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INTRODUÇÃO A idéia de justiça perpassa a história da civilização. Pode- se dizer que ela se faz presente desde o primeiro momento em que o homem se reúne em sociedade, ou seja, desde a sua primeira e mais primitiva formação tribal até a mais complexa forma de sociedade hoje existente. A partir do momento em que a vida se passa no coletivo, cada homem passa a esperar e exigir do outro um comportamento que não lhe fira aquilo que ele considera intocável e inalienável, seja em relação ao ter, seja em relação ao ser. Assim, a vida passa a exigir, e nela se fez sentir, a necessidade de se apontar para um comportamento que possa identificar e indicar a forma de se alcançar o justo. Afinal, a vida em grupo vai-se tornando cada vez mais complexa por sua dimensão e por suas disputas, enfim, por suas diferenças dentro do grupo. E hoje a realidade não é diferente. Podemos ser em maior número, ter mais tecnologia, ser mais avançados, ter mais recursos, enfim, representarmos uma evolução que o homem antigo não tinha, mas isso nada significa para a grande questão que envolve a eterna esperança de que a vida em sociedade, ou seja, a de um ser em relação ao outro, tenha seu suporte no respeito em relação a esse outro que completa o eu, tudo na busca da harmonia, do equilíbrio, da igualdade, ou, em outras palavras, daquela que representa sozinha todos os conceitos que buscam identificar no homem a realização do bem comum: a justiça. Afinal, ter o homem feito as mais impressionantes descobertas, seja do telefone às vacinas imunológicas, seja da transformação dos meios naturais em energia à bomba atômica, seja do desbravamento do espaço a pisar na lua, nada disso contribuiu para que se

O JUSTO COMO VIRTUDE - Dal Mass

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Page 1: O JUSTO COMO VIRTUDE - Dal Mass

INTRODUÇÃO

A idéia de justiça perpassa a história da civilização. Pode-

se dizer que ela se faz presente desde o primeiro momento em que o homem

se reúne em sociedade, ou seja, desde a sua primeira e mais primitiva

formação tribal até a mais complexa forma de sociedade hoje existente. A

partir do momento em que a vida se passa no coletivo, cada homem passa a

esperar e exigir do outro um comportamento que não lhe fira aquilo que ele

considera intocável e inalienável, seja em relação ao ter, seja em relação ao

ser. Assim, a vida passa a exigir, e nela se fez sentir, a necessidade de se

apontar para um comportamento que possa identificar e indicar a forma de se

alcançar o justo. Afinal, a vida em grupo vai-se tornando cada vez mais

complexa por sua dimensão e por suas disputas, enfim, por suas diferenças

dentro do grupo.

E hoje a realidade não é diferente. Podemos ser em maior

número, ter mais tecnologia, ser mais avançados, ter mais recursos, enfim,

representarmos uma evolução que o homem antigo não tinha, mas isso nada

significa para a grande questão que envolve a eterna esperança de que a vida

em sociedade, ou seja, a de um ser em relação ao outro, tenha seu suporte no

respeito em relação a esse outro que completa o eu, tudo na busca da

harmonia, do equilíbrio, da igualdade, ou, em outras palavras, daquela que

representa sozinha todos os conceitos que buscam identificar no homem a

realização do bem comum: a justiça. Afinal, ter o homem feito as mais

impressionantes descobertas, seja do telefone às vacinas imunológicas, seja da

transformação dos meios naturais em energia à bomba atômica, seja do

desbravamento do espaço a pisar na lua, nada disso contribuiu para que se

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encontrasse a resposta para as questões que inquietam o pensamento desde o

mais humilde e ignorante até o mais poderoso e sábio dos homens: o que é a

justiça e como podemos realizá-la?

É que a ou as respostas a tais questões não passam pela

tecnologia, pela evolução científica, pela teoria de uma vida no espaço, pela

possibilidade da ocupação de outro planeta, ou por tudo quanto mais possa

aparentemente representar um progresso científico que, amanhã, poderá ser

superado por outro e, então, tornar-se ele próprio algo ultrapassado. Não, as

respostas para as questões sobre a justiça e tudo que ela envolve, seja no

campo social, econômico, político ou do direito, estão na própria existência do

ser humano como tal e sua existência em sociedade, donde emana e para onde

se dirige seu comportamento. E é por isso que esse debate continua sempre

presente, cabendo ao homem do seu tempo, seja com vistas à análise do

passado, seja com vistas ao que sente no presente e projeta para o futuro,

encontrar as respostas, as quais só podem ser vislumbradas, portanto, no agir

humano, agir eterno, pelo menos enquanto ele existir, posto que a ação e o

interagir são inerentes ao próprio ser.

Em sendo assim, e por isso mesmo, continuamos hoje

enfrentando aquelas questões. E é porque continuamos buscando as respostas

que precisamos continuar pensando, discutindo, analisando e propondo

soluções, sejam elas quais forem, desde que galgadas em pressupostos éticos e

morais sustentáveis. E é isso que este trabalho se propõe, dentro do campo

próprio e nos limites que ele se impõe.

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9

O presente trabalho pretende desenvolver o conceito de

justiça no que tange às suas implicações no campo do direito, já que neste as

questões de o que é a justiça? e a de como ela pode ser realizada? são motivo

de muita polêmica e discussão. Porém, é preciso ficar claro que o objetivo do

presente trabalho não é o de discutir a justiça em si, mas sim discutir sobre

uma das formas de que se diz ou se defende ser ela proveniente, no caso, da

lei. É que, na atualidade, como há muitos anos1, vivemos sob o forte influxo

da idéia positivista (legalista) do direito2, através da qual a lei parece

continuar sendo a resposta para todos os problemas da sociedade e, por seu

turno, a forma através da qual o cidadão encontraria a tão esperada e almejada

justiça. Tal campo de visão, parece, acaba sendo reforçado quando, na

atualidade, principalmente no nosso meio social (falamos do Brasil como um

todo), por força dos conflitos sociais, provocados pela crescente miséria e

agravamento da situação de pobreza, desencadeia-se um discurso legalista,

através do qual é passada à sociedade uma mensagem de que a lei é o agente

realizador ou, no mínimo, mantenedor da justiça, em especial a justiça social.

A lei e seu cumprimento, assim, seriam o justo.

1 A idéia positivista do direito, ou seja, do positivismo jurídico, tem origem desde o início do século XIX. Entretanto, a origem da tradição ocidental que norteia o nosso pensamento jurídico galgada na distinção entre “direito positivo” e “direito natural”, pelo menos quanto ao seu conteúdo conceitual, remonta a tempo ainda mais antigo, eis que tal distinção já se encontrava entre os gregos. Aliás, o que se terá a oportunidade de confirmar, por força do seu conteúdo, nesta dissertação. A esse respeito ver Norberto Bobbio, O positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995. 2 A expressão “positivismo” aqui utilizada (que se ramifica para “direito positivo” e/ou “positivismo jurídico”) não é no sentido filosófico, mas sim no sentido jurídico, aliás, como de resto, será utilizada ao longo desta dissertação. Os ensinamentos de Norberto Bobbio (op.cit., p.15) elucidam bem o emprego diferenciado do termo dentro das duas áreas: A expressão “positivismo jurídico” não deriva daquela de “positivismo” em sentido filosófico, embora no século passado tenha havido uma certa ligação entre os dois termos, posto que alguns positivistas jurídicos eram também positivistas em sentido filosófico: mas em suas origens (que se encontram no início do século XIX) nada tem a ver com o positivismo filosófico – tanto é verdade que, enquanto o primeiro surge na Alemanha, o segundo surge na França. A expressão “positivismo jurídico” deriva da locução direito positivo contraposta àquela de direito natural.

Page 4: O JUSTO COMO VIRTUDE - Dal Mass

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Esta situação é que move a realização do presente trabalho,

através do qual se pretende desenvolver o tema da justiça sobre o enfoque da

lei, este dispositivo criado pelos meios políticos, sejam legítimos ou não (é

claro que no Brasil de hoje, tecnicamente falando, por meios legítimos), que

tem como fim específico a regulamentação de comportamentos, impondo

deveres ou criando direitos, com vista, segundo prega o direito, à harmonia e,

portanto, à realização da paz social e da justiça.

É a lei a própria justiça materializada? É ela o instrumento,

em si, de realização da justiça? Existem leis injustas? E se existem, neste caso,

existe obrigação em relação ao seu cumprimento? Enfim, a lei promove a

justiça?

Para tentar encontrar as possíveis respostas para estas e

outras questões fomos buscar suporte naquele filósofo que foi um dos que

mais influenciaram e influenciam o pensamento ocidental: Aristóteles. E por

que nele? Porque foi ele quem primeiro sistematizou o conceito de justiça,

fazendo a primeira divisão das várias formas em que ela se apresentaria,

procurando identificar qual o problema a ser resolvido para que ela se

concretizasse e, sobretudo, porque é ele quem se pronuncia,

fundamentadamente, sobre o abrigo de bases teóricas e empíricas, sobre a

importância da lei, identificando e apontando sua origem, seu conteúdo e seu

objetivo. Tanto é assim que é ele o responsável por duas afirmações que por si

só justificariam o estudo de seu pensamento para dar suporte às preocupações

que motivam o tema da presente dissertação, que são: 1) A lei é razão liberta

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de desejo3; 2) O justo é aquilo que é conforme a lei e correto, e o injusto é o

ilegal e iníquo4.

Para alcançar o objetivo, de forma analítica, será

desenvolvido o pensamento do Estagirita, especificamente a respeito da justiça

e da lei, levando em conta, principalmente e sobremaneira, o contido na Ética

a Nicômacos, obra em que mais pormenorizadamente Aristóteles fala da

justiça, tanto que abre nela um livro especial para o desenvolvimento da

questão, sendo este o livro V. No entanto, não deixaremos de mencionar,

posto que também é objeto de pesquisa, as obras Política e Retórica, textos

em que Aristóteles acabou por fazer menção à justiça e mesmo à lei, pelo que

relacionaremos as referências específicas que entre aqueles tenham conexão

com as afirmações da obra central, no caso, a Ética a Nicômacos.5

Para desenvolver o trabalho proposto, a presente

dissertação está dividida em cinco partes. A primeira, situa a importância de

Aristóteles, seja em relação à sua época, seja em relação ao presente, para o

que é apresentado, no que diz respeito ao seu momento histórico, uma breve

3 Aristóteles. Política, 1287 a 32. A relação e diferenciação entre o emprego da palavra “razão” (logos) e “inteligência” (nous) para esta e outras afirmações aristotélicas será objeto de análise no capítulo IV deste trabalho, quando desenvolveremos o motivo da afirmação em destaque. 4 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1129 a. A distinção dos conceitos de “justo-conforme a lei” e “injusto-iníquo” será objeto de análise no capítulo IV desta dissertação. 5 Utilizamos para a pesquisa, no que tange a EN, duas edições, a tradicional no nosso meio que é a da Editora Universidade de Brasília, com tradução de Mário da Gama Kury (3ª ed., 1992); e a edição espanhola da Editora Gredos, com introdução de Emilio Lledó Íñigo e tradução e notas de Julio Pallí Bonet (4ª reimpressão, 1998), volume que reúne também a tradução da Ética a Eudemo, com cujo texto, a respeito desta obra aristotélica, vamos trabalhar, já que não encontramos uma tradução de tal obra para o português. Quanto a Retórica, também o texto utilizado é o da edição espanhola da Editora Gredos, esta porém com introdução, tradução e notas de Quintín Racionero (1ª reimpressão, 1994). Por sua vez, o texto da Política é o da Editora Universidade de Brasília, com tradução, introdução e notas de Mário da Gama Kury (3ª ed., 1997), sem deixar, no entanto, de observar, para análises comparativas, a edição espanhola da Editora Gredos, com introdução, tradução e notas de Manuela García Valdés (1ª reimpressão, 1994); a edição bilíngüe em espanhol da editora Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, com tradução de Julián Marías y Mará Araújo e introdução e notas por Julián Marías (3ª reimpressão, 1997); e, ainda, a edição italiana da Editora Economica Laterza, com tradução e introdução de Renato Laurenti ( 4ª edição, 1997).

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referência ao pano de fundo que poderia tê-lo influenciado na busca da

sistematização da questão da justiça em seu tempo. A exposição não pretende

ser exaustiva, muito antes pelo contrário, tendo apenas o objetivo central de

localização do leitor naquele momento, a fim de melhor entender a motivação

do pensamento aristotélico.

A segunda parte desenvolve o conceito de justiça como

uma virtude, apontando o seu desenvolvimento no que diz respeito à

identificação do hábito na formação do ethos. É que antes de se passar ao

enfoque central do trabalho, que é, como já referido, a questão da justiça em

decorrência da lei, não seria possível deixar de introduzir a explicação

aristotélica sobre o que ele compreendia como sendo a justiça. Afinal, é a

partir do conceito desta e de como ela se opera no agir humano, ou seja, na

prática de seus atos, que o Estagirita passará, posteriormente, a invocar o que a

lei representa em relação à justiça.

A terceira parte, por sua vez, desenvolve as várias formas

como Aristóteles apresenta a justiça (a universal, a particular, a distributiva, a

corretiva e a das trocas mercantis), representando esta apresentação a sua

verdadeira sistematização, nunca jamais pensada antes dele. Inicia apontando

a base central da justiça aristotélica, que é exatamente a idéia de igualdade,

procurando indicar com clareza o que ela representava para ele, já que seu

conceito de igualdade estava exatamente na desigualdade (na diferença), eis

que sem o domínio de tal conceito não é possível compreender o

desenvolvimento de seu pensamento sobre os tipos de justiça, em especial a

distributiva; além do que, salvo melhor juízo, este seu conceito se apresenta

entre nós até hoje.

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A quarta parte apresenta a análise da lei, seja ela natural,

seja ela positiva, a fim de distinguir essas duas perspectivas, já que é preciso

ficar claro que, quando Aristóteles falava de “lei”, na maior parte do

desenvolvimento do seu pensamento, referia-se às disposições normativas

criadas pelo legislador, donde não se poderá falar de confusão entre “lei

natural” e “lei positiva”. E se é verdade que àqueles distintos tipos de “lei” ele

se referia, o que também será objeto de análise neste trabalho, não menos

verdade é que, apesar dos gregos não terem conhecido um sistema jurídico

como o que conhecemos hoje, tratavam claramente também do conceito de lei

como uma imposição pela mão do homem, tirando daí todas as conseqüências,

sejam positivas ou negativas, cujo enfoque é exatamente o que interessa ao

tema central proposto por esta dissertação.

A última parte apresenta o que Aristóteles entendia por

“eqüidade”, para a qual ele dava importância específica, eis que a mesma

servia como algo que poderia até mesmo suprir algumas lacunas da lei. Será

demonstrado, então, que através dela Aristóteles procura dar o indicativo de

como alcançar a justiça para aquelas situações em que a lei não dá solução, já

que para ele não existem, a princípio, leis ruins, mas apenas leis que às vezes

“não chegam a ser igualmente boas, como as bem elaboradas, por serem

elaboradas apressadamente”6. Por fim, o trabalho procurará indicar se na visão

aristotélica a lei pode ou não ser admitida, ou ao menos considerada como a

ou uma das fontes de justiça.

6 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1129 b.

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1. ARISTÓTELES NO CONTEXTO HISTÓRICO: sua importância

ontem e hoje

O mundo grego vivido por Aristóteles (384/323) revela um

momento de declínio cultural e moral da sociedade grega, eis que tanto os

anos que antecediam os de sua vida7, quanto os que ele viveu, caracterizaram-

se por ter sido palco de um momento de muitas guerras entre cidades e

disputas de poder dentro delas mesmas, onde muitos se “candidatavam” ao

posto de tirano, o que, entre outros fatores, era motivo de instabilidade na vida

dos cidadãos.8

O homem grego está, portanto, no período que antecede a

vida de Aristóteles, à procura não apenas de formas que lhe possam dar um

novo estilo e propósito de vida, mas sobretudo à procura de explicações e

formas que lhe possam vislumbrar uma vida mais digna e virtuosa, portanto,

justa. O conceito, o ideal e a realização da justiça, assim, é discussão latente

naquele momento da vida grega, fomentada, sobretudo, pela luta de classes

que se inicia e que leva, no século V, à morte política da nobreza.9

7 Jean-Pierre Vernant, na obra As origens do pensamento grego (1986, p.49), sobre a época, registra: Momento de crise, que começa no fim do século VII e se desenvolve no VI, período de confusões e de conflitos internos de que distinguimos algumas das condições econômicas; período que os gregos viveram, num plano religioso e moral, como uma discussão de todo seu sistema de valores, um golpe contra a própria ordem do mundo, num estado de erro e de impureza. 8 Alguns exemplos de conflitos podem ser citados, como os que são apresentados no artigo de Catherine Darbo-Peschanski, Humanidade e Justiça na historiografia grega (V-I a .C.), que faz parte da obra Ética, organizada por Adauto Novaes (São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura, 1999, p.37): 1) Em 490 e 480 a. C. os gregos, coligados em torno de Esparta, opuseram-se aos exércitos dos Grandes Reis persas, inicialmente Dario I, em seguida seu filho Xerxes; de 431 a 403 a.C. se dá a Guerra do Peloponeso, a qual conflitou Esparta, Atenas e seus respectivos aliados, guerra esta que toma todo o mundo grego, oriental e ocidental; em 362 a. C. está em andamento a Batalha de Mantinéia; ainda, neste século IV a. C. é relatada a expedição dos Dez Mil, composta de mercenários gregos que foram lutar ao lado do sátrapa persa Ciro contra o irmão deste último. 9 Jaeger, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p.233.

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Questionamentos a respeito da realidade deste

comportamento humano e a forma de justificá-lo, tanto em relação à realidade

quanto em relação à sua explicação e justificação teórica, são apresentados nos

poemas homéricos10, apesar de esta preocupação dos poetas da época com a

justiça não se constituir, naquele momento, em nada de novo, eis que “já

desde os tempos primitivos da epopéia até Heráclito, através de Arquíloco e

Anaximandro, são dados uma série de testemunhos que exaltam a justiça

como fundamento da sociedade humana”.11

As virtudes, então, são identificadas com o ideal do

guerreiro homérico, o qual, por ser exatamente virtuoso, é que se destaca nos

combates, donde se deve concluir que “a moral está, pois, em relação de

dependência com a espada e, de alguma forma, o ‘bem’ é o poder”.12 Através

de Homero, revelava-se que a virtude vinha do exemplo e das determinações

daquele que fosse o grande guerreiro e vencedor das batalhas.13 O direito era,

pois, dado através dos cavaleiros, os quais, segundo a crença, recebiam as leis

da divindade. Eles é que impunham as normas.

Em Hesíodo, no entanto, a quem os gregos, ao lado de

Homero, elegeram como seu segundo poeta, a justiça toma um outro contorno.

10 Diz Emilio Lledó Íñigo, na introdução de sua tradução das obras Ética Nicomáquea e Ética Eudemia, Madrid: Gredos: 1998, p.31: En los poemas homéricos encontramos una primera configuración del comportamiento humano. En este comportamiento imperan los princípios de una sociedad dominada por la tensión bélica, y los héroes que en ella destacan van marcados por los impulsos que promueve y nutre esa sociedad agonal. 11 Jaeger, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, p.133. 12 Íñigo, Emilio Lledó. op.cit., p. 32. Destaca Lledó: Por ello, el tipo ideal del guerrero homérico, aquel que mejor encarna el agathón y la areté, es el que posee las condiciones (virtudes) necesarias para destacar en el combate. La moral está, pues, pendiente de la espada del señor y, de alguna forma, el «bien» es el poder. 13 Werner Jaeger, op.cit., p.134. Diz-nos: Homero apresenta-nos o antigo estado das coisas. É com outro termo que designa, em geral, o direito: themis. Zeus dava aos reis homéricos “cetro e themis”. Themis era o compêndio da grandeza cavaleiresca dos primitivos reis e nobres senhores. Etimologicamente significa “lei”.

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16

Este, por ser um homem do campo, um verdadeiro camponês, ao contrário de

Homero, que acentuava que a educação e, portanto, as qualidades humanas

tinham seu ponto de partida na formação de um tipo humano nobre, passa a

defender o valor do trabalho, onde o heroísmo não se revela apenas entre os

homens que travam lutas no campo de batalha, ou seja, entre os nobres e seus

adversários, mas também entre aqueles que travam uma verdadeira luta no

trabalho silencioso na terra, o que também exige heroísmo e disciplina,

“qualidades de valor eterno para a formação do homem grego”.14

Com esse novo perfil de pensamento e disposição pela luta

para a conquista da igualdade e da justiça, não se aceita mais que o direito

(dike)15 permaneça nas mãos dos nobres, os quais, até então, mantinham o

monopólio da administração da justiça, segundo a sua tradição, sem leis

escritas. Hesíodo, então, se torna o porta-voz da censura contra a prática venal

da magistratura. É o primeiro passo para a codificação do direito, através do

qual se imaginava sua universalização, ou seja, ele seria igual para todos.16 O

Os cavaleiros dos tempos patriarcais julgavam de acordo com a lei proveniente de Zeus, cujas normas criavam livremente, segundo a tradição do direito consuetudinário e o seu próprio saber. 14 Jaeger, Werner. op.cit., p.85. 15 É preciso destacar que não há entre os gregos uma palavra para designar o que conhecemos como “direito”, sendo que a expressão dike, na realidade, para eles, representava a justiça em seu caráter mais absoluto. Eduardo C.B. Bittar (1999, p.35) situa bem esta questão: A presença de questões filosófico-jurídicas no pensamento grego não obliterou o desenvolvimento de uma prática jurídica regular. Em verdade, o que ocorreu foi o encaminhamento das discussões não para o campo da dogmática ou da técnica, mas para o da interrogação filosófica, que embora conceitos absolutos, generalizando a problemática em estudo. Assim é que não se encontra um termo próprio para designar a palavra «direito» entre os gregos, sendo apenas o absoluto «justiça» (díkaion) o centro de todas as cogitações. 16 Jaeger, Werner. op.cit., p.134. Importante observar a afirmação de Jaeger sobre aquele momento para esta luta pela justiça: Contudo, o aumento da oposição entre os nobres e os cidadãos livres, a qual deve ter surgido em conseqüência do enriquecimento dos cidadãos alheios à nobreza, gerou facilmente o abuso político da magistratura e levou o povo a exigir leis escritas. As censuras de Hesíodo contra os senhores venais, que na sua função judicial atropelavam o direito, eram o antecedente necessário desta reclamação universal. É por ele que a palavra direito, dike, se converte no lema da luta de classes. A história da codificação do direito nas diversas cidades processa-se por vários séculos e sabemos muito pouco sobre ela. Mas é aqui que encontramos o princípio que a inspirava. Direito escrito era direito igual para todos, grandes e pequenos. Hoje, como outrora, podem continuar a ser os nobres, e não os homens do povo, os juízes. Mas estão submetidos no futuro, nas suas decisões, às normas estabelecidas da dike. Sobre o termo direito Jaeger faz ainda a observação de que em Homero o termo direito era representado pela palavra themis, e que

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17

campo da criatividade intelectual dos poetas, portanto, faz com que o conceito

da divinização da justiça, que até então detinha o conteúdo do princípio

coordenador da vida humana por concessão divina, seja deslocado para um

campo mais realístico e humano.17

Aquele momento de crise, portanto, revela reivindicações

de mudança na vida social e no domínio do direito. Revela-se necessário,

então, que haja uma re-elaboração nas noções fundamentais da ética grega.

Assim, surgem na pólis, enfraquecida econômica e eticamente, as condições

para reflexões morais e políticas de maneira crítica, a fim de re-estabelecer

uma ordem que dê condições para o desenvolvimento da vida social da cidade,

de forma harmônica e justa.

Aristóteles, neste contexto, recepciona uma tradição ética

sedimentada por transformações sociais profundas, a qual já havia sofrido

um enriquecimento para a formação do homem grego, seja através daqueles

que o haviam antecedido principalmente nos dois séculos antes, seja através

de seus contemporâneos. Tais transformações, no entanto, ainda não eram

plenamente satisfatórias. Fruto daquelas disputas de classes, o surgimento da

democracia era algo ainda novo. As transformações operadas por ela ainda

não alcançavam um bom termo por falta de uma base sólida, seja prática, seja

teórica18. Assim, Aristóteles, como de resto seus contemporâneos, mais exata

etimologicamente significava “lei”. Na verdade conclui dizendo que themis referia-se principalmente à autoridade do direito, à sua legalidade e à sua validade, enquanto que dike significava o cumprimento da justiça. Não nos concentraremos mais sobre tal perspectiva, posto não ser o objetivo aqui, e, mesmo porque, é patente que é a palavra dike quem mantém a “matiz de igualdade no pensamento grego através de todos os tempos”, como diz o próprio Jaeger, em outro trecho de sua exposição sobre o tema (p.135). 17 Bittar, Eduardo. C.B. A justiça em Aristóteles. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999, p.38. 18 Registra Emilio Lledó Íñigo, op.cit., p.40: A pesar del enriquecimiento que la teoría moral experimenta en los siglos anteriores a la época de los sofistas, no se produze hasta ellos un cambio radical. Este cambio está, como es evidente, condicionado por los cambios mismos de la sociedad. La aparición del dêmos como fuerza

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e especificamente seu mestre Platão, está diante de uma tarefa grandiosa:

identificar, idealizar e construir as bases para a construção ética de uma

sociedade, a sociedade grega.19

Para tanto, Aristóteles enfrenta o que a própria sociedade

grega está enfrentando: encontrar para antigos termos e novas situações

explicações e fundamentos que para a sociedade aristocrática tinham suporte e

fundamentação não mais aceitas. Assim, questões como, por exemplo, Como

surge a justiça?, É melhor ser injusto ou sofrer uma injustiça?, Como

devemos viver?, Pode-se aprender a ser bom?, Em que consiste a felicidade?,

Pode ser construída uma pólis justa?, São as leis criadas para os bons ou

para os ruins?; é que passam a impulsionar a reflexão epistemológica e,

sobretudo, a reflexão ética.20

A resposta a essas e outras questões, em Aristóteles, passa

a ser enfrentada através da análise do ato moral e da decisão para tal ato. O

comportamento ético passa a ser visto sob o prisma do comportamento

humano, de suas ações concretas. A razão, como razão prática, passa a ser

responsável pela qualidade moral do ato.21

transformadora de las relaciones sociales, el derecho a la ley que no controla ya la arbitratiedad del ánax (isonomía), el derecho a opinar, a romper la imposición del discurso preeminente com el poder de la palabra liberada de sumisión (isegoría), impulsado todo ello por ele ascepticismo ante el lenguaje, son algunas de las caracteristicas que configuran la democracia griega. 19 Emilio Lledó Íñigo acrescenta: Los elementos que organizaron sus [de Platão e Aristóteles] planteamientos y sus respuestas, emergieron de esa sociedad en ebullición. Aunque aceptaran, como era lógico, el lenguaje de la tradición y aunque su pensamiento se moviese en los confines que esa tradición había delimitado, lo apasionante de esta primera teoría ética en la historia de la cultura occidental se debe, precisamente, a que se perciben los problemas reales de la historia y de la sociedad, en el esquema teórico com que los dos filósofos la engarzan. (op. cit., p.40) 20 idem, p.45. 21 Expõe Emilio Lledó Íñigo, op.cit., p.50: Estos términos que Aristóteles analiza y que constituyen los puntos de inflexión en su teoría ética son, pues, la referencia más inmediata a los posibles problemas que plantea el descubrimiento de la prâxis. Por ello, «Aristóteles no pretende saber cómo puede pensarse un Bien en sí sin contradicciones, sino cómo el pensamiento puede ayudar a ser bueno. Por eso, no persigue un Bien absoluto,

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19

Aristóteles passa a se ocupar com o tema da justiça como

um dos elementos centrais e mais importantes da ética. Para uma sociedade

em transformação, identifica ele na justiça a maior de todas as virtudes, o que,

aliás, já havia sido afirmado por alguns de seus predecessores, em especial,

através dos cânticos poéticos, como em Hesíodo. Agora, no entanto, tratava-

se, para Aristóteles, de dar respostas a essa questão, e não mais apenas

enaltecê-la. Procura ele, para tanto, estabelecer critérios de identificação do

comportamento ético e moral e, por decorrência, do comportamento que leva à

concretização da justiça.

As respostas que ele dá estão presentes principalmente em

três de suas obras, na Ética a Nicômacos, na Política e na Retórica, mas

sobretudo e especialmente na primeira, onde é desenvolvido mais específica e

exaustivamente o tema, para o qual, apesar do mesmo aparecer em quase toda

a obra, é dedicado um livro próprio, o livro V.22

Elas compreendem o desenvolvimento de um verdadeiro

sistema, o qual é pela primeira vez apresentado. Através dele, Aristóteles

procura estabelecer, inicialmente, o que seja a justiça, em que ela consiste e

quem pode ser tido como justo. Desenvolve o conceito que se constitui como

o central para sua idéia de justiça, no caso, o conceito de igualdade. Identifica,

então, os vários tipos de justiça: a universal, a particular, a distributiva, a

corretiva e a das trocas comerciais. Aponta a função da lei, à qual atribui um

ni una ontología o metafisica de la moralidad, sino una filosofia práctica que tienda, efectivamente, al cumplimiento de esta prâxis moral». Pero, en el descubrimiento de esta prâxis, Aristóteles interroga al lógos que constituye, como él ya lo había definido, la esencia del hombre (Pol. I 2, 1235a10). 22 As respostas que são dadas por Aristóteles a essa questão da justiça serão objeto deste trabalho ao longo de seu desenvolvimento, já que este é o seu objetivo, especialmente no que diz respeito à questão da lei como uma das respostas à realização da justiça.

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20

papel de suma importância, tanto que nos revela e aponta incisivamente, já

que o faz muitas vezes ao longo do texto da EN, o fato de que “o homem

cumpridor da lei é justo e o descumpridor da lei é injusto”23. Aponta, ainda, o

que identifica como a origem, o objetivo, o conteúdo e onde está, e se existe,

falha na lei. Revela, por derradeiro, no que consiste o conceito de eqüidade e

qual o seu papel no agir humano na perseguição do comportamento justo. Ou

seja, Aristóteles é o primeiro filósofo a desenvolver de forma criteriosa a

identificação do que seria a justiça, como a alcançamos e quais são seus

componentes.

A partir de tal construção não houve momento na história

do homem ocidental em que, ao se desenvolver tal assunto, não se voltasse a

Aristóteles. E se alguns não vêem nos conceitos apresentados por ele a melhor

das respostas24, isso não diminui a importância da análise do pensamento

aristotélico.

Com efeito, se é verdade que mais de dois mil anos nos

separam dele, será que é menos verdade afirmar que as questões por ele

levantadas e respondidas são ainda hoje passíveis de questionamento? Afinal,

não nos perguntamos diariamente, sejam os filósofos, sejam os juristas, sejam

os cidadãos, o que seja a justiça?, como alcançá-la?, qual o papel da lei?, se

devemos respeitar leis injustas?, e tantas outras neste sentido? Não é verdade

que temos esses questionamentos e perseguimos suas respostas com pelo

menos igual preocupação como o fizeram os gregos e, em especial,

23 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1129 a. 24 As visões a favor e contra a construção aristotélica sobre a justiça serão objeto de análise e apontamento neste trabalho, de forma gradual, na medida em que forem sendo desenvolvidos os conceitos aristotélicos.

Page 15: O JUSTO COMO VIRTUDE - Dal Mass

21

Aristóteles? Numa sociedade em constante modificação, não é a justiça um

tema sempre presente e, portanto, sempre atual?

Por isso a presença de Aristóteles é importante não apenas

para o estudo do pensamento e da formação dos antigos, mas sobretudo do

homem moderno, o que, aliás, se dá nas mais variadas áreas25. Afinal, foi ele

quem, entre outros, nos deixou uma vasta gama de estudos que se renovam, e

cujos temas se tornam a cada dia mais presentes e ansiosos por respostas,

justamente por sua importância.

Por tal motivo, falar hoje em justiça ou injustiça, cumprir

ou não uma lei injusta, pressupõe o estudo das idéias desenvolvidas por

Aristóteles26. Caberá ao pensador moderno, com seriedade e serenidade, saber

separar conceitos que se faziam importantes e/ou aplicáveis e aceitáveis

apenas para aquela época dos antigos gregos e os que o são hoje. Com certeza,

se o homem já tivesse encontrado a resposta para a pergunta de o que seja e

como se efetiva a justiça, não estaria hoje precisando renovar a cada dia tal

questionamento. Resta saber até que ponto Aristóteles pode nos ajudar a

encontrar a resposta ou, pelo menos, o indicativo para ela.

25 Enrico Berti, na introdução de sua obra As razões de Aristóteles (São Paulo: Loyola, 1998), destaca a importância de Aristóteles no desenvolvimento de diversos temas entre os mais conceituados pensadores ao longo de vários séculos. Destaca ainda a presença do estudo do pensamento dele entre pensadores modernos. Faz o mesmo na obra Aristóteles no século XX (São Paulo: Loyola, 1997), e isso de forma mais minuciosa. 26 Queremos exemplificar citando o caso de J.Rawls, que em sua teoria da justiça, desenvolvida em A theory of justice, retorna à ética das virtudes, então desenvolvida por Aristóteles, para dar sustentação a algumas de suas idéias. A influência do filósofo grego no pensamento de Rawls é observada por Olinto A. Pegoraro, na obra Ética é Justiça (1997, p.94), quando diz: Por isso, a teoria de J. Raws é perpassada por uma circularidade imanente e uma circularidade global que faz apelo ao esquema clássico da ética das virtudes. A historicidade e a circularidade podem também alargar-se à teoria aristotélica e, talvez, à kantiana. Uma boa razão para esta afirmação é a constante e sistemática referência de Aristóteles às “endoxa”, às sentenças morais por todos admitidas, às tradições, aos provérbios e versos de poetas. Tudo isto é um evidente recurso à experiência ética dos povos, sobre a qual Aristóteles ergue sua teoria.

Page 16: O JUSTO COMO VIRTUDE - Dal Mass

22

Assim, encerrar o século XX e, sobretudo, ingressar no

século XXI, cujas portas de entrada já se encontram entreabertas, falando de

Aristóteles e, em especial, sobre o tema proposto nesta dissertação, no

mínimo reproduz a importância sentida por tantos e em tantas épocas em fazê-

lo, sempre na tentativa de entender e equacionar os problemas enfrentados

pelo agir humano que, independente do progresso científico alcançado ao

longo da história da humanidade, e apesar dele, parecem continuar sendo

sempre os mesmos.27

27 Enrico Berti (1997, p.319), suscita a presença de Aristóteles em nosso século: Que sentido tem, então, esta ilustração da presença de Aristóteles no século XX, além daquela, completamente óbvia, de fornecer uma série de informações? Por que, em outras palavras, Aristóteles é ainda tão presente, depois de todo o mal ( e o bem) que se falou dele no curso de dois mil e trezentos anos? Porque, respondo, a filosofia de Aristóteles talvez seja um caso único, na história, de “sistema aberto”, isto é, de filosofia que, por um lado, é um verdadeiro sistema, vale dizer, um complexo articulado e orgânico de partes, dotado de uma grande diferenciação interna, mas igualmente também de uma certa unidade; e, por outro, é um sistema aberto, no sentido de que é suscetível de contínuas integrações, ou melhor, de múltiplas utilizações, dada a sua grande versatilidade, atestada por uma fortuna entre as maiores que jamais se deram e por uma presença maciça, como vimos, na própria filosofia do século XX. Dela se pode extrair, com efeito, conceitos, categoria (sic) , distinções, doutrinas, utilizáveis para as aplicações as mais variadas, nas mais diferentes direções, seja filosóficas ou científicas, isto é, ético-políticas, para não falar das utilizações para fins poéticos e retóricos. (...) Por isso freqüentemente, ainda hoje – e não por acaso é assim há dois mil anos -, a leitura de uma página de Aristóteles faz pensar, faz refletir, faz meditar, ensina algo acerca do sentido de certas realidades, algo diferente do que se pode aprender pelas obras e ciência ou de literatura, ou ainda de poesia.

Page 17: O JUSTO COMO VIRTUDE - Dal Mass

23

2. A JUSTIÇA COMO VIRTUDE

2.1. A virtude da justiça pelo hábito

Uma das primeiras afirmações que Aristóteles faz sobre a

justiça é a de que ela é uma virtude. Em assim sendo, devemos nos indagar,

antes de mais nada, sobre o que é e como se constitui a virtude para o nosso

filósofo.

Aristóteles demonstra no livro II da Ética a Nicômacos que

a virtude não é algo natural no ser humano, mas um hábito. Ou seja, é algo

adquirido e não algo inato no homem.28 Isso significa dizer que é da

disposição de praticarmos ações boas que nos tornamos bons.29

Transformando isso na linguagem aristotélica do ato e potência, a conclusão

seria a de que naturalmente nos é dada somente a possibilidade e a potência

(no caso, de sermos virtuosos), a qual devemos transformar em atos.

Por isso não é possível criar uma técnica (téchne) para a

obtenção da virtude. Ela se concretiza apenas através da educação ética, da

habituação no comportamento ético, da construção diuturna da conduta prática

a partir da aplicação do juízo da reta razão (orthòs lógos) à esfera das ações

28 Salgado, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1995, p. 32. 29 Comentando a afirmação aristotélica de que a virtude é um hábito, e que é através deste que ela se concretiza, comenta Francisco Samarach, na obra Cuatro ensayos sobre Aristóteles. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1991, p.232: Sea como sea, la definición de virtud a que Aristóteles vendrá a parar nos dice que [166] «la virtud es un hábito de elección preferencial (o selectivo), consistente en una mediedad respecto a nosotros, determinada por uma norma (racional) y (precisamente) por aquella por la que decidiría el (hombre) prudente» (1106 b 36-1107 a 2). Consideremos analíticamente la definición. (i) Hábito. Traduce el griego hexis, disposición adquirida, modo de ser. La idea que tensa y alienta todo el planteamiento aristotélico parece ser la de que no se trata de cualificar o valorar acciones y hechos como resultados aislados y ocasionales, sino a los sujetos responsables de los mismos; y que tal cualificación no es posible mientras las acciones del sujeto no sean constantes y coherentes con un modelo. Sólo puede ser denominado «justo» aquel para quien realizar acciones justas es como una segunda naturaleza, un modo de ser. En esto, en efecto, consistiría «la superioridad...añadida a la función»(1098 a 10).

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24

humanas.30 Por isso é que, sem esse agir, sem o hábito, não somos capazes de

promover essa mais alta virtude31: a justiça.

É o Estagirita quem afirma:

Além disto, em relação a todas as faculdades que nos vêm por

natureza recebemos primeiro a potencialidade, e somente mais tarde

exibimos a atividade (isto é claro no caso dos sentidos, pois não foi

por ver repetidamente ou repetidamente ouvir que adquirimos estes

sentidos; ao contrário, já os tínhamos antes de começar a usufruí-los,

e não passamos a tê-los por usufruí-los); quanto às várias formas de

excelência moral, todavia, adquirimo-las por havê-las efetivamente

praticado, tal como fazemos com as artes. As coisas que temos de

aprender antes de fazer, aprendemo-las fazendo-as - por exemplo, os

homens se tornam construtores construindo, e se tornam citaristas

tocando cítara; da mesma forma, tornamo-nos justos praticando atos

justos, moderados agindo moderadamente, e corajosos agindo

corajosamente.32

Fica claro, portanto, que Aristóteles está preocupado com a

prática dos atos virtuosos, sem a qual o homem não se torna bom e, portanto,

virtuoso. Parece ser pertinente, a esse respeito, suscitar uma indagação, a fim

de que a questão que tal afirmação nos traz não passe despercebida. E esta é:

como seria possível praticarmos atos bons se já não fôssemos bons? Em outras

30 Bittar, Eduardo C.B. op.cit., p.77. 31 Sobre a virtude em Aristóteles, esclarece Sir David Ross, em sua obra Aristóteles (1987, p.198/199): Aristóteles começa por discutir como é produzida a virtude de caráter, em quê e de que modo se manifesta. Não é nem natural nem inatural ao homem. Nascemos com uma capacidade para a adquirir, mas esta capacidade deve ser desenvolvida pela prática. Não se assemelha às faculdades dos sentidos que estão presentes, afirma Aristóteles, e plenamente desenvolvidas desde o início. Tal como aprendemos a ser construtores construindo, ou tocadores de harpa tocando, assim também nos tornamos justos ou temperantes pela prática de actos justos ou temperados. «Os estados de caráter são formados por actividades similares». 32 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1103 b.

Page 19: O JUSTO COMO VIRTUDE - Dal Mass

25

palavras, dizer, como diz nosso filósofo, que para nos tornarmos bons

devemos praticar atos bons, não seria inverter esse processo de causa e efeito

das ações virtuosas? Como é que um homem que já não fosse bom poderia

praticar um ato bom?

A resposta a esse paradoxo está no fato de que “Aristóteles

procura mostrar que existe aí uma diferença entre os atos que criam uma boa

disposição e aqueles daí resultantes”33. Ou seja, a questão fica resolvida a

partir do momento em que se tem presente que o Estagirita faz distinção entre

atos que têm por disposição ser virtuosos e atos que apenas resultam em

conseqüências virtuosas, independentemente de ter sido ou não praticados

com a intenção de ser ou ter um resultado bom. Pois, para Aristóteles, o ato

somente é virtuoso a partir do momento em que são preenchidas determinadas

condições, essas impostas ao agente dele realizador. É o que ele nos diz na

seguinte passagem da EN:

Acresce que o caso das artes e o das várias formas de excelência

moral não são similares; de fato, os produtos das artes têm seu mérito

em si mesmos, de tal forma que lhes basta apresentarem uma certa

qualidade, mas se os atos condizentes com as várias formas de

excelência moral têm uma certa qualidade em si, isto não quer dizer

que eles foram praticados justamente ou moderadamente; o agente

também deve estar em certas condições quando os pratica; em

primeiro lugar ele deve agir conscientemente; em segundo lugar ele

deve agir deliberadamente, e ele deve deliberar em função dos

próprios atos; em terceiro lugar sua ação deve provir de uma

disposição moral firme e imutável.34

33 Sir David Ross. op.cit., p.200. 34 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1105 b.

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26

Em outras palavras, mais didaticamente falando, devemos

ter presente que para Aristóteles “não podemos dizer que um homem é

virtuoso ou age virtuosamente, a menos que cumpra o ato considerado: 1)

conhecendo o que faz; 2) escolhendo o ato e executando-o por si próprio; 3)

como resultado de uma disposição permanente. A virtude moral não é

completa em si própria”.35

Se assim o é, a justiça, como “excelência moral inteira”, a

mais elevada de todas as virtudes, não se revela em Aristóteles pelo resultado

da ação em si, mas pela deliberação consciente do agente sobre o ato e seu

resultado36, com vistas a praticá-lo. Se alguma dúvida houvesse quanto a essa

exigência, outra passagem da EN a suprimiria:

A excelência moral, então, é uma disposição da alma relacionada

com a escolha de ações e emoções, disposição esta consistente num

meio termo (o meio termo relativo a nós) determinado pela razão (a

razão graças à qual um homem dotado de discernimento o

determina).37

E Aristóteles chega a esta conclusão distinguindo dois tipos

de virtudes: as virtudes do racional em si (da inteligência ou dianoéticas – o

saber teórico) e as do caráter (ou virtudes éticas – o saber prático).38 Aqui se

distinguem, portanto, o conhecimento e as virtudes éticas, na medida em que

35 Sir David Ross. op.cit., p.200. 36 Voltaremos a essa questão, de forma mais detalhada e individualizada, quando desenvolvermos a análise, neste mesmo capítulo, sobre o papel da “vontade” e da “consciência do ato” na prática de atos virtuosos, apontando, inclusive, outras passagens em que Aristóteles fala de tais elementos como integrantes do conceito de justiça. 37 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1106 b.

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27

as virtudes éticas, como virtude do saber prático, não se destinam ao conhecer,

mas à ação. E esta diferenciação é tão clara e importante para o Estagirita que

ele acaba afirmando que, para possuir virtudes morais, o conhecimento pouca

ou nenhuma significação possui. Diz:

Para o exercício das artes nenhuma destas condições constitui um

pré-requisito, à exceção da qualificação do conhecimento, mas para a

posse da excelência moral o conhecimento é de pouco ou nenhum

valor, enquanto as outras condições, longe de valerem pouco, têm

uma importância decisiva, se é verdade que as ações justas e

moderadas resultam da prática reiterada.39

Neste ponto é importante observar que não pode ser

confundido hábito com experiência. Como observa Aristóteles, somente as

virtudes intelectuais (dianoéticas) é que requerem experiência, enquanto que,

por seu turno, as virtudes éticas provém do hábito. É o que ele nos diz na Ética

a Nicômacos40, ao afirmar que “a excelência intelectual deve tanto o seu

nascimento quanto o seu crescimento à instrução (por isto ela requer

experiência e tempo)”, ao passo que “quanto à excelência moral, ela é produto

do hábito”. A transmissão, portanto, da arte e da ciência, se dá pelo ensino

(instrução), enquanto o ethos e a habilidade técnica se dão pelo hábito.41

38 Salgado, Joaquim Carlos. op.cit., p.33. 39 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1105 b. 40 idem, 1103 a. 41 Importante observar, neste ponto, que a questão da educação (ensino, instrução) para o alcance das virtudes éticas pelo ser humano toma outro rumo em Aristóteles, contrário ao de Platão. Isso nos conduzirá, inclusive, como se verá neste trabalho, a verificar que em Aristóteles a questão da lei como formadora do ethos é diversa daquela do seu mestre. É que, para Platão, as leis, mesmo as que fossem boas, não seriam capazes por si mesmas de tornar melhores o Estado ou os cidadãos, na medida em que, não fosse assim, seria fácil infundir, com a letra da lei, o espírito de um Estado a todos. Para ele, de nada adiantava a lei se o próprio espírito, o próprio ethos do Estado, ou seja, do próprio cidadão, não fosse bom. O que importa, dizia ele, é infundir à polis um ethos bom, e não dotá-la de um amontoado cada vez maior de leis especiais para cada setor da existência. “Platão acreditava poder renunciar por completo a uma legislação especializada no seu Estado ideal, pois supunha que nele a educação atuaria automaticamente através da livre vontade dos

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28

Diante desta perspectiva, “para melhor entender a proposta

aristotélica da prática das virtudes, é necessário considerar a ligação estreita

entre o conceito de virtude e o conceito de bem ou bom). No sentido primário,

virtude não tinha uma conotação moral, e um homem pleno e feliz era

entendido como o perfeito exercitar de todas as suas capacidades humanas. A

virtude estava atrelada à prática de certas atividades humanas consideradas

excelências, como a valentia do guerreiro, os atos nobres, heróicos, do tipo

aristocrático”42. Somente “depois passa a significar bondade, excelência,

qualidade de ações ou resultados de ações e funções específicas da essência

natural de cada ato, ente, ou produzido pelo homem.”43

Por outro lado, deve ser observado que para Aristóteles as

virtudes só são possíveis na cidade, já que a cidade são os cidadãos. Não é

possível confundir, no entanto, uma cidade com um agrupamento de seres, eis

que isso pode ocorrer também entre os animais, eis que, como os homens,

existem outros seres sociáveis. Os homens, atendendo a um impulso

característico de sua sociabilidade natural, são empurrados uns em direção aos

outros, formando a comunidade natural. No entanto, isso não significa esgotar

aí as características da cidade, eis que, ao contrário dos animais, que se

limitam em sua comunhão pelo simples gregarismo, os homens criam uma

sociabilidade com vistas à participação numa obra comum, tornando-se, então,

cidadãos, conseguindo assim o que nos outros Estados em vão a lei procurava alcançar por meio da coação”. A esse respeito, ver Paidéia: a formação do homem grego, de Werner Jaeger. 1995. p.1160. Tal pensamento não se reproduzirá em Aristóteles, o qual considerava que o ethos do cidadão é fortemente condicionado pelas leis da cidade, cabendo a ela papel repressivo quanto àqueles cujo ethos não foi convenientemente formado. Assim, apesar de a lei não pretender mudar o ethos da massa, assegura as condições que permitem aos homens viverem juntos na cidade. Mesmo porque, se não fosse a lei, o desenvolvimento das virtudes ficaria limitado a alguns indivíduos bem dotados e bem formados. Esta idéia aristotélica será oportunamente desenvolvida no capítulo próprio sobre os objetivos e a função da lei. 42 Sangalli, Idaldo José. O fim último do homem: eudaimonia Aristotélica à Beatitudo Agostiniana. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998, p.67. 43 idem, p.68.

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29

tal agrupamento humano, em uma verdadeira comunidade. Ou seja, a espécie

humana possui uma prerrogativa suplementar àquela dos animais, qual seja:

“só ela é capaz de ascender à forma mais perfeita e mais elevada da vida

social, a vida política (politikón no seu sentido eminente)”.44

Pois é no interior desse seio social, dessa comunidade, que

as virtudes surgirão. É do contato entre os membros da comunidade que as

situações apontarão para a existência de atos virtuosos. Por força de tais

pressupostos é que Osvaldo Guariglia45 afirma que é “central, pois, para a

definição da justiça em Aristóteles, o seu aspecto exterior, isto é, o tratar-se de

uma relação entre dois membros quaisquer, A e B, de uma mesma

comunidade”46.

Neste contexto, diante do desenvolvimento das relações

humanas, advirá a hierarquização das partes da cidade, a qual se dará através

da constituição. Vale dizer, dentro da cidade haverá a fixação do seu regime

(político), das suas partes constitutivas (os poderes), a designação de quem

seja cidadão, isto é, quem participa do poder deliberativo e judiciário. Essa

concepção da cidade como organização hierarquizada, no entanto, não limitará

o pensamento do Estagirita no tocante à especificidade da vida política nela

desenvolvida, cujo resultado, para efeito da análise da virtude, principalmente

para a virtude chamada justiça, terá muita importância. Ela, a vida política,

44 Vergnières, Solange. Ética e Política em Aristóteles: physis, ethos, nomos. São Paulo: Paulus, 1998, p.150. 45 Guariglia, Osvaldo. La ética en Aristóteles o la moral de la virtud. Buenos Aires: EUDEBA, 1997, p.282. 46 idem, p.158/159. Guariglia acentua aquela afirmação com a seguinte complementação: Central, pues, para la definición de la justicia en Aristóteles es su aspecto exterior, esto es, el tratarse de una relación entre dos miembros cualesquiera, A y B, de una misma comunidad. Ya hemos visto de qué manera este aspecto de la justicia está presente en todas las especies de la justicia particular; aquí se lo extiende a toda la concepción de la justicia, de modo que ésta involucra a todas las relaciones entre los miembros de una misma comunidad, y, por lo tanto, comprende también todos aquellos aspectos extrínsecos e interpersonales de las otras virtudes sociales.

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30

“vai se exprimir através de nova formulação: a cidade é comunidade de

cidadãos. Aristóteles não visa mais aqui à determinação para cada um de um

lugar numa hierarquia; ao contrário, enuncia uma igualdade”47.

Assim, ele “será levado a observar que numerosas cidades

parecem ter renunciado a toda finalidade ética, para não serem mais que a

garantia de uma ordem social determinada ( hierarquizada, na oligarquia, mais

associativa na da democracia)”, pelo que, “segundo seu estatuto e a

constituição, a cidade será, para cada um, o lugar de uma simples existência

econômica ou o de uma vida ética e política”.48 Tais observações têm

importância para a verificação de que até que ponto a pólis tem importância

para a determinação do ethos individual ou coletivo, na medida em que os

habitantes da cidade não têm a mesma dignidade política.49

2.2. A justiça como excelência moral

2.2.1. O Outro

47 Vergnières, Solange. op.cit., p.158/159. Essa questão da igualdade, ou seja, seu conceito e o que representa para a questão da justiça e, portanto, como virtude, será objeto de análise detalhada quando desenvolvermos, dentre os tipos de justiça concebidas por Aristóteles, o que seja seu conceito de “igualdade”. 48 idem, p.159/161. 49 Tal observação será objeto de desmembramento mais adiante, eis que tal constatação leva à lei como um instrumento da “politização” do ethos, já que, enquanto os habitantes da cidade não têm todos a mesma dignidade política, é de maneira diversificada que se organizam as relações entre o nomos e o ethos.

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31

A Justiça é a excelência moral perfeita, diz-nos Aristóteles.

E tanto assim considerava que chegou a anunciar que a justiça não se tratava

apenas de uma parte da excelência moral, mas era a própria excelência moral

inteira. Pelo mesmo princípio, a injustiça não é uma parte da deficiência

moral, mas sim a deficiência moral inteira. E assim a define porque vê nela

não apenas uma “forma”, mas sobretudo porque a vê como uma “prática”

desta excelência, na medida em que as pessoas não praticam apenas a justiça

em relação a si mesmas, mas sobretudo em relação aos outros. Para enaltecer

sua importância e significado, Aristóteles, na Ética a Nicômacos, chega a

reproduzir uma passagem do verso 147 das Eligias, de Têognis, dizendo que

por ser a justiça “a mais elevada forma de excelência moral, nem a estrela

vespertina nem a matutina é tão maravilhosa”; ou, ainda, que “na justiça se

resume toda a excelência”.50

Neste sentido, assim se expressa o filósofo:

Então a justiça neste sentido é a excelência moral perfeita, embora

não o seja de modo irrestrito, mas em relação ao próximo. (...) Pela

mesma razão considera-se que a justiça, e somente ela entre todas as

formas de excelência moral, é o ‘bem dos outros’; (...) Neste sentido,

então, a justiça não é uma parte da excelência moral, mas a

excelência moral inteira, nem seu contrário, a injustiça, é uma parte

da deficiência moral, mas a deficiência moral inteira”.

O que encontramos neste trecho da EN, portanto, é a

exaltação da justiça. Mas não se trata apenas de uma exaltação, um simples

referir sobre sua existência ou um enaltecer despropositado de fundamento, o

50 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1130 a. Verificar a nota 126 da edição da Unb.

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32

que poderia se caracterizar como sendo algo meramente vazio. Mais do que

isso, Aristóteles apresenta-nos uma das condições imprescindíveis para que

ela, como a maior de todas as virtudes, se torne ou possa se tornar realidade.

Ou seja, quando, em que momento e de que forma se dá a concretização desta

excelência moral, a justiça.

A verificação da passagem antes transcrita já dá um destes

elementos: o de que a justiça só se dá em “relação ao outro”, portanto, não se

caracterizando como uma excelência moral em si. Ao contrário do que se dá

nas artes e nas outras formas de excelência moral, a justiça só se dá em relação

ao próximo. E assim é porque nosso filósofo acredita que ninguém pode

praticar a justiça para consigo mesmo, posto que ninguém pode praticar, em

relação a si mesmo, a injustiça, e isso porque “ninguém quer ser vítima de um

ato injusto”; e, se ninguém o quer, ninguém pode praticar o ato injusto contra

si mesmo.51 Por isso é que para o Estagirita “o pior dos homens é aquele que

põe em prática sua deficiência moral tanto em relação a si mesmo quanto em

relação aos seus amigos, e o melhor dos homens não é aquele que põe em

prática sua excelência moral em relação a si mesmo, e sim em relação aos

outros, pois esta é uma tarefa difícil”.52

A figura do outro, ou seja, da alteridade, portanto, é

condição essencial e indispensável para o conceito aristotélico de justiça53.

51 Salgado, Joaquim Carlos. op. cit., p.39. 52 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1130 a. 53 Sobre esse elemento afirma Miguel Reale: Tratando da justiça como uma das virtudes, Aristóteles soube genialmente determinar o que a distingue e especifica, a sua proporcionalidade a outrem, ou, em palavras modernas, a nota de sociabilidade. A justiça é uma virtude que implica sempre algo de objetivo, significando uma proporção entre um homem e outro homem; razão pela qual toda virtude, enquanto se proporcione a outrem, é, a esse título, também “justiça”. A concepção de justiça como bilateralidade não se encontra apenas esboçada em Aristóteles, mas definida em alguns de seus traços fundamentais. A justiça, lembra ele

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33

Não apenas a passagem antes referida o indica, como sobretudo o conjunto da

obra aristotélica sobre a ética, na medida em que são muitas as passagens em

que nosso filósofo faz referência a tal elemento constituidor da justiça.54

Importante observar, também, que a figura do outro como

elemento da justiça não se resume ou se limita ao agir apenas por força do

hábito, ou seja, aos atos que não estão determinados e impostos por uma lei

positiva, àqueles a que o agir humano está relacionado apenas à prática das

virtudes como tal, mas também no caso da existência expressa daquela (da lei

positiva), ou seja, também no caso de haver este elemento externo definidor da

ação em relação ao outro. Portanto, a importância e a essencialidade do outro

como elemento de justiça, seja ela do tipo universal (respeito à lei ou prática

das virtudes enquanto relacionadas com o outro) ou do tipo particular (que

manda observar a igualdade)55, como as define Aristóteles, está presente de

igual forma nas duas situações em que identifica a justiça.56

no Livro V da Ética Nicomachéia, é uma virtude completa, não de modo absoluto (isto é, considerada no homem tomado isoladamente), mas nas relações com seus semelhantes, apresentando-se como a mais importante de todas: nem a estrela matutina ou estrela d’alva é tão maravilhosa. Possuí-la é poder ser virtuoso, não apenas em si mesmo, mas com relação aos outros. Por esse motivo, é ela, dentre todas as virtudes, a única que se reduz ao bem de outrem: a virtude, enquanto relação para com outrem, é justiça, e naquela relação consiste sua essência. ( Filosofia do Direito, São Paulo: Saraiva, 1991, p.624) 54 Além da expressamente aqui transcrita, outras passagens na obra aristotélica fazem menção à questão da alteridade, como por exemplo: na Ética a Nicômacos em 1130b, 1134b; na Política em 1282b; na Gran Ética em 1196a. Cf. Joaquim Carlos Salgado. A idéia de justiça em Kant, p.38 e 39. 55Salgado, Joaquim Carlos. op. cit., p.38. 56 A questão da justiça universal e particular será objeto de análise mais pormenorizada, não cabendo a mesma neste ponto. Cabe destacar aqui, porém, onde se analisa a questão central do outro no conceito aristotélico de justiça, já que mais adiante, na abordagem daquelas, nos limitaremos ao seu conceito e relação ou não com a lei positiva, o que lembra Joaquim Carlos Salgado (op.cit., p. 38, nota 58): “DEL VECCHIO, em La justice – la verité, p.30, procura mostrar que a característica da alteridade é mais própria à noção de justiça particular. Com efeito, a noção de lei que define o ato de justiça universal, enquanto a ela seja conforme, abrange também a lei moral, o que traz certa dificuldade de interpretação que não cabe aqui discutir. Se Aristóteles, entretanto, insiste, tantas vezes, em pontos diversos da sua obra, sobre a alteridade da justiça, não há dúvida de que, mesmo quando se trate de uma ação prescrita por uma lei moral, será chamada justa, na medida em que quem pratica, fá-lo como membro de uma comunidade para a qual deve formar-se como bom cidadão. O próprio Del Vecchio cita MOLINA. De justitia et jure, e WOLFF. Ethica sive Philosophia moralis et jus naturae methodo scientifica pertractatum, como defensores da alteridade também na justiça universal. De qualquer forma, a alteridade aparece na justiça universal de modo pelo menos indireto e, na particular, de

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34

Aliás, a noção de alteridade para a conformação do díkaion

nomimón (justo total como virtude total) é tão importante para Aristóteles que

ele chega a destacar que ao sermos injustos com o outro por descumprimento

de uma lei, seja através de um ato comissivo (violar a lei), seja através de um

ato omissivo (abster-se de atendê-la), não apenas estaremos sendo injustos

com relação à pessoa atingida por aquele ato, como de resto em relação a

todos os membros da cidade, na medida em que a lei é a garantia da

sustentação do corpo social como um todo. Neste sentido, portanto, a afetação

da alteridade se dá de acordo ou em desacordo com a lei, pelo que o justo ou o

injusto são provocados pelas atitudes omissivas ou comissivas frente às

prescrições ditadas pelo legislador.57 Ser injusto com o outro, portanto,

através do descumprimento ou da omissão ao cumprimento da lei não é ser

injusto apenas com o outro, mas com todos os outros, com todos os membros

da pólis.

2.2.2- A consciência do ato Como já vimos58, Aristóteles preocupou-se em tentar

esclarecer quando uma ação pode ser considerada virtuosa ou não, e, por

conseqüência, como sendo justa ou injusta. Para tanto, esclarece que, entre

modo direto na relação entre as pessoas, malgrado o que diz ARISTÓTELES, na Gran ética, 1193b, onde afirma que há uma justiça referente ao trato com o nosso semelhante, diferente da justiça legal. É significativa a seguinte passagem da Ética a Nicômaco, depois de mostrar que a justiça é o que a lei prescreve de modo não arbitrário: “A justiça assim entendida é uma virtude completa, não em si, mas pela relação com o outro” (ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, 1129b.)” 57 Bittar, Eduardo C.B., op.cit., p.82/83.

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outros componentes, para o ato ser considerado virtuoso, deve ter em sua

gênese a “consciência” sobre o mesmo, ou seja, como nos diz, “o agente deve

agir conscientemente”. É que Aristóteles quer distinguir aqueles atos que

tenham alcançado algo de bom ou de ruim por um agir consciente daqueles

cujo resultado não teve esta mesma disposição. Ou seja, procura distinguir no

ato, para sua definição virtuosa ou não, mais do que e além do seu resultado

(positivo ou negativo), o conhecimento sobre o mesmo. E o Estagirita

persegue tal distinção porque não considera que o resultado em si de

determinado ato, seja bom seja ruim, possa definir a ação e, portanto, o

próprio agente, como virtuoso ou justo. Isso porque “as ações que produzem a

virtude assemelham-se às produzidas pela virtude, não pela sua natureza

íntima, mas apenas pelo seu aspecto exterior”59. Assim é que se encontra,

revelando a preocupação do Estagirita com tal questão, além do que contém a

afirmação transcrita anteriormente60, a seguinte referência à importância da

consciência sobre o ato:

Da mesma forma que dizemos que algumas pessoas que praticam

atos justos não são necessariamente justas, isto é, as pessoas que

praticam os atos determinados pelas leis contra a vontade, ou por

ignorância, ou com vistas a algum outro objetivo, e não por causa dos

próprios atos (embora elas façam sem dúvida o que devem e tudo que

uma pessoa boa deve), parece que para ser boa uma pessoa deve ter

uma certa disposição quando pratica estes vários atos ou seja, a

58 Ver nota nº 29 e 36. 59 Sir David Ross. op.cit., p.200. Quanto a esse aspecto, salienta: Aqui Aristóteles toca com precisão na diferença entre os dois elementos envolvidos numa acção completamente boa: a) o facto de a coisa feita dever constituir o que de mais conveniente se podia fazer dadas as circunstâncias: e b) o facto de ser feita a partir de um bom motivo.” 60 Ver nota nº 34.

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36

pessoa deve praticá-los em decorrência de escolhas e por causa dos

próprios atos.61

Tal posição aristotélica, está claro, origina-se no fato de

que ele considera “o homem como o princípio e o genitor de seus atos”, pelo

que, estando presente a circunstância contingencial62, é no indivíduo, e não

fora dele, na condição de indivíduo que age, como elemento de quem o ato

depende, que se busca a interpretação sobre as conseqüências do ato e seus

aspectos virtuosos ou não.63

Estamos, portanto, dentro da análise aristotélica do homem

racional, possuidor do logos que lhe possibilita distinguir o certo do errado, o

bom do mau, o justo do injusto. Na posse de tal faculdade é que o homem é

capaz de agir virtuosamente, como dele se espera. Por isso é que, “qualquer

que seja seu ato, o homem não é somente seu princípio motor ou agente, mas

também agente que consente”64.

Como veremos mais adiante, a presença deste

consentimento é que permite fazer a distinção entre os atos que nos são

moralmente e/ou juridicamente imputáveis dos que não o são. Porém, antes

disso, é preciso estabelecer e apreender o conceito de proairesis, fundamental

para a compreensão desta idéia aristotélica, cujo termo não é unívoco e,

61 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1144 a. 62 Não desenvolveremos aqui a questão da “contingência” aristotélica, eis que não se trata da questão central para o desenvolvimento do tema sob exame. No entanto, esclarecemos que, no contexto, partimos do pressuposto da existência de tal circunstância necessária e imprescindível para que qualquer atitude do ser humano possa ser encarada, enfrentada, analisada e julgada em relação ao seu mérito. Ou seja, o futuro está aberto e as possibilidades de escolha são uma realidade, como pressuposto, para o agir do indivíduo sob exame. 63 Vergnières, Solange. op.cit., p.99. 64 idem, p.101.

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geralmente, em relação a ele, reconhecem-se dois sentidos principais: o

primeiro, o de escolha intencional, sobre o qual pode-se destacar duas

acepções da palavra “intenção”, uma no sentido de visar a um fim e a outra no

sentido de disposição interior com a qual se visa ao fim; e, o segundo, o de

escolha nascida da deliberação sobre os meios.65 Tal distinção far-se-á

visivelmente presente e importante, ao verificarmos a diferença entre

“consciência do agente” e “vontade do agente”. Em relação à “consciência” do

ato, passamos a enfrentar o conceito de proairesis como intenção no sentido

de visar a um fim, enquanto que, ao se abordar o tema da “vontade”, ele terá o

sentido de “disposição interior” com a qual se visa a um fim, neste caso

associado ao sentido de “deliberação sobre os meios” para atingir este mesmo

fim66.

Portanto, para o Estagirita, o homem só é virtuoso e justo

quando pratica um ato bom visando esse fim. Em outras palavras, caso ele

realize um ato sem tal consciência, mesmo que este venha a ter como

resultado algo bom ou justo, não significa que o homem deva ser considerado

bom ou justo.

Como lembra bem S.Vergnières, “προαιρεσισ como

intenção pode servir para qualificar a disposição interior particular do homem

temperante: nós temos como prova os dois textos seguintes: o homem

virtuoso, diz Aristóteles, faz o que deve fazer, mas ‘o faz intencionalmente,

65 idem, p.102. Sobre o conceito de proairesis (ou proairetiké), diz-nos Francisco Samaranch (op.cit., p.232), esclarecendo ainda mais a compreensão do mesmo: De elección preferencial o selectiva. Este es el sentido que habitualmente se atribuye al adjetivo verbal προαιρετικ. Lo que se indica com él es precisamente uno de los rasgos constitutivos de esse hábito: no debe verse como una realización mecánica de acciones determinadas, sino en la «disposición» voluntaria y deliberada a elegir siempre ciertas cosas preferentemente a otras, de modo que tal conducta sea imputable al individuo. 66 O conceito de proairesis como intenção no sentido de disposição interior, bem como no sentido de deliberação sobre os meios será desenvolvido no título seguinte, no qual abordaremos o elemento vontade, eis que nela é que eles se apresentam, ficando assim melhor distribuída a questão.

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isto é, em razão das coisas às quais visa’; com o mesmo espírito, define o

virtuoso (e exclusivamente o virtuoso), como ‘aquele que fez obras de virtude,

primeiro, com o conhecimento de causa e depois, intencionalmente;

precisemos: intencionalmente, em razão delas mesmas’. Nos dois casos, o ‘em

razão de’ explicita a proairesis.67

Aristóteles deixa ainda mais claro este seu pensamento ao

dizer na Ética a Nicômacos:68

Mas já que agir injustamente não resulta necessariamente em ser

injusto, devemos perguntar: quais são os atos injustos que tornam os

seus autores injustos em relação a cada tipo de injustiça – por

exemplo, um ladrão, um adúltero ou um salteador? Ou diríamos, ao

contrário, que a distinção não está na qualidade do ato? Com efeito,

um homem poderia até manter relações sexuais com uma mulher

67 Vergnières, Solange. op.cit., p.103. A esse respeito, na mesma obra e página, Solange Vergnières apresenta a seguinte explicação, a qual merece destaque: A proairesis designa, pois, primeiro, a escolha intencional como visar a um fim. Esse sentido permitirá distinguir o intemperante do incontinente. Sabe-se que, para Aristóteles, o desejo pode assumir três formas, duas irracionais, a concupiscência e o arrebatamento; uma forma racional, a boulesis, que deseja o que o pensamento (dianoia) prescreve como bom. A boulesis é às vezes traduzida por vontade, mas à medida que pode ser o desejo de coisas impossíveis, à medida que pode ser pervertida, parece preferível traduzi-la por desejo ou voto. O intemperante e o incontinente deixam-se, ambos, levar por seus desejos irracionais. Contudo, o incontinente é capaz de reconhecer a regra e, por isso, desejá-la: Aristóteles diz que ele age com pleno consentimento (seu ato depende dele), mas contra seu desejo ou ainda, contra sua intenção. A proairesis é, pois, aqui, vizinha da boulesis com a diferença que ela visa a um fim particular atualmente possível. O intemperante, da sua parte, perdeu o senso do valor da regra: visa a um fim mau, testemunhando, assim, uma perversão da proairesis e de seu pensamento. Encontra-se, também, em Enrico Berti, na obra As razões de Aristóteles (1998, p.143/156), interessante desenvolvimento sobre o conceito de prhoaíresis em Aristóteles, o qual pode complementar a idéia aqui desenvolvida. Podemos destacar a seguinte passagem: Ambas as partes da alma racional, ou seja, da razão, prossegue Aristóteles, têm como “obra” a verdade: a científica tem como obra a verdade pura e simples, isto é, o simples conhecimento de como são as coisas, enquanto a calculadora tem como obra a “verdade prática”, isto é, “a verdade de acordo com o desejo reto”. A propósito desta última, Aristóteles explica que a ação (práxis) tem como princípio a “escolha”(prhoáiresis), a qual é o resultado do encontro entre o desejo de chegar a certo fim e o cálculo dos meios necessários para alcançá-lo, ou “deliberação”(p.144/145). E mais adiante, logo após explicar as “virtudes dianoéticas”, acrescenta: Bem diferente é o estudo da phrónesis que para Aristóteles é uma virtude, ou melhor, a mais elevada virtude da parte calculadora da alma racional, isto é, da razão prática. Ela, com efeito, é por ele concebida como a capacidade de deliberar bem, ou seja, de calcular exatamente os meios necessários para alcançar um fim bom (p.146). 68 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1134 a.

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sabendo quem ela é, mas a origem do ato poderia não ser sua própria

escolha, mas a paixão. Ele age injustamente, então, mas não é injusto;

por exemplo, um homem não é um ladrão, mas rouba, não é um

adúltero, mas comete o adultério, e assim por diante em todos os

outros casos.69

Não basta, portanto, que a ação tenha conformidade com o

que se tem como virtuoso, assim como não basta que o homem pratique a

justiça, mas sim é necessário que ele saiba da justiça do seu ato, que tenha

consciência dessa ação justa, sem o que não poderá ser considerado um

homem virtuoso e justo.

2.2.3- A vontade

A virtude moral não é completa em si mesma. Ou seja, para

sermos moralmente virtuosos, é preciso possuirmos em nós mesmos a

sabedoria prática ou seguirmos o exemplo ou preceito de alguém que a

69 Referindo-se a essa passagem, Osvaldo Guariglia (1997, p.287/288), nos diz: Ahora bien, la virtud de la justicia es aquella que permite al hombre justo actuar eligiendo deliberadamente hacerlo de acuerdo en cada caso a un criterio de justicia, sea de la particular como de la universal. De la misma manera, el injusto no es aquél que comete un acto aislado contrario a la ley, como por ejemplo un robo o un adulterio – a los que pudo haber sido arrastrado por la necesidad o por la pasión -, sino quien lleva a cabo esas acciones con pleno conocimiento de que son acciones contrarias a la justicia, habiendo deliberado previamente y habiendo resuelto la comisión de esos actos con plena adhesión de su voluntad (1134 a 17-23; 1135 b 19-25).

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possua, pois é pela aplicação de princípios gerais, por um processo de

raciocínio às circunstâncias particulares, que determinamos a acção

conveniente.70 Ou seja, mantém-se o princípio através do qual o homem, por

possuir o logos, é o detentor do poder de decidir sobre o certo e o errado, de

agir bem ou mal, o que indica que “só é possível a prática de um ato justo ou

injusto na medida em que alguém o quer”.71

Assim ele afirma: Sendo os atos justos e injustos aqueles que descrevemos, uma pessoa

age injustamente ou justamente sempre que pratica tais atos

voluntariamente; quando os pratica involuntariamente, ela não age

injustamente nem justamente, a não ser de maneira acidental. O que

determina se um ato é ou não é um ato de injustiça (ou de justiça) é

sua voluntariedade ou involuntariedade; quando ele é voluntário, o

agente é censurado, e somente neste caso se trata de um ato de

injustiça, de tal forma que haverá atos que são injustos mas não

chegam a ser atos de injustiça se a voluntariedade também não estiver

presente.72

Em outra passagem, Aristóteles é ainda mais incisivo,

parecendo até, por força da sua conclusão a respeito de como devem ser vistos

os atos involuntários, deixar uma recomendação aos legisladores sobre esta

questão: A excelência moral se relaciona com as emoções e ações, e somente

as emoções e ações voluntárias são louvadas e censuradas, enquanto

70 Sir David Ross. op.cit., p.201. 71 Salgado, Joaquim Carlos. op.cit., p.39. 72 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1135 a.

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as involuntárias são perdoadas, e às vezes inspiram piedade; logo, a

distinção entre o voluntário e o involuntário parece necessária aos

estudiosos da natureza da excelência moral, e será útil também aos

legisladores com vistas à atribuição de honrarias e à aplicação de

punições.73

Assim, uma pessoa que cause um dano a outra pode até ter

causado uma injustiça, mas, porém, apenas por acidente, não cometendo

injustiça se não age voluntariamente.74

Para a compreensão plena deste pensamento, é importante

ter presente o que Aristóteles entende por “ato voluntário”. Para tanto pode ser

verificada a seguinte passagem:

Considero voluntária, como já foi dito antes, qualquer ação cuja

prática depende do agente e que é praticada conscientemente, ou seja,

sem que o agente ignore quem é a pessoa afetada por sua ação, qual é

o instrumento usado e qual é o fim a ser atingido (por exemplo, quem

ela está golpeando, com que objeto e para que fim); além disto,

nenhuma destas ações deve ser praticada acidentalmente ou sob

compulsão (por exemplo, se alguém segura a mão de uma pessoa e

com ela golpeia outra pessoa, a pessoa cuja mão é segura não age

voluntariamente, pois a prática do ato não dependia dela).75

73 idem, 1109 b. 74 Oportuno observar o que diz Eduardo C.B.Bittar sobre essa particularidade (op.cit., p.98): A coisa justa (tò díkaion) e a coisa injusta (tò ádikon), ao serem praticadas por um agente que obra voluntária e conscientemente, convertem-se em atos de justiça ou em atos de injustiça. Aqui, tanto o justo como o injusto, ganhando dinamicidade com o advento de uma ação, revestem-se da voluntariedade proveniente da esfera subjetiva do agente, recebendo a denominação de atos de justiça ou atos de injustiça; trata-se de algo inerente à esfera da ação subjetiva, onde imperam e concorrem a razão e a vontade. 75 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1135 a 23-28. Ao dizer “como já foi dito antes” no momento de introduzir sua explicação sobre o que considerava uma prática voluntária, Aristóteles estava se referindo às passagens 1109b 35, e, 1111 a 24, onde já havia introduzido o assunto, conforme observa Mário da Gama Kury,

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42

A causa do ato voluntário, portanto, está no homem

mesmo, posto que só ele tem em si mesmo o princípio de certos atos, o que

significa ter a possibilidade de realizá-los ou não. O ato voluntário é, desta

forma, um ato interno, ao passo que o involuntário é o externo. Ou seja, o ato

voluntário é o que se pratica com o conhecimento pleno das circunstâncias que

o envolve.76

É neste ponto que temos presente a noção da proairesis

como “disposição interior” com a qual o agente visa um fim, bem como no

sentido da “escolha nascida da deliberação sobre os meios” para alcançar esse

fim. Sem a intenção oriunda do próprio agente, por força de sua própria

disposição, onde se exterioriza a própria intenção para o fim e se delibera

intencionalmente na escolha dos meios para o alcance deste fim, não se pode

falar em voluntariedade.77

responsável pela tradução, introdução e notas da edição da Unb, uma das obras que está sendo utilizada para o desenvolvimento deste trabalho. 76 Salgado, Joaquim Carlos. op. cit., p.39 e 40. 77 Observe-se, nesse aspecto, o consignado por Solange Vergnières (op.cit, p.104/105): O segundo sentido de proairesis foi perfeitamente analisado por P.Aubenque: designa a escolha deliberada dos meios para alcançar um fim. A faculdade de deliberar pertence a todo ser humano adulto (salvo ao escravo), que busque agir não somente por hábito mas por cálculo; ela se exerce notadamente nos campos onde a iniciativa é necessária, em política ou em economia. A escolha deliberada põe em obra esta faculdade especificamente humana que é a inteligência prática. Esta escolha deliberada é em si mesma moralmente neutra; como diz P. Aubenque, “a escolha acha-se, aqui, despojada de toda responsabilidade moral...Não é mais o lugar da imputabilidade, mas o momento da habilidade”. Contudo, é preciso matizar esta afirmação. Para a instituição judiciária, a premeditação, a invenção deliberada dos meios acrescem a culpabilidade daquele que comete a injustiça, precisamente porque testemunham injustiça fundamental, o vício, a intemperança do culpado. Inversamente, para Aristóteles, a virtude ética só é completa se for acompanhada por uma capacidade intelectual de deliberar bem. Podemos dizer que da mesma visão compartilha Francisco Samaranch (op.cit., p.234), quando afirma: i) Proáiresis.«Cuando Aristóteles define la virtud ética como hexis proairetiké, no piensa en modo alguno en el análisis (...lib.III) de la elección deliberada. Quiere decir que la virtud es una disposición que compromete nuestra liberdad, nuestra responsabilidad, nuestro mérito: el adjetivo proairetikós designa la diferencia específica que separa la virtud moral, que nos es imputable, de la virtud natural, que no tenemos mérito alguno en posser» (Aubenque, o .c.,119 s). sin embargo, en Ética nicomaquea III,2 – y en el correlativo pasaje de la Eudemiana -, proáiresis parece revestir un sentido distinto: es caracterizada como «elección de los medios» que llevan a un fin (111 b 27) y se presenta como el momento de la decisión, el punto en que lo posible pensado se convierte en posible querido. No indica, por tanto, algo así como un «proyeto de vida» - al modo que lo escenificó, p.e., el mito de Er el Pamfilio en

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Destaque-se que este pensamento aristotélico encontra

determinada dificuldade para que alguns o aceite, eis que, pelo critério

deliberativo do Estagirita, poderíamos estar diante de uma razão meramente

técnica e instrumental, na medida em que, se não se delibera a não ser sobre os

meios, a razão só poderia ter um papel subalterno, qual seja, o de encontrar os

meios adequados para alcançar o fim, qualquer que seja. Ora, não está a

moralidade também a serviço da escolha dos fins e não simplesmente dos

meios?

O que parece afastar a teoria aristotélica desta característica

meramente formal no que tange à deliberação é a sua própria afirmação no

sentido de que “uma vez estabelecido o fim, examina-se como e por que meios

ele será realizado”. Portanto, assim como o homem que delibera abandonará o

fim que quer realizar se descobre que não possui os instrumentos para obtê-lo

(EN III 5 1112 b 24-26), assim também o homem de bem que delibera

abandonará o fim se percebe que o único meio disponível acarreta um modo

inaceitável de agir (EN III 1 1110 a 26-27; cf. III 5 1112 b 17-18). Ou seja, é

exatamente essa consideração sobre o modo de agir que retira a deliberação

República X -: lo que de hecho se elige es un modo de actuar ajustable a las circunstancias y por ello somos lo que elegimos hacer. Como se dice en la Eudemiana (II,10), «la elección preferencial es acción de tomar, pero no en sentido absoluto, sino una cosa com preferencia a outra» (1226 b 7-9). Porque [168] «la voluntad tiene como objeto preferente el fin, y la eleción preferencial las cosas que llevan al fin: por ejemplo, queremos gozar de buena salud y escogemos preferentemente las cosas que favorecen la salud» (1111 b 26-28). Lo que Aristóteles, pues, nos está diciendo aquí es algo que há expuesto de forma más extensa en un pasaje de la Política (VII,3), a saber, que por más que los medios siempre se subordinen a los fines, no siempre los medios se adecúan a, y sintonizan com los fines propuestos: [169]«porque son dos las cosas de que depende el bien para todos: una de ellas consiste en establecer correctamente el objetivo y el fin de las acciones; la outra consiste en hallar las acciones que conducen al fin (es, en efecto, posible que estas cosas están entre sí en disonancia o en consonancia: pues unas veces el objetivo es establecido correctamente, pero se yerra en las acciones que llevan a conseguirlo; otras veces se logran todas las cosas que llevan al fin, pero el fin establecido es malo; y otras veces se yerra en lo uno y en lo outro...)» (11331 b 26-34).

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sobre os meios do domínio simplesmente técnico e instaura um uso da razão

que se aproxima do que se espera ser seu papel moral ou prático.78

Pode-se afirmar, portanto, que há dois elementos a serem

considerados para a deliberação na teoria aristotélica: primeiro, o fim posto

pelo hábito; segundo, os meios encontrados mediante a deliberação prática.

Disso decorre que duas condições devem ser satisfeitas: de um lado, o hábito

moral põe um fim; de outro lado, a habilidade intelectual encontra os melhores

meios para alcançá-los. E é exatamente no encontro destes dois elementos que

a prudência se engendra, resultando que se o fim não é bom, não se trata de

prudência, por mais hábil que seja o agente, mas de vilania; se o fim é bom,

mas os meios não são os melhores, a retidão da ação também fracassa e a

prudência desaparece a despeito das boas intenções do agente.79

Por força desta estrutura deliberativa é que Aristóteles

consegue pôr em destaque, no livro terceiro da Ética a Nicômacos, que é

mediante a deliberação que nos tornamos princípio da ação, pois nos tornamos

senhores do fazer ou não fazer os meios para obter um certo fim. E se é assim,

somos inteiramente responsáveis de nossas ações, mesmo que sejamos

somente em parte ou, ainda, em nenhum sentido senhores dos desejos e fins

que nos aparecem.80

Neste ponto é preciso esclarecer que para Aristóteles

voluntariedade e escolha não têm o mesmo sentido, podendo-se dizer que

78 Cf. Zingano, Marco. Notas sobre a deliberação em Aristóteles. in Filosofia Política:nova série, 3. Porto Alegre: L&PM, 1998, p.100. 79 idem, p.102. 80 idem, p.104.

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trata-se de dois componentes em um, ou mesmo dois distintos. É que

Aristóteles não identifica a “escolha” como a própria voluntariedade,

apontando que as ações podem ser movidas por esta, sem a presença daquela.

A afirmação do Estagirita é a seguinte:

Tendo definido o voluntário e o involuntário, devemos examinar em

seguida a escolha; esta, com efeito, parece relacionar-se intimamente

com a excelência moral, e proporciona um juízo mais seguro sobre o

caráter do que sobre as ações.

A escolha, então, parece voluntária, mas não é a mesma coisa que o

voluntário, pois o âmbito deste é mais amplo. De fato, tanto as

crianças quanto os animais inferiores são capazes de ações

voluntárias, mas não de escolha. Também definimos os atos

repentinos como voluntários, mas não como o resultado de uma

escolha.81

Importante observar, também, a afirmação que se segue à

passagem antes transcrita do texto aristotélico, a qual aponta claramente para a

supremacia do princípio da racionalidade dentro deste contexto:

A escolha se identifica ainda menos com a paixão, pois os atos

motivados pela paixão são provavelmente menos passíveis de escolha

que quaisquer outros.82

O homem, pois, único animal possuidor do logos, tem a

condição de agir por força do consentimento, e isso, o que se espera, sempre

com vistas a ações virtuosas. E é em não agindo com vistas a isso, ou seja, é

81 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1111 b. 82 idem, ibidem.

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em escolhendo deliberada83 e voluntariamente sobre uma ação não virtuosa,

seja no que tange aos meios ou seja no que tange aos fins, que o homem se

torna injusto.84

Nesse ponto, é necessário que se faça uma análise das

condições que envolvem a involuntariedade do ato do agente segundo a visão

aristotélica, as quais retiram o caráter de responsabilidade sobre o mesmo, já

que, como vimos, somente pelas ações voluntárias é que o homem pode ser

louvado ou censurado.

Pois para o Estagirita, duas são as formas de considerar o

ato involuntário: as que tiverem sua gênese na coação ou na ignorância.85

Cada uma delas possui sua característica própria, como veremos a seguir.

83 A este respeito acrescenta Francisco Samaranch (op.cit., p.235/236), esclarecendo a importância da deliberação: La deliberación se encuentra com la prudencia en el espacio de lo contingente, donde también se hace posible la conducta éticamente imputable del hombre. El hombre prudente se há definido como «el capaz de deliberar» (1140 a 31) y el capaz de «deliberar bien» (1142 b 31 s). Ahora bien, [170] «nadie delibera acerca de las cosas que no pueden ser de outra manera, ni acerca de aquellas que a uno no le es posible realizar» (1140 a 31-33). Al tiempo que, [171] «si es próprio de los hombres prudentes deliberar bien, la buena deliberación (ευβουλ°α) será una rectitud en cuanto a lo que es conveniente de cara a un fin, sobre lo cual la prudencia es un juicio verdadero» (1142 b 31-33). En [170] se señalan dos condiciones de posibilidad de la deliberación. La primera define también el campo de operatividad de la prudencia en general: se trata de «aquellas cosas que pueden ser de outra manera» (1140 b 27; 1141 a 1; 1141 b 11). Este coeficiente de indeterminación y potencialidad es característico de todos los particulares que constituyen el mundo de la experiencia sensible y que se explican como una forma realizada en una materia. La segunda condición viene a ser una restricción de la primera: no todas las cosas que «pueden ser de outra manera» son objeto de nuestra deliberación, ni objeto, por tanto, de la prudencia, sino sólo «las que dependen de nosotros» (É.nic.,III,3, 1112 a 30 s; É. Euc., II, 10, 1226 a 28). 84 Quanto a “escolha”, Sir David Ross (op.cit., p.206), assevera: Sendo as actividades virtuosas não apenas voluntárias, mas também de acordo com a escolha, segue-se que a virtude e o vício estão ao nosso alcance. A frase de Sócrates “nenhum homem é voluntariamente mau” não é verdadeira, a não ser que estejamos preparados para dizer que o homem não é fonte e o produtor das acções. 85 Sir David Ross. op. cit., p.203. Podemos dizer que existem os que identificam a visão aristotélica das ações em que há o comprometimento da vontade sob duas formas e os que as identificam como sendo de três formas. Entre os que as vêem da primeira maneira podemos identificar, devido a passagem citada, Sir David Ross, bem como Solange Vergnières que, em sua obra (1999, p. 101), refere: Só há, para Aristóteles, dois tipos de atos que se cumpre sem consentimento; os que são feitos por imposição exterior e os que são feitos por ignorância. Entre os que as vêem da segunda maneira podemos identificar Joaquim Carlos Salgado (1995, p. 40), Osvaldo Guariglia (1997, p.288) e Eduardo C.B.Bittar (1999, p.99), sendo que este último analisa da seguinte maneira a questão: Um ato injusto, causador de um dano, pode ter sua origem de três formas diferentes, a saber: a) em virtude da ignorância, ...; b) em virtude de infortúnio,...; c) em virtude da

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Com efeito, as ações coercivas são aquelas cuja origem

vem de fora, pelo que o agente não contribui em nada para que elas ocorram,

ou seja, são aquelas em que o corpo é manobrado por uma força exterior

irresistível que as impõem.86

Por sua vez, a ignorância foi distinguida de duas maneiras

por Aristóteles, atribuindo apenas a uma delas a possibilidade de retirar a

voluntariedade do ato, portanto, o escusando. O Estagirita identifica a

ignorância que “não depende de nós” e a que “depende de nós”. A primeira é

identificada como aquela que não está relacionada ao consentimento, ou seja,

ela independe de nossa vontade; a segunda, por sua vez, ao contrário,

manifesta-se apenas através do nosso consentimento. Por isso, seguindo o

princípio da vontade do agente, somente torna involuntário o ato, escusando-o,

a primeira, ou seja, a ignorância que “não depende de nós”, já que dela não

participamos voluntariamente. Por isso é que argumentos levantados para

inexistência de deliberação prévia, ...Não obstante obterem-se resultados que caracterizam atos de injustiça, aquele que obra de acordo com qualquer das três hipóteses elencadas não pode ser dito um homem injusto, pois o resultado não estava absolutamente sob seu domínio, ocasionado pela intercessão de causas externas ou internas ao agente, ou mesmo como fruto de paixão inerente ao homem. Ao nosso ver parece não haver contradição entre os argumentos, mas apenas uma forma distinta de encarar a questão. Os que dividem em três as formas possíveis de um ato injusto não tipificar o agente de tal ato como injusto o fazem sem considerar o elemento vontade como distinto do elemento consciência sobre o ato quando da deliberação a respeito do mesmo. Esta questão parece ficar presente quando analisada a forma minuciosa como Solange Vergnières apresenta a questão, abordando o conceito de proairesis. O eixo central parece ficar na questão da deliberação. Esta, para os pensadores do primeiro grupo (das duas formas), não se encontra na vontade, mas na consciência sobre o ato, eis que se trata a deliberação de uma escolha. Para melhor verificação desta problemática parece interessante reproduzir o que diz Sir David Ross (1987, p.205): A escolha não é, evidentemente, co-extensiva com a acção voluntária. As acções das crianças e dos animais inferiores, e ainda as acções praticadas pelo impulso do momento, são voluntárias mas não escolhidas. A escolha tinha sido identificada, por outros pensadores, como uma forma de desejo (apetite, cólera ou desejo racional) ou como uma espécie particular de opinião. Mas Aristóteles não tem qualquer dificuldade em a diferenciar de tudo isto. É quase como o desejo racional, mas 1) podemos desejar o impossível, mas não podemos escolhê-lo. 2) Podemos desejar algo que não depende da nossa própria acção, mas não podemos escolhê-lo. 3) O desejo é-o de um fim, a escolha de um meio. Finalmente, é sugerido que o objecto de escolha é aquele sobre o qual se decidiu por deliberação. 86 idem. ibidem.

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48

justificar determinados atos, como, por exemplo, a embriaguez ou o

desconhecimento da lei, que alguns podem considerar equivocadamente como

elementos a escusar determinados atos, em nada auxiliam o agente do ato para

escusá-lo ou mesmo minimizar o julgamento sobre sua atitude. É que sob tais

circunstâncias o motivo da ignorância dependeu do agente, ou por ação ou por

omissão. Estas ilustrações são trazidas pelo próprio Aristóteles.

Diz o nosso filósofo:

Agir por ignorância parece também diferente de agir na ignorância,

pois se considera que uma pessoa embriagada ou encolerizada age

não por ignorância, mas por uma das causas mencionadas, sem saber

o que está fazendo.87

E ainda:

Realmente, punimos uma pessoa até por sua ignorância, se ela for

considerada responsável pela ignorância, como quando as

penalidades são dobradas, no caso da embriaguez; efetivamente, a

origem da ação está no próprio homem, pois estava ao seu alcance

não ficar embriagado, e a embriaguez foi a causa de sua ignorância.

Punimos igualmente as pessoas que ignoram qualquer dispositivo das

leis que devem conhecer, e podem conhecer facilmente, e da mesma

forma no caso de qualquer outra proibição cuja ignorância seja

presumidamente devida à negligência; presumimos que estava ao

alcance destas pessoas não ser ignorantes, pois elas teriam podido

tomar precauções.88

87 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1110 b. 88 idem, 1134 a.

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O exemplo da bebida e do desconhecimento da lei que

Aristóteles nos traz parecem ser bem oportuno para ilustrar claramente seu

pensamento. Ele nos permite ver que “a única ignorância que não diz respeito

ao consentimento é aquela que não depende de nós; dito de outro modo, se nos

colocamos, por atos feitos de boa vontade (por exemplo, nos embebedamos)

num estado que nos torna ignorantes, somos responsáveis por essa ignorância:

não agimos por ignorância, mas como ignorantes. Em compensação, se

agimos por ignorância das condições objetivas da ação, não se pode mais falar

de consentimento e de falta, mas de acidente infeliz (atykema)”89.

Com efeito, pode ser dito que, do ponto de vista do agente,

a moralidade do ato não se mede apenas pela simples voluntariedade do ato,

mas pela premeditação ou escolha deliberada. “Se não houve essa reflexão

prévia para a execução do ato, pode ser o ato injusto, mas não o seu autor, pois

que não agiu com perversidade. Em resumo: algumas ações causam danos que

não foram previstos (infortúnio); outras prevêem o resultado, porém sem

maldade (erro); outras ocorrem com o conhecimento do agente (voluntárias),

mas sem perversidade; finalmente, outras ações são premeditadas, o que

significa que se elegem os meios próprios a alcançar os resultados

previamente conhecidos. Neste caso, não só o ato como o seu autor reputam-

se injustos ou justos, conforme causem danos ou bem ao outro.”90

89 Vergnières, Solange. op.cit., p.101. 90 Salgado, Joaquim Carlos. op.cit., p.40. Cabe destacar, nesta mesma linha de raciocínio, o que é defendido por Osvaldo Guariglia (1997, p.288), quando ele assinala esta mesma forma de divisão das conseqüências do agir humano, porém acrescentando uma subdivisão para o caso das ações consideradas injustas. Diz ele: Los daños, en consecuencia, que se producen en las interacciones que tienen por marco la comunidad son de tres clases (1135 b 11-27): (1) «acciones infortunadas» (atýchema) , que son las que causan un daño contrariamente a lo que podría razonablemente esperarse; (2) «errores de cálculo» (hamártema), que son los que producen daños que no son contrarios a lo que razonablemente podía esperarse, pero que el agente no há tenido en cuenta en el momento, actuando com descuido pero sin malicia. Tanto las primeras como las segundas tienen en común que el agente actúa ignorando los resultados de su acción, en el primer caso, porque era imposible preverlos y, en el segundo, por una falla en su previsión. (3) «acciones injustas»

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50

2.2.4- O meio termo

Após definir a justiça como a mais alta das excelências

morais, ou seja, a mais elevada das virtudes, e após afirmar que esta é oriunda

dos nossos hábitos, em cuja prática encontramos as disposições necessárias

para seu exercício, como a consciência do ato e a vontade, Aristóteles revela-

nos como, no agir humano, podemos identificar de forma mais clara qual seria

o comportamento prático mais adequado para alcançar o justo, já que ele (o

agir humano) implica, muitas vezes, ações extremas, seja para o mais, seja

para o menos. A solução é apresentada sob a forma da teoria do “meio termo”

(mesótes)91, donde o comportamento assim identificado revelaria a

concretização da justiça.

A preocupação aristotélica com a questão fica evidente na

seguinte passagem da EN, em que o Estarigita identifica três níveis de

comportamento (o maior, o menor e o igual), através dos quais procura

demonstrar a importância e o que entende por “meio termo”. Assim, diz:

(adíkema), que se dividen, a su vez, en dos clases: (3’) la acción que el agente lleva a cabo con conocimiento de lo que está haciendo pero sin premeditación, como cuando uno actúa arrastrado por la pasión o la cólera; y (3’’) la acción llevada a cabo por ele agente con conocimiento y con premeditación, habiendo deliberado previamente y habiéndose decidido a realizar la injusticia. Éste es el hombre verdaderamente injusto y el que muestra una disposición auténticamente contraria a la del hombre justo, que es, por oposición, el que lleva a cabo acciones justas con pleno conocimiento de lo que hace, habiendo deliberado previamente sobre la situación y habiéndo resuelto actuar de esa manera (1136 a 1-5). 91 Destaque-se que a noção de medida na filosofia helênica não era algo novo na época aristotélica, muito menos a idéia de justo meio. A este respeito observa bem Eduardo C.B.Bittar: A noção de medida, como nodal de toda a tratadística aristotélica, não foi tema novo na literatura filosófica do século IV a.C., tendo sido concebida como estandarte do Estado Constitucional durante o governo de Sólon, legislador do equilíbrio e da ordem sociais. A terminologia do justo meio, do excesso e da falta, além da noção de adequado (armótton) foram amplamente exploradas pela medicina do século V a.C., que deita raízes na doutrina de Hipócrates, na qual foi iniciado Aristóteles pela tradição familiar. Não só em Aristóteles, no entanto, a noção é uma constante. Também em Platão esta se encontra explicitamente exposta, o que demonstra um acolhimento reiterado do tema pelo pensamento grego nos diversos círculos de cultura que o compunham.(op.cit., p. 78)

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De tudo que é contínuo e divisível é possível tirar uma parte maior,

menor ou igual, e isto tanto em termos da coisa em si quanto em

relação a nós; e o igual é um meio termo entre o excesso e a falta. Por

“meio termo” quero significar aquilo que é eqüidistante em relação a

todos os homens; por “meio termo em relação a nós” quero significar

aquilo que não é nem demais nem muito pouco, e isto não é único

nem o mesmo para todos.92

Em outra passagem, um pouco mais adiante, Aristóteles

passa a identificar a escolha de um “meio termo” em uma ação ou uma

emoção como sendo o indicativo da “excelência moral”:

A excelência moral, então, é uma disposição da alma relacionada

com a escolha de ações e emoções, disposição esta consistente num

meio termo (o meio termo relativo a nós) determinado pela razão ( a

razão graças à qual um homem dotado de discernimento o

determina).Trata-se de um estado intermediário, porque nas várias

formas de deficiência moral há falta ou excesso do que é conveniente

tanto nas emoções quanto nas ações, enquanto a excelência moral

encontra e prefere o meio termo. Logo, a respeito do que ela é, ou

seja, a definição que expressa a sua essência, a excelência moral é um

meio termo, mas com referência ao que é melhor e conforme ao bem

ela é um extremo.93

Existe nestas afirmações uma questão fundamental a ser

observada, qual seja, a de que Aristóteles separa o “meio termo” em dois

tipos: primeiro, o objetivo ou aritmético, que se constitui no eqüidistante em

92 Aristóteles. Ética a Nicômacos,1106 a. 93 idem, 1106 b.

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relação aos extremos; segundo, aquele relacionado às pessoas, ou seja, que se

identifica “relativamente a nós”, o qual se difere de pessoa para pessoa.94

A virtude, neste contexto, é colocada como uma “espécie

de harmonia, segundo as circunstâncias ou um termo médio que equilibra os

extremos, considerando o momento da ação, o seu fim, a pessoa envolvida e a

forma da ação”95, donde se pode definir a virtude moral como “uma

disposição para escolher, consistindo essencialmente num meio relativamente

a nós, determinado por uma regra, a qual é racionalmente determinada como a

determinaria o homem prudente”96.

Em assim sendo, Aristóteles passa a identificar

expressamente o “meio termo” como o justo, ao dizer:

Já que tanto o homem injusto quanto o ato injusto são iníquos, é

óbvio que há também um meio termo entre as duas iniqüidades

94 Sir David Ross. op.cit., p.200. A questão do “meio termo” como elemento advindo de um conceito matemático, seja em relação ao conceito objetivo ou pessoal, como ainda se verá mais adiante neste trabalho, implica, ao que parece, muita discordância entre os pensadores. Ainda mais quando o “meio termo” for identificado mais claramente por Aristóteles como a forma de se concretizar a justiça. O certo é que a teoria da mesótes teve grande influência na construção teórica da justiça aristotélica, tanto que aquela aparece como suporte determinante da justiça distributiva, bem como da sustentação da eqüidade como forma de se fazer justiça, onde a teoria do justo meio deve ser perseguida pelo juiz. Ambos os temas serão objeto de análise nos capítulos destinados a esse fim neste trabalho. A par da análise futura a esse respeito, parece não ser precipitado incluir aqui, desde já, a observação de Osvaldo Guariglia: La justicia es una virtud distinta de las demás, porque es, como éstas, un medio, aritmético o proporcional, pero se opone a un único vicio, la injusticia, que es próprio de ambos extremos. El ejemplo que Aristóteles toma es el de la justicia distributiva, en el que la acción justa consiste tanto en no atribuir-se a sí mismo más de aquello que es útil como en no tomar sobre sí menos de lo que es nocivo o molesto (1134 a 2-6), de modo que la injusticia consistirá tanto en un exceso (de lo útil) como en un defecto (de lo nocivo).(1997, p.287) 95 Salgado, Joaquim Carlos. op.cit., p.34. 96 Sir David Ross. op.cit., p.201. Segundo D.Ross, o valor desta teoria provém do reconhecimento da necessidade de introduzir um sistema ou, como Aristóteles afirma, de estabelecer uma simetria entre as múltiplas tendências existentes em nós. A simetria é uma noção quantitativa, mas a boa acção possui o seu lado quantitativo. Não deve ser nem muito pequena nem muito grande. Os Gregos tinham razão em acreditar que para produzir qualquer coisa de bom no seu género – um corpo são, uma obra de arte bela, uma acção virtuosa – são requeridas certas relações quantitativas: a qualidade funda-se na quantidade. Acrescenta, porém, D.Ross, um certo grau de desconfiança em relação à validade da mediania aristotélica, ao dizer: Aplicada à virtude, a doutrina não é, talvez, muito esclarecedora, mas contém um elemento de verdade.(p.202)

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existentes em cada caso. Este meio termo é o igual, pois em cada

espécie de ação na qual há um “mais” e um “menos” há também um

“igual”. Se, então, o injusto é iníquo (ou seja, desigual), o justo é

igual, como todos acham que ele é, mesmo sem uma argumentação

mais desenvolvida. E já que o igual é o meio termo, o justo será um

meio termo. Ora: a igualdade pressupõe no mínimo dois elementos; o

justo, então, deve ser um meio termo, igual e relativo (por exemplo,

justo para certas pessoas), e na qualidade de meio termo ele deve

estar entre determinados extremos (respectivamente “maior” e

“menor”); na qualidade de igual ele pressupõe duas participações

iguais; na qualidade de justo ele o é para certas pessoas.97

97 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1131 a . O desenvolvimento dessa idéia é causa de discordância em relação ao seu plano de validade para quem discute qual seja o ideal de justiça. Apesar da extensão que tomará esta nota de rodapé, considera importante o autor desta dissertação que se destaque pelo menos algumas dessas discordâncias, a fim de se ter presente a importância do tema. Com efeito, a idéia da mesótes encontra resistência em autores como Kant, tendo sua visão combatida por Solange Vergnières; e Kelsen, com sua visão combatida por Joaquim Carlos Salgado, o qual lembra para tanto o que defende Nicolai Hartmann. Com efeito, assim se expressa S.Vergnières (op.cit., p.139): Leiamos o texto de Kant: “O célebre princípio (de Aristóteles) de que a virtude consiste no justo meio entre dois vícios é falso”: por exemplo, a boa economia não é meio qualitativo entre a prodigalidade e a avareza, mas obediência a um princípio totalmente diverso dos vícios opostos. Esta crítica de Kant desconhece em dois pontos a verdadeira natureza da mediania aristotélica. Dar conta disto, é mostrar em que ela não pode ser encontrada de maneira maquinal. Aristóteles exprime sua concepção como segue: de um ponto de vista qualitativo pode-se dizer que “os extremos (ou ainda os vícios) estão mais distantes um do outro do que o estão no meio”. A virtude pode então aparecer como meio termo; ele contudo precisa alhures: “Concernindo à excelência e ao bem viver, ela é perfeição (akrotes)”. A tese de Aristóteles é pois mais complexa do que o resumo dado por Kant faz supor. Por sua vez, escreve Hans Kelsen, na sua obra O que é justiça? (p.123): A afirmação de que uma virtude se encontra entre dois vícios é uma figura de linguagem. Seu significado, sem o uso de uma metáfora, é: se compararmos uma virtude com dois vícios, a virtude não é nem um nem outro vício. A fórmula da mesótes eqüivale à tautologia: se algo é correto não é muito nem pouco – ou, em outras palavras, uma virtude não é um vício, o bom não é mau, o certo não é errado.(...) Se uma doutrina ética pressupõe todos os vícios possíveis, ela pressupõe, juntamente com esses vícios, todas as virtudes possíveis. Se sabemos o que é mau, sabemos, por meio disso, o que é bom, e então nada mais resta a ser determinado. Mesmo se a virtude, determinada segundo a fórmula da mesótes como um meio entre dois vícios “dados”, fosse “um meio no que diz respeito à coisa” e, portanto, “a mesma e única para todos”, a fórmula poderia proclamar apenas uma redundância. Pois seu significado, nesse caso também, nada mais seria que o de que o bem é oposto ao mal; e o mal não é determinado, mas pressuposto pela fórmula. Por seu turno, acentua Joaquim Carlos Salgado (op.cit., p.35): Como mostra Hartmann, há um momento valorativo no conceito de justiça de Aristóteles. Não parece ter razão KELSEN, Was ist Gerechtigkeit?, p.34-36, ao procurar mostrar na teoria da justiça de Aristóteles uma total carência de valor científico.(...) A análise da virtude como o meio entre dois extremos, que se opõem, mostra um critério de racionalidade para denotar o ato virtuoso. Ao dizer que a virtude está no meio, Aristóteles explicita o que ocorre com a virtude como fato, o que não significa que aceita qualquer fato. Com mostra Hartmann, a virtude é, ao mesmo tempo, o oposto do vício (o que percebe Kelsen: “A justiça é simplesmente o contrário do injusto.”) e o meio de dois vícios que são os extremos. Não é virtuoso o ato que está conforme a lei ou costume pelo simples fato de ser lei, mas porque promove a perfeição do ser humano, como acima ficou dito. O certo é que, para concebermos a justiça como meio, não temos de considerar as

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O que Aristóteles está nos dizendo, portanto, é que não

deve haver excesso nem carência nas ações, a não ser que não queiramos ser

virtuosos e justos. Uma advertência, porém, é feita pelo Estagirita, no sentido

de que esse termo médio em relação a nós mesmos “não pode ser interpretado

de modo arbitrário, mas segundo o critério do razoável”, eis que, “segundo sua

essência ou segundo o seu logos (a sua representação conceptual), a virtude é

um termo médio; com relação, porém, ao bem e à perfeição que ela deve

realizar, a virtude coloca-se no ponto mais alto, o extremo.98

Parece claro, pois, que Aristóteles não pretendeu reduzir

sua teoria da mesótes (ou doutrina, como querem alguns) a uma questão

meramente matemática, onde a justiça estaria colocada no exato meio entre

algo bom e algo ruim. Não fosse assim, poder-se-ia dizer que haveria justiça

no meio termo entre dois vícios, o que não representaria a verdade. Na

realidade, portanto, a virtude mediana não se opõe a dois vícios diferentes,

mas a um único vício. Em outras palavras, “não são dois vícios que se

contrapõem por um meio termo, como ocorre com as outras virtudes, mas se

trata de uma posição mediana entre o possuir mais e o possuir menos,

relativamente a todo e qualquer bem que se possa conceber”.99

Imaginar que o Estagirita pudesse ter reduzido a sua visão

de justiça a um princípio tão pobre como uma idéia de mesótes matemático

sem a ponderação da distinção de como se apresentam os extremos de uma

ações possíveis de uma mesma pessoa, mas o resultado do ato de injustiça de um e do sofrer a injustiça por outro.(...) Finalmente, o meio que caracteriza a justiça não é o entre dois vícios, mas o meio que caracteriza o igual, isto é, o excesso que um recebeu e a falta que o outro sofreu. Kelsen, ao interpretar Aristóteles, no que se refere à virtude como meio, não considera outros textos, como, por exemplo, a Grande moral, 1193b, 1194a e a própria Ética a Nicômacos, 1096b, onde Aristóteles fala desse meio objetivo. 98 Salgado, Joaquim Carlos, op.cit., p.35. 99 Bittar, Educardo C.B., op. cit., p.78/79.

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relação (vício-mérito; vício-vício) parece não fazer justiça à sua grandeza. Na

verdade, não é possível acreditar que a visão aristotélica pudesse se limitar a

achar que o justo meio se encontraria na limitação dos excessos através de

uma simples média estatística, na medida em que “a virtude só seria então

virtude medíocre, sem defeitos acentuados, mas também sem grandes

qualidades, e não poderia pretender ser de outro gênero, distinto do vício; o

homem corajoso se reduziria a um homem medianamente corajoso. Tal não é

a concepção de Aristóteles, para quem a virtude é ‘ápice’, ou ainda excelência,

e o homem magnânimo a encarnação mais perfeita desta excelência.”100

2.2.5- De acordo com a lei

Para Aristóteles, ser virtuoso e justo é agir de acordo com a

lei, ou seja, respeitá-la. Foram muitas as passagens em que o Estagirita

manifestou esse sentimento. É que, para ele, ao contrário de seu mestre,

Platão101, as leis tinham papel fundamental na condução da vida da cidade, na

medida em que as mesmas podiam ser um mecanismo de formação do ethos,

já que nem todos tinham a mesma formação e a mesma disposição para a

prática da excelência moral.102

100 Vergnières, Solange, op.cit., p.140. 101 Platão tinha nas leis um papel secundário. Para ele o Estado ideal prescindia delas, eis que a formação do homem se dá através da educação. Esta idéia está presente na República com muita clareza. Mesmo na idade madura, quando Platão escreve a obra Leis, já um pouco desanimado do seu Estado ideal pelas experiência de vida que havia acumulado, aceitando um pouco mais, então, a necessidade delas, deixa de considerá-las algo secundário, admitindo sua necessidade. Nelas, porém, verá o caráter de educação, o que não se dá em Aristóteles. A este respeito afirma Werner Jaeger, op.cit., p.1300: Na República esforça-se por tornar supérflua, mediante uma educação perfeita, toda a obra legislativa; nas Leis, parte da hipótese de que estas são, normalmente, indispensáveis à vida do Estado. Procura aqui submeter a própria legislação ao princípio educativo e torná-la seu instrumento, tal como na República fizera do Estado, como um todo, uma instituição educativa. (sobre a mesma circunstância, ver nota nº 41) 102 Vergnières, Solange (op.cit., p.195) elucida bem esta visão aristotélica: O ethos dos cidadãos é, pois, fortemente condicionado pelas leis da cidade.(...) Mais precisamente, dado que a educação, em virtude da

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Assim fala nosso filósofo:

O termo “injusto” se aplica tanto às pessoas que infringem a lei

quanto às pessoas ambiciosas (no sentido de quererem mais do que

aquilo a que têm direito) e iníquas, de tal forma que obviamente as

pessoas cumpridoras da lei e as pessoas corretas serão justas. O justo,

então, é aquilo que é conforme à lei e correto, e o injusto é ilegal e

iníquo.103

E ainda:

Como as pessoas que infringem as leis parecem injustas e as

cumpridoras da lei parecem justas, evidentemente todos os atos

conforme à lei são justos em certo sentido; com efeito, os atos

estipulados pela arte de legislar são conforme à lei, e dizemos que

cada um deles é justo.104

A questão da lei estar relacionada com a realização do justo

provém da idéia aristotélica de que é somente na pólis que o homem pode se

realizar e, portanto, é tarefa dela, através de suas instituições, possibilitar uma

vida ética dos seus cidadãos. Ou seja, a idéia do bem, e, assim, do justo, não se

natureza e do estatuto social de cada um, nem sempre é da mesma qualidade, a lei deve exercer diversas funções. A lei desempenha papel repressivo quanto àqueles cujo ethos não foi convenientemente formado; pode-se dizer que ela socializa os indivíduos, sem conseguir politizá-los: a lei não é interiorizada sob a forma de hábitos éticos, e é por isso que ela deve suscitar o temor da sua sanção.(...). Inversamente, a classe média tem temperamento espontaneamente moderado, que lhe permite adquirir costumes continentes. A lei, exercendo antes o papel de norma do que de proibição, pode preencher aqui sua função ética: politizando e “moralizando” os indivíduos, faz deles cidadãos sérios e permite-lhes atingir o mais alto grau de humanidade de que são suscetíveis. 103Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1129 a. 104 idem, 1129 b.

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consubstancia simplesmente na idéia de bem e de justo em si, mas da sua

efetivação através das instituições da pólis.

A legislação se torna um dos instrumentos responsáveis

pela realização da vida justa, já que a determinação do que assim possa ser

considerado não advém simplesmente do que em si possa ser valorado desta

maneira, mas também pelo que é institucionalizado na sociedade, por força da

determinação pelo homem.

Diante desta perspectiva é que ele afirma:

É obvia a maneira de distinguir o significado do “justo” e do

“injusto” correspondentes a elas, pois praticamente a maioria dos atos

prescritos pela lei é constituída de atos prescritos tendo em vista a excelência moral como um todo; de fato a lei nos manda praticar

todas as espécies de excelência moral e nos proíbe de praticar

qualquer espécie de deficiência moral, e as prescrições para uma

educação que prepara as pessoas para a vida comunitária são as

regras produtivas da excelência moral como um todo.105

A lei, portanto, existe e serve para mandar o indivíduo

praticar ações boas e justas ou proibir ações más e injustas, já que a práxis

social pode levá-lo a realizar ações que não representem a excelência moral.

Assim, é o próprio homem, e não a natureza humana, quem pode ordenar sua

vida de modo digno. Ou seja, o homem, ordenado à vida política, estabelece

105 idem, 1130 b.

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as condições de uma vida digna, feliz e ética. “Ele, sem lei, nem direito, é o

pior pensável, mais selvagem que o próprio animal”.106

Há, pois, em Aristóteles, a afirmação da lei como algo bom

e que, como excelência moral, deve ser respeitada, revelando-se assim, neste

agir com respeito a ela, o homem virtuoso e justo.107 É que, por ver o homem

grego, na lei, algo divino108, não vê nela algo que não seja a própria expressão

daquela excelência. É preciso dizer, porém, que apesar de Aristóteles manter

em parte a tradição deste pensamento em torno da lei como algo de divino, ele

rompe com a exclusividade deste caráter, dando à formação das leis algo de

humano. Esta parcela humana será a afirmação da presença da razão, com o

que, através da inteligência, elas serão postas, pelo que como “princípio

intangível a autoridade das leis são conhecidas: exigir que a lei comande é,

parece, exigir que só Deus e a inteligência comandem”.109

106 Oliveira, Manfredo Araújo de. Ética e sociabilidade. São Paulo: Loyola, 1996. 107 Deve ser esclarecido que neste ponto de nossa dissertação não dissecaremos todas as evoluções e conseqüências do pensamento do Estagirita no que diz respeito à lei (positiva ou natural), seja nos seus aspectos de formação, conteúdo, falha ou de justiça, tendo em vista que estes e outros aspectos serão abordados no momento próprio e amiúde, ou seja, no capítulo que fala das leis. Aqui apenas pretendemos deixar presente que também o cumprimento à lei, para Aristóteles, se constitui em uma forma de excelência moral, na sua mais alta expressão, qual seja, a realização da justiça, eis que é para a demonstração de como se dá a realização daquela pelo homem, no pensamento aristotélico, o objetivo deste capítulo da dissertação. Não se trata, portanto, de estabelecer, aqui, a diferença entre justo natural ou legal, eis que aqui já se parte do conceito que envolve o justo como cumprimento de uma lei positiva, já que é isso que está implícito e explícito nas passagens exploradas. 108 Neste sentido, Werner Jaeger, op.cit., p.1301/2: Para a mentalidade grega, a legislação no verdadeiro sentido da palavra sempre foi obra da superior sabedoria de uma personalidade divina individual. Deste modo, é na formulação de leis que a suprema “virtude” do Estado platônico, a sophia, se revela e assim encontra a sua posição produtiva na vida da comunidade humana, de que a princípio parecia isolar quem a possuía. Afirma ainda: Nesta altura levanta-se o problema de saber como é que aquele logos divino encontrará o caminho para descer até o homem e converter-se em instituição política. Platão parece pensar, indubitavelmente, em qualquer forma de assentimento da coletividade, mas para ele é decisivo que se faça legislador da polis um indivíduo que conheça o divino. Nisto não faz mais do que seguir o exemplo dos grandes legisladores do passado. Os Gregos costumavam apelidá-los de homens divinos, título que cedo foi conferido ao próprio Platão. 109 Vergnières, Solange. op.cit., p.208. Acrescenta Vergnières: Mais que acolher o homem excelente como deus entre os homens, ele que é a encarnação do logos, é preferível atribuir estatuto sagrado à lei. A “divindade” da lei não repousa, como também não em Protágoras, numa referência à lei divina: o homem inventa leis precisamente porque a providência não reina nos assuntos humanos; repousa primeiro no valor da inteligência. Um texto da Ética a Nicômaco permite precisar esse ponto: “A lei, diz ele, é o logos que

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A legislação torna-se o instrumento de que se utiliza a

cidade racionalmente organizada para a habituação de seus membros na

realização da justiça. Aristóteles, partindo do pressuposto de que todas as leis

são boas, desde que representem verdadeiramente os ideais da cidade, sustenta

que o governo das boas leis incute aos cidadãos a vontade da virtude.110

Assim, a lei, admitida como condicionadora do ethos do

cidadão e, portanto, atuando com vistas à preservação dos valores e da própria

coexistência dos cidadãos na comunidade, deve ser cumprida, revelando-se

assim, o homem dela cumpridor, virtuoso e justo.

3. A CLASSIFICAÇÃO DA JUSTIÇA

3.1 O princípio da igualdade

O princípio que norteia toda a construção aristotélica sobre

a justiça é o da igualdade111. Esse, porém, deve ser compreendido na sua

provém de certa (tis) prudência (phronesis) e inteligência (nous). A inteligência que se revela na lei é, de fato, mais de ordem da prudência humana que da sabedoria de Deus. É por isso que é preciso acrescentar uma razão para justificar esse caráter “sagrado” atributo (sic) à lei: a lei, afirma Aristóteles, é “inteligência sem desejo”. 110 Bittar, Eduardo C.B., op. cit., p.67. 111 Lembra Joaquim Carlos Salgado (op.cit., p.46): A igualdade que dá o sentido próprio de justiça “como princípio fundamental de valoração jurídica não é uma descoberta de Aristóteles, no entender de Del

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exata noção, na medida em que deve ser apreendido o sentido exato de

“igualdade” em Aristóteles, sob pena de não ser entendido o fundamento que

leva a toda sistematização da justiça efetivada por ele.

Com efeito, em Aristóteles, a igualdade112, antes de

representar um nivelamento, uma isonomia entre os cidadãos, como

aparentemente o conceito de “igual” poderia de imediato indicar, na realidade

representa a noção de proporcionalidade, onde o tratamento desigual, ou

aparentemente desigual, antes de representar uma desigualdade, representa

exatamente uma igualdade. Essa idéia desemboca, por sua vez, na de que se

deve tratar os diferentes de forma diferente e os iguais de forma igual, com

cujo comportamento se perfectibiliza, então, segundo ele, a justiça. Tal

conceito, como se verá mais adiante, terá conseqüências sérias, na medida em

que com ele se apresenta a responsabilidade de se identificar quem é igual a

quem e qual o critério de se estabelecer um padrão de igualdade, sob pena do

princípio se tornar a base de injustiça e não de justiça.

Para tanto, afirma Aristóteles:

(...) se as pessoas não forem iguais, elas não terão uma participação

igual nas coisas, mas isto é a origem de querelas e queixas (quando

pessoas iguais têm e recebem quinhões desiguais, ou pessoas

desiguais recebem quinhões iguais). Além do mais, isto se torna

Vecchio, mas dos pitagóricos. É em Aristóteles, contudo, que o conceito de igualdade é trabalhado com esmero ao definir a justiça, visto que, para ele, sua “essência se identifica com o igual.” 112 Parece importante destacar os momentos em que se faz presente o elemento igualdade para Aristóteles, circunstância bem observada por Joaquim Carlos Salgado: O elemento igualdade na justiça, segundo Aristóteles, aparece em três momentos, dois dos quais apontados por ele expressamente: a) na ação considerada em si mesmo: justiça é o termo médio entre o injusto e o justiceiro, a carência e o excesso; b) no objeto da ação; neste caso, a igualdade aparece na atribuição do bem: injustiça é a ação que se pratica no sentido de receber mais bem do que o outro. Aqui há a igualdade quantitativa matemática; c) tudo isso, porém, no pressuposto de uma igualdade fundamental (que não despreza certa desigualdade): o ser humano na justiça universal e o cidadão na justiça particular. (op.cit., p.46)

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evidente porque aquilo que é distribuído às pessoas deve sê-lo “de

acordo com o mérito de cada uma”; de fato, todas as pessoas

concordam em que o que é justo em termos de distribuição deve sê-lo

de acordo com o mérito em certo sentido, embora nem todos

indiquem a mesma espécie de mérito; os democratas identificam a

circunstância de a distribuição dever ser de acordo com a condição de

homem livre, os adeptos da oligarquia com a riqueza (ou nobreza de

nascimento), e os adeptos da aristocracia com a excelência.113

Tendo sido Aristóteles o primeiro filósofo a se preocupar

com a sistematização da justiça, também foi o primeiro que, falando dela,

vislumbrou, no fenômeno jurídico, o elemento da proporcionalidade114. Tal

circunstância decorre, por certo, do fato de que Aristóteles entende que o justo

e o injusto só podem ocorrer dentro de determinado seio social, ou seja, no

interior de um grupo de indivíduos. Não há igualdade e, portanto,

proporcionalidade, em relação a um indivíduo isolado, sozinho, eis que para

haver igualdade e, por decorrência, proporcionalidade, é preciso haver

comparações, paradigmas. Neste sentido afirma o seguinte:

Este último (justo em sentido político) se apresenta entre pessoas que

vivem juntas com o objetivo de assegurar a auto-suficiência do grupo

– pessoas livres e proporcionalmente ou aritmeticamente iguais.

Logo, entre pessoas que não se enquadram nesta condição não há

justiça política, e sim a justiça em sentido especial e por analogia.115

113 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1131 a. 114 Reale, Miguel. Lições preliminares de direito. São Paulo: Paulinas, 1990, p.56. 115 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1134 b.

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Pois é desta idéia de igualdade, no sentido de

proporcionalidade116, que Aristóteles desenvolverá todo o seu pensamento

sobre a justiça e, mais especificamente, sobre a lei como uma fonte de

realização de justiça, na medida em que é ela (a lei) quem tem a função de

regular o comportamento dos indivíduos dentro do grupo social e, portanto, é

ela quem estabelece a distinção (justa) entre os indivíduos117, atribuindo aos

iguais coisas iguais e aos diferentes coisas diferentes.118

Essa forma de determinação da justiça como

proporcionalidade em relação a outrem identificou, para alguns, a genialidade

aristotélica, e isso por conseguir determinar o que distingue e especifica a

justiça como uma das virtudes. Seria a detectação do que modernamente se

chama de ‘sociabilidade’. Ou seja, a justiça implica o emprego de algo

objetivo, significando uma proporção entre um homem e outro homem, o que

indica que toda virtude, enquanto proporcionada a outrem, é, deste modo,

também ‘justiça’.119

Por outro lado, essa idéia de igualdade, por ser uma

formulação tão genérica de regra de justiça, faz com que contra ela não se

apresente qualquer objeção. Ela abre caminho para que cada filosofia

116 Observa Sir David Ross (op.cit., p.215/216): (...) Aristóteles tenta provar que a justiça consiste no estabelecer de uma espécie de proporcionalidade (significando primitivamente «proporção» e incluindo, também, certas relações numéricas), bem como, simultaneamente, que as três espécies de justiça estabelecem diferentes espécies de proporcionalidades e nem sempre, como sustentou Platão, uma proporção, nem, como pretendeu Pitágoras, uma reciprocidade. 117 Essa posição ficará bem mais clara e patente quando desenvolvermos neste trabalho os elementos e os suportes da justiça distributiva, onde a igualdade como proporcionalidade se fará mais presente. 118 Destaca Bittar (op.cit., p.67): A boa organização política, ou seja, aquela que se orienta para a realização dos seus fins da comunidade (koinonía), é governada por um corpo de normas que atendem aos anseios políticos e cidadãos. Por meio da legislação todos são iguais a todos, desde que pertencentes à mesma qualificação política do estatuto hierárquico ateniense (cidadãos/metecos/escravos); a igualdade se estabelece de modo que a cada qual destas categorias corresponda uma proporção participativa compatível com suas aptidões.

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apresente sua justificativa, consoante ao seu sistema, pelo fato de que existem

algumas diferenças que impedem considerar iguais pessoas que se distinguem

por características julgadas essenciais, como, por exemplo, seus méritos, suas

necessidades, sua posição, sua origem etc. Ou seja, cada filosofia, a partir da

idéia aristotélica de igualdade, poderá indicar como é preciso proporcionar o

tratamento dos seres que fazem parte de categorias diferentes em relação ao

valor assim colocado em evidência.120

Assim, de posse desse pressuposto, onde é admitida a

desigualdade como uma forma de garantir a igualdade e, portanto, a efetivação

da justiça, é que Aristóteles passa a identificar como se dá a justiça universal e

a justiça particular, sendo esta última dividida em distributiva, corretiva e de

relações de comércio, como passamos a ver adiante, de forma individualizada.

3.2 A justiça universal

As duas grandes classes em que se divide a justiça para

Aristóteles, obedecendo a sua sistematização, são as que, por um lado, a

identificam como sendo do tipo Universal e, do outro, como sendo do tipo

Particular.

119 Reale, Miguel. Filosofia do direito. São Paulo: Saraiva, 1991, p.624. 120 Perelman, Chaim. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p.76-77.

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A justiça no sentido universal (ou amplo) se define como

sendo a que diz respeito à conduta de acordo com a lei, mas não apenas como

nómos no sentido de norma legislativa. Trata-se de agir de acordo com o

nómos no sentido mais amplo, como convenção social, como costume que

pelo tempo e por sua origem se consagrou, mesmo que não se tenha tornado

lei escrita. Aqui a virtude da justiça é encarada em relação ao outro como o

cumprimento da lei em geral.121 Ou seja, a justiça no sentido universal não se

traduz apenas pelo respeito à lei política, mas à lei que emana da condição de

atender ao que impõe a realização de todas as virtudes.

E é por isso que nesta espécie de justiça também se faz

presente a igualdade como princípio de realização de justiça, e, por isso

mesmo, o respeito à desigualdade como forma de justiça é repisado. O

princípio permanece o mesmo: os homens são diferentes em méritos, posição

social, riqueza etc., e estas diferenças continuam sendo respeitadas para não

haver qualquer contradição.122 A igualdade, assim, aparece de certo modo

como a virtude referida ao outro, qualquer que seja. Na justiça universal,

portanto, se exterioriza plenamente o conceito de igualdade, o qual pode ser

identificado como sendo o de “dar a cada um o seu”.123

Pode-se dizer que é nesse contexto que aparece em

Aristóteles a legitimação da escravidão, não havendo, portanto, por força

121 Salgado, Joaquim Carlos. op.cit., p.37. 122 Como veremos mais adiante, somente no caso da justiça corretiva (retributiva) Aristóteles aceita a igualdade absoluta entre todas as pessoas (cidadãos), eis que, como dirá, “é irrelevante se uma pessoa boa lesa uma pessoa má, ou se uma pessoa má lesa uma pessoa boa, ou se é uma pessoa boa ou má que comete adultério” (EN 1132 a). 123 Salgado, Joaquim Carlos. op.cit., p.47.

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daquele pressuposto, nada de injusto nessa situação. Ela, baseando-se numa

condição natural124 de superioridade do senhor sobre o escravo, indica a

condição meritória da relação. O controle de um sobre o outro baseia-se numa

superioridade qualitativa125. Se assim o é, ao escravo deve ser dado o lugar a

ser preenchido por ele, o da escravidão.

A seguinte passagem parece esclarecer este ponto:

A justiça do senhor para com o escravo e a do pai para com o filho

não são iguais à justiça política, embora se lhe assemelhem; na

realidade, não pode haver injustiça no sentido irrestrito em relação a

coisas que nos pertencem, mas os escravos de um homem, e seus

filhos até uma certa idade em que se tornam independentes, são por

assim dizer partes deste homem, e ninguém faz mal a si mesmo (por

esta razão uma pessoa não pode ser injusta em relação a si mesma).

Logo, não há justiça ou injustiça no sentido político em tais

relações.126 A escravidão como exemplo de justiça universal, por certo,

nunca foi bem recebida, principalmente na modernidade, apesar dos

reconhecidos esforços que Aristóteles fez para defender um tipo de escravidão

injusta. A justa seria aquela que decorria da condição natural, ou seja,

daqueles que se constituíam em escravos por natureza. A injusta, por sua vez,

124 O conteúdo da expressão natural, aqui, deve ser entendida apenas como algo que não se assimila àquilo que é criado pelo homem e sua racionalidade, como, em especial, o justo político. O exemplo aqui é desenvolvido com o único intuito de se verificar e clarear ainda mais a exata noção do que seja a justiça universal em Aristóteles, em oposição à particular, aliás, para a qual ele deu muito maior importância e explicações, como se verá amiúde neste trabalho. 125 Brugnera, Nedilso Lauro. A escravidão em Aristóteles. Porto Alegre: EDIPUCRS, Editora Grifos, 1998, p.43. Na obra, lembra o autor, citando Hanna Arendt, que duas são as qualidades que o escravo não possui, segundo Aristóteles, sendo o que o leva a não ser humano: a faculdade de deliberar e de decidir; e a faculdade de prever e escolher. (p.84) 126 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1134 b.

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seria decorrente daqueles que tinham essa condição por força das conquistas

de guerra.127

Qualquer das duas circunstâncias, na melhor das hipóteses,

poderia ser admitida apenas como uma tentativa de justificar a realidade da

sociedade grega vivida pelo Estagirita. Mesmo assim, o conceito de justo para

tal situação permanece como algo inaceitável em Aristóteles, principalmente

pelo fato de que uma das justificativas para sua legitimação era a afirmação de

que o escravo por natureza era dotado de pouca razão e a de que a escravidão

era útil tanto para o senhor como ao escravo, na medida em que aquela

deficiência da razão impossibilitava que o escravo dirigisse sua vida através

da autodeterminação.128

Mesmo com a maior tolerância possível que se possa ter

em relação à defesa da escravidão, e isso apenas na hipótese de ser levado em

consideração o momento histórico, pelo menos duas circunstâncias levam à

desaprovação de tal circunstância do pensamento aristotélico: primeiro, pelo

fato de que se o status quo de cada sociedade em cada época fosse motivo de

justificativa para aceitação de atrocidades nela cometidas, a possibilidade do

seu banimento e conseqüente evolução social seria comprometida em suas

bases teóricas e práticas; segundo, pelo fato de que com sua posição

Aristóteles acaba dividindo a raça humana em duas partes distintas.

No que tange à justiça universal, portanto, a mesma se dá

em respeito ao mérito natural, à regra natural de superioridade (ou

127 Sir David Ross. op.cit., p.246. 128 Oliveira, Manfredo Araújo de. Ética e Sociabilidade. São Paulo: Loyola, 1996, p.74.

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inferioridade), esteja ele ou não contemplado pela justiça positiva (nómos).

Naquelas situações exemplificativas colocadas pelo próprio Aristóteles,

inclusive no que diz respeito à escravidão, portanto, não há infração a

qualquer regra, mas, pelo contrário, respeito a ela.129

Esta justiça, a universal, constitui para Aristóteles o que ele

mesmo denomina de “a virtude completa” (teleía, hóle areté), ou seja, aquela

que contempla todas as virtudes.130

3.3. A justiça particular

A justiça particular (ou estrita) é de grande interesse de

Aristóteles131, sendo que é através dela que ele apresenta de forma mais

abrangente e concreta o seu princípio de igualdade, já que é nessa classe de

129 A questão parece ficar bastante clara através das seguintes colocações de Solange Vergnières: Os gregos não foram estranhos ao sentimento do caráter sagrado de todo homem, posto que a “lei comum” dá a cada um a obrigação de certa medida em relação àqueles que são mais frágeis. Mas não traduziram esta piedade sob a forma de direito escrito, nem sob a de declaração de direitos da pessoa. Desde que Aristóteles elabora verdadeiramente uma reflexão filosófica sobre o justo, ele substitui a lei comum que cada um experimenta como natural, pelo conceito de justo “natural”, absoluto (aplos) e eminente (kyrios), que o afasta definitivamente da idéia de igualdade entre os homens. O justo doravante não é mais simples sentimento religioso, é conceito inteligível pela razão. Esta justiça natural é justiça distributiva, cujo princípio é simples: é preciso dar a cada um “o que é conforme a seu mérito”. Esse princípio pode ser aplicado diretamente em tudo que não se refere à justiça política; é ele que funda a comunidade despótica, paternal e conjugal: por exemplo, está na fonte da justiça doméstica, que quer que o marido tenha autoridade sobre a mulher porque tem mais mérito do que ela. O mérito cria, para o esposo, a obrigação moral de conceder à mulher o que lhe é naturalmente devido (enquanto mulher), do mesmo modo que dita ao senhor o dever de nutrir e de tratar o escravo corretamente. Em certo sentido, pode-se dizer que esse “devido” constitui como que um direito do filho, da mulher ou do escravo; mas não se trata de direito completo, posto que o subordinado não dispõe verdadeiramente de recurso para fazê-lo respeitar: pode esperar, mas não exigir. Em face de homem injusto não há outro recurso senão o apelo à compaixão, a invocação da lei comum. A justiça distributiva natural, vê-se, pede que cada um seja tratado conforme ao estatuto que corresponde à natureza; mas não pode outorgar nada ao homem enquanto homem, senão à medida que não se tratar de estatuto determinado.(...) Esta justiça é ordem que não é especificamente humana, é ordem natural ou cósmica, que se acha tanto entre os seres animados quanto nas coisas inanimadas: significa que a natureza determina a cada um um lugar e uma tarefa na hierarquia dos seres.(op.cit., p.200/201) 130 Guariglia, Osvaldo. op.cit., p.265/266.

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justiça que se apresenta como um de seus tipos a justiça distributiva, onde se

identificam aquelas ações cujo objeto é a distribuição e troca de bens, sejam

do tipo material, sejam do tipo imaterial, como, por exemplo, os cargos

públicos e todas as formas de honrarias. Por isso pode-se dizer que o campo

desenvolvido por essa classe de justiça se identificaria com o que hoje

entendemos como sendo o campo jurídico propriamente dito.132

Ela é dividida em três espécies, quais sejam, a já

mencionada justiça distributiva, a justiça corretiva (ou comutativa, ou

retificadora) e a justiça das trocas comerciais.

3.2.1 A justiça distributiva

Aristóteles, procurando identificar as espécies de justiça no

sentido estrito (particular), inicia fazendo a seguinte afirmação:

Uma das espécies de justiça em sentido estrito e do que é justo na

acepção que lhe corresponde, é a que se manifesta na distribuição de

funções elevadas de governo, ou de dinheiro, ou das outras coisas

que devem ser divididas entre os cidadãos que compartilham dos

benefícios outorgados pela constituição da cidade, pois em tais coisas

uma pessoa pode ter uma participação desigual ou igual à de outra

pessoa; outra espécie...133

131 idem, p.265. 132 idem, p.266. 133 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1131 a.

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A justiça distributiva, portanto, é aquela identificada com a

atribuição de cargos, dinheiro e todas as coisas que devem ser divididas entre

os cidadãos, os quais as receberão dos governantes, por força do que lhes é

atribuído pela constituição.

Essa distribuição, no entanto, não será igual entre todos os

cidadãos. E por qual motivo, nesta distribuição, “uma pessoa pode ter uma

participação desigual ou igual à de outra pessoas”? A resposta vem dada pelo

próprio Aristóteles, em uma passagem logo à frente da afirmação

anteriormente transcrita, quando assevera:

(...) se as pessoas não forem iguais, elas não terão uma participação

igual nas coisas, mas isto é a origem de querelas e queixas (quando

pessoas iguais têm e recebem quinhões desiguais, ou pessoas

desiguais recebem quinhões iguais).

E continua:

Além do mais, isto se torna evidente porque aquilo que é distribuído

às pessoas deve sê-lo “de acordo com o mérito de cada uma”;

distribuição deve sê-lo de acordo com o mérito em certo sentido,

embora nem todos indiquem a mesma espécie de mérito; (...)

Ou seja: (...); os democratas identificam a circunstância de a distribuição

dever ser de acordo com a condição de homem livre, os adeptos da

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70

oligarquia com a riqueza (ou nobreza de nascimento), e os adeptos da

aristocracia com a excelência.134

A justiça distributiva, portanto, é aquela que é exercida

pelo legislador (via constituição da cidade), através da distribuição, como diz

o próprio Aristóteles, “de funções elevadas no governo” (cargos), “dinheiro”

(riqueza) e “outras coisas que devem ser distribuídas entre os cidadãos”.135

A forma de legitimação, portanto, está na lei; a forma de

distribuição está, pois, na condição meritória. Porém, como aponta o próprio

Aristóteles, há uma dificuldade em se estabelecer um critério para que se

identifique o “mérito”, elemento de uniformização da igualdade entre os

cidadãos, mesmo que dentro de sua desigualdade. Sem a identificação do

princípio meritório, como identificar os iguais entre os desiguais?

Como a justiça distributiva encontra-se no campo do justo

no sentido político136, eis que decorre do que é atribuído pelo legislador, e,

134 idem, ibidem. Observamos que essa passagem, de forma mais abrangente, já foi reproduzida neste trabalho, quando desenvolvemos o pensamento aristotélico sobre o princípio da igualdade. A repetição, neste trecho, apenas de forma parcial, é proposital e visa deixar clara a afirmação feita naquele capítulo, qual seja, a de que é na justiça do tipo distributiva que Aristóteles sedimenta com mais intensidade o princípio da igualdade como uma proporcionalidade, com vistas ao respeito ao mérito de cada um. Parece-nos que sem a reprodução desta parte de suas afirmações, parte esta onde ele discorre exatamente sobre a justiça distributiva na EN, a evolução de seu pensamento, neste capítulo, não ficaria tão clara como se pretende que fique. 135 Explicando no que consistia e qual seria o origem da distribuição destes bens, diz Osvaldo Guariglia: Se trata fundamentalmente de la distribuición de biens y de cargas que el estado hacía entre sus ciudadanos. Estos bienes eran los que provenían de las conquistas de la ciudad o de los donativos hechos a la misma; la importância de tales distribuciones de bienes por parte del estado se puede evaluar si tenemos en cuenta que el aprovisionamiento de trigo a la problación en una ciudad tan importante como Atenas dependía en gran medida de esta distribución directa por parte del estado. (1997, p.266) 136 No quarto capítulo deste trabalho estaremos desenvolvendo detalhadamente o conceito de justo no sentido político, já que lá será exposto o conceito de lei para Aristóteles. Por ora, para efeito de breve inserção daquele conteúdo, já que a expressão “justo no sentido político” aparece pela primeira vez aqui neste trabalho, esclarecemos que seu sentido é o de traduzir como justo aquilo que é posto pela lei, ou seja, pelo legislador, independentemente de qualquer outro critério.

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portanto, pela constituição, é no desenvolvimento do pensamento a respeito

dele (justo político) que Aristóteles nos dá a resposta para este problema.

Com efeito, diz ele:

Não devemos esquecer, porém, que o assunto de nossa investigação é

ao mesmo tempo o justo no sentido irrestrito e o justo em sentido

político. Este último se apresenta entre as pessoas que vivem juntas

com o objetivo de assegurar a auto-suficiência do grupo – pessoas

livres e proporcionalmente ou aritmeticamente iguais. Logo, entre

pessoas que não se enquadram nesta condição não há justiça política,

e sim a justiça em um sentido especial e por analogia.137

A solução proposta pelo Estagirita, assim, está em uma

fórmula matemática138, com a qual pretende uma neutralidade e a

identificação da isonomia entre os cidadãos. Com ela entende encontrar o

critério justo para a destinação dos bens que devem ou podem ser atribuídos

pelo legislador.139

137 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1134 a. 138 A esse respeito, salienta Giorgio Dal Vecchio: O princípio da justiça é a igualdade, a qual é aplicada de várias maneiras. Aristóteles distingue, portanto, a justiça em muitas espécies. A primeira de entre elas é a chamada justiça distributiva, que preside à distribuição das honras e dos bens e tem por fim obter que cada um receba daquelas e destes porção adequada ao seu mérito. Se – explica Aristóteles – as pessoas são desiguais em mérito, tão-pouco as recompensas deverão ser iguais. Com isso, mais não se fez, como é manifesto, senão confirmar o princípio da igualdade: pois este seria violado, na sua aplicação específica, se fosse dado tratamento igual a méritos desiguais. A Justiça distributiva consiste, portanto, em uma relação proporcional que Aristóteles, não sem algum artifício, define como uma proporção geométrica. (op.cit., p. 45-46) 139 Observa Osvaldo Guariglia: A fin de establecer un critério para juzgar qué asignación de bienes es la justa, Aristóteles propone un tipo de proporcionalidad, que los matemáticos llaman geométrica. Sean A y B dos personas y C y D dos bienes de la misma especie. La igualdad proporcional está dada por la siguiente fórmula: A : B = C : D. Esta igualdad se mantiene cuando, una vez realizada la distribución, la igualdad proporcional anterior se transforma en la siguiente: A : C = B : D. Para dar um ejemplo facilmente comprensible de esta igualdad analógica, supongamos un padre, que tiene dos hijos, uno de veinte años y outro de diez, y debe distribuir entre ellos una cantidad acotada de alimentos. La igualdad proporcional indicará como una distribución justa aquella que tiene en cuenta la proporción entre la diferencia de tamaño y peso entre el hijo mayor y menor y traslade esta proporción a las raciones asignadas a cada uno de ellos.

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72

Ocorre, porém, que aqui se apresenta um problema, cujo

questionamento é inevitável. Será que todas as situações apresentar-se-ão de

tal forma que o critério matemático seja capaz de apontar com objetividade e

clareza qual o comportamento justo? Afinal, quando estiver em jogo a análise

de valores como a dignidade, a capacidade, a importância, entre tantos outros,

como será possível a aplicação daquela fórmula?

Parece que Aristóteles não ignora essa dificuldade,

deixando transparecer, quando fala que os democratas, os oligárquicos e os

aristocráticos teriam seus critérios, que aquela fórmula “matemática”

estabelecida por ele não seria a única. Outros critérios, a partir do momento

em que fossem estabelecidos, seriam os que deveriam ser respeitados, já que

haveria a criação de critérios próprios segundo a eleição dos méritos dentro

de cada grupo, devendo portanto ser respeitados para a distribuição dos bens

entre os cidadãos deste mesmo grupo140. Entre os democratas o critério seria a

condição dos homens serem livres; entre os oligárquicos, seria a nobreza de

nascimento; entre os aristocratas, seria a excelência.141 Esta construção, no

El ejemplo pone en descubierto algo más: en efecto, el tamaño y edad entre el hijo mayor y el hijo menor son datos naturales directamente comprobables, que ofrecen un criterio objetivo de distribución, cuyo desconocimiento es sancionable como arbitrario e injusto. (1997, p.267) 140 Para T.H.Irwin (1995, p.427), Aristóteles teria identificado como atribuição da comunidade política a identificação do mérito de cada um, já que dentro dela é que buscamos a realização de uma vida feliz e do bem comum. Afirma Irwin: Distributive justice concerns the distribuition of goods, especially political power and office, by the state to individuals. Aristotle argues that the right distributive criterion should be fixed by worth, axia. But what is the just way to assess someone’s worth? He recognizes that this question is disputed between supporters of different political outlooks; indeed he sees here the origins of the different types of constitutions and of the struggles between their partisans in a single state (1131 a24-9).In the Politics he suggests that this dispute should be settled by reference to the proper function of a state (Pol. 1280 a7-25). We need a state for living well, for achieving the self-sufficient happy life (1280b29-35). If we are concerned for the happy life, we will be concerned for a common good, and especially for the common good of a political community. Distribution, therefore, seems to be regulated by forward-looking teleological considerations; it seems reasonable to distribute power and office to the virtuous people, those who are competent to rule well with no eye on the end of the city. 141 É Osvaldo Guariglia quem chama atenção para esta perspectiva, dizendo: Pero cómo es posible ponderar com la misma objetividad otros criterios tales como los que emanan de valores tan defíciles de fijar como el mérito, la dignidad e importancia de las personas, etc.? Es evidente que, tal como ilustra la cita anterior,

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73

entanto, não fica exatamente clara pelas colocações de Aristóteles, sendo

apenas uma possível interpretação. Nem todos, no entanto, compartilham dela,

entendendo que a fórmula aristotélica não dá a resposta necessária quando a

pergunta sobre o mérito envolver critérios não tão objetivos, como, por

exemplo, as desigualdades sociais.142

Aristóteles no ignora la variedad de puntos de vista que se pueden sostener en esta cuestión: los demócratas sostendrán un criterio, los oligárquicos outro y los aristócratas outro. El punto que a mi mode de ver Aristóteles pretende establecer es el seguinte: sea cual fuere el criterio adoptado, la justicia de una decisión podrá ser sostenida o atacada si en su aplicación se mantiene de modo coherente el criterio elegido para establecer el mérito en todas las proporciones entre personas y cosas que se establezca. Esto quiere decir que, aun sin abrir juicio sobre la validez última del criterio elegido, se podría establecer si un sistema de distribución es proporcionalmente justo (en sentido relativo) observando simplesmente si en él se mantienen estrictamente en todos los casos la proporcionalidad analogica establecida en base exclusivamente al criterio elegido y no a outro u otros. Creo que un ejemplo servirá para aclarar completamente la cuestión: supongamos que uno es un pacifista extremo y que se opone, por lo tanto, no sólo a la guerra sino a la existencia misma de toda institución militar; en esto caso, uno no podrá compartir ninguno de los valores internos de un ejército y sin embargo, deverá admitir que una distribución justa de condecoraciones y méritos o ascensos será aquella que esté basada en el valor y la pericia demonstrados en el combate ante el enemigo y no, digamos, aquella otra que le atribuye una condecoración a uno por tener mayor antigüedad en el cargo y a outro por ser el hijo de um general. Es interesante observar que en esta presentación del «mérito» (Kat’axían, 1131 a 24-29) que Aristóteles aquí nos ofrece, de acuerdo com el cual se realiza la distribución en los distintos regímenes políticos, la condición de ciudadano libre (eleuthería) es considerada la única base del mérito que deve ser tenida en cuenta en las democracias. De aquí se sigue, de un modo directo y sin sorpresas, la necesidad de que la distribución de oficios, honores, etc., deba repartirse com este criterio de igualdad entre todos los ciudadanos libres, que, como tales, tienen parte en la constitución, y esto equivale a decir que no se debe tener en cuenta ningún outro mérito adicional. Ahora bien, es precisamente éste el sentido del pasaje de Pol VI en el que Aristóteles se refiere al criterio para la distribución de los cargos.(1997, p.267/268) 142 Entre os que mais se opõem à validade da fórmula aristotélica para justificar a justiça distributiva é Hans Kelsen, o qual faz duras críticas não só a esse como a vários conceitos aristotélicos. Especificamente a respeito daquele critério “matemático”, diz ele: O princípio da justiça distributiva é a igualdade proporcional. Essa “justiça envolve pelo menos quatro termos, a saber, duas pessoas para quem é justa e duas quotas que são justas. E haverá a mesma igualdade entre as quotas como entre as pessoas, já que a razão entre as quotas será igual à razão entre as pessoas, pois, se as pessoas não forem iguais, não terão quotas iguais”. Assim, o princípio da justiça distributiva é expresso em uma fórmula matemática: se um direito a é conferido a um indivíduo A, e um direito b ao indivíduo B, a exigência da justiça distributiva é cumprida se a razão entre o valor a e o valor b for igual à razão entre o valor A pelo valor B. Se os indivíduos A e B são iguais, os direitos a serem conferidos a cada um serão iguais também. Contudo, não existem na natureza dois indivíduos que sejam realmente iguais, já que sempre há uma diferença quanto a sexo, raça, saúde, riqueza e assim por diante. Não existe igualdade na natureza. Tampouco há igualdade na sociedade. A igualdade como categoria social, a afirmação de que dois indivíduos são socialmente iguais, não significa que não existem diferenças entre esses indivíduos, mas que certas diferenças que realmente existem, como, por exemplo, diferenças referentes a idade, raça, riqueza, são consideradas irrelevantes. A questão decisiva quanto à igualdade social é: quais diferenças são irrelevantes? Para essa questão, a fórmula matemática da justiça distributiva de Aristóteles não tem nenhuma resposta. Tampouco para a outra questão essencial quanto aos direitos que o legislador deve conferir a cada indivíduo para ser justo. É justo conferir aos cidadãos o direito de propriedade privada ou é justo estabelecer o comunismo? É justo conferir aos cidadãos direitos políticos, isto é, estabelecer a democracia, ou é justo não conferir aos cidadãos nenhum direito político, estabelecer a autocracia? A fórmula de justiça distributiva de Aristóteles diz apenas que, se

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3.3.2. A justiça corretiva

Esta espécie de justiça é identificada por Aristóteles como

sendo aquela que se dá nas relações entre os cidadãos (e não entre Estado e

cidadão), operando-se em dois campos: 1º) o das relações voluntárias; 2º) o

das relações involuntárias.

As relações voluntárias são tidas como aquelas oriundas

das transações estabelecidas entre os indivíduos, onde cada um procura atingir

contratualmente seus objetivos. As relações involuntárias, por sua vez, são

tidas como aquelas oriundas de atos promovidos por fraudes, roubos ou

assaltos, ou seja, do que chamamos hoje de atos delitivos.143

Assim o Estarigita identifica esta espécie de justiça:

(...); a outra espécie é a que desempenha uma função corretiva nas

relações entre as pessoas. Esta última se subdivide em duas: algumas

relações são voluntárias e outras são involuntárias; são voluntárias a

venda, a compra, o empréstimo a juros, o penhor, o empréstimo sem

juros, o depósito e a locação (estas relações são chamadas voluntárias

forem conferidos direitos e se dois indivíduos forem iguais, direitos iguais devem ser conferidos a eles. Segundo essa fórmula, tanto uma ordem jurídica capitalista como uma ordem jurídica comunista são justas, e uma ordem que confere direitos políticos apenas a homens com determinada renda, ou que pertençam a certa raça, ou que sejam de nascimento nobre, é tão justa quanto uma ordem jurídica que confere os mesmos direitos a todos os seres humanos de certa idade sem consideração de outras diferenças. Qualquer privilégio é abrangido por esta fórmula. (1997, p.125/126) 143 Diante da base dessas duas distinções, pode-se dizer que, para os dias de hoje, as mesmas identificar-se-iam pelo que hodiernamente chamamos de Direito Comercial/Civil e o Direito Criminal. Comentando sobre esta divisão, nos diz Osvaldo Guariglia: Aristóteles la define [ a justiça corretiva] como aquella que tiene lugar en las relaciones entre personas. El término griego para estas relaciones es sumamente amplio, synállagma y abarca tanto a las transacciones civiles, como constratos de compra y venta, préstamos, garantías, etc., como aquellas otras que son más bien acciones de tipo criminal. En efecto, las transacciones involuntarias comprenden las fraudulentas y clandestinas, como el hurto, etc. y las violentas, como el robo com violencia, el secuestro y el homicidio (1131 a 1-10). (1997, p.269/270)

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porque sua origem é voluntária); das involuntárias, algumas são sub-

reptícias (como o furto, o adultério, o envenenamento, o lenocínio, o

desvio de escravos, o assassínio traiçoeiro, o falso testemunho), e

outras são violentas, como o assalto, a prisão, o homicídio, o roubo, a

mutilação, a injúria e o ultraje.144

Apesar de a construção aristotélica indicar a presença de

comportamentos que indicam a prática do que hoje qualificamos como crime,

devemos observar que para o grego não havia a presença do que conhecemos

atualmente como direito penal e sua conseqüência punitiva145. Na realidade,

quando a prática era aquela que tipificava o ato como sendo do tipo

involuntário, ou seja, daqueles que causavam dano que não tivessem origem

em um ato contratual, não havia a figura da punição reclusiva (prisional). O

que se impunha era uma reparação do dano ao que sofrera o ato injusto.146

144 Aristóteles. Ética a Nicomacos, 1131 a. 145 Alguns autores questionam-se a respeito desta distinção apresentada por Aristóteles, no sentido de responder às especulações que dizem respeito ao fato de se saber se a justiça corretiva e sua divisão, no que tange a atos voluntários e involuntários, representaria uma descrição do direito grego da época ou seria apenas uma construção teórica do Estagirita. A esse respeito as opiniões parecem divididas, como assevera Osvaldo Guariglia: Qué distinciones está estableciendo aquí Aristóteles? Las opiniones de los eruditos en este punto se hallan sumamente divididas. Mientras que Humburger y Joachim se inclinam por pensar que Aristóteles sigue de cerca la practica procesal ateniense, L. Gernet y A Harrison han formulado serias objeciones contra esa posibilidad, afirmando que se tratan más bien de especulaciones teóricas bastante alejadas de la práctica efectiva del derecho. Creo que los datos aportados por los estudiosos nombrados en último término no dejan lugar a dudas en cuanto a que la distinción entre transacciones voluntarias e involuntarias no se corresponde en absoluto com la práctica forense de Atenas. Sin embargo, el mismo Harrison admite que esta distinción se corresponde en gran medida con la posteriormente introducida en el derecho romano entre obligationes ex contractu y obligationes ex delicto, de modo que sería Aristóteles el primero en haber establecido una distinción conceptual clara al respecto. Este solo hecho prueba la pertinencia de la división establecida por Aristóteles, aun cuando la misma no se correspondiera en absoluto con la práctica. Evidentemente la innovación introducida por Aristóteles en el plano teórico se impuso más tarde en la distinción de las causas, de modo que, si no influyó directamente, obró al menos como una predicción luego comprobada en los hechos.(1997, p.270) 146 A esse respeito esclarece Sir David Ross, op.cit., p.217: As duas classes de injustiças correspondem às distinções, hoje estabelecidas, entre roturas de contrato duma parte, delitos ou prejuízos da outra. Em ambos os casos, a injustiça é vista como feita a um indivíduo, e em ambos a função do juiz não consiste em punir, mas em conceder uma reparação. As «transações involuntárias» mencionadas por Aristóteles são, de facto, na sua maior parte e igualmente, crimes; e, em sistemas legais modernos, seriam habitualmente resolvidas

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Depois de definir o que seja a justiça corretiva e em qual

campo ela se dá, Aristóteles passa a identificar o princípio que identifica esta

espécie de justiça, afirmando:

Com efeito, é irrelevante se uma pessoa boa lesa uma pessoa má, ou

se uma pessoa má lesa uma pessoa boa, ou se é uma pessoa boa ou

má que comete adultério; a lei contempla somente o aspecto

distintivo da justiça, e trata as partes como iguais, perguntando

somente se uma das partes cometeu e a outra sofreu a injustiça, e se

uma infligiu e a outra sofreu um dano. Sendo, portanto, esta espécie

de injustiça uma desigualdade, o juiz tenta restabelecer a igualdade,

pois também no caso em que a pessoa é ferida e a outra fere, ou uma

pessoa mata e a outra é morta, o sofrimento e a ação estão mal

distribuídos, e o juiz tenta igualizar as coisas por meio da penalidade,

subtraindo do ofensor o excesso do ganho (...).147

Como se pode ver, o princípio que norteia a justiça

corretiva é o mesmo que norteia todo o conceito de justiça de Aristóteles,

qual seja, o da igualdade. Entretanto, é preciso observar que para essa espécie

de justiça, a igualdade é vista sob dois enfoques bem particulares: primeiro, o

de que na justiça corretiva a igualdade não está relacionada com os indivíduos

e seus méritos, como ocorria na justiça distributiva, mas sim entre as coisas.

Ou seja, na justiça corretiva a igualdade se opera entre as perdas ou os ganhos

oriundos de determinado acontecimento contratual ou delitivo148; segundo, o

mediante um procedimento criminal. Contudo, são muitas vezes também accionáveis pela lei civil, sendo a esta luz que Aristóteles as considera, em conformidade com a prática grega. 147 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1132 a. 148 Sobre a questão, nos diz T.H.Irwin (1995, p.429): Corrective justice protects each citizen from pleonexia by another. It must ensure that as far as possible X does not lose by Y’s crime against him and that Y does not profit by his crime against X. Since it is a form of special justice, it is concerned with what is fair and equitable to a particular person, and with particular person aspects of fairness that require the correction of any disturbance resulting from pleonexia. Its focus is restricted and retrospective; it does not consider either

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de que a igualdade não se dá no nível da proporcionalidade, mas sim no da

reciprocidade proporcional, o que pode ser identificado como o abandono, por

parte de Aristóteles, da proporção geométrica que identificava a justiça

distributiva, passando, aqui, na justiça corretiva, a identificar a

proporcionalidade como uma progressão aritmética.149

Quanto a esse critério de justiça corretiva para os atos

involuntários, parece ter ele se tornado o indicativo teórico que passou a

insculpir, para o caso de um ato criminoso, a origem do pensamento de que a

pena deveria ter um caráter de retribuição pelo crime cometido. É que, tendo

Aristóteles mantido o critério da igualdade e da proporcionalidade para a

realização da justiça tanto para o desequilíbrio das relações voluntárias

(relações negociais) quanto involuntárias (delitos), acabou por afirmar que

estas últimas deveriam receber como punição algo que fosse proporcional

entre o delito e a punição. Ou seja, Aristóteles acabou não apresentando uma

visão da punição como correção, reeducação ou ressocialização, como vê a

função da pena o moderno Direito Penal. Mesmo porque, como já se

observou150, não tinham os gregos na formação do seu direito a noção de

direito penal como o conhecemos, o que indica que o uso deste pensamento

the common good, or even the principles of distributive justice, but considers only the harm that has been done and the means of restoring the status quo ante. 149 Sir David Ross assevera: Aristóteles afirma que a justiça correctiva não age, como a justiça distributiva, de acordo com a proporção geométrica, mas segundo a «proporção aritmética»; ou, tal como diríamos, implica, não uma proporção, mas uma progressão aritmética. Não se trata aqui de determinar a relação de mérito entre duas pessoas. A lei não se preocupa com o facto de se um homem bom foi defraudado por um mau, ou vice-versa, mas trata-os a ambos de igual modo. Preocupa-se somente com a natureza específica do prejuízo que inclui uma referência à condição das partes e ao carácter, voluntário ou involuntário, do acto. Leva em linha de conta os «prejuízos morais e intelectuais» tanto como o prejuízo físico ou pecuniário. As partes são vistas como tendo, respectivamente, perdido ou ganho, sendo o sentido dos termos «ganho» e «perda» alargados, não só às transacções comerciais, como a outras. (op.cit., p.217). No mesmo sentido afirma Hans Kelsen: Também a justiça corretiva é igualdade; mas é igualdade não segundo a proporção geométrica, mas segundo a proporção aritmética; não é igualdade de duas razões, é igualdade de duas coisas, especialmente de duas perdas ou dois ganhos.(...) A mesma igualdade prevalecerá na relação entre crime e punição. (...) O igual é uma média pela proporção aritmética entre o maior e o menor. (op.cit., p.128)

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aristotélico para o direito penal não é obra originária dele, mas sim da

transposição que alguns de seus leitores fizeram (e eventualmente fazem) para

este campo, ao longo de muitos anos, deste seu conceito de reciprocidade.151

Além da identificação do princípio que caracteriza a justiça

corretiva, a afirmação aristotélica indica também o que é que promove este

tipo de justiça. Agora não é mais a lei (a constituição da cidade), como

acontecia com a justiça distributiva, quem se torna o agente da sua realização,

mas sim o juiz. Naquela, o justo é fruto daquilo que é outorgado pela

constituição; nesta, o justo é fruto daquilo que for decidido pelo juiz. Com a

leitura da passagem a seguir, parece não restar dúvidas quanto a esse aspecto:

É por isso que, quando ocorrem disputas, as pessoas recorrem a um

juiz, e ir ao juiz é ir à justiça, porque se quer que o juiz seja como se

fosse a justiça viva; e elas procuram o juiz no pressuposto de que ele

é uma pessoa ‘eqüidistante’, e em algumas cidades os juizes são

chamados de ‘mediadores’, no pressuposto de que, se as pessoas

obtêm o meio termo, elas obtêm o que é justo. O justo, portanto, é

eqüidistante, já que o juiz o é. O juiz, então, restabelece a igualdade;

as coisas se passam como se houvesse uma linha dividida em dois

segmentos desiguais, e o juiz subtraísse a parte que faz como que o

segmento maior exceda a metade, e a acrescentasse ao segmento

150 Ver notas 145 e 146. 151 Com toda a sua clara, reiterada e indisfarçável crítica ao pensamento aristotélico no que tange ao conceito de justiça desenvolvido por ele, diz Hans Kelsen: O princípio da retribuição ou – formulado mais geralmente, a reciprocidade – é a regra de retribuir o mal com o mal, o bem com o bem, o semelhante com o semelhante. A punição será igual ao crime, a recompensa igual ao mérito.(...) Que a retribuição seja considerada um princípio da justiça pode ser explicado pelo fato de ter ela origem em um dos instintos mais primitivos do homem, o desejo de vingança. A objeção de Aristóteles à regra “igual por igual” como princípio de justiça é que a relação entre o mérito e recompensa, crime e punição, não é a igualdade, mas a proporcionalidade. O serviço de retribuição não será igual ao serviço, a punição não será igual ao crime – isso é impossível -, mas proporcional, o que significa que um deve estar em proporção adequada com o outro. Mas isso, novamente, é mera apresentação, não a solução do problema. A questão decisiva quanto ao que é justiça permanece sem

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menor. Quando o todo houver sido afinal dividido igualmente, então

as partes litigantes dirão que têm aquilo que lhe pertence – isso é,

quando elas houverem obtido o que é igual. O igual é o meio termo

entre a linha maior e a menor de acordo com a proporção aritmética.

Esta é a origem da palavra díkaion (=justo); ela quer dizer dikha (=

dividida ao meio), como se se devesse entender esta última palavra

no sentido de díkaion; e um dikastés (= juiz), é aquele que divide ao

meio (dikhastés).152

É o juiz, portanto, quem na justiça corretiva desempenha o

papel de realizá-la. O prejudicado vai até ele que, por sua vez, analisando as

circunstâncias do caso, estabelecerá a melhor forma de realizá-la, devendo ter

como parâmetro e objetivo o restabelecimento da igualdade entre as partes.153

resposta. A resposta pretendida é apenas uma pseudo-resposta. Trata-se novamente da tautologia da fórmula “a cada um o seu”.(1997, p.130) 152 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1132 b. 153 Sir David Ross, utilizando o exemplo do próprio Aristóteles, diz: As partes, depois do prejuízo, estão, respectivamente, nas posições de A+C, B-C, sendo A tratado como = a B. O que o juiz faz é tomar C de A e dá-lo a B, colocando assim cada um deles numa posição aritmeticamente intermédia entre o ganho e a perda. (op.cit., p.217)

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3.3.3. A justiça das trocas comerciais154

A terceira espécie de justiça particular desenvolvida por

Aristóteles tem cunho eminentemente econômico-comercial, na medida em

que expõe a questão de como deveriam operar-se as relações de troca no

comércio para que as mesmas pudessem ser tidas como justas. Seu conteúdo

também está posto no livro V da Ética a Nicômacos155, sendo o mesmo até

hoje motivo de muita polêmica, eis que não há concordância entre os

comentaristas no que diz respeito a indicar qual seria a intenção de Aristóteles

com aquele texto, bem como no que diz respeito à solução apontada por ele

para encontrar-se o meio termo e, portanto, a justiça nas relações mercantis.156

Para alguns, em especial entre os comentaristas

medievais157, as proposições de conteúdo econômico de Aristóteles chegaram

154 É preciso esclarecer que a denominação “justiça das trocas comerciais” não é criação aristotélica, mas sim do autor deste trabalho. É que, ao contrário do que ocorreu com as outras duas espécies de justiça particular, para as quais Aristóteles deu o nome de “justiça distributiva” e “justiça corretiva”, para a justiça que se desenvolve (ou deve se desenvolver) entre as relações mercantis (comerciais) o Estagirita não deu qualquer denominação. Na realidade, limitou-se a desenvolver o tema que, por seu conteúdo, foi absorvido pelos comentaristas como sendo uma “terceira espécie” de justiça dentro do gênero “justiça particular”. Assim, o nome do presente capítulo é dado com inspiração nas abordagens feitas sobre o tema por Osvaldo Guariglia (Eudeba, 1997), onde o mesmo se refere a ela como sendo “la justicia en la relaciones de intercambio”, já que nos pareceu a mais adequada, na medida em que, por exemplo, Sir David Ross (op.cit) discorre sobre ela sem preocupar-se com qualquer denominação, enquanto C.B. Macpherson, na sua obra Ascensão e queda da justiça econômica e outros ensaios, a denomina de “justiça econômica”. Por outro lado, é oportuno esclarecer que mesmo que esta espécie de justiça não tenha relação direta com o objetivo do presente trabalho, o qual se volta de forma objetiva e central para a questão de se verificar de que forma a lei realiza a justiça na visão aristotélica, com o que esta questão que envolve a discussão da justiça nas relações comerciais não teria qualquer relação, entendemos ser indispensável a abordagem sobre a mesma para que a estrutura do pensamento de Aristóteles sobre a justiça não fique incompleta. 155 A passagem que identifica a abordagem sobre a espécie de justiça sob comento, para Osvaldo Guariglia, está centrada sob linhas 1132b 31-1133a 34 (1997, p.271). Para quem pretendesse se ater a tal passagem, a identificação para a obra nacional editada pela Universidade de Brasília, na sua 3ª ed., seria entre as linhas 1132b 31-1133b 2. Na edição da editora Gredos, na sua 4ª reimpressão, a identificação se dá entre as linhas 1132b 30-1133b. No entanto, observamos que as afirmações aristotélicas sobre o tema são bem mais extensas, devendo ser lidas, para melhor conhecimento sobre a questão, na edição da Unb, a passagem entre 1132b 9-1133b 43; e, para a edição da Gredos, a passagem entre 1132b 10-1133b 27. 156 Guariglia, Osvaldo. op.cit., p.271. 157 C.B. Macpherson. Ascensão e queda da justiça econômica e outros ensaios. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p.19. Em rica passagem, aquele autor afirma: A doutrina aristotélica encerra também o germe de duas

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a representar uma exposição detalhada de como poderia ser fixado o valor

justo de uma mercadoria. Para outros, sem exagero, poder-se-ia dizer que as

noções de “preço justo” e “valor justo” têm seu ponto de partida nas

afirmações aristotélicas feitas naquele Livro V da EN, motivo pelo qual, até o

final do século passado, os economistas clássicos tinham grande respeito e

admiração pelas mesmas. O mesmo não ocorre a partir do surgimento das

teorias modernas sobre as trocas comerciais, momento a partir do qual se pode

afirmar que alguns passam a ter até mesmo desprezo pelo que Aristóteles

afirmara, o que, no entanto, não retira a constante especulação sobre os

motivos e objetivos que levaram o Estagirita a escrever aquele texto. 158

De qualquer modo, parece certo afirmar que Aristóteles não

estava preocupado em analisar a origem das trocas mercantis, mas sim em

estabelecer as bases que as levassem a um equilíbrio, a uma proporcionalidade

nas relações de troca, relevando o aspecto ético destas relações.159

subdivisões do conceito de justiça econômica que viriam a amadurecer na Europa medieval: a justiça comutativa e a justiça distributiva. A justiça comutativa, referente às trocas, exige que estas se façam a um “preço justo”. Tal expressão não foi claramente definida, mas deveria significar um preço que não destrói os padrões tradicionais que mantêm coesa a sociedade. O preço justo é aquele que proporciona ao produtor de uma mercadoria um ganho condizente com a posição social de que goza habitualmente uma pessoa com a mesma ocupação ou qualificação. Os índices, vale dizer os preços, deviam ser determinados socialmente e não pelo mercado. Importava saber que quantidade do produto – isto é, que quantidade dos meios materiais de vida – caberia a cada parte em troca de seu produto ou trabalho. A justiça distributiva – referente à distribuição do produto global da sociedade entre os cidadãos – exigia que toda família tivesse a renda necessária para uma vida digna, a quantia que permitisse a cada uma combinar temperança e liberdade. A justiça distributiva, tal como a comutativa, preocupava-se com o resultado das novas relações de troca geradas pelo aumento do capital mercantil; as relações de produção, seja esta resultante do trabalho servil ou de camponeses e artesões livres, eram dadas como estabelecidas. 158 Guariglia, Osvaldo. op.cit., p. 271 159 Osvaldo Guariglia é quem afirma: Por lo tanto, el intercambio entre el producto del construtor, del agricultor y del zapatero que se pone como ejemplo, no está orientado por el interés en averiguar el origen del valor de cambio o del precio de uma mercadería, sino para establecer como lo dice el texto, literalmente una proporcionalidad entre productores, que si bien eran libres, estaban condicionados por la existencia paralela del trabajador esclavo, que implícitamente influyen en sus correspondientes status. (...) De modo que no hay dificultad alguna en conceder que de lo que se trata en este texto es, sin duda, del aspecto ético del intercambio de productos, y, como señala con acierto Will, de que el criterio de razonabilidad y mesura en los intecambios lo provee en última instancia la existencia de moneda como patrón fijo de evaluación. (1997, p.276/277)

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Pode-se dizer, portanto, que Aristóteles procurou, como fez

quando tratou da justiça distributiva, estabelecer um critério objetivo que

pudesse definir o comportamento justo nas atividades de comércio, o que faz

mediante o estabelecimento de dois pressupostos: primeiro, o da

proporcionalidade, mais uma vez externada como idéia de igualdade, para

cuja concretização se leve em conta não o mérito, mas a situação (status)

profissional de cada um dos envolvidos na operação comercial; segundo, da

exigência de um controle por parte de cada um dos envolvidos na relação, o

que se centra na necessidade dela realizar-se, na medida em que Aristóteles

acreditava que há um limite para as transações, limite este natural para o uso

dos bens.160 Para ele, as relações de produção e troca que não visassem apenas

o mero consumo, mas sim o lucro, eram antinaturais e, portanto, condenáveis,

por serem destruidoras de uma vida digna.161

A teoria aristotélica sobre essa espécie de justiça particular,

mesmo que até hoje não tenha possibilitado aos seus intérpretes chegar a um

consenso sobre as verdadeira intenções162 do Estagirita163, e mesmo que ela

160 idem, p.277/278. 161 Macpherson, C.B., op.cit., p.18/19. A este respeito Macpherson faz a seguinte abordagem, que merece ser transcrita: Aristóteles foi o primeiro a fazer distinção entre uma economia de mercado simples, na qual a produção e a troca visavam ao mero consumo, e uma economia de mercado mais complexa, na qual a troca era iniciada pelo comerciante que usava seu capital para comprar e depois vender com lucro, aumentando assim a sua riqueza, sistema em que “o dinheiro é o ponto de partida e o objetivo da troca”. Ele viu que sua sociedade já estava bem adiantada nesse processo de transição de uma economia de mercado simples para outra mais complexa. E, baseado num argumento ético, condenou esta última como destruidora da vida digna. Chamou-a de antinatural por três motivos: ela torna a aquisição um fim em si mesmo e não tem limites, ao passo que a vida digna requer apenas recursos materiais limitados; ela é um meio pelo qual alguns homens ganham, à custa de outros, o que é injusto. 162 Até mesmo como conservadorismo, no sentido de que seria uma tentativa de preservar uma sociedade tradicional, é entendida uma das possíveis intenções de Aristóteles, como se pode observar de mais esta passagem de Macpherson: Aristóteles preocupou-se com a acumulação de riquezas pelos comerciantes porque ela modificava as relações de troca e, logo, a distribuição de renda: ela colocava em risco a subsistência, os meios de consumo materiais dos cidadãos livres. Aristóteles estava assim aplicando a uma sociedade de mercado razoavelmente adiantada os padrões morais de uma sociedade tradicional mais

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não tenha qualquer influência prática para os nossos dias, pode ser dito,

mantém a sua importância teórica e histórica, eis que em algumas épocas ela

foi utilizada como pressuposto de um comportamento mercantilista necessário

para poder ser alcançada a justiça nesta atividade humana164. Ainda mais

quando nada menos do que o próprio Marx se ocupou do seu estudo165.

4. A LEI

Não são poucas as passagens em que Aristóteles vai falar

de lei, seja na Ética a Nicômacos, na Retórica ou na Política, sempre com o

intuito de externar e explicitar o que é e o que pode ser chamado de direito

antiga.(...) E era natural a sua conclusão de que a melhor maneira de conservar a sociedade tradicional e evitar o domínio de uma classe mercantil e de uma ética comercial era citar e impor um conceito de justiça especialmente econômica. Visto que a extrapolação do mercado havia separado a economia da sociedade, tornou-se necessário formular um conceito de justiça somente para a economia. (op.cit., p.19/20) 163 Guariglia, Osvaldo. op.cit., p.271, diz: El capítulo há sido y continúa siendo aun hoy motivo de intensa polémica, fundamentalmente en lo que se refiere tanto a la intención de Aristóteles como a la solución que finalmente ofrece. 164 Ver nota 155. Além do que naquela nota consta, pode ser acrescentado aqui outra passagem de Macpherson, que afirma: Quando, no século XII d.C., as obras de Aristóteles foram redescobertas na Europa ocidental, a sociedade feudal européia já estava sofrendo as mesmas pressões – mas não ainda no mesmo grau – causadas pela extrapolação do mercado. Portanto, não admira que o eminente teórico do século XIII, Santo Tomás de Aquino, tenha dedicado especial atenção aos problemas da justiça econômica e formulado uma doutrina bem semelhante.(...) As restrições impostas ao comércio medieval (que incluíam a proibição da usura e de práticas monopolistas no mercado) não eram, como julgaram os teóricos de época posteriores, uma limitação descabida da tendência inata do indivíduo para “negociar, barganhar, trocar uma coisa por outra”, como disse Adam Smith. Eram antes o resultado de sistemas de valores de sociedades que ainda não haviam sido transformadas pelo mercado, sociedades em que a organização da produção e das trocas estava subordinada a objetivos sociais. (op.cit., p.20/21) 165 A referência a Marx é feita por Osvaldo Guariglia, quando diz: No es nadie inferior a Marx quien entiende este capítulo como el primer intento de esclarecer el misterio de la commensurabilidad de los valores de uso, cualitativamente distintos de los productos, y de su transformación en valores de cambio que se expresan en una cantidad, medida en moneda. Para Marx, Aristóteles habría establecido los términos precisos del problema, pero se habría resignado a no encontrar la verdadera solución, ofreciendo un escape mediante la introdución de la «necesidad» como la presión social que hace artificialmente conmensurables cosas inconmensurables. (1997, p.273)

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natural (ou justo natural) e direito positivo (ou justo legal ou justo político)166,

na busca da identificação do que seja e como pode ser alcançada a justiça.

4.1. A lei (justo) natural e a lei (justo) política(o)

Para melhor compreensão do que Aristóteles pretende

afirmar quando fala em lei, primeiro é preciso identificar a distinção feita

entre justo natural e justo político. Assim, vejamos o que ele nos diz:

A justiça política é em parte natural e em parte legal; são naturais as

coisas que em todos os lugares têm a mesma força e não dependem

de as aceitarmos ou não, e é legal aquilo que a princípio pode ser

determinado indiferentemente – por exemplo, que o resgate de um

prisioneiro será uma mina, ou que deve ser sacrificado um bode, e

não duas ovelhas -, além de todos os dispositivos legais promulgados

com vistas a casos particulares – por exemplo, que devem ser feitos

sacrifícios em honra de Brasidas -, e dispositivos legais constantes de

decretos.(...)

Seja como for, existem uma justiça natural e uma justiça que não é

natural. É possível ver claramente quais as coisas entre as que podem

ser de outra maneira que são como são por natureza, e quais as que

166 Deve ser observado que as expressões justo legal, direito positivo e justo político são usadas no mesmo sentido, qual seja, o de lei humana (legislativa), enquanto as expressões justo natural e direito natural, por sua vez, são usadas no sentido de lei não humana, eis que o termo justo e Direito são oriundos da mesma raiz, tanto em grego quanto em latim (díkaion, díke; justum, jus), conforme observado por Henrique C. de Lima Vaz (1996, p.445) . A esse respeito, idêntica referência é feita por Norberto Bobbio (1995, p.16): (...) o direito positivo é chamado “direito legal” (nomikón díkaion) e o natural é dito “physikón”: observamos que é impróprio traduzir o termo díkaion pela palavra “direito” (ainda que o façamos assim por motivos práticos) uma vez que o grego díkaion (bem como o latino jus) tem um significado dual indicando ao mesmo tempo a idéia de “justiça” e de “direito”. Por outro lado, deve ser observado, também, que Aristóteles usa outras expressões para identificar o justo natural e o justo político, que são, respectivamente, lei comum e lei particular, como aparecem na Retórica (1373b), expressões que teremos a oportunidade de ver mais adiante neste trabalho.

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não são naturais, e sim legais e convencionais, embora ambas as

formas sejam igualmente mutáveis.167

Aristóteles, portanto, não apenas identifica a existência de

uma justiça natural e uma convencional, como também identifica suas

características: a natural, 1ª) que vigora em qualquer lugar, ou, em outras

palavras, tem validade universal, independentemente do lugar, 2ª) que não é

extraída das nossas opiniões, e, portanto, estabelece o que é justo e injusto por

si mesma, independentemente do que pensam as pessoas; a legal

(convencional), 1ª) como sendo aquela proposta por meio de leis, 2ª) e que

depois de instituídas se tornam obrigatórias.168

As afirmações e divisões aristotélicas da justiça indicam,

portanto, a existência de uma justiça meramente convencional, oriunda da

normatividade, conveniente para cada pólis, que encontra sua fundamentação

167 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1134 b. Lembramos que é preciso ter presente que “justiça política” não é sinônimo de “justo político” (legal), sem cuja distinção a afirmação transcrita ficaria contraditória, já que o que é justo natural não é necessariamente o mesmo que justo político. Caso contrário não haveria a necessidade nem possibilidade da diferenciação. Para Aristóteles, “justiça política” é aquela que “se apresenta entre as pessoas que vivem juntas com o objetivo de assegurar a auto-suficiência do grupo – pessoa livre e proporcionalmente ou aritmeticamente iguais” (EN, 1134a). Isto é, o conceito de “política”, aqui, na expressão “justiça política”, significa o espaço da pólis, da cidade-estado. 168 Para Norberto Bobbio (1997, p.34), o interesse dessa distinção aristotélica consiste no fato de que ela busca o critério de delimitação com respeito à respectiva matéria do direito natural e do direito positivo: a matéria do direito natural corresponde aos comportamentos que são bons ou maus em si mesmos; a matéria do direito positivo começa onde cessa a do direito natural e concerne as ações indiferentes. Neste contexto, parece importante destacar a seguinte passagem do mesmo autor, na mesma obra e página, a fim de captar melhor a idéia e preocupação aristotélica com tal questão: As ações reguladas pelo direito natural, no entanto, não são todas as ações possíveis. Além delas, há uma esfera de ações indiferentes, cuja regulamentação é confinada à lei positiva. Portanto, a lei positiva é a que torna obrigatórias, por meio dos seus comandos, as ações que, com respeito ao direito natural, são indiferentes. Em outras palavras, as ações regidas pelo direito positivo são aquelas que seriam livres, não fosse o comando ou a proibição do direito positivo. Os exemplos dados por Aristóteles esclarecem bem a questão: sacrificar a Zeus uma cabra ou duas ovelhas é, por si mesmo, uma ação indiferente no sentido de que o direito natural não se ocupa com ela; se não há uma lei positiva que obrigue a sacrificar uma cabra em lugar de duas ovelhas, ou vice-versa, estou livre para fazer uma coisa ou a outra. Mas essa ação deixa de ser livre, se intervém a lei positiva, impondo uma forma de sacrifício e excluindo a outra. Se tomamos um exemplo comum de lei natural – por exemplo, aquela que prescreve o respeito aos pactos -, deveríamos dizer que a ação por ela regulada nunca é indiferente, o que significa que a ação é obrigatória, sem que intervenha uma lei positiva para sancioná-la.

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na vontade humana e se impõe através do ν⎜μοσ; e outra, a natural, cujo

fundamento não está na vontade humana, sendo preceituada na própria

natureza. Pode-se dizer, portanto, em outras palavras, que todas as disposições

que definem materialmente a justiça legal são variáveis conforme o lugar, o

tempo e a cultura de cada povo, eis que é obra da legislação vigente, enquanto

que o justo natural encontra respaldo na natureza humana, tendo caráter

universalista, eis que independe da vontade do legislador, sendo válida,

portanto, em todos os lugares.

Apesar do caráter universalista do justo natural e da

particularidade do justo legal, pode ser dito que não apenas o justo legal pode

ser modificado, como também o justo natural, eis que entre os seres humanos

também o justo por natureza pode estar sujeito à mutabilidade. Ambas as

formas de justiça política, portanto, podem ser alteradas pelo homem. Esta

conceituação pode revelar, por sua vez, o problema do relativismo da justiça,

eis que o que é justo numa cidade poderia não ser em outra e vice-versa, o que

não deixou de ser enfrentado por Aristóteles.

Colocações como as constantes na EN169 de que “a justiça

existe somente entre pessoas cujas relações mútuas são regidas pela lei, e a lei

existe para pessoas entre as quais pode haver injustiça” e a de que “a justiça e

a injustiça estão consubstanciadas na lei e existem entre pessoas cujas relações

são naturalmente regidas pela lei, ou seja, pessoas que alternadamente

participam do governo e são governadas”; ou da Política170, de que “uma vez

que o critério de justiça difere de regime para regime, terão de existir

169 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1134 b. 170 Aristóteles. Política, 1308 b 36-38.

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necessariamente diferentes acepções de justiça”, poderiam indicar, portanto, a

adesão de Aristóteles às correntes relativistas do pensamento ético e jurídico

dos gregos do século V, tão defendidas pelos sofistas, na medida em que tal

pensamento implicava aceitação de que o que fosse legal e justo em uma

cidade-estado poderia ser ilegal e injusto em outro, sem qualquer problema.171

A justiça, então, seria algo relativo.

O debate sobre a questão iniciou exatamente com os

questionamentos dos sofistas a respeito da variabilidade das leis. Sustentavam

eles que na vida política existia um único tipo de justiça, qual seja, a justiça

legal, advinda da necessidade da regulamentação da vida dos cidadãos dentro

da pólis. O fundamento de tal pensamento era de que a natureza era imutável,

e, tendo as leis caráter variável, nada podia existir por natureza, mas só em

virtude da lei.172

A conclusão imediata seria a mais óbvia: a de que cada

comunidade poderia fazer a sua própria justiça. Mas se assim fosse, como

seria possível falar, como fala Aristóteles, de uma justiça universal? A

superação dessa dicotomia parece estar na própria passagem que admite a

existência do justo natural e do justo político como divisões da justiça

política.173

É que, ao afirmar Aristóteles que na comunidade, local

onde se opera a justiça política, a justiça se dá de duas formas, quais sejam, a

natural e a legal, conseqüentemente exclui a possibilidade do relativismo, eis

171 Guariglia, Osvaldo. op.cit., p.281. 172 Bittar, Eduardo C.B., op.cit., p.121.

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que admite na pólis outro tipo de justiça que não apenas a convencional.174A

questão que assim se apresenta, se quiséssemos, poderia ser comparada à

distinção do que hoje chamamos de Justiça e Direito.175

A compreensão desta divisão se apresenta, mais uma vez,

na visão da função da pólis para Aristóteles, único local onde o homem se

torna cidadão através de suas instituições e, portanto, interagindo com outros

cidadãos. Em outras palavras, tendo a pólis como fim a realização da

comunidade de homens livres, a sua tarefa fundamental é tornar possível a

vida eticamente configurada dos cidadãos.176 Daí a construção de um justo

político.

Para entender o que Aristóteles quis dizer com a divisão do

justo natural e do político, impõe que se compreenda o conceito de physis para

o Estagirita, bem como a diferença que ele faz entre physis e techné. Physis

tem seu princípio em si mesmo, a partir de sua própria essência,

independentemente da ação do homem, enquanto a téchne se realiza pela ação

do homem, cujo princípio está no sentido ou na funcionalidade que ela tem

para ele. Assim, independentemente da physis, que origina um justo natural,

173 Sobre esse aspecto ver transcrição e observação da nota 165. 174 Guariglia, Osvaldo. op.cit., p.284, onde acrescenta: El problema del relativismo moral que esta pregunta plantea no se le escapa a Aristóteles: el tratamiento del mismo, sin embargo, está inexplicablemente desplazado en la redacion del texto transmitido al capítulo 10, en la sección (II) <Derecho positivo (político) y derecho natural> (1134 a 25-1135 a 15). 175 idem, p.286. Lá, Guariglia afirma: Es algo parecido lo que, a mi modo de ver, Aristóteles quiere decir con su caracterización de lo justo natural como algo mutable y sin embargo permanente. Constituye el significado central de aquello que llamamos «justicia» y «derecho» por oposición a todas sus significaciones periféricas, que pueden hacer referencia a instancias contradictorias entre sí. De ahí su calificación de este significado de lo justo natural, por oposición a lo justo por convención, como «lo primero» (tò prôton dìkaion, 1136 b 35) o «lo justo en sentido absoluto» (tò haplôs kíkaion, 1137 b 25). Es aquella significación a la que hacemos referencia implícita cuando usamos el término «justicia» o sus derivados, por medio de la cual podemos reconocer las otras manifestaciones positivas de justicia como una manifestación periférica de la misma o como, en muchos casos, directamente su contrario, a pesar de tener validez legal. 176 Oliveira, Manfredo Araújo de. op.cit., p.61.

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igual em toda a parte, a experiência ético-política faz emergir o justo político a

partir da pólis e de suas instituições, tendo por base o éthos vigente e o fim da

própria pólis. O problema do direito se põe concretamente para Aristóteles,

assim, como o problema da legitimação das instituições éticas, não se tratando

apenas de buscar um direito, mas de legitimar o direito vigente que está tão-só

valendo por existir.177

Pode-se dizer, portanto, que no que diz respeito à busca da

justiça e da vida feliz, são as instituições políticas, e não a natureza humana

em si, quem possibilita sua realização. É que, para Aristóteles, apesar de a

pólis ser “por natureza”, e isso porque, por natureza, o homem é zoon

politikon, o que distingue uma cidade de outra não é a natureza, mas a lei178.

Por isso é que o homem, como ser racional e livre, através da ordem política,

dentro da pólis, constrói seu conceito de justiça, concretizando-a através do

justo político, ou seja, da lei.

Por essa razão é que se pode dizer que em Aristóteles o

justo natural é parte da justiça política, que visa permitir a realização plena do

ser humano inserido na estrutura social de convívio. É o justo natural o

princípio e causa de todo movimento realizado pela justiça legal, sendo

177 Oliveira, Manfredo Araúdo de. op.cit., p.68. Acrescenta: Quando a ordem vigente continua existindo, mas sobrevivendo apenas como costume, que passa de geração a geração, então a razão crítica tem o direito de se perguntar por que ela ainda vige – e isso constitui a tarefa da filosofia prática.(...) A legitimação da ordem institucional não se pode buscar na tradição e na autoridade, mas em sua racionalidade imanente. É a partir daqui que Aristóteles vai descobrir ou interpretar o elemento positivo do movimento sofístico: em virtude de sua crítica radical à tradição, a sofística destrói o princípio do valor absoluto da tradição. A crise de legitimação das instituições políticas abre uma perspectiva nova de legitimação: a legitimação através da razão, e isso constitui um progresso para o homem. 178 Chauí, Marilena. apud Manfredo A. de Oliveira. Ética e Racionalidade Moderna. São Paulo: Loyola, 1993, p.168.

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aquele, assim, realizado paulatinamente pelo exercício do espírito humano em

desenvolvimento na sociedade por meio deste.179

Por força desta construção teórica, pode ser dito que o justo

legal tem sua origem no justo natural de duas maneiras: primeira, a partir de

um princípio comungado por todos os seres de natureza racional do qual se

extrai uma conclusão (o princípio do neminem laedere consigna-se na norma

positiva a proibição do roubo); segunda, a partir da dedução de especificações

que permitam a composição de um texto legal inteligível e aplicável

materialmente aos casos específicos surgidos no meio social (o valor da pena a

ser cominada para a hipótese de roubo, o modo de cumprimento da pena...).180

Na Retórica, Aristóteles volta a enfatizar a existência do

justo natural e do justo político, desta vez para levar a outra afirmação que

pode ser tida como, no mínimo, instigante, na medida em que abre caminho

para ser questionada qual a lei superior, a natural ou a política.

Diz o Estagirita:

Pois bem: chamo lei, por um lado, a que é particular e, por outro, a

que é comum. <Lei> particular é a que é definida por cada povo em

relação a si mesmo, e esta é umas vezes não escritas e outras vezes

escritas. Comum, por outro lado, é a <lei> conforme a natureza,

(...).181

179 Bittar, Eduardo C.B., op.cit., p.123. 180 idem, p. 124/125 181 Aristóteles. Retórica, 1373 b. Vale a pena transcrever in totum, não apenas para verificação da fonte, como também para observar a contextualização daquela passagem, que está assim colocada na edição da Gredos (1994, p.280/281): Distingamos ahora en su totalidad los delitos y los actos justos, comenzando, en primer término, por lo que sigue. Lo justo y lo injusto han quedado ya definidos en relación con dos clases de

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Nesta altura, diante da afirmação de que existe a lei natural

e a lei política, uma questão se torna imprescindível: o que aconteceria se uma

lei positiva afrontasse algo regulado pela lei natural, determinando

comportamentos de maneira oposta às suas normas (como no caso de

Antígona de Sófocles), ou seja, ordenando o que a lei natural proíbe ou

proibindo o que ela permite?

Essa controvérsia não está bem esclarecida nos textos

aristotélicos, o que faz com que as opiniões se dividam entre os que acham e

afirmam que Aristóteles, naquela situação, defenderia a superioridade da lei

natural, não devendo, pois, ser cumprida lei positiva que a contrariasse182; e os

leyes y, de dos modos, en relación com aquéllos a quienes atañe. Pues bien: llamo ley, de una parte, a la que es particular y, de outra, a la que es común. <Ley> particular es la que há sido definida por cada pueblo en relación consigo mismo, y ésta es unas veces no escrita y otras veces escrita. Común, en cambio, es la <ley> conforme a la naturaleza; porque existe ciertamente algo –que todos adivinan- comúnmente <considerado como> justo o injusto por naturaleza, aunque no exista comunidad ni haya acuerdo entre los hombres, tal como, por ejemplo, lo muestra la Antígona de Sófocles, cuando dice que es de justicia, aunque esté prohibido, enterrar a Polinices, porque ello es justo por naturaleza: “Puesto que no ahora, ni ayer, sino siempre existió esto y nadie sabe desde cuándo há aparecido”. Em outra passagem da Retórica Aristóteles faz a distinção entre a “lei particular” e a “lei comum”. Está em 1368b da seguinte forma: Entendamos por cometer injusticia el hacer daño voluntariamente contra la ley. La ley se divide en particular y común. Llamo particular a la ley escrita por la que se gobierna cada ciudad; y común a las leyes no escritas sobre las que parece haber un acuerdo unánime en todos <los pueblos>. 182 Norberto Bobbio (1997, p.34-35), com suporte na Retórica, afirma: Ou a lei positiva regula o comportamento do mesmo modo que a lei natural –ordenando o que ela ordena ou proibindo o que proíbe –e neste caso a reforça; ou a regula de modo oposto – ordenando o que a lei natural proíbe ou proibindo o que ela permite –e, abre-se, assim, um conflito de normas que só pode ser resolvido em favor da norma considerada superior. Na passagem da Retórica em que Aristóteles apresenta a questão, embora com outros fins, ao comparar o direito natural com o positivo, o filósofo mostra clara preferência ao primeiro: (...). Há duas passagens, sempre da Retórica, em que Aristóteles – para pôr em evidência a excelência das leis não-escritas em relação às escritas – cita o famoso caso de Antígona, que para obedecer às leis não escritas que a obrigavam a sepultar o irmão morto, desobedece às leis civis, estabelecidas por Creonte. Por sua vez, Joaquim Carlos Salgado (1995, p. 42/43), defende a mesma convicção ao dizer: O ato justo, conforme a lei, de que fala Aristóteles, não é simplesmente e somente o ato conforme à lei positiva convencional. Devemos distinguir, segundo diz, dois tipos de leis: uma particular (escrita ou costumeira) que regula a vida de um Estado e outra comum, não escrita, que é conhecida de todos os povos. Repete, assim, o tema central da Antígona de Sófocles. A lei comum é uma lei natural, pois tem validade geral, independente de opinião dos homens, embora não imutável, visto que nem na natureza nada é imutável, apenas entre os deuses. Trata-se, pois, da natureza que se destina a viver na sociedade política não como pessoa a ela transcendente, mas organicamente comprometida com a sua comunidade. Segundo seja o objeto da virtude justiça realizar a ação conforme uma ou outra lei, poderíamos deduzir o conceito de justo legal ou político e do justo natural

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que acham que Aristóteles não afirma tal superioridade183, pelo que ele não

defenderia que uma lei positiva não deveria ser cumprida por afrontar uma lei

natural; e, por último, entre os que acham que é preciso cuidado no

enfrentamento desta questão, na medida em que Aristóteles teria dito muito

pouco sobre a distinção entre aqueles dois tipos de justiça para que seus

intérpretes pudessem afirmar de forma categórica se Aristóteles teria com

clareza se definido por uma ou outra posição184.

Parece certo afirmar que, embora haja a discordância

apresentada entre os comentadores de Aristóteles a esse respeito, a grande

maioria concorda que o Estagirita escreveu muito pouco sobre o tema,

deixando margem para interpretações e afirmações diversas, como aqui

apresentado. E tudo indica que o ponto de apoio central de uma daquelas

correntes de pensamento, qual seja, aquela que prefere afirmar que Aristóteles

tenha-se posicionado a favor da lei natural em detrimento da lei positiva,

ou original. O justo político consiste, na igualdade e na paridade. Entretanto, o justo natural é melhor não só do que o justo legal no sentido de convencional, mas superior a toda forma de justiça, o que autoriza concluir ser, também na justiça particular, a conformidade com a lei (natural) o elemento essencial para o conceito de justiça. 183 Hans Kelsen (1997, p.386) faz a seguinte consideração: Aristóteles não afirma que uma norma de Direito positivo, se não está em conformidade com a justiça natural, não deve ser considerada válida; tampouco ele indica as exigências que uma norma deve cumprir para estar em conformidade com a justiça natural. Embora afirme a existência da justiça natural, esse conceito não desempenha um papel essencial na sua Ética, da qual apenas algumas linhas são dedicadas a esse problema. 184 Esta postura mais cautelosa pode ser encontrada em Alasdair MacIntyre (1991, p.135): Há, de fato, justiça natural (EN 1134b18-1135a5), aquela que não varia de uma cidade para a outra, e o padrão da justiça natural é a justiça do melhor tipo de pólis. Mas em toda cidade, inclusive a melhor, alguns elementos da justiça devem ser determinados pela convenção local, por exemplo, o resgate exato a ser dado por um prisioneiro ou o modo como o bom desempenho de uma função pública deve ser honrado. Observe que dizer que certas punições ou recompensas são aplicadas de acordo com o merecimento, por convenção, não significa que seja apenas uma questão de justiça convencional e não natural o fato de que os cidadãos de uma cidade particular devam obedecer às suas próprias convenções. Aristóteles diz muito pouco sobre a distinção entre a justiça natural e convencional para podermos ser menos que cuidadosos ao fazer inferências a partir do que ele realmente diz. Mas seria consistente com suas teses sustentar que a justiça natural geralmente exige que os cidadãos de uma pólis constitucional obedeçam a suas próprias convenções. E Aristóteles certamente acreditava que os cidadãos são obrigados, por sua consideração pela justiça, a respeitar os termos concordados em tratados comerciais ou de aliança militar entre a sua pólis e outras.

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quando esta afrontar aquela, é a passagem da Retórica em que ele faz menção

ao caso de Antígona de Sófocles185.

A passagem diz o seguinte:

Pois bem: é evidente que, se a lei escrita é contrária ao caso, se deve

recorrer à lei comum e a (argumentos de) maior eqüidade e justiça.

Como também, que (a fórmula) <com o melhor espírito> significa

precisamente isso, ou seja, que não há de nos servirmos com

exclusividade de leis escritas; e que a eqüidade sempre permanece e

nunca muda, como tampouco a lei comum (pois é conforme a

natureza), enquanto que as leis escritas (trocam) muitas vezes, de

onde se dizem aquelas palavras na Antígona de Sófocles, quando ela

se defende, com efeito, de haver sepultado (o seu irmão) contra a lei

de Creonte, mas não contra a lei não escrita: (...)186

O problema de ver nessa passagem a defesa incondicional

de Aristóteles à superioridade da lei natural sobre a lei positiva é o fato de que

ela estaria inserida no contexto da Retórica187, onde Aristóteles usaria aquele

185 A esse respeito, veja-se o conteúdo da nota 173 e 174. 186 Aristóteles. Retórica, 1375 a 25-35. Na edição da Gredos está assim colocada a passagem: Pues bien: es evidente que, si la ley escrita es contratia al caso, se debe recurrir a la ley común y a <argumentos de> mayor equidade y justicia. Como también, que <la fórmula> «con el mejor espíritu» significa precisamente eso, o sea, el que no hay que servirse en exclusividad de las leyes escritas; y que la equidad siempre permanece y nunca cambia, como tampouco la ley común (pues es conforme a la naturaleza), mientras que las leyes escritas <cambian> muchas veces, de donde se dicen aquellas palabras en la Antígona de Sófocles, cuando ella se defiende, en efecto, de haber sepultado <a su hermano> contra la ley de Creonte, pero no contra la ley no escrita: (...). Parece interessante registrar que na Retórica existe outra passagem em que Aristóteles apela para o mesmo exemplo de Antígona de Sófocles, o que faz quando discorre sobre os critérios de distinção entre o justo e o injusto, momento em que estabelece a distinção entre lei particular e lei comum, conforme é da passagem 1373b a 1373b10, a qual, inclusive, foi objeto de comentário neste trabalho (ver nota 173). 187 Para os que vêem no exemplo do caso da Antígona a defesa de que Aristóteles valoriza mais a lei natural do que a positiva nas situações de contrariedade entre elas, aparentemente não há qualquer indicativo de que o fato de ele estar inserido na Retórica e da forma como lá é apresentado seja qualquer problema para tal convicção. Aliás, no caso de Norberto Bobbio (1997, p.34/35), com um dos comentadores considerados neste trabalho, o que ele faz é exatamente reforçar seu pensamento a favor daquela tese usando como fonte a

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argumento (o de Antígona) apenas para os discursos judiciais, para quando a

lei positiva (escrita) não favorecesse à (nossa) causa. Assim, a insistência

aristotélica no exemplo de Antígona de Sófocles poderia ter como objetivo,

apenas, demonstrar como podemos (ou devemos) nos portar diante de uma

situação judicial. Ou seja, se a lei escrita favorece a nossa causa, rogamos pelo

respeito a ela, protestando por seu cumprimento como fonte de justiça; se ela

nos desfavorece, rogamos que ela não seja aplicada, buscando para tal

discurso o elemento da lei natural que ela contradiz e que nesta última nos é

favorável.

Tal constatação toma mais vulto quando se observa que

numa passagem imediatamente seguinte a que Aristóteles menciona o

exemplo de Antígona para fazer a defesa da lei natural, passa a fazer

afirmação bem clara no sentido de que, no discurso, deve ser defendida a

validade da lei escrita contra a fórmula do “melhor espírito”, o que significa

uma posição totalmente contrária a que acabara de defender na passagem

anterior.

Vejamos, pois, a passagem onde está o argumento de

Antígona de Sófocles como exemplo, só que, agora, visualizando-a dentro do

contexto mais abrangente:

Retórica, sem qualquer problema ou menção ao contexto que revela preocupação e discordância sobre a questão. Assim justifica: Na passagem da Retórica em que Aristóteles apresenta a questão, embora com outros fins, ao comparar o direito natural com o positivo, o filósofo mostra clara preferência ao primeiro: Se a lei escrita é contrária à nossa causa, torna-se necessário utilizar a lei comum e a eqüidade, que é mais justa (...) Com efeito, a eqüidade sempre dura, e não está destinada a mudar: e até mesmo a lei comum (pelo fato de ser natural) não muda, enquanto as leis escritas mudam com freqüência. Mais adiante, profere o conceito de que “é próprio do homem seguir e observar constantemente as leis não escritas, em vez das escritas”. Há duas passagens, sempre da Retórica, em que Aristóteles – para pôr em evidência a excelência das leis não-escritas em relação às escritas – cita o famoso caso de Antígona, que, para obedecer às leis não escritas que a obrigavam a sepultar o irmão morto, desobedece às leis civis, estabelecidas por Creonte.

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Como continuación de lo expuesto, corresponde extenderse a las

pruebas por persuasión que hemos llamado no propias del arte, ya

que ellas son específicas de los discursos judiciales. En número son

cinco: las leys, los testigos, los contratos, las confesiones bajo tortura

y los juramentos.

Hablemos en primer lugar de las leyes: de cómo debe usar de ellas el

que aconseja y el que disuade, el que acusa y el que defiende. Pues

bien: es evidente que, si la ley escrita es contraria al caso, se debe

recurrir a la ley común y a <argumentos de > mayor equidad y

justicia. Como también, que <la fórmula> «com el mejor espíritu»

significa precisamente eso, o sea, el que no hay que servirse en

exclusividad de las leyes escritas; y que la equidade siempre

permanece y nunca cambia, como tampoco la ley común (pues es

conforme a la naturaleza), mientras que las leyes escritas <cambian>

muchas veces, de donde se dicen aquellas palabras en la Antígona de

Sófocles, cuando ella se defiende, en efecto, de haver sepultado <a su

hermano> contra la ley de Creonte, pero no contra la ley no escrita:

Porque no ahora, ni ayer, sino siempre...

...por lo tanto, no iba yo por hombre alguno... .

(...)

En cambio, si la ley escrita es favorable al caso, hay que decir que

<la fórmula> «com el mejor espíritu» no sirve para pronunciar

sentencias al margen de la ley, sino para que no haya perjurio si es

que se desconoce lo que dice la ley. Que además nadie escoge lo

bueno en absoluto, sino lo que <es bueno> para él. Que no hay

ninguna diferencia entre no haber ley o no usar de ella.188

A passagem, portanto, lida no contexto, traz alguma

complexidade interpretativa, a qual poderia nos levar a conclusões negativas

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sobre Aristóteles, eis que, se tido, então, aquele argumento, apenas como

oportunista, poderíamos até comparar a atitude aristotélica à dos sofistas.

Assim, a defesa da lei natural seria apenas um expediente retórico, com o fim

de persuadir.

Uma boa explicação para o fato parece ser dada por

Quintín Racionero, o qual, servindo-se de Grimaldi e opondo-se a Guthrie e

Spengel, sugere que o texto transcrito visa apenas um exame crítico e

metodológico sobre a apresentação das provas na oratória forense, na medida

em que a tradição sofística fazia tal discussão sob o pressuposto de

argumentos falsos. Assim, o argumento do caso de Antígona não seria, apesar

da forma como foi colocado, oportunista e sofístico, representando seu uso,

em essência, a admissão aristotélica da superioridade da lei natural sobre a lei

positiva.189

Não há dúvida, portanto, que Aristóteles separou

claramente o justo natural do justo político, criando a divisão hoje conhecida

por direito natural e direito positivo. Se remanesce a dúvida entre os seus

comentadores sobre se ele valorizava mais um ou outro, ou se sobrepunha um

ao outro em determinadas situações, como, no caso, quando a lei dos homens

188 Aristóteles. Retórica, 1375 a 22 – 1375 b 20. 189 A esse respeito ver nota 342 e 343, de Quintín Racionero, onde ele apresenta, como responsável pela introdução, tradução e notas da edição da Retórica para o espanhol pela Editora Gredos (1994, p.290/291), uma visão sobre esta questão. Lá, entre outras afirmações, podemos pinçar as seguintes, as quais resumem seu posicionamento: Es evidente, pues, que lo que interesa a Aristóteles es el examen crítico – más bien que el descubrimiento – de un material ya de suyo ampliamente conformado por la tradición retórica. Pero además, como Grimaldi, 318, ha señalado acertadamente contra Guthrie, la preocupación metodológica que guía al filósofo resulta más importante que el análisis de las propias pruebas, sin que quepa establecer en este punto grandes diferencias entre éste y los anteriores capítulos. Em resumen, pues, lo que Aristóteles se propone estudiar es el uso retórico, conforme al arte, de las pruebas no técnicas, fijando para ello los lugares comunes y enunciados en que tal uso se apoya.(342) (...) la preocupación de Aristóteles en el análisis de tales pruebas es fundamentalmente de orden metodológico y nada impide que el que delibera haga uso de argumentos que se refieran a la ley en este sentido atécnico.(343)

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97

fosse contrária à lei natural, momento em que preferiria essa última ou não,

isso não impede nem altera a verificação da importância da construção

aristotélica sobre a lei e o justo legal, com todas as suas conseqüências.190

4.2. A origem

Na Ética a Nicômacos, como algumas passagens deste

trabalho até aqui demonstram, Aristóteles apresenta uma série de análises e

conclusões que envolvem a criação, a modificação e o objetivo da lei. Mas é

na Política que ele desenvolve mais demorada e pormenorizadamente suas

afirmações sobre ela. Tanto é assim que é o próprio Aristóteles quem anuncia,

no final da EN, que dará início ao estudo sobre a legislação, já que seus

predecessores haviam-se omitido quanto ao exame deste assunto, o que

indubitavelmente revela a preocupação que o Estagirita tinha com esta

questão.

Assim ele anuncia:

Nossos predecessores se omitiram quanto ao exame do assunto da

legislação; talvez seja melhor, portanto, que nós mesmos o

estudemos, e estudemos de um modo geral a questão das

190 Eduardo C.B.Bittar (1999, p.114/126) tem uma interessante e recomendável apreciação sobre o assunto, desenvolvendo, ao final do capítulo exatamente sobre o justo natural e o justo legal, uma abordagem elucidativa, onde enumera sistematicamente um conjunto de funções que são desenvolvidas pelo justo natural dentro do sistema aristotélico. Sobre a superioridade de um justo em relação ao outro, faz a seguinte abordagem, a qual destacamos por sua conveniência: Destes princípios pode-se concluir que a legislação perfeita é a adequação plena do legal ao natural, o que representa uma atualização integral de toda justiça em seu sentido absoluto. A racionalidade humana, mesmo almejando ao bem equivoca-se, originando-se normas degeneradas, por diversos motivos, a saber, por erros de interpretação, por falta de conexão da norma com a realidade sociocultural, por má expressão lingüística, pela circunstancialidade de uma medida, entre outros. O justo natural, enquanto ideal de aperfeiçoamento de regra legislativa, atua vetorialmente sobre o legal norteando sua reelaboração.

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98

constituições, a fim de completarmos da melhor maneira possível,

nos limites da nossa capacidade, nossa filosofia das coisas humanas.

(...)

Quando tivermos estudado convenientemente estes assuntos é mais

provável que possamos ver de maneira mais abrangente qual das

várias espécies de constituições é a melhor, e como cada constituição

deve ser estruturada, e quais as leis e costumes que uma constituição

deve incorporar para ser a melhor. Comecemos a nossa discussão.191

Pois na Política, como já havia feito na Ética a Nicômacos,

Aristóteles afirma que a lei tem como origem a razão, elemento que introduzia

algo de humano naquele mandamento que até então era considerado como

emanado do divino.192

Na EN assim está colocado:

(...), mas a lei tem este poder de compulsão, e ela é ao mesmo tempo

uma norma oriunda de uma espécie de discernimento e de razão.193

191 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1181 b. Segundo registra Mário da Gama Kury na EN da Unb (1992, p. 225, nota 324), da qual é responsável pela introdução, tradução e notas, a expressão “nossa discussão” “é a Política, à qual a Ética Nicomaquéia serve de introdução”. Para Julio Pallí Bonet, responsável pela tradução e notas da EN editada pela Gredos (1998, p.408), “este último capítulo de la Ética puede considerarse como una introducción a su curso de política”. 192 A esse respeito, ver notas nº 108 e 109. 193 Aristóteles, Ética a Nicômacos, 1180 a. Essa transcrição foi tirada da edição da Unb (1992, p.208). Já, na edição da Gredos, a afirmação está assim traduzida: (...); em cambio, la ley tiene fuerza obligatoria, y es la expresión de cierta prudencia e inteligencia (1180 a 22-23). Fazemos a observação em função dos termos “discernimento e razão”, usados na tradução brasileira, e dos termos “prudência e inteligência”, da tradução espanhola, termos bem distintos para efeito de uma exata compreensão da idéia aristotélica. O principal problema que se apresenta seria o fato de que “razão” e “inteligência” não têm a mesma origem. Aquela é o logos, enquanto esta é o nous. Assim, é preciso ficar presente esta disparidade entre os comentadores e tradutores, posto que é possível verificar que não há uma unicidade quanto ao uso daquelas expressões. O mesmo vai se dar na tradução da Política, como veremos mais adiante. De qualquer sorte, procuraremos demostrar nas passagens seguintes deste trabalho qual seria a idéia aristotélica a respeito da origem “não divina” da lei, que, para nós, para melhor entendimento do que exatamente Aristóteles pretendia dizer, se

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99

Já, na Política, Aristóteles faz a seguinte afirmação:

Assim, exigir que a lei tenha autoridade não é mais do que exigir que

Deus e a razão predominem; pelo contrário, exigir o predomínio dos

homens, é adicionar um elemento animal; o desejo cego é semelhante

a um animal e o predomínio da paixão transtorna os que ocupam as

magistraturas, mesmo se forem os melhores dos homens. A lei é,

pois, a razão liberta do desejo.194

Aristóteles está empenhado em dar legitimidade ao

instrumento lei, a fim de que ele possa ser reconhecido, inclusive, como

superior ao comando dos homens, ao qual estes deveriam estar subordinados,

já que os homens, às vezes, agem de acordo com os seus desejos195,

identifica mais com o conceito de razão. Por isso é que a usaremos, ao invés de inteligência, nas afirmações que forem de responsabilidade do autor desta dissertação. 194 Aristóteles. Política, 1287 a 25-32. A passagem transcrita é da edição bilíngüe da Vega Universidade (1998, p.259). Fazemos a menção porque vamos demonstrar, por força do problema levantado na nota anterior, o que se apresenta nas traduções a esse respeito, ou seja, entre o uso do nous e do logos. Neste aspecto, vale a pena a transcrição de uma das notas daquela tradução, que reflete a preocupação dos tradutores com esta questão. Dizem eles na nota nº 84 (p.612): O jogo terminológico dos binómios nous-nomos (intelecto-lei) e logos-nomos (razão-lei) é assumido por Aristóteles na esteira das relações etimológicas iniciadas por Platão no Crátilo e devidamente sedimentadas em Leis, I, 644d, e; 645a; IV, 713e–714a.. O ideal da vida política consistiria então em atribuir à faculdade racional o que há de mais divino no homem em virtude da sua índole universal e imortal: o governo da cidade. A lei mais não seria do que uma emanação da razão divina; vide a propósito ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, X, 7, 1177 b 27 ss., onde no seguimento de Platão (cf. República, IX, 7, 588c ss.) é sublinhada coexistência, no homem, de um elemento divino (intelecto) unido a um elemento animado (corpo). Já, na edição da Unb (1997, p.116), na frase chave da passagem, Mário da Gama Kury prefere mais uma vez (como faz na sua tradução da Ética a Nicômacos, já mencionada), escrever: Portanto a lei é a inteligência sem paixões. Chama atenção nesta tradução o fato de o tradutor, na frase anterior a essa, onde aparece a mesma palavra (nous), ter usado, aí sim, razão e não inteligência. Escreve: (..) império exclusivo da divindade e da razão. Em outras três traduções consultadas a expressão usada é sempre razão. Na edição bilíngüe espanhola, da editora Centro de Estudios Políticos y Constitucionales (1997, p.104), está assim colocado: La leyes, por conseguiente, razón sin apetito. Na edição italiana da Editori Laterza (1997, p.109), está assim colocado: Perciò la legge è ragione senza passione. Na edição espanhola da Editorial Gredos (1994, p.208), consta: La ley es, por tanto, razón sin deseo. Assim, parece que o melhor termo a expressar a idéia aristotélica para os nossos dias é razão e não inteligência. 195 Vergnières, Solange. op.cit., p.208/209, acrescenta: Todo homem é inteligência mesclada de besta selvagem. A selvageria inscrita no homem é a da faculdade de desejar, isto é, da cobiça e do coração: a despeito de sua excelência, nenhum homem pode estar seguro e não pode assegurar aos outros que não fará mau uso de seu poder, que não resta alguma coisa vil nele.(...) Ademais, o poder absoluto, sem a salvaguarda da lei, comporta tais tentações de desmedida, tais provas para a virtude que ninguém nunca está certo de sair delas incólume.

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externando o seu lado animal.196 Isso não pode acontecer com a lei,

justamente porque ela é a “razão sem desejo”.197

O Estagirita parece estar sobremaneira preocupado com a

postura eventualmente autoritária que pode advir do governante, um dos

motivos198 da defesa da importância da lei como elemento com neutralidade,

por força de sua criação racional. Esse aspecto parece ficar claro quando se lê

na Política que é preferível o governo da lei ao dos homens199, cuja afirmação

fora precedida da de que não “permitimos que um homem governe, mas sim a

lei”, como aparece na Ética a Nicômacos200, a qual, neste sentido, apresenta-se

ainda mais categórica. Afirma, também, a necessidade desta lei neutra e

impessoal no que tange aos assuntos particulares, já que os homens, segundo

ele201, preferem o comando da lei ao de outros homens.202

196 Aristóteles. Política, 1287 a 30. 197 idem, 1287 a 32 198 Como observa Lima Vaz (1996, p.446), quando Aristóteles empreende seu estudo sobre a comunidade política e exterioriza sua preocupação com a postura daqueles que governam a pólis, não tem como motivação a legitimação do poder, mas sim a realização da justiça. A este respeito, escreve: Somente após ter assegurado, como a ciência do Bem ou Ética, as condições necessárias da praxis do indivíduo segundo a razão (kata logou), Aristóteles empreende o estudo da comunidade política. Aqui o leit-motiv não é, como na politologia moderna, o problema da legitimação do poder e sim o problema da realização da justiça, que somente é possível no seio da melhor politeia, vem a ser, da Constituição mais justa. Eis porque a Política de Aristóteles (cuja redação foi interrompida no livro VII) é, de fato, uma pesquisa sobre a melhor Constituição, seguindo a linha de pensamento inaugurada por Platão na República. 199 Aristóteles. Política, 1287 a 20. Esta é a passagem: Assim sendo, é preferível que seja a lei a governar e não um dos cidadãos. Segundo o mesmo princípio, ainda que fosse melhor que vários indivíduos tivessem a autoridade, deveriam ser feitos guardiões ou ministros da lei; (...). 200 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1134 a. Está assim colocado: É por isso que não permitimos que um homem governe, e sim a lei, porque um homem pode governar em seu próprio interesse e tornar-se um tirano. 201 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1180 a 22. 202 Vergnières, Solange. op.cit., p.209. Vergnières observa: (...), Aristóteles constata que os homens aceitam de mais bom grado submeter-se à lei que a homem particular. Quando um homem nos impõe alguma coisa que contraria nossos pendores, estamos inclinados a experimentar animosidade quanto a ele, ainda que ele o faça com razão: a injunção de outrem pode sempre ser sentida como vexame pessoal e infantilizador; gera paixões, das quais vimos, na Retórica, que sempre são suscitadas pela representação que temos do outro, pela intenção que lhe emprestamos. A lei, porque é impessoal, porque é “ser de razão”, enuncia o que diz sem encenação pessoal da autoridade, e, assim, não gera nenhum ressentimento. Não só é imparcial, mas parece imparcial àqueles que lhe obedecem: o crédito que se atribui a ela acresce de fato a autoridade que a constituição da cidade lhe confere.

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101

Porém, na sua construção racional a respeito do surgimento

desse tão importante instrumento, Aristóteles não afasta completamente, como

já observado anteriormente, a presença da divindade na sua criação. Admite a

presença daquela característica divina nela, repartindo sua criação com o

homem. A permanência da parcela divina na confecção da lei, no entanto, não

se sedimenta em algo que poderia ser caracterizado como “lei divina”. Não,

quem inventa a lei são os homens, e justamente porque os deuses não reinam

nos assuntos humanos. A presença divina na lei se dá através da inteligência,

considerada o algo divino no homem.203

E os homens responsáveis pela neutra, impessoal e justa lei

são os legisladores. Mas quem são eles para Aristóteles? O Estagirita nos dá

um indicativo de sua preocupação a respeito disso no final da Ética a

Nicômacos, quando pergunta e ao mesmo tempo responde:

Certamente uma pessoa que deseja, graças aos seus cuidados, tornar

as outras melhores, sejam estas muitas ou poucas, deve tentar

capacitar-se para legislar, na presunção de que podemos tornar-nos

melhores graças às leis. De fato, moldar adequadamente o caráter de

alguém – seja quem for que se nos apresente – não é tarefa para

qualquer pessoa ao acaso; se uma pessoa pode fazer isto, esta é a

pessoa que tem o conhecimento adequado, da mesma forma que na

medicina e em todas as outras profissões cujo exercício pressupõe

cuidado e discernimento.204

203 Vergnières, Solange. op.cit., p.208 204 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1180 b 25-29

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Como se vê, Aristóteles estabelece o critério: “não é tarefa

para qualquer pessoa ao acaso”, mas sim para a “pessoa que tem o

conhecimento adequado”.

Aristóteles também pergunta, logo após aquela passagem,

se “não é o caso então de investigar em seguida com quem ou como podemos

aprender a legislar”.205 No entanto, não chega a dar uma resposta firme e

clara, limitando-se, na realidade, a excluir a possibilidade de alguém aprender

a legislar com os sofistas, afirmando que eles, “que pretendem ensinar

política, estão muito longe de ensiná-la realmente”.206 O mesmo se dá na

Política, onde também aqueles dois questionamentos acabaram não sendo

objeto de resposta. É verdade que Aristóteles fala muitas vezes em legislação

e legisladores nessa obra207, porém, mesmo assim, acaba não respondendo

àquela pergunta. O que se tem, portanto, na forma afirmativa dada por ele, é

que os legisladores devem ser aquelas pessoas que têm “conhecimento

adequado”.208

205 idem, 1180 b 30 206 idem, 1181 a 14 207 São várias as passagens, mas nenhuma com a resposta procurada. Citamos algumas: O papel do legislador é impedir revoltas (1273b 20); Outros tornam-se legisladores quer na sua cidade, quer em terras estrangeiras, exercendo cargos políticos. Alguns foram apenas autores de leis; outros elaboraram constituições, como Licurgo e Sólon, que estabeleceram tanto leis como constituições (1273 b 30); Por outro lado, vemos que toda a actividade do político e do legislador está obviamente relacionada com a cidade (1274b 35); (...) o bom legislador e o verdadeiro político não devem negligenciar nem a forma absolutamente perfeita de regime, nem a forma melhor tendo em conta as circunstâncias; (...) ( 1288 a 20-25) . 208 Afirmando aquela qualidade, o “conhecimento”, sem fazer menção a qualquer característica ou afinidade com a divindade, Aristóteles mais uma vez parece avançar em relação a seus antecessores, os quais viam, inclusive Platão, algo de divino no legislador. A esse respeito, ver a referência a Werner Jaeger, feita na nota nº 108.

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103

4.3. O conteúdo

Na Ética a Nicômacos Aristóteles esforça-se em apresentar

a lei como algo essencialmente positivo, na medida em que afirma que as leis

retratam a igualdade e a justiça, não reconhecendo, pelo menos

expressamente, que elas possam representar algo negativo, seja “em si”

mesmas, seja por sua construção meritória e necessária. Enaltece

sobremaneira o instrumento legislativo, revelando-o como portador daquilo

que seja “o justo”, tanto que o homem descumpridor da lei é “injusto”.

Diz o Estagirita, em várias passagens:

Com efeito, a justiça e a injustiça, como já vimos, estão

consubstanciadas na lei, e existem entre pessoas cujas relações são

naturalmente regidas pela lei, ou seja, pessoas que alternadamente

participam do governo e são governadas.209

... O justo, então, é aquilo que é conforme à lei e correto, e o injusto é o

ilegal e iníquo.210

...

(...); a lei contempla somente o aspecto distintivo da justiça, e trata as

partes como iguais, (...).211

E ainda:

(...); com efeito, os atos estipulados pela arte de legislar são

conformes à lei, e dizemos que cada um deles é justo.212

209 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1134 b. 210 idem, 1129 a. 211 idem, 1132 a.

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Há, portanto, um vínculo inseparável entre a existência da

lei e seu resultado positivo. É que ela não apenas provém da excelência moral

e do conhecimento daqueles que o possuem para legislar, como também

ajudam na formação da excelência moral, do ethos.213 Para tanto, afirma:

E a lei determina igualmente que ajamos como agem os homens

corajosos (ou seja, que não desertemos de nosso posto, nem fujamos,

nem nos desvencilhemos de nossas armas), e como os homens

moderados (ou seja, que não cometamos o adultério nem ultrajes), e

como os homens amáveis (ou seja, que não agridamos os outros, nem

falemos mal deles), e assim por diante em relação às outras formas de

excelência moral, impondo a prática de certos atos e proibindo

outros; (...)214

E ainda:

(...) de fato, a lei nos manda praticar todas as espécies de excelência

moral e nos proíbe de praticar qualquer espécie de deficiência moral,

e as prescrições para uma educação que prepara as pessoas para a

vida comunitária são as regras produtivas da excelência moral como

um todo.215

Uma outra afirmação chama atenção quando se busca o

conteúdo que Aristóteles pretende estabelecer para a lei. Em determinada

passagem, falando sobre se era possível alguém cometer injustiça contra si

mesmo, utilizando o exemplo do suicídio, nos diz:

212 idem, 1129 b. 213 A esse respeito ver nota 102. 214 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1129 b. 215 idem, 1130 b.

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Uma classe de atos justos se compõe de atos conformes a qualquer

forma de excelência moral considerada pela lei; por exemplo, a lei

não permite expressamente o suicídio, e o que ela não permite

expressamente ela proíbe.216

A afirmação parece inaceitável mesmo para os tempos

vividos por Aristóteles e mesmo saindo dele, com toda autoridade que

representa. É que é impossível conceber que tudo que a lei não permitisse

seria proibido, quando a lógica diz que o razoável é o contrário, ou seja, que

tudo o que não é proibido pela lei é permitido.217

Mas Aristóteles parece ter corrigido ou no mínimo

minimizado os efeitos daquela sua afirmação quando, na Política, ao abordar a

questão de se saber se são os magistrados ou as leis quem deveriam ter

supremacia na solução dos casos, admitiu que os magistrados poderiam ter

supremacia somente quando as “leis não pudessem resolver diretamente,

devido à dificuldade de promulgar leis que prevejam todos os casos”. 218

Resta saber, quanto ao conteúdo, se as leis sempre serão

positivas, ou seja, se elas sempre serão boas e, portanto, guardarão em seu seio

aquilo que Aristóteles diz que elas são e contêm. Na Ética a Nicômacos em

216 idem, 1137 b. 217 Observa a respeito Solange Vergnières (op.cit., p.182), dizendo: A lei de que se trata é evidentemente a lei escrita; não se exprime sob a forma de louvores ou censuras como o faz a lei não escrita, mas através de mandamento necessário; é assim que Aristóteles afirma, na Ética a Nicômacos, que “tudo o que ela não manda, proíbe”. Notemos que a expressão é ambígua e inaceitável, ao pé da letra: a lei não poderia sancionar tudo o que não manda, posto que não pode prever, em detalhe, todos os atos possíveis. De fato, quando se percorrem outras páginas, constata-se que as prescrições da lei acabam sempre por tomar a forma negativa da interdição: a lei prescreve fazer as obras de virtude, isto é, não abandonar seu posto, não cometer adultério ou estupro; tais são, para a lei, as virtudes mínimas de coragem e de temperança exigíveis de todo o homem livre. Está claro, em todo o caso, que só a recusa de cumprir obrigações estritas ou a infração quanto a proibições explícitas podem dar lugar a sanções. 218 Aristóteles. Política, 1282 b 3-5.

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apenas uma passagem Aristóteles faz menção à possibilidade de que uma lei

possa não ser tão positiva. Mas mesmo assim, o faz com uma sutileza tão

grande que a afirmação não permite concluir que Aristóteles admitisse que a

lei pudesse ser algo ruim e, portanto, que não alcançasse ou não estivesse a

serviço daqueles tão nobres conteúdos: o justo, a igualdade e a excelência

moral.

A rápida passagem diz:

(...); as determinações das leis bem elaboradas são boas e as das leis

elaboradas apressadamente não chegam a ser igualmente boas.219

Assim, da forma tão singela como está colocada, a

afirmação não nos permite concluir que existiriam, para Aristóteles, leis que

não fossem boas, mas apenas que algumas não seriam “tão boas”, o que

significa dizer que, mesmo assim, elas continuariam sendo boas, só que nem

tanto. Parece que a conclusão, desejada ou não, seria inevitável: se algo não é

mau, mas apenas não tão bom quanto se poderia esperar, esse algo não pode

ser dito como não sendo bom, o que, para o contexto, levaria à inevitável

conclusão de que as leis mesmo “não sendo tão boas” continuariam mantendo

o seu conteúdo positivo.

Mas também quanto a esse aspecto parece que Aristóteles,

na Política, dá um outro perfil à questão, analisando-a sobre um enfoque

aparentemente mais realista.

219 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1129 b.

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Em determinada passagem, afirma:

Tal como os regimes, as leis ou são boas ou más, justas ou injustas.

Pelo menos uma coisa é evidente: as leis devem ser estabelecidas de

acordo com o regime; e se é este o caso, segue-se que as leis que

estão de acordo com o regime correto devem ser necessariamente

justas, e as leis que estão de acordo com os regimes transviados são

injustas.220

Agora as leis aparecem expressamente ditas como podendo

ser boas ou más, justas ou injustas. Ou seja, não se trata mais de admitir

apenas a existência de leis “não tão boas”. Existem leis más e leis injustas.

Deve ser observado, no entanto, que esta existência de leis com conteúdo

negativo está condicionada ao regime221 do qual elas emanam, já que “as leis

que estão de acordo com o regime correto devem ser necessariamente justas” e

“as leis que estão de acordo com regimes transviados são injustas”. Isso nos

leva a uma conclusão: sempre que o regime for reto, em qualquer de suas

modalidades (Realeza, Aristocracia, Constitucional), para Aristóteles, não

haverá lei má ou injusta. Isso só poderá ocorrer quando o regime for do tipo

desviado (Democracia, Oligarquia, Tirania).

220 Aristóteles. Política, 1282 b 6-11 221 Para melhor compreensão devemos lembrar quais são os regimes possíveis, entre os corretos (retos) e os desviados (transviados), para Aristóteles. Parece que o seguinte resumo anotado por António Campelo Amaral e Carlos de Carvalho Gomes, na sua tradução da Política (Vega Universidade,1998, p. 612, nota 79), dá uma sucinta mas precisa noção a respeito, suficiente para o momento: O modelo que inspira a tipologia platónica dos regimes é o diacrónico: a experiência política humana insere-se num processo linear de progressiva degeneração das formas de governo, iniciada com a aristocracia e consumada com a tirania; a função do político consiste na ascese dialética da consciência às formas aristocráticas de regime. A tipologia aristotélica das formas de regime tem carácter sincrónico: em qualquer momento ou espaço, uma forma de regime pode estar rectamente instituida, ou transviada relativamente à respectiva forma recta; a função do político consiste em encontrar o ponto de equilíbrio que permite excluir os aspectos negativos dos extremos e combinar os fatores positivos de cada alternativa. Esquematizando as duas propostas obteríamos a seguinte sinopse: Platão = Aristocracia (forma ótima); Timocracia (forma menos boa); Oligarquia (forma má); Democracia (forma pior); e, Tirania (forma péssima). Aristóteles = 1) Formas Retas: Realeza (forma ótima);

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108

Aristóteles, por outro lado, tentou indicar os requisitos

para que fosse obtida uma boa legislação. Afinal, os que se preocupam e se

indagam sobre uma boa legislação, na realidade e sobretudo, estão se

preocupando com as virtudes da cidade, onde a lei não se deve tornar apenas

um simples convênio, como pretendiam os sofistas, sob pena de não ser capaz

de tornar bons e justos os cidadãos. 222

É a seguinte a passagem que pretende atingir aquele fim:

Assim, não podemos falar propriamente de boa legislação apenas se

existirem leis bem estabelecidas mas que depois não são cumpridas.

Quer isto dizer que devemos ter em conta dois aspectos para haver

uma boa legislação. Por um lado, há que respeitar as leis

estabelecidas; por outro, têm de ser boas as leis às quais devemos

obedecer (pode dar-se o caso de obedecermos a leis más). Existem,

pois, duas possibilidades de respeitarmos esta dupla condição: ou as

leis são melhores possíveis para quem as observa, ou então as

melhores, em absoluto.223

A afirmação aristotélica parece desviar a proposta

inicialmente lançada, eis que refere como requisito para se ter uma boa

Aristocracia (forma melhor); Regime constitucional – πολιτεια – (forma possível); 2) Formas Desviadas: Democracia (forma menos má); Oligarquia (forma pior); Tirania (forma péssima). 222 A seguinte passagem da Política (1280 b 5-12) parece emblemática sobre a preocupação de Aristóteles com a lei e tudo que ela representa, onde, inclusive, reforça a idéia de que a boa lei pode tornar bons e justos os cidadãos: Por outro lado, os que se interessam pela boa legislação indagam acerca das virtudes e dos vícios cívicos. A conclusão clara é de que a cidade que é verdadeiramente cidade, e não apenas de nome, deve preocupar-se com a virtude. Se assim não fosse, a comunidade política decairia numa aliança que apenas se distinguiria pela contiguidade local de outras alianças, em que os membros vivem a uma certa distância uns dos outros. E a lei também tornar-se-ia um simples convénio – ou na frase do sofista Licofronte “uma garantia dos direitos dos homens” – mas incapaz de tornar bons e justos os cidadãos. 223 Aristóteles. Política, 1294 a 3-9.

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109

legislação o fato de “respeitarmos as leis estabelecidas” e o fato de elas “terem

de ser boas”. O primeiro critério, ao que tudo indica, não estabelece um

critério de surgimento, mas sim de obediência, o que só pode se dar após o

surgimento da lei, sem qualquer critério com sua criação; o segundo,

estabelece uma redundância: dizer que elas “têm que ser boas” não significa

dizer como elas podem ser boas.

Para alguns224, no entanto, a afirmação não se apresenta

desta maneira. Na realidade, ela representaria a preocupação aristotélica com a

respeitabilidade da lei, no sentido de que para ele as leis seriam muito mais

respeitadas na medida em que fossem mais respeitáveis. É que Aristóteles

estaria externando na afirmação sua preocupação com a mudança e o conteúdo

das leis. Em relação ao primeiro aspecto, apesar de o Estagirita não ser

contrário à sua modificação, portanto, não podendo ser considerado um

“tradicionalista”, pretende passar a idéia de que as leis devem ser pouco

mudadas.225 Em relação ao segundo aspecto, considerado “racionalista”,

Aristóteles pretendeu demonstrar sua preocupação com leis que iriam contra

os costumes, na medida em que entende que seria irracional estabelecer uma

lei que fosse contra eles, enquanto estes se constituam em uma realidade ética

para a cidade.226

Não obstante essa circunstância que se apresenta no

conjunto da obra, é possível extrair-se os requisitos para a “boa legislação”,

224 J. Brunschwing. Du mouvement et de l’immobilité de la loi (p.512-540). Revue internationale de philosophie, n. 133-134, 34º ano, 1980, p.530, apud Solange Vergnière (1999, p.214). 225 Aliás o que diz expressamente na Política (1269 a 19-23): Mudar uma arte não é o mesmo que alterar uma lei, já que a lei não tem outro poder para assegurar a obediência excepto o uso, e este apenas surge com o decorrer de muito tempo. Assim, trocar as leis estabelecidas por outras novas, enfraquece a lei. 226 Vergnières, Solange. op.cit., p.214.

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110

estando eles, implícita ou explicitamente já indicados nesta dissertação, que

são: a boa ordem constitucional, a boa administração pública e o bom governo

político.227

4.4. A função

Do que se teve oportunidade de ver até aqui já se poderia

naturalmente concluir qual ou quais as funções da lei, este instrumento que

tem sobre si, pelas suas características postas por Aristóteles, grande

responsabilidade, afinal: 1) a lei determina e prescreve atos que promovam a

excelência moral (EN 1129b e EN 1130b); 2) as leis determinam coisas boas

(EN 1129b); 3) a justiça e a injustiça estão consubstanciadas na lei (EN

1134b); 4) a lei trata as partes como iguais (EN 1132a); a lei é o justo meio

(Política 1287b 5); a lei torna a cidade boa (Política 1263b 40).

No entanto, parece que Aristóteles foi mais claro e

expresso ao determinar a função da lei, quando afirmou:

Em seus preceitos sobre todos os assuntos as leis visam ao interesse

comum a todas as pessoas, ou às melhores, ou às pessoas das classes

dominantes, ou algo do mesmo tipo, de tal forma que em certo

sentido chamamos justos os atos que tendem a produzir e preservar a

felicidade, e os elementos que a compõem, para a comunidade

política.228

227 A esse respeito ver nota nº 43, do capítulo IV, da edição da Política da Vega Universidade (1998, p.616) 228 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1129 b.

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111

E também:

(...), de fato, a lei nos manda praticar todas as espécies de excelência

moral e nos proíbe de praticar qualquer espécie de deficiência moral,

e as prescrições para uma educação que prepara as pessoas para a

vida comunitárias são as regras produtivas da excelência moral como

um todo.229

Ou ainda:

Como afirmávamos que é a mesma a virtude do cidadão, do

governante e do homem bom, e dissemos que o mesmo indivíduo

deve primeiro ser governado e depois governar, o legislador deverá

assegurar que os cidadãos se tornem bons, averiguar que atividades

produzirão esse resultado, e qual é o fim da vida melhor.230

Como se vê, Aristóteles insistiu no caráter de formação do

homem que a lei deve ter. Ela deve educar para a comunidade, formando o

homem para a excelência moral a ser desenvolvida no seio social.231

É que os indivíduos não têm todos a mesma dignidade

política. Nem todos têm a mesma virtude. E enquanto isso não acontecer é

preciso que haja um instrumento que permita que o indivíduo se torne um

229 idem, 1130 b. 230 Aristóteles. Política, 1133 a 12-16 231 Sir David Ross (op.cit., p.215), observa: Aristóteles pensa que a lei deveria controlar a totalidade da vida humana, bem como assegurar, senão a moralidade, uma vez que esta é impotente para assegurar que os homens ajam no sentido «da salvaguarda do nobre», pelo menos as acções apropriadas a todas as virtudes. Se a lei de um estado particular apenas faz isto parcialmente, é porque se trata apenas de uma aproximação grosseira e hábil ao que a lei deveria ser.

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112

verdadeiro cidadão. A lei, portanto, é esse instrumento, com a função, então,

de socializar o ethos.232

Isso poderá ocorrer de duas maneiras: primeiro, a lei

poderá servir para a formação do cidadão “sério” (spoudaioi), para o qual a

lei se interiorizará na forma de bons costumes, cumprindo a sua função ética;

segundo, a lei servirá para corrigir os atos pela imposição, caso ela não

penetre no desejo e no coração dos cidadãos.233 Em outras palavras, a

educação estabelecida pela lei socorrerá a sociedade na produção da

virtude.234

Deve ser observado, no entanto, que a função bipartida da

lei (educação e punição) não é definida para todos. Para alguns ela só tem

função punitiva-coercitiva. É que, para Aristóteles, existe uma camada de

cidadãos que são considerados como “vil” e inaptos para a vida política. Este é

o povo urbano interior, desprovido de educação e de virtude, a não ser a

requerida para sua atividade laboriosa.235 Para esses, portanto, a lei não pode

cumprir sua função educacional, servindo a mesma, para esses, apenas em sua

função coerciva. Para essa massa, e em função dela, assim, Aristóteles afirma

a função necessariamente de força e de castigo da lei.236

232 Vergnières, Solange. op.cit., p.162. 233 idem, ibidem. 234 Sir David Ross. op.cit., p.215. 235 Vergnières. Solange. op.cit., p.180 e 182. 236 Escreve Solange Vergnières (op.cit., p.182): Em face dessa multidão, veremos que a lei só pode ter uma função coercitiva: enquanto a massa vive no nível das paixões e que as paixões não cedem espontaneamente às razões quando não foram educadas, a lei deve usar a força para se fazer respeitar. Sua força é, pois, o temor do castigo.

Page 107: O JUSTO COMO VIRTUDE - Dal Mass

113

Sobre essa força coercitiva, o sofrimento e o temor, nos diz

Aristóteles: Com efeito, as pessoas em sua maioria não obedecem naturalmente

ao sentimento de honra, mas somente ao de temor, e não se abstêm

da prática de más ações por causa da baixeza destas, mas por temer a

punição; (...)237

E ainda:

É por isso que há quem pense que os legisladores devem estimular as

pessoas à prática da excelência moral, e instá-las a perseverar por ser

nobilitante proceder assim, no pressuposto de que aquelas que

progredirem moralmente pela formação de hábitos corretos

continuarão fiéis a tais influências; devem ser impostas punições e

penalidades às pessoas que desobedecem e são de má índole,

enquanto as incorrigivelmente más devem ser definitivamente

banidas. Uma pessoa boa (dizem tais estudiosos), já que ela vive com

o seu espírito concentrado no que é nobilitante, submete-se às

palavras, enquanto uma pessoa má, ansiosa apenas pelo prazer, só é

corrigida pelo sofrimento, como uma besta de carga. É também por

isto que se diz que os sofrimentos infligidos devem ser os mais

contrários aos prazeres pelos quais estas pessoas anseiam.238

A lei, portanto, quanto a essa massa laboriosa, sem virtude,

conduzida pelo desejo em detrimento da razão, serve apenas para estabelecer

um mecanismo que possibilite a convivência: a punição. A lei regula os atos,

prevendo para sua infração a devida punição, a qual deverá causar, para ser

exemplar, sofrimento, de preferência na dimensão mais oposta possível ao

237 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1179 b. 238 idem, 1180 a.

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114

prazer proporcionado no seu descumprimento. A lei, portanto, “regula os atos,

não educa os corações e os desejos” da massa.239

Por certo se pode dizer que é por força dessas funções e

dessa importância que Aristóteles afirma que as leis são definidas como

“regras segundo as quais os magistrados devem governar, e que devem

proteger contra os transgressores”, bem como que “nenhum homem, por mais

excelente que seja, pode invocar sua excelência para violar a lei”, eis que

“ninguém está habilitado a impor sua autoridade em virtude apenas de sua

excelência”.240 Talvez também por força dessas convicções foi que Aristóteles

construiu ou ajudou a construir um corpo legislativo, estudando e compilando

leis de diversas cidades-estados.241

239 Vergniéres, Solange. op.cit., p.183. Acrescenta: A lei escrita, com efeito, não pretende mudar o ethos da massa: assegura simplesmente as condições que permitem a esses homens viverem juntos na cidade, dado o que são, dado sua ausência de virtude moral e política. A lei se contenta, pois, em impedir as injustiças recíprocas e em permitir as trocas; assegura a existência de uma sociedade, ou seja, da coexistência de indivíduos num mesmo território, sem permitir ainda verdadeira comunidade política. De certa maneira, os homens que só respeitam a lei sob a ameaça da sanção permanecem entre si como estrangeiros, ligados por convenção. A lei lhes permite viver existência social sem que sejam capazes de existência ética e política. (...). A lei regula os atos, não educa os corações e os desejos: a única coisa requerida da multidão é que seja continente nos atos que concernem ao outro; ou seja, que não cometa injustiça legal. 240 idem, p.207. 241 Escreve Osvaldo Guariglia (1997, p.281): No es, por lo tanto, sorprendente que Aristóteles se dedicara a estudiar y recopilar las leyes fundamentales de las distintas ciudades-estados. Junto con sus discípulos reunió un cuerpo de ciento cincuenta y ocho constituciones de los distintos estados griegos, de las cuales solamente una há sido preservada por una singular fortuna entre los papiros desenterrados de las arenas de Egipto, la famosa Constitución de los Atenienses, presuntamente redactada por el mismo Aristóteles.

Page 109: O JUSTO COMO VIRTUDE - Dal Mass

115

5. A EQÜIDADE

A eqüidade tem em Aristóteles um papel muito importante,

tanto que o Estagirita preocupou-se em tentar definir claramente o que ela

significava no contexto do seu conceito de justiça e da sua forma de

realização. Assim, ela aparece claramente destacada na Ética a Nicômacos242

e na Retórica243.

A eqüidade não é diferente do justo, mas o próprio justo.

Aliás, Aristóteles chega a defini-la, em certo aspecto, até mesmo como algo

superior à justiça, ao dizer que a justiça e a eqüidade são portanto a mesma

coisa, embora a eqüidade seja melhor.244 Esta superioridade, no entanto, não é

absoluta, e por isso ela é a própria justiça e melhor que ela apenas em certo

sentido. E que sentido é esse? Apenas no sentido da justiça política, ou seja,

apenas no sentido que lhe é dado quando relacionada à emanada da lei.245

É preciso observar, no entanto, que o eqüitativo não é o

justo “segundo a lei”, mas sim um “corretivo da justiça legal”, eis que ele não

está nela, mas fora dela (lei).246 A captação deste aspecto nos remete ao

próprio motivo pelo qual Aristóteles se dedica a relevar a importância do

tema. É que Aristóteles percebe que as leis podem ter falhas, podem ter

lacunas, seja pela vontade ou não do legislador. Além disso, as leis, por serem

universais, nem sempre conseguem dar a resposta adequada, necessária ou

justa para os casos particulares, pelo que esses motivos exigem a existência de

242 Em especial no Livro V, 1137 b – 1138 a 2 243 Em especial no Livro I, 1374 a 20 – 1374 b 23 244 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1137 b 11-12. 245 Bittar, Eduardo C.B. op.cit., 129. 246 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1137 b 13-15.

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116

algum critério que permita se fazer justiça em cada caso. Este dispositivo,

pois, é exatamente a eqüidade.247

Com efeito, afirma o Estagirita:

A justiça e a eqüidade são portanto a mesma coisa, embora a

eqüidade seja melhor. O que cria o problema é o fato de o eqüitativo

ser justo, mas não o justo segundo a lei, e sim um corretivo da justiça

legal. A razão é que toda lei é de ordem geral, mas não é possível

fazer uma afirmação universal que seja correta em relação a certos

casos particulares. Nestes casos, então, em que é necessário

estabelecer regras gerais, mas não é possível fazê-lo, a lei leva em

consideração a maioria dos casos, embora não ignore a possibilidade

de falha decorrente desta circunstância.(...) Por isso o eqüitativo é

justo, e melhor que uma simples espécie de justiça, embora não seja

melhor que a justiça irrestrita (mas é melhor que o erro oriundo da

natureza irrestrita de seus ditames). Então, o eqüitativo é, por sua

natureza, uma correção da lei onde esta é omissa devido à sua

generalidade.248

Trata-se, portanto, da eqüidade, de um corretivo do justo

legal, na medida em que este último pode não ser alcançado, seja pela omissão

do legislador249, seja pela generalidade da legislação. Ou seja, aplicar a

247 Osvaldo Guariglia (1997, p.289), observa: Es, en consecuencia, en el momento de la aplicación de las normas al caso particular cuando se muestra que la equidad es superior al simples sentido de justicia, puesto que es capaz de enmendar la norma, supliendo sus naturales deficiencias, precisamente porque no se atiene sólo a la norma escrita sino que puede recurrir a los principios universales que son previos y presiden toda norma escrita (...). 248 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1137 b 11-30. 249 Compete chamar atenção para o fato de que apesar de Aristóteles admitir falha na lei, isso não significa que ele tenha admitido erro por parte do legislador ou mesmo falha do conteúdo em si da lei. Na realidade, para ele, as falhas que vierem a ocorrer na apresentação da solução de qualquer caso por parte da lei são oriundas do caso particular, o qual, este sim, é o culpado, eis que não se adequou àquela, por força de sua particularidade que não combinou com a generalidade da lei. Diz ele na EN ( 1137b 17-20): E nem por isso a

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117

eqüidade significa agir de modo a complementar o caso que se apresenta sob

apreciação, buscando o justo que não se encontra na lei.250

E essa eqüidade se impõe tanto ao juiz251 na hora de julgar

como ao cidadão252 no momento em que estiver agindo deliberadamente, ou

seja, na consumação de determinado ato particular. Os dois, cada um em seu

momento de ação, deverão agir como se fossem o próprio legislador, agindo

como este agiria para o caso individual.253

A esse respeito, Aristóteles afirma:

Quando a lei estabelece uma regra geral, e aparece em sua aplicação

um caso não previsto por esta regra, então é correto, onde o

legislador é omisso e falhou por excesso de simplificação, suprir a

omissão, dizendo o que o próprio legislador diria se estivesse

lei é menos correta, pois a falha não é da lei nem do legislador, e sim da natureza do caso particular, pois a natureza da conduta é essencialmente irregular. A esse respeito comenta Eduardo C.B.Bittar (op.cit., p.128): Se a lei é, neste ponto e para estes fins, falha, isto não se deve nem ao conteúdo da lei em si, nem ao legislador; não se trata de um erro legislativo, mas, sim, de um problema oriundo da própria peculiar conformação das coisas como são praticamente. Cada caso é um caso e demanda uma atenção especial e específica, absolutamente focalizada sobre os seus traços e as suas características, de modo que nenhuma legislação poder-se-ia aplicar a esta dimensão dos fatos. 250 Bittar, Eduardo C.B. op.cit., p.128/129. 251 Sobre a participação do juiz na efetivação da eqüidade, elucida Bittar (op.cit., p.129): Assim como a necessidade de aplicação da eqüidade surge a partir da singularidade dos casos concretos, é exatamente no julgamento dos mesmos que dela deve lançar mão o julgador (dikastès). O julgador que se faz legislador no caso concreto é um homem équo (o epieikès), neste sentido. 252 Sobre o comportamento équo do cidadão, diz Bittar (op.cit.p.130): Como algo superior a um tipo de justiça, à justiça legal (díkaion nomimón), a utilizada como corretivo da mesma (epanothoma nomímou dikaíou), a eqüidade também se origina na subjetividade como qualquer outra virtude (areté), ou seja, como uma disposição de caráter (éxis) cultivada pelo homem eqüitativo. Entendida como virtude, significa não só “lembrar-nos do bem, mais que do mal que nos foi feito, dos benefícios recebidos mais que dos não recebidos” nas relações, mas, também, “suportar a injustiça que nos fere, preferir resolver uma desavença amigavelmente a apresentar uma ação no tribunal; recorrer a uma arbitragem mais do que a um processo, porque o árbitro considera a eqüidade e o juiz a lei” (Rhet., I, 1377 a).(...) Tem-se que nas relações privadas a eqüidade representa a excelência do homem altruísta que, ao ter de recorrer ao império coativo da lei, prefere valer-se de técnicos de civilidade e virtuosismo que seguem os princípios próprios da moral que permeou a escola socrática. 253 idem, ibidem.

Page 112: O JUSTO COMO VIRTUDE - Dal Mass

118

presente, e o que teria incluído em sua lei se houvesse previsto o caso

em questão.254

A eqüidade, portanto, para Aristóteles, é uma espécie,

assim como a justiça legal, do gênero justo. Como tal, atuando no momento da

aplicação da lei, procura realizar, como a lei no momento de sua elaboração,

uma única coisa: a essência da virtude da justiça que é a igualdade, já que

quem pratica a eqüidade age como agiria o legislador na mesma situação.255

254 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1137 b 20-25.

Page 113: O JUSTO COMO VIRTUDE - Dal Mass

119

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A visão aristotélica da justiça e sua sistematização, pode

ser dito, apresenta-se dentro de um contexto histórico que a justifica e a

baseia. É fruto de um momento (sec. IV a.C.) vivido pelo Estagirita, o qual

sucedia um século (V a.C.) que representara o avanço político-institucional da

pólis, época em que, então, se fazia sentir a necessidade de encontrar respostas

para os dilemas da paidéia e da participação da theoría junto à práxis.

Pois as respostas dadas por Aristóteles refletem-se na

atualidade, eis que sobre os conceitos por elas apresentados repousa elementos

sociopolíticos, psicológicos, geométricos, aritméticos, lógicos, éticos,

retóricos e antropológicos, todos eles interligados, formando a base de suas

intenções teóricas. Sob tais circunstâncias, seguindo a tradição então

consagrada sobre as questões que envolviam o tema da justiça, Aristóteles

identifica e expõe sobre uma nova ótica os ingredientes imanentes da ordem

social, reunindo os acontecimentos históricos, as opiniões, as suas próprias

experiências e mesmo posições mais polêmicas com o fim de estabelecer uma

nova concepção com vistas à reestruturação da orientação do corpo social.

A justiça e a virtude têm como suporte o éthos e a

proaíresis, pelo que se conclui que ser virtuoso e justo é encontrar o “meio

termo” das ações. A teoria da mesótes é identificada como meio de

realização da justiça entre os cidadãos. O excesso e a falta são os extremos

que identificam a injustiça. Neste contexto, a racionalização como base do

255 Salgado, Joaquim Carlos. op.cit., p.44.

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120

comportamento se impõe, donde a deliberação e a eleição sobre os meios e

sobre os fins de uma ação, a voluntariedade, a medida e o equilíbrio, bem

como a habitualidade, identificam a responsabilidade sobre o agir, eis que tais

são os componentes da razão prática e, portanto, da condução moral do

homem. Por isso mesmo é que não se pode confundir um ato de justiça com

uma ação justa, eis que esta só se realiza na medida em que o resultado justo

de um agir for alcançado segundos os pressupostos de seu deliberado e

consciente fim. O mesmo se pode dizer em relação ao ato injusto e à ação

injusta.

Sendo a justiça decorrência de uma ação humana racional

estabelecida entre os homens, a mesma só pode se dar no seio da vida social,

local onde o ser humano exterioriza sua capacidade política para a auto-

suficiência e a realização da eudaimonía e, portanto, onde está presente a

possibilidade da prática das virtudes.

Por isso mesmo é que, sob um ponto de vista estritamente

jusfilosófico, a justiça é entendida como a adequação da conduta individual ao

conjunto em que se encontram inseridas as individualidades subjetivas,

necessidade real de estabelecimento de uma ordem que viabiliza a conjugação

de interesses múltiplos e variegados sob a tutela da racionalidade

legislativa.256

A legislação torna-se o elemento capaz de uniformizar os

comportamentos e possibilitar o tratamento de todos os cidadãos de forma

igualitária, voltando-se para o benefício de todos e não apenas de quem detém

Page 115: O JUSTO COMO VIRTUDE - Dal Mass

121

o poder. Ela opera o aprimoramento da vida social, possibilitando a solução

das diferenças e dos problemas dentro do grupo social. Enfim, ela se torna o

instrumento, como criação humana, capaz de estabelecer virtudes e preservar

as virtudes cultivadas na paideía mediante os critérios estabelecidos pela

politeía.

Assim, enquanto à sociedade cabe a missão de cultivar,

pelo hábito de cada cidadão, as virtudes de um modo geral, incumbe à lei,

através das regras impostas pela politeía, estabelecer os critérios da justiça

distributiva, sob o pressuposto da proporcionalidade entre os cidadãos,

segundo seus méritos, bem como os da justiça corretiva, sob o pressuposto da

reciprocidade proporcional. Isso porque o comando da lei é melhor do que o

comando de qualquer cidadão, já que seus preceitos são genéricos e

impessoais.

No caso de eventual falha na lei, o que só pode se dar por

culpa do fato que não combinou com ela, e não pela existência de qualquer

falha em si do instrumento legal, caberá ao dikastés, com imparcialidade, o

dever de julgar cada caso com eqüidade, buscando restabelecer a igualdade

entre as partes. Com a presença desse componente, pode-se dizer que a justiça

se exterioriza na sociedade mediante: a prática de ações justas; a aplicação da

lei; a ação de acordo com seus preceitos; a realização dos julgamentos com

eqüidade.

Diante dos componentes que envolvem a efetivação da

justiça para Aristóteles, parece inafastável que, para o Estagirita, a lei é fonte

256 Bittar, Eduardo C.B., op. cit., p.138.

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122

realizadora de justiça, sendo ela uma das formas de alcançá-la. Afinal, para

ele, a lei determina e prescreve atos que promovam a excelência moral (EN

1129 b; EN 1130 b), as leis determinam coisas boas (EN 1129 b), a justiça e a

injustiça estão consubstanciadas na lei (EN 1134 b), a lei trata as partes

como iguais (EN 1132 a), a lei é o justo meio (Política 1287 b 5) e a lei torna

a cidade boa (Política 1263 b 40).

O conceito naturalista que serve para justificar a existência

da pólis como uma formação social por natureza, serve para colocar os

homens no seu lugar “por natureza”, significando que a natureza determina a

cada um seu lugar na hierarquia da cidade, portanto, dos seres. O justo natural,

então, explicaria a desigualdade como pressuposto de igualdade. Aristóteles,

portanto, afasta completamente a idéia de igualdade entre os homens,

tornando-se o justo um conceito inteligível pela razão.

A politeía, assim, como instrumento da pólis, torna-se a

garantia das prerrogativas que naturalmente lhes cabe, a liberdade política e a

aptidão para o comando. Longe do justo natural servir apenas para denunciar

uma realidade “injusta”, serve mais e freqüentemente para naturalizar, isto é,

legitimar um estatuto social desigual. Justifica-se pela “natureza” inferior dos

escravos, das mulheres, ou dos trabalhadores manuais, o estatuto social que

lhes é dado. A serviço de tais justificações “naturais” está a lei, originada na

sabedoria de um legislador afastado dos desejos, das paixões, da cólera e da

impessoalidade, pronto para legitimar o que a natureza determinou. Uma

natureza perversa, que parece realmente dar a cada um o que é seu, ao pobre a

pobreza, ao rico a riqueza, ao nobre a nobreza, ao poderoso o poder etc. Trata-

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123

se, mais das vezes, de um naturalismo justificacionista, cuja construção teórica

está a serviço do “status quo”.

A lei, portanto, para Aristóteles, representa a própria

justiça, e dela não se afasta. Até o que for considerado justo natural, por força

da possibilidade da mutabilidade deste, já que entre os seres humanos não há

algo que seja imutável, pode ser revisto e redefinido pela lei. É que, como a

justiça só existe entre os cidadãos dentro da pólis, e a lei está a serviço dela

para a realização da excelência moral, permitindo o que é bom e proibindo o

que é ruim, suas determinações, desde que atendam à constituição correta, são

sempre justas.

Em nenhum momento, em qualquer de suas obras,

Aristóteles indica ou sequer afirma, vaga ou peremptoriamente, a existência

de uma lei que não seja justa. A única exceção é a contida na Retórica, onde é

trazido o exemplo de Antígona. Porém, como se teve a oportunidade de ver,

não se pode extrair da passagem onde o tema foi exposto qualquer convicção

que levasse à conclusão de que Aristóteles condenara a lei de Creonte por

força de seu conteúdo.

Assim, as respostas às perguntas motivadoras deste

trabalho são as de que, para Aristóteles, a lei é a própria justiça; ela é

instrumento de realização de justiça e que, por isso mesmo, não existem leis

injustas. É possível dizer, diante de tal situação, que, com o auxílio da teoria

aristotélica de justiça, dificilmente uma sociedade com problemas de formação

ética e jurídica resolveriam seus problemas de injustiça.

Page 118: O JUSTO COMO VIRTUDE - Dal Mass

124

Na realidade, sua leitura serve como grande suporte de

estudo da formação do pensamento jurídico-filosófico que nos acompanha até

hoje, ajudando a compreender e tentar entender a práxis que nos rodeia. Com

certeza, deixando de lado alguns conceitos que não podem ser admitidos, em

especial o da condição natural de inferioridade de alguns seres humanos e o de

que a lei é sempre fonte de justiça, Aristóteles ainda pode servir de ajuda na

construção das bases virtuosas do comportamento em sociedade.

Afinal, não é só de teorias que vive a sociedade, e, muito

menos, não é somente através delas que a vida em grupo se tornará mais

humana e justa. Cabe a todo e qualquer membro da sociedade contribuir para a

construção de um seio social cada vez mais aprimorado. E sendo assim, como

parte do todo, cabe ao legislador a criação de normas (e porque não dizer, ao

judiciário e ao executivo, através de decisões e ações justas), quando e

enquanto se fizerem necessárias, que possam ajudar no estabelecimento de

princípios de conduta que induzam ao benefício de todos, e não de alguns

poucos naturalmente mais favorecidos, por meio de uma política voltada para

o aprimoramento social.

Aristóteles, portanto, está mais atual que nunca, e sua

leitura nos lembra as hodiernas defesas da lei e do seu respeito incondicionado

como fonte de justiça e comportamento justo, o que, para o bem geral, poderia

ser revisto. Afinal, a afirmação de que a justiça existe somente entre pessoas

cujas relações mútuas são regidas pela lei, e a lei existe para pessoas entre as

quais pode haver injustiça, pois a justiça no sentido legal é a discriminação

Page 119: O JUSTO COMO VIRTUDE - Dal Mass

125

entre o que é justo e injusto257, mais parece uma afirmação tirada dos debates

atuais do que das obras aristotélicas de 2.400 anos atrás. Se as afirmações

passadas e presentes se comparam, será que isso é fruto de um contexto social

que também poderia ser comparado? Será que a coincidência do tom das

afirmações de ontem e de hoje se deve ao declínio cultural e moral que se

apresentava na sociedade grega aristotélica e que é vivenciado na nossa

sociedade? Bem, isso é tema para outro trabalho, não para esse, por suas

próprias e necessárias limitações.

Por fim, é preciso dizer que esta não é uma obra conclusiva

e, portanto, deve ser vista como uma peça que pretendeu revelar um elemento

específico do pensamento aristotélico, para nós tão instigante, eis que vemos

nele conceitos muito presentes em nossos dias, reproduzidos por agentes

sociais que aparentemente sequer tiveram o mínimo contato com as obras de

Aristóteles, cujas conseqüências se faz sentir na construção do Direito pátrio

por força das ações legislativas, executivas e judiciárias. Se outros, com a

leitura do presente trabalho, mesmo com toda a limitação que ele apresenta,

ficarem apenas instigados com o tema e os apontamentos que nele foram

feitos, acreditamos que já terá valido a pena o esforço de escrevê-lo.

257 Aristóteles. Ética a Nicômacos, 1134 b.

Page 120: O JUSTO COMO VIRTUDE - Dal Mass

126

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1ª reimpressão, Madrid: Editorial Gredos, 1994.

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