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109 COMUNICAÇÕES • Piracicaba • Ano 21 • n. 3 • Edição especial • p. 109-123 • jul.-dez. 2014 • ISSN Impresso 0104-8481 • ISSN Eletrônico 2238-121X DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2238-121X/comunicacoes.v21n3p109-123 O IMPACTO DO ENEM NAS POLÍTICAS DE DEMOCRATIZAÇÃO DO ACESSO AO ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO The impact of Enem on the democratizing policies regarding the access to higher education in Brazil RUY DE DEUS MELLO NETO Universidade de São Paulo - USP [email protected] HUGO AUGUSTO VASCONCELO MEDEIROS Universidade Federal de Pernambuco - UFPE [email protected] FÁBIO DA SILVA PAIVA Universidade Federal de Pernambuco - UFPE [email protected] JOSÉ LUIS SIMÕES Universidade Federal de Pernambuco - UFPE [email protected] RESUMO Há, no discurso oficial acerca do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), uma ideia central que se destaca: o Enem é uma das principais ferramentas de democratização para o acesso ao ensino superior. Contudo, na contramão desta ideia, pululam críticas e contestações a respeito do Exame e de sua pretensa efetividade como instrumento de democratização. Com foco nos limites técnicos e políticos do Enem e do Sisu, os críticos contestam, dentre outras coisas, a transformação direta de resultados individuais em análises e processos sociais mais abrangentes – o que pode conduzir a estimativas equivocadas a respeito do Exame. Neste artigo, intentamos acrescentar um ponto de vista a este debate, a partir do seguinte questionamento: poderia ser o Enem, ao contrário de uma ferramenta de democratização, mais um elemento de exclusão, mais uma barreira a ser transposta pelos alunos? Para responder a tal pergunta é necessário perceber os limites e possibilidades do Enem/Sisu e das atuais medidas do governo federal para democratizar o acesso ao ensino superior. Para tanto, valemo-nos neste artigo das considerações de Celia Lessa Kerstenetzky sobre a tipologia das políticas públicas focalizadas, da análise dos fundamentos da escolha do Governo brasileiro por este tipo e formato de política pública e da observação dos microdados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), recortados, tendo em vista os fluxos dos alunos nos estados da Paraíba e Pernambuco. Palavras-chave: ENEM. DEMOCRATIZAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR. POLÍTICAS PÚBLICAS FOCALIZADAS.

O impactO dO EnEm nas pOlíticas dE dEmOcratizaçãO dO

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109ComuniCações • Piracicaba • Ano 21 • n. 3 • Edição especial • p. 109-123 • jul.-dez. 2014 • ISSN Impresso 0104-8481 • ISSN Eletrônico 2238-121X

DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2238-121X/comunicacoes.v21n3p109-123

O impactO dO EnEm nas pOlíticas dE dEmOcratizaçãO dO acEssO aO EnsinO supEriOr BrasilEirO

The impact of Enem on the democratizing policies regarding the access to higher education in Brazil

Ruy de deus Mello Neto Universidade de São Paulo - USP

[email protected]

Hugo Augusto VAscoNcelo MedeiRosUniversidade Federal de Pernambuco - UFPE

[email protected]

Fábio dA silVA PAiVAUniversidade Federal de Pernambuco - UFPE

[email protected]

José luis siMõesUniversidade Federal de Pernambuco - UFPE

[email protected]

ResuMo Há, no discurso oficial acerca do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), uma ideia central que se destaca: o Enem é uma das principais ferramentas de democratização para o acesso ao ensino superior. Contudo, na contramão desta ideia, pululam críticas e contestações a respeito do Exame e de sua pretensa efetividade como instrumento de democratização. Com foco nos limites técnicos e políticos do Enem e do Sisu, os críticos contestam, dentre outras coisas, a transformação direta de resultados individuais em análises e processos sociais mais abrangentes – o que pode conduzir a estimativas equivocadas a respeito do Exame. Neste artigo, intentamos acrescentar um ponto de vista a este debate, a partir do seguinte questionamento: poderia ser o Enem, ao contrário de uma ferramenta de democratização, mais um elemento de exclusão, mais uma barreira a ser transposta pelos alunos? Para responder a tal pergunta é necessário perceber os limites e possibilidades do Enem/Sisu e das atuais medidas do governo federal para democratizar o acesso ao ensino superior. Para tanto, valemo-nos neste artigo das considerações de Celia Lessa Kerstenetzky sobre a tipologia das políticas públicas focalizadas, da análise dos fundamentos da escolha do Governo brasileiro por este tipo e formato de política pública e da observação dos microdados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), recortados, tendo em vista os fluxos dos alunos nos estados da Paraíba e Pernambuco.palavras-chave: EnEm. DEmocratização Do Ensino supErior. políticas públicas focalizaDas.

ComuniCações • Piracicaba • Ano 21 • n. 3 • Edição especial • p. 109-123 • jul.-dez. 2014 • ISSN Impresso 0104-8481 • ISSN Eletrônico 2238-121XDOI: http://dx.doi.org/10.15600/2238-121X/comunicacoes.v21n3p109-123

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AbstRAct Brazilian government discourses about Enem highlight a main idea: Enem is an important tool to the democratization of the access to Higher Education. However, contra-ry to this idea, there are several criticisms and protests about the exam and its purported effectiveness as an instrument of democratization. With a focus on the technical and poli-tical limits of Enem and Sisu, critics contend, among other things, about the direct trans-formation of individual results in broader analyzes and social processes, which can lead to erroneous evaluations about the exam. In this paper we have made every effort to add a viewpoint to the debate based on the following question: Could Enem be another element of exclusion, another barrier to be overcome by the students, instead of being a democra-tic tool? To answer this question it is necessary to understand the limits and possibilities of Enem / Sisu and the current measures taken by the federal government to promote the democratization of the access to higher education. To this end, we make use of (1) Celia Lessa Kerstenetzky’s considerations about the typology of the focused public policies, (2) an analysis of the Brazilian Government’s basis for choosing these specific public policies, and (3) the observation of INEPs micro-data, considering the flow of students in the states of Paraíba and Pernambuco.Keywords: EnEm. DEmocratization of highEr EDucation. public policiEs.

iNtRodução

Em nota oficial publicada em seu site, no dia 15 de Setembro de 2011, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) defendeu que “[os] resultados [do Enem] têm sido utilizados também para a democratização do acesso à Educação Superior – (INEP, 2011a). Alguns anos depois, em entrevista ao programa “Café com a Presidenta”, no dia 14 de janeiro de 2013 (EBC, 2013), diante da pergunta “O Enem é mesmo muito im-portante para democratizar o acesso à educação superior, não é, presidenta?”, a presidenta Dilma afirmou que

Ah, é sim, Luciano. Veja você que a nota do Enem vale para o Sisu, para o ProUni e também, Luciano, para os vestibulares de muitas universidades pú-blicas. Vale também para o Ciência sem Fronteiras. Com o Sisu, por exemplo, o estudante pode tentar uma vaga em várias universidades ao mesmo tempo. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a Liliane de Oliveira, lá de Japeri, no Rio de Janeiro. A Liliane, ela queria muito estudar Ciência da Computação, mas ela não conseguiu passar no vestibular de uma universidade pública e a família dela não tinha como pagar uma universidade particular. Mas aí, Luciano, a Liliane ficou sabendo do Sisu e fez a inscrição para o curso que ela queria. Com a nota do Enem, a Liliane foi selecionada pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Isso aconteceu em 2010 e hoje ela já está no sexto semestre. O Sisu deu à Liliane a chance de concorrer a mais de uma vaga com uma única prova, que é o Enem. E, para quem fez o Ensino Médio em uma escola pública, como a Liliane, a inscrição para o Enem sai de graça. (grifos nossos)..

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Das duas afirmações, pode-se chegar à seguinte conclusão: ao instituir um exame voluntário e estruturado em competências e habilidades, o Enem resolveria problemas “in-dividualizados” – ligados a uma avaliação obrigatória e pautada na instrução mais que na educação, como ocorre com o vestibular –, e, ao ser colocado como ferramenta unificada de seleção, o Enem também seria um caminho para garantir a democratização do acesso ao ensino superior ao oferecer oportunidade de inscrição em diferentes programas sociais e em diferentes cursos e universidades.

Nesta esteira, em tese recém-defendida, Rodrigo Travitzki (2013) mostra que o Enem, a partir de 2009, quando foi reformulado e transformado em “Novo Enem�, ganhou ca-racterísticas e contornos de processo seletivo nacional. Passou a servir, ao mesmo tempo, como ferramenta de seleção às instituições públicas de ensino superior (Ipes) e também como instrumento de definição de participação em programas do governo federal (ProUni, Cotas Federais, Ciência sem Fronteiras etc.). O Enem tem potencial para diminuir as desi-gualdades de acesso ao ensino superior por meio da nacionalização das disputas por vagas, diminuição dos custos de deslocamento e seleção, e minimização do poder de treinamento dos cursinhos pré-vestibulares (especialmente das estruturas localmente situadas de treina-mento e aprovação).

Há autores, contudo, que contestam estas afirmações (CARNEIRO, 2012; PERONI, 2009; SOUSA, 2003, 2011). Eles expõem, dentre outras questões, que o Enem não con-tribui para identificar e resolver os problemas relacionados com as diferentes condições de “partida” dos indivíduos que a ele se submetem. Além disso, na sua forma de divulgar notas com “ranqueamento” (TRAVITZKI, 2013; LOPES; LÓPEZ, 2010), o Enem estimula a competição e, por conseguinte, o sentimento de satisfação nas escolas já bem alimenta-das no sistema – que continuariam com suas boas marcas – e de frustração – nas escolas e alunos que, partindo de condições muito mais deficitárias não conseguem reverter o quadro e, mesmo na nova metodologia, terminariam por ficar pelo caminho.

Assim, verifica-se que o Estado avaliador vem se expressando, sobretudo, a partir da promoção exacerbada da competição imposta às escolas, pela via das avaliações estandartizadas, exercendo forte pressão sobre as instituições esco-lares, com a predominância de um instrumentalismo mercantil que institui a supervalorização dos indicadores e dos resultados, em detrimento das especifi-cidades dos processos educativos nos variados contextos educacionais. (CAR-NEIRO, 2012, p. 219; grifo nosso).

Levando o apresentado em consideração, objetivamos neste artigo acrescentar outros pontos ao debate sobre o Enem e sobre a democratização do ensino a partir da discussão de uma visão particular sobre a questão: Poderia ser o Enem, ao contrário de uma ferramenta de democratização, mais um elemento de exclusão, mais uma barreira a ser transposta pe-los alunos? Na tentativa de responder tal pergunta, valemo-nos, inicialmente, da análise dos fundamentos da escolha do Governo brasileiro por este tipo de seleção; em seguida, dos microdados do Inep, recortados tendo em vista os fluxos dos alunos em relação ao exame;

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por fim, estabelecemos uma conclusão que busca pensar formas de dialogar com as limita-ções identificadas no exame.

Devemos destacar que este artigo parte de três premissas principais: 1) as políticas públicas em educação associam-se ao projeto de mundo e de ser humano do Governo e da sociedade em que se inserem (AZEVEDO, 2001); 2) as políticas públicas devem buscar uma justiça social espessa (KERSTENETZKY, 2006), próxima às formulações de Rawls (2003) sobre justiça como equidade, que, neste ponto específico, pode resumir-se assim: “para alocar com justiça os benefícios faz-se necessário saber com clareza quais são eles e quem tem, com justiça, a expectativa de recebê-los” (FELIPO, 1996, p. 89, grifo nosso); 3) apesar dos problemas apresentados, o Enem/Sisu é um importante marco para a reestru-turação do sistema de ingresso no ensino superior. Assim, nossos questionamentos partem de uma concordância com as ideias e princípios do Enem/Sisu e caminham justamente no sentido de discutir suas limitações e contribuir para sua melhoria.

eNeM e deMocRAtizAção do Acesso Ao eNsiNo suPeRioR: PRessuPostos FuN-dAMeNtAis

As recentes políticas de ação afirmativa focadas no acesso ao ensino superior das camadas da população historicamente não contempladas por esta modalidade de ensino ligam-se a um movimento mais amplo ocorrido em grande parte dos países emergentes, nos quais questões políticas e econômicas históricas impulsionaram o fortalecimento de políticas reparatórias. Neste cenário, a diversidade geralmente vem sendo assumida como um dos elementos de protagonismo na discussão sobre as funções atribuídas ao ensino su-perior (LAMONT; SILVA, 2009; FRANCIS; TANNURI-PIANTO, 2012; OLIVEN, 2012; SCHWARTZMAN; SILVA, 2012). Como corolário, com prevalência nos países cuja desi-gualdade educacional é naturalmente pautada em diferenças raciais, sociais e religiosas, a adoção de políticas de caráter afirmativo, especialmente no que se refere a diferenças das oportunidades de acesso, tornou-se bandeira recorrente na luta pela diversidade no ensino superior, colocando como missão central (missão cidadã e educacional) do sistema de edu-cação superior a promoção de igualdade de oportunidades (HURTADO, 2007).

A definição do público-alvo das políticas públicas passa a ocorrer com base na neces-sidade de correção de fluxo específico de cada país, de modo a evitar que a desigualdade horizontal de cada caso perpetue-se em um ciclo alimentado pela falta de medidas e polí-ticas corretivas (BROW; LANDER; STEWART, 2012). No caso brasileiro, as prioridades definidas pelo governo federal para suas políticas de ação afirmativa foram, primeiramente, facilitar o acesso de jovens1 concluintes do ensino médio em instituições públicas – ou bolsistas de instituições privadas – e jovens de baixa renda (abaixo de 1,5 salários mínimos

1 Neste artigo, trataremos dos sujeitos da pesquisa como “jovens”, por entendermos que o termo estudante não contempla a questão adequadamente, uma vez que “não estudantes” podem submeter-se ao Enem da mesma forma que “estudantes”.

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per capita) – e, em paralelo, o acesso dos jovens pardos, pretos e indígenas (PPI); e, por fim, o de pessoas com deficiência. Longe de ser encarado como terminativo, o processo de inclusão, nesta perspectiva, tem sido tratado como um primeiro passo no reconhecimento de que existe diferença entre grupos, estabelecendo, mesmo que de forma precária, a pos-sibilidade de acesso como fundamento primeiro (VEIGA-NETO, 2001).

Neste sentido, de acordo com a interpretação de Celia Lessa Kerstenetzky, estas polí-ticas ligam-se a uma visão espessa de justiça social, a qual busca garantir, não só a igual-dade formal, mas a “igualdade de oportunidades políticas (de participação dos processos de decisão coletiva cujos resultados afetam as chances individuais de realização), sociais (como o acesso à educação e à saúde) e econômicas (renda e riqueza)” (KERSTENETZKY, 2006, p. 566-567). No caso específico, enquadram-se as políticas presentes neste estudo na categoria de ações reparatórias focalizadas, com atenção voltada para a educação (foco maior) e a democratização do acesso (foco menor), as quais complementam políticas pú-blicas universais, tendo em vista garantir o

acesso que teria sido perdido como resultado de injustiças passadas, em virtude, por exemplo, de desiguais oportunidades de realização de gerações passadas que se transmitiram às presentes na perpetuação da desigualdade de recursos e capacidades. (KERSTENETZKY, 2006, p. 570-571).

No caso em tela, o governo brasileiro estruturou, a partir de 2007, um movimento mais geral de reforma e ampliação do ensino superior, com base no Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), cuja principal política de cunho universal para o ensino superior é o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni). Contudo, embora o Reuni tenha organizado e modulado as políticas públicas do ensino superior, antes dele já havia sido criada uma política de ação afirmativa focalizada que visava facilitar a participação no ensino superior de jovens de baixa renda, com de-ficiência e/ou oriundos de escolas públicas: o ProUni, focado no ensino superior privado, foi criado pela Lei nº 11.096 de 13 de janeiro de 2005,2 com oferta de bolsas em cursos de instituições privadas (LIMA, 2011; OLIVEN, 2012). Por outro lado, após o Reuni foi criada uma política pública focalizada com amplitude mais ampla que as ações reparatórias anteriores: o programa de cotas, com foco no ensino superior público, foi criado pela Lei nº 12.711 de agosto de 2012, com o objetivo de ampliar o acesso das camadas mais baixas às universidades federais e aos institutos federais de educação (SANTOS, 2012; BROWN; LANGER; STEWART, 2012; SIMÕES; MELLO NETO 2012).

No programa de cotas, que tem caráter afirmativo mais homogêneo, o acesso às vagas reservadas é dado, inicialmente, pelo recorte de renda combinado com o da rede de escola-

2 Embora o ProUni seja anterior, percebe-se que o Reuni (dentro do PDE) tem uma centralidade destacada na organização das políticas públicas de expansão e democratização do ensino superior. Deste modo, os documentos do Reuni e do PDE são responsáveis pela delimitação, pelo acontecimento do discurso que pautaria as ações posteriores – ainda que criadas antes deles, como é o caso do ProUni.

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rização, com metade das vagas totais reservadas sendo destinadas a jovens de baixa renda oriundos de escola pública e metade para jovens, sem limite de renda, também oriundos da escola pública. Em paralelo, dentro destes segmentos são reservadas vagas, de forma proporcional à população do Estado, para os autodeclarados PPIs. Vê-se, então, que, para este programa, o recorte principal é dado pela rede de escolarização, uma vez que mesmo alunos com renda elevada podem concorrer, desde que sejam oriundos de escola pública (no que se incluem as federais).

Já no ProUni, além da formação na rede pública de ensino médio – ou privada, com bolsa –, o recorte principal é dado pela renda, uma vez que as bolsas integrais só podem ser ofertadas a pessoas com renda familiar bruta per capita de até 1,5 salário mínimo. Para a candidatura às bolsas parciais (50% do valor da mensalidade), o limite dobra (três salários mínimos per capita). Além destes perfis, existe outro que não se enquadra propriamente em ação afirmativa, mas no de política pública focalizada residual (KERSTENETZKY, 2006), uma vez que opera sobre um resíduo específico sem maiores pretensões de mudança social ou reparação de desigualdades históricas. Neste caso específico, permite-se aos professores da rede pública de ensino concorrer exclusivamente a vagas nos cursos de licenciatura, com bolsas parciais, independentemente do valor de sua renda familiar per capita. Em quais-quer dos casos, contudo, é necessário que o candidato obtenha uma pontuação mínima no Enem e ainda se submeta às exigências da instituição em que deseja pleitear a vaga.

Além da atuação com foco em políticas de ação afirmativa, o governo busca agir também de modo a regular e ordenar os eventos por meio da racionalização do sistema de ingresso no ensino superior (BARROSO, 2005). No caso específico, entende o governo federal que o Sisu contribui para a “racionalização da disputa” (BRASIL, 2009, p. 2), ao democratizar as oportunidades de concorrência às vagas, uma vez que “exames descentra-lizados favorecem aqueles estudantes com mais condições de se deslocar pelo país” (BRA-SIL, 2009, p. 2); e que o Enem, ao centralizar em um único exame diversas oportunidades distintas (ProUni, vagas regulares, vagas por cotas etc.) permite ao aluno, não só uma dis-puta isonômica, como a busca por novas vagas em caso do fracasso em um dos programas. Nota-se, entretanto, que a ideia meritocrática de seleção, de acordo com notas, permanece inabalada – o que se atesta em passagens como “a centralização do processo seletivo nas IFES pode torná-lo mais isonômico em relação ao mérito dos participantes” (BRASIL, 2009, p. 2, grifo nosso).

Assim, de forma complementar ao PDE, o governo federal delega às políticas de ação afirmativa e à racionalização do sistema um papel central no combate à desigualdade no ensino superior, assumindo um posicionamento proativo em torno da problemática da exclusão. Todavia, como problema precípuo, podemos apontar a ausência de caracteriza-ção mais detalhada do jovem a ser contemplado pelos programas. A restrição, em ambas as leis, ao critério “renda + tipo de escolarização” coloca em patamar de igualdade jovens das mais diferentes matrizes familiares e, portanto, com capitais culturais distintos. Em pesquisa sobre esta temática, Silva et al. (2011) expõem as limitações da focalização única (que tende a ser ampla e arbitrária), ao afirmarem que, mesmo recortando os indivíduos de

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acordo com a rede de escolarização (se pública ou privada), é possível perceber elevados graus de variação nos resultados do Enem quando levamos em conta outras clivagens, tais como: trabalhadores e não trabalhadores, indivíduos com hábitos familiares de leitura e sem hábitos familiares de leitura (SILVA et al., 2011, p. 60-61).

Deste modo, resta evidente que recortes arbitrários produzem modulações tão mais heterogêneas quanto maior seja sua amplitude, que neste caso é considerável, uma vez que na rede pública incluem-se escolas normais e de referência, colégios federais e escolas municipais etc., além de o recorte de até 1,5 salário-mínimo/pessoa produzir um espectro bastante amplo de indivíduos.

Ademais, uma vez que nos dois programas3 o processo de seleção, em si, leva em conta, além dos critérios específicos (que apenas habilitam o candidato), o desempenho escolar do estudante, avaliado pelo Enem, embora estejam habilitados nos programas, a participação efetiva dá-se somente aos mais capacitados academicamente. Não se resolve o sensível problema dos diferentes pontos de partida em que se encontram os jovens quando da disputa por uma vaga. Os históricos familiar e social pregressos não têm influência sobre a entrada ou não nos programas, sendo necessária (e suficiente) apenas a comprovação de renda, o documento comprobatório de conclusão do ensino médio em escola pública e um bom desempenho no Enem – e no caso dos PPIs, autodeclaração racial. No caso do ProUni, a situação parece ainda mais delicada, pois a nota de corte é dada (não varia somente de acordo com a concorrência), o que resulta na inabilitação para muitos dos candidatos.

Em uma tentativa de resumir o processo, podemos apontar dois momentos distintos: 1) habilitação – jovens de baixa renda e egressos da rede pública, PPI, pessoas com defici-ência etc. 2) seleção – desempenho acadêmico no Enem. Vê-se, portanto, que, para parti-cipar do processo e conseguir chegar à vaga, parece ser suficiente ao governo a reserva e a ampliação das vagas, mesmo que reste inalterada a questão meritocrática, e que os jovens tenham de se submeter a diversos procedimentos burocráticos para fazerem jus ao bene-fício. Daí cria-se outra consequência, basilar para este estudo: uma vez que nenhum outro critério objetivo apresenta-se na definição da habilitação, e que os programas não buscam alterar a perspectiva meritocrática vigente, é possível avaliar a eficiência dos programas em fomentar a busca dos jovens pelo ensino superior a partir da análise da participação dos jo-vens de baixa renda e oriundos da rede pública de ensino médio no exame – caso o número de participantes no Exame com este perfil cresça, amplia-se a possibilidade de efetividade dos programas. É disto que trataremos no ponto seguinte.

eNeM e A PARticiPAção de JoVeNs coNcluiNtes do eNsiNo Médio

De modo a direcionar nosso estudo, construímos uma série histórica específica (2008-2012) baseada nas variáveis acima mencionadas, tendo em vista observar o comportamento

3 Adoção do Enem de caráter não obrigatório no programa de cotas das instituições federais.

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dos estudantes concluintes do ensino médio no que se refere à sua participação no Enem. Deste modo, uma vez que o programa de cotas foi implementado somente em 2012, a aná-lise neste item abordará tão somente o Enem/Sisu e o ProUni na sua efetividade, pensada a partir da capacidade que ambos possuem em fomentar a participação dos jovens oriundos da escola pública no ensino superior.

Em relação aos microdados dos inscritos no Enem disponibilizados pelo Instituto Na-cional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), para mapear melhor o estudante concluinte4,5 do ensino médio em escolas pernambucanas e paraibanas resolve-mos construir uma série histórica da participação destes ao longo dos anos de 2008 a 2012, tendo por base o banco de dados do Enem 20086-2012 (INEP. Enem, 2013, 2012, 2011, 2010, 2009), comparados com dados do Censo Escolar 2008 - 2012 (INEP ESCOLAR, 2013, 2012 , 2011, 2010, 2009).

Entretanto, acusamos, de início, a enorme dificuldade7 de construção de uma série his-tórica com base em renda familiar e renda per capita, pois em alguns dos anos observados utilizou-se, arbitrariamente, de diferentes estratificações por faixa de renda e de diferentes categorizações de pessoas por residência. Deste modo, ainda que fosse possível a cons-trução de tal série histórica de renda, esta implicaria perda de informação, o que, somado ao grande volume dos dados faz com que seja impossível, no atual estado da pesquisa, construir uma análise nacional. Decidimos, então, pela construção de uma série histórica baseada unicamente no tipo de instituição de ensino médio frequentada pelo concluinte8,9, com recorte reduzido aos estados da Paraíba e Pernambuco.

Apesar da desigualdade de renda inter-regiões (FERREIRA et al., 2006) e de os efei-tos das políticas de transferência de renda impactarem mais fortemente a região Nordeste do Brasil (HOFFMANN, 2006), persistem substanciais diferenças regionais em razão das diferentes realidades de dinâmica produtiva (LIMA; ABDAL, 2007), em que as demandas 4 Observado em relação ao último ano, não necessariamente ao ensino médio todo.5 Concluintes definidos pelo Inep, cujos critérios são: (a) O ID_GRUPO da entidade é igual a 4 (Escola); (b)

O ID_STATUS do aluno é ativo (1); (c) O ID_STATUS da turma é ativada (1); (d) O ID_STATUS da escola é ativo (1) e a situação de funcionamento deve ser "EM ATIVIDADE"; (e) O FK_COD_ETAPA_ENSINO é igual a 27, 28, 29, 32, 33, 34, 37 ou 38; e (f) O FK_COD_MOD_ENSINO é igual a 1 (Ensino Regular).

6 No Enem 2008, 2009, 2010, 2011 e 2012 as variáveis adotadas para definir concluintes foram: ST_CON-CLUSAO = 2; IN_TP_ENSINO = 1; E SIT_FUNC = 1.

7 As variáveis referentes à renda familiar e quantidade de pessoas que moravam na residência do entrevistado foram definidas por faixa de renda arbitrária, variando de ano para ano, dificultando sua utilização para calculo per capita. Sendo possível fazê-lo somente com perca de informação.

8 Estudantes solicitantes de certificação de ensino médio via Enem (Portaria Normativa Inep nº 109 de 27 de maio de 2009), foram considerados concluintes pelo Inep. Entretanto, ainda que a portaria em questão explicite a necessidade de maioridade legal para solicitação de certificação via Enem, diante de mandatos de segurança julgados (por exemplo, TRF 1ª Região, AMS 0024292-54.2009.4.01.3400/DF, Rel. Desembargador Federal DANIEL PAES RIBEIRO, SEXTA TURMA, e-DJF1 p.422 de 24/10/2011), tornou-se corriqueira a declara-ção de conclusão de curso e solicitação de certificação de ensino médio para estudantes não concluintes desta modalidade de Ensino (Matriculados em séries intermediárias do ensino médio). Sendo assim, decidimos não contabilizar solicitantes de certificado de conclusão no nosso estudo nos anos de 2011 e 2012.

9 Uma vez que apenas o estudante concluinte é obrigado a informar sua instituição de origem no momento de inscrição do Enem.

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de formação ganham nuances específicas em cada uma delas. Logo, cada região tem sua situação de desigualdade própria e principalmente centrada em fatores também específicos (SILVEIRA NETO; MENEZES, 2010). Em função disso, a definição da região Nordeste como foco inicial de observação deste estudo liga-se às características próprias de desigual-dade desta, que combina grandes polos universitários com áreas de escassez de oferta de ensino superior. Mais especificamente, nossa escolha inicial pelo estado da Paraíba como foco definitivo de observação dá-se em razão da ampla utilização do Enem como ferramen-ta de seleção pelas principais instituições locais a partir de 2009, permitindo-nos observar o comportamento dos inscritos no vestibular antes e depois da adoção do Exame nacional como parte do processo seletivo.

Com base nos dados do Censo da Educação Superior 2012 (INEP SUPERIOR, 2013), observamos que o estado da Paraíba é, em número de matrículas, a unidade da federação cujas instituições federais de ensino superior (Ifes) representam maior fatia do total de matriculados neste nível de ensino. Enquanto, no Brasil, 15,451% das matrículas no ensino superior são realizadas em Ifes, no estado paraibano 43,183% das matrículas são realiza-das neste tipo de instituição. Assim sendo, especialmente em função da recente adoção de política de cotas das instituições federais de ensino, consideramos o estado paraibano um importante cenário de observação de tais políticas. Corrobora nossa decisão o fato de que todas as Ipes paraibanas10 adotaram o Enem como critério de seleção a suas vagas e tam-bém por contarem com políticas de ação afirmativa baseadas no tipo de instituição cursada pelo candidato no ensino médio.11

Decidimos também pela observação do estado de Pernambuco, uma vez que nesta unidade da federação – a Universidade Federal Rural da Pernambuco (UFRPE), a Uni-versidade Estadual de Pernambuco12 (UPE) e o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (Ifpe) – todas as vagas são ofertadas por meio do Enem/Sisu; enquanto na Universidade Federal de Pernambuco (Ufpe) o Enem é utilizado como correspondente à primeira etapa da seleção.13 No que se refere às instituições privadas de ensino superior, por meio do ProUni, o Enem já vinha sendo utilizado como ferramenta de seleção de vagas financiadas para estudantes oriundos da rede pública de ensino médio desde 2005. Além disto, tendo em vista a redução de custos e a captação de alunos que não conseguiram vagas no Sisu, cada vez mais instituições privadas locais têm feito seleções regulares e “fora de época” (após o resultado do Sisu e do vestibular das Ipes).

10 Na Paraíba, o programa foi adotado por todas as Ipes, sendo que na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFPB) é utilizado na totalidade do processo de entrada de novos alunos nestas instituições, enquanto na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) é utilizado como correspondente a 50% das vagas do processo seletivo.

11 As Ifes contam com o programa de cotas das instituições federais e a UEPB adota sistema similar de cotas, reservando 50% das vagas para estudantes egressos do ensino médio público.

12 A partir de 2014.13 A partir de 2015, a Universidade Federal de Pernambuco passa a adotar o Sisu como instrumento único de

seleção.

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Apesar dos recortes acima limitarem o alcance da pesquisa, eles permitem, para o ob-jetivo desta parte específica, testar a hipótese sem que ela sofra descaracterização. Assim, preserva-se na análise o impacto no que se refere à compreensão dos percalços a serem enfrentados na efetivação das políticas de ação afirmativa na educação superior brasileira, especialmente no que se refere à sua adoção em instituições públicas.

De acordo com os dados do Censo Demográfico Brasileiro, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010, cerca de 91% da população dos estados de Pernambuco e Paraíba possui renda per capita inferior a 1,5 salários mínimos; 89,4% das matrículas no ensino médio são realizadas por escolas públicas; e a maior parte dos estudantes matriculados nesta rede de ensino tem renda per capita inferior a 1,5 salário mínimo. Logo, vê-se que a maior parte da população encontra-se habilitada a concorrer a uma bolsa integral do ProUni ou como cotista em Ifes. Contudo, como demonstraremos a seguir, no caso destes estados, a democratização do acesso não tem se efetivado plenamen-te, uma vez que, para tanto, seria fundamental que este considerável contingente de pessoas se sentisse incentivado a, de uma forma estável, participar de algum dos dois (ou de ambos os) programas – especialmente no que toca aos jovens concluintes do ensino médio, uma vez que estes teriam a possibilidade de não interrupção da formação escolar.

Levando em conta as considerações acima e a observação dos dados (Gráfico 1), co-lhidos de acordo com os critérios adotados pelo próprio Inep (apenas alunos concluintes e matriculados em instituições14 paraibanas e pernambucanas de ensino médio), percebe-

14 Todos os estudantes concluintes do ensino médio precisam informar sua instituição de origem no ato de inscrição ao Enem, não havendo casos em que não se soubesse a escola do estudante.

Gráfico 1 - Relação percentual de concluintes do ensino médio que se inscreveram no Enem na Paraíba e Per-nambuco no Enem 2008, 2009, 2010, 2011 e 2012Fonte: Elaborado pelos autores com dados do Inep

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mos que a porcentagem de participação dos estudantes no Enem varia significativamente quando comparamos os concluintes do ensino médio na rede pública e da rede privada de ensino nos estados. Nota-se, ainda, que o percentual de participação dos estudantes da rede privada supera em muito a dos estudantes da rede pública.

Além disso, enquanto a participação do estudante concluinte da rede privada de en-sino médio foi fortemente impactada pela utilização do Enem como exame necessário ao acesso à universidade pública, a participação do estudante da rede pública não parece sofrer o mesmo grau de impacto. Entre 2008 e 2009 – quando da transformação do Enem em “Novo Enem” –, o percentual de participação dos estudantes da rede privada de ensino médio saiu de 58,861% para 82,861%, enquanto na rede pública o percentual variou apenas de 29,384% para 30,4%.

Considerando os dados apenas a partir de 2009, a taxa de crescimento média dos inscri-tos oriundos da rede pública é de 3,942 pontos percentuais ao ano, enquanto a taxa de cresci-mento dos estudantes da rede privada de ensino médio inscritos no Enem é maior, mostrando um crescimento médio de 4,360 pontos percentuais ao ano. Assim, o tímido crescimento da inscrição de concluintes da rede pública, menor do que o da rede privada, não nos permite ratificar o entendimento de que o Enem contribui para a democratização do acesso.

coNclusão

Os dados acima se mostram fundamentais à compreensão do tema, pois, apesar de a participação média do estudante oriundo da rede pública de ensino médio apresentar cres-cimento, ainda é pequeno o percentual de estudantes desta que se inscrevem no Enem ao concluir a educação básica.

Levando em consideração que o exame já se mostra como componente de seleção do ProUni desde 2005, ofertando, no período observado por este estudo (2008-2012), 31.445 bolsas na Paraíba e Pernambuco – entre integrais e parciais –, que todas as Ipes paraibanas e pernambucanas contam com políticas de ação afirmativa baseadas na categoria adminis-trativa da escola em que se cursou o ensino médio e que o Enem passou a ser adotado em 2009 como componente de seleção de parte das Ipes destes estados – chegando à totalidade delas em 2015 –, ainda é preocupantemente baixo o percentual de inscrições, no mesmo ano, de jovens que concluem o ensino médio em instituições públicas.

Retomando a pergunta inicial que orientou esta pesquisa, é razoável propor a seguinte conclusão: a despeito da criação de vagas pelo ProUni e da racionalização do sistema, com redução do custo de oportunidade para os inscritos, a baixa oferta de vagas, distribuídas de forma heterogênea entre os diferentes cursos, faz com que a nota do Enem seja determinan-te para o acesso, o que pode resultar em fator desencorajador para os jovens que, embora inseridos dentro da mesma categoria pelo recorte arbitrário da lei, encontram-se em situa-ção desfavorável em relação aos seus concorrentes. Deste modo, a despeito das intenções da formulação, a racionalização do sistema e o aumento da oferta de vagas em virtude do ProUni não se têm mostrado o bastante para promover uma mudança estrutural – que seria

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o objetivo final de uma política pública de focalização com ação reparatória –, provocando tão somente redistribuições compensatórias (KERSTENETZKY, 2006, p. 571).

Por mais que seja importante levar em conta que muitos jovens apenas não tenham se inscrito no ano de conclusão do ensino médio – deixando para realizar inscrição nos anos subsequentes –, a efetividade dos programas de ação afirmativa do ensino superior sofre in-fluência da ampliação na participação destes jovens no exame. É fundamental para a gestão das seleções – e a pesquisa sobre estas políticas públicas – a compreensão de variáveis que possam explicar o porquê da baixa procura destes jovens pelo exame, uma vez que o perfil da maior parte deles enquadra-se no de beneficiário de ações afirmativas.

Entretanto, pode-se ainda esperar que o recente programa de cotas do governo fe-deral, embora mantendo a dimensão de seleção meritocrática por meio do Enem, consiga modificar o quadro, uma vez que, ao contrário do ProUni, garante uma oferta significativa de vagas – as quais não possuem custo e ainda poderão conceder bolsas de manutenção –, com potencial, portanto, para realizar a almejada mudança estrutural. Assim, embora não ataque o problema onde ele surge – qual seja a grande distância entre a educação básica privada e pública que transforma o acesso em maratona para os “pobres” e em tiro curto para os “ricos” –, a combinação das três medidas (dois programas com caráter reparatório e uma racionalização ampla do sistema) pode garantir, em um futuro próximo, o que até agora não foi possível: viabilizar a “opção pela escola” (KERSTENETZKY, 2006, p. 570) para os jovens e estudantes oriundos da escola pública.

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dAdos dos AutoRes:

Ruy de deus Mello Neto Doutorando em Educação

da Universidade de São Paulo – USP

Hugo Augusto VAscoNcelo MedeiRos

Doutorando em Educação da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE

Fábio dA silVA PAiVA

Doutorando em Educação da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE

José luis siMões

Docente no Programa de Pós-Graduação em Educaçãoda Universidade Federal de Pernambuco – UFPE

Submetido em: 25/02/2014Aprovado em: 05/05/2014