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O ENCHEIRÍDION DE EPICTETO EDIÇÃO BILÍNGUE Aldo Dinucci; Alfredo Julien (Introdução, Tradução e Notas) PRIMEIRA EDIÇÃO, 2012 SÃO CRISTÓVÃO-SE

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O ENCHEIRDION

DE EPICTETO

EDIO BILNGUE

Aldo Dinucci; Alfredo Julien

(Introduo, Traduo e Notas)

PRIMEIRA EDIO, 2012

SO CRISTVO-SE

2

ISBN 978-85-7822-224-6 COPYRIGHT @ A. DINUCCI, A. JULIEN 2012.

Reviso: Alexandre Cabeceiras e Paulo Cesar Gonalves.

VIVA VOX

Grupo de Pesquisa em Filosofia Clssica e Contempornea Departamento de Filosofia/UFS

http://vivavox.site90.com ; [email protected]

Grupo de Estudos em Histria Intelectual e das Ideias Departamento de Histria/UFS

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EdiUFS - Editorial Prometeus - COMIT CIENTFICO: Dr. Ado Peixoto (UFG); Dr. Alberto Oliva (UFRJ); Dr. Aldo Dinucci (UFS); Dr. Alexandre Cabeceiras (UFS); Dr. Alfredo Julien (UFS); Dr. Amon Pinho (UFU); Dr. Antonio Jos Romera Valverde (PUC-SP e EAESP-FGV); Dra. Constana Terezinha Marcondes Cesar (UFS); Dr. Fbio Duarte Joly (UFRB); Dr. Fernando Santoro (UFRJ); Dr. Gabriele Cornelli (UNB); Dr. Henrique Graciano Murachco (UFPB); Dr. Jacinto Lins Brando (UFMG); Dr. Jos Maria Arruda (UFC); Dr. Jos Maurcio de Carvalho (UFSJ); Dr. Luigi Bordin (UFRJ); Dr. Manuel Tavares Gomes (Universidade Lusfona - Portugal); Dr. Marcos Antonio da Silva (UFS); Dra. Marly Bulcao Lassance Britto (UERJ); Dr. Matheus Trevisam (UFMG); Dr. Otvio Lopes Machado de Mendona (UFPB); Dr. Roberto Jarry (UFPB); Dra. Solange Norjosa (UEPB); Dr. Trik de Athayde Prata (UFS); Dra. Vera Maria Portocarrero (UERJ); Dr. Washington Luiz (UFPE).

ARRIANO FLVIO

A775m O Encheirdion de Epicteto. Edio Bilngue. Traduo do texto grego e notas Aldo Dinucci; Alfredo Julien. Textos e notas de Aldo Dinucci; Alfredo Julien. So Cristvo. Universidade Federal de Sergipe, 2012.

96 p. 1. Filosofia. 2. tica. 3. Estoicismo. 4. Epicteto.

5. Socratismo. I. Ttulo.

CDU 17

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3

INTRODUO

A quem se destina e para que serve o Encheirdion de

Epicteto

O termo grego encheirdion se diz do que est mo,

sendo equivalente ao termo latino manualis, manual em

nossa lngua. Significa tambm punhal ou adaga,

equivalente ao latino pugio, arma porttil usada pelos soldados

romanos atada cintura. Simplcio, em seu Comentrio ao

Encheirdion de Epicteto1, diz-nos que Arriano2, que escreveu

o Encheirdion, sintetizou as coisas mais importantes e

necessrias em filosofia a partir das palavras de Epicteto para

que estivessem vista e mo (192 20 s.). Assim, o

Encheirdion serve no como uma introduo aos que ignoram

a filosofia estoica, mas antes queles j familiarizados com os

princpios do Estoicismo, para que tenham uma sntese que

possam sempre levar consigo e utilizar. Tal uso se relaciona

tradio estoica da meditao diria, para o que o Encheirdion

serviria de guia e inspirao. Epicteto discorre sobre esse tema

nas Diatribes em diversas ocasies (I,1,25; I,27,6 ss.; II,1,29;

III,10,1). Marco Aurlio Antonino3, cuja obra pstuma, as

Meditaes, consiste justamente nessa atividade, compara os

princpios da filosofia com os instrumentos da medicina,

afirmando que os mdicos, que sempre tm mo os

instrumentos de sua arte, devem ser imitados (III.13; cf. IV.3).

Sneca se refere prtica da meditao diria na Carta a

1 SIMPLCIO. On Epictetus Handbook. 1-26. Trad. C. Brittain; T. Brennan. New York:

Cornell, 2002. 2 Lcio Flvio Arriano Xenofonte (ca. 86 - 160), cidado romano de origem grega e aluno

de Epicteto, que compilou as aulas de seu professor em oito livros (As Diatribes de

Epicteto), dos quais quatro sobrevivem, e redigiu o Encheirdion. 3 MARCO AURLIO ANTONINO. Meditations. Trad. C. R. HAINES. Harvard: Loeb

Classical Library, 1916.

4

Luclio XCIV4 e em Dos Benefcios5 VIII, 1. Ccero se refere

igualmente a essa prtica no De Natura Deorum6 (L.I.30) e no

De Finibus7 (L.II.7).

Rplica de pugio romano (fonte: swords24.eu)

Ainda no promio de seu Comentrio (192-193), Simplcio

menciona uma carta que prefaciava, na Antiguidade, o

Encheirdion de Arriano a certo Messaleno. De acordo com

Simplcio, tal carta asseverava que o objetivo do Encheirdion

, ao encontrar pessoas capazes de serem persuadidas por ele,

no apenas afet-las atravs das palavras, mas fazer com que de

fato apliquem s suas vidas as ideias contidas nele, tornando

livres suas almas. Simplcio afirma que as palavras do

Encheirdion so efetivas, capazes de agitar a alma de qualquer

um que no esteja totalmente mortificado.

Simplcio observa tambm que, na perspectiva epictetiana,

a alma deve libertar-se das emoes irracionais e que as coisas

externas devem ser usufrudas de modo consistente com o bem

genuno (193 30 ss.). Uma das caractersticas do pensamento

epictetiano notadas por Simplcio que quem o pe em prtica

pode alcanar a felicidade sem a promessa de recompensa post

mortem para a virtude. Como salienta Simplcio: 4 SNECA. Moral Essays, Volumes I, II, III. Trad. J. W. Basore.Harvard: Loeb Classical

Library, 1923. 5 SNECA. Epistles, Volume I, II, III. Trad. R. M. Gummere.Harvard: Loeb Classical

Library, 1917-1925. 6 CCERO. On the Nature of the Gods; Academica. Trad. H. Rackham. Harvard: Loeb

Classical Library, 1933. 7 CCERO. On Ends (The Finibus). Trad. H. Rackham. Harvard: Loeb Classical Library,

1914.

5

Mesmo supondo-se a alma mortal e destrutvel junto com o

corpo, ainda assim [...] qualquer um que viva de acordo com

esses preceitos ser genuinamente feliz [...] j que ter atingido

sua prpria perfeio e alcanado o bem que lhe prprio.

(194)

Simplcio, notando que as palavras do Encheirdion so

enrgicas e gnmicas, mantendo entre si certa relao e ordem

lgica, objetivando a arte que retifica a vida humana e elevando

a alma humana ao seu prprio valor (194 15 ss.), observa que o

Encheirdion no se remete nem ao asceta, nem ao homem

terico, que se distanciam das coisas do corpo, mas visa o

homem que tem o corpo como um instrumento e que deseja ser

um genuno ser humano, almejando reconquistar a nobreza de

sua ancestralidade, com a qual Deus agraciou os homens.

Quanto a isso, diz-nos Simplcio:

Algum assim deseja ardentemente que sua alma racional

viva como ela por natureza, governando o corpo e

transcendendo-o, usando-o no como uma parte coordenada,

mas como um instrumento. (195 50 ss.)

Simplcio (196 ss.) ressalta ainda que, no Encheirdion,

Epicteto parte da tese sustentada por Scrates no Primeiro

Alcibades (I 129 c78), segundo a qual o genuno ser humano

uma alma racional que usa o corpo como um instrumento.

Simplcio assim formaliza tal argumento de Scrates no

Primeiro Alcibades:

(i) O homem usa suas mos para trabalhar; (ii) Quem usa algo se distingue daquilo que usa como

instrumento;

(iii) Ora, necessrio que o homem seja ou o corpo, ou a alma, ou combinao de ambos. Mas se a alma

governa o corpo e no o contrrio, o homem no

o corpo e nem, pela mesma razo, a combinao

de ambos.

8 PLATO. First Alcibiades.Trad. W. R. M. Lamb. Harvard: Loeb Classical Library,1927.

6

(iv) Disso decorre que o corpo no se move por si mesmo e um cadver, pois a alma que o move;

(v) Consequentemente, o corpo tem status de instrumento em relao alma.

Sobre a Diviso em Captulos do Encheirdion de

Epicteto:

Boter (1999, p. 146-79) observa que h trs modos bsicos

de dividir o texto do Encheirdion: o inaugurado pela edio de

Haloander (152910), que divide o texto em 62 captulos; o

introduzido por Wolf (156011), que divide o texto em 79

captulos; e o de Upton (174112), que divide o texto em 52

captulos. Este ltimo seguido por Schweighauser, que divide

ainda o captulo 50 em dois, perfazendo ao todo 53 captulos

(tal a diviso que prevalece em todas as edies

subsequentes). Boter (1999, p. 147) mantm a diviso em

nmeros de Schweighauser, embora subdividindo quatro

captulos em dois (captulos 5, 14, 19, 48). Boter observa que a

subdiviso do captulo 5 sustentada de modo unnime pela

tradio; que a subdiviso do captulo 14 sustentada por

Simplcio; que a subdiviso do captulo 19 sustentada por

quase toda a tradio; e que apenas por Simplcio o captulo 48

apresentado como um nico. O captulo 33 constitui um caso

especial: embora muitas de suas sees sejam apresentadas

como captulos diferentes em diversos manuscritos, Boter, por

considerar tratar-se tal captulo de um todo coerente, apresenta-

9 BOTER, G. The Encheiridion of Epictetus and its Three Christian Adaptations:

Transmission & Critical Editions. Leiden: Brill, 1999. 10

HALOANDER. Epicteti Encheiridion. Nuremberg: 1529 11

WOLF. H. Epicteti Enchiridion: una cum Cebetis Thebani Tabula Grc. & Lat.

Quibus... accesserunt e graeco translata Simplicii in eundem Epicteti libellum doctissima

scholia, Arriani commentarium de Epicteti disputationibus libri iiii, item alia ejusdem

argumenti in studiosorum gratiam. Basilia: 1560. 12

UPTON J. Epicteti quae supersunt dissertationes ab Arriano collectae nec non

Enchiridion et fragmenta Graece et Latine ... cum integris Jacobi Schegkii et Hieronymi

Wolfii selectisque aliorum doctorum annotationibus, 2 vol. Londres: Thomas Woodward,

1741.

7

o como um s.

O Texto Grego estabelecido por Boter

A edio do texto estabelecido por Gerard Boter do

Encheirdion de Epicteto preenche uma lacuna de sculos

quanto aos estudos epictetianos. Segundo a ortodoxia, Epicteto

nada escreveu. Tudo o que nos chegou de seu pensamento se

deve ao seu discpulo Flvio Arriano: os quatro livros das

Diatribes de Epicteto e, claro, o Encheirdion de Epicteto.

Boter comenta que, enquanto nas Diatribes podemos ouvir

Epicteto falando-nos em viva voz, no Encheirdion nos

deparamos com preceitos estoicos dispostos explicitamente,

alm de snteses de vrias partes das Diatribes (2007, p. v).

Boter observa que, durante o perodo bizantino, o

Encheirdion mereceu trs parfrases crists que nos chegaram:

uma de Pseudo-Nilo; outra intitulada Paraphrasis Christiana; e

outra ainda (o Encheirdion Christianum), descoberta por

Michel Spanneut no cdice Vaticanus 223113.

O Encheirdion foi traduzido pela primeira vez para o latim

por Niccolo Perotti (145014), traduo seguida por aquela de

ngelo Poliziano (147915). O texto foi pela primeira vez

editado em grego16 por Haloander em 1529, seguido por

Hieronimus Wolff em 156O, edies estas que foram tomadas

como parmetro pelos estudiosos nos dois sculos seguintes.

Em 1741 Upton constituiu novo texto17, e Schweighauser

publicou a primeira edio corrigida do texto grego do

13

Cf. SPANNEUT. pictte chez les moines IN: MSR 29, 1972, p. 49-57. 14

NICCOLO PEROTTI. Epicteti enchiridium a Nicolao perotto e graeco in latinum

translatum. Veneza, 145O. 15

POLIZIANO, A. Epicteti Stoici Enchiridion et Graeco interpretatum ab Angelo

Politiano. Veneza: J. Anthonium et Fratres de Sabio, 1479. 16

O Encheirdion foi originamente escrito por Arriano em grego koin. 17

UPTON J. Epicteti quae supersunt dissertationes ab Arriano collectae nec non

Enchiridion et fragmenta Graece et Latine [...] cum integris Jacobi Schegkii et Hieronymi

Wolfii selectisque aliorum doctorum annotationibus, 2 vol. Londres: Thomae Woodward,

1741.

8

Encheirdion em 179818. O prximo a trabalhar na constituio

do texto do Encheirdion foi Schenkl, cuja edio de 1916 foi

adotada pelos estudiosos nas dcadas seguintes. Schenkl,

porm, aps o gigantesco trabalho de estabelecer o texto das

Diatribes19, no desejou dedicar-se a fazer uma edio crtica

do Encheirdion.

Segundo Boter (2007, p. vi), o grande nmero de

manuscritos, as parfrases crists e o Comentrio de Simplcio

desencorajaram os estudiosos quanto a constituir tal edio

crtica. Essa tarefa foi levada a cabo pelo prprio Gerard Boter

em livro publicado em 199920.

Boter partiu de sete fontes principais para o

estabelecimento do texto do Encheirdion:

1. Os cdices que contm o texto do Encheirdion;

2. Os cdices que contm o Comentrio de Simplcio;

3. Os ttulos contidos em alguns cdices do Comentrio de

Simplcio;

4. Os ttulos suplementares contidos em alguns cdices do

Comentrio de Simplcio;

5. Os trechos das Diatribes dos quais Arriano fez snteses

que adicionou ao Encheirdion;

6. Citaes do Encheirdion feitas por autores antigos de

sculos posteriores;

7. As trs parfrases crists.

Segundo Boter (2007, p. vii), h exatamente 59 cdices

contendo o Encheirdion, sendo que nenhum deles anterior ao

sculo XIV. Os cdices contendo as parfrases crists so bem

mais antigos: alguns datam dos sculos X (Laurentianus 55,4 e

Parisinus gr. 1053) e XI (Nili Encheiridii Codex Marcianus gr.

131), o que evidencia que, durante o perodo bizantino, as

18

SCHWEIGHAUSER. Epicteteae Philosophiae Monumenta. 3 vol. Leipsig: Weidmann,

1798. 19

SCHENKL H. Epictetus Dissertationiones Ab Arriani Digestae. Stutgart, Taubner,

1916. 20

BOTER, G. The Encheiridion of Epictetus and its Three Christian Adaptations. Leiden:

Brill, 1999.

9

parfrases crists despertavam mais interesse que o prprio

Encheirdion de Epicteto.

Entre os mais antigos cdices contendo o Encheirdion de

Epicteto esto os seguintes: o Parisinus suppl. gr. 1164, o

Vaticanus gr. 1950 (que contm apenas os trs primeiros

captulos) e o Oxoniensis Canonicianus gr. 23 (que possui

apenas fragmentos). Os cdices do Encheirdion de Epicteto

dividem-se em duas famlias: uma que conta apenas com o

Atheniensis 373 e outra que engloba todos os demais. A

primeira famlia complementada pelos ttulos supridos pelo

cdice Vaticanus gr. 327, no qual se encontra o Comentrio de

Simplcio.

Quanto aos cdices do Comentrio de Simplcio,

remetemos o leitor a I. Hadot, que realizou uma edio crtica

de tal obra21. Boter observa que Simplcio, ao comentar

Epicteto, nem sempre fiel aos termos que este ltimo utiliza,

do que se conclui que, embora no se deva negligenciar o

testemunho de Simplcio, preciso utiliz-lo com cautela

(2007, p. ix).

Quanto aos ttulos presentes em alguns cdices do

Comentrio de Simplcio, Boter informa que, originalmente,

apenas o incio dos captulos era posto frente de cada

comentrio. Porm, em alguns cdices, nos dois primeiros

captulos encontra-se o texto da Paraphrasis Christiana; no

terceiro, os textos do Encheirdion e da Paraphrasis Christiana

se confundem; e da em diante aparece somente o texto do

Encheirdion, cuja fonte a mesma do cdice Atheniensis 373.

Alm dessas fontes, temos os livros das Diatribes de

Epicteto, a partir das quais, como j observamos acima, Arriano

confeccionou o Encheirdion.

Entre os autores posteriores que so fontes para o

estabelecimento do texto do Encheirdion destaca-se Estobeu,

que cita Epicteto abundantemente.

21

I. HADOT. Simplicius. Commentaire sur le Manuel d'pictte, Introduction et dition

critique du texte grec. Leiden: Brill, 1996.

10

H tambm autores patrsticos, entre os sculos II e VI, que

tratam do Encheirdion, como Eusbio, Ambrsio, Baslio

Magno, Dorotheus de Gaza, Procpio de Gaza e Sinsio. Estes

ltimos autores em nada contribuem para o estabelecimento do

Encheirdion, exceto no que se refere ao oitavo captulo,

discutido por Baslio, Dorotheus e Procpio.

Entre os neoplatnicos, alm de Simplcio, so

especialmente relevantes os comentrios a Plato de

Olimpiodoro e Proclo. Tambm outros autores antigos (como

Luciano, Dion Crisstomo e Antnio Magno) e autores rabes

(como Al-Kindi e Ibn Fatik22) so utilizados para estabelecer o

texto do Encheirdion.

Por fim temos as trs parfrases crists do Encheirdion de

Epicteto.

A parfrase do Pseudo-Nilo, composta em data incerta, foi

atribuda a Nilo porque em alguns cdices ela aparece entre as

obras deste ltimo (cf. cdice Vaticanus Ottobonianus gr. 25,

lavrado entre 1563 e 1564). Seu texto mais antigo encontra-se

no cdice Marcianus gr. 131, lavrado no sculo XI. Essa

parfrase consiste, na verdade, do Encheirdion com uma srie

de interpolaes, sobretudo nos captulos onde Epicteto afirma

teses contrrias ortodoxia crist (captulos 32, 33 e 52). O

autor tambm substitui os exempla de Epicteto por nomes

cristos (como Paulo no lugar de Scrates no captulo 51).

Tambm hoi theoi (os deuses) substitudo por ho Theos (o

Deus) ao longo do texto.

Os cdices da Paraphrasis Christiana, composta algum

tempo antes do ano 950, dividem-se em duas famlias, das

quais uma consiste somente do cdice Laurentianus 55.4, e a

outra, dos demais.

O cdice Vaticanus gr. 2231, que contm o nico exemplar

conhecido do Encheirdion Christianum (descoberto, como

observamos acima, foi por Spanneut) foi lavrado entre os anos

22

Cf. JADAANE F. L'influence du stoicisme sur la pense musulmane. Beirute: Dar el-

Machreq, 1968.

11

1337 e 1338.

Seguimos em nossa traduo o texto estabelecido por

Boter. Cotejamos nosso trabalho com as melhores tradues

disponveis, dando especial ateno s de Nicholas P. White,

Jean-Baptiste Gourinat e Pierre Hadot23.

Esttua equestre de Marco Aurlio Antonino, imperador de Roma e seguidor de

Epicteto (fonte: noeyiyo.wordpress.com)

23

Cf. HADOT, P. Manuel dpictte. Paris: LGF, 2000; GOURINAT, J. P. Premires

leons sur Le Manuel dpictte. Paris: PUF, 1998; WHITE, N. P. Epictetus, The

Handbook, the Encheiridion. Cambridge: Hacket, 1983.

O ENCHEIRDION DE

EPICTETO

*

TRADUO:

ALDO DINUCCI; ALFREDO JULIEN

13

Epicteti Enchiridium Una Cum Cebetis Thebani Tabula - Edio de

1683 em grego e latim de A. Berkelius. Primeira pgina.

(Fonte: Wikipedia.Org)

14

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15

[1.1] Das coisas existentes, algumas so encargos nossos1;

outras no. So encargos nossos o juzo2, o impulso3, o desejo4,

a repulsa5 em suma: tudo quanto seja ao nossa. No so

encargos nossos o corpo, as posses, a reputao, os cargos

pblicos em suma: tudo quanto no seja ao nossa. [1.2]

Por natureza, as coisas que so encargos nossos so livres6,

desobstrudas7, sem entraves8. As que no so encargos nossos

so dbeis9, escravas, obstrudas10, de outrem11. [1.3] Lembra

ento que, se pensares12 livres as coisas escravas por natureza e

tuas as de outrem, tu te fars entraves13, tu te afligirs14, tu te

inquietars15, censurars tanto os deuses como os homens. Mas

se pensares teu unicamente o que teu, e o que de outrem,

como o , de outrem, ningum jamais te constranger16,

ningum te far obstculos, no censurars ningum, nem

acusars quem quer que seja, de modo algum agirs

constrangido, ningum te causar dano, no ters inimigos,

pois no sers persuadido em relao a nada nocivo. [1.4]

Ento, almejando coisas de tamanha importncia, lembra que

preciso que no te empenhes de modo comedido, mas que

abandones completamente algumas coisas e, por ora, deixes

outras para depois. Mas se quiseres aquelas coisas e tambm ter

cargos e ser rico, talvez no obtenhas estas duas ltimas, por

tambm buscar as primeiras, e absolutamente no atingirs

aquelas coisas por meio das quais unicamente resultam a

liberdade e a felicidade17. [1.5] Ento pratica dizer prontamente

a toda representao18 bruta19: s representao e de modo

algum o que se afigura20. Em seguida, examina-a e testa-

a com essas mesmas regras que possuis, em primeiro lugar e

principalmente se sobre coisas que so encargos nossos ou

no. E caso esteja entre as coisas que no sejam encargos

nossos, tem mo que: Nada para mim.

16

[2.1] , ,

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17

[2.1] Lembra que o propsito21 do desejo obter o que se

deseja, o propsito da repulsa no se deparar com o que

se evita22. Quem falha no desejo no-afortunado. Quem se

depara com o que evita desafortunado. Caso, entre as coisas

que so teus encargos, somente rejeites as contrrias

natureza23, no te deparars com nenhuma coisa que evitas.

Caso rejeites a doena, a morte ou a pobreza, sers

desafortunado. [2.2] Ento retira a repulsa de todas as coisas

que no sejam encargos nossos e transfere-a para as coisas que,

sendo encargos nossos, so contrrias natureza. Por ora,

suspende por completo o desejo, pois se desejares alguma das

coisas que no sejam encargos nossos, necessariamente no

sers afortunado. Das coisas que so encargos nossos, todas

quantas seria belo desejar, nenhuma est ao teu alcance ainda.

Assim, faz uso somente do impulso e do refreamento24, sem

excesso, com reserva e sem constrangimento.

[3] Sobre cada uma das coisas que seduzem 25, tanto as que se

prestam ao uso quanto as que so amadas26, lembra de dizer de

que qualidade ela , comeando a partir das menores coisas.

Caso ames um vaso de argila, [diz] que Eu amo um vaso de

argila, pois se ele se quebrar, no te inquietars. Quando

beijares ternamente teu filho ou tua mulher, [diz] que beijas um

ser humano, pois se morrerem, no te inquietars.

18

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[5.b] , '

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19

[4] Quando estiveres prestes a empreender alguma ao,

recorda-te de que qualidade ela . Se fores aos banhos,

considera o que acontece na sala de banho: pessoas que

espirram gua, empurram, insultam, roubam. Empreenders a

ao com mais segurana se assim disseres prontamente:

Quero banhar-me e manter a minha escolha27 segundo a

natureza. E do mesmo modo para cada ao. Pois se houver

algum entrave28 ao banho, ters mo que Eu no queria

unicamente banhar-me, mas tambm manter minha escolha

segundo a natureza e no a manterei se me irritar com os

acontecimentos.

[5a] As coisas no inquietam os homens, mas as opinies sobre

as coisas. Por exemplo: a morte nada tem de terrvel, ou

tambm a Scrates teria se afigurado assim, mas a opinio a

respeito da morte de que ela terrvel que terrvel! Ento,

quando se nos apresentarem entraves, ou nos inquietarmos, ou

nos afligirmos, jamais consideremos outra coisa a causa, seno

ns mesmos isto : as nossas prprias opinies29.

[5b] ao de quem no se educou acusar os outros pelas

coisas que ele prprio faz erroneamente. De quem comeou a

se educar, acusar a si prprio. De quem j se educou, no

acusar os outros nem a si prprio.

20

[6.1] .

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[9.1] ,

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21

[6] No te exaltes por nenhuma vantagem de outrem. Se um

cavalo dissesse, exaltando-se: Sou belo, isso seria tolervel.

Mas quando tu, exaltando-te, disseres: Possuo um belo

cavalo, sabe que te exaltas pelo bem do cavalo. Ento o que

teu? O uso das representaes. Desse modo, quando utilizares

as representaes segundo a natureza, a ento te exalta, pois

nesse momento te exaltars por um bem que depende de ti.

[7] Em uma viagem martima, se sares para fazer proviso de

gua quando o navio estiver ancorado, poders tambm pegar

uma conchinha e um peixinho pelo caminho30. Mas preciso

que mantenhas o pensamento fixo sobre o navio, voltando-te

continuamente. Que jamais o piloto te chame. E se te chamar,

abandona tudo para que no sejas lanado ao navio amarrado

como as ovelhas. Assim tambm na vida. No ser um

obstculo se ela te der, ao invs de uma conchinha e um

peixinho, uma mulherzinha e um filhinho. Mas se o capito te

chamar, corre para o navio, abandonando tudo, sem te voltares

para trs. E se fores velho, nunca te afastes muito do navio,

para que, um dia, quando o piloto te chamar, no fiques para

trs.

[8] No busques que os acontecimentos aconteam como

queres, mas quere que aconteam como acontecem, e tua vida

ter um curso sereno31.

[9] A doena entrave para o corpo, mas no para a escolha32,

se ela no quiser. Claudicar entrave para as pernas, mas no

para a escolha. Diz isso para cada uma das coisas que sucedem

contigo, e descobrirs que o entrave prprio de outra coisa e

no teu.

22

[10.1] '

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23

[10] Quanto a cada uma das coisas que sucedem contigo,

lembra, voltando a ateno para ti mesmo, de buscar alguma

capacidade que sirva para cada uma delas. Caso vires um belo

homem ou uma bela mulher, descobrirs para isso a capacidade

do autodomnio. Caso uma tarefa extenuante se apresente,

descobrirs a perseverana33. Caso a injria, a pacincia.

Habituando-te desse modo, as representaes no te

arrebataro.

[11] Jamais, a respeito de coisa alguma, digas: Eu a perdi,

mas sim: Eu a restitu. O filho morreu? Foi restitudo. A

mulher morreu? Foi restituda. A propriedade me foi

subtrada, ento tambm foi restituda! Mas quem a subtraiu

mau! O que te importa por meio de quem aquele que te d a

pede de volta? Na medida em que ele der, faz uso do mesmo

modo de quem cuida das coisas de outrem. Do mesmo modo

dos que se instalam em uma hospedaria.

[12.1] Se queres progredir34, abandona pensamentos como

estes: Se eu descuidar dos meus negcios, no terei o que

comer, Se eu no punir o servo, ele se tornar intil. Pois

melhor morrer de fome, sem aflio e sem medo, que viver

inquieto na opulncia. melhor ser mau o servo que tu infeliz.

[12.2] Comea a partir das menores coisas. Derrama-se um

pouco de azeite? roubado um pouco de vinho? Diz: Por esse

preo vendida a ausncia de sofrimento; Esse o preo da

tranquilidade. Nada vem de graa. Quando chamares o servo,

pondera que possvel que ele no venha, ou, se vier, que ele

no faa o que queres. Mas a posio dele no to boa para

que dele dependa a tua tranquilidade.

24

[13.1] ,

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[14.a]

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25

[13] Se queres progredir, conforma-te em parecer insensato e tolo

quanto s coisas exteriores. No pretendas parecer saber coisa

alguma. E caso pareceres ser algum para alguns,

desconfia de ti mesmo, pois sabe que no fcil guardar a tua

escolha35

, mantendo-a segundo a natureza, e, ,

as coisas exteriores, mas necessariamente quem cuida de uma

descuida da outra.

[14a] Se quiseres que teus filhos, tua mulher e teus amigos vivam

para sempre, s tolo, pois queres que as coisas que no so teus

encargos sejam encargos teus; como tambm que as coisas de

outrem sejam tuas. Do mesmo modo, se quiseres que o servo no

cometa faltas, s insensato, pois queres que o vcio no seja o vcio,

mas outra coisa. Mas se quiseres no falhar em teus desejos, isso tu

podes. Ento exercita o que tu podes.

[14b] O senhor de cada um quem possui o poder de conservar ou

afastar as coisas desejadas ou no desejadas por cada um. Ento,

quem quer que deseje ser livre, nem queira, nem evite o que

dependa de outros. Seno, necessariamente ser escravo.

[15] Lembra que preciso que te comportes como em um

banquete. Uma iguaria que est sendo servida chega a ti?

Estendendo a mo, toma a tua parte disciplinadamente36

. Passa ao

largo? No a persigas. Ainda no chegou? No projetes o desejo,

mas espera at que venha a ti. do mesmo modo em relao

aos teus filhos, tua mulher, aos cargos, riqueza, e um dia sers

um valoroso conviva dos deuses. Porm, se no tomares as coisas

mesmo quando sejam colocadas diante de ti, mas as desdenhares,

nesse momento no somente sers um conviva dos deuses, mas

governars com eles. dessa maneira, Digenes,

Herclito e seus semelhantes foram, por mrito, divinos, e assim

foram chamados.

26

[16.1]

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27

[16] Quando vires algum aflito, chorando pela ausncia do

filho ou pela perda de suas coisas, toma cuidado para que a

representao de que ele esteja envolto em males externos no

te arrebate, mas tem prontamente mo que no o

acontecimento que o oprime (pois este no oprime outro), mas

sim a opinio sobre . No entanto, no

hesites em solidarizar-te com ele com tuas palavras e, caso

caiba, em lamentar-te junto. Mas toma cuidado para tambm

no gemeres por dentro.

[17] Lembra que s um ator de uma pea teatral, tal como o

quer o autor . Se ele a quiser breve, breve ser. Se ele

a quiser longa, longa ser. Se ele quiser que interpretes o papel

de mendigo, para que interpretes esse papel com talento. se de

coxo, de magistrado, de homem comum37. Pois isto teu:

interpretar belamente o papel que te dado mas escolh-lo,

cabe a outro.

[18] Quando um corvo crocitar maus auspcios, que a

representao no te arrebate, mas prontamente efetua a

distino38 e diz: Isso nada significa para mim, mas ou ao meu

pequenino corpo, ou s minhas pequeninas coisas, ou minha

reputaozinha, ou aos meus filhos, ou minha mulher. Se eu

quiser, todas as coisas significam bons auspcios para mim

pois se alguma dessas coisas ocorrer, beneficiar-me delas

depende de mim.

28

[19.a] ,

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[19.b]

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29

[19a] Podes ser invencvel se no te engajares em lutas nas

quais vencer no depende de ti.

[19b] Ao veres algum preferido em honras, ou muito

poderoso, ou mais estimado, presta ateno para que jamais

creias arrebatado pela representao que ele seja feliz39.

Pois se a essncia do bem est nas coisas que so encargos

nossos, no haver espao nem para a inveja, nem para o

cime. Tu mesmo no irs querer ser nem general, nem prtane

ou cnsul, mas homem livre. E o nico caminho para isso

desprezar o que no encargo nosso.

[20] Lembra que no insolente quem ofende ou agride, mas

sim a opinio segundo a qual ele insolente. Ento, quando

algum te provocar, sabe que o teu juzo que te provocou.

Portanto, em primeiro lugar, tenta no ser arrebatado pela

representao: uma vez que ganhares tempo e prazo, mais

facilmente sers senhor de ti mesmo.40

[21] Que estejam diante dos teus olhos, a cada dia, a morte, o

exlio e todas as coisas que se afiguram terrveis, sobretudo a

morte. Assim, jamais ponderars coisas abjetas, nem aspirars

41 coisa alguma excessivamente.

30

[22.1] ,

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[23.1]

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31

[22] Se aspiras filosofia, prepara-te, a partir de agora para

quando te ridicularizarem; para quando rirem de ti; para

quando indagarem: Subitamente ele nos volta filsofo? e De

onde vem essa gravidade no olhar?42 No adquiras tal

gravidade no olhar, mas, como quem designado a esse posto

pela divindade, agarra-te s coisas que se afiguram as melhores

para ti. Lembra que, se te prenderes a essas mesmas coisas, os

que primeiro rirem de ti depois te admiraro. Mas se te deixares

vencer por eles, recebers as risadas em dobro.

[23] Se alguma vez te voltares para as coisas exteriores por

desejares agradar algum, sabe que perdeste o rumo. Basta que

sejas filsofo em todas as circunstncias. Mas se desejares

tambm parecer , exibe-te para ti mesmo ser o

suficiente.

32

[24.1]

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33

[24.1] Que estes raciocnios no te oprimam: Viverei sem ser

honrado e ningum serei em parte alguma. Pois se a falta de

honra43

um mal como o , no se pode ficar em mau estado

por causa de outro, no mais do que em situao vergonhosa.

ao tua obter um cargo pblico ou ser convidado para um

banquete? De modo algum. Como ento ser desonrado? Como

tambm no sers ningum se preciso que sejas algum

unicamente em relao s coisas sob teu encargo, coisas nas quais

podes ser do mais alto valor? [24.2] Mas teus amigos ficaro

desamparados? Desamparados! Dizes isso em relao a que? No

tero de ti uns trocados, nem os fars cidados de Roma? Quem te

disse que essas coisas esto sob teu encargo e no so aes de

outrem? Quem capaz dar a outro o que ele mesmo no possui?

Obtm posses, diz , para que tambm ns as

tenhamos. [24.3] Se eu puder obter posses mantendo-me digno,

leal e magnnimo, indicai-me o caminho e eu as obterei. Mas se

credes digno que eu perca meus bens os que me so prprios

para que conserveis coisas que no so bens, atentai como sois

inquos e ignorantes. O que desejais mais: dinheiro ou um amigo

leal e digno? Ajudai-me sobretudo nisso e no creiais ter valor que

eu faa coisas pelas quais rejeitaria o que propriamente meu.

[24.4] Mas a ptria, diz , no que depender de mim,

estar desamparada. Pelo contrrio, pois de que tipo seria esse

amparo? no ter por teu intermdio prticos nem

banhos pblicos? E da? Pois no h sandlias por intermdio do

ferreiro nem armas por intermdio do sapateiro, mas basta que cada

um cumpra a ao que lhe prpria. Se forneceres

outro cidado leal e digno em nada a beneficiarias? Sim. Ento tu

mesmo no serias intil ptria. [24.5] Que lugar, diz ,

terei na cidade? O que te for possvel, mantendo-te, ao mesmo

tempo, leal e digno. Mas se, desejando beneficiar a cidade,

rejeitares essas qualidades, que benefcio serias para

tornando-te indigno e desleal?

34

[25.1]

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35

[25.1] Se algum receber maiores honras do que tu em um

banquete, em uma saudao ou ao ser acolhido no conselho, e

se essas coisas forem um bem, preciso alegrar-te por ele as ter

obtido. Mas se forem males, no sofras porque no as

obtiveste. Lembra que no podes se no agires para obter

coisas que no so encargos nossos merecer uma parte igual

. [25.2] Pois como quem no

vai periodicamente porta de algum pode obter o mesmo que

quem vai? Quem acompanha, o mesmo que quem no

acompanha? Quem elogia, o mesmo que quem no elogia?

Serias injusto e insacivel se, no pagando o preo pelo qual

aquelas coisas so vendidas, desejasses obt-las gratuitamente.

[25.3] Por quanto vendida uma alface? Que custe um bolo!

Ento quem dispensa o bolo toma a alface, e tu, que no o

dispensaste, no a tomas. No penses ter menos do que quem a

tomou, pois do mesmo modo que ele possui a alface, tu possuis

o bolo que no entregaste. [25.4] Assim tambm neste caso:

no foste convidado para o banquete de algum, pois no deste

ao anfitrio a quantia pela qual ele vende a refeio. Ele a

vende por elogios, por obsquios. Se te vantajoso, paga o

preo pelo qual ela vendida. Mas se queres no pagar por ela

e obt-la, s insacivel e estpido. [25.5] Ento nada tens no

lugar do repasto? Com certeza! No ters que elogiar quem no

queres, nem aturar os que esto diante da porta dele.

36

[26.1]

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[26] Aprende-se o propsito da natureza a partir do que no

discordamos uns dos outros. Por exemplo: quando o servo de

outrem quebra um copo, tem-se prontamente mo que Isso

acontece. Ento, se o teu copo se quebrar, sabe que preciso

que ajas tal como quando o copo de outro se quebra. Do

mesmo modo, transfere isso tambm para as coisas mais

importantes. Morre o filho ou a mulher de outro? No h quem

no diga: humano. Mas, quando morre o prprio , diz-se prontamente: desafortunado que

sou! preciso que lembremos como nos sentimos quando

ouvimos a mesma coisa acerca dos outros.

[27] Do mesmo modo que um alvo no fixado para no ser

atingido, assim tambm a natureza do mal no existe no

cosmos.

[28] Se algum entregasse teu corpo a quem chegasse, tu te

irritarias. E por que entregas teu pensamento44 a quem quer que

aparea, para que, se ele te insultar, teu pensamento se inquiete

e se confunda? No te envergonhas por isso?

38

[29.1]

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39

[29.1] A respeito de cada ao, examina o que a antecede e o

que a sucede e ento a empreende. Seno, primeiro te

entusiasmars e, por no teres ponderado sobre as

consequncias, depois, quando estas se mostrarem

vergonhosas, desistirs. [29.2] Queres vencer os Jogos

Olmpicos? Tambm eu, pelos deuses, pois uma coisa bela.

Mas examina o que antecede e o que segue e

ento empreende a ao. preciso ser disciplinado, submeter-

se a regime alimentar, abster-se de guloseimas, exercitar-se

obrigatoriamente na hora determinada (tanto no calor como no

frio), no beber gua gelada nem vinho, mesmo que

ocasionalmente. Em suma, confiar-se ao treinador

como ao mdico. Depois, lanar-se luta e, por

vezes, machucar as mos, torcer o tornozelo e engolir muita

areia. s vezes, tanto ser fustigado quanto, depois de tudo isso,

ser vencido. [29.3] Tendo examinado essas coisas, caso ainda

queiras, torna-te atleta. Seno, do mesmo modo que as crianas

se comportam (ora elas brincam de lutador, ora de gladiador,

ora tocam trombetas, depois encenam uma tragdia), tambm

tu sers ora atleta, ora gladiador, depois orador, em seguida

filsofo, mas nada com tua alma toda. Como um

macaco, imitars tudo o que vires. Uma coisa aps a outra te

agradar, pois nada empreenders aps exame e investigao,

mas ao acaso e sem ardor. [29.4] Alguns, ao

contemplarem e ouvirem um filsofo (um desses que falam

bem como Scrates e, de fato, quem capaz de falar como

ele?), querem tambm eles prprios ser filsofos.

40

[29.5] , ,

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41

[29.5] Homem! Examina primeiro de que qualidade a coisa,

depois observa a tua prpria natureza para saber se a podes

suportar. Desejas ser pentatleta ou lutador? Olha teus braos e

coxas. Observa teus flancos, [29.6] pois cada um nasceu para

uma coisa. Crs que, 45, podes comer do

mesmo modo, beber do mesmo modo, ter regras e falta de

humor semelhantes? preciso que faas viglias, que suportes

fadigas, que te afastes da tua famlia, que sejas desprezado

pelos servos, que todos riam de ti, que tenhas a menor parte em

tudo: nas honras, nos cargos pblicos, nos tribunais, em todo

tipo de assunto de pequena monta. [29.7] Examina essas coisas

se queres receber em troca delas a ausncia de sofrimento, a

liberdade e a tranquilidade. Caso contrrio, no te envolvas.

No sejas, como as crianas, agora filsofo, depois cobrador de

impostos, em seguida orador, depois procurador de Csar.

Essas coisas no combinam. preciso que sejas um homem,

bom ou mal. preciso que cultives a tua prpria faculdade

diretriz ou as coisas exteriores. preciso que assumas ou a arte

acerca das coisas interiores ou acerca das exteriores. Isto : que

assumas ou o posto de filsofo ou o de homem comum.

[30] As aes convenientes so, em geral, medidas pelas

relaes. teu pai? Isso implica que cuides dele; que cedas em

tudo; que o toleres quando te insulta, quando te bate. Mas ele

um mau pai? De modo algum, pela natureza, ests unido a um

bom pai, mas a um pai. irmo injusto. Mantm o

teu prprio posto em relao a ele. No examines o que ele faz,

mas o que te dado fazer, e a tua escolha estar segundo a

natureza. Pois se no quiseres, outro no te causar dano, mas

sofrers dano quando supuseres ter sofrido dano. Deste modo

ento descobrirs as aes convenientes para com o vizinho,

para com o cidado, para com o general: se te habituares a

considerar as relaes.

42

[31.1]

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[31.5]

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43

[31.1] Quanto piedade em relao aos deuses, sabe que o

mais importante o seguinte: que possuas juzos corretos sobre

eles (que eles existem e governam todas as coisas de modo belo

e justo) e que te disponhas a obedec-los e a aceitar todos os

acontecimentos, seguindo-os voluntariamente como realizaes

da mais elevada inteligncia. Assim, no censurars jamais os

deuses, nem os acusars de terem te esquecido. [31.2] Mas isso

s possvel se tirares o bem e o mal das coisas que no so

encargos nossos e os colocares nas nicas coisas que so

encargos nossos. Pois se supuseres boas ou ms algumas das

coisas que no so encargos nossos, absolutamente necessrio

quando no atingires as que queres, ou te deparares com as

que no queres que censures e odeies os responsveis. [31.3]

Pois natural a todo vivente evitar e afastar-se das coisas que

se afiguram nocivas e de suas causas, como tambm buscar e

admirar as coisas benficas e suas causas. Ento inconcebvel

que algum, pensando sofrer algum dano, alegre-se com o que

lhe parece danoso. Do mesmo modo, tambm, impossvel que

se alegre com o prprio dano. [31.4] Da tambm isto: um pai

ofendido pelo filho quando no partilha com este as coisas que

a este parecem boas. Polinices e Eteocles tambm agiram

assim, por acreditarem que a tirania fosse um bem46. Em razo

disso, o campons insulta os deuses, bem como o marinheiro, o

comerciante, os que perdem as mulheres e os filhos. Pois a

onde est o interesse, a tambm est a piedade. Quem cuida do

desejo e da repulsa como se deve cuida tambm, do mesmo

modo, da piedade. [31.5] Convm fazer libaes, sacrifcios e

oferecer primcias, segundo os costumes ancestrais de cada um,

mas de modo puro, no de modo indolente, nem descuidado,

nem mesquinho, nem acima da prpria capacidade.

44

[32.1] , , ,

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45

[32.1] Quando recorreres divinao, lembra que no sabes o

que est por vir, mas vais ao adivinho para seres informado

sobre isso. Vais sabendo, j que s filsofo, qual a qualidade

do que est por vir: se for algo que no seja encargo nosso,

absolutamente necessrio que no seja nem um bem, nem um

mal. [32.2] Ento no leves ao adivinho desejo ou repulsa,

seno te apresentars tremendo diante dele. Mas, discernindo

que tudo o que vier indiferente, e nada (seja o que for) se

refere a ti, pois poders fazer bom uso (e

isso ningum te impedir), vai, confiante, aos deuses, como conselheiros. Alm disso, quando algo te for

aconselhado, lembra quais conselheiros tu acolhes e quais,

desobedecendo, recusars ouvir. [32.3] Consulta o orculo do

mesmo modo que Scrates julgava ter valor: para os casos nos

quais o exame como um todo se refere s consequncias, e os

pontos de partida para conhecer o assunto no so dados nem

pela razo, nem por alguma outra arte. Assim, quando

precisares compartilhar um perigo com o amigo ou com a

ptria, no consultes o orculo se deves compartilhar o perigo.

Pois se o adivinho anunciar maus pressgios, evidente que

isso significa ou a morte, ou a perda de alguma parte do corpo,

ou o exlio. Mas a razo te impele, mesmo nessas situaes, a

ficar ao lado do amigo ou da ptria e expor-te ao perigo.

Portanto, d ateno ao maior dos adivinhos, Apolo Ptico, que

expulsou do templo o homem que no socorreu o amigo que

estava sendo assassinado47.

46

[33.1] ,

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47

[33.1] Fixa, a partir de agora, um carter e um padro para ti

prprio, que guardars quando estiveres sozinho, ou quando te

encontrares com outros. [33.2] Na maior parte do tempo, fica

em silncio, ou, com poucas palavras, fala o que necessrio.

Raramente, quando a ocasio pedir, fala algo, mas no sobre

coisa ordinria: nada sobre lutas de gladiadores, corridas de

cavalos, nem sobre atletas, nem sobre comidas ou bebidas

assuntos falados por toda parte. Sobretudo no fales sobre os

homens, recriminando-os, ou elogiando-os, ou comparando-os.

[33.3] Ento, se fores capaz, conduz a tua conversa e a dos que

esto contigo para o que conveniente. Porm, se te

encontrares isolado em meio a estranhos, guarda silncio.

[33.4] No rias muito, nem sobre muitas coisas, nem de modo

descontrolado. [33.5] Recusa-te a fazer juramentos, se possvel

por completo; seno, na medida do possvel. [33.6] Pe de lado

os banquetes de estranhos e de homens comuns, mas se um dia

surgir uma ocasio propcia, mantm-te atento e jamais caias na

vulgaridade. Pois sabe que, quando o companheiro for impuro,

quem convive com ele necessariamente se torna impuro,

mesmo que, por acaso, esteja puro. [33.7] Acolhe as coisas

relativas ao corpo na medida da simples necessidade:

alimentos, bebidas, vestimenta, serviais mas exclui por

completo a ostentao ou o luxo. [33.8] Quanto aos prazeres de

Afrodite48, deves preservar-te ao mximo at o casamento, mas

se te engajares neles, preciso tom-los conforme o costume.

No entanto, no sejas grave nem crtico com os que fazem uso

deles, nem anuncies repetidamente que tu prprio no o fazes.

[33.9] Se te disserem que algum, maldosamente, falou coisas

terrveis de ti, no te defendas das coisas ditas, mas responde

que Ele desconhece meus outros defeitos, ou no mencionaria

somente esses.

48

[33.10] .

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49

[33.10] No necessrio ir frequentemente aos espetculos,

mas se surgir uma ocasio propcia, no mostres preocupao

com ningum seno contigo mesmo isto : quere que

aconteam somente as coisas que acontecerem e que vena

somente o vencedor, pois assim tu no te fars entraves. E

abstm-te por completo de gritar, rir de algum ou comover-te. Uma vez tendo sado do espetculo, no fales muito sobre o que l

se passou, na medida em que no leva tua correo, pois, a

partir de tal , ser evidente que admiraste o espetculo. [33.11] Nem ao acaso, nem prontamente vs s palestras dos

outros, mas se fores, guarda ao mesmo tempo

reverente, equilibrado e cordial. [33.12] Quando fores te

encontrar com algum sobretudo algum entre os que parecem

proeminentes indaga a ti mesmo o que Scrates ou Zeno

fariam em tais circunstncias, e no te faltaro meios para agir

convenientemente. [33.13] Quando fores encontrar algum do

grupo dos muito poderosos, considera de que

no o achars em casa; de que sers impedido de entrar; de que

as portas se fecharo para ti; de que ele no te dar ateno. E

se ainda assim for conveniente ir, vai. Mas suporta os

acontecimentos e jamais digas a ti mesmo: Isso no vale

tanto. Pois orientar-se pelas coisas exteriores prprio do

homem comum. [33.14] Nas conversas, desiste de lembrar,

frequente e desmedidamente, as tuas aes e aventuras

perigosas, pois no prazeroso para os outros ouvir as coisas

que te aconteceram quanto te lembr-las. [33.15] Desiste

tambm de provocar risadas, pois tal atitude resvala na

vulgaridade, como tambm pode fazer com que os teus

prximos percam o respeito por ti. [33.16] Encetar conversas

vergonhosas perigoso. Quando isso ocorrer, se a ocasio for

propcia, repreende quem se comporta assim; se

no , mostra, por meio do silncio, do rubor e de

um ar sombrio, que ests descontente com a conversa.

50

[34.1] ,

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51

[34] Quando apreenderes a representao de algum prazer ou

de alguma outra coisa guarda-te e no sejas arrebatado por

ela. Que o assunto te espere: concede um tempo para ti mesmo.

Lembra ento destes dois momentos: um, no qual desfrutars o

prazer, e outro posterior, no qual, tendo-o desfrutado, tu te

arrependers e criticars a ti mesmo. Compara ento com esses

dois momentos o quanto, abstendo-te , tu te

alegrars e elogiars a ti prprio. Porm, caso a ocasio

propcia para empreender a ao se apresente, toma cuidado!

Que no te venam sua doura e sua seduo. Compara isso ao

quo melhor ser para ti teres a cincia da obteno da vitria.

[35] Quando discernires que deves fazer alguma coisa, faz.

Jamais evites ser visto fazendo-a, mesmo que a maioria

suponha algo diferente sobre . Pois se no fores agir

corretamente, evita a prpria ao. Mas se

corretamente, por que temer os que te repreendero

incorretamente?

[36] Assim como dia e noite possuem pleno valor

quando em uma proposio disjuntiva, mas no em uma

conjuntiva, assim tambm tomar a maior parte

tem valor para o corpo, mas no o valor comunitrio que

preciso observar em um banquete. Quando ento comeres com

algum, lembra de no veres somente o valor para o corpo dos

pratos postos tua frente, mas que tambm preciso que

guardes o respeito para com o anfitrio.

[37] Se aceitares um papel alm de tua capacidade, tanto

perders a compostura quanto deixars de lado aquele que

possvel que bem desempenhes.

52

[38.1] ,

, ,

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,

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[39.1]

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,

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.

[40.1]

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[41.1] ,

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, .

.

53

[38] Do mesmo modo que, ao caminhares, tomas cuidado para

que no pises em um prego ou no toras o p, assim tambm

toma cuidado para que no causes dano tua faculdade diretriz.

Se guardarmos atentamente essa regra, ns empreenderemos

cada ao com mais segurana.

[39] O corpo a medida das posses de cada um, como o p o

da sandlia. Se te fixares nisso, guardars a medida. Mas se

fores alm, necessariamente cairs no abismo. E assim,

igualmente, a respeito da sandlia. Se fores muito alm do p49,

ela torna-se dourada, em seguida prpura, depois bordada, pois,

uma vez ultrapassada a medida, no h mais limite algum.

[40] As mulheres, logo aps os seus quatorze anos, so

chamadas de senhoras pelos homens. Vendo assim que

nenhuma outra coisa lhes cabe, exceto se deitarem com eles,

comeam a se embelezar, e nisso depositam todas as

esperanas. importante ento que cuidemos para que

percebam que por nenhuma outra coisa so honradas, seno por

se apresentarem disciplinadas e dignas50.

[41] sinal de incapacidade ocupar-se com as coisas do corpo,

tal como exercitar-se muito, comer muito, beber muito, evacuar

muito, copular muito. preciso fazer essas coisas como algo

secundrio: que a ateno seja toda para o pensamento.

54

[42.1] , ,

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, , , ,

.

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[43.1] , ,

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(

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[44.1]

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,

,

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[45.1] , '

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,

.

55

[42] Quando algum te tratar mal ou falar mal de ti, lembra que

ele o faz ou fala pensando que isso lhe conveniente. No lhe

possvel, ento, seguir o que se te afigura, mas o que se lhe

afigura, de modo que, se equivocadamente se lhe afigura,

aquele que sofre o dano quem est enganado. Com efeito, se

algum supuser falsa uma proposio conjuntiva verdadeira,

no a proposio conjuntiva que sofre o dano, mas quem se

engana. Agindo de acordo com isso, sers gentil com quem te

insulta. Diz, pois, em cada uma dessas ocasies: Assim lhe

parece.

[43] Toda coisa tem dois lados: um suportvel e outro no

suportvel. se teu irmo for injusto ,

no o tomes por a, isto , que ele injusto (pois isso no

suportvel), mas antes por aqui: que ele teu irmo,

e que fostes criados juntos assim o tomars de acordo com o

que suportvel51.

[44] Estes argumentos so inconsistentes: Eu sou mais rico do

que tu, logo sou superior a ti; Eu sou mais eloquente do que

tu, logo sou superior a ti. Mas, antes, estes so consistentes:

Eu sou mais rico do que tu, logo minhas posses so maiores

do que as tuas; Eu sou mais eloquente do que tu, logo minha

eloquncia maior do que a tua. Pois tu no s nem as posses,

nem a eloquncia.

[45] Algum se banha de modo apressado: no digas que ele

de modo ruim, mas de modo apressado. Algum

bebe muito vinho: no digas que ele de modo ruim,

mas que muito. Pois, antes de discernir a opinio dele,

como sabes que ele de modo ruim? Assim, no ocorrer

que apreendas as representaes compreensivas de umas coisas

e ds assentimento a outras.

56

[46.1] ,

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'

, [46.2] ,

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[47.1] ,

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57

[46.1] Jamais te declares filsofo. Nem, entre os homens

comuns, fales frequentemente sobre princpios filosficos52,

mas age de acordo com os princpios filosficos. Por exemplo:

em um banquete, no discorras sobre como se deve comer, mas

come como se deve. Lembra que Scrates, em toda parte,

punha de lado as demonstraes, de tal modo que os outros o

procuravam quando desejavam ser apresentados aos filsofos

por ele. E ele os levava! [46.2] E dessa maneira, sendo

desdenhado, ele ia. Com efeito, caso, em meio a homens

comuns, uma discusso sobre algum princpio filosfico

sobrevenha, silencia ao mximo, pois o perigo de vomitar

imediatamente o que no digeriste grande. E quando algum

te falar que nada sabes e no te morderes, sabe ento que

comeaste a ao. Do mesmo modo que as ovelhas no

mostram o quanto comeram, trazendo a forragem ao pastor,

mas, tendo digerido internamente o pasto, produzem l e leite,

tambm tu no mostres os princpios filosficos aos homens

comuns, mas, aps t-los digerido, as aes.

[47] Quanto ao corpo, quando tiveres te adaptado frugalidade,

no te gabes disso. Nem digas, em toda ocasio, se beberes

gua, que bebes gua. E se quiseres, em algum momento,

exercitar-te para uma tarefa rdua, faz isso para ti mesmo e no

para os outros. No abraces esttuas, mas se tiveres forte sede,

bebe gua gelada e cospe e no digas a

ningum.

58

[48.a]

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.

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[48.b1] ,

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, . ,

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59

[48.a] Postura e carter do homem comum: jamais espera

benefcio ou dano de si mesmo, mas das coisas exteriores.

Postura e carter do filsofo: espera todo benefcio e todo dano

de si mesmo.

[48.b1] Sinais de quem progride: no recrimina ningum, no

elogia ningum, no acusa ningum, no reclama de ningum.

Nada diz sobre si mesmo como quem ou o que sabe.

Quando, em relao a algo, entravado ou impedido, recrimina

a si mesmo. Se algum o elogia, se ri de quem o elogia. Se

algum o recrimina, no se defende. Vive como os

convalescentes, precavendo-se de mover algum membro que

esteja se restabelecendo, antes que se recupere. [48.b2] Retira

de si todo o desejo e transfere a repulsa unicamente para as

coisas que, entre as que so encargos nossos, so contrrias

natureza. Para tudo, faz uso do impulso amenizado53. Se

parecer insensato ou ignorante, no se importa. Em suma:

guarda-se atentamente como um inimigo traioeiro.

60

[49.1]

,

,

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. ,

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. ,

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[50.1] , ,

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61

[49] Quando algum se cr merecedor de reverncia54 por ser

capaz de compreender e interpretar os livros de Crisipo, diz

para ti mesmo: Se Crisipo no escreveu de modo obscuro, ele

no tem pelo que se crer merecedor de reverncia. Mas o que

eu desejo? Conhecer a natureza e segui-la. Busco ento quem a

interpreta. Ouvindo que Crisipo, vou a ele. Mas no

compreendo seus escritos. Busco ento quem os interpreta at

a, absolutamente nada h que merea reverncia. Quando eu

acho o intrprete, resta-me fazer uso das coisas prescritas

unicamente isso digno de reverncia. Ora, se admiro o

prprio interpretar, que outra coisa me torno seno

gramtico ao invs de filsofo? Com a diferena que, no lugar

de Homero, interpreto Crisipo. Ento, quando algum me

disser Interpreta algo de Crisipo para mim, sobretudo

enrubescerei quando no for capaz de exibir aes semelhantes

s palavras e condizentes .

[50] Respeita todas as coisas que foram expostas como se

fossem leis; como se cometesses uma impiedade se as

transgredisses. E se algum falar algo de ti, no ds ateno,

pois isso no mais tua.

62

[51.1]

,

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,

, .

' , '

, , '

. [51.2]

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, ,

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. [51.3]

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63

[51.1] Por quanto tempo ainda esperars para que te julgues

merecedor das melhores coisas e para que em nada transgridas

os ditames da razo? Recebeste os princpios filosficos, com

os quais foi preciso concordar, e concordaste. Por qual mestre

ainda esperas para que confies a ele a correo de ti mesmo?

No s mais um adolescente, j s um homem feito. Se agora

fores descuidado e preguioso, e sempre fizeres adiamentos

aps adiamentos, fixando um dia aps o outro o dia depois do

qual cuidars de ti mesmo, no percebers que no progrides. E

permanecers, tanto vivendo quanto morrendo, um homem

comum. [51.2] Ento, a partir de agora, como um homem feito

e que progride, considera a tua vida merecedora de valor. E que

seja lei inviolvel para ti tudo o que se afigurar como o melhor.

Ento, se uma tarefa rdua, ou prazerosa, ou grandiosa, ou

obscura te for apresentada, lembra que essa a hora da luta,

que essa a hora dos Jogos Olmpicos, e que no h mais nada

pelo que esperar, e que, por um revs ou um deslize, perde-se o

progresso, ou o conserva. [51.3] Deste modo Scrates realizou-

se: de todas as coisas com que se deparou, no cuidou de

nenhuma outra, exceto a razo. E tu, mesmo que no sejas

Scrates, deves viver desejando ser como Scrates.

64

[52.1]

,

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, , [52.2]

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[53.1]

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[53.2] ' ,

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[53.3] ', , ,

.

[53.4]

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65

[52.1] O primeiro e mais necessrio tpico da filosofia o da

aplicao dos princpios, por exemplo: No sustentar

falsidades. O segundo o das demonstraes, por exemplo:

Por que preciso no sustentar falsidades? O terceiro o que

prprio para confirmar e articular os anteriores, por exemplo:

Por que isso uma demonstrao? O que uma

demonstrao? O que uma consequncia? O que uma

contradio? O que o verdadeiro? O que o falso? [52.2]

Portanto, o terceiro tpico necessrio em razo do segundo; e

o segundo, em razo do primeiro mas o primeiro o mais

necessrio e onde preciso se demorar. Porm, fazemos o

contrrio: pois no terceiro despendemos nosso tempo, e todo o

nosso esforo em relao a ele, mas do primeiro descuidamos

por completo. Eis a porque, por um lado, sustentamos

falsidades e, por outro, temos mo como se demonstra que

no apropriado sustentar falsidades.

[53.1] preciso em toda ocasio ter mo o seguinte:

Conduze-me, Zeus, e tu tambm, Destino,

Para o posto ao qual um dia fui designado,

Que, diligente, eu vos seguirei e se, mau me tornando,

No o quiser, ainda assim vos seguirei.

[53.2] Aquele que, de modo justo, ceder necessidade

, para ns, sbio e conhecedor das coisas divinas.

[53.3] Crton, se assim desejado pelos Deuses, que assim seja.

[53.4] nito e Meleto podem me matar, mas no podem me

causar dano.

66

Representao da gora ateniense na era clssica.

(fonte: novaroma.org)

67

NOTAS

1A expresso eph hmn no possui equivalente direto

que possa dar conta de seu significado. Literalmente,

poderamos traduzi-la por algumas coisas esto sobre ns;

outras no. Henrique Murachco traduz expresso semelhante

(t epi emo) por no que est sobre mim, no sentido de

quanto a mim, no que me concerne (Lngua Grega: viso

semntica, lgica, orgnica e funcional. So Paulo: Discurso

Editorial/Editora Vozes, 2001, p. 573). No caso do

Encheirdion de Epicteto, a traduo poderia ser: algumas

coisas nos concernem, outras no. Bailly (2000), citando a

mesma expresso, acentua a ideia de dependncia e de poder

que ela expressa, traduzindo-a por autant quil est em mon

pouvoir, enfatizando assim a ideia de controle (cf.

Xenofonte, Ciropdia, 5,4, 11). A expresso possui imagem

concreta e clara, referindo-se a algo que colocado sobre ns,

sustentado por ns, pois nos encontramos embaixo, fornecendo

seu apoio. A opo por encargo nosso acentua a ideia de

responsabilidade que temos quanto a isso que est sobre ns (e

do que somos a causa primria).

A expresso diferentemente vertida por diferentes

tradutores. Oldfather a traduz por things under our control

(2000); White, por what is up to us (1983); Gourinat, por

choses qui dpendent de nous (1998). 2 Hyplpsis: substantivo relacionado ao verbo

hypolambn, expressa a ideia de sucesso e de substituio,

adquirindo os sentidos de rplica, resposta, concepo e

pensamento. O vocbulo juzo, empregado aqui para

traduzir essa noo, deve ser entendido como um parecer ou

uma opinio que orienta nossa conduta diante de um

acontecimento que se nos apresenta. Vale a pena ressaltar que,

no contexto deste captulo, o vocbulo est associado ao

verbo otraduzido aqui por pensar (cf. nota 12). No

captulo 20, apresenta-se uma associao clara entre hyplpsis

68

e dgma (opinio). No captulo 5, apresenta-se tambm uma

associao entre dgma (opinio) e phantasa (representao)

por meio do verbo phanomai (afigurar-se). interessante notar

que o juzo nesses exemplos envolve a ponderao como a

considerao sobre se algo livre ou escravo -, mas tambm

sentimentos relacionados s nossas recusas, medos e desejos.

Oldfather (2000) traduz hyplpsis por conception;

White (1993), por opinion; Gourinat (1998), por jugement;

e Garca (1995), por juicio. 3Horm: substantivo relacionado ao verbo rnumi

(levantar-se), designa o primeiro bote de um assalto ou

ataque, adquirindo os sentidos de el e de impulso. Entre as

tradues consultadas para este trabalho, a nica exceo a

impulso como vocbulo para traduzir horm a opo de

Oldfather (2000), que emprega choice (escolha). Horm

deve ser entendido, no contexto do pensamento epictetiano,

como o mpeto para a ao, a tendncia para agir desta ou

daquela maneira diante de determinada coisa. 4 rexis o nome da ao do verbo reg, que apresenta o

significado de estender ou tender na direo de algo (por

exemplo: estender as mos para o cu ou para pedir algo a

algum), de onde desejo, apetite. uma palavra difcil para

ser transportada ao contexto cultural presente. Embora sua

traduo por desejo seja corrente, preciso ter cautela com

ela, pois no se deve entender rexis no sentido do emaranhado

de pulses originadas em nvel inconsciente que caracteriza a

viso moderna da subjetividade humana. rexis descreve a

ao de tender em direo a algo. Uma forma de apreender da

maneira mais precisa possvel seu significado ter em conta

que rexis se ope a kklisis, que expressa

o movimento contrrio, o de afastar-se (cf. nota seguinte). Para

Epicteto, desejamos as coisas que consideramos boas (cf.

Diatribes I,4,2-3). 5 kklisis identifica a ao de declinar, expressando o

movimento contrrio de klsis, que significa a ao de inclinar-

69

se. empregado para descrever o movimento da tropa que

evita o combate ou para descrever o declnio de um astro.

Oldfather (2000), White (1983) e Gourinat (1998) optaram

traduzi-lo por averso; Garca (1998), por rechazo. No

Aurlio, averso apresenta os significados de dio, rancor,

antipatia, que no cabem no presente caso. Optamos ento

por repulsa para expressar a ideia de repelir, afastar ou evitar

algo, sem a conotao de averso. Para Epicteto, repudiamos as

coisas que consideramos ruins (cf. Diatribes. I,4,2-3). 6 Eletheros: livre por oposio a escravo. Para Epicteto,

quem deseja o que no encargo seu necessariamente torna-se

escravo, pois voluntariamente submete-se aos que podem

proporcionar-lhe ou impedir-lhe o acesso coisa desejada

(cf. Diatribes I,4,19). 7 Aklutos: adjetivo verbal de privao da ao

relacionada ao verbo kl, que significa afastar, desviar,

adquirindo o sentido de impedir. Bailly (2000) apresenta o

substantivo neutro to klon com o significado de obstculo,

impedimento. Assim, a-klutos refere-se a algo para o que

no h impedimento quanto sua obteno, sendo, portanto,

desimpedido. 8 Aparapdistos: optamos traduzir o termo por sem

entraves, pois trata-se de um adjetivo verbal que nega a ao

relacionada ao verbo podz, que significa sujeitar os ps com

travas, referindo-se principalmente a armadilhas para animais.

Cf. o substantivo feminino podstra, que pode significar tanto

armadilha que prende pelos ps (Antologia Palatina 6, 107)

quanto teia de aranha (Antologia Palatina 9, 372). 9 Asthen: privado de fora, no sentido de fora fsica,

vigor. 10 Kluts: Cf. nota 7. 11 Arriano assim relaciona os adjetivos empregados para

qualificar o que encargo nosso e o que no : o que encargo

nosso livre, desobstrudo, sem entraves; o que no encargo

nosso dbil, escravo, de outrem.

70

12 Oi: pensar, no sentido de presumir, referindo-se a

coisas incertas da pressentir, crer, estimar. 13 Empodz significa literalmente meter os ps em uma

armadilha. 14 Penth: verbo relacionado ao substantivo to pnthos,

que siginifica dor, aflio. 15 Tarss: significa primariamente remexer, agitar,

no sentido concreto de preparar um medicamento agitando os

ingredientes que o compem. 16 Anankz: forar, constranger. 17 Felicidade traduz eudaimona. No contexto do

paganismo grego, daimonos um adjetivo que qualifica tudo o

que provm da divindade ou enviado por um deus. Associado

ao prefixo e (bem, no sentido de coisas boas), esse

vocbulo tem significao prxima de bem-aventurana na

acepo crist. 18 A noo de phantasa de fundamental importncia

para a compreenso da filosofia estoica por relacionar-se tanto

a questes lgicas quanto epistemolgicas e ticas. Entretanto,

os comentadores divergem sobre como traduzir o termo:

Lesses (Cause and Stoic Impressions. IN: Phronesis vol.

XLIII/1, 1998, p. 2- 24), Julia Annas (Hellenistic Philosophy

of Mind. Berkeley: University of California Press, 1991) e

Richard Sorabji (Perceptual Content in the Stoics. IN:

Phronesis, vol. XXXV/3, 1990, p. 307-314) traduzem

phantasa por aparncia (appearance);

Michael Frede (Stoics and skeptics on clear and distinct

impressions IN: Skeptic Tradition. M. Burnyeat (ed.).

Berkeley: University of California Press, 1983, p. 65-93) e

Long e Sedley (Hellenistic Philosophers, vol I & II.

Cambridge: Cambridge University Press, 1987) empregam o

termo impresso (impression);

Brad Inwood e L.P. Gerson (Hellenistic Philosophy:

Introductory Readings. Indianapolis: Hackett Publishing Co.,

1988) optam por apresentao (presentation);

71

Anthony Long (Representation and the self in Stoicism.

IN: Companions to Ancient Thought 2: Psychology. Stephen

Everson (ed.). Cambridge: Cambridge University Press, 1991,

p. 102-120) usa o termo representao (representation),

substituindo sua traduo anterior, impresso

(impression), para evitar confuso com o conceito humeano

homnimo. Embora tanto Cleanto quanto Crisipo considerem a

phantasa uma modificao da faculdade diretriz, eles

divergem ao explicar essa mudana. Para Lesses (1998, p. 6),

Crisipo parece criticar Cleanto por aceitar uma concepo

ingnua de representao mental, segundo a qual as phantasai

perceptivas so cpias de qualidades que os objetos

representados possuem (cf. Digenes Lercio, 7.50.4). Alm

disso, Annas (1991, p. 74-75) compreende estar implicado nas

observaes de Crisipo que as phantasai so proposicionais ou

articulveis em forma lingustica. Ora, quanto s alternativas

para traduzirmos o termo phantasa, parece-nos que impresso

est mais prximo de Cleanto que de Crisipo, pois a metfora

utilizada por Cleanto para introduzir o conceito em questo

justamente da impresso sobre a cera, metfora que

criticada por Crisipo por seu carter imagtico. A concepo de

Crisipo sobre a phantasa adotada desde ento pelo

Estoicismo que ela tem duas facetas: uma sensvel (pois,

como dissemos, trata-se de uma modificao da faculdade

diretriz) e outra virtual (pois a essa modificao afixado um

juzo, que descreve e avalia aquilo que efetuou a modificao).

Assim sendo, parece-nos que a palavra representao (que

possui, de acordo com o Aurlio, o sentido filosfico geral de

contedo concreto apreendido pelos sentidos, pela

imaginao, pela memria ou pelo pensamento) serve para o

nosso propsito, e por ela traduziremos phantasa. 19 Trata-se do adjetivo trachs, apresentado por Bailly

(2000) com o significado de rude, adquirindo diversos

sentidos, dependendo do substantivo ao qual esteja

72

ligado. spero, ao se tratar de uma pedra; pedregoso, ao

se referir a um rio ou a um terreno; rouca, ao qualificar um

tipo voz; grosseiro, duro, cruel, violento e irascvel, ao se

referir ao comportamento de algum. Simplcio (Comentrio

ao Encheirdion de Epicteto, V. 1.5) observa que tal

representao chamada trachea (dura, bruta) por ser

contrria razo, tornando spera a vida. Oldfather (2000) e

White (1983) traduzem esse adjetivo por harsh; Gourinat

(1998), por pnible; Garca (1995), por bruta. 20 Phainmenon: o que est se manifestando ou se

mostrando, particpio presente mdio do verbo phan. 21 Epangela: substantivo relacionado ao verbo epangll,

que significa primariamente anunciar, declarar, proclamar,

adquirindo tambm os sentidos de ordenar, comandar,

prometer. A opo por propsito d-se em razo do

significado de finalidade registrado no Aurlio. 22 Trabalha-se aqui com a oposio entre rexis (desejo) e

kklisis (repulsa). 23 No mbito da presente traduo, natureza nosso

vocbulo para verter phsis. 24Aphorm designa o ponto de partida, adquirindo os

sentidos de origem de algo, pretexto para fazer algo,

significando tambm base para operaes militares. Entre

os estoicos, o termo empregado para designar o princpio

contrrio de horm (cf. nota 3). 25 Psychagg: significa literalmente conduzir ou

evocar a psych, adquirindo os sentidos de encantar, seduzir,

alegrar. 26 Strg: amor fraternal expresso entre pais, filhos e

cnjuges. empregado tambm em relao a animais de

estimao e a valores morais, como o amor pela justia. 27 Proharesis: segundo Bailly (2000), o termo expressa a

escolha antecipada, a tomada de partido ou o desejo

premeditado, adquirindo os sentidos de vontade, plano e

inteno. Marcando oposio com annk (necessidade), em

73

alguns contextos vertido por livre-arbtrio. O termo

traduzido como moral purpose por Oldfather (2000);

choice por White (1983); choix por Gourinat (1998); e

albedro por Garca (1995). 28 Literalmente: caso haja algo de maneira a entravar o

banho. A expresso de maneira a entravar o banho seria uma

possibilidade de traduo praticamente literal para o advrbio

empodn, relacionado ao verbo empodz (meter os ps em

uma armadilha), que aqui vertemos por entravar-se. No

captulo 1, entravar-se refere-se a dar vazo a desejos cuja

satisfao no dependa de ns, levando-nos a aflies e

sofrimentos. Neste captulo, o termo relaciona-se a aborrecer-se

e deixar-se desviar por acontecimentos que no antecipamos. 29 Cf. nota 2. 30 A utilizao do vocbulo peixinho para traduzir

bolbrion baseia-se no comentrio de Pierre Hadot e Ilsetraut

Hadot (La Parabole de Lescale, In: Les Stoiciens. Org.

Dherbey e Gourinat. Paris: LGF, 2004, p. 437-452).

Embora bolbrion usualmente signifique o diminutivo de

cebola (bolbs), no grego tardio pode designar tambm uma

espcie de polvo ou lula (cf. G. W. H. Lamp. A Patristic

lexicon. Oxford, 1961, art. bolbs). Neste captulo, segundo os

Hadot, as duas palavras (kolchldion e bolbrion) se referem

s conchas espiraladas ou aos animais que se encontram nas

praias. 31 Euro: verbo relacionado ao adjetivo eroos, que em

um de seus significados mais concretos qualifica um fluxo de

gua o jorro de uma fonte ou a correnteza de um rio que

flui facilmente. Essa ideia de um fluxo de gua que corre sem

encontrar obstculos empregada por Epicteto para qualificar

uma condio de vida tranquila, prspera, sem entraves que

motivem agitao e sofrimento. A frase grega que vertemos por

a tua vida ter um curso sereno traduzida como your life

will be serene por Oldfather (2000); your life will go well

por White (1983); ta vie suivra um cours heureux por

74

Gourinat (1998); e vivers sereno por Garca (1995). 32 Cf. nota 27. 33 Kartera: substantivo feminino relacionado ao verbo

karter (que significa ser firme, forte, adquirindo o sentido

de ser obstinado e ser paciente) e ao adjetivo karteros

(forte, firme, slido). A adoo de perseverana liga-se

sua relao com a ideia de manter-se firme em um

comportamento, mesmo diante de dificuldades. 34 Prokpt significa literalmente estirar ou alongar uma

placa de metal a golpes de martelo, adquirindo o sentido

figurativo de progredir, avanar em direo a algo. 35 Cf. nota 27. 36 Disciplinadamente nossa traduo para o advrbio

kosms. Bailly (2000) registra os significados de com ordem

e com medida. Oldfather (2000) e White (1983) o traduzem

por politely; Gourinat (1998), por convenablement; e

Garca (1995), por moderadamente. 37 Neste captulo, Epicteto faz referncia teoria dos

papis de Pancio de Rhodes (apresentada por Ccero no De

Officiis, I, xxx, 107- xxxiii, 121), tendo em mente o papel que

determinado ao homem pela divindade. Assim, na presente

passagem, idits (homem comum em nossa traduo) se

refere ao simples cidado, que no de estirpe patrcia e no

tem o direito de ocupar cargos eletivos nas cidades do Imprio

Romano. Em outras passagens, Epicteto ope idits (que deve

ser compreendido ento por homem sem instruo) ao

filsofo (cf. Encheirdion, 48). 38 Efetua a distino refere-se ao exerccio da regra,

apresentada ao final do captulo 1, que o discpulo deve usar

diante de uma representao bruta. Em primeiro lugar,

preciso perceber que o que incomoda no a prpria coisa que

est se manifestando, mas sim a representao (e,

consequentemente, o juzo) que se faz dela. Em segundo lugar,

preciso determinar se a representao se refere a coisas que

so encargos nossos ou no. Caso se refira a coisas que no so

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encargos nossos, deve-se dizer prontamente: Nada para

mim. 39 Trata-se do verbo makarz, tradicionalmente vertido

por ser feliz. importante ressaltar a ligao desse vocbulo

com os aspectos divinos que ele encerra. Chantraine (1984)

registra para o adjetivo mkar o significado de bem-

aventurado, normalmente empregado no plural, referindo-se

aos deuses (os bem-aventurados). Em Homero, o adjetivo

aparece tambm associado aos homens, qualificando a

condio de algum favorecido pelos deuses (cf. Ilada, 3,

182). Uma proposta de traduo literal, buscando uma estreita

relao com a condio divina da felicidade, poderia ser: Que

ele seja bem-aventurado. 40 Cf. nota 2. 41 Epithym: Oldfather (2000) traduz o termo por

yearn; White (1983), por crave; Gourinat (1998), por

aspire; Garca (1995), por ansas. Optamos por aspirar,

pois o vocbulo se remete ideia de colocar algo dentro ou em

cima do peito. 42 Literalmente: De onde vem esta sobrancelha? Bailly

(2000) registra os sentidos figurativos de gravidade e

majestade. 43 Boter (1999, p. 124) observa que, se entendermos

atima simplesmente como falta de honras, o texto perde o

sentido, j que tal falta de honras para os estoicos um

indiferente. Assim, preciso distinguir entre a real e a

aparente atima, sendo aquela um mal verdadeiro na medida em

que compreendida como falta de valor e esta um mal aparente

na medida em que compreendida como o mero fato de no ser

valorizado pelos outros. A identificao de tim com

excelncia moral e atima com o seu contrrio doutrina

estoica genuna (Cf. Estobeu SVF III 563; Ccero SVF III 312).

Boter (1999, p. 125) assim interpreta o que Epicteto quer dizer

na passagem em questo: Temes a atima? Ests certo, porque

ela m e vergonh