- var a atividade de pesquisa para dentro das empresas. Só que ele não conseguiu organizar as maneiras de fazer isso.

■ O discurso não repercutia no interior da empresa, não é? — Demorou um pouco para repercu- tir. Uma das razões foi que, enquanto o desafio da qualidade pegou, envolveu as empresas e as fez se empenharem, no assunto tecnologia, até 1999, o Brasil foi presa de uma grande ilusão da política

de ciência e tecnologia: a de que a tec- nologia de que as empresas precisam seria feita em universidades e em insti- tutos de pesquisa. Isso é um equívoco que não tem respaldo em nenhum mo- mento da história da tecnologia. Nunca nenhuma nação do mundo tornou sua indústria tecnologicamente capaz e competitiva com base exclusivamente, ou mesmo majoritariamente, em inte- ração de universidade com empresa.

■ Na verdade, quando em 1997 a FAPESP instituiu o Programa Inovação Tecnoló- gica em Pequenas Empresas, o PIPE, ela já estava olhando a empresa como o lo- cus privilegiado de pesquisa e desenvol- vimento no âmbito empresarial. — Sim, a FAPESP estava já percebendo isso. Eu era então presidente da Fun- dação e me lembro muito bem de que discutia muito isso com a diretoria cien- tífica, quando ela estava estruturando o PIPE. Esse programa foi, aliás, a pri- meira ação de Estado no Brasil que, ex- plicitamente, estabeleceu: a pesquisa precisa ir para dentro das empresas. Mas até 1999 a política de ciência e tec- nologia brasileira era presa da ilusão de que falei, desse erro. Houve o PIPE, mas em termos nacionais só no segundo mandato do governo Fernando Hen- rique Cardoso foi que começou a re- versão dessa política.

■ Por conta das mudanças no CNPq, no Ministério da Ciência e Tecnologia, em alguns outros organismos-chave... — Isso. As mudanças que aconteceram no Ministério da Ciência e Tecnologia foram importantes. O ministro [Ronal- do] Sardenberg, o secretário-executi- vo [Carlos Américo] Pacheco foram fundamentais nessa história, a Finep foi muito importante... Porque aí a política de ciência e tecnologia no Brasil come- çou progressivamente a incluir o tema "pesquisa dentro da empresa" e isso foi avançando. Outro marco importante foi a Segunda Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia, em 2001, na qual, não por coincidência, as propostas leva- das do Estado de São Paulo apontavam justamente para essa necessidade de se ter a empresa como o ambiente próprio da pesquisa tecnológica, a partir da ex- periência do PIPE, dos debates da Con- ferência Regional, das discussões entre a FAPESP e a Fiesp sobre esse assunto...

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A conferência marcou talvez o turning point dessa história, o momento em que o Brasil entendeu que uma política para ciência e tecnologia tem que ter ações importantes para o lado acadêmico, mas também tem que ter ações impor- tantes para o lado industrial.

■ É esse o momento também em que se formula toda a idéia dos fundos setoriais. — Sim, tudo aconteceu de maneira conjugada. A atenção da política de ciência e tecnologia para o mundo em- presarial foi consolidada na confe- rência e se tornou uma figura mais de- finitiva com a Lei da Inovação, que começou a ser discutida em 2002 e veio finalmente a ser aprovada no final de 2004. E isso sinalizou também algo muito importante: o fato de que a polí- tica nacional para ciência e tecnologia está virando uma política de Estado, em vez de ser uma política de governo. De 2002 para 2003 houve uma mudan- ça importante no sistema federal, uma troca do governo por um outro que era oposição àquele, mas esse novo gover- no, no âmbito de ciência e tecnologia, adotou e deu continuidade a essa es- tratégia de uma política que fala ao mundo acadêmico, mas fala ao mesmo tempo ao mundo empresarial. Essas mudanças foram fazendo com que o mundo empresarial no Brasil, movido, digamos, por uma necessidade orgâni- ca - estabelecida pela abertura do mer- cado -, passasse a se preocupar com o assunto tecnologia e, ao mesmo tempo, o governo brasileiro foi atinando para isso e oferecendo respostas.

■ A sua sensação é de que essa percepção do mundo empresarial já está espalhada no país? — Naturalmente ela é mais intensa nas regiões do Brasil mais expostas ao mundo: São Paulo, que é o grande ex- portador do Brasil, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, um pouco em Minas Gerais... Mas quero chamar a atenção para o fato de a FAPESP ter um papel especialmente relevante nessa questão das empresas em relação ao de- senvolvimento tecnológico.

■ E que forma esse papel toma hoje? — Este: a FAPESP é um dos agentes es- tatais que, no Brasil, tem não só a capa- cidade mas a obrigação de apoiar certas

atividades de pesquisa dentro das em- presas, e de contribuir para formar re- cursos humanos que serão absorvidos em parte por empresas para gerar de- senvolvimento e riqueza para o Esta- do de São Paulo. É preciso explicar - e demonstrar - ao contribuinte por que é tão importante aplicar um terço dos re- cursos da Fundação em bolsas de estu- do para formar recursos humanos, dos quais uma parte, a maioria certamente, vai se dirigir para atividades acadêmi- cas, mas outra parte, bem maior que aquela que se observa hoje, irá encon- trar oportunidades no mundo empre- sarial. A Fundação precisa desempe- nhar seu papel com a clareza de que não pode ter como objetivo substituir nem a iniciativa empresarial nem a ini- ciativa de outras agências nacionais. Ela é um ator desse jogo.

■ Mesmo sendo um ator entre outros no jogo, é possível à FAPESP adensar de al- gum modo suas iniciativas relativas ao financiamento da inovação tecnológica? — O PIPE já tem uma carteira de 450 projetos financiados - mais de um por

semana desde 1998 -, o PITE [Parceria para Inovação Tecnológica, iniciado em 1994) tem cem projetos. Mas existe, sim, um caminho para ampliar as ini- ciativas. Existe aí sempre um aprendi- zado dinâmico. Começamos com parce- ria para inovação tecnológica, depois chegou-se ao PIPE, depois descobre- se que, se nesse programa há uma ter- ceira fase que a Fundação por lei não pode financiar, que é a da produção daquilo resultante da inovação, conse- gue no entanto mobilizar parceiros nesse sentido. Assim, o Pappe (Progra- ma de Apoio à Pesquisa em Empre- sas), estabelecido em parceria com a Finep, já é um adensamento, e haverá outros. Acho que, tanto neste assunto como nos assuntos relativos aos ou- tros dois pilares, a grande chave para se conseguir fazer boas coisas está na palavra comunicação. Está em a FA- PESP ter mecanismos eficazes de co- municação com a comunidade de pes- quisa do Estado de São Paulo. Veja que antigamente falávamos em comuni- cação com a comunidade acadêmica e isso cobria tudo. Agora estou falan- do em comunidade de pesquisa, por- que já existe uma comunidade de pes- quisa que não é acadêmica.

■ Que está nas empresas. — Exatamente. Na verdade, se você for ver, todas as boas coisas que a FAPESP fez resultaram da comunicação com a comunidade de pesquisa. Foi por ouvir sugestões, críticas, demandas e propo- sições que as fez.

■ E como reforçar essa ponte hoje? — Através de alguns canais. Por exem- plo: a diretoria científica tem um con- junto de coordenações de áreas que envolvem perto de 60 pessoas da co- munidade de pesquisa no Estado de São Paulo. São pessoas que ajudam a dire- toria científica a selecionar os projetos que vai apoiar, e eu gostaria que, ao mesmo tempo, elas também nos aju- dassem a colher idéias e a comunicá-las.

■ Ou seja, as coordenações devem funcio- nar efetivamente como canais de saída e entrada de informações fundamentais. — Sim, funcionar para dois lados, quer dizer, vai daqui para lá, informando so- bre critérios e procedimentos, e vem de lá para cá, dizendo "precisa mudar isso,

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fazer aquilo etc". É um conjunto gran- de de pessoas que até pretendo ampliar um pouco, porque o tamanho da comu- nidade acadêmica e o número de pro- jetos com que a FAPESP lida hoje são muito maiores do que há dez, 11 anos. Existem também os coordenadores-ad- juntos da diretoria científica, que es- tão mais proximamente ligados a ela e às coordenações, e que são pessoas que têm esse papel de comunicação. A FAPESP faz essa comunicação ainda por meio dos membros de seu conse- lho superior, onde há pessoas das uni- versidades e das empresas, que ali de- batem e trazem muitas considerações importantes. Além disso, a Fundação algumas vezes realizou reuniões com pesquisadores, líderes de projeto etc, e eu pretendo fazer isso mais sistematica- mente. Acho essas reuniões muito im- portantes para que possamos ouvir mais livremente as considerações da comunidade. Como eu dizia, as boas coisas que a FAPESP fez sempre foram trazidas pela comunidade de pesquisa do Estado de São Paulo e não consigo pensar um exemplo de algo inventado aqui dentro. Quando a FAPESP fez, nos anos 1960, um programa chamado Bioq-FAPESP, para desenvolver a ativi- dade de bioquímica e química do Esta- do de São Paulo, quem trouxe isso foi a comunidade da USP, principalmente, que falou "olha, precisa desenvolver essa área". Foi feito. Quando fez nos anos 1970 um programa sobre equipamen- tos para laboratório de pesquisa cien- tífica nas universidades, o pessoal da Unicamp trouxe isso, porque ela esta- va nascendo naquela época e tinha es- sas demandas. Fez sentido. Não foi um programa para a Unicamp, foi um pro- grama que nasceu de uma necessidade demonstrada pela Unicamp e atendeu ao estado, assim como o Bioq nasceu da USP, mas atendeu a outras organi- zações. Depois, quando a FAPESP fez o programa de infra-estrutura, no come- ço dos anos 1990, a comunidade de pes- quisa trouxe essa demanda em seguidas reuniões. Eu me lembro de que esta- va numa reunião de líderes de projeto temático em 1992 ou 1993, em que se abordou o assunto, "olha, a infra-estru- tura de pesquisa está ruim, as univer- sidades não estão dando conta de man- tê-la, seria importante se a FAPESP pudesse fazer...". A FAPESP às vezes de-

mora um pouco para responder a uma proposta porque quer ter certeza de que a idéia faz sentido, não vai transformá-la em programa no dia seguinte. Vai averiguar, vai aprender mais sobre o assunto e, com muita fre- qüência, acho que em todos os casos ela ouve uma demanda e responde com outra coisa, um pouco diferente, por- que cria, melhora, discute mais sobre o assunto. Assim a Fundação fez os pro- gramas de Infra-estrutura, Parceria para Inovação Tecnológica, Genoma, Biota, Fap-Livros, tudo isso ouvindo a comunidade. Quer dizer, é assim que funciona, ela tem que ouvir, tem que fazer um esforço para prestar atenção, para entender o que a comunidade de pesquisa em São Paulo está dizendo. A comunidade sabe identificar onde o sapato aperta.

■ Sua experiência como reitor da Uni- camp certamente propiciou uma proxi- midade maior para ouvir mais a comu- nidade, e isso deve ter intensificado a sua preocupação aqui na FAPESP de ouvir essa comunidade. — É, de certo modo, sim. Embora, já antes, a minha experiência como pre- sidente da FAPESP tenha mostrado que as boas idéias vinham da comunidade. Mas é verdade, a minha experiência co- mo reitor me ajudou a valorizar muito a idéia de que as pessoas na comuni- dade de pesquisa têm idéias boas e, quanto mais pessoas se ouvir, maior será o número de idéias muito boas. O que é preciso é ouvi-las e tentar enten- dê-las. E quem consegue ser uma "es- ponja" de idéias consegue fazer mais coisa boa.

■ Como se fará a ampliação do grupo de assessores e adjuntos da diretoria científica? — Precisamos de duas coisas: de uma certa quantidade de pessoas e de sua re- novação periódica. Esta é uma das ma- neiras de ter mais pessoas diferentes freqüentando a Fundação. Acho im- portante termos um sistema organiza- do e mais formal de indicação dessas coordenações, tempo de duração e as- sim por diante. Por exemplo, acho mui- to importante que a comunidade de pesquisa de São Paulo conheça mais quem são esses coordenadores: quando eles começaram, quando terminam,

quando um é substituído, quer dizer, é preciso que isso seja mais explicitado, porque quanto mais visibilidade tiver o sistema de funcionamento da FAPESP, melhor será. Ao mesmo tempo a Fun- dação valoriza muito seu sistema de as- sessores ad hoc, mas isso não significa que ela tem uma crença cega em sua in- falibilidade, e até por isso é que incenti- vamos os pesquisadores que se senti- rem prejudicados, mal compreendidos ou injustiçados pelos pareceres a apre- sentarem argumentos defendendo seus projetos. Isso não é de maneira nenhu- ma mal visto pela Fundação, pelo con- trário, é por ela considerado como um resultado natural do sistema de avalia- ção pelos pares. Digamos assim, o amor da FAPESP pelo sistema de avaliação pelos pares vem não de uma crença em sua infalibilidade, mas de uma convic- ção de que assim se minimizam os erros.

■ Qual é a sua visão sobre o apoio da FAPESP às diferentes áreas do conheci- mento? — A missão da FAPESP é apoiar todas as áreas do conhecimento humano, tra- balhando dentro das regras do método científico. Isso inclui as ciências huma- nas, as ciências sociais aplicadas, as exa- tas, as engenharias, as ciências da saú- de, a biologia, a filosofia, enfim, todas as áreas. Aliás, dentre as agências do país e talvez do mundo que atuam em muitas áreas, acho que a FAPESP é uma das que mais têm financiamentos para a área de ciências humanas. Dentro de sua carteira de projetos, essa é a quarta área mais financiada, depois de saúde, biologia e engenharia. Acho importan- tíssimo para o Estado de São Paulo ter- mos uma sólida atividade de pesqui- sa na área de humanas, como também acho fundamental termos uma sólida atividade de pesquisa em filosofia. Isso é essencial para que o ambiente acadê- mico de pesquisa no estado seja sau- dável, seja suficientemente abrangente para criar, digamos, um modo de vida, uma ambientação adequada à forma- ção de nossos estudantes, que é tão im- portante quanto a própria formação dos recursos humanos. Nos tempos atuais é fundamental ter atenção para evitar os perigos do utilitarismo, de uma certa visão de curto prazo sobre a atividade de pesquisa, muito popular em certos círculos, mas muito errada, errada em

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proporções oceânicas. Quanto ao vo- lume de financiamento, ele depende principalmente de duas coisas: do ta- manho da comunidade de pesquisa de cada área e de características específicas da área sobre o custo de sua atividade de pesquisa.

■ Mas, apesar do apoio sem discrimina- ções na FAPESP, há áreas do conhecimen- to que permanecem hem menos visíveis. Como é a sua percepção disso? — Depende de como se olha. Temos que tomar cuidado ao analisar os resul- tados de pesquisa para não ficarmos sujeitos a uma métrica distorsiva. Por- que quando se fala em publicações científicas em revistas internacionais, aí, sim, aparece muito a área de física, a área de saúde, de biologia, um pouco menos de engenharia, certo? Há áreas em que a circulação do conhecimento se dá de outra forma, e então, se a mé- trica for número de livros publicados, a visibilidade da área de física, de quími- ca, de saúde, é pequeníssima, enquanto é grande a da área de ciências humanas. Portanto, se quisermos fazer um qua- dro sobre a atividade de pesquisa em São Paulo, precisamos usar várias mé- tricas diferentes, adequadas a cada uma das áreas do conhecimento. Mesmo quando olhamos, por exemplo, para as ciências exatas, vemos que na física im- portante é publicar o paper, mas na ciência da computação, às vezes, é mais importante apresentar o trabalho numa conferência.

■ Mas esse parece um problema real na pesquisa acadêmica. Avalia-se a produ- ção de cada pesquisador pela quantidade

de papers publicados e, provavelmente, comete-se assim muita injustiça sobre sua produção real. — Se cometerá se a avaliação for feita exclusivamente por essa numerologia de papers. A FAPESP usa um sistema de avaliação que envolve a comunidade de pesquisa do Estado de São Paulo - é mais uma das instâncias da comunica- ção de que falamos -, ou seja, pesquisa- dores de determinada área — os pares - analisam o conteúdo da proposta apre- sentada, não somente a quantidade dos artigos publicados. O sistema é muito sofisticado, especialmente quando con- sideramos a quantidade de projetos com que lidamos, cerca de 15 mil por ano, e todos dependendo de um parecer de um assessor pelo menos - é algo mui- to notável. Não sei de outra agência no Brasil que dê conta de fazer isso desse jeito. Isso é muito importante, porque permite que cada setor ou cada subárea do conhecimento seja julgado confor- me sua própria métrica, que não é es- tabelecida pela FAPESP, mas pelos pró- prios pesquisadores daquele setor do conhecimento. Mas há algo que falamos de passagem que não devemos deixar perdido: é interesse da FAPESP receber da comunidade de pesquisa do Estado de São Paulo proposições que nos aju- dem a desenvolver de maneira mais in- tensa certas áreas do conhecimento, nas quais podemos fazer isso, ou percebe- mos a necessidade de fazer isso, ou as duas coisas. Se a FAPESP fez o Progra- ma Genoma, que teve um sucesso im- portante, visibilidade internacional, destacou a pesquisa feita no Estado de São Paulo perante o mundo e, além dis- so, fez avançar a capacidade de pesqui-

sa, a formação de recursos humanos, a pesquisa acadêmica e a pesquisa empre- sarial nesta área, que outros programas pode fazer em outras áreas que tenham o mesmo ou similar efeito? Quais são os outros "genomas" que ainda não cria- mos, em outras áreas, com outros temas e que podem nos levar a resultados des- se tipo? Quais são os programas desse tipo na área de ciências humanas? Ou na área de ciência e engenharia da com- putação, que é uma área também im- portantíssima, cuja comunidade em São Paulo é ainda muito pequena? O que podemos fazer por essas áreas que lhes permita dar um salto à frente?

■ Com seu trabalho na diretoria cientí- fica da FAPESP, como ficam agora suas atividades de professor e pesquisador da área de física? — Ficam prejudicadas, como já esta- vam, aliás. Quando escolhi dedicar a maior parte do meu tempo a ativida- des relacionadas com a gestão da ciên- cia ou da educação, também escolhi diminuir meu envolvimento com a atividade, digamos, científica direta. Mas gosto muito desta atividade e, na medida da minha capacidade, conti- nuo fazendo isso um pouco, supervi- sionando alguns excelentes estudan- tes que tenho e que acabam exigindo de mim uma dedicação de alguma fra- ção do meu tempo. Mas temos que fa- zer escolhas, não é?

■ Seu caminhar para essa área de gestão da política científica e tecnológica respon- de mais a uma questão de gosto, de pra- zer, ou a um sentimento de necessidade? — Todas essas coisas somadas. Você vai começando a fazer e vai se interessan- do. Eu gosto de fazer, gosto de entender, gosto principalmente de sempre tentar aplicar o método científico aos proble- mas que tenho na gestão da ciência, o que é perfeitamente possível.

■ Em sua visão, como deve ser a articu- lação da FAPESP com as outras agências de fomento? É útil também uma boa arti- culação com as outras FAPs (Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa)? — É essencial ter articulação com as agências federais. Por mais que hoje mais da metade - na verdade 60% - do fi- nanciamento da pesquisa em São Paulo seja feito com dinheiro estadual, os 40%

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federais são essenciais. Sem as agências federais não existiria ciência em São Paulo. Aliás, esse predomínio do finan- ciamento feito pela FAPESP começou a acontecer, eu diria, a partir de 1997 ou 1998. Com as agências estaduais é mui- to importante também, mas aí é uma importância um pouco mais difusa. Ela está mais na possibilidade de a FAPESP contribuir para que essas agências esta- duais sejam mais prestigiadas pelos seus respectivos governos estaduais. E aí a grande contribuição da FAPESP vem se dando pelo exemplo. É muito prejudi- cial para o desenvolvimento de ciência e tecnologia no Brasil que praticamente 24 estados brasileiros tenham FAPs or- ganizadas e legisladas na forma da FA- PESP, mas que somente um, São Paulo, cumpra a legislação. É uma tragédia.

■ Por uma falta de sensibilidade política ou por uma falta de força da comunida- de científica dos estados? — Não sei avaliar. Acho que as duas coisas se somam. Há uma dificuldade nas finanças estaduais, mas essa dificul- dade existe em São Paulo também, que no entanto faz religiosamente o repasse de 1% de suas receitas tributárias para a FAPESP. Talvez haja mais uma limita- da percepção sobre os benefícios que podem advir para aquela região de um financiamento continuado em ativida- des de pesquisa. Mesmo que esse finan- ciamento aconteça principalmente no mundo acadêmico. Quer dizer, não é por coincidência que São Paulo tem in- dústria automobilística, tem a Em- braer, tem o parque industrial mais poderoso do Brasil, tem o centro mais importante na área de software, tem as empresas de genômica etc. São resulta- dos de décadas de esforço do Estado de São Paulo em ter boas universidades públicas e em ter a FAPESP. É uma coi- sa que, mais do que se somando, vai multiplicando a quantidade de resulta- dos. Tem que se fazer por muito tempo. Não é no quinto ano de investimento que vem a maior parte do resultado, mas depois de 40, 50 anos. É um pro- cesso demorado. Acho que o experi- mento - para falar numa linguagem do método científico - mais controlado que temos nesse campo é do ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica) e da Em- braer. Foi uma coisa feita numa região do Brasil onde ninguém falava antes a

palavra avião, o território estava livre, não tinha "contaminações" anteriores. Numa região razoavelmente delimita- da, criou-se um centro de pesquisa e uma boa escola de engenharia. Quanto tempo demorou para isso resultar na terceira maior fábrica de aviões do mundo? Cinqüenta anos, essa é a medi- da desse tipo de esforço. No Brasil, às vezes temos dificuldade para entender isso porque não percebemos, quando olhamos para os Estados Unidos ou pa- ra a Europa, que a vitalidade que a gen- te vê ali é uma vitalidade que fala de nascimentos e de mortes, empresas que nascem e empresas que desaparecem. Só que isso acontece sobre um pano de fundo de 150 ou 200 anos de investi- mentos assim, enquanto nós estamos fazendo isso há 40. Quando nosso acú- mulo for de 150 anos, investindo de ma- neira contínua, vamos ver esse fundo de muito resultado e alguns picos apa- recendo ali.

■ Sua visão, então, na verdade, é otimista em relação a esse panorama da inovação, do desenvolvimento científico nacional. — Sim, e justificadamente, pelo se- guinte: porque é uma visão baseada em certas medidas sobre o desempenho do Brasil na atividade de ciência e na ativi- dade de tecnologia, que, se por um lado nos ajudam a identificar dificuldades, por outro lado nos ajudam a verificar que a capacidade que se tem construído no Brasil para atividades relacionadas com o conhecimento é muito compe- titiva internacionalmente. Em meados de maio foi destacado na imprensa que a produção científica brasileira de cir- culação internacional, que, como disse, não é a única importante, mas é uma das mais importantes, tem crescido nu- ma taxa que é muitas vezes superior à taxa da média mundial. Quer dizer, o Brasil está ganhando produção. Há muitos outros países do mundo que es- tão perdendo produção. A taxa de cres- cimento da capacidade do Brasil de for- mar doutores, mestres, pessoal muito bem qualificado para lidar com conhe- cimento também é muito superior à taxa mundial. Tanto que num artigo da Science, de 13 de maio, três países são citados como os que mais estão cres- cendo em produção científica na área de saúde: Brasil, China e Coréia. Então é justificadamente otimista minha vi-

são. Claro que não é um otimismo de Poliana. E, como se diz, o preço da li- berdade é a eterna vigilância.

■ Para finalizar: os 9 mil, quase 10 mil doutores que estão se formando por ano no Brasil provavelmente se tornarão um fator fortíssimo depressão sobre a deman- da de recursos para pesquisa, na acade- mia ou na empresa. E aí o orçamento da FAPESP não corre o risco de ficar peque- no demais em relação às necessidades de financiamento da pesquisa em São Paulo e sepultar de vez aquela afirmação de que não há demanda reprimida de recursos para a pesquisa de qualidade no estado7. — Esse risco na verdade já foi corrido e já foi perdido, pelo menos por enquan- to. O orçamento da FAPESP já é insufi- ciente para atender à demanda da pes- quisa em São Paulo, embora não seja propriamente pequeno. Hoje a FAPESP faz 60% do investimento em pesquisa em São Paulo, enquanto há dez anos fa- zia 40%. A taxa de crescimento da co- munidade de pesquisa no Estado de São Paulo tem sido bem superior à taxa de crescimento da economia, que é o que determina o tamanho do financiamen- to da FAPESP. Até porque o Brasil, de- pois de 1980, nunca mais conseguiu achar um jeito de fazer a economia cres- cer. Então já há um descompasso, cer- tamente que há. Basta ver a pressão que nós temos aqui na Fundação no siste- ma de bolsas, que já foi, 15 anos atrás, um sistema que podia praticamente fi- nanciar todas as bolsas que quisesse. Hoje não é mais. A competição é eleva- díssima, chegando ao ponto em que so- mente os candidatos considerados exce- lentes conseguem receber uma bolsa. Então nós já estamos vivendo essa difi- culdade.

■ Isso não é preocupante? — É. Certamente que é preocupante, tanto quanto a preocupação que todos nós temos com a capacidade do Brasil de fazer o sistema público de saúde atender direito a população, ou o siste- ma público de educação ou as estradas estarem cuidadas... Porque são doenças de um país no qual a população cresce, o tamanho das demandas cresce e a economia para atendê-las não cresce na mesma velocidade. Esse descompasso já está machucando muito a pesquisa, no Brasil inteiro. •

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I POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA

ESTRATéGIAS MUNDO

A batalha dos gorilas A África do Sul e a Repú- blica de Camarões travam uma guerra diplomática pe- la posse de quatro gorilas capturados nas florestas ca- maronenses em 2001. Os primatas, da subespécie de gorilas que habita as planí- cies africanas, foram levados ainda bebês para a vizinha Nigéria e depois vendidos para a Malásia. Esse tipo de comércio é proibido pela Convenção sobre o Comér- cio Internacional das Es- pécies da Flora e da Fauna Selvagens (Cites), mas con- trabandistas forjaram do- cumentos para dar lastro à transação. Quando a fraude foi descoberta, a Malásia concordou em mandar os gorilas para onde a Cites determinasse. Decidiu-se que eles iriam para o zooló- gico de Pretória, na África do Sul, que os reivindicava. A justificativa é que os ani-

mais não estariam seguros em seu hábitat natural, onde são vítimas do desma- tamento, do comércio de carne de gorila e dos surtos do vírus ebola. O governo camaronense garante que eles ficariam a salvo num santuário de primatas. E acusa a África do Sul de aproveitar-se da situação para obter animais cobiça- díssimos por zoológicos. Em abril, quarenta primatolo- gistas, liderados pela célebre pesquisadora Jane Goodall, divulgaram um documen- to afirmando que o santuá- rio em Camarões é o desti- no ideal. Enquanto isso, as autoridades sul-africanas vão ganhando tempo. Já disseram que a devo- lução seria coordena- da por uma comis- são de especialistas, que jamais foi for- mada.

0 destino dos primatas é alvo de disputa entre África do Sul e Camarões

■ No rastro da epidemia

Em Angola, técnicos da Or- ganização Mundial da Saúde (OMS) rastreiam focos dos surtos do letal vírus marburg orientados por mapas de alta resolução produzidos pela Agência Espacial Européia (ESA). A moléstia produz he- morragias internas em hu- manos semelhantes às do ví- rus ebola, com um período de incubação de cinco a nove dias. Um dos últimos surtos eclodiu na capital Luanda no começo de abril. Acabou con- Cabinda, em Angola: imagem ajuda a enfrentar o vírus

trolado, mas custou a vida de mais de 255 pessoas, muitas delas crianças. Os mapas, que mostram as cidades de Uige, Luanda e Cabinda, foram feitos com o cruzamento de fotos colhidas pelos satélites Spot 5 e Ikonos. Resultam de dois programas que existem na ESA. Um deles busca abas- tecer epidemiologistas com dados capazes de estabele- cer ligações entre ambiente e doenças. O segundo é um consórcio dedicado a forne- cer dados georreferenciados a organizações humanitárias. (Esa News, 10 de maio) •

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■ As razões do salto espanhol

Na década de 1960 a Espanha contava com apenas quatro pesquisadores na área de as- tronomia. Hoje o país con- grega 400 cientistas e é refe- rência internacional neste campo do conhecimento. O salto espanhol foi articulado por um homem, o astrôno- mo Francisco Sánchez, dire- tor do Instituto de Astrofísica das Canárias, função que ocupa desde 1975. Coube a ele estabelecer as regras que franquearam a outros países sítios para a construção de te- lescópios no pico vulcânico de Roque de Los Muchachos, em La Palma, uma das ilhas Canárias, lugar privilegiado para observações a 2,4 mil metros de altitude. Hoje já se contam 14 telescópios nas montanhas, domos cintilan- tes de onde, freqüentemente,

mal se enxerga o oceano Atlântico - as nuvens se for- mam 1 quilômetro abaixo, formando um cobertor bran- co perturbado apenas pelos outros picos vulcânicos da vi-

zinhança. Pelas regras arqui- tetadas por Sánchez, 20% do tempo de observação foi re- servado para astrônomos es- panhóis, assim como os 19 países que ergueram os teles-

cópios são obrigados a ban- car a formação no exterior de pós-doutores espanhóis. Isso foi crucial para ajudar a as- tronomia espanhola a crescer tão rapidamente. Agora a Es- panha prepara um novo sal- to. Está construindo na região o Gran Telescópio Canárias (GTC), o maior telescópio óptico do mundo que, espe- ra-se, terá grande impacto na produção científica do país. Com espelho de 10,4 metros de diâmetro, vai tomar a lide- rança dos dois telescópios Keck, no Havaí, cujos espe- lhos têm 10 metros de diâme- tro. Assim como os Keck, o GTC usará técnicas ópticas adaptativas para compensar a turbulência do ar. Os espa- nhóis terão direito a 90% do tempo de observação do GTC. O telescópio deve ficar pron- to ainda neste ano e começa- rá a operar até o final de 2006. {Nature, 12 de maio) •

A longa jornada européia O astronauta alemão Tho- mas Reiter, de 46 anos, será o primeiro europeu a par- ticipar de uma missão de longa duração na Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês), labora- tório instalado numa órbi- ta a 400 quilômetros da Terra. Ele deverá chegar à ISS em julho e retornar apenas em fevereiro de 2006. Um astronauta russo e outro norte-americano também comporão a tripu- lação. Até hoje a participa- ção da Agência Espacial Eu- ropéia (ESA) no projeto da ISS havia rendido apenas visitas rápidas de seus as- tronautas à estação, como a do italiano Roberto Vittori,

Reiter: experiência

que passou dez dias no es- paço em abril. Reiter foi o escolhido porque tinha mais experiência. Uma década atrás passou 179 dias em ór- bita, a bordo da hoje extin-

Vittori: vôo rápido

ta estação russa MIR, quan- do teve a chance de realizar 40 experiências científicas encomendadas pela ESA e fazer dois passeios no es- paço. A escalação de Reiter

coincide com o aumento da participação da ESA na es- tação. Em 2006 partirão da agência européia duas gran- des contribuições para o projeto: os lançamentos do laboratório de experiências científicas Columbus, que vai acoplar-se à ISS, e o vôo inaugural da Jules Verne, nave não tripulada que le- vará suprimentos à estação. "É natural que os europeus assumam mais responsa- bilidades operacionais do programa e, assim, ganhem mais experiência", disse Rei- ter. O francês Léopold Ey- harts está escalado para substituir Reiter se algum imprevisto ocorrer. (BBC, 28 de abril) •

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ESTRATéGIAS MUNDO

O novo fôlego da poliomielite Dezesseis países considerados livres da poliomielite, a maio- ria no mundo muçulmano, voltaram a registrar casos da doença nos últimos dois anos. Atribui-se a culpa ao boicote à vacina promovido por razões religiosas na Nigé- ria, em 2003. Clérigos islâmi- cos do país sustentam que as campanhas de vacinação fa- zem parte de um plano nor- te-americano para tornar os nigerianos inférteis ou conta- minarem-nos com o vírus HIV. O surto mais recente foi registrado no Iêmen, que não via casos da moléstia desde 1999. Mais de 80 casos foram diagnosticados. As crianças iemenitas haviam sido vaci- nadas, mas não repetiram a dose o número de vezes ne- cessário. Avalia-se que o vírus possa ter sido trazido por pe- regrinos que estiveram em Meca - a Arábia Saudita ain- da não conseguiu controlar a

Criança com pólio: uma cena que volta a aparecer

doença. A situação é mais preocupante na Nigéria (54 casos nos últimos doze me- ses), no Sudão (24 casos) e no Paquistão (8 casos). A Indo- nésia, que ficou dez anos livre da doença, também voltou a registrar um caso, da mesma cepa do vírus da Arábia Sau- dita. A Organização Mundial da Saúde tenta reagir com programas de vacinação em massa. (BBC, 18 de maio) •

■ Adiáspora argentina

A Argentina é o país latino- americano que ostenta a maior proporção de cientistas que migram para os Estados Uni- dos, segundo estudo da Co- missão Econômica para Amé- rica Latina e Caribe (Cepal). A cada mil argentinos que se mudam para os Estados Uni- dos, 191 são profissionais qua-

lificados, cientistas ou técni- cos. "Os números fazem parte de um estudo sobre a mobi- lidade internacional de talen- tos. Queremos estudar o mo- vimento dos trabalhadores qualificados em torno dos dis- tintos países do mundo, sejam cientistas, técnicos, executivos de empresas ou artistas", disse Andrés Solimano, economis- ta da Cepal. Ele adverte que os países da América Latina gastam muito para capacitar os cientistas, mas a falta de di- nheiro e de estímulo à pes- quisa afugenta os melhores talentos e põe o investimento a perder. Há dois anos, o se- cretário de Ciência, Tecnolo- gia e Inovação da Argentina lançou o Programa Raízes pa- ra se aproximar de pesquisa- dores argentinos que traba- lham no exterior. O Centro de Estudantes e Graduados Argentinos nos Estados Uni- dos também deu início ao Projeto Diáspora com o mes- mo objetivo. (SciDev.Net, 10 de maio) •

ia na web Envie sua sugestão de site científico para [email protected]

flMfc

ittp://fapesp.bvs.br/ A Biblioteca Virtual do Centro de Documentação e Informação da FAPESP reúne fontes sobre ciência e tecnologi

http: / / www.africancrops.net/ 0 site, mantido pela Fundação Rockefeller, reúne dados acerca dos desafios da

jra e na biotecnologia

http://elibrary.unm.edu/sora/index.php A biblioteca virtual compila mais de cem anos de edições de

slicações na área de ornitologia.

22 ■ JUNHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 112

Page 23: O homem de Capelinha

ESTRATéGIAS BRASIL

A batalha que não terminou A aprovação da Lei de Bios- segurança, três meses atrás, não arrefeceu os ânimos en- tre vencedores e derrotados na batalha dos transgêni- cos. O Ministério do Meio Ambiente e a Agência Na- cional de Vigilância Sanitária (Anvisa) contestaram a de- cisão do presidente da Co- missão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio),

Jorge Almeida Guimarães, de permitir a importação de seis variedades de milho transgênico para ração ani- mal. A liberação não inclui as variedades resistentes a in- setos da Syngenta e da Mon- santo, além de milho tole- rante a herbicida da Bayer, principais alvos de críticas de ambientalistas. Para a CTNBio, órgão técnico que

recuperou poderes com a nova lei, não há indicação de que os grãos liberados te- nham efeitos deletérios quan- do usados em ração animal. Mas, em todo caso, foram determinados cuidados no desembarque, transporte, processamento e descarte dos grãos. Para o ministério e a Anvisa, faltam análises de risco ambiental e não foram

tomados cuidados suficien- tes para evitar a contami- nação de alimentos para consumo humano. O vere- dicto final caberá ao Conse- lho Nacional de Biossegu- rança, criado pela nova lei, cuja composição é política. Presidido pelo chefe da Ca- sa Civil, José Dirceu, o con- selho tem a participação de 11 ministros. •

■ Parceria contra pragas virtuais

O Instituto de Pesquisas Tec- nológicas (IPT) e a Hauri, empresa sul-coreana especia- lizada no desenvolvimento de softwares de segurança, firmaram uma parceria com o objetivo de combater as ameaças de pragas virtuais. O principal fruto do acordo será a inauguração, prevista para julho, de um grande la- boratório. Funcionará no campus da Universidade de São Paulo e será destinado à criação de mecanismos de de- fesa e soluções antivírus. Um dos objetivos do centro é criar competência brasileira na prestação de serviços con- tra pragas de computador. Hoje os países latino-ameri-

canos representam apenas 5% do faturamento mundial desse mercado. O laboratório em São Paulo será responsá- vel pela identificação das no- vas ameaças e análise do me- canismo de atuação do vírus. As informações apuradas pelo IPT serão encaminhadas à equipe de desenvolvimento da Hauri, na Coréia do Sul, que irá formular as vacinas para cada caso em particular. O centro irá funcionar com oito computadores em rede destinados a analisar arqui- vos suspeitos, enviados por usuários domésticos e empre- sas. Segundo dados da Hauri, os hackers já criaram cerca de 85 mil vírus diferentes. Só em 2004 foram registradas cerca de 400 mil invasões em todo o mundo, 36% a mais do que

no ano anterior. No Brasil ocorrem 2 mil ataques a sites e servidores todos os meses. •

■ Produção com mais visibilidade

A Biblioteca Virtual em Saú- de - Psicologia e a Associação Brasileira de Editores Cientí- ficos em Psicologia lançaram no dia 22 de abril, durante o I Congresso Latino-americano de Psicologia, o portal de Pe- riódicos Eletrônicos em Psi- cologia (Pepsic). A iniciativa busca ampliar a visibilidade da produção científica em psicologia e áreas afins atra- vés da publicação de revistas científicas em formato ele- trônico e sua disponibiliza- ção gratuita na internet. O Pepsic tem cinco títulos, mas até o final do ano este núme- ro deverá ser triplicado. Pode ser acessado no endereço www.bvs-psi.org.br. •

PESQUISA FAPESP 112 -JUNHO DE 2005 • 23

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ESTRATéGIAS BRASIL

■ Reflexões do encontro em Vitória

O Conselho Nacional de Se- cretários Estaduais para As- suntos de Ciência, Tecnologia e Inovação (Consecti) e o Fó- rum Nacional de Fundações de Amparo à Pesquisa Profes- sor Francisco Romeu Landi divulgaram a Carta de Vitória, endereçada ao ministro da Ciência e Tecnologia, Eduar- do Campos. O texto com as conclusões da reunião das duas entidades, realizada na capital capixaba, reconheceu o esforço do MCT na cons- trução de parcerias com os estados e destacou a proposta dos estados de adoção do chamado Modelo Sistêmico de Gestão de Ciência e Tec- nologia, em busca de maior articulação das três esferas de governo em ações conjuntas e ajustadas às diferentes rea- lidades econômicas e sociais do Brasil. Os secretários esta- duais e os dirigentes das FAPs também reivindicaram a cria- ção da segunda edição do Pro- grama de Apoio à Pesquisa em Empresas (Pappe), com um aporte de recursos da or-

dem de R$ 500 milhões para 2006-2007; e a estadualiza- ção de parcela dos recursos destinados à infra-estrutura em pesquisa, por meio do Fundo Setorial CT-Infra, da ordem de R$ 80 milhões en- tre 2006 e 2007. •

■ Subsídios para a visão de governo

O Núcleo de Assuntos Es- tratégicos da Presidência da República (NAE), ligado à Secretaria de Comunicação de Governo (Secom), lançou novos Cadernos NAE. O vo- lume 2, Biocombustíveis, apre- senta uma análise de dois es- tudos abrangentes sobre a produção e o uso do biodiesel

junto com uma avaliação da expansão da produção do etanol no Brasil. A análise partiu de uma consulta a pes- quisadores de diversas insti- tuições e especialistas da área empresarial e governamental. O volume 3 integra a série Mudança do clima dos Cader- nos NAE e apresenta estudos de 27 autores que oferecem uma análise sobre a situação das mudanças climáticas no planeta e suas implicações no Brasil. Os trabalhos têm o ob- jetivo de contribuir para a formação de uma visão go- vernamental sobre questões vitais para o país. A coorde- nação dos consultores coube ao Centro de Gestão e Estu- dos Estratégicos (CGEE). •

Os volumes da série: combustíveis e clima

■ Pássaros formosos

O Museu de Zoologia da USP inaugura um novo módulo permanente com a exposição A evolução do vôo, que conta a origem do vôo e como ele surgiu, de forma indepen- dente, em quatro ocasiões na história da evolução bioló- gica. Primeiro, pelos insetos, muito tempo depois, pelos dinossauros, a seguir pelas aves e, mais recentemente, pelos morcegos. Já no hall de entrada há um esqueleto de carnotauro, de 4 metros de altura e 7 de comprimento, da linhagem de dinossauros que deu origem às aves. O ve- locirraptor, retratado no fil- me O parque dos dinossauros, apresenta-se em versão real, com a metade do tamanho dos exemplares cinemato- gráficos e com parte do cor- po coberta de penas. A nova ala faz parte do processo de modernização que busca desenvolver a vocação do museu para a divulgação científica, além da pesqui- sa. Mais informações no site www.mz.usp.br. •

24 ■ JUNHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 112

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No bonde da história A Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pes- quisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) lançou a quarta edição do Rio de Janeiro em mapas, um proje- to cujo objetivo é divulgar construções, lugares e ins- tituições fluminenses sob o ponto de vista histórico, cultural e arquitetônico. Dessa vez o trabalho retrata o tradicional bairro carioca de Santa Teresa, reunindo um mapa ilustrado e um catálogo com informações históricas sobre a região. Para recriar construções como a que abriga o Centro Educacional Anísio Tei- xeira, o Museu da Chácara do Céu, a Igreja e o Con- vento de Santa Teresa, além do famoso bondinho que percorre suas ruas, a ilustradora Ana Maria Moura, moradora do bairro, utilizou como base um estudo do arquiteto Kleris Albernaz. A pesquisa histórica, feita por Marcos Luiz Bretas, resultou num catálogo que, além da história dos prédios, apresenta um am- plo serviço sobre as entidades de pesquisa, igrejas, so- lares, museus, centros culturais do bairro. •

I -n

■ 0 avanço do software livre

A primeira grande pesquisa brasileira sobre o uso de soft- ware livre, aquele que pode ser copiado e modificado sem restrições, mostra que o novo modelo começa a mudar pa- drões de propriedade intelec- tual e de aprendizagem tec- nológica. Intitulado Impacto do software livre e de código aberto na indústria de soft- ware do Brasil, o estudo mostra que a adesão é signi- ficativa entre grandes com- panhias: 64% das empresas usuárias têm faturamento su- perior a R$ 1 milhão por ano, com destaque para os seg- mentos de comunicação, co- mércio, educação, governo e tecnologias da informação. As principais motivações dos empresários são econômicas (redução de custos). Empre- sas como Carrefour, Embra- pa, Itaú, Petrobras, Pão de Açúcar e Wall Mart estão en- tre os casos bem-sucedidos de utilização. O avanço se con- centra nas regiões Sul e Su- deste: 81% das empresas de- senvolvedoras e 85% das

empresas usuárias ficam nes- sas regiões. Rio Grande do Sul e São Paulo são os dois prin- cipais focos de desenvolvi- mento e uso de software livre. O estudo foi realizado pela Associação para Promoção da Excelência do Software Brasi- leiro (Softex) e pelo Departa- mento de Política Científica e Tecnológica da Universi- dade Estadual de Campinas (Unicamp). Há boas perspec- tivas de crescimento nos pró- ximos anos, sobretudo na prestação de serviços, hoje li- derada pelo sistema Linux, que respondeu em 2003 por 9% do mercado mundial de sistemas operacionais. A esti- mativa é que, em 2007, alcan- ce 18% desse mercado. •

PESQUISA FAPESP 112 ■ JUNHO DE 2005 ■ 25

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POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA

ENGENHARIA

vão rolar Transposição do rio São Francisco divide opiniões e instiga polêmica entre governo e pesquisadores

CLAUDIA IZIQUE

Desde a época do Império o Brasil busca uma solução para minimizar os efeitos da seca no semi-árido nor- destino. Em 1847, d. Pedro II se dispôs até a vender as

jóias da Coroa para levar as águas do rio São Fran- cisco à região. A sua intenção não se consumou e as jóias foram preservadas. No século 20, a transposição das águas do rio foi cogitada outras três vezes, nos anos 1980,1990 e 2000. A falta de recursos e de con- senso, no entanto, inviabilizou todos os projetos. A primeira proposta deste século - e não menos polê- mica - é o Projeto de integração do rio São Francisco com as bacias hidrográficas do Nordeste Setentrional, do Ministério da Integração Nacional.

O objetivo do projeto é assegurar a oferta de água de múltiplos usos para 12 milhões de pessoas. Prevê a construção de dois canais revestidos de concreto, com 720 quilômetros de extensão, 25 metros de lar- gura e 5 metros de profundidade, por meio dos quais serão captados, de forma contínua, 26 metros cúbicos por segundo das águas do rio São Francisco e trans- portados até a região da seca. Quando a barragem de Sobradinho estiver cheia, o volume de captação po- derá chegar a 114 metros cúbicos. A vazão média se- rá de 63,5 metros cúbicos por segundo e a capacida- de total de transporte da obra será de 127 metros cúbicos por segundo.

Rio São Francisco, na divisa de

Minas Gerais com a Bahia, em

dezembro de 1976

Ao longo de todo o percurso serão construídas nove estações de bombeamento para superar desní- veis de até 160 metros de altitude, além de 27 aque- dutos, 8 túneis e 35 reservatórios de pequeno porte. O primeiro trecho dessa obra monumental que o go- verno federal quer iniciar ainda este ano está orçado em R$ 4,5 bilhões. "A área do projeto atinge 37% da população do polígono da seca", justifica João Urba- no Cagnin, coordenador técnico do projeto no Mi- nistério da Integração Nacional.

"Chover no molhado" - O projeto começou a ser ar- quitetado em 2003 e, desde então, avançou mais do que qualquer outro nos últimos 150 anos: os editais de licitação do primeiro trecho da obra foram publi- cados no dia 13 de maio e as mais de 30 empreiteiras interessadas têm prazo até o dia 28 de junho para apresentar suas propostas.

Mas a idéia de que a transposição reduzirá efeti- vamente os efeitos da seca no semi-árido nordestino

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está longe de ser consenso político ou técnico.

A oposição ao projeto une desde go- vernadores de estados "doadores" e "re- ceptores" de água - já que a eles caberá a conta das obras de ligação dos canais às redes de saneamento - até cientistas e ambientalistas, passando por organi- zações não-governamentais. É parti- cularmente forte entre os membros do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco (CBHSF). Há perspectivas de que a licença prévia ambiental concedi- da pelo Instituto Brasileiro do Meio Am- biente e dos Recursos Renováveis (Iba- ma), no início de maio, e o processo de licitação em curso sejam contestados na Justiça, por meio de ações civis.

Disputas políticas à parte, os críticos consideram o projeto economicamen-

te inviável e socialmente injusto. Argu- mentam que não existe déficit hídrico no Nordeste Setentrional que justifi- que um projeto dessa magnitude. "O Nordeste tem água. São 70 mil açudes com algo em torno de 37 bilhões de metros cúbicos de água. É o maior vo- lume de água represada em todo o mun- do", diz João Suassuna, da Fundação Joa- quim Nabuco.

Metade dessa água, ele afirma, está no açude de Castanhão, no Ceará, que atende a demanda de Fortaleza e da po- pulação do baixo Jaguaribe, que será abastecido com águas captadas em Ca- brobó (PE) e transportadas pelo eixo norte do projeto até o Ceará. "Para que levar ainda mais água para esse açude?", indaga. Na sua avaliação, o que falta é uma política para o uso da água.

O projeto de transposição "chove no molhado", na avaliação de João Ab- ner, professor da área de recursos hídri- cos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRGN). Ele usa o exemplo de dois estados do Nordeste Setentrional para contestar a tese do déficit hídrico. O Ceará tem 7,5 mi- lhões de habitantes, 35 megaaçudes e uma oferta potencial de 215 metros cú- bicos por segundo de água para um consumo atual de 54 metros cúbicos por segundo. O sonho de d. Pedro já se concretizou no Ceará com a constru- ção do açude de Castanhão", diz.

O Rio Grande do Norte, com uma população de 2,7 milhões de pessoas, dispõe de uma vazão garantida de 70 metros cúbicos por segundo para aten- der uma demanda de 33 metros cúbicos

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por segundo. "Até mesmo a Paraíba, o estado menos dotado de recursos hídri- cos da região, apresenta um superávit significativo: 32 metros cúbicos por se- gundo para uma demanda de 21 metros cúbicos por segundo", afirma Abner.

Na sua avaliação, o que falta para o Nordeste Setentrional é uma política de alo- cação de água através de adutoras, como a realizada no Rio Gran- de do Norte. O esta- do utilizou os recur- sos da privatização da sua companhia de energia elétrica para investir R$ 250 milhões em mais de mil quilômetros de adutoras que abastecem metade da po- pulação. "Elas levam as águas do litoral e da barragem Armando Ribeiro Gon- çalves, no rio Piranha-Açu, para a re- gião semi-árida", conta.

O coordenador técnico do projeto rebate as críticas sobre a disponibili- dade hídrica no Nordeste. "Dos 70 mil açudes, só cem valem a pena. Os demais são grandes evaporadores de água", ga- rante. "E os grandes açudes não podem ser utilizados porque é preciso guardar água para o futuro, e estão comprome- tidos: perdem 2 metros de água por ano, por evaporação", argumenta Cagnin. Dos 18 bilhões de metros cúbicos de água disponíveis no Ceará, por exem- plo, só 20% podem ser utilizados. "Ou seja, tem açude mas não tem água."

Os açudes do Nordeste Setentrional acumulam o máximo de água no perío- do de chuvas, durante três ou quatro me- ses por ano. Mesmo quando cheios, o uso da água é controlado de forma a ga- rantir abastecimento em caso de seca prolongada. A integração desses açudes com uma fonte de água permanente e de grande volume - com a que será trans- posta - permitirá que a água armazena- da nos açudes seja liberada em maior proporção para as atividades produti- vas. A garantia de abastecimento atrai- rá investimentos, gerará mais emprego e aumentará a renda da população. "Se quisermos dar nova oportunidade para o Nordeste, temos que garantir água."

A água acumulada nos reservatórios e açudes terá múltiplos usos, inclusive econômico. Ao longo dos dois canais,

o projeto prevê a instalação de pontos de captação de água e chafarizes para atender a demanda da população das áreas próximas, viabilizar a agricultura irrigada de pequenos produtores.

as o foco principal do projeto é estimular o desenvolvimento ur- bano. "Não é só água para beber, é água para viver. O projeto

vai colocar água nos açudes e fornecer para as cidades", enfatiza o coordena- dor técnico do projeto. "Não é água para a população difusa", insiste. Para essa população o governo está imple- mentando a construção de 1 milhão de cisternas, um projeto de R$ 1,5 bilhão, um quarto do valor previsto na trans- posição. "A cisterna produz 1 metro cúbico de água por segundo e a trans- posição, quase 70 metros cúbicos por segundo", compara.

O uso econômico da água é forte- mente contestado. "O governo quer água para o agronegócio", resume Suassuna, da Fundação Joaquim Nabuco. "É água para o agronegócio", repete Abner, da UFRGN. "O deslocamento das águas vai chegar ao produtor?", indaga Lucia- no Pagnucci Queiroz, pesquisador do Instituto Nacional do Semi-Árido.

Tratar a água como um "bem econô- mico acarreta a exclusão de grande par- te da população", adverte o manifesto Riscos previsíveis, conseqüências incalcu- láveis, assinado no final do ano passado por 250 associações, entidades de classe e organizações não-governamentais e divulgado com a intenção de barrar a aprovação do projeto.

Essa, aliás, foi uma das razões pelas quais o Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco rejeitou o projeto de transposição. Depois de cinco consul- tas públicas em cidades da região, o co- mitê aprovou o uso externo das águas do rio "apenas para abastecimento hu- mano e dessedentação animal" e em si- tuações de comprovada escassez, de acordo com Geraldo José dos Santos, assessor técnico do comitê.

No caso do eixo leste do projeto - que sai da barragem de Itaparica, na di- visa entre Pernambuco e Bahia, próxi- mo a Nova Petrolândia, e segue até o rio Paraíba -, a água será transportada para o agreste e poderá ser utilizada para subsistência. "Mas no eixo norte do projeto o uso da água terá caráter es- sencialmente econômico. Uma pequena parcela dessa água, em valor inferior a 26 metros cúbicos por segundo, será destinada ao consumo humano e ani- mal", prevê Souza.

Para Cagnin, a polêmica em torno do uso da água do São Francisco é re- sultado de uma visão antiga do Nor- deste, de uma economia "feita na pata do boi e que foi responsável pelo po- voamento esparso". Hoje, ele continua, o Brasil tem o semi-árido mais popu- loso do mundo, modernizou-se, ficou mais urbano, "saiu da cultura rural". Por isso precisa de mais água.

Energia para o futuro - Os críticos tam- bém temem que a transposição com- prometa a demanda futura de energia elétrica, calculada em cerca de 6% ao ano para um crescimento de 4% do Produto Interno Bruto (PIB). O rio São Francisco é responsável pela geração de mais de 95% da energia elétrica do Nordeste, quase totalmente produzi- da pela Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf).

O Relatório de Impacto Ambiental (Rima) estima que o uso das águas do rio, nos volumes estimados pelo projeto, deverá acarretar perda de 137 MWh/h de energia para as usinas, ou seja, 2,4% da energia média gerada pela Chesf, a partir de 2025. Essa perda, ainda segun- do o Rima, poderá ser compensada com a produção gerada pelas usinas terme- létricas que estão sendo instaladas na região ou por usinas hidrelétricas loca- lizadas em outras bacias, por meio do Sistema Interligado Nacional.

"A Chesf gera 5.600 MW em média por ano e o projeto vai consumir 1% dessa energia e a médio prazo", diz Cag- nin. Lembra ainda que o sistema elétri- co no Brasil é interligado e que o Nor- deste já recebe 20% de energia gerada na hidrelétrica de Tucuruí. "No futu- ro, daqui a 15 anos, mais da metade da energia virá de fora do São Francisco."

Entre os críticos e defensores do projeto há também, aparentemente, al-

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gumas divergências de cálculo. O mi- nistro Ciro Gomes tem afirmado que a transposição utilizará apenas 1% do volume desaguado no mar. Mas o Co- mitê da Bacia do São Francisco contes- ta. O cálculo de 1% é inadequado, pois toma como base a vazão média históri- ca do rio, sem considerar que parte des- sa água não está mais disponibilizada. Em nota oficial, o comitê lembra que, para garantir as condições mínimas do rio, na foz, o Plano de Recursos Hídri- cos fixou uma vazão máxima de 360 metros cúbicos por segundo, dos quais restam apenas 269 metros cúbicos por segundo. Calculada sobre esse saldo, a transposição retiraria, de fato, entre 24% das águas do rio, na vazão média, e 47% na vazão máxima.

O custo da água transportada, esti- mado em R$ 0,11, também gera polê- mica. Hoje, na área rural, não se cobra pela água bruta. Os usuários pagam apenas o custo do bombeamento desde a fonte de suprimento até a área agrí- cola. "Com a transposição vai se pagar

muito caro pelo uso da água, cinco a seis vezes mais do que os valores praticados na região", calcula Abner.

Cagnin esclarece que esse não será o preço da água utilizada para a irriga- ção ou nas áreas rurais. Ele lembra que a água tem uso múltiplo e que esse va- lor, de R$ 0,11, será pago pelo consu- midor urbano e industrial, em troca da garantia de abastecimento, o que repre- sentaria um aumento de 10% na tarifa atual. Fora das áreas urbanas, o preço será calculado por compensação, com base em subsídio cruzado.

As preocupações não param por aí. Queiroz, do Instituto Nacional do Se- mi-Árido, por exemplo, teme que se a obra não for bem executada, além da água, os canais farão transposição tam- bém do biota (conjunto de formas de vida de um determinado ambiente. Este risco está entre os 22 impactos ne- gativos apontados pelo Rima). Para mi- nimizá-lo, está previsto o monitora- mento da mistura dos biotas das bacias doadoras e receptoras, a instalação de

filtros nas tomadas de água no rio São Francisco e a execução de subprogra- mas de monitoramento dos peixes, da qualidade da água e de estudos geoló- gicos nos dois canais.

Consulta pública - O Ministério da Inte- gração Nacional quer alocar R$ 2 bi- lhões para o projeto em 2006. Além de tentar impedir o início das obras nos tribunais - e de prometer obstruir a vo- tação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), caso o governo não recue na previsão de gastos -, os oposicionistas querem deixar para a população brasi- leira a última palavra sobre o projeto. O deputado Luiz Carreira (PFL/BA) apre- sentou à mesa da Câmara um decreto legislativo propondo um plebiscito so- bre a transposição do rio São Francisco para o primeiro domingo de outubro de 2006. A proposta tramita na Comis- são de Meio Ambiente. "Não se trata de uma obra de engenharia qualquer. É um projeto de desenvolvimento econô- mico", argumenta o deputado. •

PESQUISA FAPESP 112 -JUNHO DE 2005 -29

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POLÍTICA CIENTIFICA E TECNOLÓGICA

MEDICINA NUCLEAR

Diagnóstico de ponta em todos os cantos

Governo deve criar empresa para ampliar produção nacional de radiofármacos

inda este ano, o go- verno federal deve criar a Empresa Brasileira de Ra- diofármacos (EBR) para a

produção de compostos radioativos utilizados no diagnóstico e em terapias de várias doenças. A nova empresa - que será estatal, já que a União detém o monopólio da exploração, produção e comercialização de minérios nucleares e seus derivados - vai incorporar as plan- tas de radiofármacos do Instituto de Pes- quisas Energéticas e Nucleares (Ipen), em São Paulo, e do Instituto de Energia Nuclear (IEN), no Rio de Janeiro, am- bos geridos pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia. "A empresa terá mais agilidade e flexibili- dade para abastecer o mercado do que uma autarquia", explica Odair Dias Gon- çalves, presidente da CNEN.

O governo federal tem pressa e ana- lisa a possibilidade de constituir a EBR por meio de medida provisória. Mas não está totalmente descartada a hipó- tese de transformar a proposta em pro- jeto de lei, o que, no entanto, resultará

numa longa e imprecisa tramitação no Congresso Nacional. "Já estamos pron- tos para iniciar a transição. Só falta acer- tar o modelo de trabalho com os servi- dores", diz Dias Gonçalves.

A empresa começará em São Paulo, com a incorporação das atividades do Ipen. O instituto produz cerca de 30 ra- diofármacos para atender a demanda de cerca de 2 milhões de pacientes em 300 hospitais e clínicas especializadas em medicina nuclear em todo o país. A produção do Ipen representa 98% do mercado nacional de radiofármacos, estimado em US$ 15 milhões.

Além do Ipen, a EBR vai abranger, posteriormente, a produção do IEN, no Rio de Janeiro, e a do Centro Regional de Ciências Nucleares (CRCN), no Re- cife, que já iniciou o processo de licita- ção internacional para a compra de um acelerador de partículas (cíclotron) de- dicado ao desenvolvimento de radiofár- macos. Há planos para a instalação de um cíclotron também no Centro de De- senvolvimento de Tecnologia Nuclear, em Belo Horizonte.

O primeiro radiofármaco a ser pro- duzido no Centro Regional de Ciências Nucleares, no Recife, será o FDG (Flúor

Deoxi Glicose), ou flúor 18, um radio- isótopo utilizado em 95% das tomo- grafias por emissão de pósitrons (Pet). A Pet revolucionou o diagnóstico por imagens em todo o mundo. Utiliza ra- dioisótopos emissores de pósitrons, partículas com massa igual à dos elé- trons - como o flúor 18, o nitrogênio 13 e o oxigênio 15 - que funcionam como marcadores de moléculas orgânicas. Essa tecnologia permite estudos diretos das funções metabólicas e da bioquí- mica celular que precedem as altera- ções estruturais e anatômicas dos te- cidos e órgãos, possibilitando assim o diagnóstico precoce de doenças cardía- cas, neurológicas e de tumores.

O Ipen iniciou a produção do flúor 18 há cerca de três anos. "É a tecnologia mais recente, com diagnósticos mais pre- cisos para a detecção precoce de tumo- res", sublinha Cláudio Rodrigues, supe- rintendente do instituto. A segurança do fornecimento do radioisótopo para o exame estimulou quatro hospitais e um laboratório da capital paulista a investi- rem na compra de tomógrafos Pet, co- tados em US$ 2 milhões.

O flúor 18, no entanto, é um radio- isótopo de meia-vida curta e tem sua

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atividade radioativa reduzida num período entre duas e quatro horas. No Ipen, por exemplo, o flúor 18 é produ- zido todos os dias, diferentemente dos demais radiofármacos. Por essa razão, o flúor 18 só pode ser distribuído entre hospitais e clínicas instalados num raio de 200 quilômetros da cidade de São Paulo.

Por ausência do insumo, não exis- tem tomógrafos Pet em Brasília, em Minas Gerais ou no Rio Grande do Sul, por exemplo. A Pontifícia Univer- sidade Católica do Rio Grande do Sul, aliás, já encaminhou à CNEN pedido de autorização para a instalação de um cíclotron para a produção do flúor 18. A expectativa é que a garantia de forne- cimento estimule os hospitais a se uni- rem para adquirir uma Pet. Em Per- nambuco, por exemplo, a primeira Pet só passará a operar depois que for ins- talado o cíclotron no Centro Regional de Ciências Nucleares.

O Ipen busca recursos para com- prar um outro acelerador de partículas dedicado exclusivamente à produção do flúor 18, de acordo com Rodrigues. O aumento da produção deverá esti- mular outros hospitais a adquirirem

novos tomógrafos Pet. "A instalação de um novo cíclotron exige investimentos de US$ 3 milhões, além do treinamen- to de pessoal", calcula o superintenden- te do Ipen.

Paralelamente às gestões do gover- no federal para a criação da EBR, a Câ- mara dos Deputados se prepara para votar a Proposta de Emenda Consti- tucional (PEC) 199/03, que modifica, por regime de permissão, o monopólio da União para a produção, comercia- lização e utilização de radioisótopos de meia-vida curta, de até duas horas, como o flúor 18.

Monopólio da União - A PEC foi apre- sentada pelo senador Jorge Bornhau- sen (PFL/SC), que, em 2003, teve que recorrer à clínica norte-americana pa- ra fazer um exame de localização de tumor em sua esposa, já que não exis- tiam ainda equipamentos Pet dispo- níveis no Brasil. "A emenda tem como objetivo beneficiar toda a população brasileira", afirma o senador.

A proposta já foi aprovada em duas votações no Senado e começa a ser ana- lisada por uma comissão especial da Câmara dos Deputados, criada no ano

passado, mas só instalada no dia 18 de maio. "Se as empresas privadas pude- rem comprar o cíclotron para produzir radioisótopos utilizados na Pet, a po- pulação dos demais estados do país po- derão contar com esse exame", diz a de- putada federal Kátia Abreu (PFL/TO), relatora da PEC na Câmara.

O aumento do número de apare- lhos cíclotrons pela futura estatal e, se aprovada a PEC, também pelas empre- sas privadas e a multiplicação das Pet em todas as regiões do país devem per- mitir o acesso de um número maior de brasileiros à tecnologia de ponta para o diagnóstico precoce de doenças como o câncer. A tomografia por emissão de pó- sitron, no entanto, ainda não integra a tabela do Sistema Único de Saúde (SUS) e, portanto, o exame não tem cobertura dos planos de saúde. "Aprovada a pro- posta, partiremos para a segunda briga, que é incluir o exame no SUS e garan- tir a cobertura dos planos de saúde", promete o senador Bornhausen. "Quan- do ampliar o leque de aparelhos, com a privatização, o SUS vai se interessar", prevê a deputada Kátia Abreu. •

CLAUDIA IZIQUE

PESQUISA FAPESP 112 ■ JUNHO DE 2005 ■ 31

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Rádio Eldorado AMSintonize 700 kHz

Toda semana,em meia hora,você tem:

• Novidades deciência e tecnologia

• Entrevistas com pesquisadores

• Profissão Pesquisa

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E o que não poderia faltar:sua participação nas seções

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Apresentação Tatiana FerrazComentários Mariluce Moura

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Page 33: O homem de Capelinha

PESQUISA RESPONDE

07·05·2005

• Pedro Renato Moretti- O asteróide batizado como2004 MN4 estará a uma dis-tância de cerca de 17 mil qui-lômetros da Terra em 2012. Sea distância Terra-Lua é da or-dem de 300 mil quilômetros,haverá chance de co/isâo?

• Enos Picazzio, astrônomoda USP

- Esses objetos que passampróximos da Terra são moni-torados freqüentemente e adeterminação precisa de suaórbita depende sempre de mui-tas observações. Esses dadossão corrigidos periodicamen-te e se tornam mais precisos àmedida que o número de ob-servações aumenta. A maioraproximação desse asteróideestá prevista para 13 de abrilde 2029. Nessa data, a chancede colisão é de 1 em 26 mil.Ou seja, é improvável. Na es-cala de risco de Torino, o aste-róide 2004 MN4 se encaixa nafaixa de risco verde, onde aprobabilidade de colisão équase nula. Mas ele mereceum pouco de atenção e vamosacompanhar a sua evolução.

PROFISSÃO PESQUISA21.05·2005

• Comentarista:- Leopoldo de Meis, 66 anos,médico formado pela Univer-sidade Federal do Rio de Ja-neiro (UFRj), professor titularde bioquímica no Instituto deCiências Biomédicas da mes-ma universidade, é uma figurade fato extraordinária. Porquese trata não apenas de um cien-tista respeitado, premiado, mastambém de um homem extre-mamente preocupado com adivulgação da ciência sob vá-rias formas: educação, arte etc.

Uma colisão inevitável?

Para melhor divulgar a ciência,ele já fez filmes, animações, pe-ças de teatro ...Há pouco mais de três anos,numa entrevista para Pesqui-sa FAPESp, Leopoldo de Meisdisse uma frase fantástica, paramim, inesquecível. É a seguin-te: "Como seria bom se fossepermitido a cada especialistatrabalhar também na clarida-de dos demais!" Bonito, não?

• Leopoldo de Meis- Sou professor titular de bio-química médica da Universida-de Federal do Rio de Janeiro.Minha pesquisa científica estárelacionada a doenças comoobesidade, alterações na fun-ção tireoidiana e, no momen-to, também à contração mus-cular. Essaé a sua importância.Se olharmos de uma maneira

I mais ampla, toda a ciência:.: brasileira é importante~ para o país. No meu en-"' tender, o Brasil ainda não~z tem uma cultura científi-s

ca. Diferentemente do Pri-meiro Mundo, a ciênciacomeçou aqui no princí-pio do século passado,enquanto na Inglaterra,ou nos Estados Unidos,teve início no século 18 ou17. Cultura científica é osignificado que a ciência eseus resultados têm paraa população em geral. A

sociedade muda muito rapida-mente. Até pouco tempo atrás,gravidez podia ser um proble-ma muito angustiante. Até quea pílula anticoncepcional, umproduto da ciência, da pesqui-sa, provocou a revolução se-xual. Precisamos desenvolvero nosso saber de tal maneira aficarmos mais independentes.Precisamos também vender no-vos produtos para balancear-mos o nosso orçamento.

PROMOÇÃODA SEMANA

• Produção- Você vê alguma vantagemnum similar do Viagra desen-volvido no Brasil?

Livres de uma erupção vulcânica catastrófica?

• Jefferson Souza(ouvinte)- Pela primeira vez o homemda Terra Brasilis sentirá tesãode ser brasileiro.

E-MAIL DE OUVINTE

23·05·2005

• Antônio Padilha- Com muito prazer, sou ou-vinte constante de seu progra-ma Pesquisa Brasil, na RádioEldorado, sempre com assun-tos interessantes e bem atuais,dos quais gosto muito. Só te-nho um pequeno comentárioa fazer sobre o programa des-ta semana: nós infelizmente nãoestamos livres da ocorrênciade uma erupção vulcânica ca-tastrófica só porque estatisti-camente elas têm acontecidouma vez a cada 100 mil anos.Isso não garante que não pos-sa haver uma a qualquer mo-mento. Elas não têm data mar-cada para vir. É claro que nóstodos esperamos que a próxi-ma, obedientemente, só acon-teça daqui a 100 mil anos, masnão é possível fazer nenhumaprevisão confiável.

11.05·2005

• luçara Amaral- Acho uma delícia ouvir asmatérias e entrevistas que vo-cês veiculam. Sou superfã daprogramação da Eldorado.Gostaria de sugerir que vocêsfizessem contato com o nú-cleo Arteciência de Teatro.Eles têm várias peças ence-nadas com temas que reme-tem à Teoria da Relatividadee procuram, com pesquisasconstantes, criar uma ponteentre o conhecimento científi-co e o teatro. Eles já encena-ram Einstein, Kopenhagen per-dida, uma comédia quânticaetc. Um dos endereços delesé [email protected]

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CIÊNCIA

LABORATóRIO MUNDO

Células-tronco embrionárias personalizadas A pesquisa com células- tronco embrionárias huma- nas avança rápido. Cientis- tas sul-coreanos criaram, pela primeira vez na histó- ria, linhagens de células- tronco embrionárias que carregam a assinatura gené- tica de pessoas com doenças ou problemas físicos. Eles usaram a chamada clona- gem terapêutica, tecnica- mente denominada trans- ferência nuclear de célula somática, para atingir o fei- to. Retiraram o DNA conti- do em óvulos frescos doa- dos por mulheres jovens e o substituíram pelo material genético dos pacientes, ob- tido a partir de células da pele. Em seguida, deixaram os embriões clonados cres- cerem por seis dias e deles extraíram as células-tron-

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Pioneiras: seqüência de células de duas das 11 linhagens produzidas pelos pesquisadores sut-coreanos

■ Os pais e a TV dos filhos

Pais e mães sabem que a tele- visão não é a melhor babá do mundo e que os programas para crianças não são lá essas coisas, mas raramente limi- tam o tempo e o conteúdo do que os filhos veêm. Uma equipe de pediatras do Cen- tro Médico da Universidade Batista Wake Forest chegou a essa conclusão após entrevis- tar 1.800 pais com crianças de 2 a 11 anos nos Estados Unidos, no Canadá e em Porto Rico. A maioria (59%) contou que adotava uma es- tratégia eclética, às vezes res- tringindo o que os filhos viam

na mídia eletrônica - TV, vi- deogames ou jogos de compu- tador -, outras vezes questio- nando o teor dos programas ou mesmo deixando as crian- ças verem ou fazerem o que quisessem. Os outros pais adotavam apenas uma des- sas abordagens: 23% deles só restringiam o que os filhos viam, 11% se valiam de estilos instrutivos, recomendando programas melhores, e 7% não limitavam a liberdade de escolha dos pimpolhos. Esse estudo também mostrou que 72% dos pais se preocupam com o uso da mídia eletrôni- ca e confirmaram que quanto mais atentos aos efeitos nega- tivos da mídia mais motiva-

co com o DNA personali- zado dos doentes. Foram geradas onze linhagens des- sas células: nove de pessoas com idade entre 10 e 56 anos que haviam sofrido traumas na medula espi- nhal, uma de um menino de 2 anos com uma doença auto-imune e outra de um paciente de 6 anos com dia- betes do tipo 1. Liderada pelo veterinário Woo Suk Hwang e pelo ginecologis- ta Shin Yong Moon, ambos da Universidade Nacional de Seul, a equipe oriental é a mesma que há um ano clo- nou pela primeira vez um embrião humano e dele re- tirou células-tronco. No ex- perimento recente, a técnica foi aperfeiçoada: os pesqui- sadores conseguiram extrair uma linhagem de células-

tronco a cada 20 tentativas, eficiência dez vezes maior que a anterior. Em artigo publicado na Science de 20 de maio, a equipe coreana credita essa maior eficácia ao uso de óvulos não-con- gelados e à baixa idade das doadoras. No curto prazo, os pesquisadores não pre- tendem cultivar esse tipo de célula para injetar nos pa- cientes, algo temerário e im- produtivo, uma vez que as linhagens produzidas car- regam os defeitos genéti- cos associados às doenças. A idéia é usar células-tronco embrionárias personaliza- das para criar modelos in vitro das patologias. Estu- dar o crescimento dessas li- nhagens pode revelar os me- canismos de surgimento das doenças. •

dos se sentem para limitar ou discutir o conteúdo dos pro- gramas de TV com os filhos. O número de pais em casa também determina o enfoque a ser adotado: o acesso ilimi- tado à TV ou ao videogame mostrou-se mais comum nas casas em que havia apenas o pai ou a mãe. "Os pediatras deveriam orientar os pais para se envolverem mais no modo como suas crianças usam a mídia eletrônica", comentou Shari Barkin, coordenado- ra do estudo. Os programas de TV e os jogos eletrônicos foram associados a agressão, medo, distúrbios de sono, obesidade e perda de concen- tração. •

■ Cérebro se altera no ciclo menstrual

Surgiu uma hipótese que tal- vez explique por que muitas vezes as mulheres ficam com a sensibilidade à flor da pele em algumas fases do ciclo menstrual. Quando o nível do hormônio progesterona está baixo, os neurônios do hipo- campo - uma região do cére- bro associada às emoções - produzem mais receptores de um tipo de neurotransmissor de inibição chamado Gaba (ácido gama-aminobutírico). Em conseqüência, há uma dramática redução da comu- nicação entre os neurônios, aumenta a sensibilidade, a an-

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siedade ou os ataques epilép- ticos, de acordo com experi- mentos em camundongos feitos por uma equipe da Uni- versidade da Califórnia em Los Angeles (Ucla), Estados Unidos, e publicados na Na- ture Neuroscience. Se há mais progesterona, há menos re- ceptores de Gaba e a comuni- cação entre os neurônios do cérebro manterá o equilíbrio emocional. As descobertas podem levar a novas terapias para a tensão pré-menstrual, para a depressão pós-parto ou para as oscilações de humor durante a gravidez. •

■ Nem sempre teste de PSAé o suficiente

Só a dosagem de PSA, o antí- geno específico da próstata, pode não ser suficiente para detectar o câncer de próstata. Homens com casos na famí- lia e considerados de alto ris- co deveriam submeter-se à outra forma de diagnóstico, o toque retal. É a recomenda- ção que emerge de um estudo do Fox Chase Câncer Center, Estados Unidos, com 520 ho- mens com alto risco de desen- volverem câncer de próstata: a doença foi diagnosticada em 25% deles, mesmo com baixos níveis de PSA. Nesse estudo, homens que apresen- taram alguma anormalidade no exame retal e um nível de PSA entre 2 e 4 nanogramas por mililitro passaram por uma biópsia. Enquanto o exa- me retal poderia alertar sobre a possibilidade de um câncer na próstata, o baixo nível de PSA afastaria as suspeitas. As diretrizes adotadas no ano passado por instituições mé- dicas dos Estados Unidos su- gerem a realização de biópsia quando o nível de PSA ul- trapassa 2,5 nanogramas por mililitro. •

■ Nas crateras do lado escuro da Lua

A sonda Lunar Prospector le- vantou a possibilidade de ha- ver bolsões de água congelada nas permanentemente escu- ras crateras dos pólos lunares, após detectar sinais de hidro- gênio. Esses reservatórios se- riam valiosos para abastecer os próximos astronautas que lá descerem novamente. Só falta confirmar essa possibili- dade: a Nasa, a agência espa- cial norte-americana, preten- de lançar em 2008 uma nova sonda, a Lunar Reconnais- sance Orbiter, com equipa- mentos capazes de detectar a água no único satélite natural da Terra {foto ao lado). Cogi- ta-se que a Lua, como a Terra, tenha ganho sua porção de água - ou de seus elementos químicos - há 3,9 bilhões de anos, mas sua tênue gravida- de a teria deixado escapar. Mas, antes que seja vista co- mo um lugar para visitar, há um problema sério a resolver: a poeira lunar. Similar à poei- ra de sílica, está por toda par- te e pode se tornar danosa aos pulmões se inalada. A ima- gem acima é uma representa- ção da composição do solo da superfície lunar: o vermelho representa os terrenos mais altos e as áreas que vão do azul ao laranja, depósitos an- tigos de lava vulcânica. •

PESQUISA FAPESP112 -JUNHO DE 2005 ■ 35

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LABORATóRIO BRASIL

500 mil árvores abatidas Em cinco séculos, portugueses, franceses, holandeses, espa- nhóis, ingleses e brasileiros extraíram 527.182 árvores de pau-brasil (ao lado). A exploração mais intensa ocorreu no século 18, quando foram cortadas 322.260 árvores. Yuri Ta- vares Rocha, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP), chegou a esses números após consultar quase mil li- vros e documentos no Brasil e em Portugal. Depois rodou 10 mil quilômetros em São Paulo e no Nordeste para co- nhecer a situação atual da Caesalpinia echinata, ainda em risco de extinção. Encontrou centenas de árvores em 19 unidades de conservação nos oito estados de ocorrência na- tural do pau-brasil, mas no Espírito Santo e em Sergipe não há mais examplares nativos dessa espécie. Em maio, Rocha descobriu uma população nativa pau-brasil em uma usina de cana-de-açúcar em Mamanguape, na Paraíba. •

■ 0 inexplicável calor das mulheres

Não foi desta vez que se che- gou à origem das súbitas on- das de calor que inquietam as mulheres no climatério, o fim da idade reprodutiva. Por meio de entrevistas com 456 mulheres de 45 a 60 anos, uma equipe da Universidade Estadual de Campinas (Uni- camp) investigou a influência de 22 fatores - como idade, número de filhos, índice de massa corporal, uso de pílula anticoncepcional e tabagismo - sobre essas ondas de calores ou fogachos, que em geral co- meçam no peito e sobem até o rosto, queimando feito fogo. Segundo o estudo de Daniel- le Santos-Sá, nenhuma dessas variáveis se mostrou associa- da aos fogachos. "Uma segun- da parte desse trabalho sugere apenas que os fogachos atin- gem um pico de intensidade por volta de 48 meses após a menopausa", diz Aarão Men- des Pinto Neto, coordenador do estudo. •

■ Devastação a passos largos

Dois estudos divulgados em maio mostraram que a de- gradação ambiental no Brasil segue acelerada. As queima- das ocorrem em todas as re- giões e não só nas fronteiras agrícolas, há rios poluídos em 38% das cidades e estão sur- gindo duas novas áreas de desmatamento - no norte do Pará e no oeste da Bahia -, de acordo com o levantamento do Instituto Brasileiro de Geo- grafia e Estatística (IBGE) apresentado no dia 13. Cinco dias depois o Instituto Nacio- nal de Pesquisas Espaciais (Inpe) comunicou que uma área de 26.130 quilômetros quadrados foi desmatada na Amazônia de 2003 a 2004, com um crescimento de 6,23% em relação ao período anterior. É a segunda maior área desmatada, menor ape- nas que a do período 1994- 1995, quando a Floresta Amazônica perdeu 29 mil quilômetros quadrados. •

36 ■ JUNHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 112

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Observe os três lotes desta foto aérea de 2001: o do meio... ... desapareceu, de acordo com esta imagem do CBERS de 2004

■ Mapas orientam decisões em SP

Apresentado em sua versão impressa no final de maio, o Inventário florestal da vegeta- ção natural do Estado de São Paulo já mostrou que pode ser útil. A pedido da Secreta- ria do Meio Ambiente do Es- tado de São Paulo, a equipe do Instituto Florestal responsável por esse levantamento com- parou as áreas ocupadas por vegetação natural em 1988 e em 2000 às margens de um dos principais rios paulistas, o Mogi-Guaçu. Uma análise de 12 trechos do rio indicou que a área com mata é 60% inferior ao mínimo exigido por lei. "O Inventário é um instrumento para análise e to- mada de decisões para a con- servação da vegetação natural", diz Francisco Kronka, pesqui- sador do Florestal e coorde- nador do projeto. Centenas de mapas e tabelas evidenciam: apesar de um acréscimo em relação ao levantamento an- terior, a área coberta por ve- getação natural é pequena - eqüivale a 13,9% da superfí- cie do estado - e está muito fragmentada. Os rios paulis- tas em geral perderam boa parte das matas ciliares e cor- rem risco de assoreamento, elevando o risco de faltar água nas cidades e no campo. O In-

ventário ajudou a identificar as áreas de reabastecimento do aqüífero Guarani que es- tão recebendo fertilizantes agrícolas ou com mata escas- sa no município de Ribeirão Preto. "É muito importante evitar que essas áreas de cap- tação de água sejam ocupa- das desordenadamente", diz João Régis Guillaumon, pes- quisador do Instituto Flores- tal e um dos autores das pro- postas de proteção às áreas de reabastecimento do aqüífero. Valendo-se de fotografias aé- reas de 2001 e imagens do sa- télite CBERS de 2004, Marco Aurélio Nalon, integrante da equipe do instituto, desco- briu que nesse período havia desaparecido um trecho de 1 hectare (10 mil metros qua- drados) antes coberto por Ma- ta Atlântica em Bertioga, no litoral paulista. •

■ Uma dependência atrai outra

Quem é dependente de be- bidas alcoólicas ou de dro- gas corre o risco de tornar-se também dependente de jogos de azar, como loterias, bingos ou jogos eletrônicos. Na po- pulação em geral, a prevalên- cia de jogadores patológicos - aqueles que perderam o do- mínio sobre o tempo e o di- nheiro gastos em jogos de azar - varia de 1% a 4%. Mas mostrou-se bem mais alta (18,9%) em um grupo de 74 pessoas com dependência de álcool, cocaína ou crack e ma- conha em tratamento em serviços públicos de saúde, segundo estudo de pesquisa- dores da Universidade Fede- ral de São Paulo (Unifesp) e da Universidade de São Paulo (USP). Outros 10,8% enqua-

dram-se numa categoria in- termediária, de jogador-pro- blema. A maioria (70,3%) integra uma categoria mais amena, de jogadores sociais, para os quais o jogo não compromete a vida: apostam pouco e não se importam em perder, pois só visam a diver- são. A comorbidade - ocor- rência de dois distúrbios de saúde ao mesmo tempo no mesmo indivíduo - pode ser vista como manifestações de comportamentos impulsivos e incontroláveis, em que se busca o prazer por meio de gratificações temporárias. Po- de ocorrer uma troca de de- pendência: a pessoa se afasta da bebida ou da droga mas se atem ao jogo ou começa a co- mer ou comprar compulsiva- mente; só muda o objeto de desejo, não o comportamen- to impulsivo, observa Maria Paula Tavares de Oliveira, pesquisadora da USP e uma das autoras desse estudo, pu- blicado na Revista de Saúde Pública. Diz ela: "Quem tra- balha na prevenção ou no tratamento da dependência de álcool ou de drogas pode- ria ficar atento para detectar e tratar também o jogo pato- lógico, que em geral acomete homens e mulheres com mais de 40 anos e causa sérios pro- blemas sociais, familiares, econômicos e de saúde". •

PESQUISA FAPESP 112 -JUNHO DE 2005 ■ 37

Page 38: O homem de Capelinha

CAPA

ARQUEOLOGIA

Eu nasci dez mil anos atrás

Crânio encontrado em sambaqui de rio no Vale do Ribeira revela a cultura mais antiga de São Paulo

MARCOS PIVETTA

Os primeiros habitantes pré-históricos da região hoje conhecida como o Estado de São Paulo es- tavam aqui um ou dois milhares de anos antes

do que se imaginava - aproximadamente dez mil anos atrás, sem paródia à música de Raul Seixas — e eram um povo singular, com uma identidade ainda em construção. Estavam a meio caminho entre o ho- mem do mar e o homem do mato. A rigor, não eram uma coisa nem outra, provavelmente um híbrido dos dois. Sua vida social emulava certos comporta- mentos de moradores do litoral, mas seus traços físi- cos lembravam, em alguns casos, os de habitantes do interior do Brasil. Eram talvez um reflexo da geogra- fia que os abrigou: viviam geralmente próximos às margens dos cursos de água de uma zona de transi- ção ambiental entre o planalto e a costa, o vale do rio Ribeira do Iguape, no sul do Estado de São Paulo, perto do Paraná. Os membros dessa cultura, que es- tavam distantes do mar algumas dezenas de quilô- metros, enterravam seus mortos e os cobriam com uma grossa camada de conchas, legando para a pos- teridade um tipo de vestígio arqueológico conhecido como sambaqui, típico das populações da costa.

Ao longo de todo o litoral brasileiro, em especial em Santa Catarina, há grandes sambaquis costeiros, que, às vezes, despontam terra afora como colinas de até 30 metros de altura formadas a partir do acú- mulo de mariscos, ostras e berbigões. Apenas no Vale do Ribeira existe uma quantidade significativa de sambaquis fluviais, embora em menor número e de

Fêmures de habitante da pré-história e de humano moderno: sambaquieiros eram menores

dimensões bem mais modestas que os da beira-mar. A altura dos concheiros de rios fica entre 80 centíme- tros e 1 metro e meio. Um novo olhar sobre o povo que construiu esses sambaquis fluviais começa a ga- nhar forma com os estudos feitos nos últimos anos por arqueólogos, geofísicos e biólogos da Universi- dade de São Paulo (USP), que participam de um projeto temático financiado pela FAPESP. O dado mais espetacular do trabalho, que usou até técnicas geofísicas para localizar e caracterizar as concentra- ções de caramujos no interior dos sítios arqueológi- cos (veja quadro na página 42), foi a descoberta do mais antigo crânio humano encontrado até agora em São Paulo, com idade de aproximadamente 9 mil anos, talvez até um pouco mais, de acordo com a da- tação pelo método do carbono 14. "A ossada estava

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num sepultamento situado numa ca- mada geológica bem superficial", lem- bra o arqueólogo Levy Figuti, do Mu- seu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP, coordenador do projeto. "Não pensávamos que ela fosse tão antiga." Conchas próximas ao crânio sepulta- do também foram datadas e deram idade semelhante à da ossada.

Achado há cerca de seis anos num sítio arqueológico denomi- nado Capelinha I, na bacia do rio Jacupiranga, o crânio mas- culino foi alvo de um artigo científico publicado em abril deste ano na revista norte-americana Journal of Human Evolution. Os restos do habitante pré- histórico do sambaqui fluvial, provavel- mente um caçador e coletor de caramu- jos, são importantes por dois motivos: a idade avançada e os traços anatômi- cos particulares. Antes da descoberta do novo crânio, o mais antigo regis- tro da presença humana no Vale do Ri- beira (e no estado) remontava a 8 mil anos, na forma de esqueletos e outros registros arqueológicos encontrados nos numerosos sambaquis costeiros da região, tidos como mais velhos que os concheiros fluviais. Muito bem preser- vado, o esqueleto de Capelinha mudou, por ora, esse cenário. Então se pode afir- mar que os sambaquis fluviais são mais antigos que os da costa e, conseqüente- mente, seus habitantes vieram do inte- rior, se estabeleceram primeiro nos ar- redores dos rios e só mais tarde ao longo do litoral? Ainda não, respondem os pesquisadores. "Há cerca de 10 mil anos, a planície costeira era maior e o mar estava alguns quilômetros mais longe do que se encontra hoje", ponde- ra Figuti. "Desde então, a maré vem subindo e é possível que os sambaquis costeiros mais antigos tenham sido sub- mersos pelo oceano." Se a hipótese es- tiver correta, nunca se saberá com cer- teza se eles eram mais velhos que os sambaquis fluviais.

Fora sua inesperada idade avançada, o homem de Capelinha revelou mais surpresas. O crânio pertenceu a um in- divíduo de uns 30 anos, com cerca de 1,60 metro, que, ao contrário dos sam- baquieiros típicos do litoral e da maio- ria dos habitantes da pré-história na- cional, não tinha traços mongolóides (orientais)."Era um indivíduo grácil,

pequeno", comenta a bióloga Sabine Eggers, do Instituto de Biociências da USP, outra pesquisadora da equipe.

s medidas e o formato de seu crânio exibiam carac-

terísticas negróides, si- milares às encontradas

nos atuais aborígines australianos e africa-

nos - e em Luzia, o famoso crânio de uma jovem que viveu há 11 mil anos na região de Lagoa Santa, nos arredores de Belo Horizonte, considerado o mais antigo fragmento de esqueleto humano do Brasil. O homem de Capelinha apre- sentava craniossinostose, uma malfor- mação genética caracterizada pelo fecha- mento precoce das suturas do crânio. O problema, no entanto, não alterou for- ma e tamanho dos ossos. Tinha ainda lesões no fêmur e na clavícula, decorren- tes provavelmente de grandes esforços físicos. "As marcas na clavícula sugerem a execução de movimentos repetitivos, como o nado ou o ato de remar", salien- ta Sabine. Seja originário do litoral ou do planalto, ele parecia adaptado ao meio aquático.

Se era parecido com Luzia, o ho- mem de Capelinha só pode ter vindo do interior do país, e não do litoral, cer- to? É provável que sim. Mas os pesqui- sadores não sabem até que ponto o crâ- nio de Capelinha é representativo dos primeiros habitantes dos sambaquis de

O PROJETO

Investigações arqueológicas e geofísicas dos sambaquis fluviais no Vale do Ribeira do Iguape, Estado de São Paulo

MODALIDADE Projeto Temático

COORDENADOR LEVY FIGUTI - MAE-USP

INVESTIMENTO R$ 254.359,74

rio de todo o Vale do Ribeira. O frag- mento de esqueleto pode ser a exceção, e não a regra na região. A equipe da USP encontrou restos de cerca de 60 indivíduos em sambaquis fluviais. Ape- nas um sexto deles foi datado por car- bono 14, e todos eram mais novos que o homem de Capelinha, com idades entre 1.200 e 6 mil anos. A aparência do homem de Capelinha apresenta aspectos contraditórios. A primeira vista, o crânio se mostra bastante dife- rente das ossadas retiradas do sítio pré- histórico do Moraes, na bacia do rio lu- quiá, outro trecho do médio Vale do Ribeira. Com idade em torno dos 5 mil anos, os esqueletos de Moraes, o con- cheiro fluvial de onde saíram fragmen- tos de 40 indivíduos, eram parecidos com os das típicas populações mongo- lóides que viveram no mesmo período nos sambaquis costeiros da Baixada Santista. Entretanto, análises mais deta- lhadas sugerem que as diferenças físicas entre os restos humanos de Capelinha e Moraes não são tão grandes. Ou se- ja, há mais dúvidas que certezas. "Com nossos trabalhos abrimos o leque de problemas sobre a ocupação da região", afirma o arqueólogo Paulo De Blasis, do MAE/USP.

Zona de contato - Os sambaquis fluviais no sul de São Paulo são conhecidos desde o início do século 20, mas come- çaram a ser estudados de forma mais sistemática apenas nos anos 1970 e 1980. Rica em grutas, como a famosa Caverna do Diabo, no município de El- dorado, a região atrai levas de espeleó- logos, amadores e profissionais. Para os arqueólogos, o Vale do Ribeira, em es- pecial sua porção média, representa uma oportunidade de conhecer e estu- dar os povos pré-históricos que se esta- beleceram numa área considerada como ligação entre o litoral e o planalto, no andar de cima da serra do Mar. Uma zona onde diferentes culturas entraram em contato e deixaram possivelmente tipos variados de vestígios arqueológi- cos. "A região também pode ter sido área de refugio para grupos sob pressão demográfica", diz Figuti. O médio Vale do Ribeira era um ponto de encontro devido à sua particular geografia. Ao contrário dos demais rios paulistas que nascem no planalto e correm para oes- te, o Ribeira do Iguape flui para leste, a

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Conchas da espécie marinha Lucina pectinatus,

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- m Ossos de mamíferos, cortados e polidos

Megalobulimus e de marisco de água doce

caminho do mar. Em sua jornada rumo ao Atlântico, cruza serras e corta pe- quenos vales, formando microambien- tes diversificados que funcionam como pontes naturais entre o litoral, quente, e o planalto, mais frio. No lugar das es- carpas abruptas da serra do Mar, que mais separam do que ligam a costa ao planalto, a região do Ribeira apresenta um relevo mais suave que integra a zo- na litorânea à montanhosa.

Os pesquisadores da USP estuda- ram 29 sambaquis fluviais do Vale do

Ribeira. A maioria dos sítios arqueoló- gicos tem forma circular, se estende por uma área de 500 a 1.900 metros quadra- dos e é conhecida pela população local devido aos seus típicos montículos de caramujos terrestres, conchas do gêne- ro Megalobulimus. Os concheiros são mais freqüentes em alguns trechos do vale, sobretudo na ba- cia do rio Jacupiran- ga e no município de Itaoca, e em menor es- cala na bacia do rio Ju-

Raios gama na arqueologia Por serem pequenos e menos visí-

veis que os sambaquis litorâneos, os concheiros fluviais podem ser de difí- cil localização e delimitação. Para mi- norar esse problema, os pesquisadores do projeto temático testaram a eficiên- cia de medições geofísicas, normalmen- te usadas para encontrar minérios, como ferramenta no trabalho de pros- pecção arqueológica. Uma das técni- cas postas à prova, a gamaespectrome- tria, se mostrou útil para descobrir os montículos de conchas que caracteri- zam os sambaquis. Por esse método, um sensor registra durante um minu-

quiá. A cronologia exibida por esse conjunto de sítios pré-históricos levou os pesquisadores a especular que a pré- história dos sambaquis fluviais pode ser provisoriamente dividida em três períodos. A primeira fase abarcaria dois sítios da bacia do Jacupiranga, entre os quais o de Capelinha I, com idades en-

to a radiação gama naturalmente emi- tida pelas camadas geológicas do so- lo. "Na mineração, esse tipo de medida é usada para pro- curar depósitos de urânio e tório", afirma Carlos Alberto Mendonça, do Instituto Astronômico e Geofísico (IAG) da USP, que coordenou essa parte dos estudos. Locais com maior radiação podem indicar a presença de minerais com esses elementos.

Com os sambaquis ocorre o con- trário. Lugares com menor radiação

tendem a ser ricos em calcário, uma pista de que ali deve haver um samba- qui. Afinal, a concha do molusco é fei- ta basicamente de carbonato de cálcio. A adoção da gamaespectrometria deu tão certo que levou à descoberta de um segundo concheiro, menor do que o sambaqui principal, no sítio arqueo- lógico de Capelinha. Os pesquisadores ainda testaram outras técnicas para

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tre 8.500 e 9.200 anos. A segunda com- portaria nove sítios, dispersos pelos três trechos com maior concentração de concheiros. Esses sambaquis têm idade entre 7 mil e 3.500 anos. A terceira eta- pa juntaria sete sítios, todos da região de Itaoca. Nesses lugares há indícios de que a cultura dos últimos sambaquiei-

Sondagem arqueológica no Vale do Ribeira e conchas encontradas na região: locais com menor radiação podem abrigar sambaquis

achar vestígios arqueológicos, como a medição do magnetismo do solo, que poderia indicar a existência de fogueiras pré-históricas. Mas os re- sultados não foram tão animadores.

ros dos rios esteve presente por somen- te meio século, entre 1.700 e 1.200 anos atrás. Há dois intervalos de tempo em que não há registros de sambaquis fluviais, entre 8.500 e 7 mil anos e entre 3.500 e 1.700 anos. Isso não quer dizer que não existiam habitantes na região nessas épocas. Segundo os pesquisado- res, novas escavações podem reduzir as lacunas de informação.

A presença de conchas nos samba- quis fluviais induz a pensar que a dieta dos habitantes pré-históricos do médio Ribeira era à base de moluscos e peixes de rio. A impressão pode ser falsa. Não há registros de cozimento dos molus- cos nem de quebra no seu ápice para retirar a carne. Os caramujos podem ter sido coletados prioritariamente pa- ra a construção dos montículos funerá- rios. "O sambaqui do Moraes pode ter sido um sítio usado somente para reali- zar sepultamentos, como um cemité- rio, e não como lugar de moradia", co- menta a arqueóloga Claudia Regina Plens, que faz doutorado no MAE/USR "Em alguns casos descobrimos como os sambaquieiros fluviais morriam, e não como eles viviam", explica Figuti. Vestígios de vários mamíferos, como porcos-do-mato, veados, bugios, pacas e tatus, sugerem que a caça pode ter sido uma fonte de comida mais importante que a pesca ou a coleta de moluscos.

A chamada cultura material dos povos pré-históricos do médio Vale do Ribeira espelha a influência tanto do planalto como do litoral na construção de utensílios, ferramentas e armas. Um adorno típico era o colar feito com de- zenas de dentes caninos de bugio perfu- rados, encontrado às vezes em torno do pescoço de corpos sepultados. Pelo jei- to, eles aproveitavam quase tudo desses macacos. Versões marinhas do enfeite, com dentes de tubarão, também apare- cem em alguns sítios. Pontas de flechas feitas de sílex, quartzo e outros materiais mostram que caçar era preciso. Dentes de mamíferos e, com menor freqüên- cia, de peixes marinhos e arraias eram usados como perfuradores ou pontas cortantes. Ossos de animais terrestres eram polidos e viravam objetos que lembram uma flauta, embora sua utili- dade, desconhecida, possa não ter sido das mais musicais. Três anzóis de uns 5 centímetros de comprimento, feitos com ossos de animais, foram talvez os artefatos mais inusitados resgatados nos sambaquis fluviais. "Não costumamos achar anzóis nem nos sambaquis lito- râneos", explica Figuti. "Que peixe de rio eles poderiam pegar com isso?" Os antigos habitantes do médio Vale do Ribeira, talvez os primeiros paulistas da pré-história, eram diferentes, um povo nem tanto ao mar nem tanto à terra. •

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CIÊNCIA

MEDICINA

receita do doutor

aco Estudos sugerem que compostos do vinho tinto aumentam a longevidade

MARCOS PIVETTA

ientistas deveriam evitar usar palavras como "mi- raculoso". Mas, se houver porventura uma razão para abrir uma exceção, ela é o resveratrol. Essa pe- quena molécula não-tóxica encontrada em ervas medicinais da Ásia e no vinho tinto está sendo tes- tada clinicamente em humanos para tratar câncer de cólon e herpes oral; em roedores, protege con- tra desordens inflamatórias, derrame, infarto do

miocárdio, traumas na medula espinhal e doenças cardíacas e é um dos mais eficazes agentes químicos preventivos contra o câncer que se co- nhece. Ninguém sabe realmente como o resveratrol produz esses feitos, mas há pouca dúvida de que esse conhecimento poderia abrir novas avenidas para o desenvolvimento de drogas realmente revolucionárias.

O texto acima, nada comedido, foi literalmente extraído do pará- grafo de abertura de um artigo publicado em abril por David Sinclair, patologista de 36 anos da Escola Médica de Harvard, na Nature Gene- tics, uma das revistas científicas de maior impacto. Sinclair é o chefe de uma equipe de pesquisadores que, há dois anos, aumentou em 70% o tempo de vida da levedura Saccharomyces cerevisiae administrando ao fermento apenas o resveratrol. Essa substância pertence à categoria dos flavonóides - compostos que aportam cor, sabores e sensações como amargor e adstringência aos vinhos -, aos quais se atribuem propriedades vasodilatadoras e antioxidantes. A exemplo do levedo, outros organismos, como o verme Caenorhabditis elegans, atestam os efeitos positivos do resveratrol como candidato à molécula da lon- gevidade em experimentos feitos em diversos laboratórios do mundo. Inclusive no Brasil.

O geneticista Gilson Cunha, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), verificou que doses ínfimas da substân- cia aumentam em 30% a longevidade da Drosophila melanogaster, a po- pular mosca-da-fruta. "Estudos com invertebrados, mamíferos e em cultura de tecidos sugerem que o resveratrol poderia, até certo ponto, imitar alguns efeitos benéficos de uma dieta com restrição de calorias, um procedimento que induz ao prolongamento da vida", diz Cunha, que no início de junho participaria do Simpósio Internacional Vinho e Saúde, em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha, evento promovido pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Uva e Vinho e o Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin). Os mesmos circuitos bioló- gicos ativados pelo hábito diário de ingerir alimentos em quantidade moderada, uma família de genes denominada sirtuínas, seriam ligados pelo consumo parcimonioso de derivados da uva. "Em última análise, o que esse grupo de genes faz é controlar a atividade de funções vitais para a manutenção da sobrevivência das células", explica Cunha.

Dois copos - Por ora, e provavelmente para todo o sempre, a forma mais agradável de tomar uma dose diária de resveratrol é desarrolhar um bom tinto, a primeira bebida alcoólica inventada pelo homem, há 9 mil anos. E de preferência vinho à base de Pinot Noir ou Merlot, duas variedades de uva que costumam produzir o composto em maior quantidade, e beber moderadamente. Algo como dois ou três copos, não mais do que uns 300 mililitros para os homens e um pouco menos para as mulheres. Vários estudos epidemiológicos sugerem que o risco

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A SAUDC Ci€

ADRIANO RAMOS )UWgl

Um dos compostos do vinho tinto, o resveratrol, parece ser bom para o coração

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de morte por problemas cardíacos e até câncer é menor entre as pessoas que in- gerem baixas quantidades de álcool, so- bretudo vinho tinto, do que entre os abstêmios. "Em relação às doenças car- diovasculares, as evidências parecem mais convincentes. Quanto ao câncer, é preciso cuidado na interpretação dos estudos", afirma o oncologista Gilberto Schwartsmann, da Faculdade de Medi- cina de Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Mais no Merlot nacional - O álcool tem sabidamente efeito cancerígeno em ani- mais e seu consumo abusivo favorece o aparecimento de vários tipos de câncer no homem. "Contudo, alguns traba- lhos sugerem que o vinho tinto, em do- ses baixas, pode atenuar, em parte, esse risco, provavelmente por conter quan- tidades significativas de substâncias com efeito potencialmente protetor", pon- dera Schwartsmann. Embora não haja consenso, alguns estudos indicam que o suco de uva teria efeitos quase iguais aos do vinho, sendo uma alternativa para quem não quer ou não pode to- mar álcool.

Se os efeitos do resveratrol forem parecidos com as hipóteses levantadas pelos cientistas, há motivos de sobra para se fazer um brinde. E nem é preci- so recorrer ao produto importado. Um trabalho feito pelo químico André Sou- to, da Faculdade de Química da PUC-

RS, indica que a concentra- ção de resveratrol nos vi- nhos tintos brasileiros po- de ser uma das mais altas do mundo. O pesquisador analisou as concentrações de transresveratrol, uma forma da molécula, em 36 amostras de vinhos tintos nacionais, e chegou a uma taxa média de 2,57 miligra- mas do composto por litro da bebida. "Só tenho conhecimento de concentra- ções médias mais elevadas em vinhos franceses", diz Souto, que publicou o estudo em 2001 no Journal of Food Composition and Analysis. Os níveis mais elevados do composto foram en- contrados em produtos feitos com a uva Merlot.

Uma explicação para a grande pre- sença do resveratrol no vinho tinto bra- sileiro seria o clima da Serra Gaúcha, onde se produz cerca de 90% da bebida nacional. A região é úmida e as videi- ras estão mais sujeitas a ataques de fun- gos e microorganismos. Sob perigo, a planta aumenta a produção do resvera- trol, que a protege da ação dos patóge- nos. O processo de produção dos vinhos tintos faz com que eles tenham mais fla- vonóides que os brancos. Para reduzir a diferença, experimentos da Embrapa tentam aumentar os níveis de resvera- trol e outros compostos no vinho bran- co {veja quadro abaixo).

rovavelmente, a maior parte dos estudos atuais sobre os possíveis efeitos benéficos do vinho tinto ou de deri- vados da uva está na área de cardiologia. No Brasil

não é diferente. O farmacologista Ro- berto Soares de Moura, da Universida- de Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), em artigo publicado em 2002 no Journal of Pharmacy and Pharmacology, sugeriu, como haviam feito outros autores, que o consumo moderado de vinho tinto pode estimular a dilatação dos vasos sangüíneos e reduzir os níveis de pres- são arterial. Durante 30 dias, o pesqui- sador deu para ratos com hipertensão induzida um extrato não-alcoólico ob- tido da casca da uva Isabel, variedade usada para produzir vinhos comuns. "A redução na pressão foi significativa", afirma Moura. Antes desse trabalho, ele obtivera resultados semelhantes num experimento com extrato não-alcoólico da casca da uva Cabernet Sauvignon, variedade nobre.

Em ambos os casos, o etanol foi re- tirado do preparado administrado nos animais para que não houvesse dúvida de que os efeitos positivos derivavam de sua parte não-alcoólica. "Já temos a

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Branco com efeitos de tinto Se prosperarem as pesquisas do

enólogo Mauro Celso Zanus, da Em- brapa Uva e Vinho, de Bento Gon- çalves, os brasileiros terão em breve vinho branco nacional rico em fla- vonóides, entre os quais o tão bada- lado resveratrol. Devido ao seu pro- cesso tradicional de produção, esse tipo de bebida apresenta geralmente apenas 10% dos compostos aparen- temente benéficos à saúde contidos no vinho tinto. "Queremos fazer um vinho branco com cerca de 40% dos flavonóides da Cabernet Sauvignon e estamos quase chegando lá", afirma Zanus, que desenvolve seus trabalhos com a BRS Lorena, cultivar de uva

branca e aromática lançada pela Em- brapa há quatro anos. Para atingir o objetivo, o pesquisador introduz a maceração, um procedimento adota- do normalmente na fabricação de vi- nhos tintos, no processo de produção da bebida feita com Lorena.

A maceração consiste em deixar por alguns dias o suco de uva recém- fermentado em contato com as cas- cas. Seu objetivo é extrair uma série de compostos fenólicos presentes nessa parte do fruto, como matéria corante e flavonóides. Não se pode, no entanto, errar a mão na maceração, sob pena de descaracterizar comple- tamente o produto final ou agredir o

paladar de consumidores mais exi- gentes. A bebida pode ficar muito amargo. "Algumas experiências no exterior com a Chardonnay (uva branca) resultaram em vinhos não atraentes", pondera o enólogo. Como a Embrapa vai requerer a patente so- bre a receita para a produção de vi- nhos brancos com mais flavonóides, alguns detalhes do experimento não podem ser divulgados. Mas o tempo ideal de maceração para a Lorena não deve exceder 15 dias. Em 2006 os tes- tes deverão estar terminados e, no ano seguinte, se as pesquisas não aze- darem, um produto comercial será lançado pela Embrapa.

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Vinho na alimentação: desde os primórdios da medicina

patente sobre o método de obtenção do extrato e a idéia é produzirmos um fár- maco com efeitos semelhantes aos do vinho tinto", diz Moura. Sem etanol, o extrato poderia ser indicado para pes- soas que precisam reduzir a pressão ar- terial e não podem tomar bebidas al- coólicas. Mulheres grávidas que sofrem de eclampsia (um tipo de hipertensão que coloca em risco a vida da gestante e do bebê) poderiam ser usuárias do pro- duto, segundo o farmacologista da Uerj.

Antes dos anos 1990 as pesquisas na área de saúde com o vinho e seus com- postos, dos quais o resveratrol é hoje a maior vedete, eram vistas com certo desdém pela comunidade científica. Essa visão era compreensível e justifi- cável. Entre o fim do século 19 e o iní- cio do 20 a ciência médica começou a associar claramente uma série de pro- blemas de saúde à ingestão excessiva de álcool. Hoje mais de 60 doenças exibem o álcool como fator de risco e a Organi- zação Mundial da Saúde estima que 4% das mortes decorrem de problemas de saúde relacionados ao consumo sem controle do álcool. Ainda assim, histo- ricamente não se pode negar que entre a Antigüidade e o século 18 o vinho teve

um papel central na medicina. Quase cinco séculos antes de Cristo, o grego Hipócrates, o chamado "pai da medici- na", dava vários usos para o vinho, como desinfetante, remédio para várias con- dições clínicas, veículo para outras dro- gas e parte de uma dieta saudável. Até o final do século 19, diluída, a bebida chegou a ser usada para desinfetar a água a ser tomada. Sem negar os óbvios malefícios do álcool em excesso, os tra- balhos contemporâneos sobre os pos- síveis benefícios à saúde do consumo parcimonioso do vinho tinto resgatam, sem o caráter místico e os exageros de outrora, a adoção controlada da bebi- da como um componente de uma die- ta saudável. A descoberta do chamado paradoxo francês foi fundamental para a mudança de atitude.

Estilo de vida - Era o ano de 1992 e um estudo mostrou que os franceses, ape- sar de consumirem alimentos ricos em gordura saturada, tinham um baixo índice de problemas cardiovasculares quando comparados aos habitantes de outros países com dietas semelhantes. Serge Renaud, o principal autor do tra- balho, atribuiu a pouco incidência de

infartos ao consumo de vinho, hábito arraigado na terra de Napoleão. "Era um trabalho epidemiológico, que não estabelecia relação de causa e efeito en- tre bebidas alcoólicas e doenças cardio- vasculares", comenta o cardiologista Protásio Lemos da Luz, do Instituto do Coração da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, que estuda a ação benéfica de componentes do vi- nho e do suco de uva na dilatação das artérias e veias e na redução da forma- ção de placas de gordura nos vasos san- güíneos (veja reportagem na edição n° 109 de Pesquisa FAPESP). "Outros com- ponentes da dieta, o hábito de fumar, fatores genéticos, o estresse e a prática de exercícios poderiam desempenhar um papel no paradoxo." É verdade. Não há dúvida de que a biologia e o estilo de vida das pessoas, que transcende em muito o hábito de tomar ou não vinho, são determinantes na gênese dos males do coração, câncer e outras doenças. Agora, a julgar pelas evidências científi- cas que se avolumam, a bebida primor- dial da humanidade, abençoada pela Igreja Católica com metáforas divinas, se consumida com moderação, pode ser benéfica. •

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CIÊNCIA

ECOLOGIA

Sobreviventes do El Nino Aquecimento das águas do Pacífico coloca em situação crítica as populações de lobos-marinhos do litoral do Peru

ALESSANDRA PEREIRA

FOTOS LARISSA DE OLIVEIRA

comum associar o desaparecimento de plantas e animais à ação humana. iMas ao menos dessa vez a morte em massa dos lobos-marinhos do litoral do Peru e do norte do Chile parece estar relacio- nada a um fenômeno natural, o F.l Nino, a eleva- ção da temperatura das águas superficiais do

oceano Pacífico em até 1 l°C. Fm 1997 e 1998, o mais intenso Fl Nino do século passado levou à morte cerca de 70% dos lobos-marinhos do Peru: dos 24.481 lobos-marinhos que viviam por ali, restaram cerca de 8.200. F, desses, apenas 2.153 eram adultos e capazes de gerar descen- dentes para a próxima geração - um filhote macho pode levar de seis a oito anos para começar a se reproduzir. Os especialistas consideram 7 mil animais em idade reprodutiva como o número mínimo que uma população de vertebrados deve ter a fim de garantir a perpetuação da espécie por 40 gerações. O alerta foi feito por uma equipe de pesquisa- dores do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP) e do Instituto do Mar do Peru (Imarpe). "A população reduzida de lo-

conservação", afirma o biólogo João Morgante, chefe do Laboratório de Biologia Evolutiva e Conservação de Vertebrados (Labec) do Instituto de Biociências da USP e coordenador de uma série de estudos popula- cionais sobre vertebrados neotropicais.

'lambem não se imaginava que os lobos-marinhos do Peru e do norte do Chile, habitantes das águas do Pacífico, fossem diferentes dos animais de outras regiões sul-americanas. Fm 2004, durante seu doutora- do, a bióloga gaúcha Larissa de Oliveira, vinculada ao Labec e ao (irupo de Estudos de Mamíferos Aquáticos do Rio Grande do Sul (Gemars), constatou que se tratava de uma nova espécie, exclusiva dessas áreas e dis- tinta da encontrada no litoral do Uruguai e da Argentina, no oceano

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Lobos-marinhos machos do Peru: população volta a crescer à medida que os peixes retornam

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Atlântico. Essa descoberta aumenta a preocupação com o risco de extinção desses gordões peludos que sentam so- bre as patas traseiras, diferentemente das focas, e cujo focinho pontiagudo lembra o lobo terrestre. Larissa propõe que a espécie de lobos-marinhos cha- mada de Arctocephalus australis seja considerada apenas para os lobos-mari- nhos da costa Atlântica (Uruguai, Ilhas Falkland ou Malvinas e Argentina), en- quanto os animais da costa Pacífica da América do Sul (litoral do Peru e norte do Chile) poderiam ser vistos como de outra espécie, chamada provisoriamen- te de Arctocephalus sp. A.

Crânios e DNA - Trabalhando sob a orientação de Morgante e de Erika Hingst-Zaher, do Laboratório de Mor- fometria do Museu de Zoologia da USP, Larissa chegou a essas conclusões após examinar 594 crânios de machos adul- tos do Uruguai, da Argentina, do Chi- le, das Ilhas Malvinas e do Peru, manti- dos em museus da América e da Europa. Ela utilizou uma série de medidas por meio das quais se analisam as variações do tamanho e do formato do crânio, valendo-se de um método ainda pouco difundido, a morfometria geométrica.

Os 594 crânios dos lobos-marinhos foram fotografados em vários ângulos e transformados em 1.027 imagens digi- tais, que receberam 62 pontos de refe- rência. A análise da variação da posição desses 63.674 pontos mostrou clara- mente as diferenças na forma e no ta- manho dos crânios de cada população de lobos-marinhos da América do Sul. A bióloga gaúcha então cruzou os da- dos obtidos com os resultantes da aná- lise de fragmentos de DNA chamados microssatélites de 226 lobos-marinhos do Uruguai e do Peru, que reforçaram as diferenças entre essas populações.

Além das diferenças nas medidas do crânio e no DNA, há variações físicas e de comportamento entre os lobos-ma- rinhos dos dois oceanos que banham a América do Sul, especialmente entre as populações do Uruguai e do Peru. Os animais que habitam o Pacífico pos- suem o crânio maior, são mais pesa- dos, longilíneos e têm o focinho mais estreito que os do Atlântico. As fêmeas no Peru podem pesar até 58 quilogra- mas (kg), enquanto no Uruguai pesam em torno de 41 kg.

Diferenças de I peso: um macho

como este, do Peru, é maior e

mais pesado, com o crânio menos

robusto e o focinho mais estreito...

As diferenças se manifestam tam- bém entre machos e fêmeas de uma mesma região - e parece ser mais inten- sa entre lobos-marinhos do Uruguai do que no Peru. Os lobos uruguaios apre- sentam diferenças tanto na forma quan- to no tamanho do crânio; já no Peru se notam diferenças apenas no tamanho do crânio de machos e fêmeas. "Essas di- ferenças podem ser atribuídas a varia- ções do sistema reprodutivo adotado em cada população", diz ela.

No Atlântico, um macho pode man- ter literalmente um harém com até 14 fêmeas durante toda temporada repro- dutiva - são três meses, no verão. Já no Pacífico, em especial no Peru, os lobos- marinhos são mais sortudos: cada ma- cho escolhe uma pedra na praia e se exi- be para a fêmea. Como elas precisam passar pelo território deles no momento de ir ao mar para se refrescar e buscar alimento, o macho cobra uma espécie de pedágio. A fêmea escolhe o território que vai atravessar e, conseqüentemen- te, o macho com quem vai copular. "O sistema de harém, que predomina no oceano Atlântico (Uruguai), exige com-

bates freqüentes e intensos entre os ma- chos e poderia ter levado ao desenvol- vimento mais acentuado de estruturas vantajosas para combate", diz Larissa. "Já no litoral do Pacífico os combates são pouco freqüentes e as diferenças físicas entre machos e fêmeas são menos acentuadas."

Os pinípedes - o grupo ao qual per- tencem os lobos-marinhos e inclui as focas, as morsas e os elefantes-mari- nhos - surgiram há 22 milhões de anos na costa Oeste dos Estados Unidos. Cerca de 3 milhões de anos atrás desce- ram pela América Central e coloniza- ram a América do Sul. Estima-se que existam hoje dez espécies diferentes de lobo-marinho espalhadas ao longo da América, África e Antártica. Por aqui não há registro de colônias reproduti- vas de nenhuma espécie de pinípede e os lobos-marinhos vindos do Uruguai só dão o ar da graça durante o outono e a primavera para descansar em praias tupiniquins.

Uma curiosidade a respeito desses bichos capazes de atingir quase 2 me- tros e pesar 159 kg: há pelo menos 300

50 • JUNHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 112

Page 51: O homem de Capelinha

... que os exemplares como este, da costa Atlântica, que na época de reprodução pode manter um harém

com até 14 fêmeas

anos a espécie de lobos-marinhos estu- dados por Larissa não habita a região central do Chile, uma área de cerca de 2.200 quilômetros entre Mejillones e a Ilha Chiloé, possivelmente pela ausên- cia de ilhas, o hábitat preferido na épo- ca de reprodução e de amamentação dos filhotes.

Mar incerto - Nos últimos 400 anos, o aquecimento cíclico do mar tem feito os peixes desaparecerem da costa peruana em busca de águas mais frias durante os El Ninos. Nas épocas normais, as fê- meas dos lobos-marinhos permane- cem até três dias no mar atrás de ali- mento; em anos do fenômeno chegam a passar dez dias, deixando na praia os filhotes que acabam morrendo de inani- ção já que as mães custam a voltar. Sem comida, a população de lobos-marinhos diminui sensivelmente, mas volta a cres- cer à medida que os peixes retornam. Em 1997, por pouco os lobos-marinhos não foram extintos: "O governo achava que a solução para manter a atividade pesqueira era abater os lobos-marinhos, pois animais e pescadores disputavam

os peixes disponíveis. Felizmente perce- beram que não era necessário", conta a bióloga, que nesse mesmo ano passou 45 dias na reserva ambiental peruana Punta San Juan monitorando a oscila- ção da temperatura da água, o núme- ro de cópulas e de nascimentos, além de coletar amostras da pele dos filho- tes para análises genéticas, sob protes- tos ensurdecedores das fêmeas.

O PROJETO

Variação geográfica em lobo-marinho sul-americano Arctocephalus australis

MODALIDADE

Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa e Bolsa de Doutorado

COORDENADOR

JOãO STENGHELMORGANTE-IB/USP

INVESTIMENTO R$ 13.808,37 e R$ 105.144,00 (FAPESP) e US$ 1.000,00 (Society for Marine Mammalogy)

Um novo El Nino seria capaz de di- zimar todos os lobos-marinhos do Peru? "É imprevisível", avalia Larissa. "Como as populações de peixes e lo- bos-marinhos voltaram a se reprodu- zir depois do El Nino de 1982, um dos mais intensos da história e responsável por alta mortalidade de espécies, a ten- dência é que os lobos-marinhos consi- gam se recuperar, se não houver outro fenômeno tão severo num curto espa- ço de tempo."

O exemplo das lontras - Os lobos-mari- nhos, classificados como predadores de topo de cadeia alimentar no ecossis- tema marinho, comem peixes, que de- voram invertebrados marinhos, que por sua vez se alimentam de fitoplânc- ton, responsável pela fotossíntese no ambiente aquático. A extinção de qual- quer membro dessa cadeia ocasionaria um desequilíbrio no ambiente onde a espécie vive.

Um exemplo clássico foi a diminui- ção das lontras no Alasca devido ao va- zamento de óleo do navio Exxon Valdés em 1989. A mortalidade de milhares de lontras na região por contaminação de metais pesados causou um crescimen- to desenfreado de ouriços, seu alimen- to favorito. Esses ouriços comeram as grandes florestas de sargaços, tipo de alga gigante, e deixaram o fundo do mar parecido com o deserto. As algas realizam fotossíntese no ambiente ma- rinho e com sua ausência nenhum tipo de vida se mantém na região. Depois de alguns anos, com a recuperação da população das lontras, o equilíbrio no ecossistema local foi restabelecido.

Embora o cenário possa parecer obscuro, há alternativas para preservar os animais do oceano Pacífico que pa- reciam fadados à extinção. Em 1884, a caça indiscriminada quase provocou a extinção dos elefantes-marinhos do norte, restando menos de 20 exemplares na Ilha de Guadalupe, na Baixa Califór- nia. Os governos dos Estados Unidos e do México adotaram uma rigorosa po- lítica de conservação ambiental e proi- biram a caça desses bichos. Hoje, mais de um século depois, a espécie se recu- perou e está estimada em cerca de 175 mil. Ao que tudo indica, esse deve ser também o caminho para a preservação dos lobos-marinhos que habitam os mares do Peru e do Chile. •

PESQUISA FAPESP 112 -JUNHO DE 2005 -51

Page 52: O homem de Capelinha

CIÊNCIA

BIOLOGIA

Habitantes dos grãos de areia

bióloga marinha Ju- dith Winston, pes- quisadora do Mu- seu de História Natural de Virgí- nia, nos Estados

Unidos, descobriu há 20 anos dezenas de espécies de animais invertebrados vivendo na superfície e no interior de grãos de areia retirados do fundo do mar próximo ao litoral da Flórida. Pensou que existissem apenas por ali, na costa sul dos Estados Unidos, e que jamais os encontraria novamente. Mas em novembro de 2002, participando de uma expedição de coleta com biólogos paulistas, Judith pediu que lhe separassem o sedimento retirado do assoalho oceânico nas proximidades de São Sebastião, litoral norte de São Paulo. E lá estavam eles. Havia até mesmo algumas espécies novas, diferentes das identificadas na Flórida, e muitas outras espécies interessantes, todas com menos de 1 milímetro. Podem ser encontradas, ainda que mortas, apenas com o esqueleto externo, soltas ou incrustadas na areia da praia.

"Nunca se imaginou que houvesse uma fauna tão rica que vive incrustada em grãos de areia e fragmentos de conchas", exulta Álvaro Esteves Migotto, pesquisador do Centro de Biologia Ma- rinha, ligado à Universidade de São Paulo (USP). Migotto assina com Judith Winston um estudo recém-publicado na revista Invertebrate Biology relatando as descobertas do litoral de São Sebas- tião, um dos pontos de estudo de um amplo le- vantamento sobre a diversidade marinha do lito- ral paulista. Dali, de profundidades que variavam de 9 a 45 metros, emergiram 13 espécies de inver- tebrados que habitavam a superfície e os poros de fragmentos de conchas, o cascalho e os grãos da areia mais grossa (o diâmetro de um grão de areia, formada normalmente de quartzo, pode variar de 0,05 milímetro - aquele tipo de areia que massageia os pés na praia e escapa rapida- mente das mãos - a 2,0 milímetros).

Os organismos mais abundantes e diversifica- dos eram os briozoários, minúsculos invertebra- dos que formam colônias espalhadas ou eretas, em forma de galhos, com milhares de indivíduos.

f 1

No fundo do mar

Colônia de Reptadeonella tubulifera

52 ■ JUNHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 112

Microgastrópodo do gênero Caecum

Colônia jovem de Discoporella umbellata

Page 53: O homem de Capelinha

Biólogos descobrem 13 espécies de invertebrados que vivem em sedimentos marinhos

CARLOS FIORAVANTI

Havia também hidrozoários, cnidários e vermes conhecidos como poliquetas. Desse total, quatro espécies não foram encontradas em nenhum outro ambien- te marinho e parecem ser exclusivas des- ses mundos esféricos feitos de quartzo. Já no estudo da Flórida, específico para esse grupo de animais, foram registra- das 33 espécies, das quais 9 exclusivas dos grãos de areia. "Deve haver muito mais", diz Migotto. Os oceanos, convém lembrar, cobrem três quartos da super- fície do planeta.

Segundo ele, o fato de esses animais terem sido encontrados em abundân- cia em dois pontos a milhares de qui- lômetros de distância sugere que pos- sam viver também em outros lugares, ao longo das plataformas continentais. Eles podem também ter uma importân- cia biológica maior do que se poderia supor, participando de cadeias alimen- tares ora como predadores, ora como o

próprio alimento. Mesmo os sedimen- tos do fundo marinho ganham valor, por poderem transportar as comunida- des de invertebrados de um lado a outro no assoalho oceânico, facilitando a con- quista de novos territórios.

Jovens reprodutores - Os biólogos que estudam os bentos - os animais que vi- vem sob ou no fundo do mar - nor- malmente peneiram a areia ou a lama, separam os exemplares que vivem sol- tos nesses sedimentos, e descartam esse material. Não imaginam que outros or- ganismos bentônicos podem viver e se reproduzir sobre ou mesmo dentro dos grãos de quartzo ou nos fragmentos de conchas. "Talvez os sedimentos do fun- do do mar deixem de ser vistos como um deserto para muitos organismos sésseis (que vivem fixos sobre uma su- perfície)", comenta Migotto. "Muitos invertebrados encontram nos grãos de

areia um espaço adequado em que se fixam, vivem e se reproduzem. Eles não estão restritos apenas a rochas ou fragmentos de rochas e conchas de ta- manho relativamente grande como se pensava."

Os habitantes das areias do fundo do mar parecem ser mais ligeiros na ten- tativa de perpetuar a espécie do que os equivalentes que vivem sobre rochas. As larvas dos briozoários se fixam so- bre a superfície dos grãos de areia e se reproduzem inicialmente de modo as- sexuado. Formam colônias que come- çam a se reproduzir de modo sexua- do quando ainda são jovens e abrigam poucos indivíduos, diferentemente das colônias de briozoários que vivem so- bre rochas ou algas. "Como os grãos de areia são um ambiente extremamente instável e sua superfície é pequena", diz Migotto, "esses organismos não têm es- paço para crescer muito". •

Outro micrograstrópodo milimétrico

Floridiana (em amarelo) em um grão Espécie nova de briozoário Trypostega

PESQUISA FAPESP112 ■ JUNHO DE 2005 ■ 53

Page 54: O homem de Capelinha

CIÊNCIA

A I

Três passos adiante

Físicos de Minas e São Paulo aprimoram manipulação e transmissão de dados em computadores quânticos

RICARDO ZORZETTO

m três estudos recentes, pesquisadores de Minas Ge-

cas e experimentais que devem ajudar no desenvolvi- mento de um tipo especial de computador que povoa a mente dos físicos há três décadas, desde que o quí- mico Charles Bennett, da gigante da informática

IBM, demonstrou que era possível usar características das partículas atômicas para processar informações. É o computador quântico, assim chamado por funcionar segundo as leis da mecânica quântica, área da física que investiga os fenômenos do mundo dos átomos e das moléculas.

O resultado de aplicação prática mais imediata surge do trabalho do físi- co José Maria Villas-Bôas, ex-aluno de Nelson Studart na Universidade Fede- ral de São Carlos (UFSCar), no interior de São Paulo, que atualmente realiza suas pesquisas de pós-doutorado na Universidade de Ohio, Estados Unidos. Villas-Bôas descobriu uma solução simples para falhas em um dos sistemas nanoscópicos, de milionésimos de milímetro, mais cotados para integrar o processador desses computadores do futuro: os pontos quânticos, pirâmides

sobre materiais semicondutores. Ainda não se sabe qual será a aparência dos computadores quânticos,

mas os físicos acreditam que a principal mudança ocorrerá na estrutura do processador e na forma de lidar com as unidades de informação, os bits. Nos

uma moeda, com até 400 milhões de transistores. Quando o processador exe- cuta um comando, o transistor permite ou bloqueia a passagem de eletricida- de e a informação é codificada em um sistema de dois números, zero ou 1. Fm substituição aos transistores, os computadores quânticos deverão usar dezenas ou centenas de pontos quânticos, átomos ou corpúsculos de luz (fó- tons). E com vantagens. Enquanto o transistor lida com uma informação por vez, em uma relação de exclusão, o processador quântico trabalha simultanea- mente com inúmeros estados físicos simbolizados por infinitas combinações

JUNHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 112

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w

Rastros de luz: quando o caminho

é a informação

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da probabilidade de ser zero ou 1: por exemplo, 99% de chance de ser zero e 1% de ser 1 ou 42% de ser zero e 58% de ser 1. Eis a unidade de informação quântica: o bit quântico ou qubit.

Para realizar cálculos, os físicos atri- buem valores arbitrários às proprieda- des das partículas atômicas, como o plano de vibração do campo elétrico dos fótons em um laser. Um exemplo ajuda a compreender. Pode-se determi- nar que o campo elétrico dos fótons os- cilando no plano vertical, do mesmo modo que uma corda agitada por crian- ças, corresponde ao estado zero e a vi- bração na horizontal, ao 1. Segundo uma propriedade do mundo das partí- culas chamada superposição de estados quânticos, os fótons podem vibrar em infinitas direções ao mesmo tempo. Essa propriedade garante ao processa- dor quântico uma agilidade inigualável para lidar com diferentes informações ao mesmo tempo e, em tese, elevar ao infinito a capacidade de processamento de um punhado de átomos.

Atualmente há ao menos duas pro- postas de utilização dos pontos quân- ticos para realizar opera- ções lógicas. Na primeira, aprisiona-se uma única partícula de carga elétri- ca negativa (elétron) no interior dessas estruturas nanoscópicas e, em se- guida, tenta-se controlar o sentido de rotação des- se elétron com o auxílio de campos eletromag- néticos. Mas a alternati- va aparentemente mais viável é bombardear o ponto quântico com pulsos rápidos de um laser cujos fótons vibram com mais energia que o elétron.

Nessa interação, o laser transfere energia ao elétron, que salta da região em que se encontra para outra mais energética no interior do ponto quân- tico, estruturas com 2 a 50 nanôme- tros. Como conseqüência, a região an- tes ocupada pelo elétron fica vazia e com carga positiva - a combinação es- tável do elétron excitado com a região vazia (buraco) compõe um estado que os físicos chamam de éxciton. Se desta vez o laser atingir o elétron excitado, a partícula de carga elétrica negativa re- torna para a região de menor energia

do ponto quântico e o conjunto volta a seu estado original ou fundamental.

Foi essa possibilidade de criar esses estados distintos - um fundamental e outro excitado - que levou os físicos a proporem os pontos quânticos como alternativa de processador. Mas há difi- culdades. Como a intensidade da cor- rente elétrica gerada por um único elé- tron é baixa, é preciso repetir várias vezes o bombardeamento com laser até se produzir uma corrente mensurável. É nessa fase que surgem os problemas. Artur Zrenner, da Universidade de Pa- derborn, na Alemanha, constatou que esse bombardeamento repetitivo pro- duz uma interferência que impede a lei- tura precisa da informação codificada no estado de energia do ponto quântico e descreveu esse entrave em 2002 em um artigo na Nature. Em uma compa- ração com o mundo macroscópico, é como se fosse preciso olhar muitas ve- zes para uma pessoa a fim de saber se ela está de chapéu, mas a cada olhar se formasse uma nuvem de fumaça dian- te dos olhos, impedindo-nos de ver com clareza.

iante desse resultado, Vil- las-Bôas e os físicos Sérgio Ulloa e Alexander Govo- rov, ambos da Universi- dade de Ohio, iniciaram a busca de explicações

para essa interferência indesejável, se- melhante à chiadeira que surge na re- cepção de uma rádio FM quando se atravessa uma região da cidade repleta de emissoras. E a encontraram na ori- gem dos pontos quânticos: na finíssima camada sobre a qual se formam essas estruturas. Composta pelo mesmo ma- terial semicondutor do ponto quântico - uma mistura de arseneto de gálio e arseneto de índio -, essa camada apre- senta regiões nas quais podem surgir elétrons excitados com mais energia que no interior do ponto quântico, afe- tando a intensidade da corrente elétrica produzida, como descreveram Villas- Bôas, Ulloa e Govorov na Physical Re- view Letters de 11 de fevereiro.

Como contornar o problema? Sim- ples: é só bombardear o ponto quânti- co com pulsos de laser menos intensos e mais prolongados, propõem os pes- quisadores. É que o uso de pulsos me- nos intensos reduz a probabilidade de gerar elétrons excitados de energia mais alta na camada abaixo do ponto quân- tico. E parece que funciona. "No ano passado, Artur Zrenner conversou co- migo depois que apresentei esse traba- lho na conferência Quantum Dot, no Canadá", conta Villas-Bôas. "Mesmo sem conhecer meu estudo, ele refez os experimentos com pulsos de laser mais longos e obteve resultados melhores, mas não sabia explicar o porquê."

Caminhos simétricos - Em paralelo ao progresso com os protótipos de proces- sador quântico, físicos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) apresentaram dois outros avanços relevantes: encontraram for- mas de aumentar a capacidade de pro- cessamento e de transmissão de infor- mação de um computador quântico.

Na UFMG, Sebastião Pádua, Leo- nardo Neves, Gustavo Lima e Carlos Monken desenvolveram e testaram uma estratégia engenhosa que permite aumentar a quantidade de informação associada a cada bit quântico. Em cola- boração com José Aguirre e Carlos Saa- vedra, da Universidad de Concepción, no Chile, a equipe de Pádua associou a informação a outra propriedade ine- rente aos fótons: o caminho percorrido por esses corpúsculos de luz.

Não há mágica. E algum esforço de imaginação ajuda a entender a propos- ta mineira. Ao atravessar um cristal es- pecial, o feixe de laser é transformado em dois feixes de fótons gêmeos, que se propagam em sentidos diferentes, com ângulos simétricos em relação à traje- tória inicial. Uma propriedade intri- gante da física quântica chamada entre- laçamento quântico garante que duas partículas distintas e separadas - ou mesmo dois conjuntos de partículas, caso dos feixes-irmãos - reagirão de uma maneira predeterminada quando uma delas recebe um estímulo.

A equipe de Pádua direcionou cada um dos feixes-irmãos para um antepa- ro diferente, a 20 centímetros do cristal, e com quatro fendas muito estreitas, de

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0,09 milímetro. Ao produzir os feixes de fótons gêmeos, os físicos os progra- maram para cumprir a seguinte exi- gência: ao sair do cristal, os corpúsculos de luz passariam por fendas simetrica- mente opostas. Assim, se o fóton da direita atravessasse a mais elevada das quatro fendas, o da esquerda obrigato- riamente cruzaria a mais inferior do anteparo esquerdo. Além da informa- ção codificada no plano de polarização, agora é possível somar outras quatro informações, vinculadas aos caminhos que os fótons podem percorrer.

E quanto maior o número de fen- das, mais informação será atrelada aos feixes-irmãos. Experimentos com ante- paros de 4 e 8 fendas, descritos pela equipe mineira e chilena na Physical Re- view Letters de 18 de março, mostraram que a estratégia é viável e o índice de acerto, elevado: ao menos 96%. Os cál- culos indicam que é possível obter bons resultados com até 10 fendas.

Pode-se argumentar que anteparos com fendas não são o melhor material para integrar um processador quânti- co. Mas o que interessa é o princípio de funcionamento. "Imagine que, no lugar

das fendas, temos fibras ópticas", pro- põe Pádua. "Essa simples substituição permitiria transportar mais informa- ção usando menos pulsos de luz."

Pacote único - O autor da terceira con- tribuição é o físico Gustavo Rigolin, da Unicamp. Valendo-se de particulari- dades do entrelaçamento quântico, ele propôs uma saída a um dos gargalos da computação quântica: a transmissão de informações. De nada adianta um pro- cessador supereficiente, capaz de reali- zar em segundos cálculos que levariam bilhões de anos em um computador clássico, se os resultados tiverem de ser transferidos um a um até o local em que serão armazenados.

Quase 20 anos depois de revelar a possibilidade de usar partículas atômi- cas para realizar cálculos, Charles Ben- nett identificou em 1993 uma surpreen- dente propriedade da física quântica: o teletransporte, capacidade de transmi- tir características de uma partícula atô- mica a outra distante. Até recentemen- te a eficiência do teletransporte era baixa, porque só se conseguia transmi- tir as características de uma única par-

tícula por vez. Em um artigo na Physi- cal Review A, Rigolin propõe procedi- mentos que permitem enviar simulta- neamente inúmeros estados quânticos de um grupo de partículas para outro.

Imagine que se queira transferir as informações de uma centena de elé- trons colocados na Catedral da Sé, no centro de São Paulo, para outra centena de elétrons na Candelária, região cen- tral do Rio. Rigolin descobriu que só consegue transmitir as características das partículas paulistanas para as cario- cas se tiver à disposição outra centena de elétrons intermediários. Ao entrela- çar as partículas intermediárias com as paulistanas, ambas passam a comparti- lhar as mesmas características. Em se- guida, as partículas intermediárias fun- cionam como uma ponte quântica ou canal quântico e transferem suas pro- priedades aos elétrons cariocas. Além de aumentar a capacidade de transmi- tir informações simultaneamente, esse modelo permite corrigir eventuais er- ros na informação transmitida e criar códigos de segurança mais eficazes, que denunciariam qualquer tentativa de in- terceptar a informação. •

PESQUISA FAPESP 112 ■ JUNHO DE 2005 ■ 57

Page 58: O homem de Capelinha

Biblioteca de

Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org

A Online Computer Library Center (OCLC) citou em seu boletim o serviço prestado pela SciELO ressaltando o acesso gratuito aos textos completos das 134 revistas que compõem a biblioteca virtual brasileira. A OCLC é uma base de dados que reúne coleções de bibliotecas do mundo todo e produz um catálogo chamado WorldCat, onde os periódicos da SciELO estão indexados. Adisponibilização das revistas da Scielo no OCLC contribuirá para o aumento da visibilidade dos periódicos científicos da coleção.

■ Sociologia

Política criminal

Com base em indicadores que permitem ava- liar o grau de democratização do sistema de Justiça Penal no continente latino-americano, o artigo "Criminalidade e Justiça Penal na América Latina" aponta a defasagem existente nas várias instâncias que compõem o sistema de Justiça, desde a legislação penal até o siste- ma penitenciário. O estudo, de Rodrigo Ghi- ringhelli de Azevedo, professor do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), anali- sou especificamente a situação no Brasil e na Argentina. Azevedo apontou as deficiências no funcionamento das instituições responsáveis pelo controle do crime nesses dois países, além de comprovar que o aumento das taxas de cri- minalidade é um fator que resulta em uma cres- cente perda de legitimidade do sistema. "A aná- lise das reformas do sistema de Justiça Penal brasileiro e argentino na última década aponta para o fato de que, tendo por justificativa dar uma maior eficácia aos processos, na prática esse objetivo ainda não foi alcançado e, ao con- trário, ampliou-se a defasagem entre o formal e o real", acredita Azevedo. "Uma das tendências mais evidentes é a da hipertrofia ou inflação de normas penais, que invadem campos da vida social que anteriormente não estavam regu- lados por sanções penais", justifica. "O remé- dio penal é utilizado pelas instâncias de poder político como resposta para quase todos os ti- pos de conflitos e problemas sociais", lamen- ta o pesquisador. Diante desse quadro, Azeve- do se propõe a apresentar algumas alternativas para o aperfeiçoamento institucional, entre as quais a atuação dos cientistas sociais na pro- dução de pesquisas e análises sobre o assun- to. "Isso se coloca como um elemento central para ampliar a capacidade institucional de lidar com a conflitualidade social contemporânea em bases democráticas", concluiu o professor da UFRGS.

SOCIOLOGIAS-

2005 N° 13 - PORTO ALEGRE - JAN./JUN.

www.sdelo.br/sdelo.php7scri pt=sd_arttext&pid

20050ooioooc>9&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

615174522

■ Alimentos

Lingüiça de marisco

Estudar as condi- ções de processa- mento e a aceitabi- lidade da lingüiça de marisco vôngo- le (Anomalocardia brasiliana) foram os principais objeti- vos do artigo "Apro- veitamento indus- trial de marisco na produção de lin- güiça". Isso porque Eliete da Silva Bispo, Rose- mary Duarte Sales Carvalho, Graciele Andra- de, Clicia Capibaribe Leite, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e Ligia Regina Ra- domille de Santana, da Universidade do Esta- do da Bahia (UNEB), autoras do estudo, acre- ditam que o uso do vôngole na forma de lingüiça pode tornar esse marisco mais seguro ao consumo humano. "O método melhora a ca- pacidade de conservação do marisco, amplian- do sua rentabilidade por utilizar tecnologia de baixo custo, além de agregar valor econômico ao produto final", dizem. As pesquisadoras ava- liaram a estabilidade do produto congelado, que tem uma formulação de 48% de marisco vôngole e 25% de gordura suína. As amostras de vôngole congeladas foram obtidas na baía de Todos os Santos, em Salinas das Margari- das (BA). "Os resultados da avaliação indica- ram que o produto manteve-se estável duran- te 90 dias de armazenamento, à temperatura de -18°C." O alimento passou também por uma série de testes de degustação, por meio de 30 provadores, em que foram considerados fatores como aparência, aroma, sabor e textura. De acordo com o artigo das pesquisadoras, a lingüiça de vôngole teve um índice de aceita- bilidade entre 78% e 87% para todos os atribu- tos avaliados, especialmente com relação ao sa- bor e textura.

CIêNCIA E TECNOLOGIA DE ALIMENTOS - N° 4 - CAMPINAS - NOV./DEZ. 2004

VOL .24 -

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=Soi

Oi-2o6i200400040oo3i&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

58 ■ JUNHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP112

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■ Morango

Alternativa in vitro

A produção mun- dial de morango é de 3,1 milhões de tone- ladas por ano. Esta- dos Unidos, Espanha, Polônia e Japão são os maiores produtores do mundo. No Brasil, a produção anual é de 40 mil toneladas, com destaque para os estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Dados da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Em- brapa) mostram que a quantidade de matrizes geradas no país é de aproximadamente 760 mil por ano, um número insuficiente para atender à demanda. Por con- ta disso, os pesquisadores Rafael Ucker Brahm, da Uni- versidade Católica de Pelotas, e Roberto Pedroso de Oliveira, da Embrapa-Clima Temperado, resolveram verificar o potencial de multiplicação in vitro de dez cultivares de morangueiro. São elas: Aromas, Bürkley, Camarosa, Campinas, Dover, Milsei-Tudla, Oso Gran- de, Santa Clara, Sweet Charlie e Vila Nova. "Embora a metodologia de micropropagação de cultivares de mo- rangueiro seja bastante conhecida, pouco se conhece sobre o potencial de multiplicação in vitro de cultiva- res, o que é importante para o planejamento da pro- dução de matrizes em laboratório", justificam os auto- res do artigo "Potencial de multiplicação in vitro de cultivares de morangueiro". Os pesquisadores ressal- tam que as dez cultivares de morangueiro apresenta- ram elevada variabilidade genética.

REVISTA BRASILEIRA DE FRUTICULTURA - VOL. 26 - N° 3 - JABOTICABAL - DEZ. 2004

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=Soioo2945

2004ooo300032&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Saúde

Sedentarismo acentuado

O objetivo do estudo "Prevalência e fatores associa- dos ao sedentarismo no lazer em adultos" foi quanti- ficar a falta de exercícios em indivíduos com mais de 20 anos, residentes em Salvador, na Bahia. Os pesqui- sadores Francisco Pitanga e Ines Lessa, ambos da Uni- versidade Federal da Bahia (UFBA), fizeram o levan- tamento com base em uma amostra de 2.292 adultos, sendo 55% do sexo feminino. "Sedentários foram aqueles que informaram não participar de atividades físicas nos momentos de lazer em uma semana habi- tual", explicam. Os autores alertam que com o proces- so da industrialização existe um crescente número de pessoas que se tornam sedentárias com poucas opor- tunidades de praticar atividades físicas. "E diversos autores têm demonstrado associação entre sedenta-

rismo e agravos cardiovasculares, câncer, diabetes e saúde mental." Inicialmente, o estudo calculou a pre- valência do sedentarismo no lazer por variáveis asso- ciadas ao sexo da população estudada. Em seguida calculou-se a prevalência entre sedentarismo no lazer, grau de escolaridade e estado civil. O instrumento uti- lizado foi o Questionário Internacional de Atividade Física (Qiaf), que contempla as diversas facetas desse problema de saúde pública: atividades domésticas, atividades no trabalho, atividades no lazer e desloca- mentos. "A prevalência do sedentarismo no lazer foi de 72,5%, sendo mais freqüente em mulheres entre 40 e 59 anos e homens maiores de 60 anos, em pessoas com baixo nível de escolaridade e entre os casados, se- parados ou viúvos", concluem os pesquisadores.

CADERNOS DE SAüDE PUBLICA - VOL. 21 - N° 3 - Rio DE

JANEIRO - MAIO/IUN. 2005

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=Soio2-

3iiX2oo50oo3ooo2i&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Demografia

População x doenças

"A melhora das condições de vida do homem du- rante o século 20 contribuiu para transformações da estrutura demográfica e para mudanças dos padrões de morbi-mortalidade." Com o objetivo de discutir es- sas mudanças, o artigo "A mortalidade por doenças in- fecciosas no início e no final do século 20 no municí- pio de São Paulo" comparou os dados de mortalidade da cidade em 1901,1960 e 2000. O estudo é de autoria de Cássia Buchalla, Eliseu Waldman e Ruy Laurenti, pesquisadores da Faculdade de Saúde Pública da Uni- versidade de São Paulo (USP). As informações sobre a população da cidade, como nascidos vivos, coeficien- tes de mortalidade geral e infantil, foram obtidas do CD-ROM 500 anos de divisão territorial e 100 anos de estatísticas demográficas municipais, produzido pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Sea- de). Segundo o estudo, do início até o final do século 20 a população da capital paulista aumentou 36 vezes, sendo que o número de nascimentos aumentou cerca de 24 vezes e o número de óbitos 13,6 vezes. No entan- to, as taxas de mortalidade diminuíram, pois a morta- lidade geral foi 2,6 vezes menor no ano 2000. Além dis- so, a proporção de óbitos por doenças infecciosas declinou de 45,7% do total de óbitos em 1901 para 9,7% em 2000. Em 1901, entre as dez principais causas de morte no município, cinco eram por doenças infec- ciosas. Em 1960 apareciam nesta lista apenas três doen- ças infecciosas e em 2000 só a pneumonia constava en- tre as principais causas de morte.

REVISTA BRASILEIRA DE EPIDEMIOLOGIA - VOL. 6 - N° 4 - SãO PAULO - DEZ. 2003

http://www.scielo.br/sc ieto.php?script»sci_arttext&pid=Si4i5- 79oX20030004000o8&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

PESQUISA FAPESP112 -JUNHO DE 2005 ■ 59

Page 60: O homem de Capelinha

I TECNOLOGIA

LINHA DE PRODUçãO MUNDO

Parecem pequenos subma- rinos vermelhos semi-sub- mersos, mas na verdade são um conjunto de quatro ci- lindros articulados que pro- duzem energia elétrica com o movimento das ondas. Ele mede 120 metros de com- primento com 3,5 metros de diâmetro e possui um sistema hidráulico no inte- rior que se movimenta com o balanço das ondas e acio-

Energia das ondas do mar na motores e acumuladores que produzem eletricidade. A energia, por meio de ca- bos, é levada ao fundo do mar onde outros cabos es- tão conectados com a costa e, conseqüentemente, à re- de elétrica local. O projeto e o protótipo, que já possui proporções comerciais, são da empresa escocesa Ocean Power Delivery (OPD). Chamado de Pelamis, o sis-

tema está instalado na ilha de West Mainland, no ar- quipélago de Orkney, situa- do no extremo norte da Grã-Bretanha. O experi- mento é realizado sob a ins- peção do Centro Europeu de Energia Marítima (Emec, na sigla em inglês), que for- nece toda a infra-estrutura para os testes. O protótipo tem potência de 750 quilo- watts (kW), suficiente para

500 residências. O Pelamis conta com financiamento do Ministério do Comércio e da Indústria britânico e de um grupo de investidores privados. Em maio, a OPD assinou um contrato com um consórcio de empresas portuguesas para a instala- ção de um sistema de 2,25 megawatts (MW) na costa portuguesa, no valor de € 8 milhões. •

■ Diamante sintético mais valioso

Diamantes de crescimento rápido, com até 10 quilates e cerca de 1 centímetro e meio de diâmetro, foram produzi- dos por pesquisadores do Ins- tituto Carnegie, de Washing- ton, nos Estados Unidos, usando o processo de depo- sição química na fase vapor (CVD). As dimensões são cerca de cinco vezes maiores do que a dos diamantes sin- téticos que se encontram no mercado, feitos pelo método

que alia alta pressão à alta temperatura e outras técni- cas CVD. "Cristais de alta qua- lidade acima de 3 quilates são difíceis de produzir usando os métodos convencionais", disse o coordenador da pes- quisa, Russell Hemley. Os pesquisadores também con- seguiram criar pedras inco- lores. Atualmente, a maioria dos diamantes sintéticos pro- duzidos com alta pressão são amarelos e os fabricados por CVD ficam com uma tona- lidade marrom, o que limita suas aplicações ópticas. •

Na costa da Grã-Bretanha, o gerador flutuante Pelamis gera eletricidade com o balanço das ondas

60 ■ JUNHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 112

Page 61: O homem de Capelinha

■ Zircônio dá pistas sobre Terra antiga

Um termômetro feito de zir- cônio desenvolvido por pes- quisadores do Instituto Poli- técnico Rensselaer, de Nova York, serviu para que eles en- contrassem evidências de que as condições ambientais da Terra antiga, a 200 milhões de anos da formação do sistema solar, caracterizavam-se por oceanos e crosta continental similares aos encontrados hoje. A descoberta foi publi- cada na edição de 6 de maio da revista Science. "Nossos da- dos apoiam a teoria de que a Terra começou um padrão de formação da crosta, erosão e reciclagem de sedimentos já em sua evolução há 4,35 bi- lhões de anos, o que con- trasta com o ambiente quen- te e violento imaginado pela maioria dos pesquisadores e abre a possibilidade de a vida ter começado antes", disse Bru- ce Watson, um dos pesquisa- dores. A pesquisa foi feita em parceria com Mark Harrison, filiado à Universidade Nacio- nal Australiana e à Universi- dade da Califórnia. O novo termômetro mede o conteú- do de titânio de cristais de zircônio que determinam a temperatura de cristalização.

Zircônios são pequenos cris- tais incrustados na rocha e os mais velhos materiais conhe- cidos na Terra. Esses cristais dão aos pesquisadores uma janela para entender a histó- ria primitiva do planeta. •

■ Hemodiálise com máquina portátil

Uma máquina portátil para hemodiálise está em fase final de testes com pacientes nos Estados Unidos. Novos mate- riais permitiram a construção de filtros menores, muito mais compactos do que os utiliza- dos nos equipamentos hospi- talares. Batizado de NxStage System One, o equipamento, que pesa 30 quilos, pode ser usado tanto na casa do pa- ciente como durante viagens, eliminando as idas freqüentes ao hospital para sessões que duram, em média, de três a quatro horas para filtragem do sangue. A sessão com a no- va máquina demora cerca de duas horas e meia. A empre- sa NxStage, responsável pelo desenvolvimento, pretende co- locar o produto no mercado em 2006, se até lá tiver sido li- berado pela Food and Drug Administration (FDA), a agên- cia norte-americana para me- dicamentos e alimentos. •

BRASIL

Testes em campo avaliam cana resistente a vírus

A primeira cana transgênica da Alellyx e da Canavialis, em- presas de biotecnologia da Vo- torantim Novos Negócios, já está plantada em estações ex- perimentais no interior para- naense. Os testes em campo irão determinar se a varieda- de transgênica se mantém re- sistente ao vírus do mosaico, como verificado em labora- tório. A planta recebeu um gene retirado do próprio ví- rus causador da doença, res- ponsável pela queda de pro- dutividade nas lavouras. A variedade utilizada no proje- to, a Co740, importada da índia, foi bastante cultivada em solos férteis, principal- mente no Paraná, nas déca- das de 1960 e 70. "Era uma variedade de alta produtivi- dade e excelente qualidade de caldo, mas deixou de ser cultivada por ser muito sus- cetível ao vírus do mosaico da cana", relata Sizuo Matsuo-

ka, diretor de Pesquisa e De- senvolvimento da Canavialis. Para eliminar o vírus, as duas empresas de biotecnologia co- meçaram a trabalhar no pro- jeto em setembro de 2003. A Alellyx construiu o gene que confere resistência e o intro- duziu na variedade indicada pela Canavialis. O projeto, que tem custo de R$ 1 milhão, de- ve ficar dois anos em campo fazendo testes em áreas pró- ximas às regiões onde a va- riedade indiana foi cultivada décadas atrás. "Só depois de- ve-se pensar em um pedido de liberação comercial, que é uma nova etapa", diz Matsuo- ka. As plantas resistentes ao vírus do mosaico que man- tenham as características da planta original são considera- das uma boa opção, no meio e fim de colheita, para os pro- dutores que trabalham com colheita mecanizada em áreas de solos férteis. •

Cana: transformação genética para combater o mosaico

PESQUISA FAPESP112 -JUNHO DE 2005 -61

Page 62: O homem de Capelinha

■ Zircônio dá pistas sobre Terra antiga

Um termômetro feito de zir- cônio desenvolvido por pes- quisadores do Instituto Poli- técnico Rensselaer, de Nova York, serviu para que eles en- contrassem evidências de que as condições ambientais da Terra antiga, a 200 milhões de anos da formação do sistema solar, caracterizavam-se por oceanos e crosta continental similares aos encontrados hoje. A descoberta foi publi- cada na edição de 6 de maio da revista Science. "Nossos da- dos apoiam a teoria de que a Terra começou um padrão de formação da crosta, erosão e reciclagem de sedimentos já em sua evolução há 4,35 bi- lhões de anos, o que con- trasta com o ambiente quen- te e violento imaginado pela maioria dos pesquisadores e abre a possibilidade de a vida ter começado antes", disse Bru- ce Watson, um dos pesquisa- dores. A pesquisa foi feita em parceria com Mark Harrison, filiado à Universidade Nacio- nal Australiana e à Universi- dade da Califórnia. O novo termômetro mede o conteú- do de titânio de cristais de zircônio que determinam a temperatura de cristalização.

Zircônios são pequenos cris- tais incrustados na rocha e os mais velhos materiais conhe- cidos na Terra. Esses cristais dão aos pesquisadores uma janela para entender a histó- ria primitiva do planeta. •

■ Hemodiálise com máquina portátil

Uma máquina portátil para hemodiálise está em fase final de testes com pacientes nos Estados Unidos. Novos mate- riais permitiram a construção de filtros menores, muito mais compactos do que os utiliza- dos nos equipamentos hospi- talares. Batizado de NxStage System One, o equipamento, que pesa 30 quilos, pode ser usado tanto na casa do pa- ciente como durante viagens, eliminando as idas freqüentes ao hospital para sessões que duram, em média, de três a quatro horas para filtragem do sangue. A sessão com a no- va máquina demora cerca de duas horas e meia. A empre- sa NxStage, responsável pelo desenvolvimento, pretende co- locar o produto no mercado em 2006, se até lá tiver sido li- berado pela Food and Drug Administration (FDA), a agên- cia norte-americana para me- dicamentos e alimentos. •

BRASIL

Testes em campo avaliam cana resistente a vírus

A primeira cana transgênica da Alellyx e da Canavialis, em- presas de biotecnologia da Vo- torantim Novos Negócios, já está plantada em estações ex- perimentais no interior para- naense. Os testes em campo irão determinar se a varieda- de transgênica se mantém re- sistente ao vírus do mosaico, como verificado em labora- tório. A planta recebeu um gene retirado do próprio ví- rus causador da doença, res- ponsável pela queda de pro- dutividade nas lavouras. A variedade utilizada no proje- to, a Co740, importada da índia, foi bastante cultivada em solos férteis, principal- mente no Paraná, nas déca- das de 1960 e 70. "Era uma variedade de alta produtivi- dade e excelente qualidade de caldo, mas deixou de ser cultivada por ser muito sus- cetível ao vírus do mosaico da cana", relata Sizuo Matsuo-

ka, diretor de Pesquisa e De- senvolvimento da Canavialis. Para eliminar o vírus, as duas empresas de biotecnologia co- meçaram a trabalhar no pro- jeto em setembro de 2003. A Alellyx construiu o gene que confere resistência e o intro- duziu na variedade indicada pela Canavialis. O projeto, que tem custo de R$ 1 milhão, de- ve ficar dois anos em campo fazendo testes em áreas pró- ximas às regiões onde a va- riedade indiana foi cultivada décadas atrás. "Só depois de- ve-se pensar em um pedido de liberação comercial, que é uma nova etapa", diz Matsuo- ka. As plantas resistentes ao vírus do mosaico que man- tenham as características da planta original são considera- das uma boa opção, no meio e fim de colheita, para os pro- dutores que trabalham com colheita mecanizada em áreas de solos férteis. •

Cana: transformação genética para combater o mosaico

PESQUISA FAPESP112 -JUNHO DE 2005 -61

Page 63: O homem de Capelinha

Landsat: Cratera de vulcão extinto em Barra de São João, no litoral do Rio de Janeiro

■ Peças brasileiras para a Nasa

Protótipos de peças para a Es- tação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês) estão sendo desenvolvidos pelo Ser- viço Nacional de Aprendiza- gem Industrial (Senai) de São

Paulo. Acordo de cooperação técnica assinado em abril en- tre a instituição e a Agência Es- pacial Brasileira (AEB), vincu- lada ao Ministério da Ciência e Tecnologia, prevê o prazo de 12 meses para a fabricação, o controle e a montagem de pro- tótipos das placas adaptadoras

denominadas FSEs, ou equi- pamentos de suporte ao vôo (Flight Support Equipment). Os FSEs ajudam a transpor- tar e a acomodar os equipa- mentos na estação construída pela Nasa. Os protótipos se- rão modelo para um primei- ro lote de 32 peças a serem fa-

bricadas no país ou no exte- rior. Em troca do fornecimen- to, o Brasil obtém espaço na estação para experimentos. A ISS é um empreendimento li- derado pelos Estados Unidos, em parceria com a Europa e o Japão, formando um conglo- merado de 16 países. •

Inovações financiadas pelo

de Tecnologia (Nuplitec)

Patentes

Núcleo de Patenteamento e Licenciamento

da FAPESP. Contato: [email protected]

Perspectiva de vacinas Um conjunto de seis genes seqüenciados e isolados do verme Schistosoma mansoni, que têm potencial para uso em futuras vacinas contra a esquistossomose, foi alvo de depósito de patente no Brasil e nos Estados Unidos. O potencial desses genes e o uso de suas respectivas pro- teínas como antígenos vaci- Schistosoma adulto

nais estão sendo investiga- dos no Instituto Butantan. Esses genes foram identifi- cados no Projeto Genoma do Schistosoma, que envol- veu 37 pesquisadores e estu- dantes da Universidade de São Paulo, do Instituto Bu- tantan e do Instituto Adol- fo Lutz. Foram descritas 30 mil seqüências gênicas, de onde foram selecionados 30 genes para avaliação e dos quais seis demonstra- ram potencial.

Título: Uso de genes encontrados

no Projeto Genoma

do Schistosoma (diagnóstico

ou desenvolvimento de vacina).

Inventores: Sérgio Verjovski-

Almeida, Luciana Cerqueira

Leite, Leonardo Farias, Patrícia

Miyasato, Toshie Kawano,

Ricardo DeMarco, julio César

Garcia, Elizabeth Martins,

Paulo Ho, Ana Nascimento,

Emmanuel Dias-Neto, João

Setúbal, Carlos Menck,

Alda Madeira, Vanderlei

Rodrigues e Cybele Gargioni

62 ■ JUNHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 112

Page 64: O homem de Capelinha

Imagem do mesmo vulcão gerada pelo ônibus espacial que privilegia o relevo

■ Identificação de gasolina adulterada

Um método desenvolvido no Instituto de Química da Uni- versidade Estadual de Campi- nas (Unicamp) detecta quase instantaneamente adultera- ções na gasolina, pela adição de solventes ou querosene. Para fazer o teste, são necessá- rios apenas poucos microlitros de água adicionada à gasoli- na para detectar a presença de solventes, ainda que em quan- tidades mínimas. A técnica utilizada para identificar as substâncias químicas é a es- pectrometria de massas. Com- postos químicos existentes na gasolina, que são marcadores

naturais, são identificados pe- lo equipamento e registrados em um gráfico no computa- dor. Da mesma forma, os sol- ventes possuem compostos que são seus marcadores na- turais. Nos casos de adultera- ção, sinais adicionais apare- cem no gráfico. •

■ Trator testa biodiesel

Testes realizados durante mil horas de operações agrícolas com tratores de 100 cavalos apontaram que o consumo do motor se mantém inalte- rado até a mistura de 50% de biodiesel e 50% de diesel. Para a avaliação, foram em-

pregados cinco tipos de mis- turas dos dois combustíveis em diferentes proporções. Agora os participantes do projeto, entre os quais a Uni- versidade Estadual Paulista (Unesp), a Cooperativa dos Citricultores de Bebedouro, a FAPESP e o Laboratório de Desenvolvimento de Tecno- logias Limpas (Ladetel), da Universidade de São Paulo (USP), vão iniciar testes com um motor mais potente, de 180 cavalos. O objetivo é con- seguir os dados necessários para a validação e a homolo- gação do uso do biodiesel em tratores que deverão ser ado- tados pela Agência Nacional de Petróleo (ANP). •

Relevo bate recorde

Três impactos de meteo- ritos no solo e três cra- teras de vulcões extintos são alguns dos desta- ques do projeto Brasil em Relevo apresenta- do no site da unidade de Monitoramento por Satélite da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embra- pa) desde abril. Além das curiosidades, o re- levo brasileiro é visto em todos os detalhes com imagens captadas pelo ônibus espacial Endeavour (veja Pes- quisa FAPESP n°. 110). A divulgação nos meios de comunicação gerou recordes de acesso no si- te (www.cnpm.embra- pa.br) quando o Brasil em Relevo foi lançado no dia 26 de abril. Na- quele dia, foram 1,2 milhão de acessos e 0,5 terabyte em downloads. No dia 29, o número de acessos atingiu 1,4 mi- lhão. A média diária do site gira em torno dos 250 mil acessos diários. "A comunidade acadê- mica, científica e a edu- cacional foi a que mais acessou", diz Evaristo Eduardo de Miranda, coordenador do proje- to. Quem acessar o re- levo também tem fácil acesso às imagens do satélite Landsat que mostram mapas do so- lo com outros detalhes, mas sem relevo. •

PESQUISA FAPESP 112 -JUNHO DE 2005 -63

Page 65: O homem de Capelinha

TECNOLOGIA

ENGENHARIA QUÍMICA

Memória no vidro Material inovador poderá armazenar dados digitais em três dimensões

YURI VASCONCELOS

rmazenar grandes quantida- des de dados digitais em um pequeno pedaço de vidro é

a nova possibilidade que se abre com as pesquisas do Grupo de Materiais

Fotônicos do Instituto de Química da Universida- de Estadual Paulista (Unesp), de Araraquara. Os pesquisadores conseguiram desenvolver um tipo de material vítreo, produzido com alta concentra- ção de oxido de tungstênio, que poderá receber gra- vações em três dimensões, abrangendo a altura, o comprimento e a largura. Isso representa um avan- ço em relação aos principais meios eletrônicos que armazenam memória óptica em duas dimensões, como os CDs e os DVDs, capazes de acumular da- dos apenas na superfície do material. Com a capa- cidade de armazenamento tridimensional do vidro de tungstênio, as aplicações podem avançar por vá- rios campos da informática e da indústria eletro- eletrônica, na fabricação de chips e memórias para computadores e na produção de dispositivos de gravação audiovisual. Tudo isso, é claro, se as pes- quisas ainda em andamento comprovarem a eficá- cia do novo material e as suas possibilidades de interação com os equipamentos eletrônicos. "Nos últimos três anos surgiram muitas pesquisas no mundo inteiro relacionadas a materiais com capa- cidade de gravação tridimensional, mas, até onde sabemos, nenhum outro grupo nacional ou estran- geiro chegou ao estágio em que nos encontramos", diz o químico Younès Messaddeq, coordenador do Grupo de Materiais Fotônicos da Unesp.

A grande vantagem do novo material, que tem uma coloração amarelada em razão da presença de tungstênio em sua composição, é que ele poderá ultrapassar, de maneira significativa, a capacida- de atual de armazenamento dos meios utilizados como memórias ópticas digitais. Um CD comum, por exemplo, pode armazenar 700 megabytes de informação, quantidade suficiente para uma hora e quinze minutos de música de alta qualidade ou mais de 300 mil páginas de um texto escrito em es- paço duplo. Os DVDs mais avançados, por sua vez, contam com 20 gigabytes de memória e são capazes de armazenar filmes de longa metragem. "O vidro poderá ser usado como dispositivo para gravação ou transformado em um filme fino, com alguns na- nômetros de espessura, similar às películas exis- tentes hoje em CDs e DVDs", diz o químico Gaêl Poirier, aluno de pós-doutorado e um dos invento- res do novo material. Esses discos compactos pos- suem um filme de polímero, de espessura também nanométrica, depositado sobre um vidro polido, onde as informações são gravadas. É uma camada fina de resina fotossensível (por exemplo, policar- bonato ou poliéster) produzida a partir da evapo- ração de vidros ou polímeros especiais. "Vamos testar a gravação diretamente no vidro de tungstê- nio e no filme fino com o mesmo material para ver qual dos dois é mais eficiente" diz o pesquisador.

Os pesquisadores da Unesp garantem que a ca- pacidade de armazenamento do vidro à base de oxido de tungstênio será infinitamente maior que os disquinhos atuais, embora, por enquanto, não consigam precisar o tamanho dessa memória. "Ain-

64 ■ JUNHO DE 2005 • PESQUISA FAPESP 112

Page 66: O homem de Capelinha

Vidro de tungstênio: gravação tridimensional na Unesp de Araraquara

Page 67: O homem de Capelinha

da não fizemos as medidas necessárias, mas o limite teórico de armazenamen- to é de 1,6 terabyte (1.600 gigabytes) por centímetro cúbico", diz Poirier. Essa capacidade, segundo Messaddeq, será fundamental para a projeção do sucesso comercial do novo vidro, que já precisa ser superior a 200 gigabytes porque esse é o volume de informações da memória eletrônica mais ampla do mercado, prevista para ser lançada es- te ano pela empresa americana In- Phase Technologies, uma spin-off (pequena empresa de tecnologia) originária da gigante das teleco municações Lucent Technolo- gies, especializada em arma- zenamento holográfico, uma técnica que também permi- te guardar dados em três dimensões. "A diferença fundamental entre nosso vidro e os materiais ho- lográficos que gravam em três dimen- sões é que esses últimos são polímeros ou vidros porosos contendo políme- ros. Eles gravam em três dimensões, mas o processo não é reversível", conta Messaddeq.

Com o material vítreo da Unesp é diferente. Ele poderá se contrapor aos materiais utilizados hoje, experimental- mente, para gravação em três dimensões que possuem como grande limitação o fato de não serem reversíveis. "A não re- gravação é uma grave limitação no campo de aplicação de armazenamento de dados, porque esses materiais somen- te poderão ser utilizados como memó- rias 'definitivas'", diz Messaddeq. As gravações feitas no vidro sintetizado nos laboratórios da Unesp podem ser apagadas por tratamento térmico ou quando expostas a lasers apropriados. Isso faz com que o material possa ser usado como suporte regravável ou me- mória de alta capacidade. Além disso, o novo vidro de tungstênio tem um cus- to de preparação bem inferior ao de outros materiais vítreos especiais usa- dos como memórias ópticas, como os chamados vidros calcogenetos, que em- bora permitam a ampliação da memó- ria gravam em duas dimensões e não são tridimensionais. Messaddeq tam- bém possui projetos com o vidro calco- geneto (veja Pesquisa FAPESP n° 86).

Em 2002, a empresa japonesa Pa- nasonic apresentou um DVD com fil-

me à base de calcogeneto e alta capaci- dade de gravação (9,4 gigabytes) com recurso de regravação. Esse material é produzido com selênio, enxofre e telú- rio, elementos da tabela periódica cha- mados de calcogênios. "O nosso vidro de tungstênio é cem vezes mais barato em relação aos outros materiais que es- tão em pesquisa e serão usados, no fu- turo, para armazenamento de dados."

facilidade de produção do vi- dro de oxido fotossensível de tungstênio é outra grande vantagem desse material.

Ele é preparado a partir de um processo clássico de

fabricação de vidros, baseado na mistu- ra de componentes de partida, nome dado aos reagentes químicos constituin- tes do vidro - oxido de tungstênio (W03), polifosfato de sódio (NaP03) e fluoreto de bário (BaF2). Eles são ho- mogeneizados e colocados em um cadi- nho, recipientes cerâmicos que supor- tam altas temperaturas, que é levado ao forno para fusão. Em seguida, o líquido fundido é vertido, com o auxílio de uma pinça de inox com pontas de pla- tina, em um molde metálico apropria- do e com a geometria desejada. O ca- dinho utilizado (de oxido de alumínio ou platina), bem como a temperatura

OS PROJETOS

1. Desenvolvimento de vidros contendo oxido de tungstênio para aplicação em óptica 2. Fotossensibilidade reversível no ultravioleta e visível de vidros à base de WO3

MODALIDADE 1. Linha Regular de Auxílio à Pesquisa 2. Programa de Apoio à Propriedade Intelectual (PAPI)

COORDENADOR YOUNèS MESSADDEQ- Unesp

INVESTIMENTO 1. R$ 53.750,00 (FAPESP) 2. R$ 6.000,00 (FAPESP)

de fusão, depende da composição ini- cial do material, variando de 1.000 a 1.600°C. Depois da sintetização do vi- dro, a amostra é submetida a um re- cozimento durante quatro horas e, em seguida, é resfriada gradualmente até chegar à temperatura ambiente. A fase final do processo de fabricação é o po- limento na superfície, um ponto im- portante para melhorar a qualidade óptica do material. Para confirmar o estado vítreo da amostra, o material é submetido a técnicas de caracterização, como difração de raios X, análise tér- mica e observação visual. "O segredo do nosso vidro não está nos materiais uti- lizados, mas na sua composição quími- ca", diz Messaddeq.

Por acaso - Como algumas das mais importantes descobertas da história da humanidade, esse novo material sur- giu quase por acaso, quando Poirier fazia experimentos durante o seu dou- torado. "Há dois anos, eu estava estu- dando certas propriedades ópticas do vidro com oxido de tungstênio e, por acaso, testei sua fotossensibilidade usan- do um laser visível azul. Isso permitiu verificar que o vidro era fotossensível no volume e podia receber gravações em três dimensões", conta Poirier. Para demonstrar esta nova propriedade do material (a gravação tridimensional), os pesquisadores fizeram uma parceria com o Instituto de Estudos Avança- dos do Centro Técnico Aeroespacial (IEAv/ CTA), em São José dos Campos, que gravou com laser, em três dimen- sões, a famosa face do físico Albert Einstein numa amostra do vidro que mede 1 centímetro de largura por 3 centímetros de altura.

Para armazenar dados no vidro de tungstênio podem ser usados lasers ul- tra-violeta (no caso de gravações super- ficiais, em duas dimensões) ou lasers visíveis, com comprimento de onda de 488 nanômetros (nm) ou 514 nm. Esse último laser foi usado para gravação do rosto de Albert Einstein na forma tridimensional. Também são utilizados lasers infravermelhos pulsados para gravação de dados em três dimensões. Neste caso, os lasers possuem uma po- tência de pico muito alta, de alguns megawatts ou gigawatts, num tempo de irradiação muito curto (da ordem de nanossegundos, a bilionésima parte do

66 ■ JUNHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 112

Page 68: O homem de Capelinha

Armazenamento no vidro é feito por feixes de laser. Ao lado, a imagem de Albert Einstein gravada em uma amostra

segundo, ou femtossegundos, ou a qua- trilionésima parte, o que corresponde, respectivamente, a IO"9 e IO"12 segun- dos) para induzir processos ópticos e o efeito fotossensível.

O ineditismo da descoberta fez com que os pesquisadores decidissem en- trar com um pedido de patente do vi- dro de tungstênio no Instituto Nacio- nal da Propriedade Industrial (INPI) com o apoio do Núcleo de Patentea- mento e Licenciamento de Tecnologia (Nuplitec) da FAPESP. "Essa patente, intitulada Materiais Fotossensíveis Tri- dimensionais para Armazenamento de Dados Tridimensionais e Holografia, só vale para o Brasil, mas dentro de um ano, como permitem os acordos inter- nacionais, faremos a proteção de nos- sa descoberta em outros países: Esta- dos Unidos, Japão, Inglaterra, França, Alemanha, Suécia, Itália, Austrália e China", afirma Messaddeq. Com o de- pósito da patente, o novo material sin-

rea—^P

tetizado pelo Grupo de Materiais Fo- tônicos da Unesp de Araraquara come- çará a ser mostrado em congressos e eventos da área. Até o momento, a úni- ca apresentação no exterior ocorreu durante um workshop sobre materiais avançados realizado, em junho do ano passado, na Universidade de Münster, na Alemanha. "Mostrei apenas um slide da amostra de vidro com o rosto de Albert Einstein e todos ficaram impres- sionados", diz Messaddeq.

Parceiro nacional - O próximo passo dos pesquisadores é fazer a caracteri- zação do material para determinar sua capacidade de memória. "Esses estudos vão apontar se precisamos aperfeiçoar o vidro de tungstênio, melhorando sua composição, ou se ele já está pronto para ser produzido em escala piloto", diz o coordenador do grupo. Para rea- lizar esse trabalho, os cientistas estão buscando um parceiro nacional. "Não

sabemos se algum grupo de pesquisa no Brasil dispõe de tecnologia para fa- zer essas medidas. Se percebermos que não existe, vamos tentar encontrar um parceiro no exterior", diz Messaddeq, que espera concluir essa etapa do tra- balho até o fim deste ano.

Paralelamente à caracterização, o grupo está pesquisando formas de pro- duzir filmes finos a partir desse vidro. O desenvolvimento da tecnologia ade- quada e o controle dos parâmetros pa- ra preservar as propriedades dos fenô- menos observados no material vítreo estão sendo realizados pela mestranda Bianca Montanari. "Como o tungstê- nio apresenta diferentes estados de oxi- dação, as condições de preparação fo- ram a chave da pesquisa de Bianca", diz Messaddeq. "No primeiro ano de estu- dos, ela conseguiu explorar as condições para obtenção de filmes homogêneos de boa qualidade óptica, mas ainda é preciso confirmar várias outras proprie- dades existentes no vidro."

O Laboratório de Materiais Fotôni- cos do Instituto de Química da Unesp de Araraquara, coordenado pelos pro- fessores Messaddeq e Sidney José Lima Ribeiro, é formado por cerca de 40 pro- fissionais e estudantes, sendo oito pes- quisadores com pós-doutorado, dez alunos de doutorado, sete de mestrado e dois pesquisadores visitantes. Anual- mente a equipe publica cerca de 20 artigos em revistas científicas inter- nacionais indexadas, como Journal of Chemical Physics, Journal ofPhysics and Chemistry of Solids e Applied Physics Letters. •

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I TECNOLOGIA

RECICLAGEM

De volta às origens Novos processos simplificam a limpeza e a recuperação de garrafas plásticas descartáveis

DlNORAH ERENO

antas tecidas em tear manual, calças jeans, bandejas de frutas, couro arti- ficial e até mesmo garrafas para pro-

dutos não-alimentícios têm em comum a mesma origem. São produtos obtidos principalmente de embalagens plásticas, conhecidas como PET, de re- frigerantes, água, óleo de cozinha e produtos do- mésticos de limpeza, descartadas após o consumo e recicladas. Para que elas passem a ser reutilizadas, porém, é necessário passar por um processo que começa com a recuperação do material até chegar à etapa de transformação no produto final. Nos ca- sos em que as garrafas são reprocessadas em novas embalagens para acondicionar alimentos, além da etapa de limpeza convencional, elas precisam passar por um processo de descontaminação para remo- ção de substâncias perigosas que são absorvidas pe- lo PET - como a resina Poli (tereftalato de etileno) é mais conhecida -, causa de danos à saúde huma- na quando ingeridas acima de determinados limites. Essas substâncias geralmente são provenientes da reutilização de vasilhames pelo consumidor para acondicionar combustíveis, pesticidas, produtos quí- micos e de limpeza. Uma nova técnica, mais simples e econômica que os métodos utilizados atualmen- te para esse fim, foi desenvolvida e patenteada por pesquisadores do Departamento de Engenharia de Materiais (DEMa), da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Eles também desenvolveram um novo processo de recuperação molecular do PET que muito vai ajudar no uso do material reciclado para fabricar novas garrafas para água e refrigeran- te, por exemplo, situação hoje inviável no Brasil.

No caso da descontaminação, os processos usados pelas empresas recicladoras utilizam atual- mente altíssimo vácuo industrial durante várias horas ou substâncias alcalinas, como soda cáustica, para raspar as camadas mais superficiais do plás- tico onde estão depositados os contaminantes. O novo processo é muito mais simples: necessita ape- nas de um fluxo de ar seco quente por cerca de 15 minutos, em uma faixa de temperatura que vai de 130°C a 220°C. "O oxigênio contido no ar atmos- férico apresenta interação com o PET e, ao mesmo tempo, alto poder de difusão, facilitando a remo- ção dos contaminantes do vasilhame em curto es- paço de tempo", diz a professora Sati Manrich, coordenadora do projeto, financiado pela FAPESP.

A simplicidade do novo método atraiu a aten- ção de cinco empresas brasileiras e estrangeiras, sendo que uma delas avançou bastante nas nego- ciações. Três das interessadas já trabalham com processos de limpeza superclean, como são chama- dos os métodos empregados na descontaminação de embalagens plásticas pós-consumo. "Essas em- presas podem incorporar a tecnologia que desen- volvemos para melhorar o processo usado atual- mente, que ficará bem mais econômico", diz Sati. Outra vantagem dessa tecnologia é que ela pode ser utilizada por empresas de qualquer tamanho, inclusive micros e pequenas. Por enquanto, no Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) não permite que plásticos reciclados en- trem em contato com alimentos, como refrigeran- tes, chás, sucos, óleos de cozinha e outros produtos similares. As garrafas plásticas recicladas podem se transformar novamente em uma garrafa, desde que seja para acondicionar produtos de limpeza, químicos, pesticidas e outros. "Existem pelo me-

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nos três empresas brasileiras que dis- põem de tecnologia para produzir a re- sina reciclada que poderia transformar- se novamente em garrafa para abrigar alimentos", diz Hermes Contesini, dire- tor de comunicação da Associação Bra- sileira da Indústria do PET (Abipet), entidade que congrega os fabricantes da resina, de embalagens e os reciclado- res de embalagens. A tecnologia dis- ponível nas indústrias brasileiras, por enquanto, é importada. Mas pode ga- nhar o reforço do processo desenvolvi- do na UFSCar.

Pureza apropriada - Nos Estados Uni- dos, Canadá, Austrália e na Europa o PET reciclado também é utilizado em garrafas de refrigerante, produzidas com porcentagens variadas da resina plástica. A Food and Drug Administra- tion (FDA), a agência norte-america- na reguladora de medicamentos e ali- mentos, e o International Life Sciences Institute (ILSI), da União Européia, exigem que o material reciclado tenha uma pureza apropriada, medida por pa- râmetros específicos e rigorosos. "Testes realizados com a resina moída em for- ma de flocos, previamente contamina- da com tolueno, um solvente encontra- do em produtos de limpeza e materiais de construção, e outros produtos quí- micos mostraram que a nossa tecnolo- gia reduz a concentração dos contami- nantes a níveis mínimos e se enquadra

Flocos de PET reciclados e prontos para aplicações variadas

nas exigências de órgãos reguladores internacionais", diz Sati.

O fato de a legislação brasileira proi- bir o retorno da garrafa para acondi- cionar alimentos não é obstáculo para o crescimento do setor de reciclagem. "No momento temos outras deman- das que consomem todo o PET reci- clado no Brasil", diz Contesini. Segun- do a Abipet, em 2004 foram recicladas 173 mil toneladas de embalagens plás- ticas, quase 50% das 360 mil produzi-

das no ano. Em 2003 foram recicladas 141.500 toneladas das 330 mil toneladas produzidas, o que indica um índice de reaproveitamento de 43% do material descartado. O índice de reciclagem po- deria atingir números ainda maiores se a Política Nacional de Resíduos Sólidos, um projeto de lei que está desde 1997 tramitando no Congresso Nacional, já tivesse sido aprovada. Por ora, cabe a cada município estabelecer sua própria política de gestão de resíduos domésti-

O PET foi desenvolvido em 1941 por dois químicos ingleses, Rex Whinfield e Dickson, do Laboratório IO, que iniciou a produção de fibras a partir de 1950 na Inglaterra. Na mesma época, a produção nos Esta- dos Unidos começava com a Du Pont, mas as garrafas produzidas com esse polímero derivado do petróleo só começaram a ser fabricadas na dé- cada de 1970. A reciclagem começou dez anos depois, quando os Estados Unidos e o Canadá iniciaram a cole- ta das garrafas, que se transforma- vam em enchimento de almofadas. A qualidade do PET foi melhorando e, com isso, novas aplicações surgiram,

Polímero versátil como tecidos e garrafas para produtos não-alimentícios. Apenas na década de 1990, o governo norte-americano liberou o uso do material reciclado em embalagens de alimentos. No Bra- sil, o polímero começou a ser utiliza- do em 1988, inicialmente na indústria têxtil. Somente em 1993 começou a ser usado no mercado de embalagens de forma significativa, principal- mente em refrigerantes. Os números de 2003 traduzem bem esse quadro. Das 330 mil toneladas produzidas naquele ano, 227 mil tiveram como destino a indústria de refrigerantes, 65 mil a de água mineral e 38 mil a de óleo comestível. A reciclagem do

PET, além de tirar o lixo plástico dos aterros, utiliza apenas 0,3% da ener- gia total necessária para a produção da resina virgem. Além disso, o Pet tem a vantagem de poder ser recicla- do várias vezes, para a fabricação de diferentes produtos de alta qualidade. As fibras são usadas para enchimen- to de colchões e travesseiros, confec- ção de edredons e mantas, tecidos e malhas, e os filamentos para a fabri- cação de cordas, cerdas de vassouras e escovas. Parte dessa resina é utiliza- da como matéria-prima também na indústria de tintas, tubos hidráulicos, peças injetadas, filmes para termo- formagem, entre outras aplicações.

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Grânulos descontaminados com nova técnica: de volta para a garrafa

cos e industriais. "Todos os materiais de embalagem teriam melhores índices de reciclagem se a coleta seletiva fosse obrigatória", diz Contesini. Hoje a mai- oria das embalagens sai das mãos dos consumidores diretamente para o lixo doméstico, sem prévia separação.

Pesquisa feita em 2004 pelo Com- promisso Empresarial para a Recicla- gem (Cempre), uma associação mantida por empresas privadas de diversos se- tores, indica que os programas oficiais de coleta seletiva, em funcionamento em 237 cidades do país, concentradas nas regiões Sudeste e Sul, recuperam cerca de mil toneladas por ano. Isso é muito pouco. "De modo geral, grande parte dos municípios não tem nenhum sistema de coleta de lixo, quanto mais seletiva", diz Contesini. Segundo o Ins- tituto Brasileiro de Geografia e Esta- tística (IBGE), 30% dos mais de 5 mil municípios brasileiros não têm esse serviço de recolhimento de lixo. O sis- tema de coleta seletiva que tem como destino a reciclagem é feito ainda prin- cipalmente pelos catadores, pessoas que de modo informal coletam material reciclável como meio de sobrevivência. Depois de entregue às cooperativas, é encaminhado para a indústria recicla- dora. O processo de reciclagem de fras- cos PET descartados começa com a se- paração das embalagens por cor. Em seguida elas são prensadas, moídas em

flocos e, depois de passar por uma má- quina de extrusão, transformadas em grânulos, também chamados de pel- lets. Quando os flocos estão limpos, é aplicado o processo de descontamina- ção desenvolvido na UFSCar.

Circuito fechado - O mesmo projeto contemplou ainda outro aspecto rela- cionado à recuperação das proprieda- des físicas do PET reciclado e resultou em mais um pedido de patente. No processo de reciclagem mecânica das garrafas, que envolve lavagem, cristali- zação, secagem e granulação, por conta

OS PROJETOS

í. Estudos em reciclagem de PET pós-consumo para aplicações em embalagens alimentos 2. Processo de descontaminação e aumento de massa molar de PET reciclado

MODALIDADES

i. Linha Regular de Auxílio à Pesquisa 2. Programa de Apoio à Propriedade Intelectual

COORDENADORA

SATI MANRICH- UFSCar

INVESTIMENTO i. R$ 43-318,00 (FAPESP) 2. R$ 6.000,00 (FAPESP)

do aquecimento o material perde algu- mas características físicas, dentre elas a relacionada à massa molar - ou tama- nho das moléculas -, o que impede sua utilização em alguns tipos de produtos que exigem resistência, como uma nova garrafa. "Quanto maior a massa molar, maior a resistência mecânica, química e térmica do material", diz Sati. No proces- so desenvolvido na universidade, a recu- peração da massa molar é feita em uma única etapa de cristalização, secagem e polimerização no estado sólido do PET na forma de flocos, dispensando uma etapa adicional de granulação, necessá- ria para a produção de novas garrafas. Por esse método, os flocos são submeti- dos a uma reação de polimerização no estado sólido, na qual um fluxo de gás inerte como o nitrogênio ou vácuo é aplicado a uma temperatura abaixo do ponto de fusão do polímero.

As principais vantagens do novo processo é que o tempo de recuperação de massa molar é reduzido e ele é feito em um equipamento compacto, usan- do um fluxo de gás inerte que pode ser reutilizado sem nenhum tratamento, uma vez que o circuito é fechado. Como é um processo econômico e que não exige muito investimento, é recomenda- do para micros e pequenas empresas. Já os processos utilizados atualmente pelas grandes indústrias necessitam de uma grande quantidade de gás, que precisa passar por um tratamento de purifica- ção em outros equipamentos antes de ser reutilizado. O processo de recupera- ção de massa molar deve ser realizado logo após a descontaminação do PET, já que as duas etapas são feitas no mes- mo equipamento. Terminado esse pro- cesso, os flocos passam por uma má- quina extrusora, onde são produzidos grânulos apropriados para moldar gar- rafas ou fios de reforço de pneus.

O sistema compacto pode ser usa- do por empresas ligadas à reciclagem de PET, fabricantes de fios têxteis e em- balagens. Por enquanto ainda não apa- receram interessados. Mas o cresci- mento do setor de reciclagem no Brasil mostra que investir tanto na desconta- minação da resina plástica como na re- cuperação das suas propriedades físi- cas podem ser alternativas viáveis para os pequenos empresários e também para livrar dos aterros sanitários as garrafas plásticas. •

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I TECNOLOGIA

RESTAURAÇÃO

Luzes sobre o passado Sofisticadas técnicas de análise revelam escritos de papiros e documentos deteriorados

Imagens em ultravioleta ou infraverme- lho jogam luz sobre trechos ininteli- gíveis de papiros egípcios de mais de 2 mil anos e trazem à tona obras perdi- das de grandes autores clássicos, como Sófocles, Eurípedes e Hesíodo. Raios X

permitem conhecer melhor as teorias matemáti- cas de Arquimedes contidas em cópias obscuras e de difícil compreensão, feitas no século 10, de par- tes de seus escritos originais. Análises químicas e de espectroscopia revelam a composição dos pig- mentos usados no século 15 por Johannes Guten- berg para ilustrar o primeiro livro feito com ti- pos móveis, a Bíblia. Como se vê, as mais variadas tecnologias estão hoje a serviço do estudo de tex- tos antigos, preenchendo lacunas de informação até então inacessíveis aos mais argutos exegetas.

Na Universidade de Oxford, pesquisadores bri- tânicos usam um método criado pela Nasa para uso em seus satélites na visualização de planetas e objetos celestes, o imageamento multiespectral, como aliado no trabalho de estudo dos textos do projeto Oxyrhynchus. Trata-se de uma coleção de 400 mil fragmentos de manuscritos redigidos por autores clássicos da Grécia e Roma encontrados no final do século 19 nos despojos da antiga cida- de egípcia de Oxyrhynchus. Os papiros, que, se- gundo alguns estudiosos, podem ampliar em 20% a quantidade de textos clássicos, ficaram muito tempo em contato com o solo, em meio a lixos de toda espécie, em especial o vidro, e se tornaram escuros e ilegíveis em alguns trechos. Perdeu-se o contraste entre o pigmento usado na escrita e o fundo dos papiros, que se enegreceu demais.

O imageamento multiespectral consiste em produzir uma sucessão de imagens em diferen- tes comprimentos de onda do objeto em estudo. Dessa forma, uma das imagens, ou a justaposição

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Bíblia de Gutenberg: origem das cores determinada

de algumas delas, pode fazer saltar aos olhos tre- chos até então invisíveis do material analisado. "Em geral não há um comprimento de onda má- gico, que faça todos os escritos antigos aparece- rem", diz o engenheiro Gregory Bearman, do Jet Propulsion Lab, da Nasa, que no início dos anos 1990 teve a idéia de empregar a técnica em estu- dos de arqueologia. "Tudo depende do estado do documento e do que aconteceu com ele ao longo do tempo."

Trechos dos "Manuscritos do Mar Morto", um conjunto de 850 textos de cerca de 2 mil anos en- contrados em cavernas de Israel entre 1947 e 1956, foram os primeiros textos antigos em que o ima- geamento multiespectral foi empregado com su- cesso. Em seguida, o método foi testado em textos de Pompéia que foram soterrados e chamuscados pela erupção do vulcão Vesúvio em 79 d.C. Ma- terial carbonizado, como o de Pompéia, e escritos não-carbonizados, como os do projeto Oxyrhyn- chus, costumam revelar detalhes ocultos quando

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Papiro de Oxyrhynchus: passado desvendado com imagens em ultravioleta e infravermelho

submetidos a diferentes comprimentos de onda. Segundo Dirk Obbink, especialista em papiros e literatura grega de Oxford, alguns trechos dos documentos resgatados na antiga cidade do Egi- to tornaram-se legíveis depois de terem sido ge- radas imagens em ultravioleta. Em outros, o in- fravermelho obteve melhores resultados.

0 xis da questão - Para decifrar uma transcrição da Idade Média dos trabalhos originais de Arqui- medes (287 a.C-212 a.C), trechos inéditos da obra Método dos teoremas mecânicos, que foram alvo de diferentes tipos de danos e adulterações ao longo do último milênio, físicos da universidade norte-americana de Stanford, na Califórnia, con- taram com o auxílio de imagens geradas pelos raios X. Grande parte das alterações indevidas so- fridas pelos pergaminhos, como a sua raspagem e reuso como suporte para o texto de um livro reli- gioso no século 13, já havia sido superada com a adoção de outras técnicas. Mas faltava contornar

a última agressão sofrida pe- los documentos, já no sécu- lo 20, quando escritos mo- dernos foram acrescentados ao topo de algumas páginas, ocultando partes dos textos antigos. A geração de ima- gens por raios X superou es- se derradeiro obstáculo. Isso porque a exposição à radia- ção ressaltou os pigmentos ferrosos dos manuscritos originais em detrimento da tinta moderna usada para alterar os pergaminhos, se- gundo reportagem de mea- dos de abril do serviço noti- cioso da revista Nature.

Por falar em tintas, um grupo de pesquisadores eu- ropeus e norte-americanos determinou pela primeira vez os principais tipos de pigmento usados para dese- nhar as figuras que adornam sete das chamadas Bíblias de Gutenberg, publicadas no século 15. Além de recorrer a análises químicas, eles usaram em seu trabalho de detetive a espectroscopia Ra- man, um método não-inva- sivo no qual um laser ilu- minou as páginas do livro e um sensor especial leu o padrão de luz gerado. A ori- gem de sete cores foi deter- minada com precisão e de

duas de forma aproximada. O vermelho-claro deriva do cinabre (minério

do mercúrio). O amarelo vem de compostos com chumbo e estanho. O preto se origina do carbo- no e o branco, do carbonato de cálcio. O azul de- corre do emprego de azurita, um tipo de carbo- nato de cobre. O verde-oliva, da malaquita, outro carbonato de cobre. O verde-escuro, do etanoa- to de cobre (verdete). De origem incerta, os tons dourados parecem vir do próprio ouro e os ver- melhos de pigmentos extraídos de plantas ou inse- tos. "O estudo das tintas representa um primeiro e importante passo de uma estratégia apropriada de conservação e preservação de antigas obras de arte", afirma um dos autores do estudo, Gre- gory D. Smith, do Buffalo State College, nos Esta- dos Unidos. Divulgado para o grande público em abril, o estudo completo dos pigmentos das Bí- blias gutenberguianas será publicado na edição de Io de junho da revista norte-americana Analy- tical Chemistry. .

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No Ipen, interior da célula a combustível de oxido sólido: alta temperatura

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TECNOLOGIA

Combustível na cerâmica Pesquisadores do Ipen desenvolvem equipamento transformador de hidrogênio em eletricidade

Ol.lVIÜRA

conhecimento sobre as técnicas de produzir energia elétrica por meio do hidrogênio avança em todo o mundo. No Brasil, o último resulta-

do nessa área aconteceu no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), onde um grupo de pesquisadores conseguiu montar um protótipo de um novo tipo de célula a combustível no país. Eles produziram um condutor de eletricidade chamado elctrólito - uma peça fundamental para esses equi- pamentos que transformam hidrogênio e oxigênio em energia elétrica - a partir de material cerâmico composto de oxido de zircônio e oxido de ítrio, duas matérias-primas encontradas em abundância em jazidas minerais brasileiras. O oxido de zircônio é extraído do mineral badeleíta e o de ítrio da areia monazítica. Os dois materiais purificados são pro- duzidos no próprio Ipen.

A cerâmica é uma opção ao tipo de célula mais difundida atualmente, que é a formada por eletró-

litos feitos de polímero e chamada de PEM fda sigla em inglês Proton Exchange Membrane ou Membra- na de Troca de Prótons), já desenvolvida também no Ipen e produzida de forma experimental por duas empresas brasileiras, a Electrocell e a UniTech (veja Pesquisa FAPESP n"s. 92 e 103). "Os eletrólitos de polímero precisam ser importados enquanto o que usamos pode ser sintetizado totalmente no Brasil", diz o físico Reginaldo Muccillo, coordenador da pesquisa no Ipen. Ele e seu grupo fazem parte do Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos (CMDMQ, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CepidJ da EAPESP, que tem a coordenação do professor Elson Eongo, da Universidade Eederal de São Carlos (UESCarj.

Chamadas de células a combustível de oxido sólido, ou Sofc (da sigla em inglês de Solid Oxide Euel Cell), elas se diferenciam das células PEM, principalmente, na forma de operação. As PEM trabalham com temperaturas ao redor dos 100°C, enquanto as de cerâmica, como essa do Ipen, tra- balham de 800 a 1.000°C. Essa característica elimi-

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na a possibilidade de fornecer energia para movimentar automóveis e outros tipos de veículo, uma função que a in- dústria automobilística reserva para a célula PEM. Mas as altas temperaturas proporcionam às células de oxido sóli- do a capacidade de co-geração de ele- tricidade e calor para movimentar tur- binas industriais, sistemas de calefação e para esquentar, por exemplo, caldei- ras industriais e caseiras, os boilers, que levam água quente ao chuveiro e às tor- neiras. Além desse atributo, a energia gerada cumpre as funções normais de uma célula a combustível, como fazer funcionar aparelhos eletrônicos e acen- der lâmpadas.

s células de oxido sólido podem ser construídas para altas potências, no âmbito dos megawatts,

inclusive para ajustar o desnível provo- cado por grandes indústrias nas horas de pico de demanda de energia elétrica, impedindo a variação brusca que acon- tece principalmente no final da tarde, quando o uso é maior. A própria indús- tria automobilística estuda a utilização desse tipo de célula para ocupar o lugar das baterias e para suprir de energia os equipamentos de ar-condicionado. "As células a combustível funcionam como uma bateria, mas a diferença é que as células não param de funcionar en- quanto existir o suprimento de com- bustível", explica Muccillo.

"Nós conseguimos chegar ao funcio- namento da célula na vigésima segun- da tentativa. Houve uma euforia dos pesquisadores que estavam testando o equipamento", lembra Mucillo. O tra- balho foi realizado entre novembro de 2004 e março de 2005, embora o pesqui- sador trabalhe na área de eletrocerâmi- cas para sensores e células a combustível desde 1992. A pesquisa que resultou na composição cerâmica para a célula a combustível começou com um projeto temático da FAPESP e com financia- mento dos Centros de Pesquisa, Inova-

No forno, preparo de eletrólitos de cerâmica em forma de pastilhas

ção e Difusão (Cepid), além de projetos recentes dos fundos setoriais de energia (CTEnerg) e do petróleo (CTPetro).

"O projeto temático serviu para avançarmos no conhecimento básico sobre os fenômenos intergranulares das cerâmicas e o Cepid nos trouxe a pers- pectiva de inovação. No final consegui- mos produzir um material igual ou su- perior aos usados em células de oxido sólido no exterior", diz Muccillo. Eles prepararam todos os componentes no próprio Ipen em prensas e fornos que funcionam em altas temperaturas e analisaram a microestrutura e o com- portamento elétrico dos materiais. Tam- bém produziram duas peças essenciais que são semelhantes às placas que ser- vem de lados positivo e negativo nas baterias e pilhas comuns. Essas placas, que levam o nome de anodo e catodo e também são produzidas com cerâmica, formam um sanduíche com o eletróli- to no meio. Nas células de oxido sólido, esse conjunto é redondo, e não retan- gular como na PEM.

Para os testes eletroquímicos que determinam a potência da nova célula, Muccillo convidou pesquisadores do

Departamento de Materiais do Insti- tuto de Tecnologia para o Desenvolvi- mento (Lactec), do Paraná, grupo que também é parceiro em projetos do CTEnerg e CTPetro. Eles mediram a potência da célula e concluíram que ela possui 20 miliwatts. Esse valor é o de uma única célula e pode ser aumentado em muitas vezes com modificações no projeto, que já está em curso. Para che- gar à necessidade de 5 quilowatts de uma casa de classe média será preciso fazer vários outros dispositivos iguais e juntá-los de forma que atinjam tal po- tência. "As próximas etapas vão servir para aprimorar a montagem da célula e dominar a tecnologia de sua fabrica- ção", diz Muccillo

Evolução dos materiais - Esse tipo de equipamento já havia sido projetado e montado nos Estados Unidos há 30 anos. "O problema é que era muito ca- ro e não chegou a ser comercializado." Recentemente, com a evolução dos ma- teriais, a empresa alemã Siemens voltou a pensar nas células a combustível de oxido sólido junto com outros centros de pesquisa no mundo. Um exemplo

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Célula redonda: o eletrólito é a camada branca, entre o catodo {cinza) e o anodo (verde)

OS PROJETOS

Estudo de fenômenos intergranulares em óxidos cerâmicos

MODALIDADE Projeto Temático

COORDENADOR REGINALDO MUCCILLO - Ipen

INVESTIMENTO R$ 328.610,97 e US$ 217.952,29 (FAPESP)

Cerâmicas para células a combustível Sofc

MODALIDADE Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid)

COORDENADOR ELSON LONGO - Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos

INVESTIMENTO R$ 1.200.000,00 anual para todo o Cepid

do crescimento do interesse na pesqui- sa e no desenvolvimento desse equi- pamento foi demonstrado no IX Sim- pósio Internacional de Sofc realizado entre 15 e 20 de maio, em Quebec, no Canadá. Cerca de 400 pessoas partici- param de cem palestras e na apresenta- ção de centenas de trabalhos de pes- quisadores de empresas, universidades e centros de pesquisa, sob o patrocínio da Sociedade de Eletroquímica, dos Es- tados Unidos, e da Sociedade Sofc do Japão. Muccillo e seu grupo do Centro de Ciência e Tecnologia de Materiais (CCTM) do Ipen estiveram presentes apresentando projetos realizados no instituto, além de outro trabalho em parceria com pesquisadores da Univer- sidade de Roma, na Itália, que desen- volveram uma técnica química de sín- tese de materiais cerâmicos para catodo de Sofc. "Eles desenvolvem os compo- nentes e nos enviam para testarmos aqui. Mas nós não usamos esse mate- rial na célula do Ipen ainda."

Caminho do oxigênio - Uma das vanta- gens do novo eletrólito cerâmico de- senvolvido pelos pesquisadores do Ipen

é sua capacidade de suportar altas tem- peraturas durante longo tempo sem per- der as propriedades. É um material que precisa ter uma interação direta com o oxigênio (Oz) aplicado sobre ele por- que é na superfície dessa cerâmica que a molécula do gás se quebra. "O oxido de zircônio deixa passar o íon (02-) impedindo a passagem da totalidade do gás." Os elétrons, de carga negativa, existentes no catodo geram eletricida- de junto com os elétrons do hidrogê- nio injetado e quebrado no lado anodo. Os prótons (H+), de carga positiva, que sobram no anodo recebem os íons do oxigênio que atravessam o eletrólito, para formar água (H20). A água é pro- duzida porque os íons do oxigênio, quando atravessam a cerâmica condu- tora, no interior da célula, encontram o hidrogênio do outro lado. Esse ca- minho que leva a essas reações aconte- ce de forma inversa nas células PEM. No caso da membrana polimérica são os prótons de hidrogênio que atraves- sam a membrana para o outro lado no encontro do oxigênio e a conseqüente formação de água.

A célula de oxido sólido, da mesma forma que outros tipos, também pode retirar o hidrogênio de combustíveis como metanol e gás natural, num pro- cesso chamado de reforma. O hidrogê- nio, normalmente, é obtido por hidró- lise da água, um processo ainda caro. "A reforma é uma de nossas preocupações. Queremos utilizar um reformador de etanol (o álcool que no Brasil é extraí- do da cana-de-açúcar). A alta tempe- ratura facilita o uso desse processo, que pode ser acionado pelo próprio calor gerado na célula."

Os pesquisadores do Ipen não pa- tentearam a célula de oxido sólido. "Es- ses materiais que usamos para sintetizar a cerâmica estão disponíveis no merca- do. O que nos interessa é adquirir com- petência em desenvolver esse tipo de cé- lula." A síntese das cerâmicas já rendeu três teses de doutorado, cinco disserta- ções de mestrado e mais de 20 trabalhos publicados em revistas científicas nos últimos anos. "Nosso objetivo agora é tornar essa célula competitiva e mais potente, melhorar o desenvolvimento no laboratório. Se uma indústria nacio- nal quiser desenvolver a nossa célula não vai ter que pagar royalties para fora nem importar eletrólitos." •

PESQUISA FAPESP 112 -JUNHO DE 2005 -77

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I TECNOLOGIA

ENGENHARIA MECÂNICA

Programa escolar

Software ensina alunos a planejar a fabricação de peças industriais

m um passado não tão distante fabricar uma peça metálica depen- dia dos conhecimen- tos e da precisão do operador. Hoje máqui-

nas como tornos e fresadoras, que moldam desde um parafuso a uma roda de liga de alu- mínio, possuem acoplado a elas um equipa- mento eletrônico chamado de CNC, sigla de controle numérico computadorizado. O CNC recebe informações de como a máquina vai rea- lizar uma operação e faz o repasse ao sistema por meio de sinais elétricos, responsáveis pelo acionamento dos motores. Dessa forma a má- quina realiza todos os movimentos para a pro- dução de uma peça desejada, na seqüência pro- gramada e sem a intervenção do operador. Um processo que precisa ser entendido por todo aluno de curso profissionalizante na área de mecânica e por futuros engenheiros.

Com o objetivo de facilitar esse aprendiza- do, um aluno e um professor do Departamento de Mecatrônica e Sistemas Mecânicos da Escola

Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli- USP) desenvolveram um software batizado de CNC Programmer, que simula um ambiente industrial e atua como se fosse efetivamente um planejador, analisando todos os parâme- tros envolvidos na tarefa proposta.

"O software ajuda a entender a execução do processo, porque ele programa o tempo de fa- bricação da peça e simula todos os desdobra- mentos necessários para executar a produção de uma peça", diz o professor Marco Stipkovic Filho, coordenador do projeto na empresa Adiante Informática, formada por ele e pelo ex-aluno Sérgio Luís Rabelo de Almeida, que hoje dá aulas na Universidade Mackenzie e no Instituto Mauá de Tecnologia. Com financia- mento do Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE) da FAPESP, o soft- ware está pronto e já foi vendido para o Ser- viço Nacional da Indústria (Senai), que o ins- talou em 14 unidades espalhadas pelo Brasil. Também a Universidade Federal de Pernam- buco (UFPE) adquiriu o programa para o cur- so de engenharia mecânica.

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Torno produz peça cilíndrica sob o comando do CNC Programmer

A linguagem CNC baseia-se em sentenças alfanuméricas que podem ser programadas pelo aluno ou importadas de programas já existentes. Tudo em português, para facilitar o aprendizado.

O PROJETO

Desenvolvimento de ferramentas computacionais para ensino e aprendizagem de processos de usinagem a CNC

MODALIDADE

Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE)

COORDENADOR

MARCO STIPKOVIC FILHO - Informática

USP/Adiante

INVESTIMENTO R$ 26.520,00 e US$ 15.039,00 (FAPESP)

Se um parâmetro for digitado incorre- tamente, o erro é apontado com uma mensagem de alerta. "Os recursos foram implementados para que o aluno possa efetivamente aprender", diz Almeida.

Proteção e orçamento - O CNC Pro- grammer foi desenvolvido com arqui- tetura aberta, o que permite modifica- ções no seu uso, sob a supervisão da empresa, conforme a máquina e a ne- cessidade do cliente. Para proteger o programa de cópias piratas, uma pe- quena peça foi desenvolvida pelos pes- quisadores para ser colocada na par- te de trás do computador. O sistema só funciona se tiver essa peça, que faz par- te do pacote do software.

Entre as funções do programa estão selecionar as ferramentas adequadas, estabelecer as condições de usinagem, além de calcular quanto a máquina con- some de energia elétrica para fabricar as peças. As ferramentas e as máquinas

são escolhidas de acordo com a geome- tria das peças. As cilíndricas são traba- lhadas em tornos. Já as prismáticas - em formato de prismas retangulares - são feitas em fresadoras. Além disso, o soft- ware escolhe a máquina que tem a po- tência adequada para executar a tarefa programada, simula o tempo de fabri- cação e gera o orçamento com precisão, sem necessidade de fazer uma peça pi- loto. "O software possibilita ver as peças em formato tridimensional, permitin- do ao aluno olhá-las por vários ângulos antes de ser fabricada", diz Stipkovic.

Os outros softwares existentes no mercado destinam-se apenas a profissio- nais que já trabalham na produção in- dustrial. "A maioria é em inglês e tem preços proibitivos para as escolas", diz Almeida. O CNC Programmer, vendido a R$ 2.000,00, é compatível com as prin- cipais máquinas do mercado. •

DlNORAH ERENO

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HUMANIDADES

ECONOMIA

A moeda autoritária Projeto discute a delicada relação entre a autoridade do Banco Central e a política

CARLOS HAAG

Os políticos devem sus- pirar, nostálgicos, pe- los tempos em que, como dizia Washing- ton Luiz, "governar é construir estradas".

"Uma das rupturas de época mais significativas na América Latina diz respeito aos novos critérios de legitimação, pelos quais categorias 'econômi- cas' foram convertidas em valores sociais e em critérios de desempenho político por meio dos quais a sociedade julga seus governantes", analisa a cientista política Lourdes Sola. "Objetivos antes percebidos como 'econômicos', tais como estabi- lidade e disciplina monetária, tornaram-se inteli- gíveis para a população e para os formadores de opinião, passando a fazer parte de suas aspirações e expectativas, a ponto de adquirir o estatuto de 'bens públicos'", observa a pesquisadora, coorde- nadora do Projeto Temático Construção da auto- ridade monetária e democracia: a experiência bra- sileira no contexto da integração econômica em escala global, realizado com apoio da FAPESP.

Hoje, nota a professora, da capacidade de se obter uma hipoteca para uma nova casa até a taxa geral de inflação da economia, tudo é, de alguma forma, determinado pela política monetária e fi- nanceira do governo. "Logo, é preciso um foco mais amplo, que aborde a autoridade monetária como modalidade específica de autoridade polí- tica." Lourdes nota que, com a democratização, a estabilidade macroeconômica passou a funcionar como ativo eleitoral importante, já que a massa

do eleitorado estava cansada das antigas políticas econômicas baseadas em choques e num cresci- mento movido à hiperinflação. "Daí decorre um desafio para os governos das novas democracias: eles dependem, em grande parte, do acesso aos mercados internacionais de capital para manter a estabilidade econômica; a qual, por sua vez, é ne- cessária para responder a outras demandas que o eleitorado de massa associa à democracia, ou seja, desenvolvimento econômico e maior bem- estar material."

Credibilidade - Um dilema político mais do que hamletiano, pois significa agradar ao mesmo tem- po os interesses, no geral díspares, de investidores estrangeiros e do eleitorado interno. "O acesso aos capitais internacionais está condicionado à obtenção de credibilidade financeira, cuja con- quista passa pela desregulamentação dos merca- dos domésticos e pelo livre fluxo de capitais como principais mecanismos de ajustamento." Essa forma de integração, no entanto, leva a uma crescente exposição a choques exógenos. "Isso ocorre num contexto de democratização que in- troduziu na cena política um eleitorado de mas- sa que se caracteriza pela baixa tolerância à insta- bilidade e às trajetórias recessivas da economia, provocadas pelo alto grau de exposição a 'cho- ques externos'", avalia. "Tudo ficou evidente na última eleição, quando, do lado da classe política, uma vez constatado que o grosso da população era favorável à estabilidade, os candidatos de opo- sição a reivindicaram como um valor, ou seja, se

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apresentaram como parcialmente con- tinuístas. O PT e Lula, aliás, mais do que qualquer outro, como se lê na 'Car- ta aos brasileiros'", lembra a autora. Daí, se a reestruturação da autoridade monetária está no topo da lista das re- formas institucionais, no cume dessa nova estrutura está a delicada questão da autonomia do Banco Central (BC).

Louco - "A consolidação de um novo desenho institucional, com a autono- mia do BC, ainda depende de maior aprofundamento das discussões e de seu entendimento pela sociedade", afir- ma o ministro da Fazenda, Antônio Pa- locci. "Se em algum momento eu en- tender que a autonomia do BC poderá baixar os juros, serei louco se não o fi- zer" afirmou o presidente Lula em sua primeira coletiva. "No entanto, o que parecia provável, o projeto de autono- mia funcional do BC em 2003, frus- trou-se, embora se tratasse de uma de- cisão em via de ser concretizada, pois, naquele ano, foi viabilizada a reforma constitucional (o artigo 192, da Consti- tuição de 1988, que redefinia as atribui- ções e a estrutura da instituição), um passo adiante em direção à autonomia. Aprovada, aliás, no Congresso, no go- verno Lula, com apoio da oposição, do PT e da base aliada."

A grande disponibi- lidade de recursos no mercado financeiro in- ternacional, a chamada liquidez, deu ao gover- no brasileiro a oportu- nidade de adiar o proje- to de autonomia. Muito dinheiro em oferta di- minuiu a preocupação com o risco e isso fez baixar a pressão interna- cional pela reestruturação do BC. "Mas, cedo ou tarde, o mercado vai fi- car menos ativo e a pressão retorna- rá, trazendo de volta o projeto, um es- tímulo importante para recuperar a confiança dos mercados", avalia a pes- quisadora. Na base de tudo está o medo constante dos investidores es- trangeiros nas mudanças ocorridas no calor das disputas eleitorais, que fazem do Brasil um mar de incertezas, pala- vra odiada pelo mercado financeiro. Daí o desejo de um BC "livre de pres- sões políticas".

as livre de quem? O próprio presi- dente Lula, em en- trevista, declarou que, em seu gover- no, o BC já tinha

autonomia, incluindo-se aí um presi- dente "blindado" com o status de mi- nistro de Estado. "É uma autonomia de fato, mas parcial", diz a autora. O preço da liberdade é a eterna vigilância: o cha- vão da Guerra Fria também se poderia aplicar ao projeto do BC: quem será o guardião do guardião? "As questões a serem discutidas são a natureza e os li- mites da autonomia, bem como os pro- cedimentos pelos quais devem ser fixa- das as metas de inflação, cabendo ao Executivo/Congresso fixá-las e caben- do a um BC dotado de autonomia ope-

racional cumpri-las", avalia. "Um se- gundo aspecto é trazer para o debate público o desenho institucional de um BC autônomo, respeitadas as caracte- rísticas do contexto brasileiro. A ilusão dos que defendem o modelo ortodoxo (antidemocrático a meu ver) é pressu- por que só existe um modelo de auto- nomia, quando, na verdade, apesar de serem autônomos, os BCs dos Estados Unidos, Japão, Alemanha e França são muito distintos", lembra a pesquisado- ra. Vale lembrar que o Banco da Ingla- terra adquiriu sua autonomia em 1997, num governo do Partido Trabalhista.

O Banco Central do Brasil foi cria- do em 31 de dezembro de 1964. Antes dele, a autoridade monetária era exerci- da pela Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), pelo Banco do Brasil e pelo Tesouro Nacional. "O BC nasce num regime autoritário e tem um caráter tardio em relação aos BCs dos demais países latino-americanos. Mais: a centralização dos instrumentos mo-

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netários na instituição também se deu de forma atrasada. De 1965 a 1985, o BC compartilhou controles sobre a ofer- ta monetária do país com o Banco do Brasil", observa Lourdes. Curiosamen- te, em 1964, havia intenções sérias de fazer da instituição um instrumento autônomo em relação à política, uma proposta que foi derrotada, três anos depois, na Presidência de Costa e Silva, por causa do expansionismo econômi- co do então ministro Delfim Netto. "A história da autoridade monetária no Brasil do pós-guerra, porém, tem me- nos a ver com a natureza do regime po- lítico do que com o compromisso prio- ritário com o crescimento acelerado e a industrialização substitutiva."

Centralismo - Após anos de centralismo político, a Constituição de 1988, ressalta a autora, trouxe "a devolução dos po- deres econômicos e decisórios às ins- tâncias estaduais, antes da liberalização política na órbita federal, o que ajuda a

explicar as dificuldades enfrentadas pelo Executivo, mais tarde, sempre que se tratava de estabelecer uma autorida- de coordenada e de implementar uma estratégia acordada que implicasse o apoio dos governadores". Os estados passaram a agir como forças centrífu- gas para a descentralização monetária, em especial ao usar seus bancos esta- duais para emitir dinheiro (Banespa, Ba- nerj, entre outros), uma espécie de rebe- lião contra a autoridade constitucional do BC. Além disso, com a inflação em alta, os grandes ganhadores eram os ban- cos, incluindo-se os bancos públicos: a cada ano, entre 1990 e 1993, o setor ban- cário gerava receita inflacionária na base de 4% do PIB, com os bancos públicos se apropriando de dois terços do total.

O fim da hiperinflação, a partir de 1994, virou o jogo para o BC. "A capa- cidade da instituição para disciplinar os bancos estaduais deve ser vista como um processo gradativo que começa no princípio de 1980 e que foi imposto pe-

las crises sucessivas vividas por esses bancos." Mais uma vez o dilema era po- lítico: a conciliação entre realidade de- mocrática descentralizada, o federalis- mo brasileiro e a necessidade de uma centralização monetária no BC, a fim de instaurar a desejada estabilidade eco- nômica. "O modelo de federalismo ado- tado gradativamente ao longo do pro- cesso de democratização influenciou a ordem monetária ao gerar uma multi- plicidade de centros de poder rivais do governo federal", diz a autora. "Assim, enquanto a autonomia estatutária do BC não estiver assegurada por um ato de delegação da classe política e, por- tanto, do Legislativo, a atual autonomia da instituição continua a depender do fíat do presidente, ou seja, de uma deci- são política, e não de uma restrição insti- tucional", avisa Lourdes. "Mas o Legisla- tivo não parece interessado no assunto. A agenda é pobre e não inclui a autono- mia do BC, porque não é um objetivo relevante em termos eleitorais." •

PESQUISA FAPESP 112 -JUNHO DE 2005 -83

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Tamanho é documento

Irritação, mau humor, tristeza, choro e ranger de dentes: todo mês a mes- ma coisa. É a reunião do Copom, o Comitê de Po- lítica Monetária do BC,

anunciando mais um aumento da taxa Selic (taxa básica de juros), que define a remuneração dada pelo governo a quem compra títulos públicos. "O au- mento dos juros é, à luz da experiên- cia internacional e brasileira, a melhor maneira de combater a inflação, uma ameaça a ser enfrentada prioritariamen- te", afirma o presidente do BC, Henrique Meirelles. "O Brasil é um país com uma economia anômala: temos a maior ta- xa básica real de juros do mundo e o me- nor volume de crédito sobre o PIB do mundo. O que a política econômica es- tá fazendo com este país há duas déca- das é um crime", rebate o professor Al- berto Borges Matias, da FEA-RP/USP, autor da pesquisa Estudo técnico sobre as taxas de juro vigentes no Brasil, em que, com base em dados empíricos, refuta as justificativas correntes para taxas al- tas: controlar a inflação, gerar estabili- dade cambial, vender títulos públicos.

Pesquisa afirma que altas taxas de juro só beneficiam o sistema financeiro

"A correlação estatística observada nos últimos 15 anos entre taxa de juros e inflação é praticamente zero. A inflação é, em grande parte, contratada, fruto dos contratos de privatização de serviços públicos que indexaram os reajustes ao IGPM. Aliás, quando se aumenta a taxa Selic, a inflação sobe junto, numa cor- relação positiva de 15%", explica. A re- lação entre juros e o dólar, após a libe- ração cambial, indica uma correlação insignificante, de -8%. Tampouco os índices elevados servem para evitar, se- gundo o pesquisador, a evasão de ca- pital. "Nosso rating-país é elevado em grande parte por causa das altas taxas. Somos motivo de chacota velada inter- nacional. Ninguém acredita que consi- gamos sobreviver com esses juros, que ao mesmo tempo inviabilizam o inves- timento industrial. A nossa indústria está sucateada e desnacionalizada", avi- sa Matias. Mas se engana quem acha que esse é um engano recente.

"Os governos de há duas décadas, incluindo-se o atual, não sabem como sair da ratoeira armada pelos juros: a pressão política é forte, pois grandes industriais, empresas comerciais, par-

tidos políticos, exportadores e até ban- cos públicos federais são dependentes dos juros elevados", diz. Segundo Ma- tias, o BC deu ao governo a maçã do "pecado" dos juros em 1994, no início do Plano Real. Antes, apesar da alta in- flação, houve casos de juros negativos. O sistema financeiro nacional, inefi- ciente e com custos elevados de manu- tenção, se mantinha com os ganhos do chamado floating, os recursos prove- nientes de depósitos à vista de clientes, de cobranças e recursos de terceiros, que ficavam temporariamente nas ins- tituições financeiras. Entre 1994 e 1995 os ganhos de floating caíram de R$ 9,3 bilhões para R$ 1 bilhão. Para Matias, em três anos após o início do Real, o sistema financeiro entraria em colapso. Para evitar a quebradeira, o governo reestruturou, afirma o autor, sua polí- tica monetária.

"O Plano Real alterou a forma de fi- nanciamento do déficit público: em vez de financiá-lo via emissão de moeda, passou a fazê-lo pela emissão de dívida, ou melhor, de títulos públicos", explica o pesquisador, lá em 1995 o governo pôde devolver, na forma de juros altos, o

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que os bancos haviam perdido com os ganhos de floating: exatos R$ 8 bilhões. "A política monetária centrada nas ta- xas elevadas de juro acabou se perpetu- ando, pois o bancos se tornaram im- portantes financiadores de campanhas eleitorais e, assim, interferem direta- mente na política econômica", diz. A re- ceita das instituições financeiras, desde 1994, triplicou por causa dos títulos da dívida. E sempre que a taxa Selic sobe esses títulos se valorizam mais.

"Quase a metade da receita dos bancos vem atualmente de investimen- tos nesses títulos, o que mostra como, em parte, os juros são mantidos altos para que os bancos continuem vivos", assegura o pesquisador. O lucro "fácil" vicia: é muito mais atrativo para os ban- cos alocar recursos para títulos da dívi- da, com boa rentabilidade e baixo risco, do que direcioná-los para crédito ao se- tor privado. "O governo pagou cerca de R$ 40 bilhões de juros no ano passado. A manutenção dessa política monetária pode levar o país a um caos inflacioná- rio", avisa Matias. O volume total de crédito do sistema financeiro nacional corresponde a apenas 24% do PIB (a

O PROJETO

Construção da autoridade monetária e democracia

MODALIDADE

Projeto Temático

COORDENADORA

LOURDES SOLA/USP

INVESTIMENTO R$ 476.600,00

demanda é por 100%), enquanto na Alemanha ele é de 164%. Como rom- per essa delicada relação entre credor (bancos) e devedor (Tesouro)? O Esta- do está com os cofres tão comprometi- dos com a dívida interna, cada vez mai- or por culpa dos juros, que não lhe sobra dinheiro para investir mesmo nas áreas sociais.

"Esse modelo vai conduzir os pró- prios bancos à insolvência de longo prazo, por não possuírem volume de crédito para operar e seus custos estru- turais serem os maiores do mundo, o que torna a manutenção do modelo

"ÜBLICAFl

arriscada e com tendência a criar de- pendência", observa o autor. Segundo Matias, é preciso que haja uma política expansionista do crédito, com a redução dos compulsórios (dinheiro que os ban- cos são obrigados a estocar no BC) do setor bancário, lenta e gradual, até por- que não seria possível corrigir em cur- to prazo uma anomalia de duas déca- das. "Com a expansão do crédito, os juros caem, os spreads (a diferença en- tre o que o banco paga ao aplicador para captar um recurso e o quanto o banco cobrará para emprestar esse mesmo di- nheiro) caem, há um ajuste na rentabi- lidade bancária, o setor produtivo tem expansão por demanda interna, au- mentam as importações, há uma desva- lorização da moeda, crescem as expor- tações, aumenta o emprego e a renda melhora sua distribuição", explica. "O Brasil está amarrado nos juros." Mas há luz no fim do túnel. "Historicamente, os governos aumentam a Selic fora de pe- ríodo eleitoral e a diminuem em véspe- ra de eleição. Podemos aguardar uma redução a partir do Natal", avisa. •

CARLOS HAAG

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I HUMANIDADES

Esboço de decoração de varanda para a coroação de d. Pedro II (1840)

CULTURA

O belo dos

trópicos O esforço de Manuel Araújo Porto-Alegre para civilizar a nação com cultura

RENATA SARAIVA

ü intor, arquiteto, escultor, urbanista, pensador da cultura, dramaturgo, jornalista, crítico e historia- dor da arte. Cada uma das muitas facetas da intensa produção de Manuel de Araújo Porto-

_^H__ Alegre (1806-1879), figura central do Império brasileiro, já foi abordada em trabalhos específi-

cos desenvolvidos por diferentes pesquisadores. Uma nova pesquisa pretende demonstrar como, por meio do levantamento da extensa do- cumentação deixada por Porto-Alegre nessas áreas, é possível encon- trar, nessa miríade de interesses, uma visão coesa da atuação desse ar- tista romântico, que acreditava em um projeto civilizador para o Brasil por meio das artes, sobretudo das artes visuais. A tese, defendida por Letícia Squeff no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, sai agora em livro, O Brasil nas le- tras de um pintor, da Editora da Unicamp (277 páginas, R$ 39,50), com auxílio-publicação da FAPESP.

"Além de apresentar uma visão não segmentada sobre a produção de Porto-Alegre, eu quis mostrar justamente que, por ter atuado em tão diferentes áreas, ele conseguiu espraiar seu projeto de nação nesses campos", explica Letícia. Para dar conta da extensa atividade do artis- ta, a pesquisadora trabalhou sobre documentos encontrados em im- portantes arquivos do Rio de Janeiro, como o Arquivo Histórico Nacio- nal, os arquivos do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB), o Arquivo D. João VI, da Escola Nacional de Belas Artes, e o Arquivo do Museu Imperial, de Petrópolis. Nesse último, encontrou alguns do- cumentos pouco conhecidos, como o álbum de memórias que per-

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Alegorias clássicas, parte da decoração de varanda para a coroação do imperador

tenceu à esposa de Porto-Alegre, dona Paulina Delamare Porto-Alegre, a ba- ronesa de Santo Ângelo. Como era cos- tume às senhoras das personalidades proeminentes do Império, a baronesa colecionou cartas, desenhos, pinturas e documentos que mostravam a impor- tância de Porto-Alegre para a sociedade imperial desde o seu casamento (1838) até sua morte (1883). Entre os documen- tos, registros de exercícios de caligrafia do imperador e suas irmãs, versos de Gonçalves Dias e Gonçalves de Maga- lhães, cartas de Debret, d. João VI e ou- tros. Membro da chamada primeira ge- ração romântica, da qual fizeram parte também seus grandes amigos Sales Tor- res Homem e Domingos José Gonçalves Magalhães, Porto-Alegre apostava na cultura e na arte como formas de carac- terizar o país que acabara de nascer com a independência, em 1822.

Para ele, as atividades artísticas, as- sim como a cultura e a ilustração, pro- duziriam efeitos fundamentais para a sociedade imperial, descolando-a de vez

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Paisagem ideal (1850), aquarela sobre papel

de um certo obscurantismo do passado colonial. "Não restam dúvidas de que esse era um projeto consciente, que Por- to-Alegre quis colocar em prática em toda a sua produção literária e artística", comenta a pesquisadora. O trio român- tico fundou importantes publicações que serviram de veículos para essas idéias, por meio de artigos científicos, filosófi- cos, históricos e sobre as artes. Foram os casos de Nitheroy: Revista Brasilien- se de Ciências, Letras e Artes (1836), Mi- nerva Brasiliense: Jornal de Ciências, Le- tras e Artes (1843-1845) e, finalmente, Guanabara: Revista Mensal Artística, Científica e Literária (1849-1856), que se tornou uma espécie de "diário ofi- cial do Romantismo".

Além da atividade jornalística, Porto- Alegre produziu literatura e dramatur- gia, tendo algumas de suas peças, como Os lavemos (1863), sido responsáveis por críticas ferinas à sociedade imperial. Nessa, por exemplo, abordava temas co- mo o casamento por dinheiro, a cobi- ça pelo luxo e outros. O fato revela uma aparente contradição, pois, em diver- sos campos e momentos, Porto-Alegre exaltou o Império, tendo feito parte até de um grupo de áulicos em torno de

Pedro II - para este, entre outras coisas, projetou, como arquiteto e artista, a va- randa e as roupas usadas pelo monarca durante a cerimônia de sagração do jo- vem imperador. "Essa é apenas uma das contradições que acompanharam a vida de Porto-Alegre", afirma Letícia. "Toda a geração dele viveu essas con- tradições, pois eles foram à Europa bus- car referências culturais e tiveram de relacionar tudo isso com o que estava do outro lado do Atlântico: uma nação criada há pouco tempo, uma monar- quia encravada nos trópicos."

Contradições - A autora destaca a cria- tividade com que Araújo Porto-Alegre incorporou os valores europeus ao pas- sado colonial brasileiro. "Ele foi o pri- meiro a indicar a importância dos es- cravos para a compreensão da cultura brasileira, expediente tão útil aos mo- dernistas posteriormente", comenta. Outras contradições de Porto-Alegre foram o tom marcadamente realista de suas peças - sendo ele um romântico -, assim como o humor que emprestou a publicações como Lanterna Mágica: Periódico Plástico Filosófico (1845) - consta que Porto-Alegre era um sujeito

sério, até sisudo. Discípulo de Jean- Baptiste Debret, com quem viajou à Europa pela primeira vez em 1831, Porto-Alegre chegou ao Rio de Janeiro ainda no Primeiro Reinado, vindo da Província do Rio Grande do Sul. For- mado na primeira turma da Academia Imperial de Belas Artes (Aiba) - que di- rigiu anos mais tarde -, fixou-se no Im- pério, como pintor, embora desde cedo tenha participado de reuniões que dis- cutiam política e funcionavam também como verdadeiros saraus literários. Além da forte amizade, há indícios de que Porto-Alegre e Debret tenham desen- volvido uma relação de filiação, tendo o primeiro perdido o pai e, o segundo, o filho. "Em Paris, vendo as dificulda- des financeiras de Porto-Alegre, De- bret conseguiu fazer com que o jovem estudasse com seu irmão arquiteto gra- tuitamente", conta Letícia.

Tendo retratado o imperador d. Pe- dro I em 1830, Porto-Alegre foi nomea- do, em 1840, logo após a maioridade de d. Pedro II, pintor da Imperial Câmara. Nos movimentados anos que se segui- ram à proclamação da maioridade, mar- cados por grandes reformas, festas e pe- la fundação de diversas instituições, ele

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Interior de floresta (1850), aquarela sobre papel

praticamente dominou, sozinho, todas as iniciativas que incluíam, para sua exe- cução, as chamadas "belas-artes". Fez a decoração das núpcias imperiais, em 1843, além de ter recebido a encomen- da de cuidar da decoração interna do palácio de Petrópolis. Também se preo- cupou com a cidade do Rio de Janeiro, que, acreditava, devia servir de cenário à nova sociedade que se consolidava.

Tal era a confiança do imperador em Porto-Alegre que quando este se tornou diretor da Aiba, em 1854, o monarca lhe deu apoio político e financeiro in- condicional para que ele implementas- se a mais importante reforma vivida pela academia no período monárquico. Com os 5 contos de réis anuais dispo- níveis para reestruturá-la, Porto-Ale- gre reformou o edifício internamente, acrescentando o segundo andar e cons- truindo instalações para a pinacoteca e para a biblioteca especializada. Também elaborou para a instituição novos esta- tutos, que abordavam minuciosamente uma ampla gama de aspectos: o con- teúdo das disciplinas; as atribuições de todos os profissionais da instituição, desde o diretor, passando pelos profes- sores e pelo conservador da pinacoteca,

até o porteiro e o guarda; os dias letivos e a quantidade de feriados; as exposi- ções públicas, as premiações e o pensio- nato na Europa; a freqüência dos alu- nos e a punição por indisciplina.

Desenho - As novas regras aperfeiçoa- ram algumas disciplinas da Aiba, que até então estavam mal estruturadas. Além das cadeiras já existentes - ar- quitetura, escultura, pintura, gravura, desenho, paisagem e anatomia -, foram criadas aulas de desenho geométrico, desenho de ornatos, matemáticas apli- cadas e história das belas-artes. Nesse último campo também Porto-Alegre desempenhou papel fundamental. Por causa de seus escritos para o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e de críticas escritas para os periódicos ca- riocas, é considerado o fundador da história e da crítica de arte nacionais. "Porto-Alegre foi o primeiro a introdu- zir no Brasil a noção romântica de ar- tista. Até então, os que produziam as artes visuais não eram considerados em sua individualidade", explica Letícia.

Embora não fosse um pintor exímio - há consenso sobre a superioridade de seus desenhos -, Porto-Alegre defendia

que as artes visuais podiam legitimar os interesses do Império. "Ele insistia no apoio do imperador aos pintores, pois eles eram capazes de sintetizar, plastica- mente, o Império. A importância de Por- to-Alegre na cultura brasileira do século 19 é exatamente essa: ele destacou o sig- nificado de uma cultura figurativa para a consolidação do Estado monárquico e seus valores mais caros", enfatiza Letícia. Também pesava a influência do mestre Debret nas preferências pelos valores clássicos. "Porto-Alegre deixou para seus contemporâneos e para a posteridade a noção de monumento nacional", com- plementa a pesquisadora. "Foi ele quem encaminhou ao governo a primeira pro- posta de realização da estátua de d. Pe- dro I, que resultaria na enorme escultu- ra Estátua eqüestre de d. Pedro I (1862)." Daí a hipótese de ter sido grande a in- fluência de Porto-Alegre sobre seu genro, Pedro Américo, que produziu a imensa e famosa tela Independência ou morte.

Monumentalidade que não se refle- tiu na vida de Porto-Alegre. Os títulos que as boas relações com o Imperador lhe renderam não se traduziram em re- cursos e ele morreu pobre, sem deixar haveres para a família. •

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HUMANIDADES

ARQUITETURA

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A escola que fez a cidade Livro dimensiona importância da Politécnica na São Paulo do começo do século 20

GONçALO JúNIOR

O que aconteceu com São Paulo na virada do século 20 foi, certamen- te, um fenômeno único na histó- ria do Brasil. Nunca uma cidade cresceu, industrializou e se moder- nizou em tão pouco tempo. Para

ter uma idéia, entre 1895 e 1900, sua população quase dobrou. Passou de 130 mil habitantes (71 mil estrangeiros) para preci- sos 239.820. Nesse período, os bondes se ramificaram para inte- grar os bairros com o Centro e foram erguidos os reservatórios de água e instalada a iluminação a gás - novidades que acom- panharam o estabelecimentode grandes indústrias. No rápido processo de urbanização, Brás e Lapa se tornaram bairros ope- rários e a região do Bexiga foi ocupada por imigrantes italianos.

Surgiram, então, as duas mais importantes realizações urba- nísticas do final do século: a abertura da avenida Paulista (1891) e a construção do Viaduto do Chá (1892). A primeira fez nas- cer áreas arborizadas, elevadas e arejadas pelos palacetes dos grandes cafeicultores. A outra, mediante pagamento de pedágio, ligava o "centro velho" à "cidade nova", formada pela rua Barão de Itapetininga, 7 de Abril e redondezas. Em 1901 começou a funcionar a nova estação da São Paulo Railway, mais conhecida por Estação da Luz. Trens, eletricidade, telefone e automóvel es- tabeleceram necessidades numa cidade que se agigantava. Fo- ram precisos, portanto, melhoramentos urbanos, como calça- mento, praças, viadutos, parques e os primeiros arranha-céus, que dividiram espaço com escritórios e lojas sofisticadas.

Com tanta efervescência, fica difícil imaginar como seria a capital paulista se não tivesse surgido o curso de engenheiro-ar- quiteto da Escola de Engenharia Politécnica em 1894. Criada para se tornar uma excelência, com vagas cobiçadas pelos filhos das fa- mílias mais ricas da cidade, a Poli estabeleceu um modelo de ar-

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quitetura racionalista, focada na excelência da construção e na preocupação com a qua- lidade. Não seria exagero afirmar que esco- la e cidade nasceram praticamente juntas.

A Poli se tornou pioneira no ensino de resistência de materiais e sempre esteve atenta aos mais modernos movimentos da arquitetura mundial. De seus quadros se destacaram nomes que hoje batizam ruas, praças e avenidas bem conhecidas: Fran- cisco de Paula Ramos de Azevedo (lecio- nou de 1894 a 1928), Victor Dubugras (1894 a 1927), Alexandre Albuquerque (1917 a 1940), João Batista Vilanova Arti- gas (1940 a 1954), Luiz Ignácio de Anhaia Mello (1918 a 1954) e Francisco Prestes Maia (1924 a 1938), entre outros.

Transformações - Toda essa rica e impor- tante história e as biografias de mais de uma centena de seus ilustres mestres e formados são contadas num livro funda- mental não apenas para estudantes, pes- quisadores e professores de arquitetura, engenharia e urbanismo. Os arquitetos da Poli - ensino e profissão em São Paulo, de Sylvia Ficher, que acaba de sair numa edi- ção luxuosa e fartamente ilustrada pela Edusp, é um rico e fascinante painel da vida social, cultural e econômica da ca- pital paulista a partir da história da Poli.

A autora resgata a formação do ensi- no de uma outra arquitetura, combinada com engenharia, no sentido tradicional, dos tempos da eletrônica e da mecânica, bem distante das transformações. Arqui- tetura, então, era a construção de casas e prédios; engenharia civil, saneamento e pavimentação.

Formada arquiteta pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, mestre pela Universidade de Columbia (Nova York) e doutora pelo Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, atualmente Sylvia é professora da Uni- versidade de Brasília. "Não estava interes- sada em estudar obras como edifícios e prédios públicos, mas em saber como era o ensino nas primeiras décadas do século 20, o que pensavam seus mestres e os pro- fissionais que formou. Resgatei nomes im- portantes esquecidos." Como o ex-prefei- to Prestes Maia, que governou a cidade por duas vezes nas décadas de 1940 e 1950. Conhecido como urbanista, ele es- tudou arquitetura e Sylvia acredita que isso foi fundamental para a execução de seu plano para remodelar a cidade. Ela

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descobriu que não havia um único es tudo acadêmico sobre o ex-prefeito.

Com preciosismo, a autora esmiu- çou 50 anos de educação, ao mesmo tempo que investigou a carreira, as peculiaridades e a relevância de 129 profissionais que participa- ram ativamente da construção de São Paulo. O livro ajuda a compreender como arquite- tura, engenharia e urbanis- mo contribuíram para fa- zer da capital paulista uma metrópole e o mais importante centro industrial do país.

Sylvia conta que, com o crescimen- to de São Paulo como pólo agrícola ex- portador, surgiu o "negócio da cons- trução". Foram construídas estradas de ferro e de rodagem, iluminação e pavi- mentação urbanas, obras de saneamen- to e construção de redes de água e esgo- to, edifícios públicos, além da demanda constante de edificações particulares. Um processo implacável "da força que ergue e destrói coisas belas", como des- creveu Caetano Veloso. Na busca pelo moderno e pela suntuosidade, obras fo- ram demolidas e reerguidas muitas ve- zes na primeira metade do século.

Poli foi fundamental num período em que o cresci- mento econômico do esta- do refletiu especialmente na capital. A expansão física ganhou impor-

tância para acompanhar a moderniza- ção das instâncias administrativas e dos equipamentos urbanos impostos pela industrialização. Um nível de comple- xidade espetacular. Para acompanhar os novos tempos e formar profissionais à altura, a escola procurou se consoli- dar com freqüentes e importantes mu- danças em seu regulamento de ensino.

Segunda escola de formação superior paulista, a instituição nasceu da contri- buição financeira da elite paulista co- mo exemplo de sua autonomia diante do governo federal. Tanto que, diz a au- tora, havia em si um propósito de pre- servar e ampliar a hegemonia política e econômica do estado, a formação de uma intelectualidade orgânica e a reno-

vação de seus quadros para negócios públicos e privados. Tornou-se um pro- duto e um agente do desenvolvimento. Em suas salas passaram notáveis que construíram obras importantes, como o Teatro Municipal, a Catedral de São Paulo, o Liceu de Artes e Ofícios (atual Pinacoteca), a Companhia Docas de Santos, o Palácio da Justiça, entre mui- tas outras.

Para a autora, a Poli começou da mesma forma que permanece até hoje: uma instituição de elite, principalmen- te pela excelência e qualidade de seu ensino. Nesse sentido destacou-se a fi- gura de seu fundador, Paula Souza, há- bil em conseguir recursos públicos para consolidar a instituição. Logo se encai- xou numa tendência européia de ensi- no, de forte influência germânica. Sua tradição sofisticada, ao mesmo tempo, apoiou-se numa base filosófica em cer- to sentido positivista.

Sylvia também resgatou a história do curso de engenheiro-arquiteto da Escola de Engenharia Mackenzie, ofe- recido de 1917 a 1946, e o curso de ar- quiteto da Escola de Belas Artes de São Paulo, criado por volta de 1928 e exis- tindo até 1934. •

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RESENHA

Um tour de force erudito Clássico sobre jesuítas está de volta

PEDRO PUNTONI

Por 18 anos, entre 1932 e 1950, o pa- dre Serafim Leite

(1890-1969) escreveu sua História da Compa- nhia de Jesus no Brasil. Nascido em Portugal, o historiador veio para o Brasil ainda rapaz, aos 15 anos, onde entrou pa- ra a Companhia. Por in- dicação do provincial, envolveu-se na escrita da sua história. Em dez volumes, mais de 5 mil pági- nas, desfia-se a crônica da presença dos jesuítas no Brasil, desde a chegada de Manuel da Nóbrega, nas naus que trouxeram o primeiro governador- geral, Tome de Souza, em 1549, até o ano de 1759, data da expulsão definitiva da ordem das colônias portuguesas na América.

Apesar de fundamentada em rigorosa pesqui- sa documental e em impressionante erudição, muito tem se alertado para as limitações resul- tantes na obra em razão do engajamento eviden- te de seu autor. A História da Companhia de Jesus no Brasil foi escrita tendo por base quase que ape- nas os documentos da própria ordem religiosa, o que lhe limita o alcance interpretativo. Mais ain- da, em razão da posição de seu autor, mantém um formidável e confesso sentido apologético. Ao longo destes dez volumes, Serafim Leite aborda a história da Companhia nas suas mais diversas di- mensões, sempre para louvar e escusar seus cole- gas jesuítas. Os tomos I e II nos contam o estabe- lecimento da ordem e sua obra no século 16. Do tomo III ao VI, relata a catequese, a atividade nos aldeamentos, as realizações intelectuais dos mis- sionários durante os séculos 17 e 18. O recorte é espacial, sendo cada capitania tratada em capí- tulos específicos. O tomo VII trata de alguns as- pectos mais gerais dos governos da província e do magistério nestes dois séculos. Por fim, os tomos VIII e IX trazem, em "suplemento biobibliográfi- co", um levantamento minucioso dos escritores jesuítas do Brasil, com informações sobre suas vi- das e indicações exaustivas de seus textos, impres- sos ou não. O último tomo traz os índices e su- mários, exaustivos e muito eficientes. Como se vê, obra de uma vida.

A História da Companhia de Jesus no Brasil

Pe. Serafim Leite, SJ

Editora Loyola 2.212 páginas, quatro volumes / R$ 1.400,00

Patrocínio: Petrobras

Foram precisos mais de meio século para que al- guém se interessasse na ree- dição desta obra funda- mental. Com efeito, por iniciativa da própria Com- panhia, sua História sai ago- ra, revisada e ampliada, em quatro volumes, num total de 2.212 páginas, acompa- nhada de um CD-ROM que inclui os mapas, desenhos, cartas e plantas da primeira

edição. O coordenador da reedição é o Pe. César Augusto dos Santos, vice-postulador da causa de canonização de Anchieta (aquele que foi autor do hoje esquecido poema indianista De Gestis Mendi de Sa). Como na primeira, esta sai com o apoio do governo, ou melhor, da Petrobras. Pelo que consta, foi ampliada em mais de 140 fotografias, resultado da pesquisa laboriosa do fotógrafo e artista plásti- co David Dalmau. Para além do que cabe ao inte- resse da própria Companhia, é fato que o apoio é mais que justificado, uma vez que esta reedição é sem dúvida um grande serviço aos estudos his- tóricos. A História de Serafim Leite é um esforço ímpar de erudição, uma fonte de informações, al- gumas delas ainda exclusivas aos membros da or- dem que puderam ter acesso aos documentos de forma integral. Não obstante seu tom apologético, muito há nessas imensas páginas que nos permite melhor compreender a sociedade, a cultura, a vi- da, enfim, do Brasil nos tempos da colonização.

O que significa, porém, uma edição "ampliada e revista"? Cabe o julgamento a quem pôde folhear um exemplar. O que não foi o meu caso e me colo- ca na bizarra situação de resenhar uma obra sem poder vê-la. Triste é notar que, como a primeira edição, o livro continuará tão raro e de tão difícil acesso. Para o nosso espanto, apesar do apoio fi- nanceiro, o preço desta edição ficou um pouco sal- gado, para não dizer impeditivo: R$ 1.400,00. Bem, espero que, ao menos, alguns exemplares acabem nas bibliotecas públicas (Dos 1300 exemplares da edição, 750 serão doados, principalmente para bi- bliotecas públicas e universitárias).

PEDRO PUNTONI é professor de história do Brasil da USP e pesquisador do Cebrap.

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LIVROS

Ser nobre na colônia Maria Beatriz Nizza da Silva Editora Unesp 344 páginas, R$ 54,00

Não faltam estudos sobre a divisão entre senhores e escravos, mas esta obra traz a novidade de oferecer uma visão mais ampla do tecido

social do Brasil Colônia ao mostrar como era a vida dos "nobres". Assim, além da classe dos escravos, somos apresentados ao extrato dos "mecânicos" (trabalhos manuais) em oposição aos nobres, às diferenças entre ser um nobre brasileiro (havia maior mobilidade na colônia) e um emigrado da metrópole, com menores chances de ascensão.

Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br

Escrituras da imagem Sylvia Caiuby Novaes (org.) Edusp/FAPESP 224 páginas, R$ 32,00

Uma importante coletânea de artigos que mostram a importância da imagem nas ciências sociais, em geral associada apenas à palavra

escrita. O que os autores propõem é uma espécie de mergulho etnográfico nas imagens, mostrando o quanto se pode descobrir de novo em tudo o que nos cerca de forma familiar. São artigos sobre cinema, ensaios sobre fotografia que dialogam com as imagens e, por fim, artigos de pesquisadores sobre a produção visual. Edusp (11) 3091-4006 www.edusp.com.br

Simplesmente Einstein Richard Wolfson Editora Globo 328 páginas, R$ 45,00

No centenário da publicação de suas teses mais importantes, Einstein ganha um estudo sério e, ao mesmo tempo, acessível, mostrando, como o próprio

cientista gostava de dizer, que a relatividade está calcada em poucas idéias simples, que nos fascinam exatamente por ferir o nosso senso comum. Wolfson usa experiências cotidianas do leitor para levá-lo a uma viagem aprofundada pelo pensamento einsteniano ao longo de 16 capítulos que põem nossos conceitos em xeque.

Editora Globo (11) 3767-7400 www.globolivros.com.br

w I 0 design brasileiro antes do design: aspectos da história gráfica, 1870-1960 Rafael Cardoso (org.) Cosac Naify 360 páginas, R$ 59,00

Primeiro volume que pretende preencher uma lacuna séria na historiografia do design nacional, este volume dá conta da produção do design visual em seus primórdios, entre 1870 e 1960, dos rótulos e propagandas do século 19 até das capas e projetos de revistas e discos. São nove ensaios que mostram como se desenvolveram os produtos, as técnicas e os profissionais do período.

Cosac Naify (11) 3218-1444 www.cosanaify.com.br

0 jogo do belo e do feio José Arthur Giannotti Companhia das Letras 200 páginas, R$ 39,00

Após décadas de renome como um estudioso e crítico do pensamento marxista, o filósofo da USP muda radicalmente de tema para atacar,

com a mesma paixão de suas leituras anteriores, a pintura e, logo, as belas-artes. Reunindo filosofia, em especial Wittgenstein (de onde traz as noções de jogo de linguagem e linguagem não-verbal), Giannotti discute obras de Picasso, Rembrandt, Magritte, apresentando uma nova visão da linguagem pictórica e de suas chances de autonomia. Companhia das Letras (11) 3707-3500 www.companhiadasletras.com.br

SímboloeAlegoria

nietzsche

Oi «. JU

Símbolo e alegoria Anna Hartmann Cavalcanti Annablume/FAPESP 310 páginas, R$ 45,00

Fruto de um trabalho minucioso de pesquisa, apoiado pela FAPESP, Anna Hartmann analisa a concepção de linguagem elaborada pelo filósofo

alemão Friedrich Nietzsche nos seus primeiros anos de trabalho. Ao dissecar os conceitos elaborados por Nietzsche, em especial os conceitos de símbolo e alegoria, a autora mostra como esses estudos pioneiros foram fundamentais para que o filósofo engendrasse a sua obra mais importante, O nascimento da tragédia.

Editora Annablume (11) 3031-9777 www.annablume.com.br

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Um herdeiro de Gobineau nos trópicos

RODRIGO GURGEL

Nota: O texto abaixo, sem assinatura, encontrei-o em uma página arrancada, provavelmente, de um diário. O autor possuía - ou ainda possui - uma caligrafia miúda, feminina, com o "a" final das pa- lavras terminando em certa linha que se alonga e, pouco antes do fim, desenha uma curva suave. A tinta azul da caneta cria um contraste antigo com o amarelecido do papel sem pauta. A folha esta- va dobrada ao meio, de comprido, marcando o capítulo de uma obra, editada no alfabeto gótico ale- mão, do filósofo Alfred Rosenberg. Descobri o livro em uma das pilhas de alfarrábios espalhadas pelo sebo do velho Gazzeau, que fechou suas portas há muitos anos. Furtivamente, escondi a folha no bol- so do paletó e joguei o volume a um canto. E, desde então, tenho refletido sobre o seu conteúdo.

Repito hoje, passados três dias, o hábito de todas as noites: sento-me à mesa de trabalho em minha biblioteca e abro este caderno. A noite silenciosa parece ainda mais espessa. E o si- lêncio que circunda a casa, sempre tão acolhedor, me restringe, me fere. Todos os esforços

que empreendi nos últimos meses resultaram inúteis, e mesmo as duas entrevistas com o reitor não surtiram qualquer efeito, o que significa que meu projeto está arquivado.

Na verdade, nada tenho a reclamar. Depois que, há dois anos, fui preterido para ocupar a cá- tedra de Antropologia Social, esse tipo de reação não deveria me surpreender.

A minha frente, no nicho entre as estantes, um pequeno foco de luz ilumina o retrato do car- deal Ippolito de Mediei, pintado por Tiziano Vecellio. Ippolito... Lembro-me da primeira vez em que o vi. Estávamos no palácio Pitti, em Florença, e meu pai segurava minha mão, dando-me au- las de história com a voz tonitruante que sempre me assustou. Lá estava o retrato, ao lado de um outro, talvez de Felipe II. Mas Ippolito, robusto, a composição sólida, o fundo escuro que faz a fi- gura emergir do breu como se escapasse do torpor da morte, e suas mãos segurando firmemen- te o pique e a espada, e seu olhar, soberbo e altivo, desdenhoso e arrogante, seu olhar que me fas- cina, sobranceando o belo nariz levemente aquilino, e a barba, negra e aparada, a ressaltar o rosto agressivo, tudo nele me abalou de tal maneira que, naquela noite, para desespero de minha mãe, fui devorado pela febre, enquanto sonhava que Ippolito vinha ficar ao meu lado, na cama, tocan- do-me com seus dedos grossos, semelhantes aos de meu pai. Ele não sorria, devorando-me com o olhar enigmático, mantendo a sobrancelha esquerda erguida. Quantos anos eu teria? Treze? Ca- torze? Implorei para que retornássemos ao museu, cheguei mesmo a chorar, mas minhas súpli- cas não foram ouvidas. Logo a seguir viajamos para Roma, e com o final das férias obrigaram- me a retornar ao colégio interno na Suíça. Antes, contudo, pedi a mamãe que me comprasse um lindo volume sobre Tiziano, no qual eu reencontrara Ippolito ocupando uma página inteira.

Os anos passaram e, sempre que posso, retorno ao Pitti. Mas desde que me estabeleci no Bra- sil, nesta propriedade que pertence à minha família há gerações, encomendei a um famoso falsi- ficador londrino esta cópia que vela por mim enquanto escrevo, leio ou preparo minhas aulas.

No entanto, depois do que aconteceu esta semana, não sei por quanto tempo continuarei aceitando humilhações na universidade. Quando defendi o doutorado, parte da banca repudiou minha tese, classificando-a como "retrógrada", enquanto, à boca pequena, chamavam-me de "ra- cista". Foi o preço que paguei por minha lucidez e por tentar reviver Gobineau...

Ignorantes! Acham que conhecem tudo apenas por terem lido meia dúzia de panfletos es- querdistas! Mas se esquecem que a Antropologia deve ser uma ciência viva, dedicada a estudar

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o homem em seus diferentes hábitats e, principalmente, mostrar aos que se distanciaram da barbárie o que os aguarda se, movidos por seus erros, involuírem. Já lhes repeti centenas de ve- zes: é urgente redimensionar o conceito de raça, adaptá-lo a uma concepção realista de mundo, despojada de todo idealismo, e aceitar a hierarquia dos grupos sociais. É impossível escamotear a realidade!

Mas não desistirei. Não me concedem o terreno no campus7. Engavetam meu projeto?! Pois ele nascerá aqui mesmo, nesta propriedade! Todos saberão, na prática, como o Essai sur 1'inega- lité des races humaines ainda é uma obra capaz de abrir os olhos da humanidade. E o que a aca- demia me nega, dar nova vida aos projetos de Geoffroy de Saint-Hilaire, farei em proporções ja- mais imaginadas! Reviverei as antigas exposições etnográficas, apresentando os grupos sociais exóticos em ambientes reconstituídos meticulosamente, permitindo que os espécimens copulem e procriem. Aqui, as crianças e os jovens aprenderão as razões de muitos animais humanos con- tinuarem acorrentados a um mundo primitivo. E quando o projeto estiver em funcionamento, com centenas de visitantes diários, convencerei o governo da necessidade de realizarmos a segun- da etapa: de um lado, aperfeiçoarmos as qualidades hereditárias, e, de outro, fazermos os espéci- mens abandonarem suas culturas obsoletas.

Não, não será um "zoológico humano", como me disse hoje, com cinismo, o reitor, mas uma convocação ao novo mundo, à nova era, à purificação da espécie!

Meu jovem criado palestino acaba de trazer o chá. Ele tem os olhos belos e resignados, é adoravelmente servil, e agradece-me todos os dias por tê-lo trazido de minha última viagem ao Oriente Médio. Estranhou um pouco a família de hutus que tenho treinado para os serviços pesados na propriedade, mas, apesar de não conseguirem conversar, estabeleceram uma relação amistosa, o que me alegra.

Ah, Ippolito, um dia meu esquife também será carregado por homens que se lamentam nas mais diferentes línguas, chorando aos seus deuses pela minha alma incompreendida. Não, não serão arqueiros tártaros ou mergulhadores indianos, mas talvez guerreiros maoris, cujos rostos tatuados expressem a dor de perder aquele que os salvou da ignorância. Ou, quem sabe, cava- leiros da estepe mongol vestidos de azul e dourado. Qual deles você preferiria?... Ah!, Ippolito!, meu corpo treme, minhas mãos suam! O meu sonho, confesso, é um jovem sambia, adoravel- mente molestado pelos ritos de passagem daquele povo da Nova Guiné. Mas enquanto esse tro- féu não chega, fico com esta criança, sentada no chão, com a cabeça recostada em meu joelho. Para comprá-la, tive de subornar quatro funcionários da Funai. Mas se você estivesse aqui para vê-la! Que pureza de olhar! Que fragilidade de gestos! Ela chegou com as mãos ainda machu- cadas pelas formigas tucandeiras. Segundo um dos funcionários, coronel aposentado do Exér- cito, este menino não suportou o rito de passagem de sua tribo, os Saterés-Maués, e seria rele- gado à condição de meio homem. Ora... Se deve ser assim, Ippolito, que ele seja, então, quase uma fêmea, mas aqui, sob os nossos cuidados, conhecendo o carinho que só homens civiliza- dos podem demonstrar...

RODRIGO GURGEL é escritor e editor efoi um dos dez ganhadores do Concurso de Contos "450 anos de São Paulo", promovido pelo jornal O Estado de S. Paulo em 2004.

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Concurso para professor titularFaculdade de Odontologia de Piracicaba

Departamento de Diagnoóstico OralÁrea: Cirurgia bucomaxilofacialInscrições: Até 11 de julhoDisciplinas: Pré-Clínica IV, Pré-Clínica IX, Pré-Clínica VI,Pré-Clínica XCargo: Professor titularInformações: Patrícia Aparecida Tomaz:[email protected] e (19) 3412-5204

Departamento Odonto-restauradoraÁrea: DentísticaInscrições: Até 11 de julhoDisciplinas: Clínica Odontológica Integrada I, ClínicaOdontológica Integrada II, Clínica OdontológicaIntegrada III, Clínica Odontológica Integrada IV, Pré-ClínicaII, Pré-Clínica VI, Pré-Clínica VII, Pré-Clínica XCargo: Professor titularInformações: Patrícia Aparecida Tomaz:[email protected] e (19) 3412-5204

~~~.,.UNICAMP

Vaga para professor titularFaculdade de Engenharia Elétrica

e de Computação, Departamento de Comunicações

Área: Área de Telecomunicações e TelemáticaInscrições: Até 10 de agostoDisciplinas: Sistemas de ComunicaçõesCargo: Professor titularMais informações: Ademilde Felix:[email protected] e (19) 3788-3865

98 • JUNHO DE 2005 • PESQUISA FAPESP 112

BOLSAS NA UEPB

A Universidade Estadual da Paraíba dispõe de bolsas do CNPqpara doutores na área de epidemiologia para atuar no mestra-do em saúde coletiva. O candidato receberá recursos para de-senvolver seu projeto de pesquisa. Havendo interesse, a institui-ção abrirá concurso para fixação do bolsista na instituição.

Informações: Maria Cardoso:[email protected] e (83) 8831-5422 e (83) 3252-2254

o coraçãoem boas mãosTratado de Cardiologia SOCESP.Uma obra de referênciapara os médicos cardiologistas.

Com 1.850 páginas, 156 capítulos escritos por 320especialistas, o livro abrange de forma profundae atualizada todos os aspectos de interessedo cardiologista. Anexo, acompanha um CO-ROMcom di retrizes sobre os assuntos tratados.

Um lançamentoda Sociedade de Cardiologiado Estado de São Paulo (Socesp)e da Editora Manole.rJt

[email protected]

Page 100: O homem de Capelinha

Papo cabeça àvenda

Conheça o que pensam alguns dos melhorespesquisadores e intelectuais brasileiros(e, de quebra, alguns cientistas do exterior)em textos reunidos em um único livro,Prazer em conhecer. A obra traz26 grandes entrevistas, originalmentepublicadas em edições de Pesquisa FAPESP,que compõem uma amostra do conhecimentoe das contribuições dadas à ciência e àcultura por eminentes professores e cientistas.

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HumanidadesPablo Rubén MaricondaLeopoldo De MeisMuniz SodréLeandro KonderAlfredo BosiJosé Arthur GiannottiIsmail XavierOtavio Frias FilhoRoberto Schwarz

Ciências biológicasCraig VenterBob WaterstonJosé Fernando PerezAndrew SimpsonAndré GoffeauWarwick Estevam KerrWalter GilbertCarlos Alfredo Iolve Vanderlei Perez CanhosChana MalogolowkinJoão Carlos SetúbalCarmen MartinIván IzquierdoFernando Reinach

COLEÇÃO Pe5qlJj,a

As entrevistasde Pesquisa FAPESP

ORGANIZADO POR

MARILUCE MOURA

.3APfSII Ü'NiEMP

Informações sobreonde encontrar o livro

(11) 3875-0154

FísicaJosé Leite LopesLuiz DavidovichMarcello DamyRoberto Salmeron

P Ciênciae Tecnologia. no Brasil

esqu Isa www.revistapesquisaJapesp.brFAPESP

pesquisa o Brasil

Page 101: O homem de Capelinha

Se você faz parte da comunidade médica ecientífica e tem interesse em compartilharexperiências e informações sobre as doençastropicais, já existe um espaço virtual que podetransformar esta conexão em mais um passopara solucionar o problema. TropiNet™ é umarede que pode conectar pesquisadores de todoBrasil envolvidos com o tema. Uma proposta deresponsabilidade social da Novartis que valorizao trabalho de profissionais como você.Acesse o site www.tropinet.org

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A conexãoentre as doençastropicais e seuspesquisadores.

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